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SEGUNDA PARTE AEXCELENCIA E A VANTAGEM DA RELIGIAO Agora, meu prezado amigo, tendo descoberto a natureza a religido verdadeira, antes de ir mais adiante talvez nao ja impréprio fixar um pouco as nossas meditacdes na exceléncia e nas vantagens da religido, para que sejamos jIncitados a um prosseguimento mais vigoroso e diligente bre os métodos pelos quais podemos alcancar téo grande dade. Mas, que palavras encontraremos para expressar aquela satisfacdo interior, aqueles prazeres recénditos que jamais podem ser bem compreendidos, a nao ser pelas almas santas que os usufruem? “O estranho nfo se entre- meter na sua alegria” (Provérbios 14:10). Santidade é 0 ter reto, a constituigdo vigorosa e saudével da alma: ateriormente as stias faculdades tinham-se enfraquecido € ham ficado em desordem, de modo que a alma nao dia exercer as suas funcdes naturais. Ela fora dominada pela fadiga causada por incessantes sacudidelas € giros, € vio conseguia achar repouso. Agora, removida a perturba- ),ela se sente bem —a devida harmonia prevalece em suas culdades, ¢ um vivaz vigor se apodera de cada parte. O sndimento pode discernir o que € bom, ea vontade pode camino para 0 que é bom; os afetos ndo esto atados 63) aos movimentos dos sentidos e 2 influéncia dos objetos externos, mas so estimulados por impresses mais divinas, sio vibrantemente tocados por uma percepgio de realidades invisiveis. A EXCELENCIA DO AMOR DIVINO Aprofundemo-nos, se Ihe apraz, numa visio mais proxima e mais particular da religido, naqueles diversos ramos jé mencionados. Consideremos 0 amor ¢ o afeto pelos quais as almas santas se unem a Deus, para vermos que gloriosa exceléncia e que felicidade estio envolvidas nela. O amor € aquela paixfo poderosa e dominadora pela qual todas as faculdades e inclinacdes da alma sao deter- minadas e da qual dependem a sua perfeicdo tanto quanto a sua felicidade. O valor e a exceléncia de uma alma devem ser mensurados pelo objeto do seu amor. Quem ama coisas inferiores e sérdidas, por meio delas se torna baixo ¢ vil, mas um afeto nobre e bem colocado faz com que o espirito progrida e melhore em dirego & conformidade com as perfeigdes que ele ama, As imagens destas se apresentam com freqitencia a mente e, gragas a uma fora ¢ energia secreta, insinuam-se na prépria constituicao da alma, e a amoldam € modelam para que se Ihes torne semelhante. Dai se pode ver que os que se amam e os amigos facilmente deslizam para a imitacao das pessoas as quais eles querem bem, ¢ que, mesmo antes deo perceberem, comegam a ficar parecidos com eles, nao somente nos casos mais consideréveis do seu procedimento, mas também em sua 4 ‘voz, em seus gestos e naquilo que chamamos seu semblante seu ar, (Fulano tem o ar de quem aspira a0 céu!) E certa- ‘mente transcreveriamos as virtudes e as belezas interiores da alma, se fossem objeto ¢ motivo do nosso amor. Mas assim como todas as criaturas com as quais convivemos tém sua mistura e sua liga, nés sempre corremos o perigo de ser maculados ¢ corrompidos por depositarmos nosso afeto nelas. A paixio facilmente cega os nossos olhos, de modo que primeiro aprovamos ¢ depois imitamos as coisas que nelas sio condenaveis. © verdadeiro meio de melhorar ¢ enobrecer as nossas almas é fixar 0 nosso amor nas perfei goes divinas, para que as tenhamos sempre diante de nés € derivemos uma impressao delas em nés, e para que suceda conosco 0 que 0 apéstolo descreve, dizendo: “Todos nés, com cara descoberta, refletindo como um espelho a gléria do Senhor, somos transformados de gléria em gléria na ‘mesma imagem” (2 Corintios 3:18). Aquele que com gene- rosa ¢ santa ambigao elevou seu olhar para a beleza ¢ bondade incriada, e fixou ali o seu afeto, € dotado de um espirito completamente diferente, tendo um caréter mais, excelente e mais herdico do que o resto do mundo, € pode simplesmente desdenhar todas as coisas de haixo valor € indignas. Tal cristio nao alimenta pensamentos baixos ou ‘vis, 0s quais poderiam rebaixar suas altas e nobres preten- Ses. O amor é a coisa mais grandiosa e mais excelente que podemos ter sob 0 nosso dominio. Portanto, € loucura ¢ baixeza concedé-lo indignamente, & na verdade a tnica coisa que podemos dizer que é nossa, Outras coisas podem ser tomadas de nés a forga, mas ninguém pode arrebatar 0 65 nosso amor. Se alguma outra coisa é considerada nossa, a0 darmos amor damos tudo, 0 que igualmente fazemos com o nosso coracio e a nossa vontade, pelos quais possuimos todas as outras coisas que usuftuimos. Nao nos é possivel recusar coisa alguma a quem, por amor, nos demos. Sim, desde que & privilégio dos presentes terem o seu valor avaliado pela mente do doador, néo pelo evento em si, mas pelo desejo, pode-se dizer que aquele que ama pode, nalgum sentido, nao somente dar tudo o que possui, porém também todas as outras coisas que possam alegrar a pessoa amada. Uma vez que ele as queira de coragio ¢ realmente as dé, se estavam em seu poder, em que sentido alguém se atreveria a dizer: “Aquele que tem o amor divino, de certo modo dé- ~se a Deus e, por Sua complacéncia, recebe a felicidade ¢ a perfeicao da Sua natureza”. Mas, embora essa exprescio parega exagerada, certamente 0 amor é 0 presente mais digno que podemos oferecer a Deus, e sofre extremo rebai- xamento quando o damos mal. Quando este afeto ¢ mal destinado, muitas vezes da livre curso a expressdes que apontam para 0 seu objeto genuino e préprio, e insinua para onde deveria ter sido destinado. Os bajuladores ¢ blasfemos termos de adoracio, com os quais As vezes os homens expressam a sua paixio, constituem a linguagem daquele afeto feito e designado para Deus, como aquele que costuma falar sobre algum grande personagem sem o saber dirige saudagées a outro empregando titulos que nao esta acostumado a dirigir a esse. Mas, certamente, a paixio que considera seu objeto uma divindade deve ser vorada a Quem realmente é Deus. 66, "As ilimitadas formas de submissao que rebaixariam a alma, que todos os impérios do mundo. AS VANTAGENS DO AMOR DIVINO Reforcando, o amor divino leva avante ¢ cleva a alma, sorte que somente ele pode fazé-la feliz. Os mais altos ¢ iblimes prazeres, os mais s6lidos e substanciais deleites de jue € capaz a natureza humana, sdo os que brotam das paixdo inguictante e danosa é dedicé-lo a um objeto nao ‘‘uficientemente digno de recebé-lo, ou que ndo tem nem. fi¢do nem gratidao para retribui-lo, ou cuja auséncia nos prive do prazer da sua companhia ou as suas misérias nos O VALOR DO OBJETO A CONSIDERAR Digo, primeiro, que o amor s6 pode ser miserdvel € heio de perturbacao e de inquietude quando nao hé em seu ‘objeto bastante valor e exceléncia para corresponder & oT vastidio da sua capacidade. Tao avida e violenta paixio nao pode sendo corroer e atormentar 0 espirito, quando nio encontra o que satisfaca seus anseios. E, na verdade, tao grande ¢ ilimitada é a natureza do vero amor, que este se sente inevitavelmente oprimido e premido quando confinado numa criatura. Nada que esteja abaixo do infinito bem pode dar-lhe espaco para que se estenda e exerga seu vigor e sua atividade. Pergunto: que € uma pobre ¢ superficial beleza ou um diminuto grau de bondade para igualar ou satisfazer uma paixio feita para Deus, destinada a abracar um Deus infinito? Nao admira que os que se amam repudiem fortemente qualquer rival ¢ nao desejem que outros apro- vem sua paixio imitando-a. Eles conhecem a limitagio e a estreiteza do bem que eles amam, o qual nao é suficiente para dois, sendo, com efeito, muito ponco para um. Dai, o amor, que “€ forte como a morte”, causa citime, que é “duro como a sepultura? (CAnticos 8:6); € carvao que se inflama expedindo as mais violentas chamas. © amor divino, no entanto, nao tem essa mistura amarga Quando a alma se fixa nesse bem supremo e todo-suficiente, ela acha nele tanta perfeicdo ¢ bondade que ele nao somente corresponde ao seu afeto e o satisfaz, mas também o domina eosupera. Ela vé que todo o seu amor € muito débil e frouxo para um objeto de tal nobreza, ¢ sé lamenta nao poder oferecer-Ihe maior amor. A alma anseia pelas chamas de um serafim e anela pelo dia em que vai se derreter e consumir de amor. E devido poder fazer to pouco, deseja a assisténcia de toda a criacao — deseja que os anjos ¢ os homens se juntem a cla na admiracao e no amor daquelas perfeigoes infinitas. 68 O AMOR REQUER RETORNO RECIPROCO. O amor € acompanhado pela inquietagéo também ‘quando nao tem um pertinente retorno de afeto. O amor éa ‘eoisa mais valiosa que podemos concedere, quando o damos, ‘fetivamente damos tudo 0 que temos. Por isso é realmente illitivo ver tao grande didiva desprezada, ver que o presente que demos de todo 0 coracao nao consegue obter nenhum retorno. O perfeito amor é uma espécie de auto-abandono, um vagar para fora de nés mesmos. E uma espécie de morte Yoluntéria na qual aquele que ama morre para si mesmo e ‘para todos os seus interesses, nao pensando mais neles nem preocupando mais com eles, s6 querendo saber e fazer 0 jue agrada e gratifica a parte amada por ele. E assim ele se ente desmoronar pur cuimpleto, se nao encontra afeto {proco. Ele negligencia a si mesmo, o outro nem liga. as, se € amado, revive, por assim dizer, ¢ vive na alma e no dado da pessoa que ele ama. E agora comeca a pensar em us prOprios interesses, nao tanto porque so seus como que o ser amado se agrada em envolver-se neles positi- mente, Ele se torna precioso para si mesmo porque 0 ira'0 outro. Contudo, por que me estendo tanto sobre um assunto conhecido? Nada pode ser mais claro do que o fato de ue a felicidade do amor depende do retorno recebido por je: amar e ser amado. E nisso aquele que tem 0 amor divino va indescritivel vantagem, tendo depositado o seu afeto qquele cuja natureza € amor, cuja bondade é tao infinita ‘omo o Seu ser, cuja misericérdia nos veio antes, quando 69 ainda éramos inimigos. Portanto, nao podemos fazer outra coisa senio abragar-nos quando nos tornamos Seus amigos. E completamente impossivel que Deus negue Seu amor a uma alma totalmente devotada a Ele e que nenhuma coisa deseja tanto como servi-lO ¢ agradi-lO. Ele nao pode desdenhar Sua prépria imagem, nem desprezar 0 coracdo no qual ela esté gravada. O amor é todo o tributo que podemos pagar a Deus, e € 0 sacrificio que Ele nao desprezara. O AMOR DIVINO REQUER QUE O SEU OBJETO ESTEJA PRESENTE Outta coisa que perturba o prazer do verdadeiro amor ¢ 0 tora uma paixdo miseravel ¢ inquietante é a auséacia @ a separagdo daqueles que amamos. Nao é scm dolorosa afligio que os amigos partem, ainda que por pouco tempo. E triste ser privado desse companheirismo tio agradavel Nossa vida se enche de tédio e passamos 0 tempo na impaciente expectativa da feliz hora em que venhamos encontrar-nos outra vez, Mas, se a separacao for causada pela morte, 0 que teré que acontecer mais cedo ou mais tarde, esse acontecimento ocasiona um pesar que mal se compara com todos os infortinios da vida humana, nos quais pagamos alto prego para termos os beneficios da amizade. Todavia, quao felizes sdo os que depositam 0 seu amor naquele que jamais poderd estar ausente deles! Basta que abram os olhos para que em toda parte vejam tracos e sinais da Sua presenga e da Sua gloria, e comunguem com Aquele 70 qne sua alma ama. E este companheirismo com Deus thes tornaa mais tenebrosa prisio ou o mais agreste deserto, nfio somente suportavel, mas também deleitavel. © AMOR DIVINO FAZ-NOS PARTICIPANTES DE UMA FELICIDADE INFINITA Por fim, quem ama é infeliz, se infeliz é a pessoa amada por ele. Os que fizeram por amor um interedmbio de cora- goes obtém dessa relacio um real interesse pela felicidade ou infelicidade um do outro. E isso torna o amor uma _ paixao angustiante, quando depositado num objeto terrenal. A pessoa mais afortunada tem aflicdes suficientes para estra- far a trangililidade do seu amigo, e é dificil extirpa-las quando somos atacados por todos os lados'¢ sofremos, nao ‘somente os nossos proprios pesares, mas também os de outrem. ‘Mas, se Deus fosse o objeto do nosso amor, nés parti- jariamos do Seu perfeito amor com felicidade infinita, em nenhuma mistura e sem nenhuma possibilidade de liminuicao. Com alegria contemplarfamos a gléria de Jeus € receberiamos consolo e prazet de todos os louvores mos quais os homens ¢ os anjos O exaltam. Ser-nos-ia leleitavel, além de toda possibilidade de expressao, msiderar que o amado das nossas almas é infinitamente iz. em Si mesmo, € que nem mesmo todos os Seus inimi juntos podem abalar ou desestabilizar o Seu trono, pois “no céu esté o nosso Deus ¢ tudo faz como lhe agrada” (Salmos 115:3, ARA). n Contemplemos 0 tao firme e seguro fundamento sobre © qual é edificada a felicidade da alma dominada pelo amor divino, da alma cuja vontade se transmuta na vontade de Deus e cnjo maior desejo € que tudo ¢ todos agradem o seu Criador! Oh! A paz, 0 sereno repouso e a satisfacio que beneficiam aquele cuja mente é deste jaez ¢ desta témpera! PARA QUEM AMA A DEUS, TODAS AS SUAS DISPENSACOES SAO AGRADAVEIS Que infinito prazer realmente existe em, por assim dizer, perder-nos em Deus e deixar-nos absorver pelo avassalador sentimento da Sua bondade, oferecer-nos num sacrificio que sempre suba a Ele em labaredas de amor. Nenhuma alma conhecerd uma tao s6lida alegria © uu tau substaucial pra- zer, enquanto nfo acontecer que, uma vez cansada de si mesma, renuncie a tudo o que Ihe € proprio constrangedor, entregue-se ao Autor do seu ser, sinta-se transformado num objeto santificado e consagrado, ¢ possa dizer: “O meu amado € meu”, considero meus todos os seus interesses; “e eu sou dele” (cf. Canticos 6:3). Contento-me em ser qualquer coisa para Ble, e ndo me preocupo em nada que diga respeito aos meus préprios interesses, sendo unicamente naquilo em que eu possa servi-l0. Una pessoa modelada com essa témpera tera prazer em todas as dispensagdes ou distribuigdes da Providencia As boas coisas da vida temporal tém outro gosto quando ela saboreia nelas a bondade divina e as considera sinais de amor enviados a ela por seu Senhor e Criador muito amado. 7 Hos castigos, embora nao gostosos, porém dolorosos, envol- tos nesse perfeito amor perdem o seu ferrio: tanto a vara como o cajado o confortam. Tal pessoa arrebata um beijo da mao que a fere e colhe dogura da sua severidade. Sim, tal Gristao se regozija no fato de que, embora Deus nao tenha feito a vontade de uma criatura indigna e tola como ele, todavia, fez a Sua vontade e realizou os Seus propésitos, que so infinitamente mais santos e mais sdbios. OS DEVERES DA RELIGIAO LHE SAO DELEITOSOS Os exercicios da religiio, para outros insipidos ¢ tedio- 408, dio o maior prazer e deleite as almas dominadas pelo wor divino. Elas se alegram quando chamadas para irem a do Senhor “para verem a sua forga ea sua gloria no \tudrio” (cf. Salmos 63:1,2). Elas nunca se consideram tio izes como quando, afastadas do mundo e livres dos rui- 5 ¢ da pressa das atividades da vida, e tendo silenciado joclas as suas clamorosas paixées, importunos héspedes do yragio — nunca se consideram tio felizes como quando se Jlocam na presenca de Deus e mantém intima comunbao ym Ele. Tais almas se deliciam em adorar as perfeicdes de ets, em contar e recontar os Seus favores e declarar-lhe seu jeio, dizendo-lhe mil vezes que O amam, em expor-lhe seus oblemas ou suas necessidades, ¢ em descarregar seus ragdes no divino seio. © proprio arrependimento ¢ um ercicio deleitoso quando mana do principio do amor: hé im secreto dulcor que acompanha aquelas lagrimas de contrigao, 0 amolecimento ¢ enternecimento de uma alma que regressa a Deus, lamentando a sua dureza anterior. As austeridades de uma vida santa, ea constante vigi- lancia que somos obrigados a manter sobre os nossos coracées ¢ os nossos caminhos, siio muito aborrecidas para aqueles que sio governados e movidos por uma lei externa e que nfo tém nada em suas mentes que os incline a cum- prir o seu dever. Mas quando o amor divino domina a alma. posta-se como sentinela para manter fora tudo o que possa ofender 0 amado ou induzi-lo a pecar, € para repelir com repugnancia as tentagdes que o assaltem; cumpre com alegria, nao somente mandamentos explicitos, mas também as menges mais secretas do prazer do amado, € € engenhoso em descobrir o que the sera mais grato e mais aceitivel; e faz com que a mortificacdo ea auto-negacao mudem seus nomes terriveis e se tornem coisas faceis, doces e deleitosas. Vejo que esta parte da minha carta ficou maior do que © projetado, Quem, na verdade, nao se sentiria tentado a demorar-se sobre tema tio agradavel? Vou me esforgar para compensar isto abreviando outros pontos. A EXCELENCIA DA CARIDADE E DO AMOR UNIVERSAIS © préximo ramo da vida divina é constituido pela caridade ¢ pelo amor universais. A exceléncia destas gracas serd facilmente reconhecida, pois, que é que pode set mais, nobre e generoso do que um coracéo amplamente aberto para abranger 0 mundo inteiro e cujos desejos e propésitos 74 ‘apontam para o bem e para a felicidade do universo, um coracdo que considera seu o interesse de todos os homens? Quem ama o préximo como a si mesmo nunca pode abrigar pensamento baixo ou injurioso, ou ser falto de expressées de generosidade. Ele prefere sofrer mil afrontas a ser cul- pado de uma, e nunca se considera feliz, a nao ser quando um ou outro é beneficiado por ele: a maldade ou a ingrati- dao dos homens é incapaz de resistir a seu amor; ele passa por alto as injlirias sofridas de outros, vence o mal que deles procede com o bem, ¢ nunca tem em vista qualquer outra _vinganca contra os seus maiores ¢ mais maldosos inimigos que nao seja a de colocar sobre eles todos os favores que ‘hes puder fazer, quer eles queiram quer nao. Seria surpreendente que tal individuo seja reverenciado © admirado, e que seja tido como o amado da humanidade? ista bondade e benignidade interna do espfrito reflete uma ta docura ¢ serenidade no proprio semblante, e o torna ‘igdvel e belo: inspira a alma urna nobre resolugao ¢ cora- jem ea capacita a empreender ¢ a efetuar as coisas mais levadas. As agdes herdicas que costumamos ler com iimiragao, na maior parte foram efeitos do amor pela vitria, ou de uma amizade especial. E é certo que um afeto iis extenso e universal é, necessariamente, mais poderoso. mais eficaz. O PRAZER QUE HA NELES Acresce que a caridade flui de um cardter nobre e Keelente, ¢ entio 6 acompanhada pela maior satisfacio, 75 pelo maior prazer. E uma delicia a alma sentir-se assim engrandecida e ser libertada das perturbadoras e disformes paixdes ~ malicia e maldade, édio, inveja e citime—e tornar- ~se gentil, doce e benigna. Se eu pudesse escolher dentre todas as coisas que poderiam favorecer minha presente felicidade, escolheria isto—ter o meu coragéo dominado pela maior bondade ¢ afeicdo por todos os homens do mundo. Tenho certeza de que isto me faria compartilhar toda a felicidade dos outros — seus dotes interiores e sua prospe- ridade exterior; todas as coisas que os beneficiam e que thes dao proveito me propiciariam consolacdo e prazer. (Alegrai-vos com os que se alegram.”) E, embora eu enfrente freqiientemente ocasides de pesar e de compaixao (de sofrimento empético), ainda assim na comiseracao ha uma docura que a torna infinitamente mais desejével do que uma tola insensibilidade. Ademais, a consideragao dessa infinita bondade e sabedoria que governa o mundo pode reprimir toda preocupacio excessiva com particulares calamidades que nele podem acontecet, ¢ a esperanga ou a possibilidade de uma felicidade futura dos homens modera a tristeza que sentem por seus presentes infortinios. Certamente, depois do amor de Deus e do gozo da comu- nhao com Ele, a ardente caridade e afeicao com a qual as almas bem-aventuradas se abragam umas as outras, com justica deve ser considerada como a maior felicidade dessas altissimas rogides, e, se prevalecesse universal no mundo, anteciparia aquela bem-aventuranca € nos faria saborear na terra os gozos do céu. 76 A EXCELENCIA DA PUREZA Aquilo que denominei terceiro ramo da religiao é a pureza, ¢ talvez vocé se lembre de que a descrevi dizendo que consiste no desprezo pelos prazeres sensuais ena resoluta disposicdo para suportar as dores e aflicdes com as quais nos " defrontamos durante o cumprimento do nosso dever. Pois bem, a s6 mencio disto pode ser suficiente para recomen- dar a pureza como a qualidade mais nobre e mais excelente. Nao hé escravidao mais abjeta do que aquela pela qual o homem se torna escravo das suas préprias luxtirias, nenhuma vit6ria ¢ t2o gloriosa como a que é obtida sobre ‘elas. Nunca podera ser capaz de qualquer coisa nobre ou ‘digna a pessoa que chafurda nos crassos lamacais dos praze- 5 dos sentidos, ou que se deixe enfeitigar pelas levianas e uéreas gratificagdes da fantasia. Mas a alma religiosa tem sardter mais sublime e divinal. Ela sabe que foi criada para jalores mais altos e se nega altivamente a dar um passo fora las veredas da santidade para obter qualquer daquelas coisas vis. O DELEITE QUE ELA PROPICIA, Esta pureza vem acompanhada de muito prazer. O que luer que macule a alma também a perturba. Todos os wazeres tém um ferrao cravado neles e deixam um rastro de gtistia e de lancinante dor. Os excessos, a intemperanca e das as luxtirias desordenadas séo, de tal forma, inimigos satide do corpo e dos interesses da presente vida, que um 7 pouco de ponderacdo obrigaria qualquer homem racional a abster-se deles, com base nesse mesmo juizo. E se a pessoa religiosa subir mais e nao se abstiver s6 dos prazeres dani- nhos, mas também deixar de lado os prazeres inécuos ou inocentes, nao se deve considerar isso como uma restrigéo violenta e molesta, porém como o efeito de uma escolha melhor, para que a mente deles seja impulsionada a buscar deleites mais sublimes e mais refinados, ¢ razio pela qual eles ja nao podem interessar-se por aqueles outros prazeres. Toda pessoa que se envolve numa afeicio violenta apaixonada facilmente olvidard as suas gratificagdes comuns, tera pouca curiosidade por sua dieta alimentar, ou por seu bem-estar fisico, ou pelas recreagées nas quais cosiumaya deleitar-se. Néo admira, pois, que as almas dominadas pelo amor divino desprezem os prazeres inferio- res € se mostrem quase prontos a dar com relutancia 0 atendimento de que 0 corpo necessita para as comuns acomodagées da vida, julgando-as impréprias para a sua maior felicidade ¢ para os gozos superiores que elas bus- cam. Quanto as durezas ¢ dificuldades com as quais talvez se defrontem, regozijam-se nelas, vendo-as como oportu- nidades para exercitar e testificar o seu afeto. E, visto que podem fazer tio pouco por Deus, alegram-se com a honra de softer por Ele. A EXCELENCIA DA HUMILDADE O derradeiro ramo da religido é a humildade. Todavia, 8 yara os olhos vulgares ¢ carnais, a humildade pode parecer a qualidade abjeta, vil e desprezivel. Entretanto, a alma mana € incapaz de algum atributo mais elevado e mais hobre. E uma tola ignorincia que gera 0 orgulho, mas a humildade surge de uma familiaridade mais intima com » coisas excelentes, ¢ impede os homens de apegar-se a Dagatelas ou de cnvaidecer-se por causa de algumas salizacdes insignificantes, As almas nobres e bem educadas nunca tém em alta onta as riquezas, a beleza, a forca e outras pequenas vanta- ens semelhantes, quanto a se valorizarem por elas ou a dade interior e a verdadeira bondade, o discerni- nto que as almas piedosos tém das perfeigdes de Deus até agora tinham aleangado, como também as leva a tinuarem se esforgando para superar a si mesmas e se aproximarem mais das exceléncias infinitas que admiram. as express6es € os atos que poderiam fazer com que considerados arrogantes ¢ presuncosos, de modo aqueles que mais desejam receber louvores relutam em omendar suas pessoas. O que seriam todos aqueles cum- rimentos e aquelas maneiras de civilidade, téo freqiientes nossas conversas comuns, senéo muitos protests de 9 que a humildade é uma nobre e excelente qualidade quando as puras sombras dela sao consideradas uma parte muito necessdria da polidez social? O PRAZER E 0 ENCANTO DO TEMPERAMENTO HUMILDE A graca da humildade ¢ também acompanhada de grande felicidade e tranqiiilidade. Quem 6 orgulhoso e arrogante é um problema para todos 0s que conversam ou convivem com ele, mas acima de tudo para si mesmo: qual- quer coisa é suficiente para contrarié-lo, mas dificilmente alguma coisa € capaz de contenté-lo e agradé-lo. Ele esti pronto a brigar por qualquer coisa que Ihe desagrade, como sc fosse um personagem tio altamente digno de conside- ragdo que Deus, 0 Todo-poderoso, devesse fazer tudo para satisfazé-lo, ¢ todas as criaturas do céu e da terra tivessem que servi-lo e obedecer & sua vontade. As folhas das érvores altas sio sacudidas por qualquer golpe de vento; € cada sopro, cada mé palavra, inquietard e atormentard o arrogante. ‘Mas quem é humilde, quando desprezado tem a vamtagem de que ninguém pode consideré-lo mais insignificante do que ele proprio se considera, Por isso nao se abala face a0 desprezo que Ihe votem, mas pode suportar facilmente as criticas que feririam até a alma a pessoa arrogante. “Da soberba $6 provém a contenda” (Provérbios 13:10); a arro gdncia trai o arrogante, colocando-o em mil inconveniéncias com as quais as pessoas de caréter manso ¢ humilde nao se defrontam. A verdadeira ¢ genuina humildade gera 80 Veneracio e amor entre as pessoas sébias e dotadas de dis- cernimento, ao passo que o orgulho poe abaixo o seu proprio propésito e priva o orgulhoso da honra que o ‘orgulho o leva a desejar. Entretanto, assim como os “principais exercicios da humildade” sio os que se relacionam com Deus todo- -poderoso, assim também eles so acompanhados pela inaior satisfagio e pelo maior dulcor. & impossivel expressar 0 grande prazer e deleite que as pessoas religiosas sentem na mais humilde prostracdo das suas almas diante de Deus, ‘quando, tendo uma aprofunda percepcao da majestade e ploria de Deus, elas vao ao fundo do seu ser, se posso assim falar, € se desvanecem e desaparecem na presenca de Deus, vidos por um sério € sentido reconhecimento da sua ulidade pessoal c da pequencz ¢ imperfeigao'das suas salizagoes, quando entendem o pleno sentido e a énfase da clamacao do salmista, “Que é 0 homem?” (Salmos 8:4), € oder proferi-la com o mesmo sentimento. Nunca a pessoa ltiva ¢ ambiciosa, seja quem for, recebe os louvores € os ausos dos homens com tanto prazer como a pessoa hu- ilde e realmente religiosa os renuncia; “Nao anés, Senhor, io. a nds, mas ao teu nome da gloria” (Salmos 115:1). Comentei, entdo, algo das exceléncias e vantagens da ligido em seus varios ramos. Mas eu faria grande injiria assunto se tivesse a pretensao de havé-la explicado per- tamente. Procuremos conhecé-la bem, meu amigo, € a yperiéncia nos ensinara mais do que tudo 0 que ja se lou ou se ensinou sobre ela. Contudo, se acharmos que guma alma j4 foi despertada para anseios por tao grande 81 bem-aventuranga, bom serd que Ihes demos livre curso € com paciéncia procuremos expor algumas dessas aspiragées. ORACAO “Bom Deus! Que extraordinaria felicidade é esta para a qual fomos chamados! Com que bondade juntaste o nosso dever 4 nossa felicidade, e prescreveste que, quanto ao nosso trabalho, sua realizagio seja uma recompensa tio grande! E ser que téo tolos vermes sejam levados a tao grande altura! Permites que alcemos a Ti 0 nosso olhar? Admites e aceitas 0 nosso afeto? Porventura receberemos, impressas em nés, as Tuas divinais exceléncias por contempla-las e admira- -las, € compartiremos a Tua beatitude e a Tua gléria por amar-Te ¢ por nos regozijarmos nelas? Oh! A felicidade das almas que romperam os grilhdes do amor proprio ¢ desenredaram o seu afeto libertando-o de todo bem estreito e pessoal, almas cujo entendimento recebe a luz do Teu Espirito Santo ¢ cuja vontade vai ganhando a amplitude da Tua. Almas que Te amam acima de todas as coisas e de toda a humanidade pelo que és, sem nada esperar de volta! Estou persuadido, 6 Deus, estou persuadido de que nunca poderei ser feliz, enquanto os meus afetos carnais ¢ corruptos nao forem mortificados, enquanto 0 orgulho e a vaidade do meu espirito nao forem subjugados, e enquanto eu nao passar a desprezar seriamente 0 mundo ¢ a nao pensar bem de mim mesmo. Mas, oh, quando ird isso acontecer! Oh, quando Tu 82 jrds até mim e satisfizer a minha alma com a Tua seme- nea, tornando-me santo como Tu é santo, na maneira conversar e de viver? Serd que me destes a perspectiva jc uma imensa felicidade, e nao queres me fazer entrar na sse dela? Tu incitastes estes desejos em minha alma, io queres também satisfazé-los? Ob, ensina-me Senhor i fazer a Tua vontade, pois Tu és 0 meu Deus ¢ 0 Teu pirito € bom; guia-me para a terra da retidio! Vivifica- e, Senhor, por amor do Teu nome, ¢ aperfeicoa aquilo jue me concerne. Senhor, a Tua misericérdia dura para pre; nao desampares as obras das Tuas mios.”

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