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Capitulo Introdutério As Obrigacées em Leitura Givil-constitucional *0 autor é openes 0 primeiro liter, noda mas." (Paul Ricoeur) “berdade,iguoldode,frateridode’~ eles se esqueceram de obrgapdes devers, eu acho. € entdo,& claro, 1 fratemidade desaporeceu por muito tempo.” (Margaret Thatcher) Hg mais de dois mil anos, no Império Romano, 0 procedimento do “concurso de credores” consistia em conduzir o desafortunado devedor 8s margens do Rio Tibre e fragmentar 0 seu corpo em miltiplos pedacos, oferecendo-se as partes aos seus ‘redores de acordo com a proporcionatidade do montante dos créditos. Vé-se que a razoabilidade j4 estava em voga! Em_um salto no tempo, podemos afirmar com seguranca que, atualmente, ha civilistas: que ainda ensinam’aos académicos que'o tempo da Leidas XII Tabuas felizmente passou, pois a grande transformagao das obrigagdes ~ iniciada com a Lex Poetelia do ano 326 a.C. consolidada no cédigo napolednico de 1804 ~ traduz-se nna passagem da responsabilidade pessoal a responsabilidade patrimonial, Vale dizer, © débito, no. mais, seria, garantido, pelo, corpo da pessoa humana, mas. pelos seus bens apreciaveis economicamente. De fato, indo hé’'como negar que 0 direito contemporaneo nao mais admite situagdes como a do personagem Antonio, que na célebre obra de Shakespeare, 0 mercador de Veneza, contrata com 0 agiota Shylock (sempre: um judeut), oferecendo como-garantia 20 inadimplemento do empréstimo contrafdo nada menos do que uma libra de carne: de seu corpo. ‘Ademaid, a8 thipéteses de’ imposigao de peria ue prisdo para o caso de des- ‘cumprimento de obrigagbes limitam-se a esfera do art. 5°, LXVI, da Constituigao Federal. Vale dizer, ao devedor de alimentos e a0 depositério infiel sera reservado cércere. Segundo os'préceres da “vanguarda” civilista, a ressalva’da Lei Maior seria mais uma demonstracdo da excepcionalidade da restricio a liberdade humana eda 2% cuRsODEDRETO CNL -Vol.2 ~ Crsiana Chaves dears © Neon Rosemalé afiemagdo do “novo" art. 391, do Cédigg Civil: “Pela inadimplemento das obrigacdes respondem todos os bens do devedor.” Nada mais equivocado! Vivenciamos 0 pés-positivismo, Celebramos a supremacia axiolégica da Consti- tuicdo Federal e 0 fim do legalismo estrito. A normatividade dos principios é uma realidade inescapivel 20 cvilista, asim como a reabilitaco da argumentagao juriica a desenvolvimento de uma teoria de direitos fundamentais edificada na dignidade da pessoa humana. . 0 direito romano pereceu. Da mesma forma, ruiu a cléssica dicotomia Liberal entre 0 direito piiblico e 0 privado, eis que o Estado & edificado pela sociedade © deve mirar os valores que ela aponta. A hermenéutica constitucional exige uma apro- simagao entre a ética e 0 direito, bem como 0 sepultamento de qualquer concepcéo hermética e segregacionista do direito privado. ssa alteracéo de paradigmas reclama uma conciliagdo entre dois grandes uni- vversos, até entao apartados: a autonomia privada e os direitos fundamentals. ‘A autonomia privada - 0 dogma da autonomia da vontade segundo os classicos ~ era um espaco isolado no qual o burgués poderia exercer a tao desejada liberdade Contratual e ameathar patriménio através da ampla faculdade de estipular contratos © adquirir propriedade, sem que 0 ordenamento juridico (\ela-se: sociedad) pudes- Se interferit no exercicio da atividade econdmica do cidadio. Apoiado nas teorias econdmicas de Adam Smith, 0 individuo egotsta considerava que a realizacdo de sua felicidade e de seu bem individual acabaria por propiciar o tao desejado bem comum. A “riqueza das nagBes” era um projeto que'se edificaria quando o Estado minimalist fechasse os olhos perante a esfera privada; eis que o proprio ‘mercado trataria de se autorregular e prover 0 sucesso coletivo. Pastados’‘mais de 200 anos, a Historia das sociedades ocidentais se repro” du pela fara. A tio propalada pOstmoderidade fnsere a pessoa em um cima de ‘enorme inseguranca ¢ fragmentaco. A alobalizagdo ¢ 0 neoliberalismo determinam Gue 0 mercado paire acima do ser humano. Todas a8 conquistas emancipatorias das svciedades democraticas, to lentamente alcangadas nos dltimos 50 anos, so peri- gosamente ameacadas. ‘A outro tumo, 0 constitucionalicma alcangou enormes transformagbes. 0 Estado Liberal entendia os direitos fundamentais como limites a interferéncia’estatal nas relagbes privadas. As cartas politcas deveriam se restringit'@ organizar os poderes Getatais ¢ zelar pela mais ampla garantia a esfera de liberdade do cidadio, burgués. © Codigo Civil era o centro do universo liberal, e a Constituigéo, apenas um. satélite que gravitava ao redor do “Deus Sol”. Porém, néo escapou do direito que a extrema desigualdade entre opressores:€ ‘oprimidos demanda uma interferéncia da sociedade nas relagbes privadas. A Slice ‘crtruLo NTRODUTOAIO~AS OBNGACDES EM LETURA CML-CONSTITUCIONAL, 2” Figura geniaimente criada por Nelson Saldanha entre o *jardim ea praca", como simbolismo entre a separacio do pablico e do privado, jé nao mais subsiste, pois 0 ‘to sonhado momento de paz e sossego de nossos jardins particulares, em contraste coma intranquilidade da praca pablica, sucumbe perante a inequivoca constatacdo de relacdes privadas ‘nas quais'@ prevaléncia de grupos: econémicos corporaces, reproduz a mesma situacio de desigualdade entre 0 Estado e’0 individuo. {38 no ha mais como manter a autonomia privada em seu castelo instransponivel. 0s direitos fundamentais se revoltam contra a completa coisificagao da pessoa humana em face dos horores praticades pelo totaitarismo em nome da le. 0 cons- titucionalisino dirigente demanda estatutos maximalistas que alavancam a Lei Maior 8 posiggo de norma juridica ~ ndo mais mera carta de intencées ~ cuja supremacia impde a releitura do direito privado através do filtro de suas lentes. A jurisdicao constitucional impele 0 fortalecimento de toda uma teoria de direitos fundamentais cextensiva a esfera de relacdes entre particulares. ___Nesse instante 0 principio da autonomia privada perde 0 seu absolutismo, 0 civilista humitdemente aceita a forca normativa da Constituicdo. 0 Estado Democrético de Direito, centrado na especial dignidade humana, proclama a despatrimonializac3o a personalizacao do direito privado. (0 tradicional defensor das in to romano, deve indaga campo das Obrigacies? ituigdes privatistas, ardoroso estudioso do direi- como aplicar essa “tsunami” de ondas constitucionais no | Gromos que a resposta requer uma reformulagdo do concito de autonomia privada, néo mais como mera emanaco do principio da. tive-iniciativa, situada exclusivamente na esfera da ordem econémica (art. 170, CF), porém como derivacao do principio da dignidade humana, Alis, nada diferente de qualquer outro direito fundamental, ‘A-autonomia privada consiste no direito 8 felicidade individual, na tiberdade de cada ser humano exercitar os seus projetos de vida e perseguir 0 seu sonho pessoal. 0 lordenamento juridico concede a cada um de nés um espaco para aautodeterminacao. Dentro: desses.timites regulamos.nossas decisdes patrimoniais existenciais. Pela via da autonomia privada podemos dispor de érgdos para transplante, instituir uma centidade familiar, adquirir propriedade,,constituir uma empresa, testar e até mesmo ceder o exercicio temporario de nossa imagem e realizacdes intelectuais. Se todas as deliberacées vitais passam pela autonomia privada, nada mais na~ tural do que inseri-la como cimento para a construcéo de uma téoria dos direitos da personalidade. 0 livre desenvolvimento da personatidade requer unt tocal apropriado a0°desenvolvimento de nossas_potencialidades © individualidades: esse local €-2 autonomia privada. a {CURSODE OREO CIVIL Val 2 ~ Cristiano Chaves Fras # Neon Roenald Destarte, se por um Angulo devemos afastar a concepcao do individuo egofsta e solado, na qual a sociedade € mera ficgdo, igualmente perigosa 6 aquela visio tota- itarista em que-cada pessoa é apenas uma fragdo anonima da coletividade, por ela inulada em prol do Estado. 0 bem individual pressupde o bem comum e vice-versa. ) ser humano € 0 protagonista do ordenamento jurdico e sera ativamente:tutelado vor direitos fundamentais. Cada pessoa atuard em uma perspectiva solidarista, tran- ‘tando em sua esfera de autonomia, mas sem desprezar uma ordem de cooperagio com a coletividade. A seu turno, a sociedade agiré de forma a propiciar protegao € imparo a cada ser humamo. Imaginemos uma orquestra: cada mAsico deve atuar de forma a extrair o methor {a partitura, demonstrando suas virtudes, sem esquecer a interaco com o conjunto. Ja 0 bom maestro exerce a funcdo de coordenacao. Ele nao quer se sobrepor aos nembros da orquestra, mas retirar o methor das potencialidades de cada um de seus ‘nembros, em proveito da harmonia, da sonoridade e do bem comum. Pois bem, a repaginada autonomia privada repercute ativamente no modelo uridico das obrigagées. Conceituar uma relagao obrigacional como um “vinculo entre redor e devedor cujo objeto & uma prestacéo e a garantia se enconta em seu patri- énio” torna- se um desservigo ao estudioso do direito. A neutralidade e a assepsia 4os conceitos nao condizem com a dimensio objetiva dos direitos fundamentais, na ual jamais a’ pessoa se encontra a servigo do patriménio, porém_o patriménio se subordina a pessoa. A tradicional bipartigao da obrigacao na visio germénica de Alois Brinz forjada nos elementos do Schuld (débito) e da Haftung (responsabilidade), se nao aban- donada, serve apenas como um primeito passo para-o entendimento do complexo campo das obrigacées. ‘As relagdes obrigacionais serdo exatminadas ao longo deste trabalho por uma perspectiva humanista, voltada & tutela das situagdes existenciais e da dignidade humana, Nesse prisma, perceberemos que’ relacdo juridica travada entre credor & devedor supera.o restrito campo da’ prestagao. Para além das obrigagies de dar, fa- zer © ndo fazer - moldadas pela autonomia privada ~, o:sistema civil-constitucional concebeu a existéncia de deveres anexos, laterais ou instrumentais, acrescidos a obrigacao pela via do principio da boa-fé objetiva, ‘A relagao ‘obtigacional é dada pela Vontade @ tntegrada ei todos os seus mio= mentos pela boa-fe, como uim modelo de conduta intesubjetivaleal ¢ honesta, que exige das partes uma forma de agir na qual cada parceiro visualize no outro um igual titular de direitos fundamentais. Esse arquétipo de comportamento ao quali todos devemos ajustar nossos comportamentos incidiré antes, durante e depois da exsténcia da propria prestacdo (art. 422, CC), pois’a-confianca € avbase de:qualquer relacdo humana e reflete-se em todas as formas de contato social. ‘cartruro mmmODUTOAIO~AS OBFIGACOES EM LETURA CL-CONSTITUCIONAL 2 Se.a boa-fé é um elemento capaz de’ampliar a esfera da relagao obrigacional pelo influxo'dos deveres anexos, também @ capaz de retiar da relacao obrigacional toda'e qualquer forma de conduta ilegitima'e excessiva que’ seja capaz de sacrificar tireits fundamentats: Através da via de controle do abuso do direito (art. 187 do CC), fo exercicio de um direito subjetivo ou potestativo que ofenda as leaitimas expectati- Yas de confianga do parceiro contratual, e seja considerado como desproporcional em face das exigéncias éticas do sistema, sera fulminado.por um juizo de antijuriicidade material, posto contrério aos fundamentos valoratives do ordenamento Ktelagéo obrigacional como verdadetro “processo”, na clarividéncia de Clovis do Couto e Silva, tornar-se “corpo e alma’. Autonomia privada acrescida de boa- objetiva. Essa formula matematica 6 0 Gnico caminho capaz de conduzit a obrigacdo go adimplemento, restituindo aos contratantes a parcela de liberdade que cederam a0 tempo em que constituiram 0 vinculo. ‘A’boa-fé provoca total turbuléncia naquela imagem sonolenta da obrigagao como simples resultado da prestacdo formalizada no contrats. Todavia, ndo 36 de boa-fé vive 0 direito privado na atualidade. 0 principio da funcao social revela ao civilista que todo 0 diteito subjetivo deve Ser exercitado de maneira que a satisfagéo dos interesses individuais nao propicie a desgraga alheia. Célebre & a advertancia de Norberto Bobbio quanto a passagem de uma literatura Juridica voltada ao estudo da origem dos institutos juridicos para 2 sua finalidade, ‘0 seu papel perante a sociedade: “da estrutura a funcio". No século XKI nao mais {ndagamos “o que é 0 direito?”, mas “para que o direito?”. No universo das obrigagdes, a funcdo social impulsiona o estudo das relagdes |uridicas para além das pessoas do credor e do devedor (art. 422, CC). & obrigacéo do é um atomo, mas um fato jurfdico que repercute sobre a sociedade. A ideia da obrigacao como direito relativo as partes eres inter alios acta passa por séria clivagem constitucional, pois qualquer obrigagao alcanca a sociedade e produz consequéncias perante ela. 0 Schuld da escola pandectista mudou, No € apenas 0, débito. que Vineula 0 credor ao devedor, pois a.eficécia obrigacional, pode. ofender interesses metaindividuais ou interesses individuais de terceiros que em principio so estranhos a determinada relagdo de crédito. A boa-fé €’a furgdo Social "do contrato sao princfpios obrigacionais ~ ¢ néo meramente contratuais camo em principio reluz ~ que relativizam a autonomia pri- vada, Cuida-se de limites internos a0 exercfcio.da liberdade negocial. Ademais, s80 limites positives, pois a-finalidade de ambas as clausulas jamais sera a de restringit 2 autonomia pprivada, mas a de valorizé-la, no sentido de que'a liberdade contratual ‘nose prenda apenas a liberdade do mais forte em detrimento do:contratante débil ‘e/ou da: propria sociedade. A verdadeira autonomia privada requer que’a prestagso seja a mais proveitosa'a0 credor e menos sacrificante ao devedor e & sociedade. si ie aneienetitciemeceetll 30 (CURSODE DIRETOCIL-VoL.2 = Cision Chaves Fras # Mtn Roseakd Fungo social e boa-fé atendem a duas das diretrizes caras a Miguel Reale. 0 arquiteto do Cédigo Civil remete a primeira & concretizacéo da diretriz da socialidade fe segunda, @ da eticidade. Boa-Fé e funcdo social so cléusulas gerais, normas de conteddo intencionalmente vago e impreciso que serdo concretizadas pelo principio da solidariedade (art. 3°, I, da CF). [A solidatiedade € a progenitora da boa-fé e da fungao Social. Da mesma forma que a clausula geral do afeto no direito da familia (art. 1.511, CC), da fungao social da propriedade nos direitos reais (art. 1.228, CC) e da obrigacdo objetiva de indenizar na teoria da responsabilidade civil (art, 927,,parégrafo Gnico, CC), solidariedade penetra no. direito, das obrigagdes_pelas janelas da boa-fé objetiva (tutela interna do crédito) e da fungéo social. do contrato (tutela, externa, do crédito)..A diretriz solidarista demanda uma ordem de cooperagéo intersubjetiva e perante a sociedade. Enfim, 0 didlogo entre autonomia privatla, boa-fé e fungao social no passa de uma das formas de dialética entre os principios da liberdade da solidariedade. As dimensdes de direitos fundamentais que foram lentamente construidas nos Gltimos 200 anos através do sonho do, revolucionario francés. acabaram por se refletir nas relacdes privadas. 0 equilibrio e a ponderacio entre liberdade, igualdade substancial « solidariedade na 6rbita das obrigacées exigem que 0 legislador e a julgador tenham sabedoria ao harmonizar as relagbes de crédito, sem que a excessiva liberdade aniquile a solidariedade e sem que a excessiva solidariedade destrua a liberdade contratual. Trata-se de proteger 0 eu (liberdade) sem que se descure de nds (solidariedade). Esse € 0 Gnico projeto capaz de privilegiar a igualdade material das partes - nao meramente formal - e promover uma ideologia na qual as obrigacdes e contratos alcancem a sua finalidade econdmica sem que promovam a exclusdo social. ‘Muito pelo contrétio, a luz de uma teoria de direitos fundamentais, as relagbes obrigacionais do sao valores em si, mas instrumentos direcionados 4 erradicagao da pobreza e de abissais desiqualdades sociais. Reavaliada 2 vidéo do Schuld (débito) pela'filtragem constitucional, resta-nos perceber 0 outro lado da moeda, vale dizer, a Haftung. Ao infcio de nossa abordagem, salientamos que Um vistvel progtesso do ‘direito das obrigagées ao longo da evolu- Go da humanidade, em’ todos os pavos ‘ivilizados, traduziu-se na transposi¢ao do paradigma da responsabilidade pessoal para a responsabilidade patrimonial. 0 débito nao & qarantido pela vida, corpo ou liberdade do devedor, porém exclusivamente por seu patriménio. ‘Ao longo do trabalho, discutiremos a eficacia do’art. 5°/ LXVIT, da Constituicdo Federal. Seré possivel questionar o absolutismo dat autorizacdo da pristo do-devedor de alimentos e do depositario infiel? Cremos que’a vinculacéo dos particulares aos di- reitos fundamentais traz novos fundamentos a essas indagagdes, permitindo ao jurista cenfrentar a matéria pelo telescépio da dignidade humana e nao pelo microscépio da {nterprétacdo literal da norma, mesmo’ em se’tratando:de uma norma constitucional: “cAsTrULo NTRODUTORIO~ AS OSIGATHES EM LETURA CMI-CONSTITUCIONAL 3 Para além da discussao acerca da excepcional restricdo a liberdade em razao do ‘nadimplemento de obrigagdes civis, cumpre ainda avaliar se a responsabilidade patrimo- nial do devedor é absoluta ou se também tepercute uma eficécia horizontal de direitos fundamentais que privlegie situagies existenciais em detrimento das patrimoniais. E imprescindivel retomar a perspectiva kantiana na qual “a pessoa é um fim em ssi mesmo e nao instrumento para fins alheios”. A transposigao desse conceito para 0 direito das obrigagdes implica a intransigente postura de desprezo a qualquer cons- trugdo doutrinéria que ouse defender que o patriménio do devedor & mera garantia das obrigacées contraidas com o credor. Pedindo licenca a Kant, avancamos ainda mais em seu belfssimo legado para lembrarmos que o patriménio nao é um fim em si mesmo, pois os bens se colocam a servigo da pessoa humana, jamais de seus credores. Em uma ordem democratica na qual a dignidade humana serd o vetor para a ponderacéo de colisdo entre direitos fundamentais, o intérprete do direito teré a sabedoria de harmonizar os principios em tenséo e definir uma ordem de propor- clonalidade na qual a garantia do crédito seja limitada pela protecdo dos direitos, da personalidade do devedor. Esse limite tao decantado por Luiz Edson Fachin é © patriménio minimo, como um piso essencial, um minimo de bens que assegure a cada pessoa a sua condigdo existencial. Aquém desse limite, 0 ser humano ser instrumentalizado e alijado de sua humanidade. Enfim, hé uma parcela do patrimOnio imune a tutela executiva do credor, pois 2 autonomia privada dos contratantes ¢ intrinsecamente limitada pelo direito fundamental & subsisténcia. Uma interpretacao do art. 391 do Cédigo Civil, a luz de uma hermenéutica constitucional, demanda uma releitura nos seguintes termos: “pelo inadimplemento das abrigacdes respondem todos os bens do devedor que néo alcancem 0 seu patriménio minimo”. ‘outro gito, néo podemos olvidar da idéntica natureza humana da pessoa do credor. A humanizagio da execucdo se aplica em prol de ambos os parceiros obrigacio~ nais e 0 ordenamento juridico no pode, sob o patio da tutela a dignidade do devedor, ‘exagerar na tutela do executado a ponto de frustraralegftima expectativa de confianca do titular do crédito acerca do adimplemento. 0 minimo existencial remete 8 protecéo do necessério 8 vida digna, jamais 8 manutencéo de um padrdo de vida do devedor as expensas do sacrificio da posigo jurdica do credore de suas necessidades econémicas. Portanto, cumpre revisar o dogma da impenhorabilidade absoluta de bens do executado. Obriqacdo e relacdo obrigacional. Estruturae Fungo. Autonomia privada, boa-fé « fungdo social. Individuo e pessoa. Patriménio e existencia. Soliddo e solidariedadé {s dignidade da pessoa humana se coloca em todos esses momentos. Em seu perfil ativo, convida os individuos isolados ao contato social e ao entabulamento da obri- 9280, garantindo condigdes para 0 pleno desenvolvimento da liberdade humana. A dignidade, porém, age em outra vertente. 0 homem se converte em pessoa no mundo solidrio das rlacées obrigacionais. Qualquer sociedade s6 se afirma em cooperacio, traduzida esta pela boa-fé e funcao social no reino dos negécios jurdicos.

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