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texto 1 A CONCEPGAO FILOSOFICA DA. EDUCACAO eo estatuto da teorla Lilian do Vé Muitas vezes, no passade, o ensino da filosofia da educagio tomou a forma de uma apresentagiia mais ou menos cronalégica das eteorias» ou das «conceps6es filos6ficas» produaidas para a pritica educativa, Esse procedimento inspirava-se em uma tradigo didética fortemente arraigada na prépria drea de filosofia e tinha o mérita de fornecer um painel bastante abrangente dos grandes fildsofos do passado. No entanto, 0 preco a pagar por esse lustre cultural era som diivida excessivo: em primeito lugar, a énfase em um conjunto acabado de idéias, ¢ no na atividade de reflexto em que a filosofia, antes de qualquer outra coisa, se constitu; e, em decorréncia disso, a construgo de um «saber» teérico que, livre de toda relagio com a realidade daquele a quem se dirige, tende a revestr-se de uma autoridade inquestionavel. Nao 6 ademais dificil perceber, na origem dessa tradigio, as posigées analisadas no texto 1, jé que © fundamento desse modo descontextualizado de se ensinar a filosofia da educagio é a velha crenga de que o verdad saber néo precisa da pratica nem para se organizar nem para se validar. Se, todavia, a filosofia tem um papel central na formasio dos educadores @ dos pesquisadores em educagdo é porque a natureza do fazer educativo impée a teoria ser muito mais, do que ume série de belos desenvolvimentos, mals também do que um corpo coerente de. explicagies previamente organizado. Diante dos enigmasquea existéncia humana e social colocam para a educagZo, qualquer teoria fracassar’, s¢ no for acompanhada de um continuo questionamento, se no for vivficada pela constante reflexio. E, para Isso, a filosofia pode ‘certamente ajudar: pois de sou passado ela pode nos oferecer no somente conceitas ¢ teorias, mas igualmente as interrogagies de que se originaram. E, de fato, a filosofia dizia Cornelius Castoriadlis, é compromisso com a totalidadle do pensavel. No apenas, portanto, com a totalidade daquilo que jé foi pensado mas, sobretudo, com ‘tude que ainda ha para pensar. ‘Assim definida, aids, a questio do ensino da ‘ilosofia, a questo de porque apreendé-la se desloca: nfo se trata de buscar avidamente conhecer tude o qu ja foi escrito © pensado (sesafio de todo modo irrealizével}, nem sequer de se preparar antecipadamente para responder a todas as questées que possam ser levantadas (projeto simplesmente insanol), mas de buscar no estudo os imeios de explorar a0 maximo possivel as possibiliciades de pensamento que sto as noseas, Id onde estamos. A atitude de interrogagso a que visa a filosofia se funcamenta ne no poder de uma racionalidade humana impessoal, mas na conviceso do poder da criaco humana, que decerto se manifesta na cultura que nos precede e que supera os limites de nossas experiéncias, mas que também se manifesta em nossa propria existéncia, Logo, essa atitude implica uma responsabilidade para consigo mesino, para com seu meio, sua época, sua especie; & implica, igualmente, a capacidade de manter sob constante exame critico suas préprias limitagies. Em outros termos, essa atitude 66 se justifica por um projeto de autonomia que sempre comeca pelo questionamento do mito de uma razio controladora ¢ todo-poclerosa cujas «tearias», ao invés de liberar nossa reflexdio e criatividade, nos tornam mais alheios a nosso préprio pensamento, mais conformados instituido, imobilizados. A filosofia 6, assim, esse compromisso coma interrogacio que no quer se fechar, e 6 dessa forma que ela é pritica de emancipagio, que ela é terreno de luta pela autonomia, Assim, se a «concepcdo filos6fica da educagdo» nos interessa é porque, remetendo aquilo que f im dia pensado, ela nos ajuda a descortinar franjas enormes daquilo que ainda néo pensamos, daquilo que ainda no nos interrogamos em nossa atividade cotidiana, € numa luta permanente contra nossa tendéncia & acomodagao, nossa preferéncia pelas respostas, 20 inves de perguntas, contra nosso desejo de reconforto — de que as verdades acabadas se alimentam, que © pensamento tenta se fazer. F isso que as grandes paginas da filosofia nos ajudam a perceber, nos Fis como conceberfilosoficamente a educagio pode significar entendé-a como terreno de. permanente questionamento, de interrogagio aberta. E é assim que a filosofia pode colocarse a servigo da educaciio e da valorizacto do professor ~mas no oferecendo uma espécie de menu» de concepedes a serem escolhidas para compor nosso prato feito educacional. E se isso 6 assim, & porque a educacio é, a0 mesmo tempo, um enigma e uma atividade pratico-poietica. Kant decretou que ela era, juntamente com a politica, a mais difll das artes Freud a chamou, simplesmente, de «impossibilidader. A educagio ¢ a politica ~ e, acrescentaria Freud, a psicandlise ~ sto atividades impossiveis. Essa é uma afirmagao muito profunda, mas s6 a entender quem se colocar na mesma perspectiva que era a de Freud, ao dizé-o: a da autonomia humana, ‘A natureza, os objetos eriados pelo homem podem ser inteiramente desvendados naquilo que so e na forma como se comportam por uma ciéncia, no sentido mais estrito do termo: eles pocm ser inteiramente explicados pela tearia, O que é uma cadeira, o que é um co, 0 que é um aio ~ 0 que 6 um virus, como se comportard um ciclone, estas @ outras questes, muito mais dificeis, podem ter embaracado e podem embaracar, ainda, nosso entendimento. Porém, no caso do humano, nunca 6 possivel dizer inteiramente o que &, nunca se poders prever totalmente seu comportamento, pela simples raze que o modo de ser do homem, sua existencia, toma a forma de autocriagio incessante. Por isso nifo ha, para ele, um conhecimento preciso e infalivel. No se pode dizer o que o homem sera ao nascer, nem ao menos aquilo erm que se tornara, a partir dal. Sempre havera, entre a legitima necessidade de compreender o humano a realidade, uma enorme fenda, e esta fenda se chama criago. Por isso, a educaco um enigma. A criago & também a origem e o fundamento da autonomia humana. Nisso consiste a impossibilidade da educag#o: como possivel educar um ser auténomo? A educago tem por finalidade construir a autonomnia do individuo, como o proprio terme (autonomia) jé anuncia, essa construgo 6 sempre, necessariamente, uma autocriago. Fm suma, para educar 0 humano, para torné-lo um ser autSnomo, deve-se partir @ deve-se tomar como base algo que ainda nfo esté lé — essa prpria autonomia, Por isso, diz Castoriadis, a educaco & uma atividade pratico-poiética, ‘A expressio pratico-poistica tenta resolver um falso impasse entre duas possibilidades que. ‘Avistételest clencou, para definir a natureza das atividades humanas: hd, diziao fildsofo, algumas atividades que tm uma finalidade determinada, que visam a produgiio de alguma coi objetivivel, uma coisa ou um efeito sobre algo. A essas atividades que no tm, portanto, fim em si mesmas, mas cujo fim 6 sempre exterior, Aristételes chamou de poiests (que se poderia traduzir aqui como fabricagdo). E hé, também, atividedes que nao visa a produgdo de nada: sua finalidade esta em seu prdprioexercicio. Aristételes denomina essas atividades, que tém fim em si mesmas, de praxis. Ora, essa distingSe parece que niio se aplica a educagdo. Para ela, a autonomia deve se constituir, 20 mesmo tempo, em fim a ser buscado e na propria atividade. Em outras palavras, na educaco, © processo © o produto, meio (poiesis) ¢ fim (praxis] se confundem, néo hé como distingui-los inteiramente: ela é uma atividade prético-poiética. Na educago, @ autonomia 6, concomitantemente, 0 meio para se chegar ao fim ¢ 0 préprio fim buscado. CO problema se apresenta como um dilema quando se opée, equivocadamente, instrugao € formactio: poderia a comunicactio de um conhecimento ser um fim, ou deveria ela ser sempre um meio da educagdo? Até onde se pode ir em uma atividade que pretenda téo-somente dar a conhecer um conhecimento, ou um saberfazer, sem considerar a dimensio formativa indissociavelmente ligada @ instrugo? & como pretender formar alguém sem atentar para o que & meio e matéria dessa formagio?? Nao hd respostas absolutas para essas questées, nem é possivel estabelecer uma regra para determinar onde acaba a preocupaco com os meios e onde comega 0 cuidado com os fins. Meios e fins s6 encontram justificago nessa permanente tensio que os liga — e que, desafiando a capacidade de questionamento e de criagio do professor, pbe em movimento a aco educativa. Mas a criatividade a deliberagzo do professor nso suo garantias absolutasl Quem 6 ou ja foi professor reconhece essa caracteristica de seu oficio: algo de absolutamente essencial sempre escapa — e 0 que escapa no é nada de irrisério, mas justamente o que mais importa, 0 cere da educagéo: 0 fato de que s6 0 proprio individu pode se construir, de que cada individuo necessariamente cria, cria a cada ve, nas palavras de C. Castoriadis, seu «mado préprio de existénciay, Mas de que, por sua vez, essa autocriagSo, longe de implicar autosuficiéneia, no $6 admits, mas exige 2 saida de si, 2 socializagdo, as trocas com o mundo — exige, enfim, a educagéo. Assim, a resistencia que a realidade educativa oferece as tentativas de conhecimento absoluto e de controle & um fato e, mais do que isso, uma preciosa oportunidade para que © professor se questione acerca de suas préprias ccertezasy. A resisténcia € a marca permanentemente menifesta daliberdade alheia, da iberdade humana em geral—daliberdade do aluno, como da prépria liberdade, também, Por isso, dizer que a educaco é um enigma significa, igualmento, dizer: pode-se — ¢ deve-sel ~ tontar elucidar esse enigma, mas jamais sor possivel reduzio a certezas. Para o educador comprometido com o projeta de autonamia, esse conceito abstrato sobre © qual tantos fildsofos, tantos politicos, tantos socidlogos tentaram teorizar ~a liberdade humana se apresenta como realidade quotidiana. Nao é, pois, 8 idéia de Deus, ou a nogio de um «direito naturaly que ele recorre, como a teoria tantas vezes fez, para afirmar uma nocdo abstrata que a pratica social no cessa de negar. & liberdade que conhece esse edueador se apresenta a ele sob seu verdadeiro nome: criago humana. O humano ctia, e sua primeira criagao & a si proprio. istoricamente, essa evidéncia —_de que «o modo de ser» préprio da espécie humana é a criagiio— foi e vem sendo sistematicamente ocultada. A isso Castoriadis chama de heteronom aalienacio individual e coletiva, Uma sociedade heterénoma tende a produzir individuos que desconhecem @ alienam esse poder criador em si mesmos. Isso se reflete, paradoxalmente na tentativa de controle; no campo educacional, na equivocada nogéo de que o processo educativo pode ser inteiramente explicado e seus resultados preditos pelas teorias, conquistados pela rigorosa aplicago dos métodos, concretizadlos no recurso sistemitico as técnicas. E, dessa forma, na auséncia da autonomia social e individual, a educacdo fica reduzida ao que no é: a0 espaco de mera aplicayo de teorias e de procedimentos pensados a prior. Como essas teorias e procedimentos no sdo postosem questo, disso resulta que a resisténcia ao controle sobre a qual faldvamos vai ser interpretada como erro, vvai ser explicada pela identificago cle «culpados»: de um lado, 0 aluno — que é «rebelden, que é aviolentox, que é «indisciplinado», que é «incapazn.. de outro, 0 professor — que & cincompetente», que «falhay em sua tarefa, No entanto, contrariamente ao que se pensa, a educagio nfo pode ser entendida como mero dominio apticado, como campo de aplicagao de leis, teorias, determinagSes vindas de fora. Por pelo menos duas razées gritantes: 0 aluno ¢ 0 professor —dois seres que sio livres, porque so, criadores. E, pormais que o poder criador possa serlimitado, ¢ ocultado, e obstruido, por mais que a eriagao de si se d# em condigées de heteronomia, sso é, como mera ratificagto do que est instituido, o que resiste, tanto no professor quanto no aluno, ainda é suficientemente expressivo, manifesto @ resistente para atuar como uma espécie de dentincia espontanea das ilusdes da tecnocracia da educagio. Castoriadis tem, a esse respeito, uma frase bastante eloqiiente e profunda: falando da psicandlise, — isso é, de uma outra dessas atividades «impossiveis» que, visando a autonomia ‘humana, sugerem uma intervengio externa ali onde s6 pode autocriagiio ~ a0 falar da psicanélise, Castoriadis afirma que, af as teorias servem para no serem usadas: .. 0analista, diz ele, tem principalmente necessidade do seu saber para nfo lancar mao dele, ou melhor, para saber 0 que ndo deve ser feito, para atribuir-Ihe 0 papel do deménio de Sécrates: a injung4o negativax, ¢ isto porque

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