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38 O que é que a adivinhacao adivinha? Paulo Granjo Instituto de Ciencias Sociais - Universidade de Lisboa Resumo Embora seja habitual assumir que os sistemas de interpretagio do infortinio domi- nantes na Africa austral 8m uma natureza determinista, a nogao de caos deterministico parece mais adequada para compreender os principios subjacentes adivinhacio com tinhlolo praticada em Mogambique. Nela sio advinhadas as causas passadas na situacao, presente e para o futuro. O sistema basea-se numa estrutura determinista que pretende explicar e regular a incerteza, mas 0 seu resultado é caético em virtude da complexidade dos factores envolvidos, incognosciveis na sua totalidade e caracterizados por agéncia. Encaré-lo como um sisterna de domesticagio da incerteza legitima a abertura de novos campos comparativos a nivel mundial (incluindo neles a nogao probabilistica de “ris- co”), ealtera 0 fulcro das pesquisas sobre fenémenos de tipo Ngoma; a atencdo centra-se nos seus mecanismos de reprodugao, enquanto cultos de afligio, que privilegiam ldgicas e visoes do mundo que lhes esto subjacentes Palavras-chave: adi sambique nhagao; tinblole, caos deterministico; risco; incerteza; Mo- Introdugao Quando percorremos a literatura antropolégica acerca do assunto, parece ser ponto assente, embora de forma implicita, que os sistemas de adivinhacao praticados na Aftica austral tem um cardcter determi: Nalguns casos e locais, poderd bem ser verdade, tanto mais que a questo nao costuma ser equacionada enquanto tal, faltando por isso aos leitores a quem ela interesse os dados necessérios para a avaliarem por si préprios. No entanto, esse no é certamente 0 caso da forma de adivinhago predominant no sul de Mogambique, o tinblolo, nem do sistema de interpretagéo do infortinio ¢ de sca O que é que aadivinhacio adivinha? domesticagio da incerteza em que cle se baseia. Ambos correspondem, antes, a uma légica de caos deterministico$ Para que 0 possamos verificar, apresentar-vos-ei em seguida esse conjunto de adivinhagio, 0 contexto em que ele é usado, os seus utilizadores ¢ o sistema de explicagdo do inforttinio que Ihe esta subjacente, confrontando esses dados com os principios da determinagio, da aleatoriedade e do caos deterministico. Constatar que a utilizagao do tinblolo comesponde a uma légica de caos deter- ministico nao é, contudo, uma mera curiosidade analitica. Essa constatacio tem implicagGes relevantes para a forma como entendemos ¢ abordamos os sistemas de adivinhagao semelhantes a este. Afinal, eles nao adivinham o futuro mas, por um lado, as razées passadas subjacentes aos problemas presentes ¢, por outro, as condigdes presentes para aquilo que o futuro seria — caso essas condigdes no fossem, conforme os adivinhos bem sabem e afirmam, alteradas a partir de ago- ra pela complexa ¢ permanente interaccao entre factores materiais ¢ a accao de intimeros agentes sociais, vivos e mortos. Ou seja, um sistema de interpretagio da incerteza que procura ser determinista acaba por nao o ser, ao reconhecer a complexidade ¢ mutabilidade da realidade que pretende controlar. Isto desloca, por sua vez, 0 foco da andlise dos chamados fenémenos Ngoma (Janzen 1992, Dijk et all 2000), entre os quais se inserem o tinhlolo e as praticas curativas propiciatérias dos seus utilizadores. Se, a partir da brilhante proposta de Victor Turner (1968) acerca dos “cultos de afligao”, a atengao dos investiga- dores tem sido sobretudo atrafda pela forma como o grupo de terapeutas assegura a sua continuidade através da integragao de ex-pacientes, aquilo que passa a ser mais relevante so os princfpios e légicas do sistema de interpretagao da incerteza que subjaz & pratica divinatéria e curativa, € o estatuto epistemoldgico que lhe é atribuido pelos praticantes. Por fim, quando este tipo de fenémenos séo encarados como uma variagio par- ticular dos sistemas de domesticagéo da incerteza que existem por todo 0 mundo (em vez de como um objecto de estudo isolado nas suas préprias caracteristicas particulares ¢ exéticas), tornam-se evidentes as suas similitudes gritantes com © presente artigo resulta do projecto de pesquisa “Nyzngas ¢ Hospitais: conceitos ¢ privicas teraptuticas em Mogambique’, financiado pela Fundagio para a Cinciae Tecnologia. Estou imensamente grata a Ron Eglsh, aque suscitou o meu interest pelo tema do cao deerminktico~ cujo significado preciso tl como o de demest- Realces Reviewed! Revealed divinacon on south-ssharan Aftica”(Eglsh 2005) eceve a amabilidade de comencar 0 manuscio orignal. capo da incerta, adiance expote ~ através da sua comunicagio & conferénc Tgualmenteagradego ess leitura critica as eolegas Maria José Arthur, Cristiana Bastos, Rafael da Conceiio, ‘Ana Loforte e Philip Peck 39 Estudos Mogambicanos Volume 22 | Not outros sistemas aparentemente tio diferentes deles como, por exemplo, o “tecno- -cientifico” risco probabilistico (Granjo 2008). E com isso, proponho-o, todo um novo e promissor campo de estudo se abre. O tinhlolo conjunto de adivinhagéo mais comummente utilizado no sul ¢ centro de Mogambique, 0 tinhlolo, nao é de forma alguma imutdvel, ou sequer estével na sua composigao. Se compararmos aqueles hoje existentes com as descrigGes escri- tas mais antigas ¢ cuidadosas (Junod, 1897; Junod, 1996 [1912]; Earthy, 1933), ¢ evidente que as suas pegas se alteraram ao longo do tempo; mas também os conjuntos actualmente utilizados por diferentes adivinhos apresentam diferengas entre si. A variabilidade decorre, em parte, do facto de nfo serem reconhecidos 20 tinhlolo poder ou vida préprios, por muito habituados que estejamos a que 0 contrisio acontega € seja enfatizado noutros contextos.” As metaforas que os adivinhos produzem acerca da natureza deste conjunto de adivinhagéo podem apresenté-lo, de forma complementar, como um “amplificador de percepsio”, como um instrumento para pressionar os espiritos a cumprirem os seus deveres profissionais, como o ponto de partida e catalizador de uma relago de comu- nicagdo, como um sistema de codificagao, como uma voz para os espiritos, ou mesmo como um espago de diversio para eles; mas, em tiltima instdncia, as pe- as do tinhlolo sao assumidas como “coisas que representam coisas”, funcionando eficazmente “desde que 0 nyanga' ¢ os espiritos saibam que pega representa 0 qué"? Consequentemente, é aceitavel utilizar um novo objecto para representar uma entidade habitualmente simbolizada por outra pega, ou entdo introduzit no conjunto de adivinhagao novas entidades ¢ situagbes, que se tornem necessdrias ” Para um exemplo dessa situacio, vea-se Silva (2004). * Nalinguagce cortente ert Maputo € Gaza, "nyangs” (plural “inyanga")€adesignacio geal para os adivinhos- ~curandeiros, independentemente das suas especialidadesespecifcas ~ também clas abjeco de designagbes particulaes. ° Para uma apresencagio mais apeofundada deste assunto € das metiforas refeidas, veja-e Granjo (20052). ‘A base empitica para 0 presence artigo provém de conversas com “médicos traicionais” das provincias de “Maputo ¢ Gaza ena capital do pals ~ de onde foram transcrits as ciagBes que em segs apresento ~e da obseragio de sessBes de adivinhagdo relizadas entre 2004 e 2010, Desejo agradecer a todas ests pesoas a sua disponibilidade e confianga, com destaque particular pars Job Massingue, Maria Macuacua ¢ Pedro Cassa 40 © que é que vadivinhagio aivinhat em vireude da especializagao do adivinho na resolugao de dererminados casos ou doengas, ou em resultado de mudangas nas condigées sociais, que tornem rele- vantes novas personagens ou locais. Nio obstante, podemos dizer que, de momento, existe um tendencial pa- dao basico de tinhlolo no sul de Mogambique. Na sua versio completa, eie inclui na verdade trés conjuntos diferentes (figura 1). Zi HE Figura I — Ui conjunto completo de tinlolo, em 2005, Dois desses conjuntos séo considerados pelos seus utilizadores como sendo variantes do mesmo método ¢ conjunto de adivinhagéo, que jé existiria antes da invasao do sul de Mogambique pelos vaVguni, no século XIX.'" Ambos so com- postos por seis elementos semelhantes entre si: no caso do chamado tinguemha, as pecas so escamas dorsais de crocodilo; 0 outro, chamado shiakata, ¢ composto por cascas de sementes da arvore mult que desempenha um papel importante no tratamento das pessoas a quem tenha sido diagnosticada uma possessao por esp/- ritos, Nessa situagao, as folhas da arvore so piladas e maceradas em Agua, sendo a miscura resulrante batida até se obter uma grande quantidade de espuma. O ‘Acerca do ascenso, politica de asimilago € queda do impetio de Gaza, resutante des invasio, jes por cexemplo Neve: [1987 (1878), Clarenee-Smith {1990 (1985), Liesegang, (1986), Plisser (1994) e Vilhena (1996). Para Nguni « Ndau, 0 plural &obvda através do prefix "wa". 4 ‘Estudos Mogambicanos Vouime22 | Not paciente deve ingerir essa espuma trés vezes 20 dia, de forma a apaziguar a impa- Giencia dos espiritos que 0 possuem, ao longo do seu processo de aprendizagem para se tornar um nyanga (Figura 2). igura 2~ Aprendi de nyangecomcedo espuma de nulu, Maputo, 2010, Estes dois conjuntos tém também em comum a classificagao das suas pegas como trés machos ¢ trés fémeas, partilhando ainda os mesmos principios de leitura di- vinatéria. Esta baseia-se no ntimero e género das pegas que caem com o lado de “cima” ou de “baixo” visivel, nas direceses geogrificas para que apontam e nas combinagées lineares que entre si desenham. Sao descritos como “os mais tradicionais"e € comum um adivinho afirmar que os seus antepassados "sé precisavam de um destes para fazer uma consulta”, Nao é contudo consensual que tipo de adivinhos usava cada um dos conjuntos, no passado, Alguns dizem que apenas guerreiros usavam o tinguenha, enquanto outros 0 consideram ligado & possess4o por espiritos “de dgua”e um terceiro gru- po afirma que a razo era sobretudo geogréfica: se wm adivinho vivesse junto de uum rio, utilizaria 0 zinguenha; caso conttario, as noves de nulu. Conforme em breve explicarei, estes conjuntos tém hoje duas diferentes utilizages: como forma redundante de confirmagao, durante os primeiros lan- camentos de “consultas importantes”, ¢ enquanto conjuntos independentes © 42 © queé que adivinhasio adivinha? isolados, para responder a perguntas directas do cliente. Neste tiltimo caso, 0 conjunto a utilizar — nul ou escamas de crocodilo — depende das preferéncias do espirito que “estd a srabalhar” com o adivinho, naquela sessio particular. O terceiro conjunto parcial do tinhlolo, o maior e mais diversificado, é aque- le que apresenta mais semelhancas com as descrigdes de Junod e de Earthy. E por vezes referido como “tinhlolo Nguni”, pois assume-se que tera uma origem Zulu ¢ que terd sido introduzido na regio pelos invasores vaNguni. Também este conjunto é sobretudo composto por casais de macho e fémea, podendo incluir dezoito conchas, quatro moedas, duas pedras, a parte inferior da carapaga de dois cégados, duas sementes deformadas de canhu ou a sua re- presentacio esculpida na madeira dessa drvore, ¢ os astrgalos de varios animais, domésticos e selvagens."' Os ossos de animais domésticos provém de um carn ro — que é tinico porque representa o chefe ¢ ha apenas um chefe — ¢ de nove cabras, cabritos ¢ bodes que correspondem a pessoas de diferente idade, género € estatuto. Os de animais selvagens serio provenientes de macacos, ledes, kudus, gnus, impalas e cabritos monteses. Uma explicagiio do sentido atribuido a cada pega do tinhlolo e dos seus prin- cipios de leitura exigiria, por si sé, um artigo mauito mais longo do que este. Nao quero, contudo, deixar de sublinhar que a maioria dos adivinhos estd plenamente consciente da variabilidade destes elementos. Com estas palavras ou outras, foi recorrente ouvir que “Estes ossos ndo sito realmente o que deviam, porque cada coisa destas estd ligada a um certo animal. Veja: nos tempos antigos, se era o muluve, 0 antepassado, tinha que se usar o javali (farocero]. Mas hoje usamos simbolos {sic] ¢ juntamos as pecas como as conseguimos encontrar. Depois, damos 0 nome conforme as necessidades,” Portanto, se ¢ assumido que mudar as pecas nao ¢ grande problema (e que, no limite, nao importa realmente que objecto é utilizado), € pressuposta € evo- cada uma era arquetipica, em que havia alguma ligacdo natural ou sobrenatural entre 0 tipo de animal que fornecia 0 osso ¢ a entidade social que esse osso repre- sentava durante proceso de adivinhacéo. "Para além destes objectos, € também comum a inclusio de dados — para aiém, como refer, de objectos ex- lusivos de cada wpanga: Conforme Junod (1996) sublinhou ea maior parte dos moambicanos bem sabe, 0 canhocito € uma dis drvores que pode servir de abrigo aos antepassados endo produrida com os seus fratos ‘uma cervea para consumo comunitiio que é muito apreciada; preferiu contudo omitir que tanta 0 aprego A bebida, {quanto 0 consumo colectivo esto ligados a0 poder aftoistacoatribu 43 Estudos Mogaml Volume 22 | Nei O(a) adivinho(a) ¢ os seus espiritos O leitor tera certamente reparado que, em to poucas paginas, j4 mencionei por diversas vezes os espititos dos adivinhos. Tal aconteceu porque eles sio uma referéncia incontorndvel em qualquer conversa acerca deste assunto, visto a pos- sesso por espiritos ser localmente uma condigio sine qua non para a capacidade ¢ pritica de adivinhacao. De facto, no & suposto escolhermos ser nyanga; somos escolhidos para essa tarefa por espititos que “querem trabalhar” através de nds, por um acto de posses- so. Os espiritos escolhem o individuo entre um conjunto de familiares possiveis ¢ podem ser herdados de ambos os lados da familia — 0 que é, afinal, paralelo a situagao social, em que os principios de descendéncia agndtica séo predominan- tes mas no exclusivos (Webster, 1976), coexistindo com sentimentos ¢ deveres que resultam das aliangas matrimoniais e perduram por varias gerag6es, a par de outros factores comuns como irregularidades de Jobolo'? (Granjo, 2005) ou a heranga do nome préprio,"? Em casos excepcionais, que apenas detectei em familias onde um dos pais herdou uma grande quantidade de espiritos,a escolha destes pode ser anunciada — através de adivinhagao ou de transe — mesmo antes do nascimento da crianga, juntamente com o género ¢ o nome a atribuir ao bebé.'* Normalmente, contudo, a exigéncia de trabalho por parte dos espiritos as- sumir4 a forma de uma “doenga de chamamento” que, a par de sintomas indivi- dualizados, incluird uma fraqueza geral e fortes dores, para as quais a biomedici- na nao encontraré aparente explicagio. Se a pessoa nao reconhece a presenga dos espiritos, recusa ou tenta adiar a chamada, espera-se que sistemticas doencas, desgragas ¢ mortes o venham a atingir a sie & sua familia. Este comportamento violento por parte dos espiritos nao ¢ atribufdo a mal- dade, mas antes as limitagées que eles enfrentam na sua actual forma de existén- cia, Embora poderosos, os espiritos sao “o que sobra” da pessoa que em tempos " Lobolo (ou level) designa uma forma de casamento “tradicional” em que a familia do noivo compensa ada nova pela perda dos ilhos ¢ postriores descendentes que rsutem da unio (em virude dos principios de descendéncia patiinear), designando ambém a peépria ceriméniae os bens que sio nla transmitidos. ® Para uma discussio do processo de chamamento, veja-se Granjo (2010). “ Sto aribuidas aos expirivos caracteristcassemelhantes as de pessoas viva “tadicionalistas”. Considerarao por isso que os locais/pesoas demasiado cheios de semelhanes seus potenciam confito,tendendo nesse aso a “dividie a aldeia” entre duas geragbes subsequentes, em vex de esperar pela morte do(a) ryanga para possuit alguém da geragio dos seus neos. 44 © que é que a adivinhagio adivinha? -se limitados a chamar a atengio deles de forma indirecta, propici cimentos anormais e indesejados até serem ouvi jos através da adivinhagao ou transe de especialistas. Para além disso, é esperado dos espiritos que de momento no possuam ninguém que se comportem “como criangas”, de forma caprichosa ¢ impaciente (Honwana, 2002), sobretudo quando se sentem impotentes para transmitir 0 que desejam. Daqui resulta uma dinamica que corresponde bastante & nocio de culto de aflicdo (Turner, 1968), mesmo se “culto” nao é uma palavra que eu escolhesse para a descrever. A pessoa que ¢ vitima de uma doenga de chamamento procuraré solugéo junto de um(a) nyanga e, uma vez que Ihe seja diagnosticada uma pos- sessio por parte de espiritos legitimos que “querem trabalhar”, s6 poderd superar © problema aceitando tornar-se cla prépria nyanga. O paciente tornar-se-4 entao um terapeuta, ¢ o vago crente, frequentemente semi-céptico acerca de tais assun- tos, tornar-se-d um divulgador e reprodutor da crenga."® Tenho vindo a referir “espiritos legitimos” ¢ factores familiares, temendo induzit o leitor a pensar que a legitimidade das exigencias de um espitito decor- ram do seu estatuto de antepassado, ou que cada antepassado seja um espitito. Neste contexto, nenhuma das hipéteses é verdadeira. No que diz respeito & ltima delas, podemos dizer que, se todos os espiritos so antepassados de alguém (desde que Ihes tenham sobrevivido descendentes), poucos antepassados se tornam espiritos, E pressuposto que toda a gente tem uma parte espiritual que sobrevive a sua morte ¢ se mantém na Terra, protegen- do ¢ corrigindo os seus descendentes — que, por seu lado, tém o dever de os hon- rar ¢ se submeter a eles, tal como deve acontecer relativamente aos seus parentes vivos mais velhos. Nao obstante, s6 alguns desses “restos” espirituais adquirem poderes excepcionais, em resultado do estatuto, acgdes ou excepcional forca es- piritual que tiveram em vida, ou devido a circunstancias negativas na sua morte. Sé esses sio, em sentido estrito, espiritos. Quanto A eventual necessidade de um espirito ser antepassado da pessoa que quer possuir para que tal exigéncia seja considerada legitima, deveremos estar cientes de que, pelo contritio, 0 acesso 20 conjunto completo de capacidades ™ Nalguns casos — pontualmence registados em livros (Polanah, 1987) ~ possvel negociar com os espititos que cutra pessoa concorde em ser possuidae, consequentemente, se rorne nyinga. Tal s6&, no entanto, considera do vidvel quando os espiritos se manifescam pela primeira ver numa familia 45 Estudos Mogambicanos Volume22 | Nea a que um(a) nyanga pode aspirar implica a sua possessio por espiritos de trés diferentes otigens:"6 Origem do espirito | Principal capacidade | Capacidades e tarefas complementares vaNguni Adivinha Cura’ a oa Lideranga da consuta/cura Tinguluve ‘Adivinhagao (antepassados) ue Lideranga da casa/"aldeia” vaNdau Kufemba (exorcism) |” Conforme Alcinda Honwana sugere (2002), esta diviséo reproduz em ter- mos “étnicos” as representacées socialmente partilhadas acerca das guerras ¢ as- censio do Império de Gaza, instalado em principios do século XIX ¢ desman- tclado pela ocupagio efectiva do territério por parte dos portugueses, em 1895. Olhando este quadro a partir do ponto de vista sul do pais, cemos de um lado o invasor Nguni que se tornou governante, de cujas técnicas de guerra ¢ adivinhacao perdurou uma imagem de superioridade que o faz corresponder, em referencias populares ¢ dos sinyanga, a0 leitmotiv mitolégico do heréi civilizador; temos depois os “donos da terra”, vencidos ¢ assimilados pelo invasor, devendo 4 sua submissio o estatuto ¢ nome que vieram a ter; temos por fim o Ndau, lembrado como o rebelde resistente as invasdes e guerras que lhe foram movidas pelos anteriores, sob comando dos vaNguni, ¢ cuja determinacdo e resiliéncia sé poderiam ser explicadas pela posse de um forte poder espiricual."” Nio obstante o que acabei de expor, a fami também fornece, num senti- do diferente, 0 princ{pio legitimador para a integracao de espiritos exteriores — € " Embora consensual, esta casifiacio nao exclui outasintegragbesexcepcionais. Por exemplo, conhego dois ‘nyanga que afirmam ser possuidos, paa além de todos os restantes, pels espities de homens de origem huso- -indiana sem quaisque relagées de parentesco com a sua familia. Eu préprio fui diagnosticado como um fu- ‘uro esprit, apds.a minha marce,embora sj casificado como um europeu sem ligagées familiares Afica ” Este tipo de clasifcagio foi recuperado e enfaizado durante a longa guerra civil aue erminou em 1992 e, desde entio, volta ser manipulada em reclamagéesregionalisas, que chegam a ilzar a expresso colonial ‘mo Zulu (Floréncio, 2005). Note-se também que a guetta civil é por vezes referda como a guerra des sprite, em paralelo com as anilises de Geffvay (1991). Também os portuguesestendem a serconsiderados espiitos fortes, numa explicagSo implicita mas dteeta da derrota de Gungunhana edo subsequerce dominio colonial 46 Oqueéquea hago adivinha? isto de acordo com uma légica de culpa ¢ de dever. De facto, a legitimidade da exigéncia de um espirito “estrangeiro” para possuir alguém e “trabalhar” deriva da relago que teré mantido com antepassados da familia, quando todos eles es- tavam vivos. Normalmente, os espititos vaNVguni seriam senhores ou amigos de um antepassado que auxiliaram a familia e jé ndo tém descendéncia, enquanto no caso dos vaNdau poderd tratar-se de uma mulher trazida da guerra como escrava e concubina, dos seus parentes chacinados (a cujos espiritos ela mostrou 0 cami- ho para a casa da familia que a manteve cativa), ou de um guesteiro morto antes de casar, que por isso exigiu a familia do seu oponente uma esposa viva e acabou por decidir srabalhar, quando a sua raiva se apaziguou ao longo do tempo." Independentemente da origem do espirito, as consequéncias ontolégicas da possesso so no essencial as mesmas. Embora um espirito no possua 0 corpo da pessoa de forma continua, tanto ele quanto o individu possufdo deixarao de ser as entidades separadas ¢ independentes que antes eram, para se tornarem num ser simbiético, com uma identidade nova e comum. Cada um influencia 0 compor- tamento ea identidade do outro, adaptando-se a essa coexisténcia durante o seu processo de preparagao para se tornarem um nyanga— podendo até, por exemplo, o homem vivo ter que mudar de religiao, caso o seu espirito principal professasse em vida uma religiao diferente da sua. De facto, um dogma local afirma que é 0 espitito (e nao a pessoa que o hospeda) quem ¢ treinado para trabalhar, pois o seu conhecimento foi em grande parte esquecido desde a morte do(a) hospedeiro(a) anterior; se a pessoa também aprende ao longo desse processo, diz-se, tal resulta da simbiose entre os dois. Uma tiltima caracteristica a rete & que, conforme Harry West (2006) eloquentemente aponta para 0 caso do norte de Mogambique, os adivinhos- -curandeiros nao estéo manietados por um quadro de praticas e de discursos tradicionalistas © repetitivos. Pelo contrério, a sua prética inclui experiéncias, especulagdes ¢ inovacées, estando cles, regra geral, bastante interessados tanto no reconhecimento externo do seu trabalho, quanto nas explicagées ¢ priticas curativas vigentes noutros contextos — explicagGes e préticas que apresentam para eles o inceresse suplementar de poderem vir a ser reapropriadas em beneficio do seu prestigio profissional e da atracgio ¢ fixagdo de clientes. ® Devid & realagio de seus de limpera (Granj, 207), o ime cpo de exigina rio dveiaocorer dlurancea vida de quem maou em stuagio de gure. Pot earn, € mai frequnte que o& Hiyama tcjam genuinamente preacupados com uma “epidemia" de possesses durante a proxima geragio, quando os -soldados sobreviventes da guerra civil comegarem a morrer. 47 Estudos Mogambicanos Volume 22. | Net A consulta De acordo com este quadro conceptual, a “consulta” — conforme é designa- daa sessio de adivinhagao, em deliberada analogia com a terminologia bioméd ca ~ € vista como uma relagio de comunicagio entre quatro diferentes agentes: 0(a) adivinho(a), os seus espiritos, o(a) cliente e os seus antepassados.' Nao obstante, do ponto de vista do adivinho a consulta nao é apenas uma questéo de informacao, mas também de credibilidade junto dos seus clientes. Por essa razo, as suas atitudes ¢ estilos de leitura variam consoante 0 nyanga ea ocasiao, de acordo com o seu grau de confianga e as estratégias que utiliza para se salvaguardar ¢ transmitir confianga. A sequéncia dos acontecimentos é, no entanto, basicamente a mesma em qualquer consulta. Quando o cliente chega, limita-se a pedir uma consulta, sem especificar os seus motivos. Algum tempo depois, seré convidado para a cabana pertencente ao espirito que liderard o trabalho nesse dia, pois o nyanga deve chamé-los a traba- Ihar de forma rotativa, ou alguns “odo ficar zangados de citime, por pensar que 0 trabalho deles é desprezado”. O adivinho vestird entéo a capuland” desse espirito ¢, virando-se para os pertences dele, chamé-lo-é para trabalhar, informando-o que alguém pede a aju- da de ambos (figura 3). E essencial que o espirito concorde participar, pois caso contrério 0 adivinho “olha e s6 vé ossos; nao consegue ler nada”. ° Tinyanga e clientes podem see homens ou mulheres. Passarei contudo 2 utilizar apenas a forma masculina (correspondente 8s fotos gue ilustram ese artigo), de forma aevitarsscemaicas duplicagbes de gén as presentes neste parigafo Capulanassio panos colorids que se enrolam cintura, ou se amarram para tansporear bebés is cosas. Quando std trablhar, o manga usa eapulanas com cores e desenhosespecfcas de acordo com as oigens “étncas” dos splits que o pessuem, por rerauma dif ene para cada um dees 4B Figura 3 — Job Massingue, chamanido um dos sens espiritos para “tabla.” Depois desta invocagio do espirito para a cabana (pois cles gostam de passe- ar ¢ de conversar & sombra de algumas drvores, ou de brincar na praia, podendo nio estar por ali), um nyangaalfabetizado tomaré nota, numa agenda semelhante as utilizadas nos hospitais, do nome oficial do cliente, da sua genealogia ¢ do seu “nome tradicional” - ou, na auséncia deste, da sua alcunha ou diminutivo dentro da familia. Este acto ~ cuja similicude com a rotina médica é evidente — é nor- malmente praticado com alguma circunspeccao e solenidade. O espirito é entio convidado a fazer kuvumbata (profecia) para o cliente, que € identificado pelo seu nome ¢ pelos seus ascendentes nas tiltimas duas ou crés geragoes. Em seguida, o adivinho morde um ramo de manono, uma madeira muito amarga que o ajudaré a induzir aquilo que é normalmente designado por “ranse ligeira’, ou “leve” (figura 4) Quando utilizada de forma isolada, a palavra “transe” é de facto reservada para as ocasides em que um espirito assume o controlo total da pessoa ¢ dos seus movimentos, fala através dela ede acordo com uma erenga popular a que mui- tos rinyanga negam veracidade ~ a faz perder a percepgio daquilo que se passa & sua volta.” Este estado € necessério para a realizagio de varias ceriménias ¢ do © cliente foi pouso depois repreendido por manter os pes neta posisio, qué se cré amarrs [blogucial a consul * Como ness ocasies & scialmente espersdo que 0 ryan em seguida pergunte "O que disse? O que acon: ccoeu?” alguns dees econhecem simular esse auséncia de consciéncia, embora digam que s a sua percepio sensocal se altera cal no evita que mantenham uma nogio bisica daquilo que se sta pasar sua vole O que é que a adivinhagio adivinha? 49 Estudos Moyambicanos Volume22 | Net mais espectacular tipo de tratamentos por kufémba (exorcismo de espititos). No caso das consultas, contudo, a incorporacao do espirito no adivinho € antes des- crita como “um arrepia, e depois como um tecido fino sobre os ombros”. A partir do momento em que o adivinhe sente a sua presenga, poderé “ba- ter” (langat) © tinhlolo (figura 5). Se jé esta familiarizado com o cliente, poder utilizar apenas 0 tinhlolo Nguni; mas se se trata de uma primeira consulta ou se espera que ela venha a ser importante (devido ao estatuto elevado do cliente ou & expectativa de um problema particularmente complicado), serd de esperar que © myanga “jogue seguro”, atirando também as escamas de crocodilo ¢ as nozes de aul, A ideia € poder comparat os padrées desenhados pelos dois conjuntos niais pequenos com aquele em que cairam as muitas pecas do tinhlolo mais complex uma consulta promissora, os trés conjuntos deverdo fornecer basicamente a mesma informago; se tal no acontece, algo est4 mal. Para além disso, os con- juntos de seis pecas, mais simples, podem ajudar o adivinho a focara sua atengio rna mais pertinente de entre as vitias linhas de leitura proporcionadas pelo con- junto maior. Figura 4~ Mordenco madcica de manono, para amilia a induo de ase lige. a © que é que a adivinhagio adivinia? Antes de mais, 0 nyanga deverd identificar 0 motivo da visita do cliente. Se nao o conseguir fazer correctamente, o cliente recolherd o seu dinheiro e ird embora. Por essa razio, 08 adivinhos tendem a ser muito cuidadosos nesta fase, falando por metéforas ou recitando mesmo a “canpio do tinhlolo”, uma historia vaga acerca do passado e familia do cliente que, no essencial, se adequa a quase toda a populagio e lhe foi ensinada pelo seu mestre, durante processo de apren- dizagem profissional. Depois, em fangio das reacsbes do cliente, aproximar-se- -Go progressivamente daquele que julgam ser o problema, Esta inseguranga ¢ legitima, mesmo de acordo com os seus prdprios crité- rios. De facto, para além da incorporacéo do espirito, uma boa consulta requer também que este esteja de bom humor ¢ que a sua interacgao com os antepassa- dos do cliente seja mutuamente aceite. Por isso, mesmo um bom adivinho pode por veres sentir-se inseguro ou incapaz de fornecer informagées correctas; mas, como a sua reputacio estd em jogo, tentard utilizar a sua experiéncia e capacidade de observacio para descobrir 0 assunto que preacupa o cliente. Figura 5 -Lancando o tinkble comple, de uma bola iat St Estudos Mogambicanos Volume22 | Ned Se tudo correr pelo melhor, contudo, a situagdo é descrita de uma forma bem diferente. A interaccéo do myanga com 0 espirito nao é como “alguém s0- prando nas orelhas 0 que dizer”, mas antes como uma orientacio interna, como “coisas que vém & sua mente”, “pensamentos que fiem na sua cabeca”. Quando esta simbiose entre 0 adivinho ¢ 0 seu espirito € particularmente bem conseguida, sendo também assegurada a harmonia ¢ a comunicasao entre este ¢ os antepas- sados do cliente, entao o tinblole quase se torna secundatio ¢ pode nao ser neces sirio voltar a langé-lo. “Quando isso acontece, no me vem sequer & cabeca nenhuma preocupagio deestar certo ou errado, de convencer ow nao. Passado um bocado, jd nem sequer lho para os “ossos”. O cliente pensa que eu estou a lé-los, mas eu estou sé a falar, a falar, falar, ¢ sem mesmo notar estou de olhos fechados e continuo a falar, a falar, até néo ter mais nada para dizer. E quando me calo, normalmente nao hi mesmo mais nada para dizer, ou para atirar.” Figura 6 — Explicando o problema que afligeo cliente, Situagdes como esta nao sao, contudo, frequentes. Habitualmente, o nyanga encontraré 0 problema, explicard as razées que Ihe subjazem de uma forma mais directa ou mais meraférica, de acordo com o seu estilo pessoal e com a confianga que sente (figura 6), € esperar4 pela reacgao e comentarios do cliente. Far-lhe-a entio varias perguntas que julga pertinentes, levando as respostas comentarios 52 O que é que a adivinhasio adivinha? do cliente a realizagao de um novo langamento — desta vez, no entanto, apenas 0 tinhlolo “Nguni” sera atirado, das mos do adivinho ¢ nao da bolsa de palha onde é guardado e transportado,” conforme acontecera no primeiro langamento. Aquilo que surge, aos olhos de um observador exterior, como uma interac- Gio terapéutica que lhe recorda vagamente a psicandlise — e simultaneamente for- nece ao nyanga dados essenciais para a sua interpretacao ¢ intervengio — é objecto de duas explicagées paralelas, dentro da profissao divinatéri: Em primeiro lugar, € dito que, enquanto os assuntos levantados num lan- gamento nao forem completamente respondidos, os lancamentos subsequentes apenas iro repetir a mesma informacao, sem nada trazer de novo. Esta redun- dancia deriva de uma das principais caracteristicas do tinblolo, a de ser um meio de comunicagio entre os espiritos ¢ os vivos, estando consequentemente sujeito as regras comuns de cortesia — da mesma forma que se deveré responder a uma carta, ou uma mensagem verbal, antes de se receber a seguinte. Em segundo lugar, cré-se que os espititos (especialmente se forem vaNguni) apenas trabalham de forma eficaz durante algum tempo seguido, ficando depois cansados ¢ abandonando o local. O adivinho terd, a partir dessa alrura, que mo- bilizar a sua experiéncia e capacidades, tanto de observacao quanto de leitura das pedras, de forma a completar 0 puzzle ¢ a consulta. No entanto, quando se vé na contingéncia de recorter a tais meios jd nao se trata de kuvumbata mas de um palpite interpretativo, por muito exacto que este possa ser. ‘Apés varios lancamentos do tinholo “Nguni” contudo, o cliente poderd ain- da necessitar de algumas respostas directas, para clarificar diividas que tivesse desde 0 inicio da consulta ou que se the tivessem colocado entretanto. Quan- do tal acontece, as perguntas do cliente nao poderao ser duibias e terdo que ser formuladas de uma forma que permita uma resposta bindria, como sim/nao ou mortofvivo. Um dos conjuntos de seis pecas ser4 ento langado a partir das maos do nyanga. Qual deles (tinguenha ou thiakata), depender4 das preferéncias do espitito que esté a mabalhar naquela consulta. Acompanhando até ao final este proceso, podemos reparar que as conclu- ses da parte principal da consulta estio em grande medida pressupostas nos > Em si mesma, a bola no € objeto de qualquer rgta ou preacupasio particular. F apenas uma vulgar bola sipatsiratida no Mercado, como qualquer outa pessoa poderé comprar para outros fins ~ e, seas bolas apre~ sentam por vezes complexos padres colordos, a escolha & meramente esti, Nem sequer€ obrgatério, ou portador de algum sentido especial, o macerial comm que a bolsa ¢ fit: "Compramos o que existe a vende. Hoje cm dia ¢feita de pabha, mas 0 meu es, por exemple, fe bola dele em pee de vaca.” 53 Estudos Mogambicanos Volume22 | Nod dados que foram confirmados ou adiantados pelo cliente ¢ que uma significativa parte do trabalho do adivinho consiste em dar sentido, a luz dos principios lo- cais de interpretacao do infortiinio, a coisas que o cliente jé sabia. Este ultimo, no entanto, apenas confirmou o que lhe foi perguntado ¢, no caso de alguns tinyanga, recebeu quase uma aula acerca da forma como funciona o sistema de interpretacao que referi ¢ adiante exporci. Assim, a sua experiéncia de consulta io se limitou a proporcionar-lhe um sentido para os seus inforttinios ¢ uma so- lugao plaustvel (muitas vezes ritual) para os ultrapassar; também reafirmou ¢ Ihe deu um maior conhecimento acerca de referéncias culturais que, quase sempre, eram para si nogGes vagas e fragmentares, O cliente poderd ainda - em particular se 0 abjecto da consulta eram assuntos familiares — ter recebido sugestdes acerca do seu comportamento futuro, baseadas nas idiossincrasias do nyanga acerca das relagdes sociais e assumidas por ele como uma parte da sua responsabilidade papel de conselheiro. Domesticagao da incerteza, caos deterministico e Mocambique Expostos estes aspectos, impée-se clarificar qual o sentido preciso dos con- ceitos de domesticagao da incerteza e de caos deterministico. Durante a pesquisa que realizei na refinaria de Sines (Granjo, 2004), tor- nou-se claro para mim o cardcter socialmente especifico ¢ localizado da nogéo probabilistica de “risco” ¢ até que ponto ela induz — do discurso técnico- fico para a sociedade circundante —a ideia de que o isco constitui realidade, € nao uma tentativa de atribuir sentido a essa realidade. Necessitei por isso de diferenciar, por um lado, os factores objectivos pas- stveis de causar danos as pessoas ¢ coisas (as “ameagas”) de, por outro, as varias formas possiveis de os conceber e representar, segundo diferentes principios ex- plicativos. Quando nos centramos nestas formas de conceber e representar, depressa verificaremos que as alternativas possiveis de conceber a ameaga ¢ a incerteza podem variar entre dois pontos extremos (figura 7): De um lado, a total assumpcio de que 0 aleatério é “real” e constitu o prin- cipio subjacente aos acontecimentos incertos (com isso reconhecendo 0 acaso);”* ienti- % 0 que leva a uma concepgio da ameaga de acidentes como sendo “perigo”, ou sea, como algo totalmente imprevisivel e inesperado no espago € no tempo, devido 3 sua aleatoriedade e & complexidade dos factores envolvides. 54 © que é que a adivinhacio adivins? do outro, assumir a completa determinagéo desses acontecimentos por parte de légicas ou entidades extra-humanas — como, por exemplo, a vontade divina, al- gumas acepg6es da palavra “destino” (Granjo, 2009) ou as leis mecanicistas de um universo concebido & imagem de um aparelho de relojoaria. Entre estes dois extremos, existe um continuo de possibilidades conceptuais, que tém em comum a sua tentativa de atribuir um sentido ¢ causalidade 3 incerteza ¢ ao aleatério que os faz serem vistos como cognosciveis, regulados, ou mesmo dominados pelos seres humanos. Sao elas que constituem aquilo a que chamo formas de “domes- ticagao da incerteza”. domesticagao aleatoriedade: do aleatério determinagao SSF acaso feiticaria vontade divina caos supersticao destino “perigo” coacgio do Universo mecanicista extra-Humano “ni8c0" (o.) Figura 7 Concinuo de atrnatvas para concaber a incereza ea ameaga A posigao do “caos deterministico” neste continuo de possibilidades — ou mesmo num dos seus pontos extremos — nao é imediata. No fundamental, esse conceito sustenta que os acontecimentos incertos so ca- Gticos para quem os observa ou sofre as suas consequéncias mas, nao obstante, existe um principio de determinagao que lhes esté subjacente. De forma a com- preendermos todas as suas implicag6es, no entanto, devetemos ter em mente que 0 caos deterministico tem como modelo as equacdes matematicas que geram uma sucesso de ntimeros que nao corresponde a ciclos finitos,”* e que portanto nunca se repetem enquanto sequéncias, por muito que um mesmo resultado individual possa voltar a surgir. Portanto, embora exista uma instincia de determinacio, aquilo que resulta é de facto cadtico, imprevisivel e incontrolével - a menos que tenhamos acesso A equacdo que gera os resultados. Quando aplicamos esta nogao a interpretagao de um mundo ele préprio incerto, o seu estatuto conceptual ¢ 0 seu lugar no continuo de possibilidades que 5 Um exempla césico¢ 2 equagio P,, = RYP, (I-P,),em que P representa uma populacio de coelhos eR a sua taxa geral de reprodugto, quando R > 3,56 (cf. lash, 2005). Estudos Mogambicanos Volume 22 | NoL apresentei dependem, em tltima instancia, da resposta que demos a trés varidveis pertinentes: i) que estatuto de cognoscibilidade ¢ attibuido A “equagao”? ; ii) se € possivel conhecé-la, que tipo de entidade é capaz de o fazer? ; ii) posstvel alterar os acontecimentos resultantes da “equagéo”, uma vez que esta seja conhecida? Dependendo da combinagao de respostas a estas variéveis, podemos de fac- to estar a lidar com uma visio aleatéria do caos, com um sistema determinista de natureza religiosa ou pseudo-cientifica, ou com diferentes sistemas de domestica- ¢4o do aleatbrio. E este tiltimo o caso do sistema dominante em Mogambique, que larga- mente extravasa as fronteiras do pats?” A primeira vista, a resposta pareceria ser: “Nao é bem isso.” A légica de domesticagao da incerteza que preside ao tinhlolo parte do prin- cipio de que 0 acaso nfo existe, ¢ que muito menos poderao existir esses acasos. recorrentes a que chamamos coincidéncias. Por isso, acontecimentos que preju- diquem ou beneficiem alguém pressupdem a existéncia de causas que Ihe estejam subjacentes, em especial se se repetirem. Essas causas subjacentes, contudo, no substituem a causalidade material nem the séo antagénicas. Considera-se, de facto, que 0 mundo esté repleto de ameagas materiais € naturais, reguladas por causas materiais. Uma parte dessas causas serd conhecida, outra ndo, mas nem por ser desconhecida deixar de existir. No entanto, se os acontecimentos indesejados seguem relagdes de causalidade material, é considerado que cles apenas poderao atingit uma pessoa em resultado de causas sociais. ‘A primeira hipétese a verificar serd a possivel inabilidade ou negligéncia por parte da vitima. Se esta desconhecia a forma correcta de efectuar alguma accao, nao tinha suficiente experiéncia para a fazer ou nao tomou as precaugées neces- shtias (ou seja, se era inadequada para fazer o que fez), serd essa a razio do seu infortinio. Sé serio procuradas outras causas sociais se a vitima foi competente € cuidadosa mas, apesar disso, foi atingida ou prejudicada pelo acontecimento indesejével Usa dessas possiveis causas é a feiticaria (normalmente motivada por inveja ou outros sentimentos e objectivos considerados negativos), que atraird a pessoa para o petigo, ou a distraird da sua existéncia ¢ iminéncia. Acredita-se ainda que a feitigaria possa agir directamente sobre factores materiais, mas tais diagnésticos % Vejase a ese respeito, Peck (1991), Janzen (1992), Dijk (2000), Westerlund (2000) e Binsbergen (2003), 56 O que é ques adivinhacio adivinha? sio relativamente raros e, em geral, limitados a situagdes de tensio social de ex- cepcional intensidade. Outra raza poderd ser uma falta de proteccao por parte dos antepassados da vi- tima, que a deveriam proteger do perigo ¢ alerté-la em relagio a ele, nao o tendo feito naquele caso. Conforme referi, esta éa tinica forma que os antepassados tém para comunicar com os seus descendentes, pelo que o préximo passo serd desco- brir porque razao esto eles insatisfeitos ¢ o que poder ser feito para corrigir essas causas ou, pelo menos, apazigué-los.”” Dever-se-4 notar que a falta de protecgio por parte dos antepassados é uma ques- tao estritamente social, visto que a sta motivagéo provém de algum comporta- mento social — por parte dos seus descendentes ou ha mais tempo, quando o antepassado em causa ainda era vivo — € que os antepassados no sao entidades extra-sociais, vivendo num qualquer lugar extra-humano. Pelo contratio, so “o que sobra” dos seres humanos que antes foram e viver na Terra junto dos seus descendentes, de quem dependem para serem recordados, cuidados ¢ honrados, com quem mantém uma relagio que segue as regras gerais de protec¢io ¢ con- trolo familiares. Chegados a este ponto, serd claro para o leitor que a demarche de adivinhacao e cura em que se insere 0 tinhlolo segue uma légica de domesticagao do aleatorio que nio é original em Africa. De facto, apesar do papel central que os espiritos ¢ os antepassados assumem neste sistema explicativo mogambicano, os seus prin- clpios gerais si similares, por exemplo, aos da cléssica interpretacéo de Evans- -Pritchard acerca da bruxaria Azande (1978 [1937]). Devo contudo sublinhar que a atribuigao de agéncia aos espiritos torna bastante mais complexo o sistema ‘que temos vindo a acompanhar ¢ que este nao procura explicar apenas os inforti- nios, mas também os acontecimentos vantajosos, ou mesmo aspectos socialmen- te reprovados — como comportamentos abusivos na redistribuicao da riqueza por parte de quem tem acesso a ela (West, 2008). 2” Também a sade €consieradao estado normal do individuos, mas um ena que exgeharmonia ene ot -vivos, o seu ambiente social e ecolégico, ¢ os antepassados (Honwana, 2002). Também ela é ameacada pela falta de cuidado, pela feitizaria dos vivo pelo desagrado dos antepassados, est cso a par dos perigosecolé- gicos edas exigéncias de espiricos para “tabalhar. Mesmo se é reconhecida a existéncia de “doengas de hospital” ‘¢ se as teorias locais acerca da ctiologia das docngas sio muitas veres paralelas das académicas (Green, 1999), luna manifestagéo fisca de daenca pressupse causa sociais. Consequentemence, nio basta trata a docnga: também necesiriorestaurat o equilfoi socal ¢ a harmonia com os ancepassados, ou o problema vot parecer porque a sua causa tilkima no foi reslvida 57 Estudos Mogambicanos Volume 22 | N.1 ‘Tenderfamos também a concluir, se limitéssemos a andlise aos dados que apre- sentei, que a nocio de caos probabilistico sé em parte é pertinente neste contexto conceptual. O mundo exterior parece, de facto, seguir uma Idgica de caos de- terministico, mas a relagéo entre 0 mundo € os individuos nao; antes parece ser regida por determinagdo, embora esta tenha uma base humana ou para-humana que faz dela uma forma de domesticagio do aleatério. Adivinhagao e “risco” A aplicagao dos principios deste sistema a vida real é, contudo, menos direc- ta do que a sua mera apresentagao geral nos levaria a pressupor, devendo-se isso a complexidade que é reconhecida aos factores envolvidos nas relagées sociais. Na verdade, se estivéssemos na presenga de um sistema determinista, seria de esperar que alguém sempre cuidadoso, que sempre se comportasse de forma socialmente correcta para com os vivos e sempre respeitasse as regras dos ante- passados, estaria salvaguardado de surpresas indesejaveis. No entanto, nao ¢ esse 0 caso. Entre os vivos, o préprio comportamento excepcionalmente correcto desse individuo poderia tornar-se objecto de inveja ~ ¢, portanto, objecto do motivo mais frequente para fazer dele uma vitima de feiticaria, seja como forma de reta- liagdo, seja como meio para apropriar as suas qualidades e forga. Na sua relacdo com os mortos, existiriam também varias razGes passiveis de o vitimizar, independentemente da sua conduta exemplar. Por exemplo, se uma gota de saliva saltasse da boca de um parente sénior enquanto este comentasse as accbes do individuo modelo que temos vindo a imaginar, os antepassados de ambos poderiam considerar esse acontecimento como sendo uma invocagio, € as palavras do parente sénior como sendo um pedido de correc¢io do seu com- portamento, por muito pouco que essa fosse a intengao do orador. E também assumido — e com frequéncia diagnosticado — que um espirito pode exigir aos vivos uma compensacao pelas acces passadas de um seu parente, entretanto fa- lecido. Por fim, um individuo pode ainda ser atingido, nao devido as suas acgdes ¢ omissdes ou por herdar a culpa de um antepassado, mas como uma forma de chamar a atengao para as faltas de uma outra pessoa, que sera neste caso um seu parente préximo. O que € que a adivinhasio adivinha? Dessa forma, este sistema de domesticagéo do aleatério é baseado numa es- trutura determinista, procura explicar ¢ regular a incerteza, mas o seu resulta- do € cadtico, devido a complexidade dos factores envolvidos, incognosciveis na sua totalidade e caracterizados por agéncia humana ou para-humana. Voltando & nossa metéfora matematica, é postulada a existéncia de uma “equagao” ¢ a compreensio dos elementos que a compéem, pode nalguns casos ser mesmo assumido que a formula da equacio seja conhecida (pelo menos pelos espiritos), mas é impossivel identificar simultaneamemte 0 valor de todas as incdgnitas e, consequentemente, 0 resultado da equacao. Em suma, o sistema adopta, na aplicagio pritica dos seus princfpios, uma légica de caos determintstico.® Quando atentamos nas razées que obrigam o sistema a adoptar uma tal ldgica, podemos detectar similicudes gritantes com a aplicacao da teoria das pro- babilidades a gestaéo das ameagas, sob a nogao de risco. De facto, este sistema mogambicano ¢ a gestéo probabilistica do risco enfrentam os mesmos dilemas, € pelos mesmos motivos: embora ambos aspirem a atribuir ordem a incerteza e a assegurar o dominio humano sobre ela, ambos sio incapazes de controlar a in- certeza de forma prospectiva devido a complexidade dos factores envolvidos — e, em resultado disso, cada um deles transforma a prevencdo num paliativo parcial. Esta incapacidade é particularmente pertinente porque, quando olhamos para um sistema de domesticagiio da incerteza, seria um etto fundamental separar 0 seu objectivo de atribuir sentido aos acontecimentos do seu objectivo de guiar a agéncia humana. Se a existéncia de um qualquer tipo de légica de domesticagiio da incerteza é provavelmente universal 4s sociedades humanas, € plausivel que tal se deva & necessidade de superar a humilhagao que resulta da auséncia de sentido dos acontecimentos perniciosos ¢ imprevistos; nio obstante, 0 objective de um sistema de domesticagiéo da incerteza nunca é apenas proporcionar sentido ao aleatério, inesperado ¢ imprevisto, mas usar esse sentido para direccionar a acgio humana de uma forma eficaz. Quer isto dizer que no basta compreender a légica e os principios atra- vés dos quais o sentido ¢ atribuido; é também necessirio clarificar 0 potencial, > Conforme Ron Eglashsublinhou ao comentar primeira versio inglesa deste artigo, esta conclusto 56 &ves- dadeira porque no enfrentamos, nese cas, muitos factoreslincates (que fariam processo set complicado em vez de compleso, ransformando-o em aleatério em ver de caos deterministic), mas antes muitos Factores notineares, que interagem de uma mancia que transforma a sua relagio ¢ evolugio individual em resultado da sua historia selacional, como no exemplo clissico de igua pingando sobre uma faceta de Lorene (1963). 59 Estudos Mogambicanos Volume22 | Nod limitagées e fronteiras da sua projeccdo no futuro, enquanto guia para a agéncia = nao importa se a palavra que utilizamos é “adivinhacéo” ou “andlise de risco”. Esta similitude deveria chamar a nossa atencio para a importancia de algu- ma reflexio colectiva acerca das consequéncias priticas dos sistemas de domes- ticagao da incerteza que se tornaram hegeménicos” na drea da gestio de risco e na forma como este é encarado nas sociedades de matriz cultural europeia, alas- tando progressivamente as restantes. Contudo, como esse assunto ¢ demasiado extenso para ser aqui desenvolvido e jé tive oportunidade de 0 abordar noutro local (Granjo 2008), regressemos & adivinhacao no sul de Mogambique, as suas ldgicas subjacentes e 3s consequéncias daquilo que acaba de ser dito. Uma das consequéncias ¢ evidente na observacio presencial, no discurso das pessoas envolvidas e na contabilizagio dos motivos que levam as pessoas a procu- rar uma consulta: a adivinhagdo mogambicana nao constitui um objectivo em si propria, mas antes pretende atribuir ordem aos acontecimentos ¢ guiar para a acco. Isto é relevante para o cliente, mas é ainda mais relevante para o adivinho, que é a0 mesmo tempo um proporcionador de cura para doencas ¢ problemas sociais, tendo na adivinhagio 0 seu meio de diagnéstico: “Otinhlolo ¢ como o estetoscépio do médico. Sé torna as coisas mais claras, nééo é(...) Eo médico que tem que saber 0 que significa 0 que ele estd a ouvir eo que ele esta a ouvir existe sem o estetoscopio, ele sb ajuda. O tinhlolo ainda é mais til para nds, porque é 0 nosso estetoscépio, 0 nosso Raio X e as nossas andlises, ao mesmo tempo.” No entanto, quando a adivinhacao ¢ examinada do ponto de vista do caos deterministico (um ponto de vista empiricamente adequado, conforme pudemos constatar), hd outros aspectos que se tornam mais faceis de compreender. ® Uso “hegemonia” em ambos os sentdos, utlzados por Gramsci (1971), de dominio de um grupo através do

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