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M216p — Mahoney, Michael J. Processos humanos de mudanga / Michael J. Mahoney; trad. Pébio Appolindrio. — Porto Alegre: ArtMed, 1998. 1, Psicologia — Construtivismo, I. ‘Titulo. CDU 159.922 Catalogagio na publicagdo: Ménica Ballejo Canto — CRB 10/1023 Michael J. Mahoney Professor and Director of Clinical Training in Psichology 453. 39.9 at the University of North Texas. e mM 9iGh. be PROCESSOS HUMANOS DE MUDANCA As Bases Cientificas da Psicoterapia Tradugéo: Fabio Appolinario Psicdlogo clinico, especialista em Terapia Cognitiva Construtivista. Mestrando em Psicologia pela USP. Professor da Faculdade de Psicologia da Universidade de Mogi das Gruzes, Consuttoria, supervisio € revisio técnica desta ediga Ricardo Franklin Ferreira Psicélogo clinico. Mestre em Psicologia pela USP. Doutorando em Psicologia pela USP. Supervisor de Estégio em Psicoterapia na UNIP. Coordenador do Curso de Formagio em Terapias Cognitivas Construtivistas no Nicleo de Psicaterapia Gognitiva de So Paulo (NPCSP). Diretor do NPCSP. Vice-Presidente da Associagao Brasileira de Terapias Cognitivas Construtivistas. Cristiano Nabuco de Abreu Psicdlogo clinico. Mestre em Psicologia pela PUCSP. Doutorando em Psicologia pela Universidade do Minho. Supervisor de Estigio em Psicoterapia na UNIP. Coordenador do Curso de Formaco em Terapias Cognitivas Construtivistas no Niicleo de Psicoterapia Cognitiva de Sao Paulo (NPCSP). Diretor do NPCSP. Presidente da Associacao Brasileira de Terapias Cognitivas Construtivistas. ARINED Porto Alegre, 1998 Obra originalmente publicada sob 0 titulo Human change processes © Basic Books. Inc., 1991. ISBN 0-465-03118-8 Capa: Joaquim da Fonseca Preparago do original: Maria Rita Quintella Elisangela Rosa dos Santos Fabiana Schwarstzhaupt Magda Regina S. da Rosa Supervisto editorial: Leticia Bispo de Lima Composigiio e arte: Com'fexto Editoragao Eletr6nica Reservados todos os direitos de publicagao em lingua portuguesa a EDITORA ARTES MEDICAS SUL LTDA. Ay, Jeronimo de Omelas, 670 — Fones (051) 330-3444 ¢ 330-2183 FAX (051) 330-2378 — 90040-340 Porto Alegre, RS, Brasil SAO PAULO: Rua Francisco Leitao, 146 - Pinheiros Fone: (011) 883-6160. 05414-020 Sao Paulo, SP, Brasil IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Para Walter B. Weimer, amigo de longa data, critico valioso ¢ principal professor responsavel por prevenirme das epistemologias dogmaticas e autoritarias. E para Vittorio F. Guidano, amigo ¢ “da familia”, que me ensinou que a psicoterapia, come a vida, | € sempre uma epistemologia aplicada,|: Sumario Prefiicio.. Apresentacéo a Edi¢io Brasileira I-INTRODUGAO CONCEITUAL E CONTEXTO HISTORICO J Mudanga Humana: A Ultima Fronteira Etica Auto-enfoque e Responsabilidade Social. Questdes Bisicas a Respeito da Mudanga Humana Mudando a Visio a Respeito da Mudanga Humana Respondendo Questées Basicas a Respeito da Mudanga Humana.. 2 Uma Pequena Histéria das Idéias Filosofia e Processo de Questionamento .. Inicio Formativo na Busca pelo Conhecimento: Conclusio 3. As Bases eo Futuro da Psicologia Cientifica As Primeiras Investigacdes Psicol6gicas ... Behaviorismo Radical: Ascensio e Queda da Psicologia sem Mente Da Metade do Século até o Presente. A Giéncia ¢ a Profissio no Futuro da Psicologia Il- ESTUDOS CIENTIFICOS SOBRE A APRENDIZAGEM EO DESENVOLVIMENTO HUMANO, 4 As Giéncias Cognitivas: Revolugio e Evolucio «. A Revolugio Cognitiva .. Problemas Selecionados sobre os Modelos da Mente A Evolugio na Revolugio 5 Construtivismo e Auto-Organizacio .. Os Miltiplos Significados da Construgio Uma Breve Histéria do Construtivismo Cognicao Pré-Ativa e Conhecimento Participativo ... ‘A Primazia do Abstrato.. Construtivismo Critico ¢ Construtivismo Radical Complexidade ¢ Autoconstrugio: Um Reconhecimento.. 6 Evolugdo e Desenvolvimento Humano.. A Evolucao da Teoria Evolucionista 8B — Michael J. Mahoney Algumas Questées Selecionadas sobre o Evolucionismo .. Epistemologia Evolutiva (E%) .. Conclusao. 7 Desenvolvimento Psicolégico Humano Desenvolvendo Idéias sobre o Desenvolvimento . Estagios e Estruturas, Sistemas ¢ Processos. A Questao da Plasticidade Humana Atividade ¢ Interacio no Desenvolvimento Desenvolvimento Emocional ¢ Apego .. 8 Os Processos Emocionais e a Experiéncia Humana As Bases Emocionais das Realidades Pessoais. Emogdes Humanas: Teorias ¢ Questdes As Fungdes das Emogées.. Emogées ¢ Psicoterapia Conclusio.. 9 OSelf em Processo As Vicissitudes do Sei A Natureza do Sef. As Desordens do Self. As Psicoterapias do Self. Conclusa: Ill - PSICOTERAPIA: PRINCIPIOS, TECNICAS E EXPERIENCIAS. 10 Principios de uma Psicoterapia do Desenvolvimento .... Pressuposigées Tacitas a Respeito da Natureza Humana Reordenando algumas Questdes Basicas Principios Basicos da Mudanga Psicolégica Humana Metiforas de Ajuda... Psicoterapia do Desenvolvimento II Técnicas Selecionadas para Encorajar o Desenvolvimento Psicolégico As Técnicas como Rituais Terapéuticos AEscrita Terapéutica A Corrente de Gonsciéncia O Tempo no Espelho .. Outras Técnicas Importantes Conclusio.. 270 277 12A Experiéncia Individual da Mudanga A Organizagio Pessoal da Experiéncia Resisténcia 4 Mudanca Processos humanos de mudanca—9 A Dinamica Oscilante do Processo de Mudanga Mudando as Relagé Mudangas na Aten¢io, Mudangas no Significado Conclusio 13 A Pessoa e a Experiéncia do Psicoterapeuta ... As Miiltiplas Razées ¢ Significados da Ajuda O Estresse da Condigao de Psicoterapeuta .. Cnidando do Seifdo Terapeuta O Desafiador Privilégio da Ajuda Epilogo... Apéndices A. Atengio e Percepgio ... B. Conexionismo .... C. Autopoiese: A Auto-Organizacio dos Sistemas Vivos D. Desenvolvimentos em Psicobiologia Ciéncias do Cérebro .. E. As Ciéncias da Complexidade .. F. Evolugio Humana G. Pensando sobre o Sentir: Umma Breve Histéria H. Prioridades Sclecionadas para a Cigncia, a Educagio ¢ a Pritica Profissional... Referéncias Bibliograficas Indice Remissivo ... Prefacio Este livro representa 0 apice de 10 anos de pesquisa € produgio escrita sobre 05 princfpios e os processos basicos da mu- danga psicolégica humana. Este tem sido © meu principal e mais intenso projeto en- quanto cientista e profissional de saide. Houve vezes, para ser sincero, que este objetive pareceu-me por demais gigan- tesco. Motivado por um desejo de ser com- preensivo e integrativo, mergulhei em lei- turas humilhantes, tanto por sua grandio- sidade quanto por sua dificuldade. Com a mesma freqaéncia com que me senti deso- lado, entretanto, sentiame ainda mais ins- pirado pelas idéias e experiéncias geradas durante o processo de exploracio. Qual- quer que seja a natureza das contribuigses geradas por esse trabalho, ew aproveitei Ficamente os caminhos desbravatérios pe- los quais enveredei. Uma das proposigdes centrais deste livro 6a de que somos observadores partici- pantes numa era de dramaticas mudancas na experiéncia humana. Um namero cres- cente de pessoas tem reportado maneiras fondamentalmente novas de conhecer ¢ experienciar suas vidas, a si préprios, as sim como os seus relacionamentos com ou- tras pessoas ¢ com 0 nosso planeta, Entre \|muitas outras expresses dessa mudanca | axial? (central) da compreensio humana, Lrecentes desenvolvimentos na teoria e na pesquisa sugerem que a consciéncia, 0 afe- ||to, a identidade pessoal € a intencio- Inalidade podem (novamente) ser exami- | nados enquanto importantes expresses da \atividade humana, Acredito que tal mudan- a tenha importantes implicagées para a nossa compreensio € para a facilitagio da adaptacao ¢ do desenvolvimento individual € coletivo. O meu objetivo neste livro foi o de examinar as nossas suposigées bisicas a respeito dos processos humanos de mudan- ¢a. Igualmente tentei praticar uma auto- conscientizacio intencional no processo de tal andlise, de forma que alguns pressupos- tos especificos pudessem ser construtiva: mente revistos (por exemplo, o pressupos- to de que ha pressupostos basicos). Ao fazé- 1o, enfatizei o fato de que as nossas teori € terapias de mudanga humana séo igual- mente teorias acerca da natureza humana ¢ das possibilidades psicolégicas. Isto nao implica que as idéias humanas ditem o tom de todo o resto: nao me subscrevo & dou- trina da “supremacia da razio” (a nogio de que a cabeca governa o coragio). Ao invés de simplesmente reverter 0 sentido da casualidade, entretanto, sugiro que 0 fenémeno da mudanga é muito mais com- plexo e dinamico do que os modelos tradi- cionais possam supor. Por meio de todo esse meu trabalho, tive trés grandes grupos de pessoas em mente, como meus leitores imaginarios: es- udantes de graduacio em psicologia, psicotcrapentas ¢ cientistas pesquisadore: Mais tarde, imaginei que os interesses pri marios de cada grupo poderiam represen- tar uma mistura de motivos, variando da preparagio para uma prova de compreen- sdo € uma revisio dos fundamentos cienti- ficos da psicoterapia até o desenvolvimen- to de um didlogo mais construtivo entre os pesquisadores ¢ os clinicos. Com 0 objeti- vo de servir como uma fonte para tais lei- tores, fiz extensivas (embora arduamente exaustivas) referéncias 4 literatura existen- te nos mais variados campos. Também aventurei-me a fazer tabelas sumarias, apén- dices técnicos ¢ aproximagdes em alguns dos principios gerais relevantes tanto para S 12 — Michael J. Mahoney a pesquisa quanto para a pratica profissio- nal. Posso apenas esperar que as possibili- dades sugeridas a partir dessas aventuras sejam suficientes para contrabalangar as suas inegaveis limitagées. Um projeto dessa magnitude nao é alcangado sem um gencroso encoraja- mento, tanto pessoal quanto profissional. Ao longo da década de pesquisa e redagio que este livro envolveu, pude apreciar 0 muito bem-vindo apoio de muitos mais es- tudantes, colegas ¢ amigos do que seria possivel aqui enumerar. Alguns ofereceram palavras de encorajamento depois de uma aula ou workshop; outros escreveram no- tas de consideragao. Ao longo das confe- réncias ¢ dos continentes, pude ser tocado ¢ inspirado pelos interesses € bons votos. Estou também em débito para com a’ ins- tituigées que forneceram suporte ao meu trabalho ao longo desse periodo: a Univer- sidade do Estado da Pensilvania, a Univer- sidade da California em Santa Barbara e a Universidade do Norte do Texas. Passei seis meses de formacio na Universidade Clini ca Psiquiatrica de Roma, gracas ao Prémio Fulbright de Pesquisa Académica, conce- dido pelo Conselho para o Intercambio In- ternacional de Professores. Também fui en- corajado pelas honras outorgadas a mim pela Associagio Americana de Psicologia ¢ pela Associagao Americana para Avanco da Ciéncia. A lista parcial de amigos ¢ colegas que me auxiliaram neste trabalho inclui Neil McK. Agnew, Giampicro Arciero, Diane B. Arnkoff, Albert Bandura, Aaron T. Beck, George ¢ Judith Brown, James F. ‘T. Bugental, Donald T. Campbell, Antonio Caridi, John W. Cotton, Gerald C. Davison, Viktor E. Frankl, Oscar F. Goncalves, Judith Gordon, Leslie S. Greenberg, Vittorio F. Guidano, Gail Hackett, John J. Horan, Robert Landheer, Ed Lewis, G. Alan Marlatt, Andrew W. Meyers, Mayte Miro, Luis Joyce Moniz, Bert S. Moore, Thomas Pruzinsky, James E. Pumphrey, Mario A. Reda, R. Murray Thomas, Holly Van Horn, Frances Vaughan, Roger N. Walsh, Walter B. Weimer, Barry E. Wolfe ¢ Jules Zimmer. As contribuigdes especiais de Vittorio Guidano e de Walter Weimer estado assina- ladas nas dedicatérias. Nao se requer muita experiéncia como clinico para compreender que_aju- dar € consideravelmente mais desafiador d6 que muitos livros ¢ manuais de wata- mento possam admitir. As miraculosas so- lugdes prometidas pelas prescrigdes de fe- licidade populares sao freqitentemente um. insulto a dor, a luta e A perseveranga de- monstrada por muitos clientes da psico- terapia. Esta lico tem-me sido ensinada re- petidamente ao longo dos anos, e eu a te- nho aprendido com mais convincgio a partir das pessoas as quais servi clinicamen- te. Meus clientes tém sido alguns dos meus mais poderosos professores, especialmen- te considerando-se as complexidades da vida e a fundamental importancia do cui- dado hunano. Eu brindo a sua “coragem de ser”, como Paul Tillich teria dito, assim como a sua confianga em si préprios, em mim e no processo de desenvolvimento pessoal. Por terem compartilhado comigo os scgredos dos seus coragées € as lutas de suas vidas particulares cu sou profunda- mente grato a eles. O derradeiro tempo e a energia que foram necessarios neste projeto poderiam nao ser conhecidos por JoAnn Miller, quan- do ela primeiro ofereceu um contrato com a Basic Books. Sua paciéncia comigo ¢ a sua fé neste livro ajudou-nos pelos milti- plos prazos vitais (prefiro este termo a pra- z0s fatais). As extensivas revisées que cau- saram tantos atrasos foram, acredito, tra- balhos sensatos € valiosos ¢ agradeco a JoAnn pelo seu auxilio no decorrer de todo © proceso. Robert A. Neimeyer, Mary Ali- ce Flint ¢ Phoebe Hoss leram os originais ¢ ofereceram-me valiosas sugestées para 0 seu refinamento. Estou igualmente muito grato a Mary McConkey e a Mary Hayman pela inestimavel ajuda com os originais e pelo seu espirituoso encorajamento a este escritor, fundamentalmente humano. Finalmente, este uabalho nao teria sido possivel sem 0 auxilio e 0 carinho de uma amada e amante “base segura” consti- tuida por minha familia, especialmente minha esposa, Teresa, ¢ as minhas mais pre- ciosas criagdes, Sean Michael e Maureen Elisabeth Mahoney. Minha grande riqueza tem sido o prazeroso privilégio de compar- tilhar minha vida com elas. Michael J. Mahoney Processos humanos de mudanga— 13 Apresentacao a Edicao Brasileira Esta publicacdo em portugués do li- wo Human Change Processes € wm acon- tecimento muito especial em minha vida. Eu nfo consigo encontrar palavras que pos- sam expressar minha gratidio a Cristiano Nabuco de Abreu e a Ricardo Franklin Ferreira. Sou profundamente agradecido por sua amizade, seu apoio e pelo notavel esforgo que eles investiram neste projeto. Cristiano e Ricardo tém trabalhado muito para comunicar claramente minhas idéias ¢ tém sido bem-sucedidos neste empreen dimento. Uma das lic5es da hermenéutica [ina filosofia pdsmoderna é que as tradu- ik es — especialmente de um idioma para outro — nunca sio processos mecanicos Ide substitui¢o. Uma tradugio.é sempre ¢ necessariamente uma interpretagao. A in- terpretago, portanto, que Cristiano e Ricardo apresentaram do meu trabalho parece muito confortavel e ressonante. Eles captaram nao somente o contetido, mas também o tom de minhas expressées, ¢ eu me sinto tanto feliz quanto nmito agrade- cido por isso. A idéia deste livro nasceu durante uma conversa telefénica com meu bom amigo Tim (Aaron T.) Beck, por volta do ano de 1980. Ele achava que ja era hora de eu me empenhar em atualizar meu livro Cognition and Behavior Modification, de 1974. Acho interessante notar que esta publicacao foi primeiramente delincada no Brasil, durante 0 vero de 1973. Eu nao pensei nela como um livro naquele mo- mento — eram apenas notas que fiz nos cursos que estava dando principalmente em Sao Paulo. As conversas ocorridas ne: tes cursos paulistas encorajaram-me a con- siderar a necessidade de um exame mais minucioso da relevincia da psicologia cognitiva para a modificago do compor- tamento. Apés este vero, eu jantei com B. E.Skinner, um dos meus berdis profissio- nais, ¢ falei a respeito de minhas experién- cias no Brasil e do men_interesse naauto- regulacio ena sinergia das psicologias cognitiva e comportamental. Skinner, por sua vez, apoiou meu trabalho na auto- regulagdo, mas foi inflexivel ao dizer que a psicologia cognitiva era pior que um beco sem saida. O cognitivismo, disse ele, levou a um lugar pior do que o lugarnenhum. Levou-nos, completou,.a.uma_errénea ilu- sao da investiga¢io. do significado. Na oca- sido, fiquei intrigado com a intensidade de suas sensagdes, que contrastaram com os sentimentos que eu acabara de experien- ciar no Brasil. Respeitosamente expressei minha curiosidade ¢ empenhei-me em fa- zer uma revisio da pesquisa ¢ da teoria exis tentes. Ele respeitou minha tenacidade, mas concluiu dizendo: “Quando vocé tiver feito isso, acredito que ira concluir que perdeu tempo”. Vinte ¢ cinco anos depois eu nio acho que tenha perdido meu tempo (em- bora muitas vezes tenha desejado ser mais cuidadoso e devotado em meu trabalho). Eu conclui o livro de 1974 com uma nota de cauteloso otimnismo a respeito da rele- vaincia da ciéncia cognitiva para os servi ¢0s clinicos, Naquele momento, é claro, eu nao sabia que as psicoterapias e as ciéncias cognitivas floresceriam tio abundantemen- te como ocorren nas duas dltimas décadas. E nao tinha idéia de que um dia cu seria 0 autor de respeitosas criticas a algumas te- rapias cognitivas, as quais postulavam que © pensamento é, de alguma maneira, mais poderoso ou central do que a agio ou o sentimento no teatro das experiéncias hu- manas. As vezes, pergunto-me que tipo de terapeuta eu sou— uma questio usualmen- te aprescntada com o pressuposto de que 16 — Michael J. Mahoney ha somente poucas respostas possiveis (comportamental, cognitiva, existencial, humanista, psicodinamica, sistmica ou transpessoal). Espero que eu seja um “bom” terapeuta — alguém que tem como objeti- vo a efetividade com compaixio ¢ sabedo- ria. Sou extremariente consciente do quio pouco eu entendo ¢ do pouco que eu pos- so fazer. As vidas das pessoas a que eu aten- do sio complexas ¢ altamente imprevisi- veis. Existem coisas que elas podem fazer e que fazem diferenca — atividades que enfatizam suas ages, suas personificagdes, seus compromissos com a vida, su por significado e seus relacionamentos (com elas mesmas, com suas emogdes € com as outras pessoas). Eu tento ajudi-las. Este livro, Processos Humanos de Mudanga, representa uma tentativa de or ganizar minha prépria experiéncia de teo- ria, pesquisa ligées praticas relevantes 4 profissio de aconselhamento da vida. Al- gumas das minhas idéias amadureceram bastante desde sua publicacao original em inglés, em 1991. No geral, entretanto, eu sinto que o 4mago deste livre expressa a esséncia das minhas crengas atuais a res- peito da experiéncia humana, do desenvol- vimento humano e das profissdes de ajuda. Eu tenho dito, As vezes, que a Ieitura deste livro pode ser um pouco complexa, talvez por causa de sua grande extensio € pela dificuldade de alguns temas propos- tos para nossa reflexio como terapeutas. Eu nao esperava gastar 10 anos da minha vida escrevendo-o, nao sabia que meu pen- samento e minha escrita iriam levar-me para dentro de diversas areas da investiga- ¢4o humana da experiéncia pessoal. Nem esperava que o projeto “me levasse” tio for- temente a esta produgio. Nos ultimos me- ses em que escrevi este livro (principalmen- te os capiuulos praticos), encontrei-me tra- balhando em pé, ao invés de estar senta- do. Nao sei por qué; talvez fosse o nivel de buscas energia ou necessidade de mover-ine mais livremente como coloquei as palavras no papel. Espero que este livro fale pelo me- nos algo sobre nossas matuas questdes como terapeutas. Até mais do que as ques- tes conceituais ¢ interpretages das evi- déncias pesquisadas, espero que fale de stra prépria experiéncia na nobre bagun¢a de atender iis outras pessoas. E espero que en- coraje muito mais vozes a se juntarem ao coro da compaixio humana. Michael J. Mahoney I INTRODUCAO CONCEITUAL _ECONTEXTO HISTORICO BIBLIOTECA —1— -Mudanca Humana: A Ultima Fronteira Etica Se conhecemos as leis da mudanga, pode- mos nos antecipar a elas € a liberdade de acao se tornaré entio possivel. -1 Ching Embora as tecnologias para a produ- ao de mudangas tenham sido aceleradas substancialmente nos tiltimos séculos, a fascinago com as “leis da mudanga” est em voga ha muito mais tempo do que a hist6ria escrita. Da mesma forma, como re- fletido neste cristal do antigo classico chi- nés, o I Ching, ou o Livro das Mutagées, a nossa fascina¢ao com essas leis possui uma motivagao de ordem pratica. Desejamos, em grande parte, compreender a mudan- ¢a porque desejamos controla ou, pelo menos, estar preparados para o seu impac- to quando ela fugir ao nosso controle. Francis Bacon reuniu os “filésofos naturais” do século XVII em torno de uma simples equaciio que veio se tornar a pedra basilar de toda a ciéncia subseqiiente, pura e apli- cada: conhecimento é poder: 1, de fato — mas desde aquela época aprendemos que existem diferentes tipos de conheci- mento € que pode haver poder na aceita- ¢4o, assim como no controle. Além disso, ha uma importante diferenga entre 0 co- nhecimento pratico € o conceitual, como pode ser demonstrado pelo fato de que “conhecer” as leis do movimento expres- sas no equilibrio de uma bicicleta em mo- vimento nao conta muito quando se tem que realmente “saber como” pedalar uma. DA PUC-MG Abusos de poder sio igualmente fa- ceis de serem demonstrados, particular- mente no nosso préprio século. Nenhuma crianga do século XXI sera, por exemplo, poupada das conseqiiéncias do pod clear desenvolvido em nossa era (New- comb, 1989). Pela primeira vez, na hist6- ria da humanidade, a lamentavel e real ameaca de autodestrui¢ao do planeta tem se tornado um elemento da existéncia quo- tidiana.! Os muitos progressos inspiradores das ciéncias da vida permanecem a som- bra desta ameaca € as esperangas que abri- gamos para as geragGes que se seguirao a nés nunca terao sido tao claramente anco- radas na urgente necessidade de mudanga humana. Tal mudanga envolve novas ma- neiras de nos relacionarmos uns com os outros, conosco mesmo € com nosso pla- neta, assim como novas maneiras de resol- ver 0s conflitos humanos (muitos dos quais centrados no poder). A menos e até que o nosso desenvolvimento moral torne-se su- ficiente para contrabalangar nosso conhe- cimento e poder com sabedoria e respon sabilidade, todos os outros desenvolvimen- tos potenciais permanecerao em perigo. Este é um livro a respeito da mudan- ahumana e especificamente a respeito dos tipos de mudanga usualmente vista no con- texto psicoterpico e nos projetos de “auto- desenvolvimento”. Esses tipos de mudanga esto, acredito, diretamente relacionados a questées bombisticas, tais como a paz mundial. Os principios e processos da mu danga psicolégica humana nao sio diferen- tes dentro ou fora da psicoterapia; ¢ as de- mandas da vida, embora individualmente experienciadas, sio, em altima instancia, universais em alguns niveis. Além disso, mnuiitas das questdes que constituem as prin- cipais preocupagées do cliente em psico- terapia sio idénticas Aquelas que se encon- tram no Amago de todas as relagdes huma- nas — questes acerca do poder, por exem- nu- 20 — Michael ). Mahoney plo, assim como a luta na busca dos signifi- cados, a redugio do sofrimento ea de pos- suir suficiente paz ¢ seguran¢a para que se possa ter uma ampla oportunidade de re- creagio e desenvolvimento. Finalmente, \acredito que as profissdes de ajuda devem lenfocar as questdes que liguem as nossas vidas individuais ¢ as nossas responsal udades coletivas. A protecio € o desenvolvi- mento das culturas ¢ sociedades que arcam com a promessa pelos direitos humanos € pela paz mundial estéo totalmente enrai- zadas na conduta humana individual e na qualidade das nossas vidas quotidianas “em casa € na intimidade pessoal”. Em outras palavras, a mudanca pessoal reside no bojo da mudanga colctiva e as interagdes entre os individuos ¢ seus mundos sio recipro- camente complexas. Mudangas em um de- sencadeario mudangas no outro, mesmo quando as pessoas envolvidas esto relati- vamente inconscientes ou aparentemente nao interessadas nas esferas mais amplas que influenciam. AUTO-ENFOQUE E RESPONSABILIDADE SOCIAL Fumros relatos acerca da atividade humana vislumbrando retrospectivamente © século XX provavelmente apontarao que muito mais do que “os tempos” estavam mudando as pessoas também estavam mu- dando, uma a uma e coletivamente. Hou- vesse qualquer diwvida a respeito da subs- tancial capacidade de mudanca psicolégi- ca dos seres humanos, os eventos deste sé- culo ofereceriam o seu amplo e diversifi- cado testemunho em contrario. Ein ne- nhum outro periodo da historia tantos as pectos da experiéncia humana foram tao dramaticamente alterados. Nés “moderna- mente” experienciamos a nés proprios € ao nosso mundo de maneiras muito dife- rentes daquelas dos nossos ancestrais. Mui- tas dessas mudangas envolveram vigorosas afirmagées dos direitos humanos basicos. O movimento pelos direitos humanos, por exemplo, foi ele préprio expresso em su- fragio, os direitos civis, das mulheres, dos cidadaos idosos ¢ os movimentos de prote- do a crianga, assim como as revolugées sexual € nas comunicagdes. O movimento do “potencial humano” ajudou a ligar os direitos as responsabilidades e encorajou “a continua prospeccio das possibilidades humanas. Qualquer que seja 0 seu legado, o século XX sera lembrado como uma era de dramaticas mudangas pessoais ¢ plane tarias. Em alguns niveis, é claro, estamos todos procurando — ¢ alcangando — al- guma forma de mudanga a cada momento de nossas vidas. Seja a transicao da inspira~ cao para a expiracao, ou de um pensamen- to para outro, estamos cada um constante- mente engajados nos movimentos dinami- cos de uma vida em processo. No nivel bio- logico, um equilibrio mével de transforma- ao € troca é inerente a toda a manuten- Gao da vida. Nés estamos permanentemen- te nos “ajustando” as demandas por mudan- ¢as de cada micromomento, demandas es- sas que se transforinam de acordo com 0 fluxo dos nossos mundos e com os nossos infinitos ajustamentes aos nossos préprios ajustes. Além disso — embora a sua conti- nuidade organizacional seja mantida — a construgao das células em nossos organis- mos é totalmente “renovada” (fisicamente reconstituida) muitas vezes no periodo de uma vida (Rose, 1988). E, de fato, a nossa capacidade para manter 0 infinito proces- so de auto-renovagao o que nos forca a li- dar, em Gltima instancia, com a morte (Becker, 1973). No nivel psicolégico, nossa perene busca pela mudanga é também facilmente visivel. O cliente de psicotcrapia € aquele que procura 0 desenvolvimento pessoal podem ser os exemplos mais ébvios, mas ha mais mudanga em nossas vidas do que muitas pessoas poderiam imaginar. Pesqui- sas acerca das fantasias ¢ do sonharacor- dado, por exemple, indicam que os nossos “segmentos de pensamento” — as infinda- veis mudangas no foco dos nossos “fluxos de consciéncia” — possuem uma duracio freqiientemente nao maior do que 10 se- gundos. Gastamos uma vasta porgio do nosso tempo acordados, inconscientemen- te absortos na mudanga de padrées da nos- sa experiéncia privada (Csikszentmihalyi & Csikszentmihalyi, 1988; Klinger, 1971, 1977; Pope, 1985; Pope & Singer, 1978; Singer, 1966; Singer & Pope, 1978). Toda- via, em meio a esse fluxo, ha uma inegavel continuidade e estabilidade. Os processog; de mudan¢a sio de alguma forma inseparé4} veis e também essenciais para os processos| de preservagio da ordem que nos permi tem funcionar da maneira que o fazemos. Em outras palavras, nado podemos falar so bre os processos humanos de mudanca sem ! simultancamente nos remetermos aos pro- cessos de estabilizagio humana. Conforme”™ veremos, muitos dos grandes debates na cologia tém lidado apenas parcialmente com 0 reconhecimento dessa complemen- taridade. Ainda que o nosso interesse resida mais na mudanga ou estabilizacao psicol6- gica, ele cnvolve wma incvitavel ampliagao do auto-estudo. Embora o auto-enfoque psicolégico possa nao ser universal, ele cla- ramente transformou-se numa das carac- teristicas cardinais da humanidade do sé- culo XX. Vivendo no ambiente de maior complexidade e mutabilidade na histéria do planeta, nés, humanos, exibimos uma crescente fascinagio conosco mesmos, pela nossa autoconsciéncia ¢ pela consciéncia da nossa consciéncia. Conforme sera ex- plorado no préximo capitulo, um certo Processos humanos de mudanca— 21 tanto desse interesse reflexivo emergiu a partir dos desenvolvimentos filos6ficos da hermenéutica (0 estudo da interpretacao), da fenomenologia (o estudo acerca da ex- periéncia) e dos movimentos pésestratu- ralistas ¢ desconstrucionistas. Ainda outras expresses do “batt interno” do questiona- mento humano ocorreram a partir das ciéncias, assim como dos estudos sobre a propria ciéncia. Pesquisas sobre o “lado subjetivo da ciéncia”, por exemplo, tém de- monstrado que os processos psicolégicos impregnam toda investigago humana. Da mesma forma, tais processos estio, eles pré- prios, imersos nos contextos sociais e cul- turais (Gholson et a/., 1989; Knorr-Cetina, 1981; Knorr-Cetina & Mulkay, 1983; Latour & Woogar, 1979; Mahoney, 1976, 1979a, 1987, 1989a; Mitroff, 1974; Woolgar, 1988). Daastrofisica 4 mecénica quantica, os cien- tistas t@m cada vez mais se deparado com 0 fato deles mesmos se constituirem em “va- ridveis” ou “fatores” presentes em suas pro- prias pesquisas. O astrénomo co microbio- logista dificilmente podem perceber seus préprios reflexos nas lentes dos seus res- pectivos instrumentos, mas as confronta- es consigo mesmos € com os humildes limites do conhecimento humano tém sido questées freqiientes em todas as ciéncias. Mas além dos cientistas, filésofos ¢ psicélogos que encontram a si mesmos em seus estudos € priticas, o auto-cnfoque do século XX tem enyolvido um grande ni mero de pessoas em todas as fronteiras da vida: elas igualmente tornaram-se absortas nos teares de suas mentes individuais (e, até certo ponto, coletivas). De fato, o inte- resse na autodescoberta e no desenvolvi- mento pessoal tornouse tio forte € disse- minado que acabou por eliciar fortes criti- cas da parte de alguns comentadores so- ciais (Bellah et al, 1985, 1987; Caporael et al., 1989; Doi, 1985; Glasser, 1972; Kolbenschlag, 1988; Lowen, 1983; Selig- 22 — Michael J, Mahoney man, 1989; Yankelovich, 1981). Lamentan- do a autopreocupagio da “geracio en” eo movimento do potencial humano, tais cri- ticos tém argumentado que a nossa “obses- so” com 0 eu pode muito bem constituir- se no mais desastroso fenémeno do sécu- lo. The Culture of Narcisism (A Cultura do Narcisismo), por exemplo, Christopher Lasch oferece-nos uma repreensio exem- plar: © crescente desespero de uma socieda- de em mutacio, mesmo a sua compre- ensio... oculta a veneracio da expansio da consciéncia, da saiide ¢ do “cresci- mento” pessoal tio em voga nos dias de hoje. Depois dos distiirbios politicos dos anos 60, os americanos tém-se yoltado para as preocupagdes puramente pessoais. Nao tendo nenhuma esperanga na melhoria de suas vidas em nenhum dos sentidos importantes, as pessoas conven- ceram-se a si mesmas de que o que im- porta 6a automelhora psiquica: estar em Contato com os préprios sentiments, co- mer comida saudavel, tomar licdes de balé ow danga do ventre, submergir a préprios na sabedoria do oriente, prati- car Cooper, aprender a “relacionarse”, superar 0 “medo do prazer”. (1979, p. 29) Lasch afirma que essa paixdo pela nossa experiéncia pessoal tem produzido muito pouca autocompreensio genuina. Como outros criticos, ele nos previne con- tra os perigos da preocupacio cgoista ¢ da sobrevivéncia privada, ambos scndo retra- tados comoextremamente desfavoraveis a0 envolvimento social ¢ 4 responsabilidade civil. A despeito dessas criticas, entretanto, nossas livrarias ¢ supermercados esto re- pletos de manuais sobre como sabermos mais, sermos melhores ¢ nos alimentarmos mais adequadamente. Embora eu compartilhe da idéia de alguns observadores a respeito de uma possivel erosao dos valores “mais tradicio- nais” — por exemplo, a importincia da fa- milia e do género humano — eu nio acre- dito que 0 nosso crescente auto-enfoque seja “ruim pay 2, ari- amente incompativel com a sensibilidade € © engajamento social. Ao invés disso, como Sécrates, acredito que “a vida nao refletida nao vale a pena ser vivida”, e, ao mesmo tempo, que “a vida no vivida nao vale a pena scr objeto de reflexio” (Kopp, 1978, p. 72). As nossas tentativas para me- Ihor compreender ¢ cuidar de nés prépri- os sao basicamente atividades validas e sau- daveis, mas estamos bem aconselhados para apreciar as diferengas entre “conhecer” ¢ “ser € nos tornarmos” nés mesmos. Criticos da psicoterapia, do auto-es- tudo e de outras tentativas de autodesen- volvimento sao freqientemente notdérios por reivindicar que tais esforgos carecem tanto de embasamento cientifico quanto de um cuidado genuino. Mais do que isso, tais criticos amiide retratam o moderno peregrino psicolégico como um neuréti- co lamurioso unicamente preocupado com interesses egoistas. A sua bem-redigida re- torica raramente reflete muita compaixao pela dor e pela luta da pessoa em proces- so. Considero tal retrato ofensivo e aviltante aos muitos individuos para os quais 0 auto- exame (para ndo mencionar a psicote- rapia) é uma aventura corajosa ¢ louvavel. Conforme irei me referir nos capitulos que vém a seguir, 0 nosso relacionamento conosco mesmos — ou seja, 0 nosso eter- namente imperfeito autoconhecimento, auto-avaliagiio ¢ autocuidado ativo —emer- ge das ¢ influencia todas as outras rela- es em nossas vidas, especialmente aque- Jas que consideramos intimas. Dessa forma, concordo com a observacio de Kopp de que “todas as batalhas significativas té¢m Jugar no intimo da ser” (1972, p. 224). Eu adicionaria, entretanto, que o dominio do ewe adinamica do assumir ou abandonar essas batalhas esto, eles mesmos, envolvi- dos pelos fundamentos sociais ¢ culturais (Batson, 1990; Hui & Villareal, 1989). O que eu estou sustentando aqui é que 0 autocuidado ¢ a responsabilidade social nao se constituem em dominios se- parados. Mais do que isso, ambos esto imbuidos em complexidades éticas. Con- forme Donald T. Campbell apropriada- mente observou em sua missiva presiden- cial 4 Associagao Psicolégica Americana, em 1975, nao podemos nos dar ao Inxo de ignorar a sabedoria inerente a muitas de nossas tradi¢des culturais ¢ sociais. Ao mes- mo tempo, entretanto, devemos estar pron- tos para assumir os riscos que nos levario para além dos dogmas desumanizantes destruidores. Embora largos passos tenham sido dados para a reducao do racismo, se- xismo e outras ignominias aos direitos hu- manos, 0 preconceito ¢ a opressio so ain- da amplamente comuns (Eliou, 1988; Kolodny, 1988; Komada, 1988; Longino, 1988; Prilleltensky, 1989; Ragins & Sunds- trom, 1989; Rokeach & Ball-Rokeach, 1989; Russo, 1990; Sutherland, 1988). Tanto em nivel individual quanto coletivo, algumas importantes batalhas tm sido vencidas, mas o fim da guerra ainda esta inuito dis- tante. Esta Gltima afirmacio é, de fato, ilustrativa da distancia que ainda temos a percorrer: nossa linguagem esta ainda car- regada com metaforas de conflitos e guer- ras num momento em que estamos em extrema necessidade de uma retérica que conduza solidariedade e a paz. Para resumir, 0 nosso crescente auto- enfoque nao é, na minha opinido, um fe- némeno lamentavel que reflete a erosio dos valores sociais e dos comprometimen- Processos humanos de mudanga— 23 tos interpessoais. Nao nego, por outro lado, a urgéncia das questées com as quais nos deparamos quando equilibramos os nossos anseios pessoais com as nossas responsabi- Jidades coletivas. Os direitos humanos, o bemrestar pessoal ¢ a coexisténcia pacifica estao, cada um, imiscuidos tanto no nivel individual quanto nos contextos maiores: O eu € 0 ew apenas porque tem um mundo, um universo estruturado, a0 qual pertence ¢ do qual esta simultanea- mente separado. O eu e © mundo esto correlacionados e assim so a individua- lizacao ¢ a participacio... A coragem de ser é, essencialmente, sempre a coragem de ser como uma parte € a coragem de ser um todo, em interdependéncia. Aseparacio nao é um alijamento, o auto- centramento nao é egoismo, a antode- terminacao nao é pecaminosa. (Tillich, 1952, p. 87-88) E tempo, portanto, de pararmos de “nos estarrecer de indignagao moral a cada palavra cuja silaba ‘auto’ faca prefixo” (p. 87). Somos ambos parte € todo; e, como Chris Williamson (1975) comoventemente nos lembra, somos simultaneamente “os transformadores ¢ os transformados”. A despeito de alguns ocasionais la- mentos na dire¢io contriria, somos tam- bém agentes ativos e responsaveis nos de- senvolvimentos que caracterizam tanto a nossa pessoa quanto o nosso planeta. O que fazemos é necessariamente um reflexo dos nossos valores; e esses ailtimos, por sua vez, freqitentemente constituem-se numa hur milde licgio acerca da autoconsciéncia. Acredito que os tipos de mudangas que estamos procurando — direitos humanos, paz pessoal ¢ planetaria, a reducio do so- "N. de T.: No original, em inglés, self 24 — Michael J. Mahoney frimento — sio, clas préprias, um reflexo das dramaticas mudangas na nossa visio de nés mesmose acerca de nossos mundos (ca- pitulo 2). Igualmente acredito que a psicoterapia € os projetos de desenvolvi- mento pessoal possuem win grande valor potencial para o nosso tempo ¢ 0 dos nos- sos descendentes. Em nossa intima e amit de dolorosa busca pela mudanga, todos os seres humanos participam num projeto que alcanga muito além das fronteiras de nos- sas vidas individuais. & para essas vidas e para esses projetos que eu escrevo este livro. QUESTOES BASICAS A RESPEITO DA MUDANCA HUMANA ‘As questdes fundamentais que nor- teiam todas as indagagées acerca da mu danga humana caem em duas grandes € coincidentes familias: questes sobre a na- tureza das mudangas cm geral ¢ aquelas a respeito dos principios ¢ processos da mu- danca humana em particular. Lidarei ape- nas brevemente com a primeira; a altima dedicarei o restante deste livro. Anatureza da mudanga O conceito de mudanga é tio funda- mental € penetrante no pensamento mo- demo que fregiientemente escapa-nos ao escrutinio. Casualmente falamos a respei- to de mudar nossas roupas, trocar as lam- padas, mudangas no tempo € nas mentes — todas essas declaragdcs compartilhando do mesmo termo, mas divergindo conside- ravelmente quanto aos significados deseja- dos. Freqitentemente falamos acerca da mudanga como se houvesse muito pouco aser explicado ou compreendido. Confor- Me veremos, entretanto, a nossa concei- tualizacio de mudanga nunca foi tio im- portante para a coinpreensao e condugio da ciéncia. A recente intensificagio no in- teresse pelo estudo da ordem, do caos ¢ da complexidade em todas as ciéncias é testemunho da importancia dessas idéias (ver Apéndice E). Estamos apenas come- ¢ando a avaliar a complexidade e a dina- mica dos processos de mudanga mesmo no inais simples dos “sistemas abertos”, sendo que as nossas engenhosas tecnologias para a produgio da mudanga humana nunca ahtes pareccram tio significativamente in- génuas ¢ bipersimplificadoras. Os mais remotos registros escritos acerca da natureza da mudanga estio dispersos a0 longo de varios séculos no primciro milénio a.C, Na civilizagao oci- dental, os escritos mais fundamentais foram os de dois filésofos gregos pré-socraticos. Parménides (aprox. 510-450 a.C.) talvez seja mais bem-conhecido por sua afirma- ¢a0 de que nao existe nenhuma mudanca (nem em nés nem no universo). Ele su: tentou que toda mudanga é uma ilusio ocultando a natureza fundamentalmente atemporal, permanente ¢ estatica (fixa) da realidade. Esta visio foi oposta Aquela pro- posta por um seu contemporaneo, Hera- clito (aprox. 535-475 a.C.), que argumen- tou que a estabilidade e a permanéncia é que se constituem numa ilnsiio ¢ que nada existe que nao seja a mudanca (novamen- te, em nés € no Universo como um todo). Foi Heraclito quem propés © paradoxo de que “no é possivel banharse no mesmo rio duas vezes”: « raziio para isso € que tan- to 0 individuo quanto 0 rio terao se ans- formado ao longo do tempo, desde a pri- meira vez que tenham se encontrado. De acordo com Heraclito, “tdo é fluxo”. Foi ele o primeiro pensador ocidental a suge- rir a primazia de forcas opostas ou tensies essenciais que concorrem para a gerago e para a manutengo de uma estabilidade dinamica, Heraclito comparou esta “uni- dade dos opostos” com a sintonia das ten- s6es no arco € na lira, Esta idéia, que en- to prevalecia no pensamento oriental, encontraria mais tarde expressio na dialética de Hegel, nas tcorias da equilibra- ¢4o (balango) dinamico desenvolvidas por Johann Herbart ¢ Jean Piaget ¢ nas millti- plas teorias dos “processos opostos” na bio- logia, na percepcao ¢ na motiva¢Zo huma- na. Para além da propria oposi légica, Parménides e Eeraclito sio noté- rios pela sua afirmagao conjunta de que a experiéncia quotidiana — especialmente aquela revelada pelos sentidos— nao é um reflexo acurado da realidade. Esta necessi- dade em desconfiar dos sentidos ja havia sido proposta por Pitagoras (570-500 a.C.), sendo posteriormente elaborada por Platao (427-347 a.C.) e seus discipulos (ver capi- tulo 2). Enquanto isso, todavia, a mesma idéia geral h4 muito ja havia sido formali- zada pelos escritores orientais. De acordo com eles, as experiéncias corporais ¢ da “mente exterior” (incluindo os scntidos) sio inferiores e ilusrias quando compara- das Aquelas reflexées “interiores” mais re- finadas (¢ espirituais). O mais recente € influente trabalho oriental a respeito da natureza da mudanga foi o I Ching (ou o Livro das Mutagées), que é um dos classi- cos do pensamento confuciano, configu- rando-se numa expresso central dos siste- mas religiosos taoista ¢ budista. Contase que a esséncia do I Ching foi descoberta sobre o dorso de uma tartaruga pelo len- dario imperador Fu Hsi (24° século a.C.), mas imagina-se que o livro tenha sido es- crito muito mais tarde. E, de fato, possivel que a perspectiva dinamica das “tensées opostas” desenvolvida por Heraclito possa ter'sido um reflexo desta concepgio bem anterior de que nada é estitico e duas for- ¢as opostas e complementares (0 passivo Processos humanos de mudanga— 25 yin € © ativo yang) criam a dinamica e 0 desenvolvimento do todo (0 Tao). Essas antigas indaga¢ées acerca da natureza fundamental da mudanga sio par ticularmente valiosas em fungio do reco- nhecimento de que o contraste ¢ a oposi- Gao sio consideragées centrais. Os filéso- fos orientais ¢ os europeus posteriores que conduziram essa compreensio a diregdes opostas (ver capitulo 2) apenas corrobo- ram a sua asser¢ao basica. Aristételes, por exemplo, basearia a sua influente teoria sobre a légica na necessidade de autocon- sisténcia, enquanto pensadores orientais posteriores admitiriam a centralidade do paradoxo e da (aparente) autocontradicao como parte da natureza do conhecimento esclarecido. Uma segunda concepgao re- lacionada a essas antigas divergéncias de pensamento foi o reconhecimento de que mudanga ¢ estabilidade. sio conceitos .co- dependentes: um nio pode ser discutido seM © outro; sao totalmente relacionados um ao outro. Dessa forma, no se pode es- perarcompreender os processos de mudan- ¢a psicolégica no ser humano sem simulta neamente remetermo-nos aos processos de estabilizagao. Orden ¢ desordem sa’o man- lidas ¢ wansformadas pelos mesmos prin-| cipios dinamicos. Principios e processos da mudanga humana ‘Trés questées fundamentais residem no Amago de tudo 0 que conhecemos por psicoterapia, aconselhamento ¢ cducacio: Os seres humanos podem mudar? . Os seres humanos podem ajudar outros seres humanos a mudarem? 3. Algumas formas de ajuda sio melho- res do que ontras? wr 26— Michael J. Mahoney As diversas respostas a estas questdes, a partir de teorias cientificas ¢ pesquisas, constituem o tema central deste livro. A terceira questio — 0 ponto a respeito de se ha forma melhor de ajuda — pressupde uma resposta positiva as duas primeiras. E qualquer resposta afirmativa a todas as trés (nao importando o quo prudente no tom) necessariamente convida-nos a questdes adicionais: por exemplo, ao inserirmos os pronomes como ou por que ao inicio das perguntas principais, a0 questionarmos os limites ¢ 0 tipos de mudanga, ao pergun- tarmos como a mudanga é experienciada ¢, em tiltima instincia, ao ponderarmos a respeito das implicagées praticas das nos- sas indagagdes (0 que deveriamos fazer acerca da criacao dos filhos, da educacao, da psicoterapia e da formagio profissio- nal?). Essas questées tém impregnado as batalhas ideolégicas entre as varias escolas de pensamento na psicologia. A primeira questio, por exemplo, é tecnicamente co- nhecida como a questio da plasticidade humana ou a capacidade do ser humano em mudar, Antes do recente trabalho que demonstrou a consideravel flexibilidade entre os idosos, a hipétese do fanil era uma representagio amplamente aceita do rela- cionamento entre a idade ¢ a flexibilidade psicolégica ao longo da vida. A Figura 1.1 apresentanos uma representagio grafica do inexoravel estreitamento da plasticidade previamente imaginada como sendo asso- ciada ao tempo e 4 experiéncia. De acor- do com esta visio, viver, aprender ¢ enve- Thecer envolve uma inevitavel contracao das possibilidades ao longo da linha de vida. Nos agora sabemos que a teoria do funil é um presungoso insulto 4 longevida- de potencial do desenvolvimento psicolé- gico dos seres humanos (Alexander & Langer, 1989; Baltes, 1987; Bandura, 1982; Brandtstadter, 1989; Buhler, 1935; Dacey, 1989; Frenkel, 1936; Hareven & Masaoka, 1988; Heckhausen e¢ al, 1989; Honzik, 1984; Hooper & Moulins, 1989; Klicg, Smith & Baltes, 1989; Lerner, 1984; Levinson, 1986; Neugarten, 1977; Piolat, 1988; Purves, 1988; Woodruff-Pak, 1989). Figura 1.1 - Teor 3 a § g i Tempo > Fonte: ©1989 M. J. Mahoney Duas outras respostas 4 questio de quanta mudanga é possivel ofereceram mais conceitualizagdes divergentes acerca da plasticidade humana. Nos primérdios do behaviorismo radical, uma habilidosa ¢ ! poderosa “engenharia ambiental” poderia exibir um “controle de comportamento” \/ virtualmente infinito sobre um organismo [is todos os pontos da sua “historia de reforcamento”. Dai a infame arrogancia de John B. Watson a respeito da maleabilidade do comportamento humano: Déem-me uma diizia de bebés saudaveis, bem-formados e meu proprio mundo particular para crié-los e eu garanto que poderei tomar qualquer uin deles alea- toriamente e treiné-lo para que se torne qualquer tipo de especialista que eu se- lecionar — médico, advogado, artista, ca- pitdo de indiistria e, sim, mesmo um mendigo ou ladrio, independentemen- te dos seus talentos, propensées, tendén- cias, habilidades, vocagdes ou a raga dos seus ancestrais. (1924, p. 104) Conforme discutirei no capitulo 3, 0 / declinio do behaviorismo radical pode mui- * to bem ter sido acelerado em fungao de afirmagées generalizantes e prontamente desmentidas como essas. Outra bem-conhecida resposta 4 questo da plasticidade humana foi ofere- cida pelos psicanalistas ortodoxos. De acor- do com Freud, os seres humanos sio mais psicologicamente maleavcis durante os seis primeiros anos de vida, ¢, em menor gran, durante a adolescéncia. Para a maior par- te, entretanto, ele acreditava que os pa- drées de personalidade eram formados basicamente pelas experiéncias do inicio do desenvolvimento psicossexual e que a dramatica mndanga na personalidade do adulto é muito rara. As visdes contrastantes do behaviorismo radical ¢ da psicandlise ortodoxa sio ilustradas na Figura 1.2. Em recentes pesquisas envolvendo behavio- ristas e psicanalistas, tais diferentes pressu- Processos humanos de mudanca— 27 posicées acerca da plasticidade foram re- fletidas nas diferentes opinides a respeito da dificuldade da mudanga do ser huma- no. Como podemos perceber, a questio da plasticidade humana é muito mais com- plexa do que as considerages anteriores siio capazes de reconhecer. De fato, moder- nos estudos a respeito da plasticidade bu- mana vao bem além das simplificadoras ¢ tradicionais questdes acerca de se a mudan- ¢a é ow nao possivel. Outros pontos mais interessantes tém emergido: 0 que muda quando uma pessoa muda? Quais sio as formas de mudanga? Quais sio os proces- sos ¢ 0s padrées basicos? Quais so os prin- cipios gerais da mudanga? E 0 que poderia e deveria ser feito com o refinado conheci- mento obtido a partir de todos 0s topicos anteriores? Para a maior parte, essas ques- t6es mais avancadas emergiram de um cres- cente consenso de que a plasticidade hu- mana é formidével, embora finita: Os seres humanos nao sao feitos nem do vid ro que se quebra ao toque da mais suave das brisas e nem do ago que desa- fiadoramente permanece, mesino face ao mais devastador dos furacées. Ao in- ura 1,2 - A Plasti lade Humana conforme Vista pelo Behaviorismo Radical e pela Psicandlise Ortodoxa Plasti- cidade Baixa, Behaviorismo ortodoxo, (radical) Teoria psicanalitica ortodoxa ° 70 20 ‘30 40 Fonte: ©1989 M, J. Mahoney ‘50 70 ‘0 ‘Tempo em anos 28 — Michael J. Mahoney vés disso... os seres humanos... curvam- se ante as presses do ambiente, reto- mam suas formas quando as pressées so aliviadas, na sendo facilmente deforma- dos em fungao de experiéncias transit- rias, Quando ambientes ruins sio me- Ihorados, a adaptacao das pessoas me- thora. Os seres humanos sio resistentes € sensiveis as vantagens que os scus am- Dientes proporcionam. Mesmo os adul- tos so capazes de se adaptarem melhor pela aprendizagem, embora toda melho- ra individual dependa da propria respon- sividade as oportunidades de aprendiza- do. (Scary, 1982, p. 853) Este ponto de vista enfatiza conside- ravelmente as capacidades ¢ a diligéncia dos individuos, que niio apenas sobrevivem, mas, igualmente, selecionam e transfor mam o ambiente fisico c social que formam © seu meio de intercimbio. Igualmente relevantes aqui sio os pontos técnicos (ver capitulo 6 ¢ Apéndice F) sobre o fenémeno da longevidade pue- ril®, que pode ser vagamente definido como a perene flexibilidade e resisténcia infantis. De fato, as habilidades humanas para sobreviver e para crescer esto ineren- temente relacionadas 4 nossa flexibilidade no desenvolvimento. No curso da evolugio humana, “adquirimos” tal flexibilidade ao preco de uma extensiva e duradoura sens bilidade as dimensées cultural ¢ social dos nossos mundos. A evolu¢io cultural ¢ a transmissio das crengas (tacitas) e habili- dades ao longo das goragées possuin mui- to maior significagdo para o desenvolvi- *N, de T:: No original, em inglés, neoteny. Refere- se a retengio de caracteristicas imauiras durante a idade adulta (cf. Webster’s Encyclopedic Dictionay), Ver também pagina 397. mento humano do que todas as mudangas genéticas que levaram 0 corpo humano até © ponto em que conhecemos hoje. Este ponto é ainda mais dramaticamente ilus- trado pelos estudos do desenvolvimento psicolégico inicial no contexto do cuidador primério (ver capitulo 7), 0 qual, por sua vez, enfatiza a importincia da segunda e da ter- ceira questées sobre mudanga humana. MUDANDO A VISAO A RESPEITO DA MUDANCA HUMANA A visio dos psicélogos acerca da mudanga humana esta, ela propria, em pro- cesso de transformagio. Tais mudangas sao, acredito, parte de uma alteragdo ainda maior e mais profunda nas ciéncias ¢ nas humanidades, Conforme discutirei no ca- pitulo 2, estamos em meio a wn periodo nuclear na hist6ria das idéias € as diregdes que tomarmos (ou falharmos em tomar) hos préximos anos possuirdo especial sig- nificagio para a qualidade de vida de mui- las geragdes vindouras que a desfrutario ou que, em funcao dela, a sofrerao. No dominio mais circunscrito da psicoterapia ¢ das tcorias do desenvolvimento psicolé- gico, algumas dessas transformagées sio prontamnente visiveis. A orientacio teérica dos psicélogos americanos tem, por exem- plo, mudado dramaticamente ao longo das ‘iltimas trés décadas. A Figura 1.3 resume os resultados de 15 pesquisas publicadas cn- tre 1953 e 19882 O aparente declinio das perspectivas psicodindmicas é digno de nota (Reiser, 1989), assim como a grande flutuacao na popularidade das perspectivas ecléticas ¢ © recente aparecimento das psicoterapias cognitivistas. Existem muitas interpretages possiveis a esses dados, é claro; mas a sua variabilidade sugere que a mais contunden- te evidéncia da mudan¢a humana pode Processos humanos de mudanga— 29 Figura 1.3 - Orientagao Teérica Primaria dos Psicélogos Clinicos Americanos % dos psicélogos da amostra Pe 60 (B) Comportamentais 2 (H) Humanistas oN (©) Cognitivistas (E) Ecléticos / —— \ &) Sistmicos 1955 1960 1965 1970 1975 1980 1985 Fonte: ©1989 M. J. Mahoncy Figura 1.4 - Dificuldade de Mudanca Estimada por Psicélogos Clinicos americanos de Diferentes Orientacdes Tedricas % de concordancia 1° Fonte: ©1989 M. J. Mahoney 30 — Michael J. Mahoney advir dos trabalhos dos profissionais agen- tes de mudanga. Este ponto é corroborado pelos re- sultados de uma recente pesquisa sobre a visio dos psicélogos sobre os principios ba sicos do desenvolvimento humano eas pra- ticas ideais em psicoterapia (Mahoney et al, 1989). Debates a respeito da relativa efetividade das varias psicoterapias tém tra- dicionalmente sublinhado as diferengas entre elas, mas os resultados deste estudo. sugerem areas substanciais de concordan- cia entre as orientagées tedricas. Os behavioristas realmente colocaram-se & parte dos otitros clinicos ao considerarem a mudanga menos dificil do que os seus colegas néo-bchavioristas (Figura 1.4). Em uma interessante exce¢io a este padrao, os behavioristas que reportaram ter, eles pré- prios, estado em terapia, foram menos en- faticos a respeito da facilidade em se alcan- car mudangas pessoais significativas. Igual- mente interessante foi a forte concordan- cia entre as orientagées teéricas de que % de concordancia!°° 90 80 7 73. 70 60 50 PA B Fonte: ©1989 M. J. Mahoney igura 1.5 - Incidéncia de Percep¢io de Novas Atividades Exploratérias no Desenvolvimento Psicolégico 79 ; cs ul HE: EC c % de concordancia 90 80 70 50 aol Fonte: ©1989 M. J. Mahoney Figura 1.6 - Percep¢ao da Mudanga no Sistema do Self no Desenvolvimento Psicolégico Processos humanos de mudan¢a~ 31 Figura 1.7 - Percepgao da Importancia do Auto-Exame ace] na Psicoterapia mais Favoravel concordancia 20] eo e 70 60 so PA S HE EC c Fonte: ©1989 M. J. Mahoney uma tal mudanga geralmente envolve a exploracio ativa de novas experiéncias da parte do individuo em transformacio (Ki- gura 1.5), A despeito das suas aprendiza- gens teéricas, os terapeutas também con- cordaram que desenvolvimento ps gico envolve mudangas no sistema do self (Figura 1.6) e que tais mudangas sao fac tadas por um relacionamento humano se- guro e afetivo. Finalmente, houve forte concordancia de que a psicoterapi favoravel é aquela que encoraja 0 auto-exa- me (Figura 1.7). Quaisquer que sejam as nuances de significado que poderiam ser atribuidas a essas ilustragées, parece claro que muito mais do que os tempos esto mudando. Da mesma maneira que os seres humanos que tentam compreender, os psicélogos tam bém exibem uma substancial capacidade para a mudanca, Para os psicoterapeutas, é claro, esta reflexividade esta ainda para ser mais ampliada. Como os agentes sociais legitimados de mudanga, os psicotera- peutas arcam com os privilégios e respon sabilidades Gnicos em sua atuagao do pa pel profissional. Uma das teses centrais deste livro é a de que as nossas aspiragées profissionais no reino da ajuda humana e colé- mais 0s nossos esforgos para facilitar 0 desen- volvimento daqueles aos quais servimos sio inseparaveis das nossas suposicées quanto aos processos de mudanga humana. Uma vez que muitos desies pressupostos estio profundamente enraizados nas nossas his torias pessoal, cultural e familiar, € impor tante que continuemos a examinar e a ex- pandir a nossa consciéncia de todos esses trés fatores. RESPONDENDO QUESTOES BASICAS A RESPEITO DA MUDANCA HUMANA Ao longo deste livro, é dada uma maior énfase na qualidade ¢ na continui- dade das nossas buscas € questionamentos do que em quaisquer conclusées concre tas ou respostas simples. Ainda, a teoria ea pesquisa que daqui por diante contempla- rei colhera um qualificado, sim, em respos- taa cada uma das questées basicas. Os seres humanos podem mudar? Sim, os seres humanos podem — mas fazé-lo é muito mais dificil do que muitas te- 32— Michael J. Mahoney orias possam admitir. Isto é, de fato, um dos pontos mais importantes de convergéncia entre as escolas contempordneas de pensa- mento ein psicoterapia. Mudangas psicol6- | gicas significativas raramente sio rapidas ou faceis. Existem igualmente limites de quanto quao rapido um individuo pode mudar sem arriscara sua integridade psicologica (ouscja, © senso de si préprio e da realidade). O que Proce; denomino processos centais — aqueles en 585 cae ¢ volvidos na experiéncia pessoal de realidade ‘(ordem), self (identidade), valor (valéncia) € poder (controle) — sio muito mais resis- tentes & mudanga do que o sio muitos dos aspectos periféricos da pessoa. O sistema do self, por exemplo, é central para todos os as- pectos da experiéncia individual, sendo, po- rém, particularmente resistente a mudangas rapidas € dramaticas. Tal resisténcia no é, entretanto, uma inimiga ou um obsticulo ao empreendimento terapéutico. Em contraste aos modelos negativos de resisténcia, argu- mento a favor de uma teoria da resisténcia Para a autoprotegao, na qual os processos associados & relutancia 4 mudanga sio mos- trados como refletindo a importincia capi- tal da coeréncia pessoal (integridade sistémica) nos sistemas vivos. E natural e, de fato, saudavel para um individuo resistir se mover muito rapidamente e para muito lon- ge do sen sentido familiar de self (até mes- mo quando o sentido do selfé doloroso). Quando esta tendéncia de autoprotecio é res- \peitada e se trabalha com ela, em vez de con- tra ela, as conseqiiéncias para o individuo se- rio provavelmente positivas ¢ favoriveis ao ‘seu desenvolvimento, Os processos € a experiéncia da mu- danca também serio mostrados como re- fletindo uma dinamica complexa e nao li- near. Em outras palavras, tal mudanga nao Jé uma simples e trangiila acumulagio de pequenas mudangas, levando a um resul- ‘tado ordenado e previsivel. Ao invés disso, as mudangas humanas refletem um equili- brio dinamico ¢ “pontuado” no qual fases ¢ forcas de mudanga alternam-se e mistu- ram-se a fases ¢ forcas de estabilizacio. Em minhas discussées acerca da natureza da mudanga, referirme-ci repetidamente aos din&micos processos de desenvolvimento que proporcionam o “equilibrio em movi- mento” de uma vida em progresso. A cmocionalidade e os epis6dios de desor- i nciagio da desordem serio desestigmatizados nessas discussées ¢ convidarei a uma apreciag’o mais aprofundada do papel dessas dindmicas a0 longo do desenvolvimento pessoal. Finalmente, repetidamente enfatiza- rei anecessidade do reconhecimento ¢ do respeito as diferencas individuais. Embora 0s principios e os processos da mudanga psicolégica humana sejam universais em al- gum nivel de abstracao, as particularidades de cada vida individual em processo séo verdadciramente tnicas. Assim, todas as ge- neralizacées a respeito da psicoterapia sio tentativas necessarias ¢ conjunturais. Nao ha neuhum inico sistema ow terapia que seja “melhor” para qualquer um. Além dis- 50, 0s efeitos iiltimos de qualquer mudan- ga arquitetada (intervengao planejada) nunca poderio ser dados come certos ou completamente conhecidos de antemio. Os seres humanos podem ajudar outros seres humanos a mudarem? Sim, os seres humanos podem aju- dar outros a mudarem — mas eles podem igualmente retardar essa mudanga, parti- cularmente quando o agente de mndanga ocupa uma posi¢&o de relativo poder e a relagéo de ajuda envolve um forte apego emocional. Do lado negativo, 0 poder e a primazia das relagdes humanas serio mais aparentes em casos de antigos, intensos ¢ repetidos traumas psicolégicos, mais freqiientemente experienciados como ne- gligéncia, rejei¢dio e abuso. Aqui argumen- tarei fortemente a favor da importancia da prevencao_primaria ¢ da responsabilidade na educagao e na criagao dos filhos para o maximo incremento da qualidade de vida. Do lado positivo, aqui igualmente devo enfatizar a importancia capital da relagao humana de ajuda. 4 boa relaci éuti Ica € segura, flexivel quanto ao desenvolvi- mento —e fundamentalmente afetiva. Um tal relacionamento esta também sensivel- mente sintonizado aos individuos envolvi- dos, de forma que um contexto humano especial é criado — um contexto no qual e a partir do qual o cliente possa explorar e experimentar novas ¢ antigas manciras de experienciar a si proprio, ao mundo (in- cluindo as outras pessoas) € os seus possi- veis relacionamentos. Aimportincia do comportamento de exploracio.ativa da parte do individuo.em transfarmagia sera um ponto central aqui. Como grande parte da literatura documen- ta, nado pode haver real aprendizagem.sem que haja novidade — ou seja, sem um de- safio ou uma elaboragio daquilo que se tornou familiar. Novas experiéncias raramen- jteocorrem quando um individuo sente-se an- 'sioso, vulneravel ou deprimido, mas um re- jlacionamento humano afetivo pode propor- Icionar aquilo que John Bowlby (1988) de~ |nomina uma “base segura” a partir da qual ‘se possa explorar. Nesta e a partir desta base, 0 individuo pode ser encorajado a aprender ¢ a explorar de uma maneira autoafetiva e socialmente responsavel. Algumas formas de ajuda sio melhores do que outras? Sim, algumas séo melhores do que outras — mas estamos apenas comegando a compreender algumas das complexida- Processos humanos de mudanca— 33 des inerentes a essa questio. Serio os “ajudadores” profissionalmente treinados melhores do que os nao-profissionais? Al- gumas formas de terapia sio mais efetivas do que outras, quando se trata de certos problemas ou de certos individuos? E o que, afinal de contas, queremos dizer por “melhor”? Como, por exemplo, podemos conciliar os diferentes alvos de mudanga para o cliente, para o psicoterapeuta ¢ para as varias subculturas e sociedades? ‘Ao considerar respostas a esta per- gunta, deveriamos nos remeter 4 questo do motor primordial, ou das causas primei- ras, na experiéncia humana. Até recente- mente, os tedricos e os pesquisadores da psicologia acreditavam que a experiéncia humana poderia ser habilmente dividida em trés partes: pensamento, sentimentos € agao (ver Figura 1.8). Eles discordaram en- faticamente, entretanto, a respeito das re- Jagdes entre esses dominios e uma parcela substancial de suas energias profissionais tem sido investida na defesa ou no ataque a.um padrao particular de relacio. As prin- cipais teorias sobre 0 assunto tém basica: mente utilizado argumentos acerca do motor primordial, afirmando que um dos trés dominios exerce wma influéncia prin- cipal sobre os outros dois. Os behavioristas tém favorecido 0 comportamento como a forga primaria da experiéncia humana, argumentado que as mudangas na ativida- de motora produzirao mudangas nas atitu- des ¢ nos afetos. Os cognitivistas tém-se agregado em torno da idéia da primazia do pensamento, argumentado que mudan- ¢as na maneira de pensar produzirao mu- dangas tanto sobre o comportamento quan- to sobre as emocées. O terceiro grupo — genericamente composto pelos “humanis- tas”, “experiencialistas” e terapeutas “evocadores” — tem advogado pela prima zia da emocionalidade no controle dos ou- tros dois dominios. 34 — Michael J. Mahoney COGNICAO EMOCAO Fonte: ©1989 M. J. Mahoney ura 1.8 - Os Trés Dominios da Experiéncia Humana COMPORTAMENTO Nao surpreendentemente, cada gru- po den uma énfase diferente na pratica dos servicos psicolégicos. Os behavioristas enfa- tizaram a a¢io, os cognitivistas em parte © insight e em parte a reflexdo enquanto os humanistas encorajaram a experiéncia e a expresso emocional. Apenas na altima década, entretanto, tem havido um didlo- go genuino entre os grupos rivais e uma crescente apreciacao da complexa interde- pendéncia entre os respectivos dominios preferidos. Levou muito tempo para que a psicologia considerasse a pessoa inteira novamente ¢ estainos apenas comecando a sentir a complexidade e a idiossincrasia da experiéncia humana. Além disso, ape- nas recentemente comegamos a reconhe- cer ¢ a valorizar as contribuigdes de cada uma das principais perspectivas teéricas. Por meio de crescentes didlogos entre as grades ideolégicas, esti em andamento uma bem-vinda costura ¢ integra¢io que nos faz pressentir um refinamento tanto em nossa compreensio quanto em nossos ser vicos profission: Embora 0 nosso conhecimento na area da ajuda humana permanega rudi- mentar, existem agora algumas generaliza- 6es garantidas que podem empiricamente guiar a nossa formago ¢ a nossa pratica. Este livro é uma tentativa para identificar e colher as ligdes da ciéncia que conduzem a pratica e as ligbes da experiéncia clinica que conduzem A teoria e 4 pesquisa. A Pri- meira Parte oferece uma introdugio conceitual e 0 contexto histérico para a compreensio da expansio da teoria e da pesquisa que lida com a aprendizagem e 0 desenvolvimento humano. A Segunda Par- te oferece revisdes integrativas da literatu- ra existente sobre os processos ¢ os princi- pios da ordem e da desordem da expe- riéncia humana. Na Terceira Parte, arris- carmeci a delinear alguns dos principios gerais que sustentam o desenvolvimento psicolégico humano e a pratica psicotera- péutica mais favoravel. Concluirei com wna nota, ja levantada no inicio deste livro: a de que o nosso relacionamento conosco mesmos afeta criticamente a qualidade de vida que experienciamos e que esta quali- dade advém de nossas relagées com os ov: tros_¢ retorna para influencidtas. A ha- bilidade de relacionamento com outros seres humanos é baseada nas préprias ex- periéncias e relacionamentos com o eu |mais interior”. Estes, por sua vez, crescem “a partir das mais intimas relages com as -joutras pessoas. Tolerancia, respeito, per- | dio, compaixio e afeto sincero sio mais |.ow menos possiveis em fungao de uma re- |\ciprocidade dindmica da influéncia entre \\os individuos € os seus “pares afetivos”. Discutirei esta crucial conexao entre © eve os outros em minha énfase final das demandas, dos direitos ¢ das responsabili- dades do terapeuta em buscar cada vez mais qualidade no préprio autoconhecimento, auto-afirmacao € autocuidado ativo. A vida pessoal do psicoterapeuta é, de fato, um microcosmo de complexidade psicolégica, preenchida com uma miriade de fardos € béngios e caracterizada por preciosos pri- vilégios e, as vezes, por responsabilidades assoberbantes (ver capitulo 13). O psicote- rapeuta plenamente itil, devo concluir, esti generosamente cénscio dessas complexida- des ¢ profundamente comprometido em cuidar muito bem desse valioso se/f huma- no, © qual ousa aconselhar outros ‘selves? — eles préprios cada um em sua vereda. NOTAS 1. Esta terrivel possibilidade emergiu em fungio da busca pelo abuso € do abuso do poder ¢ pode ser revertida apenas se revisarmos a nossa maneira de resolver os conflitos, “criando” as criangas ¢ inte- grando as responsabilidades pessoais ¢ planetarias Processos humanos de mudanga— 35 (ver Bandura, 1986; Broughton & Honey, 1988; Doctor et al, 1988; Ferencz & Keyes, 1988; Jacobs, 1989; Kramer, 1989; Migdal, 1988; Ornstein & Ehrlich, 1989; Staub, 1988; Walsh, 1984, 1989; Watkins, 1988; Wollman, 1985). 2 Esta figura esté baseada nas seguintes pesquisas: Barrom, Shadish & Motgomery, 1988; Garfield & Kurtz, 1976a; Goldschmid ec ab, 1969; Kelly, 1961; Kelly e¢ af, 1978; Lubin, 1962; Mahoney & Craine, 1988; Norcross & Prochaska, 1982; Norcross, Prochaska & Gallagher (no prelo); Norcross, Strausser & Faltus, 1988; Prochaska, Nash & Norcross, 1986; Prochaska & Norcross, 1983a; Shaffer, 1953; Smith, 1982; Watkins e¢ al, 1986. Os resultados de quatro outras pesquisas nao foram inclufdos em fungao dos pequenos tamanhos das amostras ou excessiva énfase nos papéis ocupacio- nais em detrimento das orientagoes teGricas de per si (Beitman & Maxim, 1984; Marmor, 1975; Strauss et al, 1964; Woogan & Norcross, 1985). Quando’ duas ou mais pesquisas apareceram no mesmo ano, seus resultados aparecem pela média. Uma vez que, lamentavelmente, essas pesquisas contemplam pre- dominantemente os psicélogos clinicos americanos, elas podem nio refletir as transfotmagées ocorri- das em outros paises, culauras e especializagbes pro- fissionais. Na Figura 1.3, a orientagao psicodinamica (PA) cluias matrizes denominadas psicanaliticas, neo-ana- Iiticas, junguianas, adlerianas, neo-freudianas € a andlise transacional. A perspectiva comportamental (B) inclui a terapia comportamental, a modifica- a0 do comportamento ea teoria da aprendizagem. A humanisia (H) inclui os ramos existencialista, rogeriano, terapia cenurada no cliente, Gestalt, Erich Fromm e subtipos nao diretivos. A cognitivista (C) inclui os que adotam a modificagio cognitiva do comportamento, a logoterapia, a terapia racio- nal emotiva (REBT) € @ terapia de realidade. Os considerados sistémicos (S) incluem aqueles asso- ciados A terapia familiar, aos sullivanianos e as abor- dagens de comunicacao. 2 Uma Pequena Histéria das Idéias Toda hist6ria é histéria do pensamento. - Robin G. Collingwood" Os documentos escrites mostram que a mente humana achou a si mesma fasci- nante durante pelo menos os trés dltimos milénios. A evolugio do nosso pensamen- toa respeito do mundo claramente espelha uma aprofundada reflexdo acerca de como sabemos e finalmente comecamos a nos estudar to intensivamente quanto temos feito com 0 mundo circundante. Este cres- cente auto-exame emana, pelo menos em parte, de uma emergente conscientizagio de que, conforme Friedrich Hayek, prémio Nobel em economia concisamente colo- cou, “muito daquilo que acreditamos sa- ber a respeito do mundo exterior é, de fato, conhecimento sobre nés mesmos” (1952b, p. 67). Nisto reside a relevancia das ques- tes filoséficas para a teoria, a pesquisa ea pritica da psicologia. FILOSOFIA E PROCESSO DE QUESTIONAMENTO Enquanto campo de estudo, a histé- ria das idéias tem sido até recentemente uma fonte rarefeita de fascinaco para um grupo relativamente pequeno de especia- listas. Além disso, somente nas ‘iltimas dé- cadas 0s estudiosos vieram a reconhecer 0 quanto os escritos sobre a histéria envol- vem interpretacées extensivas (Colling- wood, 1972; Robinson, 1981; Weimer, 1974b, 1974c). E comum encontrar os mesinos eventos interpretados diferente- mente por diversos autores. Raramente 0 passado é retratado de forma idéntica por conservadores ¢ liberais, por exemplo, ou por naturalistas ¢ misticos. Por esta razio, a historiografia — 0 ato de escrever a res peito do passado — deve ser distinguida do conceito de histéria propriamente dita, que, em tese, registra perfeitamente o que realmente aconteceu no passado. Uma vez que umna historiografia perfeitamente ob- jetiva é impossivel ¢ que toda simplificacao €—como Alfred North Whitehead (1957) certa vez observou — necessariamente uma hipersimplificagéo, dever-se-ia consultar tanto as fontes originais quanto as outras possiveis interpretagées do nosso passado conceitual coletive (Dennett, 1984; Durant, 1926; Durant & Durant, 1985-75; Hamlyn, 1987; Hoffding, 1900; Hofstadter, 1979; Hofstadter & Dennett, 1981; Langer, S. K, 1967, 1972, 1982; Langer, W. L., 1980, Onians, 1951; Reese, 1980; Robinson, 1981; Russell, 1945; Sahakian, 1976; Stone, 1988; Wiener, 1974) Filosofilia e filosofobia O vocabulo filosofia literalmente sig- nifica “o amor pelo conhecimento” e pa rece haver um pequeno desentendimento no tocante a que 0 coragao da filosofia seja © inquérito — um questionamento ativo ¢ exploratério. Todavia, as reagées 4 filoso- fia € 0 interesse pela mesma nfo sio uni- formemente positivos. Existem, é claro, al- guns “filosofilicos” que exibem uma reve- rente consideragao ¢ um insaciavel apetite tanto pela filosofia classica quanto pela mo- derna. Ao mesmo tempo, entretanto, exis- tem muito mais “filosofSbicos”, pessoas que evitam ¢ abjuram qualquer coisa remota- mente associada ao estudo reflexivo. A sim- ples mengio da palavra filosofia pode motivi-los a pular determinado capitulo, evitar um livro, ow‘cochilar demonstrando uma resoluta falta de interesse — um lamen- tivel e dispendioso padrio de esquiva. Todas as ciéncias modernas sio ine- quivocamente descendentes daquilo que certa vez foi um relative amor indiferen- ciado pelo estudo chamado filosofia. Além das ciéncias, nossos modernos pontos de vista em estética, ética, economia, herme- néutica, humanidades, artes liberais, logi- a, retorica ¢ diversas outras fireas — todos eles possuem suas raizes na histéria das idéias e, portanto, na filosofia. Ao mesmo tempo em que as diferentes disciplinas de- senvolviam as préprias identidades a partir da base fornecida pela Filosofia, por outro: lado, muitas exibiam um desdém e um distanciamento intencional da sua ascen- déncia conceitual. Os préprios filésofos tém feito alguns dos mais danosos comen- tarios acerca dos proprios esforgos. O filé- sofo romano Cicero, por exemplo, obser- vou que “nio ha nada to absurdo que no tenha sido ja pronunciado pelos filésofos” e, 20 sécnlos mais tarde, Bertrand Russel coneluin que “a filosofia... fez as maiores afirmacécs e atingiu os menores resultados que qualquer outro ramo do conhecimet to” (ambos citados em Kline, 1985, p. 3). A queixa mais comum daqueles que tém sido vigorosos em seus ataques a filo- sofia é a de que os filésofos mais obscure- cem do que iluminam as questées que es- to investigando. Scus criticos essencial- mente concordam com a caricatura da fi- losofia feita pelo médico R. C. Tolman como “o sistemitico mau uso de uma ter- minologia especialmente inventada para tal propésito” (citado em Dukas & Hoffman, 1979, p. 106). Mais freqiientemente do que poderia ser ignorado, a filosofia tem tole- Processos humanos de mudanca~ 37 rado ¢ mesmo glorificado 0 obscureci- mento € a irrelevancia. Seus “altos e bai- xos” tém sido as vezes lamentaveis ¢ 0 seu valor pratico raramente tem sido explora- do. A despeito dos seus excessos ¢ excen- tricidades, a filosofia permanece sendo uma vital fascinag3o para muitos a cada nova geracio. Ansiamos por saber € 0 nos- so anseio recentemente nos fez confrontar 0 paradoxo de que o conhecimento, o ato de conhecer ¢ 0 conhecedor individual sio aspectos inseparaveis de uma busca infini- ta. Como observaremos, 0 conhecimento nao é uma colegio descorporificada de in- formagées e tampouco é uma possessio. A partir da perspectiva que desenvolveremos aqui, o conhecimento é algo inevitavelmen- te imprevisivel, dinamico e sinultancamen- te pessoal ¢ coletivo. Em defesa do questionamento reflexivo A filosofia permcia toda a nossa vida, seja conscientemente ou nao; ¢ a sua rele vancia deveria, dessa forma, demandar uma pequena defesa. (Existem varios resumos compreensiveis sobre a filosofia ¢ a histé- ria das idéias [Boorstin, 1983; Durant, 1926; Stone, 1988].) Os psicdlogos deveriam igualmente estar cdnscios do fato de que a sua disciplina surgitta partir da filosofia dos séculos XVIII ¢ XIX (Curti, 1974; Hilgard, 1987; Long, 1974; Mueller, 1974). Este fato inequivoco é, todavia, freqientemente es- quecido ou menosprezado por alguns psi célogos modernos (Bartley, 1987b; Black- more, 1979). Um recente estudo realizado pelo psicélogo L. Zusne (1987) oferece ampla documentacio a respcito do exten- sivo débito que a psicologia possui para com a filosofia. Ao analisar 16 livros ame- ricanos € oito europeus acerca da histéria da psicologia publicados desde 1950, Zusne 38 — Michael J. Mahoney encontrou que em média 60% das paginas destes livros era devotada a estudiosos ¢ que 190 individuos cram responsiveis por qua- se 86% do total de paginas devotadas a tais personagens. Em uma anilise posterior desses dados, descobri que perto de 40% desses 190 individuos “mais importantes” na histéria da psicologia cram, na realida- de, filésofos. O Quadro 2.1 lista os 13 filé- sofos mais extensivamente discutidos nes- ses 24 livros. Suas idéias ¢ as daqueles seus colegas menos visiveis tém influenciado sig- nificativamente todas as teorias € terapias psicolégicas modernas. Quadro 2.1 - Filésofos Influentes na Histéria da Psicologia Nome indice de Citagio* Aristoteles 107.64 Descartes 53.36 Platio 45.76 Locke 37.44 Hume 34,08 Kant 32.16 S. Agostinho 30.24 Leibniz 27.37 Berkeley 25.76 Herbart 23.69 Tomas de Aquino 22.86 Brentano 20.64 Spinoza 20.52 *O Indice de Citagao refletc o simples produto do ntimero de textos nos quais um individuo foi discu- tido (12-24) ¢ a média percentual de paginas no texto em que o individuo ou seu trabalho tenha sido discutido. Recentes desenvolyimentos nas cién- cias fisicas, biolégicas ¢ sociais igualmente tém demonstrado que a interface entre a filosofia ¢ a psicologia é 0 “Apice” de nosso entendimento. A recente (cmbora tardia) convergéncia entre epistemologia (teorias sobre o conhecimento), ciéncias cognitivas € estudos cientificos é um exemplo desta questio. A esséncia desta convergéncia re- flete 0 reconhecimento de que uma ade- quada compreensio do conhecimento humano requer a compreensio tanto do conhecedor humano quanto dos proces- sos de aprendizagem e de conhecimento. A psicologia é essencial 4 filosofia; ambas sio centrais para o desenvolvimento de todas as ciéncias no passado, no presente e io futuro. A filosofia a que me refiro aqui nao é uma expressio fria e anti-séptica da ana- lise logica ou uma literatura técnica a ser digerida pelo intelecto. £, ao contrario, uma atitude ativa, exploratoria ¢ auto-exa- minadora que corporifica um apaixonado comprometimento com 0 ato de conhecer. Uma tal filosofia é a “missio” 4 qual Sécrates devotou e sacrificou a propria vida. Nao é uma colegio de palavras ou mesmo um sistema de crengas explicitas, mas uma permanente integracao entre pensamento, sentimento e acao. “A magica da real filo- sofia € a magica do exclusivamente huma- no ato de autoquestionamento — do ficar de frente questo do si-mesmo” (Needle- man, 1982, p. 13). Uma tese central deste livro é a de}! que as nossas teorias pessoais € privadas | acerca de nés mesmos ¢ de nossos mundos 5 residem no coragio de todas as nossas €x:! periéncias. Os processos momento-a-mo- mento que constituem a nossa experién- cia pessoal séo, eles préprios, inscparaveis dos nossos processos ativos de conhecimen- to pessoal e dramaticamente influenciados pelos mesinos. Fm outras palavras, ha um poderoso ¢ sinérgico relacionamento en- tre a qualidade das nossas experiéncias de vida € as estruturas € os processos de nos- sas teorias privadas ¢ predominantemente tacitas (no-verbais, inconscientes) acerca de nés mesmos, nossos mundos € suas pos- siveis interagdes. Nossas pressuposigdes pri- vadas € crengas arraigadas constituem-se em permanentes antecipagées e restricées ao © que experienciamos ¢ ao como expe- rienciamos. Conforme veremos, os proces- sos pessoais de conhecimento siio comple- xos € dindmicos, permanentemente cons- truindo, perpetuando e revisando as nos- sas realidades pessoais. Para compreender o que queremos dizer por realidade pessoal, devemos inicialmente refletir acerca do sentido contrastante, sendo contraditério, quando pareamos estes dois termos. A realidade € geralmente considerada como algo pabli- co, 0 mundo “lé fora” constituido pelas “coi- sas” (a palavra latina res significa “coisa” e a antiga palavra indo-curopéia rei signifi ca “propriedade”). A realidade, entio, é vista geralmente como algo nio-pessoal. Igualmente, nao é usual empregarmos a forma plural de realidade, uma vez que a sua pluralidade se confronta com a idéia de que existe apenas uma realidade verda- deira (genuina ¢ estavel). Nao obstante isso, existem (antas realidades (experien- 'ciadas)" quantos sio os individuos ¢ essas jTealidades pessoais ou privadas residem no ragio da experiéncia humana. De fato, aqueles que lecionam, educam filhos ou aconselham cstio, com ou sem © seu co- nhecimento, tentando facilitar mudangas nas realidades pessoais de seus respectivos pupilos. Somos todos — literalmente — te- orias corporificadas vivas acerca de nés pré- prios e dos nossos mundos e isso j& era ver- dade muito antes dos nossos proce telectuais “superiores” se desenvolverem ou entrarem na moda. As nossas teorias a res- peito de nés mesmos e da vida desenvol- vem-se espontaneamente através dos nos- sos esforgos pela sobrevivéncia e adapta¢io. E 0 que é mais envolvem pensamentos, sentimentos e interagdes ativas com outros seres huma- sos in- importante, esses esforgos Processos humanos de mudanca— 39 nos, sendo no contexto dos nossos relacio- Namentos com os outros que tais “suposi- ges de mundo” ¢ “modelos de trabalho” sio mais formativamente influenciados. No nivel pratico € pessoal, a assertiva de que os processos de conhecimento indivi- duais sio integrantes da experiéncia pessoal também implica em que mudangas na quali- dade, no significado, ou no “movimento” de uma vida estejam necessariamente associadas as mudangas de significado nos processos de ordenagio ou organizagao que ativamente mantém ou elaboram esta vida. Tais proces- sos sio essenciais ao conhecimento pessoal e tendem a nos proteger das dramiticas mu- dangas em nossas experiéncias de scife de mundo. Metaforicamente, somos simultanea- mente guardiies involuntarios ¢ prisioneiros das nossas teorias tacitas a respeito daquilo que a vida é e de como podemos negociar com ela. Na mesma medida em que deseja- mos ou trabalhamos para ser diferentes, so- mos naturalmente resistentes — conforme vividamente ilustrado na literatura clinica — aos desenvolvimentos na vida que nos levem muito rapidamente ou para muito além da pessoa ou realidade que normalmente defi nimos como sendo a nossa propria. Nao é por acidente, portanto, que as mudangas pessoais significativas sio processos freqiien- temente vagarosos ¢ desafiadores. Conforme discussdes posteriores esclarecerio, ha uma inquestionavel sabedoria evolucionista na nossa cautela ou ambivaléncia em renovar 0 delicado 4mago da nossa existéncia. E no dominio dos nossos processos pessoais de ordenagio que a nossa continuidade expe- riencial é mantida ou é modificada. Além| disso, todas as mudangas psicolégicas signifi cativas envolvem mudangas nos significados)| pessoais e tais significados refletem aj] interdependéncia dinamica entre os nossos| pensatnentos, sentimentos ¢ agées. Finalmente, todas as teorias acerca da mudan¢a psicolégica sio fandamental- 40 — Michael J. Mahoney mente teorias sobre a aprendizagem ¢ to- das as teorias sobre a aprendizagem, em Giltima instincia, incluem uma teoria sobre oconhecimento. Conforme observaremos, todo conhecimento é ativo, corporificado e fundamentalmente emocional. Mudan- cas significativas nos processos de vida es- tio impregnadas de episédios de extrema intensidade afetiva ¢ de uma desorganiza- 0 (sistémica) geral. Aqueles que aconse- Iham a respeito das complexidades, esco- Ihas € Intas de vida podem oferecer uma ajuda de boa qualidade apenas na medida em que levam em consideragio — tanto em Ambito conccitual quanto experiencial — que a operacao de tais processos se da de forma singular em cada pessoa-em-pro- cesso, Além das experiéncias ¢ circunstan- cias individuais que modelam a maneira como pensamos, agimos ¢ sentimos a res- peito de nés mesmos € dos nossos muidos, nossas filosofias refletem o inquestionavel legado de centenas de milhares de anos de esforgos dos nossos ancestrais. Suas experiéncias ¢ as idéias que nos oferece- ram de como ordcnaram essas experiénci- as, constituem uma valiosa heranga em nossos préprios esforcos. O INICIO FORMATIVO NA BUSCA PELO CONHECIMENTO As quesides prementes acerca do conhecimento e da existéncia humana nao tém mudado muito ao longo dos séculos, embora as muitas respostas oferecidas te nham recentemente comecado a assumir novas formas. De uma forma geral, nossa heranga filoséfica relata uma busca permna- nente pela ordem e pelos sistemas de o1- denagio, assim como pelo poder, signifi- cado e propésito que tal ordem poderia vir a ter (Foucault, 1965, 1970; Frankl, 1959, 1978), Ideagao pré-histérica A histéria das idéias nao é apenas uma historia de abstragécs conceituais, mas antes una atividade humana relacionada a compreensio e a influéncia da ordem e da desordem da experiéncia cotidiana, pessoal ¢ coletiva. Da mesma forma, em- bora o surgimento das linguas falada ¢ es- crita tenha literalmente transformado algo em nossa maneira de pensar a respeito do mundo, seria ingénuo pressupor que os seres humanos nao experienciam “idéias” antes de poder expressi-las. Essa ideagio pré-historica desempenhou um papel ine- gavel na formacio das nossas primeiras conjecturas acerca de quem somos e onde estamos (isto para ndo mencionar o por- qué € outras questdes similares). Desafor- tunadamente, nossa atual compreensio sobre tal ideagio é tosca ¢ podera perma- necer assim ainda por muito tempo. A idéia de que, como seres humanos modernos, podemos compreender completamente a evolugio das nossas préprias idéias é, por si s6, absurda. Os saltos que demos ao lon- go de milhdes de anos de evolugio indubitavelmente tém transformado mui- to do processo (assim como 0 contetido) da nossa experiéncia momento-a-momen- to, de forma que os nossos hemis{érios ver- bais contemporancos podem apenas ver “através de culos opacos” os vestigios ¢ os legados do nosso préprio desenvolvimen- to conceitual. O primeiro estudioso a reconhecer este ponto de vista foi Giambattista Vico, um professor de retérica da Universidade de Napoles, no inicio do século XVII. La- mentando 0 “conceito académico” que pre- sumia que 0 pensamento humano sempre houvera sido formal e formalizavel, Vico observou que “mal podemos agora com- preender e de forma alguna imaginar como pensavam os primeiros homens” (1948 [1725], p. 265). Ele tentou enten- der como a ideacio humana poderia ter surgido a partir da inteligéncia animal, con- cluindo que a caracteristica primordial do pensamento humano era a sua habilidade em transcender a realidade imediata, ou seja, a habilidade para desenvolver manei- ras de suspender ou (simbolicamente) al- terar o tempo € 0 espago presentes. Ante- cipando concepgées que agora esto no auge do pensamento do século XX, Vico_ eee a corporilicagao da | mente, conceito explorado na seguinte pas- ‘sagem: O primeiro homem viveu num mundo de “palavras reais”, de aco passional de sells corpos naturais movendo-se em re- . Vico pede-nos para que imaginemos um ponto inicial da experiéncia humana, no qual udo era corpo e movimento corporal, no qual todo significado consubstanciava-se numa ago entre corpose ne qual o pen- samento.humano nada maisera do.que © ato.corporal da sensacao. Para Vico, nao ha mera sensagio. Sensacio é um ato que subjaz, ou € o primeiro momento em qual- quer ato de conhecimento. E um ato. ne- cessirio, pelo qual a mente inicia-se na- quilo que ha para ser conhecido ou pen- sado. (Verene, 1981, p. 84-85) ago uns aos outros. Vico acreditava que os primeiros se- res humanos criaram wna ordem em sua experiéncia. Com palavras que antecipa- riam Jean Piaget, dois séculos depois, ele -pdisse que “saber? 6 “fazer” (ficere). Uma vez que fabricamos os mundos expe- rienciais que habitamos, é um tanto fan- tastico, disse ele, que esses mundos pare- gam estaveis. Algumas de nossas produgécs formativas favoritas sio expressas pelas fa- bulas € mitos que continuam a nos fasci nar ainda nos dias de hoje. De fato, Vico Processos humanos de mudanga— 41 sugere que a mitologia deveria ser a pri- meira ciéncia, porque os mitos expressam as mais primitivas e poderosas construgdes humanas acerca da ordena¢io do mundo. Com essa corporificagio da cognigio € a énfase nos processos construtivos ativos de criagdo e manutengio de realidades, n’io € por acaso que Vico seja considerado como 0 sendo 0 pai ¢ o fundador da psico- logia construtivista (capitulo 5)? O primeiro periodo axial Embora nfo tenha sido formalmen- te reconhecido até 0 século XIX, muitos observadores da histéria humana atual- mente reconhecem que wna profunda mu danga ocorreu na ideagiio humana em al gum ponto do sexto século a.C. A nature- zae as causas dessa indanga ainda sio ma- téria de discussio académica, mas ha um consenso geral acerca da sua existéncia ¢ aparente significagio. Conforme observou Vico, as primeiras consideragdes humanas acerca da natureza € da vida foram domi- nadas pelas metaforas misticas, miticas e sobrenaturais. Muitas dessas mesmas me- téforas permanecem poderosamente ativas ainda hoje, O que aconteceu no século VI a.C. no foi apenas a superagao dessas cren- a8 primitivas, mas antes a sua wansforma- cao cm dois grandes e divergentes cami- nhos de conceitualizagao: a religidio orga- nizada e a filosofia racional. Em um perio- do de tempo de menos de dois séculos, curopeus e asiticos fundaram indepen- dentemente as primeiras religiées mun- diais, o Budismo e 0 Zoroastrismo, prepa- rando, assim, o terreno para o Islamismo ¢ para o Cristianismo, além de outras reli- gides que se seguiram. ‘Ao mesmo tempo, os primeiros filé- sofos gregos — incluindo Tales ¢ Pitagoras — ja estavam concentrando sua aten¢io no 42 — Michael J. Mahoney poder do intelecto e da razio. O convite, tanto das religides quanto das filosofias, era para olharmos para dentro ¢ refletirmos, com a garantia de que tal pratica nos con- duziria a uma iluminacao da consciéncia. Da mesma forma que Confiicio e Buda, Hericlito pregava que a estabilidade do mundo “aparente” era uma ilusio e que tudo estava em constante mudanga. Con- trabalangando essa nogao, vieram as garan- tias de Parménides ¢ outros de que nada realmente mudava. A partir de um ponto de vista espiritual, esta vida © este mundo foram trivialmente reduzidos a vida eterna € 20 outro mundo. Corpo e alma ja haviam sido previa- mente separados pelos antigos misticos, mas a essa separacio nunca havia sido dada a sustentacio formal agora oferecida por aquilo que o filésofo Karl Jaspers (1951) chamou de “religides axiais” ¢ “filosofias axiais” (Mumford, 1956). Era uma época de “reviravoltas”, por se dizer; uma era de atividade espirital ¢ reflexiva sem prece- dentes, acelerada € expandida pelos dra- maticos aperfeigoamentos na comunicagio escrita. Fronteiras formativas foram estabe- lecidas entre este mundo e 0 outro, entre © corpo € a mente/espirito, entre o “real” € oilus6rio (cterno/transitério) bem como entre 0 individuo ¢ o universo. Além disso, tais fronteiras formaram o Amago de mui- tas das questdes com as quais a humanida- de se defrontaria por milhares de anos por vir. £ fascinante perceber que os principais sistemas de crengas que honramos hoje ¢s- tejam com a roupagem-da ciéncia ou do espiritualismo, foram germinados em tio pouco tempo, nao obstante a ampla mag- nitude de lugares e culturas. Em retros- pecto, o primeiro periodo axial pode ser descrito como aquela era em nosso surgi- mento psicolégico quando os seres huma- nos primeiro “formalmente” descobriram © universo dentro deles préprios € © po- der da fé ¢ da razio. E ao fazé-lo, eles trans- formaram dramaticamente a qualidade ¢ o alcance de seus relacionamentos, o que permanece para além deles, no tempo € no espago. O pensamento filoséfico ocidental surgiu a partir do misticismo que prevale- cia anteriormente ao periodo axial no sex- to século a.C. (Frankfort et al, 1946; Kirk, Raven & Schofield, 1983). Com Tales e os filésofos pré-socraticos adveio a aplicagio da razio “natural” aos mistérios previamen- te sobrenaturais da vida. Mas Tales foi rela- tivamente insignificante se comparado a quatro de seus sucessores. As contribuicdes de Pitagoras, Socrates, Platio e Aristételes esto entre as mais influentes no delinea- mento dos contornos, das questdes ¢ dos inétodos de todas as investigacées reflexi- vas subseqiientes (ver Figura 2.1 e Quadro 2.). Juntos, eles teceram as teias conceituais que tanto emperraram quanto libertaram as mentes perquiridoras durante quase 25 séculos. Quatro das mais dominantes ¢ in- fluentes tradigdes filoséficas de todos os tempos foram formalizadas a partir do seu pensamento: 1. Racionalismo, que argumenta que oconhecimento é fundamentalmen- te baseado na razio, sintetizado na matemitica e na légica. 2. Dualiso, que divide a realidade em duas dimensées distintas — a fisica (material) ea nio-fisica (imental, es- piritual ou “metafisica”). 8. Idealismo, que argumenta que a rea- lidade esta baseada na ideagao e na abstracao. . Realismo, que argumenta consistir realidade em uma ordem singular ¢ estavel de coisas externas ¢ indepen- dentes da ideagio humana. Estes quatro “ismos” tém permeado todas suposigdes ¢ assercdes subseqiientes acerca da natureza do nosso mundo e da natureza dos nossos métodos para conhecé- Jo. Sua influéncia é mais visivel quando ob- servamos os grandes debates em algumas especialidades selecionadas (ver Quadros 2.3, 2.4¢ 2.5). Os grandes debates da fitosofia tradicional Por toda a sua diversidade, a filoso- fia pode ser organizada em termos dos dominios de suas questdes. Existem pelo menos cinco grandes arcnas de questiona- mento filosdfico: a ontologia — o estudo da natureza da realidade e da existéncia; a epistemologia — o estudo da natureza do conhecimento ¢ do conhecer; a herme- néutica—o estudo da interpretacao da co- municagio (incluindo uma variedade de énfases como a retérica, a semidtica [estu- Processos humanos de mudanca— 43 do dos signos ¢ sistemas de simbolos] ¢ a seméntica); a axiologia — o estudo dos va- lores, da ética e da estética — e a praxis — a analise e 0 curso da pratica concreta (a “conduta de vida”). Imprecisamente inter- pretadas, essas especializagdes sugerem que o volume de reflexiio académica gerado até agora tem se organizado em torno de cin- co grandes conjuntos de questdes: O que é real, verdadeiro ou permanente? Como podemos conhecer? Podemos comparti- Thar as nossas experiéncias (e como)? O que € bom, moral ou belo? E como os sis- temas de crengas formam ou guiam a pré tica (por exemplo, como dever-se-ia viver a vida?) Simples como podem parecer, tais questdes tém suscitado respostas freqien- temente polarizadas e diversas, conforme re- fictido pelas muitas escolas de pensamento que transitam por elas. As duas primeiras so- zinhas— a natureza da realidade e a nature- za do conhecimento -— refletem a evolu- ¢ao do questionamento humano. Quadro 2.2 - Uma Histéria Seletiva da Filosofia Ocidental 600 a.C. - 1800 d.c. Gregos Classicos (cerca de 600 a.C. - 325 d.C.) 640.546 a.C. Talesde Mileto _Primeiro fil6sofo ocidental; trouxe a geometria a Grécia depois de suas viagens ao 570500 a.C. Pioneiro da matematica; principal fundador do raciona- lismo; considerava o pensamento.como a fonte-mais poderosa de conhecimento do que os sentidos. Pitagoras 540475 a.C. Heraclito Pioneiro do pensamento processual (“nada é estatico; tudo é viraser”); pioneiro da metateoria dos processos antagénicos (ou seja, a unidade ou complementaridade das “tensdes opostas”). Pioneiro do “pensamento estatico” — “nao existe mudanca; a realidade € fixa e atemporal; toda mudanga & ilus6ria”, 539-469 aC. Parménides 44 — Michael J. Mahoney 490-410 a.C. 460-370 a.C. 469-399 a.t 427-347 a.C. 412-323 a.C. 384-322 a. 367-275 a.C. 342-270 a.C. 336-264 a.c. 106-43 a.c. Protagoras Demécrito Platao Didgenes Aristoteles Pirro Epicuro Cicero O mais importante dos sofistas (os primeiros retéricos que ensinavamn em troca de honorérios); argumentava que a verdade relatva, Fundador do atomismo; defensor do materialism: proto-empirista. Patrono maior do questionamento filos6fico; mentor de Platao; a “missao socratica” advoga uma busca sem fim pela verdade e uma veemente humildade acerca do conhecimento corrente; enfatizou 0 valor do auto- conhecimento: “conhece-te a ti mesmo”; “a vida irrefletida no vale a pena ser vivida”. 0 filésofo ocidental de maior influéncia; teorias racionais sobre a ética, imortalidade e utopia; formalizou 0 dualisoo existente entre realidade e aparéncia; metafora visual do conhecimento; metifora da caverna: 0 contraste entre a verdade e as aparéncias; mentor de Aristételes. Pioneiro do cinismo; precursor do estoicismo. Formalizador da logica (dedutiva); formalizador da classificacao como uma forma de conhecimento; teoria da verdade por correspondéncia; teorias sobre a ética, a politica e a fisica. Pineiro do ceticismo, que desafiava nao somente a fidedignidade dos sentidos mas também a da racionalidade e da moralidade; doutrina da diivida sistematica. Materialista; proto-empirista; fundou a filosofia epicurista (0 prazer € 0 comego e o fim de uma vida abencoada”); advogava a favor da validade do sentido da percepgio-e-das teorias naturais (versus sobrenaturais) acerca da vida-e-da morte; abracgou o atomismo de Demécrito; o objetivo da sabedoria 6 a ataraxia (eliminagao da ansiedade). Fundador do estoicismo; doutrinas da determinagio césmica,e da degradacio dos sentimentos; considerava as emogées como falsos julgamentos; idealizava a apatheia (climinagao das paixées). Pioneiro romano do ecletismo; aspirava integrar as melhores partes das escolas rivais de pensamento; endossava a moderacao € rejcitava as formas extremas de dogmatismo e ceticisino.

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