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A SE rennacio onrvensiave ve prasitaa lor: Joo Clio Todorov ‘Vice-Reitoe: Sérgio Barroso de Assis Fonseca shee an) i on Consetho Edtorlat Os DEUSES DO_ Alesandve Lima Alvaro Tamayo Argon Dall Kgna Rodrigues Dourtnar Nones de Moura mane} Araiijo (Presidente) nice Carvalho de Sardinbo Ferro Life Benedito Reno Salomon Marcel Auguste Dardenne Sylvia Ficher | Vilma de Mendonca Figueiredo CLAUDE Volnel Garrat BE ots Myelin A foditoca Universidade de Bras, institu pela Ot ae CEL Lei uf 3.998, de 15 de dezembro de 1961, tem 10 objetivo “editar obras cientificas,Léenicas ¢ culturis, de nivel universitrio” Claude Traunecker OS DEUSES DO EGITO Tradugao de Emanuel Aragjo Dircitos exclusives para eet edi: EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASILIA SCS -Q.02 - Bloco C -n" 78 - Baifeto OK = 2° andar 70.300 500 - Bratlia - DE FAX: (061) 225-5611 Copyright © 1992 by Presses Universtales de France “TWolo original: Les diewe de PEgypte ‘Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicogfe posers se frmazenada ou reproduzido por qualquer mcio sem a amoreaySo po cscrto da Editors Impresso no Brasit Mavnicio SastNo De ARAGIO ROCHA ‘Cetera Gost (Farmator Design ¢ Intormética) sommvsio-aRAines ‘Anronto Barista FALo € KLMANO RODRIGUES Penne ISBN: #5-230-0392-4 ‘Biblioteca Central dn Universidade de Bratt ‘Teaunecker, Clade 10 ‘Os deuses do Egito / Claude Traunecker; taduyto do Emanuel Arado “Brasilia: Etora Universidade de Brasilia, 1995. Hpi ‘Tiulo original: Les dieux de PEypte cpu 201.212 62 Sumério Introdugio 11 Capito 1 Fontes e estado dos conhecimentos 13, LAs fones 13 Diversidade das fontes 13 |AS grandes compilagies. 14 Os rituais 15 Hinos, textos mitolégicos © mégicos 16 Listas de deuses. 18) 2. Histérico dos estudos 19 ‘Antes deI-F. Champollion 19 Monotefsmo e poitefsmo 21 ‘Acescola moderna 23 3. Alguns concettos 2: ‘Mulliplicidade de abordagens 23 Pensamento ¢ ago 25 cavtre.o2 (© mundo dos antigos egipeios. 27 1. realidaie geogrdficae social 27 © mundo nilético 27 Paisagens e deuses 29 {As desorens das figuas, do c6u e dos homens. 30 2, Ohomem 32 ‘© homem na eriago. 32 ‘© homem do real 33 ‘Ohomem do imaginério 35 CariruLo3 Os deuses e seu universe 39 4.0 aparecimento dos deuses 39 As antigas teorias 39 ‘Os dadas arqueolégicas 40 ASteorias atuais 41 2A natureza divina 42 ‘A terminologia do divino 42 Os nomes dos devses 44 (Os elementos da personalidade divina 47 3. O espago € 0 tempo dos deuses 50 Oespage des deuses 50 O tempo dos deuses 52 4. Lingua e subsisténcia dos deuses 55 A lingua dos deuses 55 ‘A subsisiéncia dos deuses 57 Cavirutos A aparéncia dos deuses 59 1. Formas ¢ transformagées 59 2. Ocorpo divino 60 ‘© antropomorfismo 60 Matéria, cores e odores. 61 ‘A idade dos deuses 62 Os andréginos 62 Os seres hibridos 64 As aparéneias animais 65 3. As atitudes € 0s atriburos. 66 As posturas 66 (Os acessérios divinos 67 Otraje 69 Coroase toucado 70 4. Imagens para ler 71 Cariruto 5 A sociedade divina 73 1, 0 modelo familiar 73 Pares e paredros 73 Procriagio e nascimento 74 (Os deuses-meninos 75 Familias e triadas 76 2. Os grupamentos divinos 77 Da Diada & Ogdéada 77 Enéadas e grupos divinos 79 ‘Os deuses-multidio seus animadores 79 3, Hierarquia e recrutamento dos deuses 80 ‘Ascenso a divindade 80 ‘As soboranias divinas 83, Génios e deménios 84 CariruLo 6 As fungdes divinas 89 1. Os atores da criagdo 89 Os relatos. 89 ‘A imagem cosmol6gica 90 (© mundo da antecriagio 92 As divindadesfeonceitos da criago 2. Os procedimentos cosmoganicos (© demiurgo e o desejo de criar 96 Acolina, 0 escarro ea masturbs (Gespago material 98 oa 96 ” © Verbo, 0 pensamento eo artesio 99 O pantano, a flor, © ove e0 lode 100 3. A organizagaio do universo 102 A Idade de Ouro ¢ a revolta 102 O destino do demiurgo e os deuses-mortos_ 105 Os causadores divines de perturbagao 107 4. Funcoes particulares 109 ‘As fungdes complenas: o exemplo de O: imago das fung6es complexas 110 Pranucia o cunsensdensia 112 Amenéfis 1V eo atonismo 112 CapiruLo7 Os deuses € o mundo dos homens 115 J. Os meias de comunicacao 15 Do mundo divino ao dos homens 115 Dos homens aos deuses 117 2. A presenga divina na terra 118 Osanimais 119 3. Os deuses.e 0 rei 120 Oconceito de Maat 120 ‘i 4. Os deuses.e os individuos 121 (Os deuses na consciéncia individual 121 (Os deuses como recurso de um grupo social 122 Os deuses repelidos, constrangidos ou ameagados 122 CariruLo 8 A geografia e os deuses 123 I. Cidades e deuses 123 Odeusdacidade 123, (Os deuses fora de sua cidade 124 (0 deuses-personifcagdes das cidades. 125, 2, Os deuses eas provincias 125 Ornomos 126 As lista geogricas atigas 127 ‘As compilagdestardias 128 5, Os deuses das marcas e dasronteras. 129 ‘As ports do deserto 129 (Os mercenérios das mareas do Delta 129 Os deuses-hispedes da Nébia 130 (Os deuses nibios 132 4. Os deuses de fora 132 5. Deuses do Egito fora do Egto 135 (Os deuses emplices do poder colonial 135 (Os deuses exportados 136 Conclusio 139 Bibliogratia 141 Introdugio Buta nao & wma ciéncia para encher @ cabe- {4 com todas as extravagdncias dos feniclas ‘dos gregos, € sim para saber 0 que levou 0! fenlios os gregos a esas extravagdn- Fontenelle, 1657-1757, De Vorigine des fa bles, p27. Papros, seas, emplos ¢esttuas no essam de falar os dnses do gio forecem indmeras informagies sobre esse assunto. Mas que desordem nessa abundincial O ho: rnem modem, habituado unidade do individvo, ainds que divno, fie bastante embarayado dante dessa malidao me vel de seressublimes cuja ascendénciaftua A mercé das Fonts. A abordagem geogrfics, cOmoda no plano encilo- pico, é totalmente desorientaie: as mais modestas divin dades jocaisostentavam o glorioso epicio de grande deus ‘Quanto & aparéncia desses Sees, umsa de cujas virtues era procisamente a faculdade de trnsformagdo, ¢ ainda mais éenganadora. Raros eram os que se contelavam com uma nica fungi. Fram numerosos os que se delaravam Unix co do primeio instante. Além diss, os deuses nao ‘cram mtv dante ts to, bem diffi, ness condigbes,dispa-os em grupos de grandes e pequenos, mires menores,eGsmicos ¢ locas. Na trama dos documentos, 0s deusesegfpcios zombam des sas categoria e eseapam por entre as malhas da rede. Pol formes e plivalenes,parecem-nosincessves.E no obs- tant existem erespondem a uma coerci. R ‘uaune TRAUNECKER Essa coeréneia reside no documento, tnica realidade antiga que ainda nos € acessfvel. Nessa religiio sem dogma e sem livro candnico, a existéncia dos deuses é estilhacada, fragmentada em tantas parcelas vivas quanto os documentos disponiveis. Estes, fixados no tempo e obra de uma pessoa ‘ou de uma comunidade, retiram © mundo divino do lugar & 4o instante conforme sua conveniéncia num alvo preciso. Era preciso, portanto, fazer algo: os deuses tinham nevessi- dade dos homens, e a seguranga destes dependia inteiramen- te da benevoléncia daqueles. Tal aco € o ritual: palavras © gesios eficazes, mos fugidios. Na busca dessa eficécia, 0 teslogo local manipulava deuses e mitos, combinava 0s no- mes, fungies € aparéncias de seres imagindrios, conjugava as tradigdes ancestrais de sua cidade com 08 wtimos achados dos cofegas ritualistas da cidade vizinha, glosava um velho ppapiro descoberto na biblioteca do templo, & luz das idéins dda época e do fir a atingir. 'Na edigo precedente deste volume,’ o saudoso F. Dau ‘mas logrou éxito ao apresentar © conjunto do mundo dos deuses da terra do Egito adotando um esquema geogriifico. Mais modestamente, gostaria de fomecer a0 leitor alguns instrurmentos conceitusis extratdos da ‘eaixa de ferramentas™ do velho te6logo, a fim de Ihe facilitar 0 acesso ao imaginé- rio dos antigos egipcios. Para comodidade do leitor, orde- rnamos os fatos, exemplos ¢ regras segundo um plano que ‘pode dar a impressio de uma sociedade divina homogénea © fora do tempo. A ilusio & perigosa, mas tal perigo é 0 prego. pagar se se quer penetrar nesse mundo desconcertante ¢ ‘orientar-se no labirinto divine do antigo Egito, * com omeano tuo eiatende a mesma colegio fines, 1965 (N. 407] CAPITULO | Fontes ¢ estado dos conhecimentos 1. As fontes Diversidad das fontes ‘Silo intimeras as Fontes concernentes aos deuses eg( pei 6s. O Estado, o farad, a sociedade faziam parte de um uni- verso onde os deuses se apresentavam cotidianamente nos mais fnfimos aspectos da vida. Essas fontes podem dividir-se em duas categorias: ‘profanas’ e ‘religiosas'. A primeira compreende os objetos, monumentos ou documentos cuja finalidade primeira ndo & cultual, mas onde os deuses esto presentes: por exemplo, uma earta de negécios comegando pela enumeragdo de dew: Ses cuja proteglo se invoca em beneficio do nobre destin tério, ou ainda a decorago de um espelho cujo cabo, ornado ‘com 0 rosto de Hathor, evoca, por intermésio da deusa celeste lida ao astro solar, uma jover de encantos resplandecentes. Entre as fontes ‘profanas’, os documentos literitios ‘ccupam lugar & parte. Os textos qualificados de ‘contos’ tiram sua inspiragao do mundo divino. Com frequéncia, trata-se de textos cifrados, que glosam de forma divertida tagbes, quer politcas, quer culturais, e particularmente religiosas, Por fim, 0s ensinamentos, forma literésia muito antiga, péem em cena um venerivel personagem que, no cre= pisculo da vid, tansmite a seu filho um conjunto de preceitos priticos. Esses ensinamentos erigem o painel de uma sociedade ‘deal cujos prinefpios se fundam nas relages entre os deuses & fs homens. ‘As Fontes mais especificamente religiosas comportam os jobjetos e monumentos em relagio direta com um culto of 14 ‘Lavoe TAUNECKE ‘um culto privado ou qualquer manipulasio que se refira a0 imaginario dos egtecios. A decoragio dos templos € de longe, a fonte mais abundante para quem deseja sondar 0 mundo dos deuses egipcios. As incontiveis cenas de oferendas dos templos mostram o rei, homem-emblema da sociedade egip- cia, oficiando diante dos deuses. Os deuses s3o representa dos ¢ deseritos. Contudo, essa fonte & também a mais deica- da de utilizar, pois tais cenas e representagdes fazem parte de séries correspondentes a regras gerais, tanto de forma quanto de contetido, que desempenham um papel capaz de determi- nar 0s ep(tetos ou fungGes da divindade, e até sua natureza. As grandes compilagaes Determinados textos religiosos atravessam toda a hist6- ria egipeia, ampliados ou reduzidos, modificades ow gos dos, reimterpretados, ilustrados. A mais antiga dessas compi lagdes & conhecida sob © nome de Textos das pirdmides. ‘Omam as paredes dos aposentos funeririos de reis e rainhas do firn da quinta e da sexta dinastias ¢ formam um conjunto de 759 capitulos de extensiio muito varidvel. ‘Alguns eqiplélogse viru of tina colo de aici dlepcee, cutee o2 {estes secilodes durante o sepallamento seal, outros ainda uma espicie de {grin do yl. Geteuso scocpeniado de son bigeafin silica, Por onito fempo, admiisse que cso textos Unhaun suas rales nas rligices pre- Histéricae, mas poc diversossapetos roferem-ae aim Enad extra, se £0 don ree do Antigo lperio. Mais tarde, uma parte desses textos originalmente reser vados & salvagio real foi transposta em beneficio dos parti coulares. Nos Textos dos sarcdfagos, pintados no interior dos ‘esquifes de altos personagens do MEdio Império, encon- ‘os pauses po nT 1s tram-se mumerosos empréstimos dos Textos das pirdmides. Essa compiagio conta com 1.185 capitulos, muitos rut zaddos a pant do Novo limpéio no Livro da saida uo dia, composto de 192 capitulo € mais coabecido sob o nome de Livro dos mortos Conforme a necessdade, as frmulas dessas compl «es madam de suport e passam do cult funeitio a0 ulto Aivino. As deeoragtes dos templos ptolomacosreuilzam ani 208 captlos dos Teatos das pirdmides, na verde do Livro dos _mortos (sss de Siva: eaptalo 7 do Livro des mortos) Entre as grandes compilagSes, deve-se conta os livros conhecidos sob os nomes evocadores de Livro do que exite ‘no Duat (Mundo Inferce) 00 Livro do Indu, Livro das cavernas, Livro das portas. Bssas grandes composigles or- ‘mam as prods das tumbas reais do Novo Impéro, mas (0- ‘am rapidamente transpostas em benefico do particular, em especial Livro do Imdua. No século 1V a.C, aparecem em Tebas novas compila- es fanedsas, os dois Livros das respiragdes, caja eom- Posigdo é, na verdade, bastante disparatada ¢ apresenta nu- merosas variants. Os rims Alguns rituais, amplamentedifundidos, sio conhecidos por diversas verses sobre vrios suportes, como o antigus- Simo ritual da abertura da boea (animagao de esttuas divi- nas, defuntos e mimias) e 0 ritual divino didro, sie de 6 tos cultuais segundo um papiro de Berlin, celebrado em todos 0s templos (Cuidados com a pessoa divina: tovcador, vesturio, alimentagso). 16 Lavoe raAUNECKER (Outros stale, mais pontuais,chegsram.sor igualmente tranertos em papiro: ritual para Amencfis I. um soberano divnizado: ual dO mbalsamamentoo ritual da confirmagio do poder rel ete. O dvino pa "Nesiin chegou 20 out mondo mundo dos stuals das lamentages Se Isis Nets, de repli Apis, Titania dos nomes de Apts (papro ‘renner Rhind). Seu cologa, Pasherinemin, completos sou Livro dot ‘mortos com os ruals de prteger a bara, de persegut Sth seus conf ‘erados, de perseguir o maligne das plorfcagoos de Oxs eo qu ani ‘sur Sokirs(pupito Louie N3.129). Conhecemos outros livros ¢ rituais pelas decoragoes dos templos (ritual funerdrio de Osftis no més de khoiak, a pro- tego dos leitos divino e real etc.). Certas ceriménias 50 descritas como dramas sagrados que pem em cena os deu- ses: 0 mito de Hérus em Edfu, 0 nascimento divino celebra- do nos mamises da época tardia,' do qual se conhecem as verses hist6ricas do Novo Império (nascimento da rainha Hatshepsut e de Amenofis ID. Hinos, textos mitolégicos e magicos Entre os hinos mais eélebres, deve-se citar as duas gran- des. composigdes consagradas a Amon, do museu de Leide (papiro Leide I, 350) e do museu do Cairo (papiro Bulag 17), 0 Grande hino ao Nilo, sem esquecer os famosos hinos 4 Aton das tumbas de Tell el-Amama. ‘Niza hinos, como as exonagdes ao temor vino e talvex os cantos do lua de Mt, cram escandidos pela mulidso nu port do templo. As ‘lusBios mioldgeas so eqdents nos eontos: Conta das dots Irma. " Termo inventado por Champollion, mammis “Tugar de nascent’, pra designar a pequena consrugto anexa a0 templo, onde se represen- {ava o mistco anual do nscimento do deus-menino. Ox mamises mals ‘em conservados, todos da épocaploloica 30 os de Dendera, Fs dtu (N-doT} ‘os peuses oar ” Elo. Com do Devs do Mar, ou aia mas eBlebyecIsevsents 3 Avera de Hira e Se Cesic laos as nonograta, fra cops. {es pr eabelecer a jufieativa mira de wr santa a ceprd= ‘ovina bse dis pos ou no aos do temple. ‘Outras histcas integraram-se nas composigies funers- ris, como 0 Livro da vaca celeste (tumba de Séti I, catafaleo de Tutankhamon). Os textos magicos so a fonte miais rica em alusies mitol6gicas, Essa abundincia constitui tanto uma rigueza quanto ‘uma fonte de dificuldades, na medida em que os contextos, 08 suiportes e 0 uso desses documentos eram diversos. Os teste- munhos do pensamento religioso egipcio que nos chegaram foram extrades de uma mesma fonte? ‘A religigo egipeia nio se apsia nem sobre uma revels ‘0 divina nem sobre uma tradigto profética; nto hi, portan- fo, nem doutrina codificada nem texto eandnico no sentido estrito do fermo, Deviean existir algumas férmulas bésicas. 4. Assmann resttoin uma série de sete hinos solares padtoes. 6 a partir do Novo Impétio se constata uma tendéncia para ‘ixar na porede de pedra 0s livros e ritais até entio confia- dos 20 papiro, mas o alvo visado permanece essencialmente a elieécia local do documento, CConmtvan-e 0 bibiotces dos tempos, Casas de Vida pare repo ‘dra pecessidnes presses imediats, Ses escibas no ef cs gunn Seu de uma vordae (eid! compe, mat dbus que iravam ‘sigs Tivos para assegutr eis dos velo italse seus desdo- Tramenss ves © conhecimento do mundo divino constitu igualmen- te, um fator de poder: enquanio algumas compilagbes se ‘mosteavam amplamente acessfveis, a exemplo do Livro dos ‘mortos, outros textos eraim coasiderados perigosos. 18 cxAue maunecean Determinados ritus comesam por terveis ameagas a0 Tetor que revele 0 eoateddo n08 profanos:0 indisreto que divuleasse 0 ital ‘uri ‘fim da obra’ Sserd massacrado”, diz © autor do papiro Salt 325.114, pois, deuses © mitos exo conhecimento ve rservava 80s rmanipoladores amides. Listas de deuses Os egipcios nio sentiram necessidade de estabelecer um inventirio de seus deuses. O esforgo dos hititas, que fizeram, laboriosas listas de concordincia entre seus deuses ¢ os de seus vizinhos, devin faz@-los sorrir. Essa ansncia deve-se & propria natureza do pantelo, em que as divindades apare- ‘cem, desaparecem, mudam de nome e de fungio segundo as Circunstancias. Os poucos repertérios conhecidos de divin: ddades inserever-se um contexto limitado e visam a uma aplicagdo precisa, ‘A tumba de Rameés VI 6 um monumento dadicando a “todos or deuses do ‘ast (unde lferon), pare que orl “Taga om nyo invent fim de nvar seus nome” A essa expos de Bot” or infernos cores pondem os Who ts wie dos cli, que s8o oF manuais de geograia rl toss (0 lero do Fayum, © papi geogrtico de Brooklyn, © papiro ‘Fomilc) A Ralsdads doses documento em exper cn eletfontoe tele cos, Foralecendo or deones locals nas fangs sniversis e, por cones uit, rlualmente elicases (ve pp. 25-266 118), No templo de Séti I, em Abido, duas lista totalizam 113 divindades agrupadas por santusrios ou capelas. Neste caso, ‘como na maior parte das listas conhecidas, invocam-se os deuses no Ambito de uma litania, € seu nome, sua ordem © sua natureza so varidveis. Na época tardia, as paredes do aos, espécie de armério de pedra contendo a imagem habi tada pelo deus, portam representagdes-inventirios das ima- gens divinas locais associadas aos deuses residentes. > Designo da lista elefOnen anual francesa (N. do.) os peuses 0 eamr0 ry ssa lista so muito pebxias dos inventéros das esttuas divinas gr “aoe nae pares ds erptas dos tempos de Td e de Dendersh A gran “Tita de dvindades que ae estende pela press do santurio do tempo {ic Amon de His no os de Kharpa, € wm inventrio de imagens iv tno vonoradea noe grandes eetros de culo, egrpeda pelo nome, © no yuo da compen do do pantedo expo. . Histérico dos estudos Antes de J.-F. Champollion 0 prestigio da civilizagao egipcia parecia incompativel com 0 aspecto birbaro dos deuses, e para os escritores anti- £205, cristos ou ndo, impunha-se a idéia de uma religitio de iniciados ante um povo ignorante e supersticioso. Seria esta posiedo de numerosos exegetas, historiadores e sabios, ¢ perpetuou:se até os nossos dias. (© estranho pantedo egipcio com seus deuses meio hu- manos, meio animais, € outros seres hibridos, inspirava ‘zombarias e desdém aos gregos. “Tu adoras 0 boi e cu o rifico 20s deuses", ironiza a respeito de um egipcio 0 personagem de uma pega de Anaxandride (século IV a.C.). Porém a sabedoria da antiga eivilizagio egipeia vinha uum grande prestigio junto aos pensadores gregos. Segundo a tradigho, os mateméticos Tales, Pitigoras e Eudéxio de Cai- do, os Iegisladores Sélon e Licurgo, e sobretudo 0 fildsofo Platio, estiveram no Egito, extraindo dos sacerdotes egipei- (0s parte de seu saber. “Interessei-me apaixonadamente pelos livros de Hérus e de Isis", faz dizer Luciano de Samésata a Pitégoras. Diodoro da Sieflia chegou até a imaginar uma estadia de Homero no Egito, Segundo Diadora da Sica, oF sacerotes epicios ensinavarn vm “doutrina sere”, Clemente de Alexandra admite que, por tis "do onsto que se sepa mim tele pepiro”, os egipeion "x8 do a conhe 20 (CLAUDE TAUCK ‘era verdade por enigmas alegorias, metiforase outros tpos de Figura ‘Confamme 0 spologistaerisio ArmGblo (mort exrea de 327), 0 tuba v6 Spenas 0 animal, emguanlo 0 sdbio venera mele conceils eters. Na ‘Assenbidia dos dewes, de Lacano de Samésaa, 0 pepo Zevs declar “Sta eligi cat chela de emblemss, nem por aso so deve excanec®- 1a quando nGo se €inciado", No século TI aC., Evémero de Messina deseavolvia rns tse estes que via nos deuses homens superiones div ‘izaos em rao de seus aos beafazeos para com seus semethants. Nos Frteltos anos do seule I, Platwco anlish 0 mito de Onl, gue cons. ‘era uma sucesso de alepovas,a fim de resgatar wma visio transcend. dando una fesposta a qucsiies de Seu temp. Alguns decénios mais tarde, os pais da Igreja nao se in- ‘comodavam muito com os deuses egipcios, que relegavam 3 categoria de dem@nios e anjos decafdos, enquanto a religiio cegipcia ainda era uma realidade viva: a vitima inscriga0 hie- roglifica conhecida, datada com certeza, comemora 0 enterro do touro Buichis em 340 de nossa era. Em Filas, 0 culto de {sis manter-se-8, por motivos politicos, até 535. Nos séculos XV ¢ XVI, redescobriram-se as obras dos ge6grafos © historiadores antigos. Peregrinos e viajantes, visitavam o Bgito, No geral, o Egito aparece aos pensadores, do Renascimento como o pais da sabedoria secreta transmi tida aos iniciados por intermédio da escrita hieroglifica ‘A Conira-Reforma deu novo impulso & pesquisas: 0 Egito oma-se o bergo de um pensamento pré-cristio habitado pelo Espfrito Santo. Os deuses, segundo Atandsio Kircher (1652), sfo alegorias obscuras que encobrem a encarnagio do Verbo Eterno, [No sco dat Lares, a visto predominane 6 x de uma eigio de ic dos monottstas qc feinava sobre natura ropersiciona €zodlte, © 0 Ser Supremo #6 era conhocido pela elite (Volar, 1783). Os epipcios lo aderavam, como, apends tm deus Unico e iis”, mas "sb rnomes figuras convenienes os diferentes autos" (abade Le Mascree Benoit de Mail 1735). (os peuses po warro at A partir de 1809, aparecem os primeiros volumes da colossal Description de I'Egypte, suma das observagies recolhidas durante a expedigio a0 Egito de Bonaparte (1798-1800). Para os autores da Description, o segredo dos iniciados no era o conhecimento de uma transcendéncia suprema e Ginica, mas 0 dos mistérios da natureza. Os deuses so “composigbes fantésticas” ou “emblemas”, invocados ppara “pintar os fenémenos naturais e forecer de algum ‘modo uma imagem sensivel deles”. -Monoteismo e politetsimo Desde 1824, 08 textos religiosos egipcios tornaram-se, centim, diretamente acessiveis. Mas seu contetido era ainda mais desconcertante que as imagens dos deuses. Para J-F. CChampollion, Amon-Ra era o ser supremo, Durante grande parte do século XIX, a tese dominante seria a de um mono- ‘tofsmo mais ou menos afirmado ou secreto. emplos:E.De Rovgé (1860), SirP. Le Page-Renouf (1879), ese hepo testa" cada Git eacolhia um deus que se tomaria © Unico, Hi Brogsch (1882), edlogo do Bem. inalo.no corago do bomem; os mites sto 4 Iramponigso transcend de scomecimentos politicos (G: Maspeo) Em 1879, Paul Pierret expds um quadeo da religion cgipein em que a figura central é 0 deus Unico oculto que se manifesta no Sol. Os deuses que o acompanham sao imagens simbélicas, espécie de hierdglifos que descrevem 0 curso sol, ¢ © deplorével culto de animais nfo passa de uma cor- rupgio tardia, Pelo fim do séeulo XIX, dois acontecimentos desviaram o pensamento dos pesquissdores: de um lado, & colonizagio da Africa e 0 descobrimento de sociedades to- temicas (comparativismo de Frazee), e, de outro, a descober- ta dos Textas das pirdmides (1881), revelando que 0s esip- 2 {LAUDE TRAUNECKER ios do Antigo Império eram politefstas. Victor Loret (1902) foi 0 primeiro a utilizar 0 modelo totémico, seguido por Emile Amélineau (1908), Philippe Virey (1910) e, sobretu- do, por Alexandre Moret (1925 a 1935). Para eles, os nomos, isto é, as diferentes regides do Egito, eram antigos set totem, A. Moret rejeita a idéia de um monoteismo de iniciados. A tese tot€miea foi vivamente combatida (Van Gennep, 1908; G. Foucart, 1908; E. Meyer, 1906; K. Wi ‘demann, 1925). A oposigio mais estruturada, porém, viria de Adolf Erman, em Berlim (publicagdes de 1905-1937), ¢ de seus disefpulos. Esta escola, que se poderia qualificar de pragmética, fundava 0 pensamento religioso egipcio sobre ‘um sentimento de temor ante a natureza. Os deuses arcaicos foram conservados, mas a evolugdo da civilizagao condur ria. 0s egipcios da 18* dinastia a uma concepgo mais elevada da divindade, préxima do monoteismo. Depois 6. restou uma longa decadéncia. A evolugo das teologias foi conse- aiiéncia de futas politicas e de rivalidades do clero. f desenvolvides por K. 1.1). A parte algumae torias margins a dovse-mie ea vaca; I. Junker, 140: © ‘Beus araicn), © consenso em torno dat idéas Je K: Sate 1H. Kees 6 bastante geal. Mas parte da escola frances, reprsentada por E. Drioton (1945), Sainte Fare Carnot (1947), J. Vandier (198), Christiane Desroehes Noblecout (1960) » F. Davrsat (1965), continas fiel a0 monotefome de elite ‘Toslas essas abordagens se colocam entre dois extremos: de um lado, um politeismo pragmético, reflexo da hist6ria politica do Egito, ¢, de outro, um pensamento religioso alta- mente espiritualista. pragmitico A. Erman lastima a pro: ximidade, em certos textos, de uma visio “grandiosa de Deus” com'“imagens miticas grosseiras”, tais como 0 ovo primordial ou a criagio pelo escarro [Nessas reages os pauses po Barto 23 esti a idéia implicita de que todo pensamento religioso deve ‘conduzir & concepgo de uma divindade transcendental ini (Um autor questionava-se mesmo “se os egipeios. em sihima unis, ndo foram monoteistas sem 0 saber"! A escola moderna Em 1946, 0 egiptélogo € assiriélogo norte-americano) Henri Frankfort descartou o dilema poli/monotefsmo e reji- tou qualquer julgamento de valor. Intentou penetrat na légi- cea dos antigos e introduziu as nogGes de deuses-foreas, de teologia descritiva do universo, de diversidade de aborda- gens, de pontos de emergéncia maltiplos. As sinteses pro- ppostas desde a década de 1960 apsiam-se nessas nogbes (P. Derchain, S. Sauneron e J. Yoyotte). Em 1971, E. Hornung, Publicou uma obra que faz um balango do mundo divino egipcio, beneficiada por um consenso bem amplo. A partir de 1975, J. Assmann, especialista nos hinos solares, estam- pou uma série de estudos que relangaram 0 debate sobre a aparente contradigao entre um mundo divino amplamente politefsta e 0 conceito de divindade nica (ver p. 112) 3. Alguns conceitos Multiplicidade de abordagens (Os deuses sio poténcias animadoras da natureza. Esta situa-se no plano da realidade, Apesar de sua infinita diver- sidade, o real 6 factualmente tnico. Um objeto possui apenas ‘uma realidade palpével e quantificével. Todavia, para além 24 ‘cuaupe mRaUNncKER do real ‘nico da experiéncia humana, reinam forgas ordena- doras do mundo, as quais suscitam o plano da verdade, Esta verdade contém todas as potencialidades do imaginario. Para a fisica moderna, o real e 0 verdadeiro devem superpor-se. © antigo egipcio via isso de outro modo: se o real era tinico, © verdadeiro era miltiplo, conseqgncia de sua inacessibil dade imediata. A multiplicidade dos verdadeiros, e portantoy das deserigdes miticas do mundo, autorizava a diversidade de respostas As questdes levantadas pelos homens observadores da natureza. Tal multiplicidade de abordagens permitia. a justa- posigiio de imagens miticas aparentemente contradit6rias, Poueo importa, finlments, que a verdade do ofa Fosse comida na ima {gem de um rio celeste onde navegava a barea solar ou na do corpo de uma {mulier que diva nascimento, toda manhl, a0 sro do dit Oana na OO ‘onteesrlodo de uma vaca cujas pats sustentam 6 ea. Toxin ens shor ‘agen: podiam superpor-s, piss fang prevalecia sobre a orm. Consciente dos modos de funcionamento do universo, a religifo egipeia era uma espécie de fisica (P. Derch 1965) que invocava no dados objetivos © reproduziveis, ‘mas jogos de imagens, palavras © metéforas. Os mitos des. creviam os fenémenos naturais e, como nossos modelos de fisica tebrica, wlizavam uma Tinguagem formal eujos sim- bolos eram os deuses e as equagdes 0s relatos de suas agdes. © mito de Osiris, por exemplo, 0 deus que morte ¢ reina sragas & solicitude de fsis © Néftis, era uma mancira de ex- primir todos os fendmenos efclicos, quer se tratasse da vege- tagHo, da cheia do Nilo, ow ainda da Vida e da morte. O fun- damento do mito € universal, mas sua expressio pode utili- zar diversos mateiais teol6gicos. Os sacerdotes de Elefant nna conceberam uma Sétis-fsis que, assistida por uma Andquis-Neftis, assumia as fungBes osirianas no Ambito da teologia local. Tais associagées de nomes de divindades lospauses po Bart 2s constituem sistemas combinat6rios pessoaffuncdo bem dis- tintos do sineretismo, Pensamento ¢ ago Os deuses sio imanentes, pesentes, em um real que no passa de reflexo de sua ago, Mas esse mundo reconhecido © descrto, pelo qual © homem se sente responsivel porque Cconhece seu funcionamento, & frigil. Sua conservagio de- pend do ritual No plano teérico, o ritual egipeio funda-se em duas no- es: por um lado, a polissemia, a pluralidade dos signifies dos das imagens, coisas e objetos, e por outro, o caréier performético da imagem e do vetbo. Diversos ‘objetos’ po- ddem ser os pontos de emergéncia de uma mesma forya, de ‘uma ‘coisa’ safda do imagindrio. Assim, a fetlidade do pats ‘fo s6 est contida na enchente, mas igualmente no Sol que the regula o retorno. Ao inverso, uma tnica ‘coisa’ imaging ria pode congregar nela as correntes que animam diversos “objetos’ do real. O deus-crocodilo Sobek comanda no apenas 0 mundo dos animais aqusticos, mas também as for- ‘8 ctOnicas do crescimento vegetal ‘Os elos que unem o nome € a coisa vio além de um simples e6digo semiol6gico. A palavra € performética: 20 pronunciar © nome de uma coisa, dé-se existéncia a ela ( verbo e a imagem, a palavra e 0 gesto ordenado do ritual constituem uma linguagem performética. Por sua forma o ritual depende do real, por suas consequencias participa do imaginério. Para assegurar sua eficécia, importa, pois, que ‘aja praticado sobre um objeto pertencente ao mesmo tempo ‘40 mundo real e 20 mundo imagindrio, Tal €o papel da esté- tua do culo, imagem de um ser divino habitada pelo ba do 26 cauDe raAUNECRE ‘deus, vale dizer, pela parte da divindade capaz de transpor fronteira entre 0 real ¢ 0 imagindrio. © contato com as forgas do imaginério passa, assim, pela imagem de um personagem divino definido, nomeado, bem delimitado € reconhecido, presente na sua'estétua de culto (ponte de hierofania mével © manufaturado), mas 0 resultado previsto deve englobar todo 0 universo, as vezes além das atribuigdes habituais desse deus, Para resolver esse paradoxo do rito, so extensos os epitetos da divin- dade, que servem de cédigo de acesso ao divino. O deus- erocodilo Sobek torna-se entio Sobek-Ra, responsivel pelo curso do astro do dia. capfruvo2 © mundo dos antigos egipcios 1A realidade geograifica e social © mundo nilética “O Egito 6 toda a terra banhada pelo Nilo, ¢ so egipei ‘0s todos 08 povos que habitam além de Elefantina e bebe a gua desse rio", proclamou um dia 0 oréeulo de Amon (Herddoto, 1, 18). 0 Duplo Pafs, como 0 chamavam os anti ‘205 exipcios, filiforme no sul, com seus 950 km de vale es- tucito, dilatava-se 20 norte, no Delta, espécie de triingulo fri de 200 km de lado, era uma jéia fil engastada nos desertos de arcia e de rochedos. A Teste, o deserto mineral prolongava-se pela extensio liquida do mar Vermelho, ‘A este, além da eadeia de ofsis, estava infinito do grande deserto Itbico e do Sahara. No sul, 0 deserto nubio Fechava estreitamente 0 io, barrado por uma série de cataratas. AO norte, por fim, uma zona de pntanos, infestada de animais perigosos ede salteadores, isolava o pas do mar Mediterine. ‘A existncia do morador do Alto Egito desenrolava-se ‘numa paisagem fortemente orientada, com o rio fluindo para, © norte e os dois horizontes ocres dos desertos aribico © libico, ats dos quais surgia e desaparecia o disco solar toda anhalt e toda tarde. Contrastante com 0 amarelo ¢ 0 verme: tho pastsis dos desertos, o lado fértil que seguia © rio osten- tava tons puros: negro ne momento da lav, verde brilhan ¢ Tuminoso quando eresciam as culturas, amarelo ardente {quando o rigo estava maduro, No centro, o'céu refleta-se na larga fita Kguida do Nilo, vindo do sul e correndo para o 28 [CLAUDE TRAUNBCKER norte. Fonte de fertilidade, ele era também uma via de co- municag3o a unir a totalidade do pats, Os administradores em viagem deslocavam-se de barca, ¢ esta tornava-se uma espécie de ministério flutuante. As ribanceiras constituiam ‘uma zona slagadica muito rica em peixes ¢ em caga aquatica, AL vinham fazer ninho os péssaros migratérios. Nos bancos de areia 0s crocodilos esperavam. Os hipopstamos exibiam- ‘se nas dguas lamacentas do rio, Mais Jonge estavam as tertas aixas, as terras-pehu, primeiras atingidas pela inundacao, © ‘em seguida as terras que ficavam fora da agua grande parte do ano, Uma rede de canais de irrigacio estriava a planicie féxtil. A gua cra onipresente, mesmo nos periodos de estia- gem. Bastava cavar um buraco de alguns metros, no tava em que ponto da plantcie, para atingir © Jengol freatico, ‘espécie de Nilo subterrineo a impregnar © solo. No Delta, vastas extensdes verdes e negtas de culturas pontuavam-se de monticulos arenosos, ocupados pelas cidades, e de brejos impenetraveis. De junho a novembro, a enchente transfor- ‘mava o pais numa extensio Mguida de onde emergiam as cidades ¢ os diques. ‘A orla do deserto marcava brutalmente o limite entre 0 mundo ordenado ¢ nomeado da planicie fértil e as vastas extensdes informes e inorganizadas de areia e rochedos esté- reis. Af, alpuns bosquezinhos de sicOmoro proporcionavam uma sombra salvadora a0 camponés € & sua vaca. Alguns terrenos de aluviso ocupavam os pontos baixos dessa zona do vale, distanciados do rio €, por conseguinte, recebendo ‘menos limo. Ao cair do dia, esses pontos de digua eram visita- {dos por ledes,antflopes, gazelas e outros animais do deserto. ‘A grande uniformidade dessa paisagem, que se repetia incansavelmente de Elefantina ao Delta, era outro tage es- pecifico do Egito. Alguns pontos do vale, todavia, benef avam-se de uma situagdo geogrética particular. Era 0 caso de fspeusts bo Baro » Elefantina, na primeira catarata, no ponto onde o rio abria ccaminho através dos amontoados de rochas de granito. Bem mais a0 norte, Copto era o ponto de partida de um caminho {que levava a0 mar Vermelho, atravessando uma importante zona de pedteiras (uédi Hammamat). A partir de Hu, um ‘caminho permitiaalcangar os odsis ocidentais. Um pouco ao sul de MEnfis, a depressao do Fayum,inigada por um desvio do Nilo, formava uma unidade geogrifica 3 parte. Por fim, havia as regides fronteira, as marcas ocidentais do Delt, naturalmente mal protegidas, porém abrangendo dreas pouco povoauas. A frontera oriental, 0 contriro, ponto de passagem para a Asia e © mundo médio oriental, era defendida por zonas Jgunares com passagens ficeis de controlar. No su, tréfego fluvial que vinha da Nabia, com seus produtos aficanos ¢ © ‘ouro das minas do deserto nbio, era controlado por Elefantina, Foi nessa paisagem que o egipeio extraiu imagens me- ‘foras para descrever 0 universo animado pelos deuses. Paisagens e deuses ‘Uma Teoa ronda em torne de um aluvio em forma de crescent, a0 pé de um cone de dejeglo, descendo de uma escarpa do desero. Era a deusa Sekhmet, a que percorria © deserto com sua foria, a deusa “afastada” que, apaziguada, vinha matae a sede nas éguas do Isheru, Um dos anseios do defunto era merendar, agradavelmente sentado & sombra de uma frvore, sob a protegio da deusa-vaca Hathor, senhora da alegria. Em um capitulo dos Textos dos sarcéfagos, c10- codilos e ledes, animais ferozes e temidos, aprovisionam a capela do defunto: “os erocodilos-Sobek que pescam para cela os peixes "erm marca design odio mit estabeesdo cm wa Fonsi, (Naot) 30 coaupe AUNBCKER Essa_ambivaléncia era caracterfstica do pensamento egipcio. Mergulhado em um meio natural de que dependia por inteiro, 0 exipeio concebia & natureza como uin todo imutivel cujos componentes eram necessérios. O boiadeiro atravessava um aluvigo com seu rebanho decerto com medo do crocodilo, mas a presenga do animal ressaltava a ordem das coisas. A associagio natural e permanente do animal com um meio Iiguido rico em caga e peixes tornava-o tain- bbém o signo de um ambiente aquitico onde © sustento er abundante. Assim, crocodilo, como outros animais perigo- sos no Egito antigo, era um ser ambivalente, Na época tar- |. © erocodilo de’ Copto, "seria uma forma de Geb, divindade da terra, mas também a do dest pois “a vida e a morte esto em suas mos". Mas nem 0 cro= codilo, nem a serpente, nem mesmo © escorpido, apesar do ‘medo que inspiravam, eram consideradas, a priori, enc (gGes nefastas. Além disso, ainda & assim no Egito de hoje, pelo menos em relagio A serpente, to respeitada como temi- da. Ao contririo, no mito, ampla descrigio do mundo por meio de uma linguagem metaférica, os casos sempre possi veis de perturbagko da ordem exprimem-se pela imagem - cio, quigé encerrando um nome secrete: “Isteresck, lersee, Hergen".(papito Bulag 6). Outro expedicnte utilizado pelos deuses para ficar fora do aleance de homens mal-imeneionados que quetiam set- Viese de seus nomes sera muliplies-s. Amon era 0 "deus 4e numerosos nomes, dos qusis nfo se conhece © nimexo™ {apo Bulag 17. ‘Qual era‘ sepredo do nome divino, se acaso fosse eve- lado? Ble tentava proteger a personalidade divina mediante dois procedimentos opostes: quer pela concentragGo da es- sénciadivina num local inacessive, quer, a0 iaverso, por sa diigo na diversidade do univers. O primeiro era 0 sonho ‘dos magos, que pretendiam dispor, concentrado em algumas sflabas, de_um poder divino que hes permitia. desviar pontuaimente a ordem natural impedir 0 veneno de atar. © segundo exprimia, na realidad, a imensidio do poder divino, a extrema variedade de suas manifestagées ¢, por consezvinte, a impossiblidade de deserever, de nomear to das as facets da esfera de ago do deus. Ra, tortrado pelo veneno da serpente de fis, despea sua lista de nomes e ln ‘2s febilmente numa descriggo de sua obra: “Sou aquele gue etiou o céu ea tera, ..sou Kheper ao amanhecer, Ra 30 meiovdia © Atum 20 entardecer”. Os teélogos e ritalisas ospeuses bo arto a ro se defrontayam com situages de emergéncia, 8 quais ddeviam ser enfrentadas pelo mago. Para eles, a exploragio dda natureza do deus consistia, ao contrrio, em descobrir, explicar e muliplicar seus nomes: “Aumento para ti 0s teus homes ocultos, multiplico twas manifestagves. (Khepéru)” (Os elementos da personalidade divina A) Ba e bau — Vimos que o ba abriga a nogio de trans- fertneia de energia, a faculdade de transpor um limite ¢ star de um mundo a outro. O ba de um deus era a medida da imensidio de seu poder. Manifestava-se aos vivos conforme ‘8 espocificidade da divindade. Constiuta a face visivel da gio divina no mundo sensfvel. 0 vento 60 bo de Shu schava 6 0 be de Heh (espa guy: a noite €0 ba de Kek revs) a ga 6 o ba de Non (oceano primo nl) o cairo de Mendes €o bade Osis o erocolo &'0 a de So Bek Lito aac cele, im da 18 iat) Ess banorest ‘auras erm coahecidos desde © Antigo Imp. As etelat er ot ‘har dos deusce Not cra “a de milan", dunn da abba celeste Sion ero ba de Oxi, Mesno devetadores, cs fendmenos naturis 2 ba vos: Mao Inpo, acaote natra ‘gee ara ‘Tebar no teinado. de-Amésit fot uma "maniferago UUhepére dos Daw do deus” (ver mbes p. 38 121). A fim de explicar a diversidade dos dominios de inter vengio dos grandes deuses, 08 telogos deeompuseram 0 a dlivino em diversas faculdades. Ao receber um nome indivi dual, esses bau tornavam-se entidades inteiramente & pane Assim, Ra estava provido, no Novo Império, de quatro baw, ppersonagens com cabega de carnciro chamados Forma: aparente, Poder-magico, GlorficagSo-da-carne, Intepridade- 48 cuauve AU NnCKER ‘da-came. Mais tarde, sem ditvida para harmonizar o ntime- 10 de bau de Ra com seus 14 kau, acrescentaram-se Puro- de-corpo, Viril © Ejaculador para obter um total de sete dau. universalidade do poder amoniano exprimia-se por dee bau (ver p. 1D). B) O ka e os kau — Uma passagem dos Textos dos sar- cofagos atribui a Ra “um milhdo de kau", que ele criow “para proteger seus stiditos” (cap. 261). Esses milhoes de kaw ‘eram, como vimnos, elementos naturais que mantinham a vida. Foram abordados aqui como uma infinidade bruta sem diferenciagiio. Ao inverso, os te6logos da época raméssida fizeram o inventério das gragas dispensadas por Ra sob a forma de 14 kau (sustento, venerabilidade, produsio de ali- mentos, verdura, forga vitoriosa, claro, ordem [uas}, abun- ancia alimentar, fidelidade, poder mégico, cintilagio, vigor, luminosidade, habilidade). C)A sombra — A sombea dos deuses tinha dois signi cados. O primeiro era protetor: “Tgnoras que a sombra do ‘deus esti sobre mim?”, declarava Piankhy a um de seus ad- versirios. Q segundo xa proprio de Ra: ‘sombra de Ra’ (hut-Ra) era 0 nome dos Iocais de culo a eéu aberto, Como lum corpo luminose poxtia possuir uma sombra? Nas som- bras-de-Ra as oferendas eram diretamente apresentadas divindade que percorvia o céu, A luz solar (shuy) constivuia aqui um elemento dinamico, espécie de meio de comunica- ‘80 entre 0 deus distante € 0 mundo dos humanos. Sabia-se ue o espaco a separar o c&u e a terra era essencialmente um espago de comunicagso, encamado pelo deus Shu, *Aquele- ‘que-une". A sombra-de-Ra aparecia como metafora do brilho solar, na qualidade de poténcia de comunicacdo. a projecio visivel que emanava do Disco, espécie de ba manifestado num face a face entre os humanos e 0 objeto divino. Em alguns textos, a sombra divina é posta em relag3o com a deco- ospmuses Do BaD 0 ragio dos vestfbulos dos templos, hugar marcado da imagem divina onde eram salmodiadas exortagbes ao temnordivino, D) 0 coragdo divino — O deus concebeu a criagio em seu coraglo, érgio do intelecto. Mais tarde, por conseguinte, seria por seu coragio que tomaria conscigneia do estado do ‘mundo sensivel: “Toda cidade esté sob sua sombra, para que seu comagio posse af andar como quisee”, proclama o Hino a ‘Amon de Leide (Ml, 11). No culto, 0 coragio era trazido 20 deus no momento de seu despertar, imagem da tomada de cconsciéncia ap6s a letargia do sono. E) 0 akh— $6 muito ocasionalmente o deus se dignava, tomar a forma de um espirito-akh e endossar uma natureza humana. © mito do nascimento real desenrola-se, em parte, no mundo sensivel, com a entidade divina atuante usurpando 4 aparéncia de um se vivo. Amon toma, assim, a aparéneia do rei Tutmésis IV, a fim de introduzit-se junto 2 rainha Mutemuia para conceber o rei Amends. F) Sekhem — Os deuses manipulam outros instruments de poder. Ra era uma “forga-sekhem no céu”, Amon era “a grande forca-sekhem’,e nos Textos das pirdimides os deuses tram forgas-sekhem. A partir do Novo Império, a estitua de cat habitada pelo ba divino seria uma imagem-sekhem (imagem de poder). A palavra conservou-se no copta sob a forma shishem com © significado de ‘sombra, fantasm, cespectro’. Mas contrariamente ao ak, que era uma faculda- de magica, wma forma de eficécia modelada segundo uma necessidade, um fim preciso, a forga-sekhem era uma potén cia impessoal por exceléncia, forga brutal ndo-diferenciada {que toda divindade, todo ser do imagindtio, podia usar. ‘A deusa Sekhmet foi encarregada por Ra de destruir a hu- ‘manidade rebelde. Ela tornou-se a encaragio de um poder ‘ego que atravessou o mundo e embriagou-se com o sangue dos homens. A forga-sethem era um fato bruto, fisico, des- so cuumeTmAUNEcER provido de nuangas, da qual cada um, homem ou deus, podia ser vitima ou beneficisrio, 3. O espago € 0 tempo dos deuses O espaco dos deuses A) 05 limites — Os espagos imaginérios onde viviam os seres divinos nfo eram nem uniformes, nem infinitos. ‘A autoridade do deus supremo estendia-se até 0s ‘confins- ‘jer’, vale dizer, até 0s limites do mundo criado, onde come- sava 0 no-criado, © oceano primordial de onde saira 0 ‘mundo. Af comecava a regio extrema do imagindrio celes- te: “A regido longingua do céu esti mergulhada na escuri- «io, dela nio se conhecem os limites do sul, norte, oeste, Teste. [..] Este pats 6 desconhecido dos deuses e dos espiri- tos-aki"(Livro de Nut, ver fig. 6). Porém © nfo-criado no foi jogado mum infinite vago. Espécie de contrapartida do mundo organizado, era onipresente: “Estende-se a cada lu- gar”. Com efeito, nas profundezas do mundo, dormia a égua da antecriagio, © Nun. A realidade do lengol freético da planicie aluvial do Nilo esté na origem dessa imagem. (© Nun era uma espécie de espago liminar envolvente, ¢ tam- ‘bém 0 dimo refiigio do demiurgo. B) O afastamento dos deuses — Nos tempos primordi- ais, homens e deuses viviam no mesmo espaco, sob o reina- do de Ra. A separagdo dos espagos, o real © @ verdadeiro, seria uma das consequéncias do fracasso dessa coabitacio.. ‘Quando os homens se rebelaram contra @ soberano sola, este decisis este a humanidade e retirase para o Nun, local de onde sata. Mas. ‘pon os primeiro mnansacres, Ra fonunciou a aiqullarm crags € afasou” SE para © c&u no lombo da vaca Nut: “Afastaie dles” (dos homers) ‘ospaustspo par 31 (Civ da vaca cele) E desde eto Ra persone 0 a, luninando ot omens des Tongingaa pees, Malgrado o exo vomto. do eases qu, agastados, 4 dsanctram dos homens, ering fr saa ‘nora om at impetgbs deat an ova conigso, Quase todos os deuses do Egito podiam ser chamados “senhor do e6u", mesmo os mais etGnicos. Dos diversos es- ppagos divinos, nenhum Ihes estava interditado, Osiris, con- quanto principe do Mundo Inferior, achava-se presente no mundo estelar sob a forma da constelacto de Orion. O afas- tamento dos deuses num canto retirado do céu, quando os homens se comportaram mal, nfo estava reservado aos tem. tcos. Durante as agtagSes politicas do fim do Antigo a se separaré dos homens. Ele se levantaré © as horas no existirdo, ninguém saberé que € meio-dia, nin ‘guém distinguiré sua sombra, cle estaré no e6u como a Lua’ (Profecia de Neferty). ©) 05 espacos préximos — Terra ¢ cfu regozijavam-se ro horizonte, onde os deuses estavam préximos dos homens Os horizontes (fig. 2) eram espagos liminares préximos, onde o rei, os defuntos e as almas-ba assistiam e panicipa- vvam do cielo solar. O horizonte era a fronteira a0 mesmo tempo real ¢ inacessfvel entre © mundo sensfvel e o imagi- inirio celeste, © deserto oriental, e portanto todas as regives acessiveis pelos uidis que 0 atravessavam, era. chamado “terra divina’,espécie de transposigdo terresre do céu distan te, refigio dos deuses. Fi para ela que se retrou a misteri- sae terrficante deusa afastad, (© horizonte oriental era também o lugar do combate de Ra contra o eterno inimigo, Ap6fis, ue, sob a forma de nu: vens ou de brumas insidiosas, se opunha ao curso do sobe- rano celeste. Local de abrasamento solar, 0 horizonte era & tha das Chamas. As vezes provides de portas com duplos Datentes abertos, os horizontes eram igualmente pontos de ‘comunicago com o Mundo Inferior, © Duat 2 cuavpe meALNECKER Na origem, ‘Duat’ era um dos nomes do céu estrelado (Fig. 2), mas desde os Textos das pirdmides esse universo celeste mecgulha no mundo subterraneo e toma-se, entio, o Duat infe- sor, espécie de céu inferior onde desaparecem as estrelas, Ee possuta mumerosos tragos emprestados do mondo dos vivos: ith, ‘inate e eaminhos, porss,caelas powoadas de deusese de expiitos, ms taunbém de seres ambivalenes, "ain x6 tempo initigos e alladoe do ‘efont. No Novo Imperio, © Dust pertence tnilopia topotbicn ‘cetera. Podia designar 9 tuba 6, por extersio, os laforns Sempre pssives de que era preciso se proteger. 0s tedlogos do Novo Império, em zelo pela coeréncia & simettia, dividiram os diversos elementos da personalidade divina em us espacos: “Sua alma-ba est no céu, seu corpo- diet esté no Ocidente, sua imagem (de culto) esti em Helis- polis do Sl (Tebas)” (fino a Amon de Leide, IV, 16). Aqui, ‘© modelo eta humano, e Amon uma espécie de defunto su- blime. Quanto aos homens, tinham de morrer para aleangar (8 espagos divinos. No Gono do fantasma, 0 esptito de Niubasemeth emprega uma curios ‘melifors topologies para falar de aaa morte: “Estando siante dos homens Stas dos douses, repoutel no abo Li ‘x expressdo implica a icin de uma froneira que cada ums de ns deve lesoupor, um eps oul, e aquéim da qual o hemmem muda de conligio. [Em sma, chepara a hors de Niubwsemeks, era a sus ver de per ‘ronan para founirse aos dewses no espage iaugindio. © tempo dos deuses A) As dieas eternidades — A prinaeira, etemnidade-neheh (fig. 2), era a da renovagio perpétua das ciclos, eternidade periddica ritmada pelo percurso solar: “A rota da eternidade- neheh & 0 caminho de seu pai Ra” (Naos de Ismailia, p. 14, linha 7). A eternidade-neheh era uma etemidade descontinua ‘spouses po pare 3 eager oyun mga, actttaiocfeg Sats dea lsc A aaa estrada txisente,aetersidadeneboh a se fnconumeat, rons vnbet qo ag 0 Live da yar eles, at servitnapiorbercicaiiese nian be aera | | piles do c&u, pois o tempo e 0 espago dependiam estreta- ‘mente um do outro: a etemidade-neheh desenrolava-se no espaco nascido da separagio do céu e da tera, a eteridade- djer cra a desse espago. Por definigho, todos os deuses criadores estavam na ori- gem dos tempos: assim Amon no Novo Impécio, mas tar ‘pém Aniquis, “Senhora dos anos”, Quanto a Osiris, “ele ‘dura ap6s a etemidade-neheh” (templo de Opet em Karnak). ‘A Ra e Osiris correspondem, portanto, respectivamente, as eternidades neheh © djet. Mas 0 gosto pronunciado dos egipcios pelos jogos de formas e pelas simetrias levou-os a associar as duas etemidades com outras nogées dualistas: 1. Neheh Diet 2.Ra Osiris 3. Sol nascente Sol poente 4, Manhi Tarde 5. Comego Fim 6.Ba Coxpordjet (Os valores dessas correspondéncias slo relativos e de- vem ser lidos horizontalmente. Tratava-s, af apenas de wm ogo de forma, eriador de equivaléncias l6gicas em sua estru ido. © pimico par constitu estudio segundo deriva dirtanente {opm plo mit. Or pare sepinies so enone do cco scat ‘so, 4,5 ou componcuts da pessoa (6) aa ede das emidaes, 54 ‘euaune eaumecee B) A fuga do tempo — No Ambito das eteridades, 0 deuses vivem diversos tempos. Nos livros funersrios, os deuses © 0s defuntos assistem e patticipam do ciclo cotidia- hho de Ra: “Tua duragio de vida é cada dia” (papiro Berlim 3.049, XV. 9). O mito conhece alguns grandes perfodos. ‘Veremos adiante como os egipeios concebiam a pré-criaga0 eas eras primordiais. © nome do demiurgo tebano, Kemate, significa “0 que completou sea {empo'-O term empregado para desipna o tempo do riadot ar, repee= ‘Sentava, na linguagem coment, @ menor unidade de tempo como sea ‘riagao no pastasse de wm instante. No vocabulsio guerre, a sgni= a “ataue repentne, poder Nos mitos fundadores de rituais e de ages, eujas con- seqtiéncias atingem a sociedade humana, os deuses vivern no fempo dos homens. Nascem, erescem, asadurecem, enve- Ihecem e morrem como eles. Se criancas, frégeis © precio- ‘sas como Harpécrate, jovens vigorosos e agressivos como Horus, ancigos vulneraveis como Ra no fiin de seu ciclo (Aim), defuntos como Osiris, assassinado por Seth. Mas 0 tempo divino distinguia-se do tempo dos homens. por sua reversibilidade. Aparentemente, os deuses partithavam dos. instantes dos homens, mas seus atos eram eternas renovagdes, como o de Ra, inevitivel metéfora da perpetuidade ciclica. ‘A eseala de tempo dos deuses nio era fixa como a dos. ‘humanos. Os deuses do julgamento “véem como uma hora a duragao de uma vida” (Merikara, 55). Parece mesmo que 0s te6logos da época raméssida imaginaram uma espécie de transcedéneia amoniana do tempo: “Anunciaste © que $o- beevira no porvir de milhdes de anos, porque a eternidade esta diante de ti como o ontem que passou” (papiro Berlim 3.049, XID, C) 0 fim do tempo ¢ dos deuses — O inelutivel nBo poupado aos deuses, © o fim da eternidade-neheh acarrecar seu desaparecimento, enquanto a terra seri invadida pelas ‘seuss bo sar 5s ‘éguas “como no comero, € milo subsists nem deus nem de Osf- tomaria poss'- vel uma tenovacio dos ciclos e da eternidade-neheh. No Egito a ameaga era permanente, mas nada estava perdido ‘em definitivo, © medo constante dos egipcios era a parada do tempo, acidente sempre possivel se Apéfis conseguisse imobilizat a barca solar. [A amps dois dante de seu Shingo agoniante fo tnt, gues barca slr, pve espana oS 210-211, 243-244). essa situaglo temivel prolongar-seia enguanto © ‘enema gue queimava 6 pequeno Has, tamer ode ser har pcs ‘do porum anima veenose, lo fossevencido pela magia de Tot 4, Lingua e subsisténcia dos deuses A lingua dos deuses Em que lingua os deuses do Egito se exprimiam? Para (0 egipeios dos tempos antigos nfo se punha tal questio, Para que ela fizesse sentido, seria preciso reconhecer a dife- renciagio das linguas e introduzi-la na esfera divina, Nas SSpocas mais recuadas, 0s falares ndo-egipcios, barbaros & icompreensiveis, eram sentides como marcas da imperfei- ‘¢io do mundo externo, Os primeiros testemunhos de uma Feflexio sobre a diversidade das linguas data do fim da 18" dinastia: Akhenaton, em seu célebre Hino a Aton, aribuiu a ‘seu deus a diferenciagio das linguas, tema retomado nos hinos universalistas dos grandes deuses criadores. Na teolo- gia clissica, essa fungo competia naturalmente a Thot, 0 ‘deus da escrita e do conhecimento: “O Thot, que separas as Jinguas de pais para pais". Khnum “(distinguiu) a cor das 36 ‘CLAUDE RAUNBCKER eles umas das outras, ..modificou sua lingua para (constituir) os idiomas” (Esna 17, linhas 20-22), pois para os egipcios as Iinguas estrangeiras ‘se deviam a diferengas de Cconstituigao fisica do drgio da palavra. Ramsés III fez ensi- rnar egipcio aos prisioneiros de guerra: “Mudou a lingua deles para que andassem no (bom) caminho”. O cgipcio, lingua dos homens-remetj, era também a das divindades que os criaram & sua imagem. A expresso “palavras divinas’ designava no 36 a escrita hieroglifica como também a lin. gua dos textos rituals. A introdugdo de defuntos estrangeiros no Mundo Inferior implicava que os deuses entendiam as nguas dos povos vizinhos. Na segunda divisio do Livro das cavernas, uma divindade chamada Intérprete figura no ‘séquito de Ra. Quando o grego passou a ser a segunda lingua do F; alguns deuses tornaram-se bilinges. © prestigio da lingua do poder era tamanho entre os camponeses egipcios de cer tas aldeias do Fayum, que néo hesitavam em fazer redigir em jgrego as perguntas oraculares dirigidas A divindade local, no ‘entanto bem egipeia, ‘A idéia da existéncia de uma Ifagua divina nio-humana aparece no Novo Império. Nasceu da observacio da nature- za. Nos momentos do cair e do levantar © Sol, os babuinos ficam agitados: “Declamam e gritam para ele”, ¢ os habitan- tes do Egito “entendem as palavras de jabilo do pais de Ute- net (horizonte oriental)” (edificio de Taharqa, prancha 21). Quem compreende a misteriosa lingua dos babuinos com: preende os mistérios de Ra. Na qualidade de oficiante ideal, era instrufdo no segredo dessa Iingua divina, ele “conhece a Ifngua sccreta falada pelas almas-ba do Leste” (edificio de Taharga, prancha 31). Este saber permitia-the oficiar, pela manhi e ao entardecer, diante do altar de Ra nas ccapelas solares. Recentemente relacionou-se © surgimento dda lingua divina dos babusnos a introdugdo da lingua fala- ‘ospeusts bo Form ” 4a na literatura eserita e nos documentos administrativos A lingua clissica foi entio relegada & categoria de Iingua sacerdotale ritual, to incompreenstvel ao egipcio mediano ‘como os gritos das babuinos exprimindo sua alegria ante a plenitude do disco sola. A subsisténcia dos deuses (0s deuses viviam de oferendas: “Es sua vida, diz-se do Nilo, “(pois) a0 chegares, seus ples de oferenda multipli- ‘camse e seus altares so abundantemente provides”, Essa subsisténcia em primeiro grau tommaria os deuses dependen- tes dos homens e das vicissitudes da realidade, Durante as agitagBes que marcaram o fim da 19® dinastia, os deuses ‘eram maltratados “da mesma maneira que os homens, ¢ 28 oferendas nio mais se consagravam nos templos”. “Todavia, 96a oferenda de alimento, mesmo submetida a prescrigdes de pureza e de tabu (nem porco, nem peixe), n20 bastava para manter as forgas divinas. Ela nfo seria nada ‘sem o rito e suas palavras efieazes. O incenso-senetjer “que santifica” era dado as estituas divinas “como sustento, todo dia, a fim de recobrar as forgas do Senhor do Diadema” (Ensinamentos de Ani). ‘A satide econdmica do pais, © por conseguinte a dos templos, era o signo de um consenso social, fator de equilt- brio entre 0s homens, a eriago ¢ 0s deuses. Era o reinado de Maat, A oferenda ritual, fosse alimentar ou de outra nature- 22, figurava-se, portanto, simbolicamente, pela oferenda de ‘uma estatueta de Maat, filha de Ra Os textos que proclamam jque o deus “vive de Maat" sio inumeriveis. J. Assmann demonstrou que Maat era também a palavra vivificante Evocar um deus ou um ser do imagindrio no bio do ritual ‘contribufa para sua existénciae sua subsisténcia ‘captruo 4s A aparéncia dos deuses 1. Formas e transformagies, [Nada & mais ineonstante do que a aparéncia de um deus cgipcio. Tanto quanto sua forma grifica ou pléstica, seu ‘home nio bastava por si s6 para exprimir sua natureza. Na estela dedicada a Ostris, Imenmés exaltava os instrumentos da polimorfa divina: “Numerosos slo (teus) nomes, santas (tuas) transformagies-thepéru, secretas (twas) formas-inu ‘os templos” (Louvre C 286, 18" dinastia). © vince tem deriva de mari esgic “xin, vr cxinén- ‘Sv taafomarsc' Os hep eam pode de una facia de ane ing constntnee oma Por eel, se maar apr ‘ie somes do des slr crs tavern hari pane ‘esas heer ea Khe pels man, Rao melodia e Atm bo ee ‘eer comepenent metodo. Ua ae ‘to so mand ds dees, © homer sap gun, & malipbidde ether qe he perine wansfomarse en fae vn, em 1, {dose ix te (Lo das moro, cas 76-7 ‘temo tdi do Webo i fae” tented aia pica ‘Seem pn apres do dew or tno, va ier, oss ‘ingens de culo, fella pela mao do homer. O conbecinen do ‘sare it fra vies er, cm fo, apn os scene ‘resov ecaregaon abe ar xa el. (Os significados primeitos desses termos parecem opor os khepéru, transformagdes césmicas e de natureza, 20s iru, aparéncias terrestres de personagens divinos. Mas no ‘aro que a mesma aparncia fosse designada por um ou outro dos vocdbulos. Em um hino ao Sol levanle, o astro é 20 ‘mesmo tempo uma “tansformagio (Kheper) do senhor das transformagdes € a bela forma (iru) do deus da manhi” 60 ‘os puvsts po uctTo (papiro Berlim 3.050, VI, 7), jogo retérico que combina as ‘duas abordagens: momento de ma transformagao constante «e miltipla (Kheper),¢ estado mais ou menos estvel no tempo, apargncia imediata ¢ presente (iru). As vezes, por extensio de sentido reiproco, iru e khepén eram tidos um pelo out, Contudo, apesar da multiplicidade de aparéncias ov do universalismo de suas atribuigdes, 0s deuses mantinham sua individualidade. E. Hornung observa, por exemplo, que ‘Amon-Ra, divindade plenamente universaista, nunca teve “a aparéncia da Lua, de uma drvore, nem de um curso 4égua’". Na maioria dos casos, é impossivel atribuir a cada 4eus uma aparéncia nica eespecifica que exprima sua natu- reza, Deverse, por conseguinte, considerar os diversos ele- ‘menios da deserigao da aparéneia divina como palavras de ‘uma metalinguagem. 2. 0 corpo divino O antropomorfismo Desde a aurora da eivilizagso egipeia, 0 antropomorfis- ‘mo impregnou o pensamento religioso. A forma humana e, particularmente, 0 rosto eram, com freqdéncia, o signo de ‘uma fungao real ou ancestral. Os deuses possuiam um corpo ‘com coragao pare pensar 0 mundo, conceber, amar e odiar. ‘Tinham olhos ¢ ouvidos, portanto viam e ouviam, ti- nham também mios para fazer: Amom € 0 “Um que permanece tinico, 0 de bragos numerosos” (papiro Bulag 17, Vi, 7). Certos deuses eram munidos de uma imensa quantidade de olhos. Tal multiplicaggo de 6rgdos divinos constituia mais imagem funcional que exprimia a extensio de poderes do spas po RGITO 6 deus, que descrigo de um ser monstruoso. Os magos € 0 ovo usavam, 3S vezes, essas imagens nos amuletos. As ‘personificagbes de conceitos eram sempre antropomérticas, ‘eset sexo concordava sempre com género da palavra que fencamavam. As figurinhas de andes, estranhos adultos com sparéneia de erianga, que portavam um escaravelho na cabe- ‘ga (denominados Ptah-anées), eram a transposi¢ao humana 4o Sot “ancido que se rejuvenesce” (Y. Koening). Matéria, cores e odores A substincia do corpo divino compunha-se de tr8s ma- térias preciosas: "Seus ossos so de prata, sua came 6 de ‘ouro, seu cabelo é de verdadeiro lipis-lazli. Esta descrigao de Amon evoca uma estitua de culto, porém os materiais possufam igualmente uma simbélica propria. A partir do ‘Médio Império, numerosos textos afirmam que 0 ouro é a cearne dos deuses, Desde os Textos das pirdmides 0 ouro era © reflexo do brilho do Sol. Amon-Ra iluminava o eu com “0 ouro de sua face”, Todas essas matériastransportavam as cores naturais do corpo humano para materiais inalterives, “Mas, ao percorrer 0 Mundo Inferior, o corpo do Sol notumo er dde uma matéria eminentemente perecivel: if, ito 6, ‘care’ Sea renascimento matinal, por isso, sera ainda mais glorioso. [Nas representagdes, acontece 0 corpo do deus adomar se-com uma cor relacionada & sua natureza: a carne de Amon era, por vezes, azul, como convinha a uma divindade ligada 0 sopro e a0 vento, a de Osfris era verde, imagem da putre- fagSo cadavérica e do renascimento vegetal, ov ainda negra, cor da rica terra do Egito. ‘Amitide qualificava-se 0 corpo divino de belo (nefer) Essa beleza era metaférica, pois se parecia muito natural para Hathor, deusa celeste € senhora do amor, © que pensar a ‘os DeUsEs bo EorTO dda exalagio da beleza de Sobek, o deus-crocodilo? O conceito ‘de nefer expressava uma harmonia funcional. A “beleza" de Min era seu falo. Os corpos dos deuses possufam ainda ou- tras qualidades fisicas, em particular um odor suave. Fol, alids, essa fragrincia divina que permitiu a rainha Ahmés ‘dentificar Amon-Ra penetrando em seu quarto apés tomar a ‘aparéncia de seu marido, Tutmésis I. A rainha Hatshepsut nasceu desse encontro. A idade dos deuses © corpo do deus antropomorfo seria, conforme sua na- tureza,o de adulto ou de crianga. O menino era sempre uma criancinha de cerca de dois anos, nu, com o indicador nos ldbios, em postura prépria & sua idade. As meninas no ti- ‘nham acesso a0 c6digo iconogrifico divino. Em compensa- lo, as deusas eram sempre representadas como mulheres eis perfeitamente formadas. Os deuses adultos tinham a aparéncia de um homem na plenitude da forga. No caso dos deuses-filhos combatentes, como os numerosos Horus, podia-se imaginar vigorosos jovens mal safdos da adolescén- ia. Os deuses envelheciam © mortiam, porém aos egipcios repugnava representar esses scres sublimes afetados pelos achaques da idade. A imagem de Atum, ancio curvado e apoiad num bastio, era apenas 0 signo de um momento do cielo solar. Os andréginos Encontra-se, freqtlentemente, uma figura estranha nas procissées divinas das bases das colunas dos templos: um personagem de ventre arredondado, masculino por sua bar ba, mas dotado de pesados peitos “femininos”, vestido com ‘ospeuses po nao a ‘uma simples cinta, &s vezes munido de um estojo falic. Esses génios, conhecidos desde 0 Antigo Império, simbo- lizavam Hapi, 0 rio que fornecia alimento. E tradicional ver nesses génios-Nilos seres andréginos. No entanto, Hpi € homem, porque nas procissGes de genios alterna-se com figuras femininas que também personificavam a rosperidade material. Seus impressionantes peitos siio de uum homem obeso. Hap, imagem de uma ideal prosperida- de alimenticia, apresenta os sinais da superalimentagao, Felizmente os egipcios nto submeteram as personificagoes femininas A mesma norma iconografica. Um texto demét co expe uma interpretagio bissexual dos génios-Nilos: “A imagem de Hapi, euja metade & homem e a outra mu- thee” (papiro Berlim 13.603). 0 sexo dos demiurgos, deuses criadores, na maior parte das vezes viris e solitirios, por vezes atwando aos pares, & inequivoco, A deusa Neith, eriadora do mundo, era “um hhomem agindo como mulher, uma mulher agindo come ho- ‘mem. Um texto estima sua feminilidade em termos ma: méticos: “dois tergos dela sie masculino, um ergo fe- nino", mas as representagGes mostram-na inteiramente + feminina: a bissexualidade dizia respeito & fungi0, no a0 personagem divino. Diversas grandes divindades masculinas eram qui ceadas de ‘pai e mie’ (por exemplo Amon, Aton, Ositis, Sokar etc.). Essa bissexualidade nfo significava uma an- roginia por natureza, e sim ima metéfora dualista a ex- primir ao mesmo tempo a eficécia do Um das origens e 0 aleance de sua agio. A vinheta do captlo 168 do Lire dor moror moses ma miler com {ee cabeyas (eon, hms, able), nvocada sob 0 nme de Sekine! Base. O texto que descreve imagem a chan de Mu epecifica (gsc dove str rove eu fal em sey. Trees Ge mgem comr a cnpooss 000 das divindades qe cones» cepa das Seis Se —- F ei pos av sue Sh deen Mal NE anges iOS sania eS wn a a (D. Mecke) i aprecindas pelos ABO 2 sereshibridos 0: ste, semi argocia exteemamente dese x Srl, de numerosas divi trumana, sme NTompromisso entre WM PE pr de a © ah ic, ae ges conse combine ‘rae Tas tin on ; wa de tungoeb° se omit ean pel Ces Se pc oe ‘pomorfs ‘Amon, 0 Oculto, talvez vim ‘os pauses po Bor 6 associava-se as divindades etGnicas ou as forgas de cresci- ‘mento da vegetagSo. Os egipcios nio recuaram ante as associagBes mais es- tranhas. As vezes, s6 um pormenor do rosto bastava para levocar 0 aspecto animal do deus: nas colunas ditas hathéri- eas, a encantadora face da deusa enquadrava-se por orelhas de vaca. Outras formas eram franeamente monstruosas, ‘como os hipoptamos de diversas eabepas da eripta do tem- plo de Tod, tidos como representacio da deusa Tjenenet, pparedra de Montu.’ Os demOnios e seres apotropaicos mofa- ‘vam das circunspectas aparéacias dos grandes deuses. © conjunto inverso de uma cabega humana sobre um ‘corpo animal, menos frequent, é, todavia, bem atestado: as esfinges, os passaros-ba. Mas essas expressbes iconogrificas ‘aramente representavam divindades particulars. Eram 0 sinal ‘da ingeréacia dos huumanos, res ou defuntos, no imaginatio, € ‘do acesso a um poder que nio Ihes seria normal (D. Meeks). [No conjunto, 6 rosto era a representagio de uma perso- nalidade, o corpo a de uma faculdade. Em cada nomo 0 pis saro-ba ostentava a face do deus local. AS figuras que com- binavam diversas partes de corpos animais exprimiam, pela imagem, associagbes de fungdes divinas. Khonsu 0 Velho, ‘de Katnak (compo de crocodilo mumificado com cabega de faleio), combinava 0 signo do deus celeste com corpo do ser primordial da teologia local As aparéncias animais Algumas divindades tinham wma apazéacia simplesmen- te animal, como 0s touros Apis, Mnévis © Bachis, ou 0 eX0 nuts vezes associados @ uma divindade mais abstata lb ate, no ap. 73. (No) 6 os pauses D0 warro ¢, portanto, antropomorfa, como Ptah, Ra e Monta para 0 18s touros citados. Numerosos deuses contavam entre suas diversas formas manifestagSes puramente animais: 0 carnei- ro de Khnum e de Amon, 0 ganso de Amon, o babufno © 0 fbis de Thot, a gazela de Antiquis. Mas a posigio desses animais variava bastante conforme simbolizassem 0 dom{nio de agio da divindade ou representassem sua fungio, ou seu femblema, ou ainda uma encamagao divina que recebia um ceulto (ver p. 119). Nas representagdes, a antropomorfizagio de ‘animais sagrados’ aparece cedo: desde a 12* dinastia, 0 touro Apis podia tomar um corpo humano. Por vezes, a aparencia divina distanciava-se dos mode- los do mundo vivente, Hérus de Edfu, 0 deus guerreiro © destruidor dos inimigos de Ra, partia para a investida contra ‘5 revoltados, precipitando-se sobre eles na forma de um disco solar alado, ofuscando as vistas. O pilardjed, objeto provavelmente menfita, era considerado aparéncia de Ositis, © ‘estivel’ (died); a panir do Médio Império, podia ser represen- tado munido de bragos portando os eetros do deus. O sistro dorado com a cabega da deusa de orelhas de vaca era uma figura de Hathor, 3. As atitudes ¢ os atributos As posturas Em geral, as atitudes dos deuses eram muito pouco si- gnificativas. A divindade antropomorfa era representada uer de pé, quer sentada num trono, Alguns deuses, como rah, Khonsu e Osiris, eram representados com 0 corpo visto de perfil e revestidos por uma espécie de envoltério que hes dava 0 aspecto de miimia. Conhecia-se tal aparéncia desde & ‘os euses po port o 6poca arcaica, muito antes da pritica da mumificagdo, ¢ re- servaya-se apenas aos deuses relacionados com a morte, Alguns deuses tinham uma postura espectfica. O deus Min, envolto como Ptah e Osiris, dirigia a céu a mio direita segurando um leque; a mio esquerda repousava sob o envol- \Grio, ¢ ele tinha seu sexo em eregio. Essa atitude era muito antiga, como testemunham as estétuas colossais de Min des- cobertas em Copto ¢ recentemente reatribuidas & época ar- caica, As deusas Meret, de bragos estendides, batiam palmas para ritmar a aclamagao dos orantes. Heh, personificagao dos milhdes de anos, dirigia seus bragos 20 c&0. Quando preciso, os deuses adotavam 0 c6digo gestual ccomiam a0 conjunto da iconografia egipeia. As deusas carpi deiras agachavam-se, com a mao levantada para 0 rosto, os deuses mortos eram figurades deitados, rigidos em seu esta- cdo mumiforme. Os deuses que renasciam estavam deitados, ‘mas levavam 0 brago ao rosto. Os protetores tocavam o om- bro de seus protegidos, os deuses que falavam erguiam a nnilo horizontalmente para apoiar sew argumento etc. Em eral, porém, os deuses egipeios eram s6brios e comedidos em sua atitude, a0 contrério das divindades de origem estrangeira, due se agitavam armadase volteadoras (ver p. 133). Os acessérios divinos ‘As mifos dos deuses raramente estavam vazias. Em uma, tinham a cruz alada-ankh, simbolo da vida, na outra, 0 cetro: suas (fig. 3). 0 cetro-uas deriva, a0 que parece, de uma for- 4quilha destinada a apanhar serpentes. Conhecia-se este obje to desde a época areaica e, embora continuando em uso na vida temrestre, tomou-se 0 sfmbolo do poder dos deuses. Ao ‘entronizar o rei, os deuses concediam-Ihe a vida e a forga- uuas. Como a vida-ankh, was era uma graca dispensada pelos os ‘os Deuses Do Botro deuses. De vez que um verbo derivado, uasi, significava ‘tombar em nusnas’, a nogio de was poderia ter relagio com as forgas de manutengio de um Estado. Nas miios das deu- ‘sas, esse cetro era substituido pela planta do papiro, sfmbolo hhathrico relacionado a0 poder das deusas meigas ¢ terriveis ‘20 mesmo tempo. ‘ais objetos eram comuns a todos os deuses. Algumas divindades tinham insignias especificas relacionadas com sua natureza. Osiris, na qualidade de deus-rei, como © misterioso Andjety do nono nomo do Baixo Egito, apre- sentava-se munido das insfgnias do poder: o cajado de pas- tor-hega © 0 agoite-nekhekh. Admite-se tradicionalmente que esses dois objetos, ritualizados desde muito cedo, cram instrumentos de pastores. Determinadas divindades guerreiras, como Neith, Uaset e Montu, mostravam-se as vezes armadas de arco, flechas e maga. Thot, o intelectual, tinha sua paleta de escriba. Nio raro os deuses portavam objetos na cabega, mas na maioria dos casos tratava-se de signos de identificagio ou mesmo do nome da divindade (Isis e Néftis). Assim, Geb podia ser figurado por um personagem portando um gans igeb na cabega, As diversas formas do deus solar portavam sobre seu protdtipo um disco vermelho circundado pela ser- pente, assim como os deuses lunares estavam provides de lum disco e de um erescente horizontal. © trono dos deuses simulava uma antiquissima forma real: sua forma evocava o signo hut (habitacdo), sua decora- 70 com tiras salpicadas ou com plumas de falcdo lembrava natureza horiana do detentor do poder. A fungi era as vvezes descrita pela imagem da Unido dos Dois Paises (dois 2enios-Nilos atando as plantas simbélicas do Alto e do Bai- xo Egito), que prendia o Angulo lateral inferior do trono. Esse mével arcaico era de uso exclusivo dos seres divinos ¢ dos soberanos. Em compensagio, alguns personagens cé- Cos peusespoxaro « lebres divinizados, como Imhotep © Amenhotep, filho de Hapu, gozavam do conforto de luxuosas poltronas da dl- tima moda de sua vida, O wraje AA principal caracterstica do taje divino & sua atempo- ralidade. Os homens portavam uma tanga e uma espécie de rmalha com algas, as senhoras trajavam um longo vestido colante com algas, que comeyava abuixo dos seios e descia até 0 tomozelos. Os homens exibiam igualmente uma barba postiga de ponta ligeiramente curva. Uma pesada peruca \ripartida cobria os ombros,artificio bem e6modo para dis simular @ ajuste ente uma cabera animal e um corpo huma- no, Esse trae de base, espécie de uniforme divino, aparece desde 0 Antigo Império e quase no mudari, independente dda evolugio da moda dos trajes profanos e reais. Quando ruito, as deusas beneficiaram-se, a partir do Novo Império, de uma espécie de elmo representando um abuire que en- volvia a eabega divina com sus asas, Alguns pormenores de vestimenta eram especiticos de certas divindades: 0 estojo filico, dos genios-Nilos; o barre- te, de Piah; o peitlho, da deusa Bastet etc. Os deuses que Portavam um traje historicamente determinado cram huma- nos divinizados. Amenhotep, filo de Hapu e Ptah, ostentava © trae dos vizies do fim da 18° dinastia, Imbotep exibia a elegincia dos altos personagens do Antigo Império, Ahmés NNefertéri e Amenéfis I vestiam-se como os soberanos do inicio da 18" dinastia. A deusa Hathor do Ocidente, que acolhe Séti I no Mundo Taferior, portava um amplo toucado dito ‘em folhos’ que as elegantes da época no teriam des- 7 ‘os Deus Do EatTO prezado, Mas a peruca feminina possuia um significado eré- {ico de acordo com as fungdes de Hathor, senhora do amor. Coroas e toucado © toucado e a coroa faziam parte, com a cabega, dos elementos de identificagio de uma imagem divina. Determi- nnadas coroas reservavam-se a uma tinica divindade, como ‘coroa branca com chifres ea gorra com plumas de Satis e de ‘Aniiguis, ou a pluma quédrupla de Oniiris. Porém o mais freqlente era diversas divindades portarem © mesmo touca- do. As vezes, a relagio entre a fungdo divina e a coroa parece evidente: Osiris e a coroa-atef, sem divida uma antiga coroa real; Atum, deus régio, ¢ a dupla coroa da realeza egipcia. As carpideiras e as servas divinas porta- vam um modesto casquete. A cabega de Amon, deus do vento, ornava-se com duas plumas, como Min de Copto. Amide, a relagio entre o deus e sua coroa nilo é clara: qual a origem, por exemplo, da pluma dupla posta sobre coos horizontais, toucado portado por Ptah-tatenen, mas também por Osiris? Na época tardia, a maioria das deusas portava a coroa dita “hathérica’, composta de um disco solar colocado entre dois chifres. As coroas divinas com- binavam diferentes tipos de toucado. Conhecem-se alguns exemplos de coroas compésitas tardias especfficas de uma divindade (corea de Geb, que combinava a coroa verme- tha © a coroa-ate/), mas no geral dependiam mais de um comentirio teol6gico, nascido da conjunco de um tipo de ato ritual e de uma divindade, do que da insignia de iden- tidade desta, ‘capfrucos A sociedade divina 41.0 modelo familiar Pares e paredros’ Embora fosse freqllente uma divindade feminina estar associada a um deus masculino, sus condigo nfo era, a priori, a de esposa, No Egito, o casal nfo tinh fundamento religioso. © lago social predominante era o que unia pai € fitho, ou melhor, o pai ¢ sew herdeiro, garantia de continu dade. As vezes,’a divindade paredra era uma duplicata, & gual se atribuia'o signo gramatical do géneto opasto: Soka- ret, versio feminina do deus Sokar, Input, companheira de ‘Andbis (Inpu), Tefen ow Sesha, formas masculinas das deu- sas Tefnut ¢ Seshat. As paredras assumiam, por vezes, en- cargos complementares aos do deus principal: no Médio Império, Khmum de Hur, no Médio Egito, divindade- ccameiro da fecundagto, tinha a assisténcia da deusa-ri Heget, a parteira; a associagZo funcional tomava aqui a aparéncia de um par. (0s deuses no escapavam das vicissitudes conjugais; um hhomem da cidade de Deir el-Medinch descobriu com espanto que sua muther 0 trafa: “E a abominagao de Montu” decla- tava indignado, Montu, 0 deus guerreiro, as vezes citado nos contratos de casamento, parecia sera garantia das boas wni- jes, Em certo dia do ano, recomendava-se a abstengio de toda atividade sexual, pois neste dia o deus Hedjhotep agiv "A divine devominadsporedra era vecundi ou inferior oe, 3 {Wa mo cnn, re ascclava no mato e wo cua IN. do. ™ ‘caunemeauncxe ‘mal contra Montu, © pequeno deus das vestimentas seria um sedutor? Um ensinamento tardio atribui a Mut, mie divina a Luz, a existéncia das boas esposas, e a Hathor, a sensual, 1a das mulheres de mé vida. Procriagao e nascimento © papel da uniso sexual na procriagio era conhecide na Epoca antiga, Nos Textos dos sarcéfagos Thy, filho de Ha- thor e Ra, conta sua concepeio: “Pui eu quem ejaculou; in- troduzi-me entre suas coxas (...] minha mile fez-me entrar (nela), enquanto ela perdia a consciéncia de seu corpo sob os dedos do senhor dos deuses, que assim a deflorava neste dia de orgulho (2)” (cap. 334, trad. P. Barguet). Certos deuses nasceram de maneira monstruosa: Seth saiu da boca de Nut ‘ou, segundo uma tradigao referida por Plutarco, rasgou bru lalmente o ventre de sua mie, Eis por que Seth, responsivel por inevitéveis desregramentos do mundo, no era um ment 1no divino querido de sua mie Nut. Desde seu nascimento, cesta se irritou com ele: “Meus dedos esto contra ele como facas afiadas, minhas unhas esto contra ele como laminas ‘metdlicas” (papiro Louvre 3.129). ‘Ao inverso, 0s nascimentos divinos fundados sobre o 1 sublinhavam a coesio entre os membros Isso podia ser simplesmente social, € 0 relato fundava mitologicamente a outorga da heranga ¢ a sucesso pai-filho. Recorria-se, entfio, a0 vocabulério osiriano, pois Osiris era 0 herdeiro de “Geb, principe dos deuses”, mas também 0 pai contestado de um érf%o. A designagio coletiva de “filhos de Nut”, deuses da quarta geragio heliopolitana (ver p. 96) (Osiris, Seth, Isis, Neftis e Horus), sublinhava uma coesdo de cla. Enfim, quando se tratava de exprimir os

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