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CAPITULO 1 AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE E DA MODERNIDADE Nigel Blake e Francis Frascina Introdugéo: a arte como pratica social Os termos “modernidade” e “pés-modernidade” séo usados nao apenas na histéria da arte e na critica de arte, mas também na histéria e na teoria sociais. Afirma-se com fre- qiiéncia que, enquanto havia no passado um consenso quanto ao que era valido ¢ valio- so na arte e na sociedade modernas, hoje hd um desacordo radical, imperando um “plu- ralismo” de culturas e sistemas de valores, ideologias, religides, crencas sobre género, raca e classe. No entanto, hé também um forte desacordo quanto ao que essa pluralida- de poderia significar ou implicar. Mas chegou mesmo a haver um verdadeiro consenso? Se houve, estard irrecuperavelmente perdido, o que talvez seja também uma boa coisa? Ou seré que a arte e a sociedade modernas exigem uma consideracao mais complexa de ‘outras possibilidades, embora uma nogao “moderna” do que é valido e valioso ainda se mantenha? Poderemos avangar nesses problemas tratando separadamente os dois conjuntos de questdes - sobre a arte e sobre os desenvolvimentos sociais? Alguns criticos e historiado- res acham que isto é possfvel e desejavel. Tal como o critico modernista Clement Greenberg, em seu influente ensaio “Vanguarda e Kitsch” (publicado pela primeira vez em 1939), alguns acreditam que, no inicio do seu desenvolvimento, a arte moderna estava intima- mente ligada aos desenvolvimentos sociais, em particular &s atividades e as teorias da poli- tica revolucionéria da Franca de meados do século XIX, mas que mais para o final do sécu- lo isto deixou de ser verdade, Para analisarmos este argumento mais de perto, precisamos analisar como funcionava esse relacionamento. A boémia e a vanguarda Tanto a politica revolucionéria quanto a arte de “vanguarda” evoluiram, segundo esse argumento, no contexto social da “boémia”. Originalmente, o termo referia-se & vaga- bundagem ou a vida errante dos ciganos, tal como foi representada, por exemplo, em Familia de boémios em viagem [44], de Zo. A Boémia, que no passado foi um reino e hoje é uma provincia do oeste da Checoslovéquia, era considerada a terra natal dos ciganos. O nome foi assumido no século XIX por muitos artistas e intelectuais que se viam como metaforicamente “sem-teto” na cultura da sociedade capitalista. Para eles, ser “boémio” tornou-se um modo de olhar 0 mundo; indicava protesto, independéncia ou indife- renga em relagdo as convencées sociais. Isto nao quer dizer que o conceito tinha um signi- ficado fixo: ele assumiu formas complexas, ambiguas e muitas vezes incompativeis ~ incluindo fanatismo, ascetismo e desilusao com a educacao e o decoro convencionais. Era, antes, uma atitude cultivada por aqueles artistas e intelectuais empobrecidos que existiam 4 margem da sociedade; estes, embora nao fizessem parte das chamadas “clas- ses dangereuses”, as “classes perigosas”, vistas como sementeiras de revolucao, crime e desordem, eram freqiientemente ctimplices destas. Os “boémios” opunham-se a autori- dade estabelecida, mas sem um credo politico sistemético, nem organizacao. Muitos INTRODUCAO: A ARTE COMO PRATICA SOCIAL 51 44, Achille Zo, Famille bohémienne en voyage (Familia de boémios em viagem), 1861, 6leo sobre tela, 127 x 160 cm. Foto: © Musée Bonnat, Bayonne. deles uniram-se a insurreigio durante a Revolugao de 1848, lutando ao lado dos artesios que reagiram violentamente 4 modernizacao e d implementagio das prioridades econd- micas capitalistas. O fracasso da revolucao foi seguido por uma nova ordem politica autoritdria nas décadas de 1850 e 1860, 0 que provocou uma aceleracao nas mudangas econémicas e sociais. Os boémios tinham em comum apenas seu alheamento em relagao a sociedade bur- guesa e aos princfpios organizacionais do capitalismo. Ver a arte de “vanguarda” inicial neste contexto, portanto, enquanto algo produzido por aqueles que estavam mergulha- dos na “boémia”, é vé-la de certo modo “em oposicao” a essa sociedade e a esses princi- pios. Precisamos, porém, distinguir “vanguarda” de “boémia”. O conceito de “vanguar- da” profundamente ideolégico e mutavel (assim como o era o de “boémia”). Por um lado, para muitos “radicais” privilegiados do século XIX, “vanguarda” era um rétulo con- veniente e elegante usado para a ascensdo social, um simbolo tempordrio a ser descarta- do assim que se voltasse a uma posicao confortavel na sociedade. Muitos desses radicais da moda juntaram-se, a0 contrério dos “boémios’, as forcas da ordem em 1848. Por outro lado, os “vanguardistas” que julgavam ter um compromisso social e politico mais profundo tentaram o engajamento em estratégias e formas de representacao, inclusive a pintura ea literatura, percebidas como criticas das convengoes existentes e das estrutu- ras de poder que as sustentavam. Neste capitulo vamos ocupar-nos do segundo tipo de vanguardista. Dois dos profissionais discutidos aqui—o pintor Gustave Courbet e o poeta e critico de arte Charles Baudelaire ~ eram membros dessa “boémia” e “vanguardistas” de primeira hora. O pintor Edouard Manet era um “intelectual” burgués que cultivava contatos estrei- tos com a "boémia”, inclusive com Courbet e Baudelaire. 52 AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE E DA MODERNIDADE ‘Mas, para voltarmos ao argumento que introduzimos, Greenberg afirma que a arte de “vanguarda” logo “conseguiu ‘desprender-se’ ... da sociedade”, e que dessa separagio surgitta arte moderna “pura”: ela deu uma virada e repudiou tanto a politica revolucionéria quanto a burguesa. A revolugio foi deixada dentro da sociedade, como parte daquele tumulto de ideologias em luta que a arte © a poesia julgam tao pouco propicio assim que comeca a envolver as “preciosas” crencas axiomaticas sobre as quais a cultura até entao se apoiara ... Retirando-se completamente do piiblico [sic], © poeta ou artista de vanguarda procurava manter o alto nivel de sua arte estrei- tando-a e ao mesmo tempo elevando-a ao nivel de um absoluto ... Surgem a “arte pela arte” ea “poesia pura’, eo tema ou contetido torna-se algo a ser evitado como a peste. (’Vanguarda e Kitsc’, p. 36) Sob este influente ponto de vista modernista, a histéria do desenvolvimento da arte “moderna” no século XIX é a histéria de uma vanguarda heréica que se afasta do tema literdrio e histérico na direcao de uma arte de “sensacao pura” ou “arte pela arte”. A arte de “vanguarda” é vista como “desprendendo-se” das preocupacdes da vida social e poli- tica, do mesmo modo que a poesia de Mallarmé, por exemplo, que enfatiza os jogos for- mais de palavras, é considerada como um passo crucial na direcdo da “poesia pura” —uma poesia sem objeto. O que se esté afirmando aqui € que, uma vez posta em marcha, a arte “moderna” ou de “vanguarda” deixa de estar comprometida ou de ser muito influenciada pelos desenvolvimentos sociais mais amplos; ou que, quando essa influéncia existe, ndo é 0 fator mais importante para explicar 0 que é vélido e valioso nessa arte. Essa afirmagao 6 com freqiiéncia chamada de tese da autonomia social da arte. Os modernistas véem essa autonomia como uma contrapartida positiva aos produtos “corrompidos”, 0 “Kitsch” da vida comum e de consumo de massas - mtisica e ficc4o populares, cinema hol- Iywoodiano, cultura operdria ou proletédria. O ensaio “Vanguarda e Kitsch”, de Greenberg, é um texto cléssico para os que defendem a primazia da “arte pela arte” e acreditam no potencial emancipador de uma experiéncia estética desinteressada (por “desinteressada” eles entendem a auséncia de quest6es morais, utilitérias ou 0 que veriam como “argu- mentos sofistas” que se chocassem com a “vida imaginativa” da Arte, com “A” maitiscu- lo). A qualidade da estética e da experiéncia estética que eles buscam deve ser medida a0 menos em parte pelo grau em que uma obra de arte é explicitamente independente das ques- tes socioculturais, ou as transcende, e passa a ocupar-se consigo mesma, com a “arte pela arte”. A tese da autonomia social da arte e esta nocao de “experiéncia estética” sio usadas para selecionar um canone de artistas e de obras de arte. Nesse canone, a pratica de Monet é exemplar em sua passagem de pinturas como as feitas sobre os prazeres bur- gueses em La Grenouillére [155, 156, 157] para obras que se concentram apenas em equivalentes técnicos e formais de sensacdes subjetivas, como as feitas de seu tanque de lirios-d’ 4gua construido para este propésito [200], pintadas a partir do final da década de 1890. Hi indicios, tal como sugere Greenberg, de que as conotacées do termo “vanguarda” mudaram, sobretudo depois de 1870. Perdendo sua associagao anterior (embora as vezes ténue) com a oposicao de esquerda, para muitos ela passow a significar interesses princi- palmente culturais ¢ artisticos. No entanto, hé razSes para se duvidar de que esta visao do desenvolvimento da arte “moderna” e da “vanguarda” seja sustentavel. Alguns argu- mentaram que a historia modernista da arte esvaziou a extensao hist6rica — e especialmente a politica - do termo “vanguarda’, usando-o como um rétulo geral para exaltar uma linha particular de desenvolvimento, um canone exchusivo. O que queremos argumentar é que alguns dos primeiros artistas modernos nao foram afetados apenas passivamente pelas grandes mudancas sociais, mas reagiram a elas modificando o relacionamento entre a arte que produziam eo mundo social. Também gostariamos de questionar o grau em que as pri- meiras produgdes da arte moderna de “vanguarda” tinham a intencao de ser “arte pela arte’, de evitar tema e contetido “como a peste”, ou mesmo de diminuir a importancia deles. E claro que estas duas idéias estao ligadas. Um dos modos ~ mas nao 0 tinico ~ pelos quais 0s artistas mudaram a relagao entre arte e sociedade foi precisamente enfrentando INTRODUCAO: A ARTE COMO PRATICA SOCIAL 53 s 146 em. Ecole Nationale Superieure des Beaux-Arts, Paris a valores aristocraticos, os que nao se enquadravam nessa categoria, independentes, atendiam um puiblico grande e variado que por um lado inclufa intelectuais burgueses © por outro uma parte mais sentimentalista da classe média, herdeiros de um culto do século XVIII a sensibilité (“sensibilidade” — 0 cultivo do sentimento, da compaixao, da piedade, das “emogies”’) ‘Apés a “Revolucio” de 1830, 0 contexto social dessas préticas artisticas comegou a mudar radicalmente. A “Monarquia de Julho” de Louis-Philippe concentrou novas forgas sociais na vida politica e econdmica e promoveu a grande transformacao social que chamamos de modernizacao (em A ética protestante e 0 espirito do capitalismo, 0 soci6- logo Max Weber descreveu a modernizacao social como 0 crescimento conjunto do Estado moderno e do capitalismo moderno). O Estado emergente sob Louis-Philippe era ‘um regime explicitamente burgués, que promovia a industrializagao capitalista, a ino- vagao tecnolégica, 0 comércio e os negécios em uma nova escala, sustentando assim uma classe média cada vez mais abastada. Com riqueza, estimulo e apoio por parte do Estado, essa classe conquistou influéncia e até poder, tanto politico como cultural. A nova burguesia das décadas de 1820 e 1830 proporcionava uma grande parte do hete- rogéneo puiblico de um terceiro tipo de arte, a arte do juste milieu ~ 0 “caminho do meio”, © “compromisso ideal” -, que satisfaz as expectativas de desenho e modelagem de formas competentes, expressao vivida das figuras e rostos, composicio clara e narrati- va animada. Contudo, abandona qualquer compromisso com 0 clissico e 0 erudito em troca de um interesse por temas e emogdes mais préximos dos romanticos. O quadro O nascimento de Henrique IV, de Devéria [50], é um dos primeiros exemplos de pintura do juste miliew. APRATICA E A POLITICA DA ARTE NO MUNDO ARTISTICO DO SECULO XIX 63 50. Bugene Devéria, La Naissance de Henri IV au Chiteau de Pau, Je 13 Décemire 1553 (O nascimento de Henrique IV), 1827, dleo sobre tela, 484 x392 em. Musée du Louvre. Foto: Réunion des Musées Nationaux Documentation Photographique. O ecletismo e a pintura do juste miliew Aarte do juste milieu — uma tendéncia, nao um estilo — foi a “arte oficial” da Monarquia de Julho. Os trabalhos do juste milieu nao sao particularmente parecidos uns aos outros [50, 51, 52, 116]. Suas caracterfsticas eram negativas ~ nem coerentemente classicas, nem irrestrita- mente romanticas. Contudo, seria possivel perguntar por que a arte oficial no desenvol- yeu uma tendéncia nova em vez de beber das fontes do classico e do romantico. Uma pecu- liaridade da Monarquia de Julho era o seu compromisso institucional com a filosofia do ecle- tismo, O fildsofo eclético mais importante, Victor Cousin, alcangou uma alta posi¢ao no governo, chegando a estabelecer um dominio quase autocratico sobre todo o sistema edu- cacional francés, inclusive a Ecole des Beaux Arts. Os ecléticos acreditavam que 0 progres- so podia ser promovido por um processo que considerasse imparcialmente a validade do conhecimento e dos sistemas de pensamento existentes, combinando as “melhores” con- tribuigdes de todo o pensamento do passado em uma tinica sintese nova. Segundo o ecle- tismo, qualquer arte que tirasse 0 “melhor” do classicismo e do romantismo parecia estar fadada a ser superior a ambos. Um exemplo disto € quadro Romanos da decadéncia, de Cou- ture [53], grande sucesso de critica no Saldo de 1847, porque podia ser lido de pontos de vista difezentes, “ecléticos”. O ecletismo tornou-se a filosofia oficial. Se, do ponto de vista politico, essa filosofia ligava a pintura do juste milieu ao governo, socialmente ela estava liga- da a burguesia, Argumentava-se que s6 a classe média tinha tanto a educagao quanto os 64 [AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE E DA MODERNIDADE 51. Emile-Jean-Horace Vernet, Prise de Smalak (A tomada de Salah), 1845, Musée Historique, Versalhes. Foto: Réunion des Musées Nationaux Documentation Photographique interesses benignos necessérios para caracterizar e decidir sobre os méritos das idéias do passado e fazer uma sintese de tudo o que fosse melhor. Contudo, tal como sugeriu Baudelaire em “O Salao de 1846” (o trecho é citado na pagina 81), 0 perigo dos temas oficiais, aprovados pelo Estado, de ecletismo em todas as areas, era um compromisso pouco profundo; os pintores do juste milieu como Vernet ¢ Delaroche sucumbiram a esse perigo [51, 52]. Para Baudelaire, o romantismo, e Delacroix em particular [54], simbolizava um moderno engajamento critico nos valores oficiais. Em contraste com 0 compromisso do juste milieu, ele procurava um drama vivo e natural, um drama terrivel e melancélico, com freqiiéncia expresso pela cor, mas sempre pelo gesto ... No tocante a gestos sublimes, os tinicos rivais de Delacroix sao exterio- res a sua arte .. E devido a essa qualidade inteiramente moderna e singular que Delacroix € a expresso mais recente de progresso na arte. (Ceuores completes, p.238) A divisdo que fazemos do mundo da arte em académico, juste milieu oficial e independente 6 necessariamente simplificada demais. Muitos pintores e suas obras atravessaram essas fronteiras. Mas este esquema nos permite considerar o lugar de coexisténcia desses tipos totalmente diferentes de pritica artistica no processo mais geral de modernizagao social. A pintura académica pode ser considerada uma arte que jé nao responde explicitamente & cul- ura contemporanea, mas que ainda sobrevive por estar enraizada em estruturas de poder do pasado. E tentador sugerir que a pintura do juste milieu é atraente para novas classes dominantes e é sustentada por elas, que é moderna no sentido de que é reconhecidamen- te “contemporanea”; a arte romantica, principal tendéncia independente, era vista pelos cri ticos como Baudelaire como “oposicionista”, e pode ser ligada a classes e subgrupos que ainda nao obtiveram nenhum poder. Embora essas sugestdes ocultem complexidades importantes, permitem-nos também reconhecer duas questdes essenciais. A primeira ¢ que os interesses da Academia, da Esco- Jae do Salo nao eram coincidentes, e que essas instituigdes eram locais de expresso de APRATICA E A POLITICA DA ARTE NO MUNDO ARTISTICO DO SECULO XIX 65 52. Paul Delaroche, L’Exécution de Lady Jane Grey (A execueto de lady Jane Grey), 1833, leo sobre tela, 246 x 297 em. The National Gallery, Londres. Reproduzido com permissio dos curadores. divergéncia politica na sociedade francesa, dado que a cultura era uma arena para esse tipo de diferenciacio. Em segundo lugar, & necessério distinguir entre a arte académica, com seu legado de temas “nobres” e intelectualmente “elevados” oriundos de fontes religiosas, classicas e mitolégicas, e a “arte oficial”, com sua énfase em interesses contemporaneos, mesmo quando usando temas hist6ricos. O juste milieu era uma forma de “arte moderna” que reagia as condicSes modernas, a uma sociedade que comecara a ser caracterizada pelo individualismo eclético. Poderfamos argumentar que este ¢ insepardivel dos interesses e do desenvolvimento do capitalismo, no qual a busca da “moderizagio” ea economia de mer- cado apdiam-se na ideologia da escolha individual e na producao de mercadorias “diver- sificadas”, cuja procura é alimentada por essa ideologia. Queremos examinar esta tese nos estudos de caso que se seguem. O capitalista do século XIX controlava impressionantes novos poderes de produgio ~ novas tecnologias de ™materiais, novas tecnologias de administracao e, conseqiientemente, novos tipos de conhe- cimento e novas capacidades, tudo orientado para mais exaustivamente extrair valores de uma gama cada vez maior de recursos. Mais riqueza e mais pessoas ficaram sob o dominio do capitalismo, e o capitalista (0 industrial, especulador financeiro, empresério, negocian- te etc.), especialmente depois de 1848 e do Segundo Império de Napoleao II, acabou assu- mindo o papel dominante na politica e nas relagdes humanas: (O desenvolvimento econémico do pais era uma preocupagio importante no periodo de Napo- ledo Il... aspecto econdmico do despotismo era o completo controle econdmico das obras Piblicas e de seu financiamento, e a necessidade de aprovagao do governo para a nomeacao 66 [AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE E DA MODERNIDADE 53. Thomas Couture, Les Romains de la décadence (Os romanos da decadéncia), 1847, 6leo sobre tela, 466 x 775 cm. Musée d’ Orsay, Paris, Foto: Réunion des Musées Nationaux Documentation Photographique. de diretores de todas as grandes companhias e para a formagio de novos negécios abertos & subscri¢ao publica, Deste modo havia um planejamento e um controle econémico centraliza- ‘dos, Os financistas e industriais adquiriram um novo prestigio ... Napoledo III nao se preo- cupava com a possibilidade de os grandes capitalistas ficarem poderosos demais.. (rZeladin, France 1848-1945: Politics and Anger, pp- 188-9) Na esfera humana, 0 capitalismo engendrava uma rede cada vez mais diversificada e entrelacada de talentos e capacidades, atitucles e expectativas, subculturas e formas de vida sociais, das quais a boémia era um exemplo. Em uma sociedade assim, as diferencas, como as de gosto, moda e estilo, precisam ser cultivadas, mas é de grande auxilio para o sistema {que elas possam ser administradas e integradas aos interesses do capital financeiro e da pro- dugao e consumo de mercadorias - como os produtos do mundo das artes. Por exemplo, nas condicdes de expansdo da década de 1850, as atividades do Hétel Drouot, uma casa de leil6es, ‘marcaram uma mudanga dos modos de consumo, com um aumento da énfase sobre a espe ‘culagao eo investimento. A proximidade fisica com a Bolsa de Valores estimulava as analogias ‘om as fortunas do capital financeiro. Em meaclos da década de 1860, relatos bem humorados de Henti Rochefort e Champfleury evocavam uma bolsa de objetos ce arte e faziam compa- rages com tuma casa de apostas onde os colecionadores fossem “jogadores de roleta” {(N. Green, “Circuits of Production, Circuits of Comsumption’,p. 32) capitalismo industrial promove o que foi chamado de normalizagio. Gera individualida- de, mas apenas na medida em que os individuos contribuam utilmente para o todo. Os recalcitrantes e candidatos a rebelde sao “normalizados”, suas caracteristicas “oposicionis- tas” so desencorajadas, quando nao reprimidas, enquanto as titeis sao desenvolvidas, trei- nadas e aproveitadas para as necessidades da sociedade capitalista. Tal como observou Bau- APRATICA E A POLITICA DA ARTE NO MUNDO ARTISTICO DO SECULO XIX 07 54, Bugine Delacroix, Liberté guidant le peuple (A Liberdade guiando o povo), 1831, leo sobre tela, 260 x 325 cm. Louvre, Paris. Foto: Réunion des Musées Nationaux Documentation Photographique. delaire, os romanticos haviam tentado resistir a isto assumindo uma atitude critica em relagdo As convengées artisticas aceitas e aos temas oficiais, as vezes produzindo pinturas historicas sobre temas da vida moderna. Um exemplo 0 quadro A jangada de Medusa, de Géricault, 1819, que representa um incidente escandaloso que o governo tentou encobrir; outro é A Liberdade guiando o povo, de Delacroix [54] Contudo, ao envolver-se criticamente com seus préprios temas, que, ao contrério das obras encomendadas, estavam abertamente & venda, os romanticos contribuiram para 0 nascimento do moderno mercado de arte. Esse tipo de mercado precisa de uma socieda- de individualista para florescer. Uma caracteristica tipica da arte moderna, critica das normas estabelecidas e das relages de poder, é sua ligacao incémoda, mas indissoltivel, com o mercado de luxo, O romantismo, portanto, como forma de “oposicao” individual, 86 6 possivel em uma sociedade moderna em que a novidade é estimullada, mas ao mesmo tempo privada de sua funcio critica pelo processo de normalizacao por meio do qual a arte se torna um bem de consumo. O juste milieu talvez seja um produto mais tipico de uma tal sociedade moderna, e se nutra da normalizacao. Ele priva o romantismo e 0 classicismo trabalho de Géricault se baseou em um incidente com um navio da Marinha naufragado ao largo da costa. do Senegal; 150 pessoas foram oportunistamente deixadas & deriva em uma jangada preciria por um. capitéo monarquista; 86 quinze sobreviveram as terriveis condigoes, que incluiram até eanibalismo, 68. [AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE E DA MODERNIDADE “elevado” da arte académica de seu potencial critico, reduzindo-os a conjuntos de estilos ¢ temas tipicos que podem ser remanejados a vontade sem levar em conta as suas fungdes ideol6gicas originais. O produto final ndo é mais uma fonte de valores e conhecimento que poderiam ser opostos aos da sociedade capitalist, seno uma sintese de atitudes que per- mite que os observadores de diversas convicgdes politicas vejam nas obras de arte o que quiserem. ‘A “arte moderna”, 0 que quer que possa ser, tem sido com freqiiéncia discutida como se de algum modo ela fosse a manifestacéo artistica natural da sociedade moderna. Tais cexplicagées tém assumido muitas vezes uma forma conhecida como reflexionista, pois tra- tam a arte como um espelho passivo da sociedade. Mas o reflexionismo esquece a impor- tante possibilidade de que a arte possa relacionar-se a modernidade de mais de wma manei 1m. J4 vimos até agora duas dessas maneiras: 0 romantismo s6 é possivel em uma socieda- de moderna, mas o juste milieu é talvez 0 seu produto mais tipico. Courbet: representando o campo para a cidade Das tenses sociais centradas em torno da Revolugao de 1848 surgiu a possibilidade de uma arte que ocupasse um territério novo em relagdo ao mundo das instituigdes artisticas oficiais € ao puiblico e, por extensdo, A sociedade em geral. Courbet é 0 exemplo de um artista que descobriu que, como a arte tinha um peso politico estabelecido na Franca de meados do século XIX, era possivel ter um papel politicamente ativo na sociedade, pelo menos em certa medida, atuando no mundo da arte. Fa este tipo de relacionamento que nos referimos a0 falar de “vanguardismo”, Este novo relacionamento nunca foi conscientemente arquitetado, nem por Courbet, nem por ninguém mais. Podemos considerar algumas das condigées sociais que favoreciam as possibilidades de surgimento de uma tradicao de vanguarda examinando exemplos especificos da obra de Courbet. Ele havia alcancado 0 reconhecimento oficial com a acei- tagao de sua obra pelo Saldo em 1844, embora durante toda a década de 1840 nao vendes- 55. Gustave Courbet, Un Enterrement Ornans (Enterro em Ornans), 1849-50, leo sobre tela, 314 x 663 cm. Musée d’ Orsay, Paris. Doagio de Juliette Courbet, 1881. Foto: Réunion des Musées Nationaux Documentation. Photographique, (COURBET: REPRESENTANDO O CAMPO PARA A CIDADE Co) 56. Gustave Courbet, Les Paysans de Flagey revenant dela foire (Camponeses de Flagey voltando da feira), 1850-55, leo sobre tela, 206 x 275 cm. Besancon, Musée des Beatix-Arts, Foto: Lauros-Giraudon, se quase nada e produzisse trabalhos que careciam de diregao. A Revolucao de 1848 mar- cou uma mudanea. Entre 0 outono de 1849 e 0 verdo de 1850, Courbet pintou trés quadros ambiciosos destinados ao Salao: Enterro em Ornans, Os quebradores de pedra e Camponeses de Flagey vol- do da feira (55, 12, 56]. Neles, representa habitantes de sua provincia natal, Franche- Comté, ¢ sobretudo de sua cidade, Ornans; em dois deles, especificamente, retrata mem- bros de sua prdpria familia. Os criticos jé o haviam alinhado com o realismo; estes trabalhos foram reconhecidos como uma reconstituicao dos métodos e um agugamento das metas ealistas. Antes de 1850, Courbet nao tinha nem uma prética artistica estabelecida, nem uma atitude politica coerente ou comprometida. Tentaremos demonstrar que o estabele- cimento da pritica politica e a adogao de uma posigao politica foram processos paralelos que mutuamente se entrelagaram e moldaram um ao outro, e que 0 que os unia era 0 com- prometimento de Courbet com sua terra natal - Ornans, Doubs e Franche-Comté em geral Os Courbet eram uma familia camponesa que estava ascendendo as fileiras da bur- guesia. “Camponés”, na Franca do século XIX, significava apenas “alguém que vive da terra”, algo que podia ser feito na riqueza e no conforto ou em condigées de privagdo quase total. Os Courbet haviam adquirido duas casas, uma na aldeia rural de Flagey (0 homem de cartola no quadro Camponeses de Flagey voltando da feira teve 0 pai de Courbet por modelo) e outra, uma confortével residéncia urbana, em Ornans. O pai de Courbet paga- 70 AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE E DA MODERNIDADE, va impostos suficientes para votar, ¢ ocasionalmente assumiu cargos no governo local. O proprio Courbet fora originalmente destinado a uma carteira burguesa no direito. Con- tudo, esta era uma familia ainda ligada as suas raizes, que entendia, de dentro, os pro- blemas sociais econémicos do campesinato da regiao. Em Paris, portanto, até 1850, Courbet podia ser visto como “boémio” por causa de seu descontentamento com a socie- dade burguesa, mesmo sendo um “filho dependente” bastante tipico. Andava com uma variedade de intelectuais de esquerda: Baudelaire, o fildsofo anarco-sindicalista Proudhon, o escritor republicano Francis Wey, o littérateur realista Champfleury, o materialista misti co Mare Trapadoux. A politica de Courbet nao era doutrinaria, e nem foi importante para ele até depois da Revolucao de 1848. Sua posicao social tampouco Ihe sugeria qualquer posicionamento politico Gbvio que ele pudesse assumir no mundo artistico. Ele havia tido um sucesso consideravel no Salao de 1849 — 0 governo comprara 0 quadro Depois do jantar em Ornans [57], colocando-o no museu de Lille, e Ihe concedera uma medalha que oisentava de submeter trabalhos futuros ao comité de selecao. O sucesso de Depois do janttar em Ornans parece ter confirmado Courbet em um proje- to artistico especifico - representar a vida de sua familia e de sua terra natal para um puiblico metropolitano. Com qual modelo — qual paradigma Courbet podia contar para esse Projeto? Como a familia Courbet era em parte burguesa, era particularmente apropriado concentrar-se no respeitaivel conforto de sua vida doméstica, produzindo assim uma pin- tura de género. Isto nao quer dizer que o género tipicamente representasse a domesticida- de burguesa como em uma reportagem neutra. Por exemplo, o quadro Oracio antes da 57. Gustave Courbet, Aprés diner | Ornans (Depois do jantar em Orna Musée des Beaux-Arts, Lille. Foto: Lauros-Giraudon. 1848-49, 6leo sobre tela, 195 x 217 em. (COURBET: REPRESENTANDO © CAMPO PARA A CIDADE 7 58, Jan Steen, Gebed voor de Maaltijd (Oragio antes da refigio), 1660, 6leo sobre prancha, Walter Morrison Collection, Reproduzido com permissio do Sudeley Castle, Winchcombe Cheltenham, Gloucestershire. refeicfo, pintado por Jan Steen em 1660 [58], representa uma tradicio de género moralizan te ambiguamente relevante para os interesses de Courbet. Contudo, como a intengao de Courbet nao era nem celebrar, nem criticar a sua familia, mas mostré-la “tal qual era”, os precedentes franceses mais apropriados talvez fossem as pinturas relativamente grandes de familias camponesas feitas pelos irmaos Le Nain [59, 60]. © quadro Depois do jantar em Ornans & grande, com as figuras em tamanho quase natural, 0 que é pouco convencional para a pintura de género. Nao tem nenhum dos detalhes ~ como 0 texto biblico no cartaz pregado & parede do fundo, ou as palavras “seja feita a Vossa vontade” no pequeno “cai delabro” — por meio dos quais Steen indica preocupacdes morais, e as poses das figuras quase ndo tém relagéo umas com as outras; o quadro ¢ tanto um retrato de grupo quanto a representacio de um acontecimento ou incidente (a figura no lado oposto da mesa é Cour- bet). No entanto, as personagens nao estao posando como se para algum retrato honorifi- co, mas acomodadas em posicdes confortaveis. E, embora nao fosse incomum nos quadros de refeicdes retratar pessoas vistas de costas, 6 pouco convencional colocar uma persona- gem nessa pose no centro da cena. Este artificio parece negar ao espectador o ponto de vista privilegiado de onde tudo o que tem importancia é idealmente visivel. E isto parece impos- sibilitar a atitude de superioridade social ou moral que a pintura de género proporciona com tanta freqiiéncia aos seus observadores — atitude que teria sido incompativel com as metas nao moraiizantes de Courbet. As reacées ao quadro foram variadas, e Courbet teve sua quota de resenhas favordvel Mas as fortes reagdes negativas foram particularmente reveladoras quanto ao que ele 72 [AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE E DA MODERNIDADE 59. Louis Le Nain, Le Halte due ‘onvalier (A parada do cavaleiro), €. 1640, 6leo sobre tela, 55 x 67 em. Victoria and Albert ‘Museum, Londres, 60. Louis Le Nain, Le Repas des paysans (A refeico dos camponeses), 1640, 6leo sobre tela, 93 x 122 em. Musée du Louvre, Paris. Foto: Réunion des Musées Nationaux Documentation Photographique. ‘COURBET: REPRESENTANDO O CAMPO PARA A CIDADE 23 havia alcangado. Um critico chamado Lagenevais queixou-se de que Courbet “deveria mostrar-nos [suas personagens], a maneira flamenga, pelo lado errado de um telesc6pio, para que se tornem poéticas ao se afastarem na distancia” (citado em Clark, Image of the Peo- ple, p. 70). Pelo menos implicitamente, ele entendia que Courbet havia “torcido” as con- vengdes do género em que estava trabalhando, e que isto alterara a situacao do que fora representado. Como haviam deixado de ser “poéticas”, essas pessoas tinham-se tornado mais “reais”. E as “respostas prontas” de Lagenevais, por exemplo, aos riisticos “posticos” pasteurizados, nao tinham nenhuma utilidade para ele. Para alguns, porém, certos tipos de respostas prontas eram efetivamente aquilo para o qual a arte servia - subscrever e con- solidar as atitudes e percepcdes da sociedade respeit4vel, embora alguma inovacao técni- ca ou estilistica pudesse ser bem recebida. Assim, o respeitado critico conservador Louis Peisse podia dizer, de Courbet e deste quadro, que “ninguém conseguia arrastar a arte para a sarjeta com maior virtuosismo técnico” (citado em Clark, Image of the People, p. 69). Para Courbet, a “sarjeta” era um lugar necessario para que a arte alcancasse qualquer medida de “realismo”; para Peisse, ela assinalava um grande perigo, confirmado por ele dois anos depois: “A nacao esté em perigo ... a pintura [de Courbet] é um motor de revo- lugao”. Veros aqui aquela que viria a se tornar a queixa padrao dos conservadores sobre a arte de vanguarda: que, ao torcer ou parodiar as convengies artisticas, ela ao mesmo tempo solapava o status da prépria arte e afrontava a “sociedade” de modos que nao eram “estéticos”. Com Depois do jantar em Ornans, Courbet descobriu um paradigma para uma nova pratica que, em seu tema e em seu método de representacdo, atendia aos seus compro- 0s com sua formacao provinciana, dirigia-se com propésito critico a um puiblico pari- siense acostumado a representagdes anédinas de um “campo” idealizado ou pastoral ¢ apresentava suas credenciais “realistas” radicais em uma “linguagem” que podia ser aprovada por seu circulo boémio. Tudo isto ficou mais claro depois que o quadro foi visto comentado. Esse quadro era produto de um trabalho com interesses convencionalmen- te incompativeis, cuja transformacao e resolugao resultavam nessa pratica revisada. Em busca dessa sua prética transformada, Courbet voltou a Franche-Comté para pintar em 1849. A situago que Ié encontrou havia sofrido mudancas novas e muito mais perturba- doras para a opiniao conservadora do que as que Depois do jantar em Ornans representavam. Essa perturbacio tinha a ver com a brecha existente entre as representacdes conven cionais do “campo” e sua realidade em constante mudanga. Havia um relacionamento complexo entre as condigoes de trabalho e as relagdes “reais” de poder na drea rural e aque- las idealizadas em representagdes das cenas tranqiiilas de género “pastoral”. Tais repre- sentaces tinham raizes nas tradigGes que datavam jé do tempo de Claude [61], em que a “natureza” era vista como fonte de constante “bem-estar”; 0 conflito entre os paradigmas de representagao dominantes e as realidades do campo modernizado continuaria sendo central para pintores de épocas posteriores, como Pissarro (isto seré discutido no final deste capitulo). Para 0 puiblico metropolitano, o campo continuava sendo o lugar das “verdades eternas”, da relagao direta da pessoa com a “natureza”, ora conturbada, ora um refrigério. Era, presumia-se, o lugar em que a ordem estava enraizada, sustentada pela fé catdlica ¢ ‘uma Igreja forte. Mas esta sempre fora uma imagem sentimental, e a “modernizacao” jé havia aleangado 0 campo. O final da década de 1840 havia sido um periodo de ininterrupta crise econémica, sobretudo na agricultura. Propriedades rurais de bom tamanho perto das cidades passaram por uma racionalizagao econdmica e ficaram ainda maiores. No sul e no Ieste da Franca, contudo, a densidade populacional estava em niveis altissimos, resultan- do em escassez de terra. Lé, em vez de crescerem, as fazendas estavam sendo divididas, de modo que, para os endividados pequenos fazendeiros da regio, a modernizacao era a0 mesmo tempo necesséria e financeiramente impossivel. Aproveitando-se da situagio de crise, a burguesia abastada assumiu seu moderno papel de disciplinadora das finangas populares, extorquindo altas taxas de juros dos fazendeiros em um momento em que 0s impostos também estavam altos, e fazendo mui- tas expropriagdes, usando-as muitas vezes em interesse prdprio para adquirir as terras exe- cutadas. Este papel foi objeto de intensos ressentimentos e de forte resistencia por parte dos camponeses endividados. Apés 1848, essa resisténcia organizou-se e politizou-se. Nas 74 AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE E DA MODERNIDADE 61. Claude Lorraine, Paysage: Mariage d’Isaac et Rebekah (Paisagem: Casamento de Isaac e Rebeca), conhecido como O moirtho, c. 1648, dleo sobre tela, 149 x 197 cm. The National Gallery, Londres. Reproduzida com permissao dos curadores. eleicdes de 1849, muita gente do campo retirou seu tradicional apoio a direita — 0 partido da ordem — votando na coalizao démocrate-socialiste (35%) ou abstendo-se (40%), embora Omans e o Doubs tivessem permanecido, nas palavras de T. J. Clark, como “uma ilha bran- ca em um mar vermelho”. O campo, que fora um bastido contra o radicalismo urbano, ameagava tornar-se uma nova fonte de rebelido. A “ameaca vermelha”, como disse um observador, parecia estar centrada no campo, em especial no canto leste da Franga. ‘As caracteristicas mais marcantes da sociedade que Courbet queria representar inclufam agora diferencas econémicas exacerbadas entre ricos e pobres e um sentido reforgado agugado de diferengas de classes, um novo papel para a burguesia no tecido da vida rural ‘como disciplinadora financeira, uma contestagéo e uma resisténcia a ordem estabelecida e a0 seu agente, a Igreja, e uma nova preméncia na questo da ambigiiidade social que afe- tava familias como os Courbet. Mudaneas desse calibre penetraram nos costumes e altera- ram o significado da vida didria. Antigas lealdades e animosidades precisavam ser recon- sideradas - que tipo de pessoa era o camponés? Quem era amigo? Em que atividades se poderia tomar parte com uma pessoa assim? Costumes antigos comecavam a parecer nostélgicos - qual seria a relevancia do Carnaval, por exemplo, na vida cotidiana moder- na? Estruturas familiares e padroes de heranga foram perturbados ~ quais filhos ficariam ‘em casa e quais mudariam para a cidade? Que parte da heranca Ihes caberia, se estes vol tassem? A questdo da vida cotidiana no campo se concentrava no fato de ser cada vez mais dificil desenredar-se dos processos mais amplos de mudanca social. Apesar da moderni- zacao vir junto com uma crise econdmica passageira, a mudanga por si s6 marcou época e viera para ficar, Ignorando essas mudancas em uma tentativa de retratar o campo, artista no estaria apenas desconsiderando fendmenos politicos efémeros, mas fazendo uma repre- sentacio erronea de realidades novas e profundas. (COURBET: REPRESENTANDO O CAMPO PARA A CIDADE 75 Courbet poderia ter optado por essa representacio errdnea para dar ao Salo o que este ssperava. Ao fazé-lo, porém, ele teria demonstrado uma profunda hipocrisia e abandona- do suas prdprias posigdes politicas em favor das do puiblico do Salo. As idéias, crencas e valores burgueses ou mesmo aristocraticos, com freqiiéncia presentes nas formas acadé- micas de representar o campo e naquelas facilmente disponiveis do juste milieu, teriam sido incompativeis com a politica dos Courbet de Omans. O que Courbet entendeu com clare- za foi que uma oposicao a politica burguesa poderia acarretar, em certas circunsténcias, uma oposicao a arte burguesa — a arte do juste milieu. A provincia de Franche-Comté teve durante esse perfodo uma quota consideravel de desordem e até de violéncia politica, grande parte dela organizada em torno de clubes politicos clandestinos. Contudo, o departamento natal de Courbet, Doubs, continuou sendo uma regio conservadora onde a Igreja mantinha uma forte autoridade, garantin- do a calma social em um perfodo de crise. De certo modo, isto fazia com que o departa- mento de Doubs fosse, paradoxalmente, um tema ideal para Courbet. Se ele tivesse representado cenas de desordem rural e provincial, teria desviado a atengao das causas subjacentes da desordem, as graves tensdes e pressdes nas dreas rurais. Teria caido na armadilha de produzir apenas mais uma cena deploravel de “violéncia revolucionaria”, Uma das representagdes contemporaneas mais poderosas desse tipo foi o trabalho do artista altamente conservador Meissonier, cujo quadro A barricada, de 1849 [62], assinala uma moral sombria. Ao focalizar um acontecimento religioso, 0 Enterro ent Ornans evoca a autoridade social da Igreja; mas 0 quadro representa também as tensOes e ambigiiidades internas dessa sociedade. A caracterizacao introdut6ria de T. J. Clark destaca essas ambigiiidades: Ele nos apresentou, de forma quase esquemitica, 0s componentes de um ritual particular, mas no a sua unidade. Ele havia pintado a adoragao sem adoradores; uma ocasiao de experié cia religiosa, mas, em vez dos sinais vividos ou reservados desta, uma fixidez de expresso peculiar, congelada (isto se aplica tanto aos rostos individuais quanto ao quadro como um todo). Nao é exatamente uma imagem de descrenca, mas de distra¢ao coletiva; nao exatamente indiferenca, mas desatenga0; nao exatamente, a nfo ser no rosto de algumas mulheres, as mar- cas da tristeza ou o alheamento do luto, mas a cuidadosa e ambigua neutralidade de um rosto comum. E, misturado a isto, 0 grotesco: 0s rostos avermelhados e bulbosos dos bedéis e os estos desconjuntados dos dois ancidos junto a cova. (Clark, Image ofthe People, p. 81) A pintura € “sobre religido”, mas nao é religiosa; preocupa-se com a solenidade, mas é também satirica. E assinala um caréter vago, uma falta de significados e emogies espect- ficas nos rostos neutros. Essas ambigitidades e essa aparéncia vaga nao estao simples- mente presentes no tema. Ao contrdrio, sao caracteristicas da maneira como Courbet representa 0 tema, dos artificios que usa para pinta-lo, e do que ele escolhe para retraté-lo (nem como tragédia, nem como comédia, dois modos padrao de representacao desse tipo de tema). Courbet ndo atraiu desaprovacao por dedicar uma tela tao gigantesca, normalmente reservada para pinturas hist6ricas, a um tema tao banal. Contudo, ao fazer isto ele estava claramente conferindo um status histérico a um tema que, para o ptiblico parisiense, deve- ria estar fora ou além da hist6ria ~ 0 confronto com o destino universal da morte no imut vel e “apolitico” campo. Uma “pintura histérica” dedicada a um tema “nao histérico” esta é a primeira ambigitidade. ‘Uma segunda e provocativa ambigitidade é introduzida pela relagao do titulo com a imagem. Ornans era um lugarejo desconhecido da maioria dos parisienses. “Enterro em Omans”, portanto, evoca pelo menos duas expectativas: que estamos lidando com a morte e também com a paz rural. No entanto, as duas expectativas sao frustradas. Das 45 pessoas retratadas, muito poucas prestam qualquer atengao ao caixao, ao ttimulo ou ao padre que oficia 0 funeral. Até 0 grupo de clérigos parece estar pensando em outra coisa (considerando truta para o jantar, como sugeriu um critico ~ os narizes avermelhados sugerem interesses venais). Ha poucos sinais de emogao, a nao ser pelas irmas Courbet em prantos (a direita), e como s6 de uma delas poder-se-ia dizer estar olhando para o caixao, parece tratar-se de 76 [AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE E DA MODERNIDADE 62. Jean-Loui Meissonier, La Barricade, rue de la Mortellerie, Juin 1848 (Souvenir de a guerre civile) (A Barricada, rue de la Mortelleri, junho de 1848 [Lembranca da guerra civil), 1849, leo sobre tela, 29 x 22 cm. Louvre, Paris. Foto: Réunion des Musées Nationaux Documentation Photographique. ‘uum pesar convencional. O principal simbolo religioso, o crucifixo, esté visualmente desta- cado do agrupamento de pessoas ~ mais associado ao céu vazio 14 no alto que a multidao abaixo. © que une essas pessoas é a afiliagao social, ndo a devocao religiosa. Tal como sugere Clark, a pintura representa uma circunsténcia puiblica e social, desprovida de qualquer sen- tido mais profundo, na qual todos tém o seu lugar e sabem qual é esse lugar. Desse modo, um quadro cujo titulo promete uma pacifica meditagao sobre a morte na verdade apresen- ta um levantamento social de uma comunidade rural. Mas que tipo de pessoas sao estas? Muitas delas sao retratos de amigos e parentes de Courbet e de radicais politicos. Varias vezes comentadores destacaram 0 coveiro ajoelhado como sendo um camponés. $6 ele esta ajoelhado; s6 ele esta em mangas de camisa, O resto das personagens masculinas veste 0 tipico sobretudo negro da classe média. As mulheres, porém, sao mais ambiguas. O capuz de algumas sugere residuos camponeses. Aqueles que carregam o féretro também sao ambiguos. Para o critico Vignon, eles usam “chapéus fla Caussidiére” (Caussidiére era um politico contemporéneo de esquerda que, como chefe de policia da revolugio em 1848, vestiu seus homens com fachas e chapéus de aba larga). (COURBET: REPRESENTANDO © CAMPO PARA A CIDADE, 7 © conjunto de pistas deveria ter identificado este grupo como parte da burguesia rural, e nao da urbana. O cinismo do relacionamento desta classe com seus lideres reli- giosos mundanos teria sido estranho para a hipocrisia mais cortés das classes médias urbanas. As insinuagdes de envolvimento de alguns burgueses com a esquerda também seriam altamente anémalas (a esquerda recrutava seus membros entre 0s profissionais cul- 0s), bem como os lembretes das origens camponesas. Embora esse fosse um grupo de bur- ueses, era uma burguesia que existia em termos muito diferentes dos da burguesia de Paris. A propria paisagem jé sublinhava a identidade deles: as longas faixas de penhascos so caracteristicas das montanhas do Jura em Franche-Comté, que na época era uma regio notoriamente assolada por conffitos. Apesar disso, nenhum dos criticos burgueses ou aristocréticos identificou exatamen- te essa sociedade, e discordaram até de seus palpites. Alguns julgavam poder identificar autoridades locais, como juizes e chefes de policia, que nao estavam la, ¢ outros pareciam suspeitar que todos eram na verdade camponeses em suas melhores roupas de domingo. As razdes para essa dificuldade misturam consideragées politicas e artisticas. De um ponto de vista politico, o tema era sensivel demais para que os parisienses o reconheces- sem inteiramente; os conservadores de Paris sabiam que 0 campo ja nao se conformava a0 mito popular do “idilio social’, e teria sido muito embaragoso admitir o papel da propria burguesia rural nessas perigosas perturbagdes. O poder do mito esta em que ele permite que 0s interesses sociais e econdmicos dos grupos poderosos passem desapercebidos em representagdes visuais e verbais que vao de pinturas e gravuras a romances e documen- tos oficiais. Além disso, reconhecer a existéncia de mais de uma burguesia seria questio- nar o papel da propria burguesia urbana e as premissas de sua preeminéncia social. Tal como vimos, 0 problema de Courbet era a inexisténcia de convengoes para repre- sentar especificamente a burguesia rural. De fato, havia poucas convencGes para retratar qualquer aspecto ou elemento da vida moderna. Seria uma caracteristica da modernidade que as convengGes e os simbolos percam sua especificidade e claridade? Seré que a vida moderna se torna menos legivel, que “tudo o que é sdlido desmancha no ar”? Um exem- plo sao os sobretudos pretos das figuras masculinas do Enterro, um dos poucos indicado- es convencionais de classe social disponiveis a Courbet. Mesmo assim, fica a suspeita de que sejam de fato camponeses em sua melhor roupa de domingo. E plausivel sugerir que Courbet tenha jogado com essa incerteza. Por que motivo camponeses teriam imitado a burguesia? Uma resposta € que, quando 0 campo foi modernizado, o status dos campo- neses foi questionado. Nao estavam eles destinados, tal como os novos grandes fazendeiros das vizinhancas de Paris, a se tornarem um novo tipo de industrial capitalista que por acaso trabalha na terra? A familia Courbet era um exemplo classico dessa ambigitidade. O colapso e a fluidez das convencdes, e a falta de legibilidade que isto acarreta, nao eram um simples acaso. Ao contrério, faziam parte do total questionamento e do remodelamento dos papéis sociais, e portanto das convengdes, que a modernizacao traz consigo. Muitos artistas na posicao dele teriam optado por uma tarefa menos ambiciosa, como © fizeram Pils e Tassaert nas obras exibidas no Salao de 1850 [63, 64]. Os temas dessas obras também foram extrafdos da “vida real”, mas 0 fato de serem devedoras do modelo de pin- tura de género moralizante e sentimental do século XVIII fez com que escapassem a desa- provacao da critica. Patrick Le Noeune contrastou a “espiritualidade crista” e a “beleza moral” do quadro de Pils com a “fria imagem do nada” do Enterro (citado em S. Faunce, Reconsidering Courbet”, p. 4), duas concepcées diferentes do relacionamento entre 0 estético” e o “moral”. Courbet alcangou um efeito mais potente combinando as per- plexidades, misturando morte e sdtira, burgués e camponés, uma cena de ordem com sinais de discordancia. Seu piiblico parisiense vit-se em uma situagao complicada. Por um lado, era desafiado a tentar identificar uma realidade embaragosa. Por outro, era privado dos cédigos artisticos convencionais que o teriam ajudado nessa tarefa. Realismo e critica social Forgando o espectador a uma compreensao da realidade na tentativa de interpretar 0 quadro, Courbet alcangou uma espécie de realismo, mas nao porque a pintura tivesse 78 AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE E DA MODERNIDADE 63. Isidore Pils, Mort d’ume soeur de charité (Morte de uma irmi de caridade), 1850, 6leo sobre tela, 241 x 305 cm. Musée d’ Orsay, Paris, Foto: Réunion des Musées Nationaux Documentation Photographique. uma aparéncia realista ou um tema “humilde”. Estes eram os meios convencionais de ‘outros realistas, demonstrados em quadros como O semeador [65] ou Indo para o traballio [179], de Millet. Estas obras lidam com as profundezas do embrutecimento humano, mas so consoantes com o “mito do campo” em sua interpretacao mais sombriamente estéi- ca. No realismo de Courbet, os observadores sao forcados a interpretar a imagem repor- tando-se ao seu proprio conhecimento da realidade, simplesmente porque ha poucos cédigos convencionais e pistas para o significado; 05 que existem sao neutralizados pela incorporacao de outros que Ihes s4o incompativeis. Conhecer as convencdes exis- tentes da arte s6 ajudaria os observadores a ver a pouca serventia que elas tinham para interpretar esta obra. Podemos entender por que esses quadros perturbaram tanto 0 piblico burgué parisiense de 1850, e como Courbet veio a ser visto como um pintor socialista. Eles ques- tionavam 0 valor da compreensao privilegiada que o puiblico burgués tinha da arte e de suias tradigées, e por conseqiiéncia solapavam o prestigio daqueles que se envaideciam. com sua culta competéncia no consumo de arte ~ 0 que os destacava das camadas sociais “inferiores” . Esse questionamento foi considerado chocante. Tornando a educacao artis- tica irrelevante, Courbet parecia estar transformando-a em imagistica popular. A arte estava sendo devolvida, apés séculos de tentativas de elevé-la, a condigao de oficio artesanal. (Outra conseqiiéncia era ainda mais perturbadora. O proletariado era capaz de enten- der Courbet nao s6 tdo bem quanto a burguesia, mas melhor. Isto porque a classe tra- balhadora parisiense em expansao era formada quase totalmente por camponeses das provincias, aqueles que haviam fracassado na agricultura ou os que haviam juntado MPO PARA A CIDADE 79 64. Octave Tassaert, Famille malhieureux (Familia infliz, 65. Jean-Francois Millet, Le Semeur (O semeador), 1849, 6leo sobre tela, 115 x 76 cm. Musée d'Orsay. ©. 1849-50, 6leo sobre tela, 101 x 81 om. Cortesia do Foto: Réunion des Musées Nationaux Documentation _ Museum of Fine Arts, Boston. Doagao de Quiney Photographique. Adams Shaw, 17.1485. dinheiro bastante para tentar a sorte na cidade grande. Para essas pessoas, Courbet pintava uma circunstancia social odiada que muitas delas haviam acabado de deixar para trds. Assim, os quadros de Courbet criavam uma situacao na qual eram elas que melhor os entendiam, e o que elas entendiam — que 0 mito do campo era de fato um mito —era embaracoso e politicamente ameacador para a burguesia parisiense. Elisa de Mirbel, escrevendo em La Révolution Littéraire (a “revolucao” da revista era estritamente literé- ria), descreveu esse sentimento: Os estranhos elogios feitos a Monsieur Courbet tiveram como primeiro porta-voz um certo ébrio, homem do povo, que invadiu os bancos do Salo Carré [saguao central do Salao}. O que havia para se olhar, senao os piores borrdes em exposicao? Depois, alguns estudantes de arte levantaram a bandeira e, pouco a pouco, todos estavam falando de Monsieur Courbet. Para mim, Monsieur Courbet deve ter passado muito tempo pintando cartazes, sobretudo para fabricantes de fogdes e comerciantes de carvao. E provavel que nao tivesse nenhuma meta mais alta que esta quando fazia 0 circuito das feiras — assim diz 0 boato, que afirmam ser verda- deiro ~ mostrando suas incriveis telas em uma barraca com tum cartaz: GRANDES QUADROS DE ‘COUBERT, PINTOR OPERARIO. (Gitacio em Clark, Image of the People, p. 146) Mirbel estabelece um elo com os “poetas-operdrios”, como Dupont, cujo trabalho era admirado por Baudelaire, e evoca uma imagem fantasiosa do piiblico de Courbet: a “ralé” 80 DAMODERNIDADE encharcada de vinho que muitos comentaristas burgueses ¢ aristocréticos viam como um viveiro de perturbacio revolucionéria. E provavel que nao tenha havido nenhum “homem do povo” — as referéncias a personagens desse tipo eram uma convencao padrao da cri- tica do Saldo— mas, neste contexto especifico, sua invocacao por Madame de Mirbel tem uma clara ligagao com sua visio das pinturas como plebéias, e portanto indica por que Courbet foi identificado com o socialismo. O trabalho dele parecia conferir ao proletariado uma posieao privilegiada a qual nao devia ser bem-vindo. Courbet, portanto, podia ser politicamente ativo em sua sociedade subvertendo a partir de dentro 0 papel e o status da arte. A prética de Courbet tem com a modernidade uma relacdo diferente da que tem com a arte do juste milieu ou 0 romantismo. Sua obra levantava questdes sérias que a arte burguesa do Salao havia quase abandonado. Nos trabalhos de Courbet, a arte perde o seu “esteticismo”, seu status privilegiado de “arte pela arte”, para ganhar importancia social ¢ politica. Esta é uma das maneiras — alguns tedricos diriam que a tinica ~ pelas quais os artistas podem escapar, mesmo que temporariamente, “normalizago” moderna; é um dos poucos modios pelos quais podem evitar ver seu trabalho despido de significado social e reduzido a uma mercadoria na rede cada vez mais expandida de relagoes capi- talistas. Weber argumentou em 1915 que a modernizacao implicava a racionalizagio da socie~ dade ~a substituigao da autoridade tradicional pela ordem racional, do costumeiro pelo metédico, da fluidez social pelas distingdes sociais claras, da excentricidade pela orto- doxia, Em uma sociedade assim, sugeriu ele, a arte assumia a funcao de “uma libertacao interior da vida cotidiana e, acima de tudo, da crescente pressao do racionalismo teérico € pratico” (citado em J. Habermas, The Theory of Communicative Action, p. 161). Aarte do juste milieu, com seus significados imersos em tradicionalismo nostalgico, proporciona um. bom exemplo disto. Contudo, a obra de Courbet, exigindo antes o conhecimento que seus observadores tinham do mundo cotidiano do que seu conhecimento da arte, reconquistou um poderio politico, uma capacidade de provocar e de ilustrar — um “oposicionismo” ativo. O Enterro em Ornans questionou efetivamente o status da arte na sociedade em que era produzida e na moderna ordem das coisas. Esta é uma caracteristica determinante da tradi¢ao da vanguarda. Modernidade, realismo e historia da arte: O velho muisico de Manet Abordamos, em conexao com a pratica de Courbet, a questo da modernidade, o tipo de experiéncia social que a modernizacao traz consigo. Embora tenhamos considerado isto em um contexto rural, trata-se de uma experiéncia mais tipica da vida urbana na nova metrépole modernizada ~ Paris, Londres, Berlim ou Nova York. Paris, em especial, pas- sou por um macico programa de reconstrucao que envolveu novas instituigdes e tecno- logias urbanas, como a loja de departamentos, o hotel, o taxi, a iluminagao e a drenagem das ruas e importantes novos espacos comuns como o bulevar e o parque ptiblico. Estes tornaram-se tipos distintamente novos de espaco que proporcionavam novos modos de experiéncia® Aexperiéncia da modernidade Tal como comentamos, Baudelaire, 0 amigo “boémio” de Courbet, foi um dos primeiros escritores a ver na experiéncia da modernidade um tema importante. Para ele, a vida na Paris contemporanea era “rica em temas potticos e maravilhosos”, 0 que era irénico, pois Em geral, ver Pinkney, Napoleon Ill and the Rebuilding of Paris, e Simmel, “Metropolis and Mental Life”. MODERNIDADE, REALISMO E HISTORIA DA ARTE: © VELHO MUSICO DE MANET 81 66. Hippolyte Lecomte, Combat de la porte St-Denis, le 28 juillet 1830 (Combate na Porte St-Denis, 28 de julho de 1830), 1830, dleo sobre tela, 43 x 60 cm. Musée Carnavalet, Paris. Foto: Lauros-Giraudon. a textura “rica” da vida contemporanea resultava da opressio moderna ou da cobiga egois- ta. Em “0 Salao de 1846”, ele escreveu: A maioria dos artistas que enfrentaram temas modernos tém se contentado com temas puibli- cos € oficiais, com nossas vit6rias e nosso heroismo politico [ver figuras 51 e 66]. Fazem-no com reluténcia, e porque assim o ordenou o governo que os paga. No entanto, hé temas da vida par- ticular que sao herdicos de um modo totalmente diferente. Oeespetdculo da vida elegante e dos milhares de vidas a deriva que vagam pelo submundo de uuma grande cidade -criminosos e amdsias - La Gazette des Tribunaucx e Le Moniteur* estao ai para nos provar que s6 precisamos abrir os olhos para conhecer 0 nosso heroismo. (Baudelaire, Oewores completes, p. 260) Para Baudelaire, a personagem contemporanea que estava alerta para 0 heroismo iréni- co da modernidade era 0 novo flaneur. O flineur tentava decifrar a natureza e a biografia dos tipos de personagem que se tornavam comuns na nova cidade: bebedores de absin- to, mulheres da moda se exibindo, trapeiros, mulheres do gigantesco novo ramo de lava- gem de roupas. Baudelaire propunha que o “pintor ideal da vida moderna” que ele buscava representaria um avango com relagdo ao fldeur ao lidar com as duas metades * Jomais do governo; seu contetido estava sujeito A aprovagdo do ministro de Estado. 82 AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE EDA MODERNIDADE, inseparaveis da “modernidade”: manter fortes contatos com a tradicao artistica -0 “eter- no ¢ imutavel” ~ e ser plenamente sensfvel as experiéncias contemporaneas especificas ~ © “transitério, 0 fugidio, o contingente”. Para ele, um aspecto importante da mudanca contempornea era a rpida transformacao de Paris. Um enorme esquema de moderni- zacao foi confiado por Napoledo Ill (que se tornou imperador em 1852) ao barao Haus- smann, que foi prefeito do Departamento do Sena de 1853 a 1870. Essa modernizagao é chamada de “modernité” ou de “a experiencia da modernidade”. O amigo burgués de Bau- delaire, Manet, tem sido visto freqientemente como o primeiro pintor a ser seriamente sensivel as idéias de Baudelaire. Dandi por seus prdprios méritos, Manet conhecia a vida do flaneur por experiéncia prépria O velho misico Em 1862, Manet, como Courbet, fez uma pintura de género, O vellto muisico [67], em uma escala incomumente grande. Nao a submeteu ao Salo, preferindo a isso expé-la na gale- ria particular de Louis Martinet no inicio de 1863, juntamente com Concerto nas Tulhe- rias [22], entre outras. Manet, ao elevar um tema tradicional de género a escala de uma “pintura hist6rica”, exprimia um investimento no tema e uma referéncia consciente ao exemplo de Courbet. Quando exposto, 0 quadro O vellio mifsico foi em grande parte negligenciado pela critica, que achou Tulherias, feito em menor escala, muito mais objetavel. ‘As pinturas de Manet da década de 1860 inclufam uma variedade de temas direta- mente relacionados a visdo de Baudelaire da modernidade: novos temas modernos, per- sonagens cujas existéncias estavam sendo transformadas pela reconstrucao de Paris por Haussmann, temas “herdicos”, derivados de “tipos comuns”, 0 “refugo da cidade”. O velho muisico representa varias dessas personagens “baudelairianas”. O quadro pode ser descrito como uma composigao de “tipos” da sociedade contemporanea: criangas indi- gentes, boémios, ciganos, talvez. um boneco de ventriloquo (de roupas mais claras) do popular Théatre des Funambules,"® um violinista ambulante, um trapeiro” ou um burgués. empobrecido (a personagem do Bebedor de absinto) e, na extrema direita, o Judeu Erran- te (tema de muitos cartazes, livros e cangées populares, e um motivo especial de Courbet).. Estas personagens teriam sido facilmente identificdveis por suas roupas e por sua postu ra, que de maneira geral correspondiam as da vida real e em especial as suas represen- tages estereotipadas em uma variedade de fontes visuais.? ‘As personagens do quadro podem parecer “tipos comuns”, o “refugo da cidade”; con- tudo, a0 contrério de muitas cenas de “género” que apresentam personagens deste tipo em ‘um contexto urbano, estas esto reunidas em um ambiente vago e aparentemente rural —um tal deslocamento de contexto Ihes confere uma importancia inesperada, como acontece em Depois do jantar, de Courbet. Por outro lado, situando-as fora do contexto esperado, Manet torna mais dificil para o observador inferir por que essas personagens estao reunidas. Como se pode explicar esta imagem? Um observador contemporaneo do Salao, acostumado a avaliar trabalhos segundo critérios académicos, poderia ter colocado questées como: a composicio estd baseada em ‘um ponto ou personagem convencional central, como em O prestidigitador, de Hamon [68]? As personagens e parte da paisagem relacionam-se umas com as outras de manei- ra convencionalmente organizada, como em Familia de boémios emt viagemt, de Zo [44], ou em Boémios voltando de uma festa andaluza, de Dehondencq [69]? Qual é o tema da pintura? °° 0 teatro preservava as tradigdes da\ Commedia dell Arte, género tetra profisional e improvisado com personagens tradicionais,cujaorigem remonta aos séclos XVI e XVI pessoa que recolhe trapos ou detstos como meio de Vida, com 0 rseo concomitant, naquela época, de contrat antraz pulmonar a partir de It ou outros péloscontaminados. © Discusses epresentativas podem ser encontradas ems Brown, “Manet’s OLd Musician” e Gypsies en other Bohemians; Fred, "Manet Sources” (ea replica de Rett, *Mane’s Sources: a Critical Evaluation”); Hanson, Manet and the Modern Tratifion e "Popular imagery and the Work of Edouard Manet”; De Leiis, “Manet, Guroaltand Cheysippos”;e Maunet, Mane: Pentre Pilosope. MODERNIDADE, REALISMO E HISTORIA DA ARTE: O VELHO MUSICO DE MANET 83 67. Edouard Manet, Le View musicien (O velho nuisico), 1862, dleo sobre tela, 187 x 248 cm. National Gallery of ‘Art, Washington. Chester Dale Collection. 68. Jean-Louis Hamon, L’Esemoteur, le quart d/heure de Rabelais (O prestdigitador), 1861, leo sobre tela, 149 x 310 cm. Musée des Beaux-Arts, Nantes, inv. 1016. Foto: Patrick Jean. 84 [AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE E DA MODERNIDADE De onde sao derivadas as figuras — de outras representacdes, da vida real contempordnea ‘ou de ambos? Por que estéo dispostas como esto? Existe uma estrutura narrativa, como em O prestidigitador, de Hamon? Por que uma tela tao grande para uma pintura de géne- 10? Comparado a outros quadros sobre um tema semelhante, a alegoria boémia ou 0 grupo de ciganos, O velho nuisico parece incompetente: a drvore esta cortada, as figuras estao organizadas abruptamente, as personagens estéo absortas em si mesmas ou em devaneio vazio. E como se uma série de études (estudos de detalhes) houvesse sido distri- buida na tela: comparado ao quadro de Achille Zo, o de Manet parece desconjuntado em termos de composicao ¢ em termos formais. ‘Até as décadas de 60 e 70, a explicacao predominante para O velho nuisico era formal. Muitos relatos modernistas explicavam 0 quadro em relagao aos trabalhos de Manet pds~ 1863, considerando-o um trabalho imaturo anterior a “grande ruptura” de 1863, ano que parece marcar a “inovacao técnica” do “modernismo” de Manet em quadros como Le Déjeuner sur Vherbe [70]. (Le Déjeuner sur Uherbe foi exposto pela primeira vez. no Salon des Réfusés, uma exposicdo organizada, apés muitos protestos, por alguns artistas e seus partidérios, que julgavam terem sido rejeitados pelo Salo oficial de 1863 por razdes ideolégicas.) O velho miisico foi destacado como um claro exemplo da suposta incapacidade de Manet de fazer com éxito uma composicio, de seu uso inadequado dos principios académicos de composicao. O quadro era descrito como composto por “citacdes” — algu- mas de outras obras de arte ~ incdmodas, perfunct6rias e justapostas, ¢ tratado como um fracasso ambicioso. Argumentava-se com freqiiéncia que Manet usara 0 tema como um pretexto, que as “citacdes” haviam sido justapostas em beneficio da forma, ou por mera rotina, sem nenhum interesse por sua fungao ou significdncia, exceto por sua aparéncia for- mal e estética. Tais caracterizagées seguem o tipo de alegacao feita pelo critico simbolista Joseph Péladan, que escreveu, em L’ Artiste de fevereiro de 1884, que “Manet é apenas um pintor, e um pintor de fragmentos ~ desprovido de idéias, de imaginagio, de emogao, de 69. Alfred Dehondenca, Bohémes revenant d'une féteandalusienne (Boémtos volando de wma festa andaliiza), 1853, éleo sobre tela. Musée de Chaumont. MODERNIDADE, REALISMO E HISTORIA DA ARTE: O VELHO MUSICO DE MANET 85 70, idouard Manet, Le Déjeuner sur Vherbe (Almogo sobre a reloa), 1863, 208 x 264 em. Musée d'Orsay. Foto: Réunion des Musées Nationaux Documentation Photographique. poesia ou de habilidade artistica. Ele é incapaz de compor um quadro ... $6 um técnico pode julgar e apreciar o quadro” (“Manet’s Methods”, p. 186) Os criticos modernistas que viam virtude nessa desarticulacdo argumentaram que Manet estava explicitando os artificios de sua prética para tornar incoerentes, em termos convencionais, as influéncias, causas e referéncias do quadro. Assim, a obra acabou sendo estabelecida como um icone modernista: considerava-se que ela marcava uma ruptura abrupta com a arte do passado imediato e com os tipos de expectativas que o ptiblico tinha da pintura. A partir desse momento, a natureza da prética do préprio pintor, a construgao e elaboracao de “uma individualidade pictérica autoconsciente” (uma preocupacao deli- berada com problemas “intrinsecos a prépria pintura” como uma especializagio indivi- dual, moderna) revelaram-se como 08 aspectos mais interessantes das artes visuais. A rea- lidade moderna, por assim dizer, tornara-se problematica ou contraditéria demais para ser representada de outro modo que nao por uma énfase em uma atitude consciente em relagdo as qualidades “essenciais” do veiculo. Ver O velho miisico deste modo é fazer eco a visdo da arte como um retiro estético, como, nas palavras de Weber, “uma libertacao inte- rior da vida cotidiana”, em que os valores contemplativos da arte pela arte podem ser cul- tivados, e em que ha potencial para a emancipacao do observador iniciado e desocupado das restrig6es e responsabilidades sociais, politicas ou morais. Contudo, ha pelo menos duas outras explicagdes possiveis para O vellto miisico. Uma € que as caracteristicas formais, técnicas e composicionais relativamente incomuns do guadro so um indicio do interesse de Manet em transformar a pintura numa érea de “autonomia” que represente um distanciamento critico da realidade, uma transformacao dos valores artisticos convencionais pelo pintor, o que nao tem uma fungao politica. A outra —nao muito diferente da visdo de Baudelaire ~ é que o trabalho de Manet 6 uma de varias formas de representacio de uma “consciéncia” social mais ampla da “modernidade”. No segundo caso, Manet seria visto, do mesmo modo que Courbet, como um “realista”, que combinava uma reelaboracdo critica das convencées artisticas existentes (tanto as con- temporaneas como as da arte do passado) com os sinais e referéncias contingentes da vida contemporanea. Um relato “realista” do quadro enfatizaria diferentes aspectos e significados da pintu- ra, Manet elaborou voluntatia e deliberadamente uma naiveté, uma desarticulagio. Nos ter- 86 [AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE E DA MODERNIDADE mos das normas académicas ou oficiais de composi¢ao, o quadro nao tem arte, malicia, com- peténcia e nem mesmo significado. Mas essa naiveté representa certas transformacies téc- nicas e ideolégicas, realizadas em uma tentativa de produzir imagens que fizessem uma referéncia a vida apés 1848, de um modo que evocasse as idéias baudelairianas e a Paris de Haussmann. Segundo as normas contemporaneas do Salio, ele é tecnicamente grosseiro, ‘mas isto esta relacionado a uma preocupacao com a representacao da experiéncia contra- ditétia da modernité, Manet estava usando novas técnicas de pintura e novos modos de com- posicao e iluminacio, tendo em mente as revisdes entao correntes de pintores consciente- mente “progressistas” como Delacroix, Couture e Courbet. Ao fazer isto, relacionou o seu trabalho a pinturas de uma tradicao iconogréfica e técnica considerada como uma alterna- tiva 4 pintura do Salo. Se o projeto de Manet era representar a modernité, uma técnica niti- damente “moderna” era apropriada. Na década de 1850, um modo de desenvolver uma téc- nica desse tipo era estudar no atelié de Thomas Couture, e foi isto que Manet decidiu fazer. ‘Couture conquistara a reputacio de ser tecnicamente “progressista” gracas ao seu qua- dro Romanos da decadéncia. Ensinava uma variedade de técnicas pictoricas (Zo foi outro de seus alunos), criando um sistema de treinamento com énfases diferentes daquelas da Aca~ demia, estimulando os desvios em relacdo aos procedimentos da pintura convencional. Enfatizava a importancia dos primeiros estégios da representacdo pictorica — os croguis (esbogos preparatsrios da composicao), os études (estudos) ¢ os esquisses (esbogos pintados, por exemplo a figura 71), e incentivava uma ampla variedade de temas para os esbocos composicionais preparat6rios, de cenas de rua a c6pias de quadros do Louvre. Usando esses cadernos de esbogos como referéncia e retrabalhando-os no atelié, os alunos de Couture aptendiam a transmitir o imediatismo e a espontaneidade dos croquis em todos os estagios da pratica, ‘Tradicionalmente, ao executar 0 trabalho final, 0s pintores dispunham em ordem 0 croquis, o esquisse e os études, como guias preparat6rios para o ébauche. Este, pintado de maneira répida e esquematica, servia de base para o trabalho final. Menos “acabado” que o esboco (esquisse), costumava ser feito com cores terrosas em uma técnica de esfregacdo (muitas vezes com panos), dando uma vaga indicacao da modelagem da composicao final. As massas mais importantes de luz e sombra eram aplicadas com uma superficie fina de tinta, sobre a qual eram aplicadas camadas de verniz ou de tinta mais espessa. Ao contrario da pratica académica, Couture enfatizava o ébauche como elemento pictérico 71. Edouard Manet, esboco de Le Déjeuner sur I’herbe, 1863, dleo sobre tela, 89 x 116 cm, Courtauld Institute Galleries, Londres. MODERNIDADE, REALISMO E HISTORIA DA ARTE: 0 VELHO MUSICO DE MANET 87 72. Edouard Manet, L’Exécution de I'Empereur Maximilien (A execugao do imperador Maximiliano), 1867, 6leo sobre tela, 196 x 260 om. Doagao do st. e da sta. Frank Gair Macomber, cortesia do Museum of Fine Arts, Boston. positivo no trabalho final. Isto pode ser visto na “planaridade” rasa de seu Romanos da decadéncia, Manet apossou-se do conceito de éauche de Couture e usou suas caracteristicas técni- cas para obter um efeito particular durante a década de 1860 [72, 73]. Estendeu a técnica usando no ébauche as “cores locais” (por exemplo, verde para a relva) dos objetos retrata- dos, em vez de cores terrosas. As pinturas de Manet, inclusive as expostas no Salon des Réfusés [70, 74], eram vistas como inacabadas porque se considerava que elas elevavam 0 ébauche & condicao de superficie acabada. Seus quadros vieram a ser vistos como uma série de ébauches, um sobreposto ao outro. Mas o puiblico e 0s criticos interpretavam essa téc- nica inovadora como sinal de um ataque mais geral 4s nogées estabelecidas de competén- cia pelos valores que evoca. Tal como observamios em relagao a Courbet, este tipo de afron- ta ao decoro era visto como um desvio tipicamente “moderno” Sea técnica de Manet era considerada moderna, por que a iconografia de O velho mitsi- ©0 nao chamou a atenc4o? Em primeiro lugar, ¢ importante considerar que tipo de conhe- Cimento das representacées estava envolvido na producao e nas potenciais leituras do quadro, para ver que idéias, imagens, valores e crencas foram usados como matéria-prima e como a pintura trabalha esse material. Uma importante drea de conhecimento diz. respeito aos modelos artisticos de repre- sentacdo que a pintura de Manet usa e a possiveis referéncias a fontes que nao as da arte erudita, tais como gravuras populares reproduzidas em massa, que retratam temas rela- 88 AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE E DA MODERNIDADE 73, Edouard Manet, L'Exécution de I'Empereur Maximilien (A execusio do imperador Maximiliano), 1867, leo sobre tela, 252 x 305 cm. Kunsthalle Mannheim. tivos aos mitos e as atividades da vida cotidiana, As referéncias mais Sbvias mostram a rede de imagens e modos de representacao evocada pela pintura de Manet. Pinturas dos irmos Le Nain [59, 60, 75] sao citadas tanto em termos de composigéo como de persona- gens. O homem de cartola pode ser comparado’as pinturas de “trapeiro” e de “boémio” de Manet, Bonvin e Gavami [76, 77 ¢ 78] ¢ as gravuras populares, como as de Traviés e Ber- tall [79, 80]. O quadro Le Gilles, de Watteau [81], é uma fonte dbvia para o menino de bran- co. O violinista de Manet pode ser derivado do flautista sentado do quadro de Louis Le Nain pintado em c. 1640 [59], das figuras sentadas em seu A refeicio dos camponeses [60], ou até da figura com manto em Os bébados de Velézquez. [82]. Comparagées plausiveis também podem ser feitas com as criangas de trés quadros dos Le Nain, suas roupas e o arranjo da composigio, ¢ com imagens de gravuras e quadros populares [83, 87]. Os desenhos de Manet de uma Figura hielenistica, ou Fildsofo sentado, podem muito bem ter sido usados como estudos preparatérios para o violinista [84, 85]. E, como argumenta convincentemente Marilyn Brown, o cigano Jean Lagréne foi quase com certeza 0 modelo para o velho miisi- £0 [86] ‘Tais referéncias e evocagées nao eram privativas de Manet. Teriam sido reconheciveis e reconhecidas por alguns contemporaneos, sobretudo de seu préprio circulo de relagbes. MODERNIDADE, REALISMO E HISTORIA DA ARTE: O VELHO MUSICO DE MANET. 89 74, Edouard Manet, Mademoiselle Victorine en costume despada (Mle Victorine vestida de toureiro), 1862, éleo sobre tela, 165 x 127 cm. Metropolitan ‘Museum of Art, Nova York, The Metropolitan Museum of Art, legado da sra, H. O. Havemeyer, 1929, Colecao H. O. Havemeyer (29,100.53). Antoine Le Nain, Le View joueur de flageolet (O flautista da aldeia), 1642, 6leo sobre cobre, x29 cm. Detroit Institute of Arts. Aquisigio da cidade de Detroit. 90 AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE E DA MODERNIDADE as 76, Bdouard Manet, Buveur d’ Absinthe (O bebedor de absinto), 1858-59, éleo sobre tela, 181 x 106 em. The Nova York Carlsberg Glyptotek, Copenhaguen. 77. (acima, &direita) Frangois Bonvin, Chifonier (Finpeiro), 1854, desenho a carvao, localizagao atual desconhecida. Foto: cortesia de Archives of Noortman (Londres) Ltd. 78, Paul Gavarni, Ménage bohémienne (Arranjofemilar boémio),c. 1859-60, leo sobre tela. Musée de Dunkerque. Foto: Thériez MODERNIDADE, REALISMO E HISTORIA DA ARTE: 0 VELHO MUSICO DE MANET a1 79. Charles-Joseph Travis, Le Chiffonier (O trapeiro), extraido de Les Francais peints par eux-mémes, 1841, vol- Il, p.393. Bibliotheque Nationale, Paris, 80, Albert Bertall, Le Marchand habits (O vendedor de roupas velhas), gravura em madeira, dimensdes desconhecidas, Musée Carnavalet, Paris. Meurs PC 17/7. Foto: Musées de la Ville de Paris/ Andreani (© spapeM Paris e DACS, Londres, 1993, 81. Antoine Watteau, Le Gilles ou Pierrot, 1721, dleo sobre tela, 185 x 150 em. Musée du Louvre, Paris Foto: Réunion des Musées Nationaux Documentation Photographique. 92 AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE E DA MODERNIDADE 82. Diego Velazquez, Los borrachos (Os bébados), 1629, dleo sobre tela, 165 x 225 cm. Museo del Prado, Madi 83. Henri Guillaume Schlesinger, L'Enfant volé (A crianga roubada), gravura de uma pintura, Le Magasin Pittoresque, XXIX, 1861, p. 293. Bibliotheque Nationale, Paris. MODERNIDADE, REALISMO E HISTORIA DA ARTE: O VELHO MUSICO DE MANET 93, 84, Chrysippos, Fildsofo sentado, antes que a cabeca fosse substituida, cépia antiga do marmore grego do Pe A século III a.C., 120 em de altura. Musée du Louvre, z i Panis Foto: Reunion des Muses Nationa. ieee Documentation Photographique. 85. Edouard Manet, Philosophe assis (Fildsofo sentado), €.1860, lipis e giz vermelho sobre papel cinza, 23 x 1M em. Musée du Louvre, Cabinet des Dessins, Paris. Foto: Réunion des Musées N. Documentation Photographique. 86. Potteau, Jean Lagréne, 1865, Foto: Bibliotheque Centrale du ‘Musée de I'Histoire Naturelle, Paris. 94. [AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE E DA MODERNIDADE 87. Hippolyte-Louis-'mile Pauquet, “La Béarnaise", extraido de Les Frangais peints par eux-mémes, 1841, vol. Il, p. 11. Bibliothéque Nationale, Paris. ‘Além disso, os quadros O flautista da aldeia, de Le Nain, e Gilles, de Watteau, apareceram. no mesmo ntimero da Gazette des Beaux-Arts em 1860; a pintura de Schlesinger foi expos- ta no Salao de 1861 e apareceu no Magasin Pittoresque. A admiragio de Manet pelos irmaos Le Nain e pela pintura espanhola pode ter vindo da observacao de como Courbet usava essas fontes. Mas ele também era amigo do romancista, escritor e critico Champ- fleury, um dos primeiros defensores de Courbet e do “realismo” na pintura, que escreveu um manifesto do movimento realista (Le Réalisme, 1857). Champfleury defendia a arte espanhola e escreveu obras importantes sobre os irmaos Le Nain, sobre vestudrio e gra- vuras populares (em L’Histoire de l'imagerie populaire, 1869). Em 1850, publicou um livro sobre canes populares das provincias e, em 1852, um sobre os romanticos; a partir de 1865, seu principal projeto foi uma Histéria da caricatura em cinco volumes; e, em 1869, apresentou o livro Les Chats — histoire, moeurs, observations, anecdotes, para o qual Manet fez ‘uma das 52 ilustragées, que também foi usada como peca central para um cartaz de pro- paganda do livro. 'As referéncias espanholas neste e em outros quadros de Manet sio coerentes com sua preocupacéo em adotar algumas caracteristicas técnicas da pintura espanhola, como a manipulagio ousada da tinta. Essas referéncias e técnicas foram associadas a um “tempe- ramento latino” que evocava a “natureza” de um modo compativel com 0 romantismo~ ou seja, foram associadas ao que Baudelaire chamava de “drama vivo e natural” ¢ as “emogdes” e a “sensibilité” e vistas como desprovidas do controle da “razio” e do racio- nalismo. Mais uma vez, no contexto do debate hist6rico entre “antigos” (que davam pri- mazia ao dessin e ao intelecto) e “modernos” (que enfatizavam a cor e a sensibilité), optar MODERNIDADE, REALISMO E HISTORIA DA ARTE: O VELHO MUSICO DE MANET 95 por tais referéncias e técnicas naquele periodo era “critico”, pois o “controle” estava asso- ciado as verdades francesas oficiais (0 racionalismo filos6fico e a tradigao do classicismo) codificadas nos critérios de competéncia da Academia. O velho miisico € a modernizagao de Paris No quadro O veto misico, as “citagdes” estdo dispostas como uma série de études em uma paisagem aparentemente indistinta. Em comparao com as pinturas “boémias” ou “ciga- as” existentes, esse era um ato subversivo e coerente com as nogdes baudelairianas de modernidade. E 0 “local” representado pode também evocar a experiéncia contemporénea da modernizagao de Haussmann, em vez da paisagem tipica do mito “boémio” nas repre- sentagdes convencionais. Um indicio disto sao as memérias de Antonin Proust, que escre- vveu sobre o periodo de 1860: Jé contei como Manet era um flaneur. Caminhavamos juntos, certo dia, ao longo do que depois viria a ser o Boulevard Malesherbes [ver figuras 88 e 89], em meio as demoligdes entremeadas de buracos abertos onde o solo jé havia sido nivelado. O distrito de Monceau ainda nao fora planejado ... Mais além, demolidores se destacavam em branco contra uma parede menos branca que estava desmoronando sob seus golpes, cobrindo-os com uma nuvem de poeira. Por muito tempo, Manet permaneceu absorto admirando a cena ... Uma mulher saiu de uma taberna humilde segurando as saias e agarrada a um violo; Manet foi direto a ela e pediu-lhe que posasse para ele. Ela comegou a rir. (Em P. Courthion e P. Caller, Portrait of Manet, p. 42) No perfodo descrito, Manet vivia e trabalhava na regido de Batignolles, em Paris. Situada hoje mais ou menos entre a Gare St. Lazare e 0 cemitério de Montmartre, essa regiao foi reformada por Haussmann no inicio da década de 1860. A érea a que Proust se refere era conhecida como La Petite Pologne; em A prima Bette, Balzac escreveu sobre “seus habitan- tes sinistros, aqueles antros onde a policia nunca se aventura a menos que seja obrigada” 88. A. P. Martial (Adolphe Théodore Jules Martial Potémont), La Petite Pologne, demoligio e escavacao para a construgio do Boulevard Malesherbes, c. 1860, gravura. Bibliotheque Nationale, Cabinet des Dessins, Paris 81.c.108 657. 96 [AS PRATICAS MODERNAS DA ARTE E DA MODERNIDADE 89. Félix Thorigny, segundo Roevens, Décoration du Boulevard Malesherbes, le 13 anit 1861, jour de inauguration (Decoragio do Bouleoard Malesherbes, 13 de agosto de 1861, dia da inauguracio), gravura. Foto: Roger Viollet (citado em Reff, Manet and Modern Paris, pp. 172-3). O romancista Eugene Sue descreveu-a como um lugar em que "nao havia ruas, mas becos, nem casas, mas barracos, nem pavi- mento, mas sim um tapete de Jama e esterco” (citado em Ref, p. 173). Reftigio dos sem-teto e das familias ciganas pobres, de tocadores de realejo, treinadores de macacos e assim por diante, seu centro foi transformado pela construcao do Boulevard Malesherbes. Na gravu- ra de Martial [88] pode-se ver, no alto da imagem, as casas em rufnas que estavam sendo abaladas pelas escavagdes do bulevar. Uma gravura posterior [89] mostra a area depois da reconstrugio de Haussmann. O velho misico foi produzido enquanto Manet vivia e tra- balhava neste ambiente, “em meio as demoligdes entremeadas de buracos abertos onde o solo jé havia sido nivelado”, como escreveu Antonin Proust. Muitos dos habitantes tradi- cionais desse setor foram deslocados pela reconstrucao. Simultaneamente a esse desloca- mento, € ligado ao desenvolvimento das ferrovias, houvera um grande crescimento da populacéo, que passou de 3 mil pessoas em 1837 para 65 mil em 1860, quando Haussmann incorporou La Petite Pologne a nova Grande Paris (ver figura 91). Atraidos para 1d pela industrializacao e pela reconstrucao, muitos dos que chegaram & area eram refugiados dias partes mais centrais da cidade, expulsos pelos impostos, os aluguéis altos, o desemprego ‘ow as més condigdes de vida. Significativamente, a figura do velho muisico cigano é, como jé dissemos, o retrato de um conhecido membro dessa classe deslocada: 0 modelo foi Lagréne [86], famoso patriar- ca de um bando de ciganos em Batignolles.!? Sustentava a familia trabalhando nas cam- panhas de construcéo de Haussmann até ser ferido em um acidente; passou entao a tra- balhar como tocador de realejo e como modelo para artistas. Em 1867, Paul Bataillard, principal especialista francés em ciganos, escreveu que Lagréne “representa 0 tipo boémio ® Lagréne foi tema de catorze fotografias de Potteau (fotsgrafo associado ao Musée de I'Histoire Naturelle) ede varias notas da imprensa no final da década de 1860. MODERNIDADE, REALISMO F HISTORIA DA ARTE: 0 VELHO MUSICO DE MANET 97 melhor que qualquer outro” e que “todos os artistas esto familiarizados com esse homen- zinho e seu rosto extraordinario” (citado em Marilyn Brown, “Manet’s Old Musician”, p.79), Por volta de 1867, Lagréne havia aparecido em pinturas de tantos artistas (como Lear, Isaac, Belisarius etc.) que estava tendo dificuldades em conseguir trabalho como modelo (este pode ser um caso de exaust de um mito moderno — 0 cigano boémio — disfargado de personagem artistica pré-moderna). Na verdade, o programa de modernizagio do Segun- do Império incluia leis estritas contra a vagabundagem, a mendicancia, as diversées ambu- Jantes e o que era chamado de étrangers dangerewx (forasteitos ou estrangeiros perigosos). Durante as décadas de 1850 e 1860, em seguida a abolicao da escravidao dos Europa oriental, houve uma forte reagao as ondas de ciganos que migraram para a Franca. A situagao de Lagréne foi descrita por Marilyn Brown: .» [ele] lamentava-se por Paris estar cada vez mais inabitavel para os ciganos. Queixava-se de que a policia o impedia de fazer seu ntimero de rua, a nao ser na bantlieve [subtirbio], onde os ganhos eram escassos. Morava em um vagao cigano pobre que estacionara ha anos na regiao periférica e cheia de casebres de Batignolles e Clichy; mas reclamava que a ferrovia [um desenvolvimento novo}, proprietéria de seu local favorito, aumentava continuamente 0 preco do estacionamento. (/Manet’s Old Musician”, p.79) Outros artistas, pelo menos no circulo baudelairiano, teriam reconhecido “o Cigano” como uma vitima despossuida ou deslocada da modernizagéo, como 0 portador de uma irénica experiéncia de moderidade. No quadro de Manet, porém, hé um deslocamento duplo: Lagréne representa uma classe social e também a “face” (reconhecfvel) do mito da boémia, tal como aparecia em representagGes idealizadas. Que implicagdes sociais teria tido tal deslocamento? Para responder a pergunta, precisamos examinar mais de perto as trans- formagGes de Paris e a motivagao para essas transformacdes. Durante uma parte substancial do periodo de 1850 a 1870, a vida em Paris foi domi nada pelo planejamento e pela supervisao, pelo barao Haussmann, da demoligao sistematica de ruelas estreitas e superpovoadas e por sua substituigao por 140 quiléme- tros de avenidas e bulevares retos, largos e bordados de drvores, que a iniciativa priva- da viria a encher de lojas e cafés sob novos apartamentos alugados a pregos altos. Entre 1853 e 1870, um quinto das ruas do centro de Paris era criacao de Haussmann; 100 mil arvores foram plantadas, quatro pontes sobre o Sena foram construidas e dez. foram alar- gadas ou restauradas, 27.500 casas foram demolidas e 102.500 foram construfdas ou reconstrufdas. Surgiram treze novas igrejas, duas sinagogas, cinco centros administra- tivos municipais e seis novos quartéis do exército, além de novos mercados, escolas delegacias de policia em praticamente todos os bairros. A certa altura da década de 1860, um em cada cinco trabalhadores de Paris estava empregado no ramo da cons- trugao. O puiblico do quadro de Manet vivia em um ambiente condicionado pelo deslo- camento continuo de vizinhancas inteiras, pelas realidades e atividades muitas vezes desagradaveis da vida urbana em transformagao e pela reconstrucao de uma cidade para servir aos interesses do capitalismo. Segundo as estimativas do proprio Haussmann, 350 mil pessoas foram deslocadas pelos novos bulevares e espacos abertos ~ e, destas, 12 mil foram arrancadas de suas casas 56 pela abertura da Rue de Rivoli e de Les Halles. Tra- tava-se de uma enorme porcentagem da populacao total, que, em 1851, pouco antes da nomeagao de Haussmann, era de 1.053.000 pessoas; em 1872, dois anos depois que ele deixou 0 cargo, era de 1.851.000. Aeescala das demoligdes era tao espantosa quanto a ambiciosa cidade que se planejava. Annova Paris nao cresceu nos espacos vazios da cidade antiga. Ao contrério, novos bulevares foram construidos no coracao da cidade (ver as figuras 88, 89, 90, 91 e 92), Como canteiro de demoligdes e construgies, pelo espetculo de simbolos do passado fisico sendo levados de roldao e substituidos, Paris transmitia a todos os que viviam nela uma idéia de moder- nidade. Em uma escala menor, uma reconstrucao parecida teve lugar em Lyon, em Marselha e em Le Havre; nada parecido fora visto desde os tempos romanos. Qual pode ter sido o efeito dessas mudancas sobre a populacao? Para alguns, os par- ques, 0s cafés, 05 locais de diversdo e as ligagSes ferrovidrias com os subtirbios proporcio- INSTITUTO DE ARTES BIBLIOTECA

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