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LINGUAS, ft «rs Wrereas > eISSN: 1981-47: DOI: 10.5935/1981-4755.20220027 Leitura dae na BNCC Reading of and in the BNCC Gesualda de Lourdes dos Santos Rasia* * Universidade Federal do Parani, UFPR. Curitiba - PR, 80060-000. e-mail: gesa.rasia@gmail.com Cidarley Greeco Fernandes Coelho** **Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, Barto Geraldo, Campinas - SP. 13083-970, e-mail: profacidagrecco@amail.com Resumo: Neste estudo visamos discutir acerea dos norteadores da Base Nacional ‘Comum Curricular (BNC) para a leitura, mais especificamente no EM, contudo, niio nos furtaremos de atentar para como a leitura € abordada pelo documento em. ‘outros niveis, haja vista que concebemos essa pritica como constructo em proceso, continuo ao longo da escolarizac4o dos sujeitos. Ao longo mesmo da vida dos sujeitos. Para tanto, entendemos ser necessirio discorrer, antes, acerca das condicdes histéricas de emergéncia da BNCC. Isto porque, no campo teérico a0 qual nos filiamos, 0 da Anilise do Discurso de vertente francesa, 05 fatos & acontecimentos nao so meros resultados da soma dos eventos de uma determinada temporalidade, mas produto do permanente e tenso jogo da luta de classes, o qual pde em causa 0 sentido que se da a narratividade da histéria. Em face disso, preferimos falar, mesmo, em historicidade. Nas palavras de Orlandi (1996, p. 55), “ni se trata de trabalhar a historicidade (refletida) no texto, mas a historicidade do texto, isto & trata-se de compreender como a matéria textual produz sentidos. Ora, © proceso de proposigao’estabelecimento da BNCC foi pleno de dissensos, de controvérsias; assim, nfo se pode falar em uma exterioridade fixa que sobre ela produziu determinacdes, mas em jogos de forcas que disputaram sentidos a partir de diferentes vertentes ideolégicas. Assim, nosso trabalho, enquanto analistas de discursos, é reconstituir os processos que compdem as tramas dessa discursividade, com vistas a compreensao dos sentidos sobre leitura que se encontram presentes na BNCC ora em vigéncia. Palayras-chave: Analise do Discurso, BNC, leitura Abstract: In this study we sim to discuss about the guidelines of the National ‘Common Curricular Base (BNCC) for reading, more specifically in EM, however, wwe will not shy away from paying attention to how reading is approached by the document at other levels, given that we conceived this practice as a construct in a contimious process throughout the subjects! schooling. throughout the life of the subjects. Therefore, we believe it is necessary to discuss, first, about the historical conditions of emergence of the BNCC. This is because, in the theoretical field to which we are affiliated, that of French Discourse Analysis, facts and events are not ‘mere results of the sum of the events of a certain temporality, but the product of the permanent and tense game of the class struggle, the which calls into question the ‘meaning given to the narrativity of history. In view of this, we prefer to speak, even, in historicity. In the words of Orlandi (1996, p. $5), “it is not about working the historicity (reflected) in the text, but the historicity of the text, that is, it is about understanding how the textual matter produces meanings. Now, the process of proposing/establishing the BNCC was full of dissemt, controversy; thus, one cannot Volume 23 ‘Nimero 58 LINGUAS, 9 4q fi eISSN: 1981-47. » M wy, DOK: 10.5935/1981-4755.20220027 LETRAS speak of a fixed exteriority that produced determinations on it, but of games of forces that disputed meanings from different ideological strands. Thus, our work, as discourse analysts, is to reconstitute the processes that make up the plots of this discussivity, with a view to understanding the meanings about reading that are present in the BNCC now in force. Keywords: Discourse Analysis, NCC, reading, Primeiras Palavras Neste estudo visamos discutir acerca dos norteadores da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a leitura, mais especificamente no EM, contudo, ndo nos furtaremos de atentar para como a leitura é abordada pelo documento em outros niveis, haja vista que concebemos essa pritica como constructo em processo continuo ao longo da escolarizagao dos sujeitos. Ao longo mesmo da vida dos sujeitos Para tanto, entendemos ser necessério discorrer, antes, acerca das condigdes historicas de emergéncia da BNCC. Isto porque, no campo tedrico ao qual nos filiamos, © da Anilise do Discurso de vertente francesa, 05 fatos e acontecimentos nao so meros resultados da soma dos eventos de uma determinada temporalidade, mas produto do permanente e tenso jogo da luta de classes, o qual pde em causa o sentido que se da a narratividade da historia, Em face disso, preferimos falar, mesmo, em historicidade. Nas palavras de Orlandi (1996, p. 55), “nio se trata de trabalhar a historicidade (refletida) no texto, mas a historicidade do texto, isto é, trata-se de compreender como a matéria textual produz sentidos. Ora, 0 processo de proposi¢ao/estabelecimento da BNCC foi pleno de dissensos, de controvérsias; assim, nao se pode falar em uma exterioridade fixa que sobre ela produziu determinagdes, mas em jogos de forgas que disputaram sentidos a partir de diferentes vertentes ideologicas. Assim, nosso trabalho, enquanto analistas de discursos, € reconstituir os processos que compdem as tramas dessa discursividade, com vistas & compreensio dos sentidos sobre leitura que se encontram presentes na BNCC ora em vigéncia Das implicacdes do nome: contradigdes constitutivas A primeira questio que se impde, para que se entendam as motivacdes da proposigao da BNCC, talvez seja seu proprio conceito. Partamos, entio, da definigao fornecida pelo texto oficial: Volume 23 ‘Nimero 58 LINGUAS, ft «rs Wrereas > eISSN: 1981-47: DOK: 10.5935/1981-4755.20220027 [.-] € um documento de caréter normative que define o conjunto orginico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos 03 alunos devem desenvolver a0 longo das etapas e modalidades da Educacio Basica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem ¢ desenvolvimento, em conformidade com o que preceitta 0 Plano Nacional de Educacao (PNE) (BNCC, 2018, p. 7). A definigio desencadeia, de imediato, outras questdes, quais sejam, 0 que so aprendizagens e 0 que determina a essencialidade delas dentre a amplitude de tudo 0 que pode ser oferecido aos estudantes ao longo de sua formagio bisica. Antes disso, cabe pautar no que consiste mesmo o sentido de “educagio basica”, designagdo que reporta, Guplamente, a una amplitude e a miltiplas especificidades. E, ainda, do que se trataria 0 conjunto orginico ¢ progressivo de tais aprendizagens, especialmente se pensarmos na questao da leitura, ‘Nao ¢ preciso dizer que em um pais de dimensdes continentais tudo 0 que no se tem 6 homogeneidade; logo, as demandas sio tio plurais quanto so os sujeitos da escolarizagio no Brasil. Esta questo, entendemos, coloca-se como contraditoriamente constitutiva na formulagio da BNC, haja vista a demanda por vetores que orientem de modo mais ou menos uniforme a educag3o no pais, de um lado, minimizando as diferengas de formagio; e, de outro, a busca por atender as diferencas e particularidades regionais, culturais e econdmicas. Sintese dessa problemitica encontra-se no cotejo dos enunciados que seguem, 0 primeiro deles, de professor que foi membro do Conselho Nacional de Educagao ¢ presidiu a Comissio de Elaboragio da BNCC: Muitos profissionais da educacdo sentem a falta de referenciais, atuando de forma dispersa e em meio a precérias condicdes de trabalho. Isso. precisa mudar. Estudantes sio portadores de direitos de aprendizagem que esto enunciados na BNC. Direitos que evocam os nossos deveres de proporcionar o necessirio e ndo apenas o possivel. A Base pode representar um estimulo a uma consciéneia mais profunda dos educadores e ao seu empoderamento como profissionais.* De outra parte, temos a posigiio de duas associagdes, a ANPEd e a ABUC?, as quais enunciam formalmente acerca dos riscos de um olhar planificado de parte das diretrizes presentes no documento em tela sobre as escolas brasileiras ¢ seus sujeitos: 4 Cesar Callegari, sociélogo, professor e consultor educacional, presidiu a Comissao de elaboracao da BNC Associagto Nacional de Pés-Graduacto ¢ Pesquisa em educaglo/ANPEd e Associngio Brasileira de ‘Curiculo/ABdC. Volume 23 ‘Numero 55 LINGUAS, ft «rs Wrereas > eISSN: 1981-47: DOK: 10.5935/1981-4755.20220027 A. Associagdo Nacional de Pés-graduacio e Pesquisa em Educagdo/ANPEd e a Associacdo Brasileira de Curriculo/ABdC manifestam-se contrariamente ao documento orientador de politicas para Educacdo Bisica/Ensino Médio apresentado pela SEB/MEC a esse egrégio conselho como Base Nacional Comum Curricular do Ensino ‘Médio, Nossa posicao ¢ sustentada no entendimento de que a proposta atenta contra o direito constitucional dos estudantes e da sociedade & educacio e A formacto cidada, além de apresentar problemas intrinsecos a0 texto, sta intencionalidade e suas possibilidades de execucdo. A desejivel e inexpugnivel diversidade social, cultural, étnico-racial, de género, entre outras, do pais, cuja valorizacdo e manutengao sto fundamentais ao projeto de naga democratica expresso na Constituiedo Brasileira (CF/88) reiterada pela LDB 9394/1996, nao é contemplada na proposta da BNCC-EM, na medida em que nesta estd subentendida a hegemonia de uma tinica concepeao de educagdo, de conhecimento e aprendizagem que atenta contra a legislagao vigente e, mais do que isso, contra os direitos das nossas juventudes (2018, p. 1). A guerra de sentidos em tomo do que pode ser entendido como “geral x particular/especifico” aparece no cenario carreada pelos segmentos que determinam a formulagao da BNCC e, por consequéncia, suas diretrizes e saberes. E nessa perspectiva que retornamos, aqui, ao ponto inicialmente colocado, das condigdes histéricas nas quais emerge a elaboragio do referido documento, e as respectivas implicagdes dos dis ensos ideologicos. Condigdes Histéricas de produce da BNCC Embora a promulgacao do texto final date de 2018, as otigens do proceso de discussio da BNCC remontam a um acontecimento enunciativo* de nosso processo de abertura democratica, a Constituigao Federal de 1988, documento esse que previ a Base no artigo de niimero 210, por isso considerada a Constituigtio um dos marcos legais da BNCC. Marcamos este aspecto em razio de na referida conjuntura estarem-se elaborando instrumentos com vistas a retomada do olhar sobre os programas curriculares sob a égide do espirito democritico que entio se estabelecia. Isso demandava, obviamente, ampla discussao nos diferentes segmentos da sociedade e, sobretudo, 0 aprendizado de uma pratica da qual a comunidade escolar fora tolhida ao longo dos anos da Ditadura Militar. ‘Um dos aspectos marcadores da perspectiva demoeritica assumida pela entio Constituicao foi o reconhecimento da nio homogeneidade linguistica no solo brasileiro, > © acontecimento enunciativo, nos termos do que propde Indursky (2003), tem a ver com um novo modo de enunciar os sentides no interior do que se encontza estabelecido pela orientacio ideolégica de uma Formagtio Discursiva (FD), sem, contudo, que o sujeito do discurso sompa com a sua identificagto a essa. ‘Oportunamente abordaremos os conceites de sujeito e de Formagaio Discursiva, Volume 23 ‘Nimero 58 10 LINGUAS, Wy, 4 A eISSN: 1981-47: » M wy, DOK: 10.5935/1981-4755.20220027 LETRAS ao assegurar, por exemplo, que as comunidades indigenas pudessem passar a utilizar suas Jinguas matemas nos processos de aprendizagem. A Constituigio de 1988 marcou-se pelo avango, em que pesem as sempre Gificuldades de implementagiio do estabelecido, assim como os jogos de forga dos diferentes interesses. Saviani (2013) destaca que os anos 80, contexto da promulgagao da Carta, foram os anos de maior mobilizagao na Area da educagao, a partir de entidades criadas nos anos 1970, tais como a ANDE (Associagiio Nacional de Educagio); ANPEd (Associagaio Nacional de Pesquisa e Pés-Graduagio e Pesquisa em Educagao) e Cedes (Centro de Estudos Educagao e Sociedade). Estas trés entidades, destaca o autor, em 1980 organizaram a I CBE (Conferéneia Brasileira de Educagao), qual se seguiram outras cinco. Essa mobilizagio no campo educacional, continua 0 autor, desembocou na constituinte com a atuagao do “Férun de Educagito na Constituinte em defesa do Ensino Piblico e Gratuito, para 0 qual convergiu mimero altamente significativo de entidades. Outro marco legal da BNCC é a Lei de Diretrizes e Bases da Educacao Nacional (LDB), aprovada em 20 de dezembro de 1996, mais especiticamente, seu artigo de n. 26, © qual define que Os curriculos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino € estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas caracteristicas regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. (BRASIL, 1996, artigo 26). E importante dizer que o tramite de proposigdo e de aprovagdo da LDB atravessou ‘um ponto marcado pelo processo de abertura democritica no pais até o estabelecimento de um governo mareado por injungdes neoliberais. Cavalcante (2007) desereve aspectos concementes génese do processo de formulagio do texto: © referido projeto continha propostas de reorganizagao do. sistema nacional de ensino que vinham ao encontro dos anseios das classes trabalhadoras. A exemplo do movimento dos pioneitos da educacio nova de 1930 e dos movimentos em defesa da escola piblica (no inicio da década de 60), a bandeira da escola tinica, piblica, de qualidade, laica unitiria e com gestéo democratica novamente é empunhada pelos movimentos sociais organizados, principalmente os movimentos estuclantil e docente (CAVALCANTE, 2007, p. 38). A utopia democratica nao se realizaria em sua plenitude, infelizmente, alids, viria a manter-se no horizonte das utopias, como motor da huta de classes, haja vista as reconfiguragdes politicas que o pais viria a conhecer. Cavalcante (op.cit.) historia que 0 Volume 23 ‘Nimero 58 ul LINGUAS, 0, 4 A y DOF: 10.5935/1981 Peres . proceso de aprovagio do projeto passou pela gestio de trés governos: Collor, Itamar e eISSN: 1981-4755 '755.20220027 Femando Henrique, no havendo nada de inocente ou casual na demora para a aprovagio, Segundo a autora, tratou-se de estratégia que tinha por objetivos nao aprovar uma legislagio que impusesse restrigdes ao projeto de reforma estrutural jé em curso; ganhar tempo para adequar a referida lei as diretrizes politico- administrativas © pedagogicas dos organismos _intemnacionais. (CAVALCANTE, 2007, p. 43). A aprovacao do projeto final, do entio senador Darcy Ribeiro, se da no governo FHC, e soffe modificagdes coerentes com 0 contexto econdmico da época, regido por principios de desregulamentacio, descentralizac3o, autonomia e privatizagio. E desse modo que a Lei de Diretrizes e Bases para a Educagdo Nacional (9.394/96) “caracteriza- se pela chamada ‘flexibilizagio’ e pela “descentralizagio’ das responsabilidades de sustentagdo do sistema educacional” (CAVALCANTE, op.cit.,p. 45). Como resultado desse espago de regulamentagdo, temos os Pardmetros Curriculares Nacionais (PCNS), elaborados na insténcia superestrutural do Ministério da Educagio entre 1996 e 1998, divididos em EF e EM, os quais se colocam como papel central a “difusio da nova base curricular e a orientagdo, aos professores, acerca da condugio metodologica”. A designagao pardmetro cartega em si uma duplicidade semintica interessante, pois a0 mesmo tempo em que se trata de algo que serve como “modelo, regra”, também é o vetor a partir do qual se estabelecem pontos de comparagio para a determinagio de novas varidveis. Pode-se pensar, diante disso, no que conceme a natureza dos PCNs e da propria BNC, por extensio, em um carter mais geral, o qual tornaria possivel a abertura para as particularidades. A questo que nos toca discutir, neste estudo, é a abordagem sobre a leitura na Base, o que nos move, de imediato, a pautarmos acerea de quais “instrumentais” poderiam ser considerados “universais” para se pensar essa pritica; e © que deveria, prioritariamente, ser pensado, na abordagem das especificidades regionais, culturais, sociais, econémicas, dentre outras. E se usamos aspas em nosso enunciado é porque ja trazemos nossa posigdo acerca de uma relatividade em tudo que se proponha como universal, dado 0 pressuposto discursive da nao homogeneidade dos sentidos e dos sujeitos, das formas como se lida com o conhecimento, Sobre a CONAE como acontecimento historico-enunciativo Volume 23 LINGUAS, Wy, 4 A eISSN: 1981-47: » M wy, DOK: 10.5935/1981-4755.20220027 LETRAS Transcorridos dez anos apés o processo de implementagio dos PCNs, inaugura- se no Brasil um espago de diseussfo acerca da educagio que tratamos aqui como acontecimento histérico, Trata-se da Conferéncia Nacional da Educagio, realizada em Brasilia em 2010. Regulada pelo Estado, ela configura-se como fiuto de demandas da formagao social implicados na educagao, desde secretarias estaduais ¢ municipais, passando por entidades sindicais e chegando aos sujeitos centrais nessa discussio: 0 coletivo de professores e de estudantes. professor Francisco das Chagas Fernandes, secretirio executivo adjunto do MEC e coordenador da conferéncia, falando em entrevista, a respeito do processo de constituigfo e realizagao dessa conferéncia, afirma que a ideia da conferéncia era da sociedade civil, uma reivindicagao antiga do movimento social de que houvesse instincias de interlocuedo, no caso conferéncias nacionais, se desdobrando em conferéncias estaduais e municipais. Alids, as entidades do movimento social jé fizeram bem isso, porque as duas principais experiéncias que eu coloco como coletivas, das entidades do movimento social, sio as Conferéncias Brasileiras de Educagaio (CBEs) e os Congressos Nacionais de Educacao (CONEDS). (...). Porém, essas conferéncias aconteceram sob a responsabilidade e sob a conducdo especifica das entidades, n3o houve a participacio do Estado, da institucionalidade. E a grande reivindicagaio da sociedade era que o Estado estivesse presente na discussio da educagio junto com os movimentos sociais, (...) (FERNANDES, 2010, p. 1032-1033), ‘Na continuidade da entrevista, o professor e entio coordenador explicita que os esforgos envidados convergiram para a configuragio de uma politica de Estado e no de ‘governo na proposigio da Conferéncia, para o que se tornou necessério, segundo ele, uma série de acordos com os diferentes segmentos ¢ suas representatividades, na busca da construgio de um caminho de consenso. Outra questo que se mostrou fulcral, apontada na leitura da entrevista, foi a articulagdo entre as questdes locais e imediatas com as questdes mais amplas, de abrangéncia nacional. Tratar, por exemplo, de questdes atinentes ao transporte ¢ & merenda escolar, no Ambito dos municipios, junto aos professores, demandava entender qual a relagio possivel desses aspectos com a proposigao curricular em nivel nacional. Para nés, este é ‘um exemplo interessante para se refletir acerca da relagio particulas/ “universal” e, por que nfo, também uma questio de leitura Contudo, ha, consoante Saviani (2013), na I CONAE, uma tentativa de preenchimento a auséncia explicita e enunciada de um sistema nacional de educagao na Volume 23 ‘Nimero 58 13 LINGUAS, 0, 4 A y DOF: 10.5935/1981 Peres . Constituigao de 1988, falta esta que também nao havia sido equacionada quando da eISSN: 1981-4755 '755.20220027 promulgacio da LDB de 1996, Alias, conforme o autor, foi com o objetivo de sanar essa falta que aconteceu a convocagao da Conferéneia para 2010, tendo como eixo principal a construcio do Sistema Nacional Articulado de Educagio. Entre 2010 e 2012 se da a promulgacdo das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educagao Infantil, o Ensino Fundamental de 9 anos ¢ o Ensino Médio. Pelo fato de a I CONAE ter se organizado do modo como anteriormente descrevemos e ter derivado uma série de outros eventos, inclusive um conjunto de conferéncias, todos na diregao na eriagao do Sistema Nacional de Educago, postulamos que ela se trata de acontecimento histérico-enunciativo, conforme termos jé referidos de Indursky (2003). Este tipo de acontecimento implica a identificagdo dos sujeitos com saberes que desestabilizam 0 starus quo do ja-posto, do dado como plenamente aceitavel, e instaura espagos de ruptura na ordem do dizivel e das priticas. A BNCC e “as juventudes” E importante dizer que a discussio e proposi¢do desses documentos se dé no contexto de um govemno alinhado a interesses progressistas, envolvendo 0 coletivo de professores e da sociedade, e resultou na proposigdo do documento preliminar da Base Nacional Comum Curricular, disponibilizada em 16 de setembro de 2015. A essa disponibilizagao seguiu-se um proceso de discussio, elaboraciio da segunda e da terceira verdes, trajeto esse que perdurou até dezembro de 2018. Nesse interim o Brasil vivenciou a experiéncia histériea do golpe juridico-midistico de desrubada da presidenta Dilma Rousseff, com a posse interina do vice Michel Temer. No custo espago de tempo que antecederam as eleigdes presidenciais subsequentes, varias agdes do projeto neoliberal se consolidaram. Dentre elas, podemos destacar a votaglo da PEC 75, que estabeleceu teto para os gastos pilblicos federais, e a MP 746, de Reforma do Ensino Médio. Esses dois fatos, somados 4 tramitagio das reformas Trabalhista e da Previdéncia, desencadearam uma série de movimentos de resisténcia no corpo social, denotadamente as Ocupagdes nas Escolas. © movimento iniciou-se, em 2015, no estado de So Paulo, no ambito do ensino secundarista, em reagao a proposta de reorganizagao dos ciclos de estudo, sendo seguido pelos estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Goids, dentre outros. Cabe ressaltar que, em cada estado, as pautas diferenciadas mobilizavam os estudantes a ‘ocuparem suas escolas. Volume 23 4 LINGUAS, Wy, 4 A eISSN: 1981-47: » M wy, DOK: 10.5935/1981-4755.20220027 LETRAS Ainda em 2015, os professores do estado do Parané protestaram contra uma reforma previdenciiria proposta pelo governo estadual e sofreram uma repressio violenta que marcou o chamado Massacre de 29 de abril. Por mais de trés horas, bombas de gas lacrimogéneo e balas de borracha, vindas de todas as diregdes, até mesmo de um helicéptero contratado para tal fim, atingiram e feriram professores ¢ estudantes que apoiavam o protesto. Esses fatos ndo estdo isolados em um tinico protesto de um estado, antes, eles advém de uma politica de retrocessos de cunho neoliberal e conservador que culmina em um golpe de estado no ano seguinte Logo aps assumir o govemno, como ja dito, Michel Temer instituiu a Medida Proviséria 746/2016 com vistas a uma politica de fomento para a implementagio de um Ensino Médio em tempo integral, alterando a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educacao Lei9.394/1996) ea Lei 11.494/2007 que regulamenta o FUNDEB (Fundo de Manutengao e Desenvolvimento da Educacao Bisica). E a mobilizacdo estudantil se inicia: um grupo aqui e ali, intervalos agitados, aulas interrompidas para que 0 debate se desenvolva e, repentinamente, define-se a ago — ocupar, ocupar tudo. [...] 05 estudantes do ensino médio entram em cena e surpreendem toda a sociedade com sua organizacao, seus jograis e suas bandeiras, com seu entusiasmo juvenil e sua clareza politica, Insubordinagao? Rebeldia? Nada disso: 0 inicio de um movimento de resisténcia que tomou dimensées nacionais, que resultou de um trabalho educativo da escola publica, que se embate com todas as suas forgas para resistir ao processo sistematico de seu desmantelamento. [...] (SCHLESENER e FLACH, 2018. p. 201), Scblesener ¢ Flach (2018) se referem ao movimento estudantil paranaense, que faz parte da chamada Primavera Secundarista, ¢ destacam o alcance nacional dado pela forga da mobilizagao estudantil no Parana. As ocupagaes de escolas no estado do Parana esto neste contexto maior de mobilizagdo estudantil que traz o funcionamento de uma meméria de outros movimentos estudantis tanto no Brasil quanto fora dele. Considerada a segunda maior do mundo, no a mais longa e, talvez nem a mais eficiente na diregdo de ser pragmético de impedir a Reforma, essa mobilizagio reclama sentidos. Por isso, discursivamente, ¢ possivel afirmar que a efetividade do movimento se da pela produgio de deslocamentos ¢ rupturas na forma de se pensar a juventude, o secundarista, a relagao deste com a escola e a propria instituigdo escolar. Pela posigao da Anélise de Discurso, ancoragem teérica da qual langamos mio em nossos trabalhos, podemos afirmar que, quando dizemos que as ocupagdes no Parana ‘Volume 23 Numero 55 LINGUAS, Wy, 4 A eISSN: 1981-47: » M wy, DOK: 10.5935/1981-4755.20220027 LETRAS talvez nfo tenha sido o movimento mais eficiente para impedir a Reforma, destacamos que o sentido de eficiéncia entra na ordem do imaginirio e do pragnuitico na diregao de colocar as praticas humanas como produtos. Dessa perspectiva, efiviéneia é considerada como a resolugao de uma demanda, ou seja, da revogagdo da Reforma do Ensino Médio eda PEC 55. © conceito de imaginério que mobilizamos esté fundamentado na perspectiva discursiva, para a qual é através de um lugar determinado na estrutura de uma formagio social, representado “presente, mas transformado”, no dizer de Pécheux (1990, p.81), em que se pode compreender © funcionamento dos processos discursivos numa série de formagdes imaginarias que designam o lugar que um sujeito atribui a outrem ou a si mesmo, “a imagem que eles fazem de seu proprio lugar e do lugar do outro.” (Idem). Neste caso, a imagem que se tem da mobilizacdo dos estudantes e dos proprios sujeitos envolvidos neste acontecimento historico-enunciativo. A mobilizagao dos estudantes alastrou-se pelo pais*, como resposta de resisténcia as mudangas propostas para o Ensino Médio, tanto de organizagao quanto de investimento mais amplo na educagio. © movimento estendeu-se aos diferentes niveis de ensino, inclusive ao superior e também as diferentes regides do pais. Consolidou-se nao apenas como resposta de confronto, mas como instituigao de espagos de estudo, aprendizagens e discussio de temas diversos e relacionados as pautas em voga A mobilizagio dos estudantes nao é entendida aqui como um movimento social’, ‘mas como um movimento da sociedade e de uma formagio social especifica: a juventude significada pela escola, pelo fato de ser estudante, Mas 0 que significa ser jovem e ser estudante, ser um jovem estudante? Como ele est caracterizado pelos documentos oficiais? Vejamos um recorte da BNCC e de um Parecer do CNE/CEB citado no documento: Na diregio de atender as expectativas dos estudantes e as demandas da sociedade contemporinea para a formacao no Ensino Médio, as DCNEM/2011 explicitam a necessidade de ndo caracterizar o pubblico dessa etapa —constituido predominantemente por adolescentes e jovens = como um grupo homogéneo, nem conceber a “juventude” como mero rito de passagem da infancia a maturidade. * Resultando em mais de 1000 vniversidades ocupadas, adiamento da data de realizacao do ENEM em 23 estados e alteracao dos locais de votacio das eleicdes 2016 que se dariam em escolas estaduais ocupadas. 5 Conforme a proposicio de Orlandi, hé diferenciagao entre Movimento Social e Movimento da Sociedade. ‘© movimento social & aquele que parte de wna organizactio dentro de uma sociedade dada, enquanto 0 ‘movimento da sosiedade ¢ paste da materialidade discursiva, de real da histéria social. (ORLANDI. 2008). Volume 23 ‘Numero 55 16 LINGUAS, ft «rs Wrereas > eISSN: 1981-47: DOK: 10.5935/1981-4755.20220027 ‘a juventude como condigto sécio-histérico-cultural de uma categoria de sujeitos que necessita ser considerada em suas miltiplas dimensdes, com especificidades proprias que nfo estio restritas As dimensdes biolégica ¢ etiria, mas que se encontram articuladas com uma multiplicidade de atravessamentos sociais e culturais, produzindo miltiplas culturas juvenis ou muitas juventudes (Parecer CNE/CEB n° 5/2011." Adotar essa nocdo ampliada e plural de juventudes significa, portanto. entender as culturas juvenis em sta singularidade. Significa no apenas compreendé-Ias como diversas e dinémicas, como também reconhecer 0s jovens como participantes ativos das sociedades nas quais estdo inseridos, sociedades essas também tio dindmicas e diversas. Considerar que ha muitas juventudes implica organizar uma escola que acolha as diversidades, promovendo, de modo intencional e permanente, o respeito 4 pessoa humana e aos seus direitos. (BNCC. p. 462 — destaques nossos) © funcionamento da contradigéo torna-se visivel pela necessidade de caracterizagdo do jovem. Ora nie 0 caracterizar como homogéneo, ora fazé-lo a pastir de ‘uma nog&o ampliada e plural, mas, sobretudo, atribuir-Ihe caracteristicas ainda que plurais © ampliadas perdendo-se na infinitude de possibilidades. A compreensio das culturas juvenis em sua singularidade passa pelo conceito de sujeito e, lembrando que em Analise de Discurso adotamos um conceito de sujeito descentrado, significa que ele esta fundado na contradicao. O homem nao produz conhecimentos como ser consciente, homogéneo, auténomo e universal, mas antes é determinado pelo inconsciente, tal como o define Lacan (1998), constituido pela heterogeneidade e pela contradigio. Este iiltimo € o que também funda o lugar de maior permanéneia e constituigao do jovem: a escola. Ha um imagindrio de juventude, e mesmo conhecendo a diferenga entre uma juventude significada como estudante e outras juventudes numa diversidade concreta, real e distinta, ha uma unidade imagindria que significa o jovem como estudante, antes de tudo. Esse imaginario de juventude estudantil esta ligado a historia da educagao tanto pela universalidade do acesso quanto pela obrigatoriedade do ensino, Hi um conjunto de discursos que significam o jovem como estudante na propaganda, nas séries, nas politicas piiblicas, no cinema, pelo consumo. Talvez essa formagio discursiva esteja ligada a um pré-construido de que jovem é sindnimo de estudante na formulag3o “jovem estudante”, onde hé uma fusio entre substantivo e adjetivo, sem que haja distingdo entre um e outro, Assim, a discussio se insere nessa discursividade e unidade imaginaria de juventude tomada como objeto paradoxal ideologico (Pécheux, 1991), Volume 23 ‘Nimero 58 7 LINGUAS, Wy, 4 A eISSN: 1981-47: » M wy, DOK: 10.5935/1981-4755.20220027 LETRAS Hé que se considerar as condigdes de produgao mais amplas para a insergao deste sujeito jovem num pais de desigualdades sociais profundas. Assim, para a maioria da populacdo jovem brasileira — seus. setores empobrecidos —, baixos niveis de escolaridade, trabalho precitio desemprego sto realidades cotidianas, observando-se _poucas perspectivas de vida diante do incremento da violéncia nas Areas urbanas metropolitanas, sobretudo 03 homicidios. Esses indicadores, sociais constituem-se numa forte evidéncia para a confirmagao da nogao de que as juventides nfo sto apenas muitas, mas. sto, fundamentalmente, constituidas por miltiplas dimensdes existenciais que condicionam o leque de oportunidades da vivencia da condigao juvenil. (DAYRELL, CARRANO & MAYA, 2014, p. 114) Desse modo, a compreensiio da relagao entre a mobilizagaio dos estudantes quando das alteragdes legislativas que implicam mudangas em sua forma de viver, ser e constituir- se sujeitos de direito, passa pelo entendimento do que significa ser jovem, no Brasil, e ser significado neste lugar de estudante e na relagdo com a escola como um todo. Para formar esses jovens como sujeitos criticos, criativos, auténomos e responsiveis, cabe as escolas de Ensino Médio proporcionar experigneias e processos que Ihes garantam as aprendizagens necessarias para a leitura da realidade, o enfrentamento dos novos desafios da contemporaneidade (sociais, econémicos e ambientais) e a tomada de decisdes éticas e fundamentadas. O mundo deve lhes ser apresentado como campo aberto para investigacao e intervencao quanto a seus aspectos politicos, sociais, produtivos, ambientais e culturais, de modo que se sintam estimulados a equacionar e resolver questoes legadas pelas geragdes anteriores — e que se refletem nos contextos atuais —, abrindo-se criativamente para 0 novo. (BNCC, p. 463 — destaque nosso) A escola ¢ responsavel pela formagio do jovem como sujeito ¢ deve garantir as aprendizagens necessarias para a leitura da realidade de parte dele e, também, para que este jovem se torne um sujeito auténomo ¢ responsdvel. Para a anélise de discurso, 0 campo da significagio se da pelo politico, pela opacidade da palavra, pelo jogo de visibilidade e invisibilidade do dizer, pela linguagem que sempre produz rupturas, jé que “nao ha ritual sem falhas” (Péchewx, 2014), A formagio do jovem, deste modo, esti no processo de subjetivagiio em que 0 jogo das formages ideolégicas determina as filiagdes de sentido do dizer. O jovem sera habilitado para ler a realidade, Qual realidade? Ha apenas uma tiniea e verdadeira realidade? O que significa dizer que 0 jovem seri formado sujeito auténomo e responsivel? Seria ele mesmo o responsivel por sua realidade? Cabe a escola e a0 professor formar as juventudes para a leitura de muitas realidades. Volume 23 ‘Nimero 58 Is LINGUAS, Wy, 4 A eISSN: 1981-47: » M wy, DOK: 10.5935/1981-4755.20220027 LETRAS Aleitura, pois Até aqui problematizamos algumas questdes atinentes a designagio do documento em tela, assim como o sentido de “juventudes”, sujeitos que sio falados na BNCC. Também tratamos das condigdes de emergéncia do documento, dos conflites politico ideologicos que permearam sua proposigao, elaboragio e promulgagao, Esse conjunto de fatos atravessou a instincia dos debates em diferentes esferas e aleangou efeito de estabilidade na formulagao do documento final. Por vezes esteve relacionado 4 ordem supraestrutural, a que legisla; por vezes esteve mais localizado na ordem infraestrutural, aquela diretamente envolvida nas pritieas de ensino-aprendizagem: comunidade de professores, alunos, mies e pais. Do trinsito nem sempre pacifico entre uma e outra instancia, o Brasil conta como materialidade resultante, hoje, 0 texto da BNCC. Texto em proceso de leitura e apropriaglio pelo coletive de professores e estudantes, no acontecimento cotidiano designado aula, Aula que se tece a partir da composigao de nltiplos fios. Neste texto, abordamos um deles, a leitura. Para nés, nodal - ¢ nodal aqui, em se tratando de fios e textos tecidos - assume significagao miiltipla, haja vista que essa pritica é, na perspectiva discursiva assumida aqui para ler a BNCC, a possibilidade de produzir sentidos aos dizeres historicamente instituidos. E sob o areabougo teérico da analise do disenrso que nos propomos a langar nosso olhar sobre como a Base aborda a leitura, sobretudo no EM. Dizendo de outro modo, essa é a abordagem sobre essa pritica social no documento. Para conseguir fazer essa andlise sobre a leitura, nos colocarmos na posigtio de quem esta, sobretudo, abrindo-se para a multiplicidade dos sentidos, logo, sobre o funcionamento do politico da BNC. E importante dizer que a BNCC explicita, as primeiras linhas da parte sobre Linguagens, a perspectiva teérica assumida no documento para tratar sobre a linguagem, qual seja, a discursivo-enunciativa, E afirma ser esta a ‘jé assumida em outros documentos, como os Parimetros Curriculares Nacionais (PCNs), para os quais a Jinguagem é “uma forma de ago interindividual orientada para uma finalidade especifica; um processo de interlocugdo que se realiza nas praticas sociais existentes numa sociedade, nos distintos momentos de sua historia” (BRASIL, 1998, p. 20). Em que pese essa remissio, no documento anterior, a perspectiva tedrica encontrava-se diluida e mais centrada em uma das vertentes dos estudos discursivos. A leitura do documento de 2018, na definigao do escopo tedrico, aponta para uma demarcacao de limites, ao mesmo tempo Volume 23 ‘Nimero 58 19 LINGUAS, 9 4q fi eISSN: 1981-47. » M wy, DOK: 10.5935/1981-4755.20220027 LETRAS que abre a campo de negociagdes, possibilitando maior movimentagao de parte dos sujeitos professores, A produgao do conhecimento sobre a linguagem, no ambito da academia, tende a seguir critérios de ordenagdo tedriea, cujos recortes nem sempre permitem cruzamentos com campos da vizinhanga. Diferentemente acontece com o professor, no dia a dia da sala de aula, desimpedido do rigor tedrico, ele pode e deve valer-se de pressupostos maiores que norteiam e sustentam suas priticas, colocando-os permanentemente em relagio com outros semelhantes para ancorar os modos como trabalha os conhecimentos e saberes com seus alunos. De nossa parte, estamos percorrendo nosso olhar sobre a nogio de leitura, na BNCC, a partir do lugar de pesquisadoras da linguagem, inseritas nos estudos diseursivos pécheuxtianos, portanto, & a partir desses pressupostos que consideraremos a discursividade, os efeitos de sentido produzidos pelo documento na leitura que ora fazemos e que pode produzir algumas balizas para orientar os modos como professores podem (ou nao) posicionar-se diante do documento. Nosso foco é a abordagem da leitura para a instncia do Ensino no Ensino Médio, na BN C, contudo, por concebermos essa pritica como constructo em continuo, cujas etapas sfio mutuamente constitutivas, entendemos por bem abordar, ainda que de modo mais sucinto, também as demais etapas. Para a Educagao Infantil, a eoncepeao de leitura da BNCC esta ligada a chamada cultura escrita em seus diferentes usos sociais e dentro do campo de experiéncias “Escuta, fala, pensamento, imaginagiio” da BNCC (p.49-50). E possibilitando 0 acesso aos textos que circulam de diferentes formas que a crianga desenvolverd sua nogio de leitura. Esta relag3o se coloca, para nds que adotamos a perspectiva discursiva, na relagdo transparente entre linguagem-pensamento-mundo também mostra como a escrita nfo ¢ indissociavel da leitura. Depois, a BNCC traz a nogio de leitura ligada ao desenvolvimento da alfabetizagio nas séries inicinis do Ensino Fundamental como foco importante para a transigdo da EI ao EF. Cabe ressaltar que a apropriagio do sistema de eserita alfabética se vincula ao desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita e 20 envolvimento com praticas de letramento (BNCC, p. 59), assumindo a centralidade do texto como unidade de trabalho na apresentagio do componente de Lingua Portuguesa, uma vez que é nas séries finais do EF que se da a separacao das disciplinas. Essa abordagem da perspectiva por meio do desenvolvimento de habilidades segue em toda a BNC, do EF ao EM, separando as habilidades de leitura, oralidade Volume 23 ‘Nimero 58 LINGUAS, 0, 4 A y DOF: 10.5935/1981 Peres . escrita e também na articulagio com os campos de atuagio da linguagem e na eISSN: 1981-4755 '755.20220027 apresentacio da diversidade de géneros textuais que podem ser adotados em qualquer ano dentro do componente LP. Como ja ressaltado, na perspectiva da BNCC, as habilidades nao so desenvolvidas de forma genérica e descontextualizada, mas por meio da leitura de textos pertencentes a géneros que circulam nos diversos campos de atividade humana. (..) A demanda cognitiva das atividades de Jeitura deve aumentar progressivamente desde os anos iniciais do Ensino Fundamental até o Ensino Médio (BNCC, p. 75). Desse_modo, a demanda cognitiva das atividades de leitura se liga ao desenvolvimento das habilidades. E por meio da pratica de uma atividade cognitiva que a habilidade de compreensio de um texto em um determinado género textual se desenvolve, atingindo assim o pressuposto no documento. Interessante observar a diferenciagio na estruturagiio do quadro geral da BNCC do EF para o EM, no que diz respeito a sua suposta oportunizagao para a escolha dentre seus itinerdrios formativos. Uma vez que a capacidade cognitiva leitora do jovem ja esta formada, teria ele autonomia ¢ liberdade de escolher? Sabemos que na pritica, isso no se di desse modo devido as implicagdes de oferecimento destes itineririos pelos estados e a reducao da carga horaria no EM, sendo 1800h para a Base Comum (eram 2400h) & 1200h para os Ttineratios Formativos. A distribuigio dessa carga horiria é sugerida pelo Guia de Implementagio do Novo Ensino Médio, conforme a tabela a seguir, considerando a marcagdo em amarelo para todas as disciplinas gerais, com foco maior em Lingua Portuguesa e Matemitica, ¢ em azul para as disciplinas do Itinerdrio Formative. Volume 23 LINGUAS, 0 4 A » eISSN: 1981-4755 Wy, DOL: 10.5935/1981-4755.20220027 LETRAS. POssIBILIDADES ven Ano Ano DEDISTRIBUICAO * pon “=i = @e @e @e Guia de Implementago do Novo Ensino Médio (2018, sp.) Virias discussdes ainda estio em curso nos estados para o que determina a legislago para a implementagdo da BNCC no EM. Cabe ressaltar que a BNCC niio ¢ um curriculo e nao leva em conta as especificidades locais, tais como a Educagio no Campo, EJA, modalidades de ensino, ete, assemelhando-se ao que ocorreu durante a Reforma Capanema. A politica de implementagao prevé uma demanda local, ¢ os estados precisam se adequar elencando conteiidos para o componente curricular. No estado do Parand, 0 documento que faz essa implementacao para o Ensino Fundamental, chama-se CREP ~ Curriculo Referencial do Estado do Parana. Ja para o EM, esti em construgio. Pela leitura da estrutura organizadora da BNCC, temos como guia principal as 10 competéncias gerais ¢ as etapas da Educagao Basica. No Ensino Médio, nao havera mais a organizaco por meio de Componentes Curriculares (antigas disciplinas), mas a divisio em quatro grandes blocos para dar conta de cada direa, das competéncias especificas e do que 0 Guia de Implementagio do Novo Ensino Médio chama de “temas integradores”, mas nao os define. § Guia elaborado pelo Ministério da Educagao (MEC), Férum Nacional dos Conselhos Estaduais de Educacio (FNCEE), Conselho Nacional das Secretarios de Educagio (CONSED) e servidores especialistas ddas Secretarias Estaduais de Educagio. Disponivel em:< hitp: /aovoensinomedio mec gov br'#!/guia>. Acesso em ago. 2020, Volume 23 LINGUAS, 0 hd eISSN: 1981-4755 DOI: 10.5935/1981-4755.20220027 Wrereas We caus Err eee ae Chamamos a atengio para o sequenciamento da Educagio Basica até o final do Ensino Médio nesta demonstragao gréfica, e para seus efeitos de sentido. Considerando as etapas de ensino, é possivel ver que o iltimo item do EF e EM esti em “Habilidades” colocada como fim. O desenvolvimento de habilidades pressupde uma organizagio de contetidos distribuidos por Areas, objetos de conhecimento e unidades temiticas, considerando as competéncias especificas de cada componente (disciplina) ou area (EM). Um dos efeitos de sentido possivel para a leitura desta organizacii ¢ a diluigio de todo o percurso levado a um tinico fim: habilidades; bem como, a (im)possibilidade de organizagaio dos saberes em blocos fragmentados. Nessa discursividade, o politico, compreendido como a possibilidade do sentido ser outro, se faz presente gerando 0 dissenso e trazendo a transparéncia a tona. Contudo, “ndo ha ritual sem falhas” conforme jé afirmévamos a partir de Pécheux (2014), e se, por um lado, a macro-organizacio dos saberes orienta para a fragmentagio, © trabalho cotidiano na sala de aula, em um gesto de resisténcia, pode constituir espagos de interrogagdo, a partir mesmo de possibilidades abertas no ambito do documento. Estamos falando de efeitos de sentido, do fato de que no ha inéreia, univocidade de interpretago, e um dos aspectos que que merecem destaque na BNCC (2018) é a presenga, nela, do trabalho com os efeitos de sentido no sentido, junto com os estudantes. Volume 23 LINGUAS, Wy, 4 A eISSN: 1981-47: » M DOL: 10.5935/1981-4755.20220027 eres ‘Nog ausente nos PCNs, encontra-se apresentada como dimensio relacionada as priticas leitoras. Retomando a discussdo acerca da organizacao das etapas do ensino, consideramos que nela esta implicada a questio de o jovem ter ou no poder de escolha para 0 seu percurso formativo, e 0 Guia de Implementag3o traz um outro infogrifico para dar visibilidade ao que supostamente se teve até entéo e ao que se dard apés a total implementagao do novo, previsto para 2022. POSSIBILIDADE DE ESCOLWA NOS ITINERARIOS: MODELOANTIGO | 00808 MoDE.o B MoDE.o€ Guia de Implementagio do Novo Ensino Médio (2018. s.. Pelo acompanhamento do fluxograma do percurso do jovem representado no infogrifico, ele sai de um Ensino Médio sem nenhuma ops, para um Ensino Médio de “trajetoria live tendo sua possibilidade de escolha aleangado o nivel maximo: Os itineririos formativos — estratégicos para a flexibilizagio. da organizacao curricular do Ensino Médio, pois possibilitam opcoes de escolhia aos estudantes — podem ser estruturados com foco em uma rea do conhecimento, na formacao técnica e profissional ou, tambsm, ina mobilizagdo de competéncias @ habilidades de diferentes reas, compondo itineririos integrados, (...) considerando 0 contexto local € as possibilidades de oferta pelos sistemas de ensino; (BNC, p47 — destaque nosso) Contudo, cabe ressaltar aqui o que nos afirma Orlandi sobre a constituico dos sujeitos: “O sujeito modemo — capitalista — & ao mesmo tempo livre € submisso, Volume 23 ‘Nimero 58 LINGUAS, Wy, 4 fi eISSN: 1981-4755 » M DOK: 10.5935/1981-4755.20220027 eres determinado 58 (pela exterioridade) e determinador (do que diz): essa 8 a condigao de sua responsabilidad (...)” (ORLANDI, 2008, p. 104). E nessas condigdes, a escolha do joven esta atrelada ao contexto local e as possibilidades de oferta dos sistemas de ensino. Dentro deste leque de possibilidades, a leitura esti sugerida no documento orientador de implementago como uma Unidade Curricular’ (UC), dentro do que € ube”. Pela nogdo de efeito metaférieo (PECHEUX, 1990) sabemos que ha um deslizamento nessa formulagio que denomina a UC como um clube, derivando designado como * os sentidos para nogdes de diversio, entretenimento, nas quais “os agrupamentos de estudantes livremente associados que partilham de gostos ¢ opinides comuns (leitura, conservagio ambiental, desportivo, cineclube, fi-clube, fandom, etc.).”, conforme definigdo do Guia de Implementagdo do Novo Ensino Médio. ‘Nessa diregdo, lembramos aqui de anélise desenvolvida por Pfeiffer (2018), sobre a forma-material “Itinerdrios Formativos”, no texto legal de Reforma do Ensino Médio, para o qual a autora busca compreender como se da a construgdo da evidéncia da possibilidade onipotente de o aluno do ensino médio escolher, livremente, a seu bel-prazer, o itineritio formative que estar a sua disposigdo, textualizada na Lei da Reforma do Ensino Médio, friso, agora, meu interesse de apontar que esta construcdo sustenta a legitimidade de um mundo que no cessa de se dividir (PECHEUX, 1990b), produzindo o efeito imaginirio de que este Jovem, referente discursivo construido na reforma do Ensino Médio, ¢ ‘a escola pressuposta pela reforma, tém escolhas. Ou seja, todos estdo incluidos: 05 jovens, as escolas © 05 professores, nesse proceso de construcdo de diferentes itinersrios A disposigio de todos. Nao hi divisdo, nfo hé histéria, nfo ha o politico funcionando. As condigdes materiais de existéncia sfo iguais para todos — efeito imaginério dos mais transparentes. (PFEIFFER, 2018. p. 46) Assim, neste funcionamento da transparéneia dos sentidos, a “demanda cognitiva a leitura” pode ser atendida por um “clube” de leitura de estudantes livremente associados em uma Unidade Curricular dentro de um Itinerdrio Formative, para o qual a escolhia do estudante esta ligada oferta. O desafio ¢ saber de que modo os estados dario conta dessas leituras. ” Definigao presente no Guia de Implementago do novo Ensino Médio. “Unidades curriculares sto os elementos com carga horiria pré- eISSN: 1981-47: DOI: 10.5935/1981-4755.20220027 linguagem. No entanto, a necesséria assunc&o dos multiletramentos ndo deve apagar © compromisso das escolas com os letramentos locais ¢ com os valorizados. E preciso garantir que as juventudes se reconhecam em suas pertencas culturais, com a valorizacao das praticas locais, e que seja garantido o direito de acesso as priticas dos letramentos valorizados (BNCC, 2018, p. 487). Em que pese a ainda forte exctusdo de significativa parcela da populagao do acesso ao patriménio cultural tecnolégico, o documento regulador do ensino reconhece a nova realidade e confere espaco significativo as materialidades teenolégicas na perspectiva da leitura. Contudo, no que conceme 4 leitura, mais do que nunca, nao se trata de nao ter 0 aque ler, pois lida-se com o excesso, Assim, trata-se das escolhas acerca do que ler ¢ do como ler, abrigadas no escopo do que a BNCC designa como eurura digital, a qual: envolve aprendizagens voltadas a uma participacdo mais consciente e democritica por meio das tecnologias digitais, 0 que supde a compreensiio dos impactos da revolueao digital e dos avancos do mundo digital na sociedade contemporanea, a construgao de uma atitude critica, étiea e responsavel® em relagio 4 multiplicidade de ofertas miditicas e digitais, aos usos possiveis das diferentes tecnologias e aos contetidos por elas veiculados, e, também, & fluéncia no uso da tecnologia digital para expressio de solugdes e manifestagdes culturais de forma contextualizada e critica (BNCC, 2018, p. 474). Nos queremos discutir, aqui, @ centralidade que assume a formagio do sujeito leitor nesse cendrio, haja vista que a formulagio do texto propde o espago-tempo da Educagdo Basica como ldcus em que pode e deve acontecer o preparo das novas geragdes para essa realidade. Em nossa concepedo, hd pressupostos inerentes as praticas leitoras que antecedem qualquer aparato tecnol6gico e mesmo independem deles. Acreditamos que a constituigio do leitor dito critico habilita-o a movimentar-se em qualquer mrultiplicidade textual, uma vez que é justamente a condigao de reconhecimento dessa multiplicidade e suas matrizes que o capacita a realizar suas inscrigdes/escolhas: De seu lado, 0s sujeitos sfo sujeitos divididos em sie se dividem entre si. Ao significar, 0 sujeito se significa, e 0 gesto de interpretacdo & 0 que, perceptivel, ou nao, para o sujeito e seus interlocutores, decidindo a direedo dos sentidos, decidindo assim sobre sua propria “direczo” (identiticagio, posicio-sujeito etc), ao inscrever-se em formagdes discursivas, reflexos das formagdes ideolégicas. (ORLANDI, 2013, p. 6.7% £ 0s grifos e destaques so nossos. (0s conceitos de posicio-sujeito, formagdes discursivas e formagdes ideoldgicas, sio fundamentais para a Aniélise de Discurso que considera que a identificagto dos sujeitos se dé através de posigdes. nas quais estes ‘sti filiados a uma rede de sentidos dentro de formacées discursivas, conceito que a partir de Foucault foi Volume 23 ‘Numero 55 LINGUAS, Wy, 4 A eISSN: 1981-47: » M wy, DOK: 10.5935/1981-4755.20220027 LETRAS Mas a0 mesmo tempo, a interpretagao é uma pritica que assume contornos especificos, consoante os modos como a linguagem se realiza. E também Orlandi quem ir afirmar, jé na década de 90, que “diferentes formas de linguagem, com suas diferentes materialidades, signifieam de modos distintos” (ORLANDI. 1996. p.9). Quando esta autora fala em materialidades, ela esti reportando justamente a forma histérica de produgio das diferentes linguagens ¢ suas respectivas leituras, colocando sempre no horizonte de perspectiva que ha uma divisdo social inerente a essas préticas. Em razio disso, sobre as materialidades digitais, afirma ela que se pensarmos o digital como “instmumento” — nao no sentido pragmatico, mas hist6rico discursivo — meu objetivo ¢ compreender essa meméria que ele esti carregando na materialidade do gesto de interpretacdo que se atualiza nas condigdes que se apresentarem (ORLANDI, 2013, p. 4, 5) Para a Anilise de Discurso, ler ¢ compreender, “é saber que o sentido poderia ser outro” (ORLANDI, 2012, p.156), saber que a leitura é produzida e que nao esta na relagdo com a legibilidade ou ndo-legibilidade do texto, pensado de modo fechado enquanto apenas uma estrutura, Ler é considerar as condigdes de existéncia e produgdo dos sentidos de modo amplo ¢ estrito, nas relagdes de forga, nas relagdes que se estabelecem entre texto € sujeito, ou melhor dizendo, na relagéo entre os efeitos de sentido € sujeito atravessado pela lingua e pela histéria, Sujeito de linguagem, constituido pela lingua e pela historicidade, porque a lingua esté inserita na histéria, sendo determinada por processos de significagao. Por isso consideramos a lingua em sua relativa autonomia, porque ela se inscreve za historia, tem sua estrutura e seu funcionamento, A lingua tem o seu real e “o discurso no funciona de modo isolado, ele esta sempre ligado a outros discursos que se convocam, {que so convocados por sua letra, sua materialidade.” (HENRY, 2013). Assim, se estabelece outro estatuto teérico e heuristico para a nogdo de leitura, fio social da leitura (PECHEUX, 2010) numa separagio do literdrio e © cientifico no qual o primeiro permitiria uma livre diferente de concepgdes que trazem uma di interpretago enquanto o segundo delimitaria a interpretagao com o rigor do método, pois para a Andlise de Discurso a leitura é determinada pelas condigdes de produgao, afetada redefinido por Pécheux, como “aquilo que pode e deve ser dito numna determinada conjuntura”* (PECHEUX, 2014), © que por sua vez se filia a determinagdes ideologicas e também inconseieates, conforme a proposi¢io lacaniana Volume 23 ‘Nimero 58 30 LINGUAS, 0, 4 A y DOF: 10.5935/1981 Peres . pela divisio social do trabalho de leitura, e reconhece, antes, que essa determinagao tem eISSN: 1981-4755 '755.20220027 seu efeito de sentidos. Algumas consideragées finais Durante esse percurso de leitura da ¢ na BNCC, procuramos refletir, sem a ilusao de conseguir abranger uma totalidade, as implicagdes das relagdes de forga presentes nas condigdes de produgdo dessa discursividade, contemplando a nogio de leitura, a circulagao dos discursos de reformulagdo do curriculo seus avangos e desafios. O que nos afeta sobremaneira é a relagio do sujeito jovem estudante com a escola ¢ sua formagio com vistas autonomia, protagonismo e desenvolvimento de habilidades. A autonomia do sujeito, na nossa perspectiva teérica, esta ligada a uma noglo de autoria, que é deslocada da nogao tomada de Foucault (1971). Para nos, “a fungio discursiva autor ¢ a fungdo que o eu assume enquanto produtor de linguagem” (ORLANDI, 2012, p.61), ¢ ainda “o autor é posigao-autor e nao autor empirico: ¢ um ugar, no imaginério, constituido pelo confronto do simbélico com o politico.” (ORLANDI, 2008, p. 81). Mais especificamente na relagio com a escola, Pfeiffer (1995) afirma que a autoria se constréi na relagio com um fechamento dos “espagos que impliquem em supostas Jacunas que representam zonas de perturbagao. Tudo o que signifique indeterminagio é banido.” (PFEIFFER, 1995, p. 42) Isso, defende a autora, é o que faz com que a negacao da multiplicidade seja uma caracteristica da constituigdo do sujeito-autor no espago escolar pelo poder ter acesso ou ni a espagos interpretativos. Assim, “somente este sujeito que se submeteu para tera ilusio da sua antonomia que conseguiu ter acesso a interpretagaio” (Idem, p. 115) que pode ser autor. Além disso, para Pfeiffer, dar condigdes para autoria ¢ abrir espago para o politico e para que o estudante possa ser “sujeito de seus proprios gestos de interpretagao.” (Ibidem, p. 129), 0 que, para nds, é diferente da nogao de protagonismo juvenil na escola. Autoria construida neste limiar do repetivel e da formulagio, conforme Pfeiffer, & mais do que ser autor de um texto, mas ser autor de si mesmo. Desse modo, ao afirmarmos que a linguagem ¢ significada pelo dito e pelo no dito, produzindo efeitos de resisténeia e de autoria, concordamos com Pfeiffer quando afirma que “dizer significa silenciar outros ditos, para que o nosso faca sentido. Mais do que isso dizer significa silenciar a falta, a dissensio do sujeito, o politico. E dizer, desse Volume 23 31 LINGUAS, 0 4 A » eISSN: 1981-4755 Wy, DOL: 10.5935/1981-4755.20220027 LETRAS. modo, é efeito do interdiscurso: do repetivel histérico. Nem todos ai se encontram, por isso nem todos se constituem em autores.” (PFEIFFER, 1995, p. 128) Nesse mosaico de signifieagdes que se coloca a BNCC, a leitura nela e dela, propicia rupturas e deslocamentos dos sentidos na medida em que o jogo entre opacidade e transparéncia se coloca, importando, antes de tudo, o modo de constituigao do sujeito nae pela escola, REFERENCIAS BRASIL. Lei de Diretrizes ¢ Bases da Educagio Nacional: lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educagio nacional. Disponivel em: . Acesso em ago. 2020. BRASIL. Ministério da Educagio. Secretaria da Educagio Bésica. Base Nacional Comum — Curriewlar. Brasilia, DF, 2018.—Disponivel eu: . Acesso em ago. 2020. BRASIL. Ministério da Educagio. Secretaria de Educagio Fundamental. Parametros curriculares nacionais: introdugao aos parametros curriculares nacionais Brasilia, DF: MEC/SEF, 1997. Disponivel em: . Acesso em ago. 2020, CALLEGARI, César. 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