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RESENHAS Os dez mandamentos da observacdao participante William Foote WHYTE. Sociedade de esquina: a esinutura social de uma area urbana pobre @ degradada, Tradugao de Maria Lucia de Oliveira Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005. 390 paginas. Licta Valladares Enfim © leitor brasileiro tem acesso a Street corner society de William Foote Whyte, um classi- co das estudos urbanos, obrigatério em todo curso de métodos qualitativos & pesquisa social Gilberto Velho, autor da apresentagl0 € respon- sivel pela colegio “Antropologia Social” da Jorge Zahar, tomou a iniciativa de fazer traduzir a edi- io de 1993, comemorativa das cinqlenta anos da primeira publicagio do livro. A primorosa tra- duglo inclui anexos que o préprio autor foi acres- centando nas varias reedigbes do livro, refesentes a pritica do trabalho de campo, a0 depoimento de um dos personagens ¢ & sua lista de publica- ses. Além de um {ndice remissivp, pega rara entre as publicagdes brasileiras, mas de uso fun- damental quando se quer realizar uma leitura compreensiva de uma obra. Originalmente publicado em 1943, 0 texto € ‘lo apenas atual pela temética que aborda — a juventude, a organizagio social das gangs e dos baintos pobres =, mas também um livro funda- ‘mental para aqueles que fazem trabalho de campo nas cidades, realizando o que os norte-americanos denominam anthropology at bome. E também de grande imporncia para os soci6logos urbancs ue cada dia aderem mais aos métodos qualitai- vyos € aos estudos de caso e se interessam pelo tema das redes sociais, da juventude, da politica local e da territorilizacio da pobreza. O subtitu- lo ~A estrutura social de uma drea urbana pobre degradada — chama a atencio para a importin- a atrbuida pelo autor aos temas da estrutura e da mobilidade social, normalmente considerados tematicas préprias da sociologia. William Foote Whyte, filho de classe média alta norte-americana, pesquisou nos anos de 1930 ‘uma rea pobre e degradada da cidade de Boston, conde morava. Conhecido como um dos slums 153 ‘mais perigosos da cidade e sobre o qual circula- vam varias idéias preconcebidas e estigmatizantes, © bairro italiano € pouco a pouco “desbravado" pelo aprendiz de pesquisador que apenas 0 conhe- cia por “ouvir dizer’. Ao mesmo tempo em que se insere ma localidade ¢ vai redefinindo os objetivos de sua pesquisa, d4 operas no convivio com os moradores, aprendendo a pensar € a refletir sobre 2 natureza de suas relades com os informantes. ‘Aos poucos vai sendo aceito, muda-se inclusive para Corneruille, mas se dé conta de que é funda- ‘mental poder contar com um intermedidsio para realizar sua observaglo. “Dot’, termo que define tum informante-chave, simboliza esse mediador, que garante 0 bom acesso localidade e/ow 20 grupo social em estudo. Desempenha também. Papel de conselheiro € “protetor’, defendendo 0 pesquisador contra as intempéries e os imponde- raveis pr6prios ao trabalho de campo. Apés trés ‘anos de convivio e familiaridade com os diferen- tes grupos informais e institsigbes que atuavam € esrruuravam a rea (clubes sociais, centro comu- nitirio, organizagbes informais etc.), Foote Whyte deixou © bairro para dedicarse 2 dificil tarefa de redigir sua obra. Saida dificil e dolorosa part 0 observador participante, mas faciltada pelo fato de 0 jovem pesquisedor mudarse para Chicago, ‘onde se inscreve come ahino de doutorado na tniversidade onde Robert Park havia bem marca- do sua passagem. ara além do interesse temitico, este livro constitui um verdadeiro guia da observacio pari cipante em sociedaces complexas. Minha opcio serd a de insisir na contribuig’o metodolégica do autor, tendo em vista a verdadeira "moda" no Brasil de estudos de caso em "comunidades carentes" ou fem tenitéios urbanos demarcados social e geo sraficamente. Dez "mandamentos" podem ser depreendi- dos da leitura do livro: 3) A observagio participante, implica, necessaria- mente, um processo longo. Muilas vezes 0 pes- quisador passa inimeros meses para “negociar” sua entrada na Area. Uma-fase exploratsria 6, assim, essencial para 0 desenrolar ulterior da pes- ‘quisa. 0 tempo € também um pré-equisto para 0 estudos que envolvem 0 comportamento € a asi de grupos: para se compreender a evolucio 154 REVISTA BRASILEIRA DE CIfNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 N’ 63 do comportamento de pessoas e de grupos necessério observéclos por um longo periodo © no num Gnico momento (p. 320) 2) O pesquisador nao sabe de antemio onde esti “aterrissando", caindo geralmente de *péra-que- das" no territério a ser pesquisado. Nao & espera- do pelo grupo, desconhecendo muitas vezes as teias de relagdes que marcam a hieraquia de poder © a esirutura social local. Equivoca-se 20 pressupor que disp do controle da situago, 3) A observagio partcipante supde a interagi0 Pesquisador/pesquisado. As informagSes que obtém, a5 respostas que sio dadas &s suas inda- sgagdes, dependerio, a0 final das contas, do seu comporamento © das relagdes que desenvolve com 0 grupo estudado, Uma auto-andlise faz-se, pportanto, necessAria e convém ser inserida na pro tia histria da pesquisa. A presenga do pesquisa- dor tem que ser justificada (p. 301) e sua tansfor- ‘magio emi “nativo" nlo se verficaré, ou seja, por mals que se pense inserido, sobre ele paira Sem- pre a “curlosidade" quando nao a desconfianga 4) Por isso mesmo 0 pesquisador deve mostrar-se diferente do grupo pesqyisado. Seu papel de pes- soa de fora terd que ser afirmado e reafirmado, Nio deve enganar os outros, nem a si préprio “Aprendi que as pessoas nao esperavam que eu fosse igual a elas. Na realidade estavam interessa- das em nim e satisfeitas comigo porque viam que eu era diferente. Abandonei, portanto, meus esforgos de imersio total" (p. 309. 5) Uma observacio participante ndo se faz. sem uum "Doc’, intermedidrio que “abre as potas" € dissipa as dvidas junto &s pessoas da localidade. Com o tempo, de informante-chave, passa a cola- borador da pesquisa: € com ele que o pesquisa- dor esclarece algumas das incertezas que perma- necerio 20 longo da investigacto. Pode mesmo chegar a influir nas interpretagbes do pesquisa- dor, desempenhando, além de mediador, a fun- 90 de “assstente informal” ©) © pesquisador quase sempre desconhece sua prSpsa imagem junto 20 grupo pesquisado. Seus ‘pastos durante o trabalho de campo sto conhecidos €¢ muitas vezes contolados por membros da popu- laglo local, O pesquisador € um observador que esta sendo todo 0 tempo observado, 7) A observagio participante implica saber ouvir, escutar, ver, fazer uso de todos os sentidos. # pre- ciso aprender quando perguntar e quando nao perguntar, assim como que perguntas fazer na hora certa (p. 303). AS entrevistas formais s30 muitas vezes desnecessérias (p. 304), devendo a coleta de informagSes no se restringir a isso. Com o tempo os dados podem vir ao pesquisador sem que ele faca qualquer esforco para obté-les. 8) Desenvolver uma rotina de trabalho & funda- mental. O pesqusador nto deve recvar em face de um cotidiano que muitas vezes se mostra repe- tivo e de dedieagao intensa, Mediante notas © manutengao do didrio de campo (field notes), 0 pesquisador se atodisipina a observar © anctat siswematicamente. Sua presenga constante contri boi, poe sua vez, para gear confanca na popula- co esnudada, 5) © pesquisador aprende com os erros que comete durante 0 trabalho de campo e deve tirar proveito deles, na medida em que os passos em falso fazem parte do aprendizado da pesquisa. ‘Deve, assim, refleir sobre o porqué de uma recu- sa, 0 porqué de um desacerto, 0 porqué de um silencio. 10) © pesquisador é, em geral, “cobrado", sendo esperada uma “devolugao" dos resultados do seu trabalho. "Para que serve esta pesquisa?” “Que beneficios ela tard para 0 grupo ou para mim?” ‘Mas s6 uns poucos consultam e se servem do resultado final da observagi0. © que fica sio as relagdes de amizade pessoal deseavolvidas 20 longo do trabalho de campo. Outros "mandamentos metodolégices” pode- sam ser inferidos. Gostaria apenas de insist sobre dois pontos, Da leitura do livro, fica claro que a observagao participante nao é uma prdtica simples ‘mas repleta de dilemas te6ricos e priticos que cabe a0 pesquisador gerenciar. A experiéncia descita e analisada pelo autor, numa linguagem que dispensa © jargio especializado, mostra que a observacao par- tiipante exige, sim, uma cultura metodol6gica e teo- rica, Foote Whyte no vinha de uma formacio em antropologia ou sociologia, mas havia estudado na tradicional ¢ bem cotada Universidade de Harvard, Havia lido Malinowsky, Durkheim, Pareto, os Lyad RESENHAS (idéletown) e a literatura sobre communities. Teve contacto com Elton Mayo, que 0 orientou no apren- dizado das técnicas de entrevista, e com 0 antrop6- logo Conrad Arensberg, com quem discutiu mé:odos de pesquisa de campo. Lloyd Warmer, autor de Yankee city, veio 2 ser seu orlentador na Universidade de Chicago, Para a revisto do manus- cto, contou com as sugesites de Everett Hugues, Como diz Gilberto Velho, na apresentagao da edigao brasileira, o livro “como produto final waz inevitavel- ‘mente as marcas de sua passagem e relagSes com alguns dos expoentes da Escola de Chicago des anos 1940" (p. 12). Outro aspecto importante diz respeito & atualidade do livro e sua pertinéncia para enten- der areas pobres ¢ 0 mundo popular no Brasil de hoje. © diagnéstico oferecido pelo autor contra- pOe-se a imagem produzida pelo senso comum, ‘que considera as areas pobres exclusivamente um problema: degradadas, homogéneas, desorganiza- das, ca6ticas e fora da lei, devendo necessaria- ‘mente ser “ajudadas” uma vez que “abandonadas sua propria sorte” nunca se desenvolverto. Vistas de dentro, ¢ a partir do olhar arguto do

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