Você está na página 1de 5
121 O PRIMEIRO ENGENHO DE AGUCAR DO BRASIL Escrevendo a histéria santista, o Sr. Fran- cisco Martins dos Santos afirma que o pri- meiro engenho de acticar erigido na capita- nia vicentina foi 0 da Madre de Deus, no ano de 1532. O Engenho Sio Joao teria sido o se- gundo (1533), vindo em terceiro lugar (1534) © que pertenceu a Martim Afonso, Joao Ve- niste, Francisco Lobo e Vicente Goncalve: Vejamos o que diz, textualmente, o au- tor: “Era o terceiro Engenho (refere-se a0 So Jorge) que se levantava na regiio da fu- tura Santos, e nao o primeiro como afirmam visto que o primeiro fora o da “Madre de Deus”, de Pero de Gées, levantado na atual regido “das Neves” em 1532, e o segundo fora 0 de “Si Joao”, de José Adorno, levantado em 1533, no local de Santos, perto do atual Morro de Sao Bento.” (1) H pouco, em trabalho escrito expressa- mente para esta revista, 0 eminente Sr. Bas lio de Magalhaes aceitou a primazia cronold- gica do Engenho da Madre de Deus, preten- dida pelo Sr. Francisco Martins dos San- tos. (2) Pondo de lado a questéo da existéncia, néo provada, de engenhocas ou da fabricacao rudimentar, esporadica, de algum agiicar em outro ou outros pontos da India Brasilica, se- gundo a expressao de Anchieta, podemos as- sentar como fato verificado que a capitania de Sao Vicente foi a primeira a possuir um engenho de aciicar, digno désse nome, “moen- te e corrente”, conforme a expressio entdo ‘em yoga e repetida por Varnhagen, quando, na Historia Geral, se referiu & Capitania de So Vicente. Os velhos cronistas, desde Ga- briel Soares de Sousa, isto é, desde fins do primeiro século, até a segunda metade do sé- culo XVIII, fixaram a prioridade daquela ca- pitania, sem, entretanto, mencionar a fabri- ca que teria produzido o primeiro agicar em terras brasileiras ‘ Foi Pedro Taques quem, antes de qual- (1) “Historia de Santos”. Francisco Martins dos Santos. Emp. Grafica da “Revista dos Tribu- nais”, S8o Paulo. 1937. Vol. 1. Pag. 202 agticar nos primérdios do Brasil Co- Jonial”, IIT, in Brasil Agueareiro, n.° de novem- bro de 1944, pig. 82. BRASIL ACUCAREIRO ‘Miguel Costa Filho quer outro, deu o nome do primeiro engenho acucareiro levantado no Brasil. Fé-lo em 1768, nestes termos: “Deixando povoada a dita villa da ilha de S. Vicente, e estabeleci- da uma grande fazenda com engenho de as- sueares com vocacdo de S. Jorge, se retirou © dito Martim Affonso de Sousa para o rei- no em fins do anno de 1534.” (3) Mais tarde, em informacio datada de 3 de janeiro de 1772 e dirigida a D. Joao de Faro, o historiador paulista foi mais preciso conforme se pode ver nas linhas a seguir: “Até o anno de 1533 existiu em a villa de S. Vicente o seu fundador Martim Affonso de Sousa (7), n’ella estabeleceu o primeiro engenho de assucar que houve em todo o Brasil, com vocagiio de S. Jorge (depois com grande augmento de fabrica e escravatura passou_a ser dos allemaes Erasmo Esquert e Julio Visnat, e se ficou chamando S. Jorge dos Erasmos). (8) (7) Liv. de registo de sesmarias, tit. 1555 cit. pig. 108 (8) Liv. de registo de sesmarias, tit. 1855 pigs. 42, 61 ¢ 84 verso. (4) linhagista foi ainda mais explicito em outra oportunidade. Referindo-se aos Pintos, que vieram com Martim Afonso, observou: “... e eram filhos do fidalgo Francisco Pin- to, que ainda no anno de 1550 existia em Lis- boa, quando nesta cérte por escritura cele- brada na nota de tabellido confirmou a ven- da das terras que sua nora Dona Anna Pires Missel havia feito em Sao Vicente, perten- centes ao engenho de assucar Séo Jorge (foi © primeiro engenho em todo o Brasil), ereto em So Vicente logo que fundou esta vila dito donatario Martim Affonso, como dito Ruy Pinto), aos allemaes Erasmo Schecer e Joao Visnat, por cuja razao tomou o dito en- genho o nome de Sao Jorge dos Erasmos.” (5) (3) Pedro Taques de Almeida Paes Leme “A expulsdo dos jesuitas do Colegio de S. Paulo”. Ed. Companhia Melhoramentos de S. Paulo. Pag. 171." (4) “Historia da Capitania de S. Vicente” Comp. Melhoramentos de S. Paulo. Pigs. 66/67. (8) “Nobiliarchia Paulistana Historica e Ge- nealogiea”. 2 edicéo. Vol. II. Revista do Inst. 10 € Geografico de Sao Paulo. Vol. XXXIX. Dezembro 1940. Pags. 60/61 DEZEMBRO, 1944 — Pag. 127 728 Adiante, tratando da vila de Santos, es- creveu: “Nela se estabeleceram os trés ir- mos Luiz, Pedro e Gabriel de Gées, sendo Luiz de Goes e sua mulher D. Catarina os fundadores do segundo engenho de assucar, com vocacao Madre de Deus, no sitio a que no presente tempo se chama Nossa Senhora das Neves.” (6) Oucamo-lo ainda: “Houve mais no ter- mo da vila de Santos o engenho de Sio Joao, do qual foi fundador José Adorno, natural de Genova; e 0 de Nossa Senhora da Apresenta- go, de que foi fundador Manoel de Oliveira Gago, que deixou nobre geracao dos seus ape- lidos em Santos. Estes engenhos eram mocn- tes e correntes ainda em 1577, como se vé dos direitos que pagavam A fazenda real, e consta do livro do dito ano na provedoria e carté- rio da fazenda.” (7) Outro historiador paulista, também do século XVIII, conferiu igualmente a Martim Afonso de Sousa a honra de ter sido o pri- meiro senhor de engenho existente nestas plagas reveladas ao mundo por ousados nau- ‘tas portugueses, consoante se 1é em seguida: “Para que os Lavradores as pudessem moer, fabricou quasi no meio da sobredita [ha hum Engenho d’agoa com Capella, dedicada a S. Jorge, 0 qual foi o primeiro, que houve no Brazil”. (8) Fr. Gaspar, neste trecho, alude 20 primeiro donatario da Capitania de S. Vi cente. O monge santista acrescenta no periodo seguinte: “Consta por duas Escrituras lavra- das em Lisboa, registradas no Cartorio da Fazenda Real de S. Paulo (2), que Martim Affonso de Souza, e Pedro Lopes de Souza, celebrarad contracto de sociedade com Joaé Veniste (3), Francisco Lobo, € 0 Piloto mor Vicente Goncalves, para o effeito de se levan- tarem dous Engenhos nas Capitanias destes Donatarios, obrigando-se elles a darem as ter- ras para isso necessarias nas Capitanias res- pectivas: de sorte que no Engenho, construi do na Capitania de Martim Affonso, teria elle a quarta parte, e huma cada hum dos tres socios Joao Veniste, Francisco Lobo, ¢ 0 Pi- loto mér... Consta mais expressamente, que Martim Affonso satisfez 4 condicad, assignan- (6) Tb. Pig. 62. (7) Tb, Pigs. 62/63, (8) “Memorias para a historia da capitania de S. Vicente". Fr. Gaspar da Madre de Deos Lisboa. Typogratia da Academia. 1797. Pig. 63 Na 3.4 ed. Weiscflog Irmaos. S, Paulo e Rio. 1920. Pag. 169. BRASIL ACUCAREIRO do as terras no Engenho de S. Jorge, situado na Ilha de S. Vicente, e consignando mais para refeicas do dito Engenho as ter- ras, que haviad sido de Ruy Pinto, as quaes fiead nos fundos da Ilha de Santa Amaro ao Norte do rio da Villa de Santos, aquelle rio, que férma a Barra Grande do meio, (2) Reg, de Sesmar. Liv. I tit. 1555. fol. 44, et 127. (3) Pode ser que o Escrivad errasse, quando trasladou este sobrenome estrangeiro.” Aqui aparecem, portanto, duas ordens cronologicas para as citadas fabricas acuca- reiras, erigidas na capitania de Martim Afon- so de Souza, nos primérdios da colonizagio oficial e regular do Brasil. Uma, a do primeiro dos referidos histo- tiadores setecentistas, é a seguinte: 1.°, En- genho Sao Jorge; 2.°, Engenho da Madre de Deus; 3.°, Engenho Sao Joao. A outra, do Sr. Francisco Martins dos Santos: 1.°, Engenho da Madre de Deus, em 1582; 2.°, Engenho Sao Joao, 1533; 3.°, Enge- fio Jorge, 1534. Como se vé, enquanto Pedro Taques se limitou a estabelecer a seqiiéncia das trés fa- bricas, de acérdo com a ordem cronologica de sua construcdo, sem, entretanto, mencionar datas, 0 Sr. Francisco Martins dos Santos da os anos em que afirma e reafirma perempti- riamente foram levantados ésses engenhos. Aliés, anteriormente 4 publicagio da “Historia de Santos”, houve uma alusio a precedéncia cronolégica do engenho de Pe- dro de Gées. (9) Essa afirmacdo é, entretanto, destituida de qualquer valor pois o préprio historiador paulista havia dito antes que o Engenho Sao Jorge dos Erasmos ou do Governador fora o primeiro que houvera na ilha de S, Vicen- te. (10) Por sinal que Azevedo Marques aumen- tou ainda mais a confusio a ésse respeito, asseverando adiante que Heliodoro Euban administrou durante muitos anos a primeira fabrica de acear que houve em S. Vicen- te. (11) Ora; como Heliodoro Eobano foi feitor (8) “Apontamentos historicos, geographicos, biographicos, estatisticos e noticiosos da Provincia de 8. Paulo” Manoel Eufrazio de Azevedo Mar- ques. Typ. Universal. Rio de Janeiro. 1879. Vol. 2° Pigs. 100/101 (10) Obr. cit. Vol. 1.° Pag. 134. (1) Td. Pag. 179, DEZEMBRO, 1944 — Pag. 128 do engenho de José Adorno (12), isto 6, do Engenho Sao Joao, segue-se que em uma mes- ma obra, em trés trechos distintos, Azevedo Marques dé a prioridade, no tempo, confor- me 0 caso, a cada uma das trés fabricas acu- careiras em causa. Se o Sr. Francisco Martins dos Santos se inspirou na primeira alusio para recusar a primazia estabelecida por aqueles dois cro- nistas do terceiro século, em favor do Enge- nho dos Erasmos, andou mal inspirado, por- que é manifesta a contradicao (diria melhor contradigées) em que apanhamos Azevedo Marques. Em que se baseia o Sr. Francisco Martins dos Santos para dizer que o primeiro enge- nho de acticar erigido na ilha de S. Vicente foi o de Pedro de Gées, vindo em segundo e em terceiro lugar, respectivamente, o de José Adorno e o Engenho Sao Jorge? Que é que serviu de fundamento ao Sr. Francisco Martins dos Santos para fixar os anos de 1532, 1533 e 1534 como aqueles em que foram construfdos, naquela ordem, os engenhos da Madre de Deus, Séo Jodo e Sao Jorge ? E’ facil 2 quem quer que compulse o seu livro, meneionado acima, verificar que o Sr. Martins dos Santos ndo cita nenhum do- cumento ou fato provado que autorize as suas assergées, neste ponto, ou que deixe entre- ver que tenham elas algum cabimento. A verdade é que nao se sabe com exati- dao quando foi erigida qualquer das trés fa- bricas em apreco. Jordao de Freitas diz que parece ter sido em 1534 que se constituiu aquela sociedade entre Martim Afonso e outros para a cons- truco de um engenho na capitania de S. Vicente. (13) Como quer que seja, as citas acima feitas de Pedro Taques e Frei Gaspar, que aludem ao periodo em que foi construido o Engenho Sao Jorge e aquelas escrituras, mos- tram que nao hé nenhuma incompatibilidade entre um e outras. Caso contrério, os dois historiadores setecentistas nao iriam asseve- rar que a construc da aludida fabrica se deu antes da volta de Martim Afonso a Lisboa. (12) “Viagem ao Brasil”. Hans Staden. Ver- so de Alberto Lofgren. Pub. da Academia Bra- sileira, Of, Industrial Grafica. Rio. 1930. Pag. 60 (13) “A. expedigio de ‘Martim Afonso de Sousa”, in “Histéria da Colonizacdo Portuguesa do Brasil”. Litografia Nacional. Porto, MCMXXIV. Vol. IIT. Pag. 117. BRASIL ACUCAREIRO 723 Com efeito, Pedro Taques, como acima vimos, diz que, antes de regressar a Portu- gal, Martim Afonso deixou estabelecida uma grande fazenda com engenho de acticar, afir- mando, mais tarde, em outras obras, que 0 En- genho Sao Jorge foi construido “logo que” se fundou a vila de Sao Vicente. Como também vimos, 0 insigne genea- logista menciona a fonte em que hauriu as suas informagées. No caso, 0 Livro de re- gisto de sesmarias, que se nao lhe permitiu fixar a data do levantamento da fabrica, é de crer que tenha sido bastante para que estabelecesse a primazia cronolégica do En- genho Sao Jorge. Tanto assim que, em trés trabalhos diversos, elaborados através de uma longa vida de pesquisas e estudos de do- cumentos existentes na capitania vicentina, afirmou a precedéncia daquele engenho. Frei Gaspar, seu contemporaneo, aliés mais mogo do que o linhagista, corroborou a prioridade cronolégica do engenho do go- verdador, como mostramos acima, baseando- se inclusivé em duas escrituras passadas em Lisboa e registradas no Cartério da Fazenda Real de Sao Paulo. ‘Aos documentos examinados pelos dois velhos cronistas de Sao Paulo, o Sr. Francis- co Martins dos Santos nao opés outros do- cumentos, até aqui desconhecidos, que auto- rizassem as suas deducées ou, antes, o traba- Tho de sua fantasia. Se é certo que, como ensina Fr. Gaspar, Martim Afonso promoveu, quanto possivel, 0 coméreio e a agricultura e logo tratou de er- guer um engenho dégua no meio da ilha de Sao Vicente, para que os lavradores pudes- sem moer as canas doces que teria mandado vir da Madeira, nada mais fez do que se ins- pirar nos desejos que animaria a Coroa de Portugal, a qual, segundo se depreende de uma citacdo feita por Porto Seguro, (14) que- ria iniciar a inddstria acucareira no Brasil, ainda ao tempo de D. Manuel. A propria carta de doacdo da Capitania de Sao Vicente — tal como sucedeu a Pedro Lopes de Sousa, Duarte Coelho, etc. — dava, nesse particular, privilégios a Martim Afon- so, ja que lhe fazia mercé, e aos seus suces- sores, afim de que tivessem e houvessem t- das _moendas daguas, marinhas de sal, e quaisquer outros Engenhos de qualquer quali- (14)_ “Historia Geral do Brasil”. 3,° ed. in- tegral. Cia. Melhoramentos de Sao Paulo. Tomo * 12 Pig, 106. DEZEMBRO, 1944 — Pag. 129 730 dade, que houvesse na dita Capitania, acres- centando el-rei: “...e hei por bem que pessoa alguma nio possa fazer as ditas moendas, ma- rinhas, nem Engenhos sinao 0 dito Capitao, e Governador, ou aquelles a que elle para isso der licenga, de que Ihe pagarao aquelle foro, ou tributo, que se com elles concertar’ Dados os grandes poderes e a missio que trazia, era légico, necessirio e justo que Martim Afonso tomasse a dianteira, como parece que tomou, em tais providéncias. Foi logo distribuindo terras para o estabeleci- mento de fazendas, e Frei Gaspar, mostran- do que o primeiro Leme chegado ao Brasil foi Antao Leme, fidalgo da Madeira e nao Pedro ‘Leme, como supusera Pedro Taques, nos diz: “Suppoem-se, que veio na mesma oceasiad, em que Martim Affonso mandou buscar 4 Madeira a planta de cannas do- ces.” (15) Coube a Duarte Coelho, Pedro de Gées « outros donatarios, por si ou seus loco-tenen- tes, introduzir a indistria acucareira nas res- pectivas capitanias, 0 que fizeram provavel- mente em virtude das intencoes claramente manifestadas pela Casa Real de Portugal, como ja vimos. Martim Afonso de Sousa, que foi o pri- meiro enviado pelo Rei portugués com o evi- dente intuito de estabelecer uma colénia re- gular, ainda no concernente a fabricacdo de agicar, foi também um pioneiro ‘Assim o apresentou Gabriel Soares de Sousa, nestas palavras: “N’estes felices anos de Martim Affonso favoreceu muito esta sua capitania com navios e gente que a elle mandava, e deu ordem com que mercadores poderosos fossem e mandassem a ella fazer engenhos de assucar e grandes fazendas, como tem até hoje em dia, do que ja fizemos mengao.” (16) Nao pensa assim o Sr, Francisco Martins dos Santos, eujo esférco é todo mostrar que © “atual estudrio de Santos” foi “o berco da colonizacao brasileira e vicentina, 0 local do primeiro porto do Brasil e o ponto de arri- bada da Armada de Martim Afonso.” (17) ‘Nao conseguiu o autor da “Histéria de Santos” documentar e provar as suas teses, Veja-se, por exemplo, a questo da arri- bada da esquadra de Martim Afonso. (15) Obr. cit. Pig. 48. Na 34 ed. Pig. 153 (16) “Tratado descriptive do Brasil em 1587”. 34 ed. Cia. Editora Nacional. So Paulo Brasiliana. Vol. 117. Pag, 108 (17) Obr, cit. Pig, 128 BRASIL AQUCAREIRO Dando expressamente pouco ou_nenhum valor (pag. 188), ao Diario de Pero Lopes de Sousa, contesta que o desembarque dos co- lonizadores haja sido na “banda d'aloeste da bahia”, como informa o irmio do donatario. O Sr. Francisco Martins dos Santos de- senvolve uma larga argumentagao procuran- do demonstrar que a barra daquele lado s6 dava, jA Aquele tempo, passagem a pequenas embareagées. Essa argumentacéo é em parte baseada em Frei Gaspar e em outros autores que cita sem a menor ordem, cronolégica ou de qualquer outra espécie, ora vindo ora tor- nando no tempo, num tumulto lamentavel, chegahdo até a dizer que o monge santista corrobora a afirmacdo de um autor que viveu muito depois de haver morrido aquele... E’ interessante que o Sr. Francisco Mar- tins dos Santos, que fala com tanta énfase nos “depoimentos” dos cronistas que parece The darem azo, haja esquecido a informa- cdo de Anchieta, que, como se sabe, chegou a ‘S&o Vicente em fins de 1553, isto é, cérca de vinle anos apés aqueles fatos que éle pro- cura torcer em beneficio de Santos, queren- do acrescer novas glorias ao acervo da glo- tiosa terra dos Andradas e dos Gusmées. Ora, 0 veneravel padre, que aportou e viveu na primeira colénia da terra dos brasis quando ela ainda estava quente dos aconte- cimentos que marcaram ésse feliz inicio co- lonizador, conhecendo muitos dos compa- nheiros da missio afonsina, diz, em referén- cia a Sao Vicente, o seguinte: “E’ situada em uma ilha que tera seis milhas em largo e nove em circuito: antigamente era pérto de mar e nele entrou Martim Afonso de Sousa a primeira vez com sua frota, mas depois com a corrente das Aguas e terra do monte se tem fechado o canal, nem podem chegar as em- barcagdes por causa dos baixos e arreci- fes...” (18) E’ evidente que a informacao de Anchie- ta tem muito mais valor, no caso, do que as citadas pelo Sr. Francisco Martins dos San- tos. Alias, alguns dos cronistas mencionados por éste, como, por exemplo, Gandavo, nao dizem que Martim Afonso de Sousa desem- barcou no leste da ilha de S, Vicente, mas que, na época em que eserevem, é claro, pela barra do oeste nao podem entrar sendo em- _ (18) “Cartas, informacées, fragmentos his- toricos e sermées”. Padre Joseph de Anchieta, S. J. Publicacdes da Academia Brasileira. Civ lizagdo Brasileira. Rio de Janeiro, Pag. 442 DEZEMBRO, 1944 — Pag. 130 barcagdes pequenas. Ja néo podiam fazé-lo ao tempo de Anchieta, como se vit. ‘A. preferéncia do historiégrafo santista pela hipdtese do desembarque da frota de Martim Afonso na parte oriental da ilha de Sao Vicente — preferéncia mantida até em face do “Didrio da Navegacéo” de Pero Lo- pes de Sousa e do estudo critico do memoré- vel apdgrafo devido ao comandante Eugénio de Castro — parece resultar da tese, talvez preconcebida, de que a colonizacio, a explo- taco agricola, teve inicio por aquele lado da ilha (pag. 188), que a0 préprio donatério se teria figurado melhor. No trabalho do Sr. Martins dos Santos tudo conspira, tudo seven- cadeia com o fito de dar essa primazia a San- tos, cujos dois engenhos referidos sao, por isso mesmo, apresentados como anteriores, na construgio, no funcionamento, ao do donaté- rio. © Sr. Francisco Martins dos Santos in- corte em muitos outros enganos, dando, por exemplo, Frei Francisco de Santa Maria como autor do “Santuério Mariano” (Pag. 150), quando essa obra foi escrita por Frei Agosti- nho de Santa Maria. E’ que o historiador san- tista pensa que ésses dois religiosos sio uma sé e mesma pessoa, & qual se deveria, além daquele livro, 0 “Ano Historico”. Bste, sim, foi escrito por Frei Francisco de Santa Ma- ria, como o sabe 0 leitor. Frei Gaspar cita trés documentos que confirmam a tradiao de que Braz Cubas foi fundador de Santos. Por sinal que um désses documentos, dando o testemunho de Diogo Dias, diz que “o primeiro homem, que povoou em a Villa de Santos, foi Pascoal Fernandes, e o Senhor Braz Cubas, d’ahi se fez'a Villa de Santos”. (Pag. 208 da 3.* ed.). Conclue-se daf que o primeiro povoador foram dois... Sr. Francisco Martins dos Santos néo quis ficar atrés daquele morador de Sao Vi- cente. autor das “Memorias para a historia da capitania de Sao Vicente” afirmou que “nos primeiros annos, quando todos os povoadores lavrarao n’esta Tha, onde querifio, Pascoal Fernandes Genovez, e Domingos Pires fize- rao sociedade e ambos vierao situar-se em Enguaguactt...” (pags. 204/5 da 3.4 ed.). ‘Com a preocupacao de estabelecer a pre- cedéncia dos Gées e Adornos na montagem de engenhos, na regiao da futura Santos, en- quanto o de Sao Jorge ficava no meio da Ilha, o Sr. Francisco Martins dos Santos to- mou daquele trecho de Frei Gaspar e pespe- BRASIL ACUCAREIRO 3 gou-lhe uma interpretacdo tendenciosa: aque- le genovés referia-se a José Adorno. Mas nes- te caso a sociedade era composta de trés e nao de dois. No entanto, como viu o leitor, Frei Gaspar, na mesma frase, acrescentou “ambos”. Ambos os trés... E com passes assim o Sr. Francisco Mar- tins dos Santos acaba chegando @ conclusio de que Adorno j4 em 1533 tinha em acéo 0 seu engenho (pag. 156). Concordando embora em que a documen- taco respeitante aos primeiros dias de San- tos é “muito exigua e falha”, o Sr. Francisco Martins dos Santos nao tem divida em dizer e redizer que o engenho de Adorno, cons- truido e j em funcionamento em 1533, pre- cedera o de Sao Jorge, sendo por sua vez precedido pelo de Pedro de Goes. Este teria sido levantado no-mesmo ano em que Mar- tim Afonso se estabeleceu naquela mesma ilha ja habitada por Anténio Rodrigues, Gon- galo da Costa e outros europeus. No entanto, ao longo de seu livro, o Sr. Francisco Mar- tins dos Santos vacila na fixacdo da data em que se iniciou o povoamento da regiao da fu- tura Santos, ora falando em 1532, ora em 1534... Mesmo depois de quase haver jura- rado pelo illtimo ano, em virtude de uma afirmativa de José Bonifacio de Andrada e Silva. Se o grande homem afirmou que San- tos foi fundada dois anos depois da funda- go da vila de Sao Vicente, cessa téda divi- da a respeito, diz o Sr. Martins dos Santos. sso ndo o impediu de adiante continuar os- cilando entre aquéles dois marcos... Se ele proprio tem diividas quanto ao ini- cio do povoamento da regio da futura San- tos, como é que pode afirmar que em 1532, meses depois da chegada de Martim Afonso, jé estava em funcionamento o engenho de Pero de Gées? NESS aan “BRASIL ACUCAREIRO” O presente niimero completa o XXIV" volume de “Brasit Acucareiro”. Marca ao mesmo tem- po o 12° aniversario do érgio oficial do Insti- tuto do Acacar e do Alcool, cujo nome primiti- vo, segundo sabem os leitores, era “Economia e Agricultura”. A publicacio de “Economia Agricultura”, editada a principio pela Comissio de Defesa da Producéo do Acécar, iniciou-se a 5 dz dezembro de 1932. DEZEMBRO, 1944 — Pag. 131

Você também pode gostar