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TOPICOS DE HISTORIA E TEORIA DA LiRICA II VOL. Prof. Dr. José Eduardo Martins PROGRAMA DE POS-GRADUACAO EM ESTUDOS LITERARIOS DA UNEMAT Organiza¢io ¢ funcionamento da disciplina TOPICOS DE HISTORIA E TEORIA DA LIRICA TL Professor: Dr. José Eduardo Martins de Ba rros Melo APRESENTACAO A disciplina apresenta-se como espago de discussin sobre a probleméitica da lirica moderna ¢ contemporiinea e suas diver as de meados do século XIX a0 principio do século XXI. Nesse sentido a historica da liri IS Sera discutida em um primeiro momento e, em um segundo momento, ou ainda de forma concomitante, serio analisados e debatidos textos significativos do recorte em iesido ¢ suas relagdes com os projetos de pesquisa em andamento tanto em nivel de Mestrado quanto em nivel de Doutorado, EMENTA Estudo das poéticas da modemidade e da contemporaneidade em suas Tinhas.0O lirismo moderno ¢ o litismo Contemporineo.Teoria e anilise do poema, OBJETIVO: 3. Discutir sobre as questdes que envolvem » Papel do leitor e do poeta dentro da prespectiva da contemporaneidade. CRONOGRAMA DE ATIVIDADES Dias e atividad 01/09/2022-Manhi: a partir das 08h00: Mesa redonda com os poetas Isaac Ramos, Glauber La ¢ Eduardo Martins sobre o ana Poesia, modemidade e contemporaneidade: A poesia de pintura ¢ a pintura da Poesia: fronteiras, 2/09/2022- Manha: a partir das 08h00: Mesa redonda com as poetas Marli Walke lizabete Nascimento e Divanize Carboniere Sobre @ autoria feminina no contexto da modernidade e da contemporaneidade, 02/09/2022- Tarde: a partir das 14h00 Discussio sobre os textos “Poesia e pensamento abstrato” “Primeira aula do curso de postica” de Paul Varéry ¢ “Poesia e poema” de Octavio paz, 17/11/2022. a partir das 08400: Leitura e discussdo de textos Posticos de relevancia Para o contexto da modemidade e da contemporaneidade (slides) 17/11/2022- a partir das 14h00: Leitura dos Textos “O intor da vida moderna” ¢ “A modernidade” de Baudelaire e “As muitas vozes da poesia moderna” de Afonso Berardinelli. 18/11/2022- a partir das 08h00: Leitura e discussdo de textos posticos de relevincia Para 0 contexto da modemidade e da contemporaneidade (slides) 18/11/2022. a partir das 14400: Leitura dos textos “Per pectiva ¢ Retrocesso” e “Baudelaire” de Hugo Friedrich e “Tradigao ¢ talento in idual” de T.S, Eliot. “0 que ¢ 0 contempordneo” de Giorgio Agaben, ‘Consideragdes anacrénicas: Lirismo, Subjetividades e Resistencia” de Celia Pedrosa, 01/12/2022. a partir das 08h00: Leitura e discussao de textos posticos de relevancia ext POLS ea moderidade e da contemporaneidade (slides). Leitura e discussio do texto POESIA E MUSICA: Entrevista concedida a Luis A Milanesi, coordenador do Caderno de Muisica, em 1982, Pii2/2022- a partir das 14h00: Leitura e discussio dos textos: A Lirica. Moderna: pangley de Castro Pereira, © Rumor da Lingua: Milena Magalhies ee 2 -modernidade 02/12/2022- a partir das 08h00: Apresentasio dos proietor e sue relagdes com a iplina. Vinte minutos no maximo por apresentagio. 02/12/2022- a partir das 1400: Apresentagdo dos projetos ¢ suas relagdes com a disciplina. Vinte minutos no maximo por apresentagio, AVALIACAO: Apresentagao do projeto resumido e relagdes com a disciplina e Produgao de artigo ou resenha critica sobre um dos pontos abordados envolvende o projeto a ser desenvolvido ‘tese/ dissertacao, 1. Tépicos de Historia e Teoria da lirica 11 Carga Horaria: 60 h le e da contemporaneidade em suas diferentes "inhas.0 lirismo moderno eo lirismo contemporaneo, Teoria eanilise do poema. BAUDELAIRE, Charles.As flores do mal. Trad IvanJunqueira RiodeJaneiro: Nova Fronteira,1985, -Opintordavidamoderna.In:CHIAMPI,Irlemar(org.), Fundadores da modernidade.SaoPaulo:Atica, 1992,p.102-119, BENJAMIN. Walter.Obras escolhidas (vol. III) SdoPaulo:Brasiliense-2011 BERARDINELLI, A. Da poesia a prosa. Sto Paulo: Cosae Nally, 2607, BORGES, Jorge Luis. O enigma da poesia, In: BORGES. Jorge | oficio do verso, S40 Paulo:Cia.das Letras,2000,p.9-28, BOSI, Alfredo, “Imagem, discurso”. O ser eo tempo da poesia. Sao Paulo: Cultrix/Edusp, 1977, p. 11-36. BRANDAO, Roberto d i BUENO, Antonio S., MIRANDA, Wander M. Modemo, ps-modemo ea nova Poesia brasileira. In:CASTRO Silvio(org.). Historia da literatura brasileira, Lisboa: Alfa,2000.Vol.3,p.443-466, CANDIDO, Antonio. O estudo analitico do poema. $0 Paulo: Humanitas FFLCH-USP, 1996. CHKLOVSKI, Victor. “A arte como procedimento”. Teoria da literatura: formalistas russos. Trad. de Regina Zilberman et al. Porto Alegre: Globo, 1971, p. 39-56, ELIOT, T. 8. De poesia e poetas. 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Tilo, epp491 os para sdlogs stein UEnin: Sito 20 Leet gle 09 2 Skule 20 Enis: Ltertara nea #2431 Diretos de edgdo da obra em lingua portuguesa no Brasil sdquindos por Art Editora 8.A, Rus Francisco Leitdo, 435 05414 Sto Paulo, Brasil ‘Tel: 282-3690 TRADICAO E TALENTO INDIVIDUAL’ 1 N 05 textos ingleses ¢ raro falarmos de tradigdio, embo- ra ocasionalmente utilizemos essa palavra para lamen- tar a sua auséncia. Nao sabemos nos referir a “‘tradigao” ou a “uma tradigao’’; quando muito, empregamos 0 adje- tivo para dizer que a poesia de fulano é “tradicional” ou mesmo ‘‘muito tradicional”. A palavra sé ocorre talvez ra- ramente, exceto numa frase de censura. Ao contrério, ela € vagamente aprobatéria se envolver, como no caso de um trabalho reconhecido, alguma deleitosa reconstrucdo ar- queoldgica. E dificil tornarmos a palavra agradavel aos ou- vidos ingleses sem essa cOmoda referéncia a tranqiiilizado- ra ciéncia da arqueologia. Com toda certeza, a palavra ndo costuma aparecer em nossas apreciagdes de escritores vivos ou mortos. Cada na- 40, cada raga, tem nfo apenas sua tendéncia criadora, mas ‘também sua tendéncia critica de pensar; e est4 também mais, alheia as falhas e limitagdes de seus habitos criticos do que as de seu génio criador. Conhecemos, ou supomos conhe- cer, a partir da volumosa massa de textos criticos que sur- gitam em lingua francesa, 0 método ou habito critico dos franceses; concluimos apenas (somos, portanto, pessoas in- ‘conscientes) que os franceses silo “mais criticos” do que nds; € as vezes até nos envaidecemos dese fato, como se 37 TRADICGAO E 6 franceses fossem menos esponténeos. Talvez o sejam; mas cabe lembrar que a critica € t4o inevitdvel quanto 0 ato de respirar, e que nao estariamos em piores condigées pelo fa- to de articularmos o que se engendra em nossas mentes quan- do lemos um livro e ele nos emociona, por criticarmos as nossas préprias mentes em sua tarefa de criticar. Um dos fatos capazes de vir & luz nesse processo é nossa tendéncia em insistir, quando elogiamos um poeta, sobre os aspectos de sua obra nos quais cle menos se assemelha a qualquer outro. Em tais aspectos ou trechos de sua obra pretende- mos encontrar o que é individual, o que é a esséncia pecu- liar do homem. Salientamos com satisfacdo a diferenga que © separa pocticamente de seus antecessores, em especial os mais préximos; empenhamo-nos em descobrir algo que pos- sa ser isolado para assim nos deleitar. Ao contrério, se nos aproximarmos de um poeta sem esse preconceito, podere- mos amitide descobrir que nao apenas o melhor mas tam- ‘bém as passagens mais individuais de sua obra podem ser aquelas em que os poetas mortos, seus ancestrais, revelam mais vigorosamente sua imortalidade. E no me refiro & épo- a influencidvel da adolescéncia, mas ao periodo de plena maturidade. Todavia, se a tinica forma de tradigdo, de legado a ge- rasdo seguinte, consiste em seguir os caminhos da geracdo imediatamente anterior & nossa gragas a uma timida e cega aderéncia a seus éxitos, a “‘tradig&o”” deve ser positivamente desestimulada. J4 vimos muitas correntes semelhantes se per- derem nas areias; ¢ a novidade ¢ melhor do que a repeti- * do. A tradicao implica um significado muito mais amplo. Ela ndo pode ser herdada, ¢ se alguém a deseja, deve conquisté-la através de um grande esforco. Ela envolve, em primeiro lugar, o sentido histérico, que podemos conside- rar quase indispensdvel a alguém que pretenda continuar 38 ~ TALENTO INDIVIDUAL poeta depois dos vinte e cinco anos; eo sentido histérico implica a percepco, ndo apenas da caducidade do passa- do, mas de sua presenga; 0 sentido histérico leva um ho- ‘mem a escrever ndo somente com a prépria geraso a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que to- da literatura européia desde Homero e, nela incluida, to- da a literatura de seu proprio pafs tém uma existéncia si- multénea e constituem uma ordem simultdnea, Esse senti- do histérico, que ¢ 0 sentido tanto do atemporal quanto do temporal ¢ do atemporal e do temporal reunidos, € que torna um escritor tradicional. E é isso que, ao mesmo tempo, faz com que um escritor se torne mais agudamente consciente de seu lugar no tempo, de sua prOpria contemporaneidade. ‘Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significagao completa sozinho. Seu significado e a apreciagao que dele fazemos constituem a apreciagdo de sua relagdo com os poe- das e 08 artistas mortos. Nao se pode estima-lo em si; & pre~ ‘eiso situd-lo, para contraste e comparaco, entre os mor- 108. Entendo isso como um principio de estética, ndo ape- as historica, mas no sentido critico. E necessdrio que ele seja harménico, coeso, ¢ néo unilateral; 0 que ocorre quando uma nova obra de arte aparece é, as vezes, 0 que ocorre simultancamente com relagao a todas as obras de arte que a precedem, Os monumentos existentes formam uma ordem ‘ideal entre si, ¢ esta s6 se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles. A ordem exis- ‘tente é completa antes que a nova obra apareca; para que a qual a época justamen. fe se orgulha, isto €, a sua cultura histérica, porque e Penso que somos todos devorados pela febre € deveremos ao menos disso nos dar @ sua exigéncia de “atualidade’ “comtemporaneidade” em relacdo a0 presente, numa tori Nietzsche si na dissociaséo, Pertence verdadeira- ‘mente 20 seu tempo, ¢ verdadeiramente contemporineo, aquele que nao coincide perfeitamente com esta adequado as s fe, nem s Pretensdes ¢ é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, ex te através desse deslocamento e desse anacronismo, cle € capaz, mais do que os outros, de perceber e apre: mpo. Essa no-coincidénc naturalmente, que contemporaneo seja aquele que utro tempo, um nostalgic que se sente em casa mais na Atenas de Péricles, ou na Paris de Robespierre ¢ do marqués de Sade do que na cidade ender o seu essa discronia, nao signi- vive num. € no tempo em que lhe foi dado viver. Um homem. inteligente pode odiar 0 seu tempo, mas sabe, em todo caso, que Ihe pertence irrevogavelmente, sabe que nao ir 20 seu tempo, ec, a0 tancias; mais precisamen- ic com o tempo que.a este adere através de uma dissociagdo um anacronismo, Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em to- dos 05 aspectos a esta aderem perfeitamente, nao sio ‘contemporaneos porque, exatamente por isso, nio con. seguem ve-la, no podem manter fixo o olhar sobre ela. 2: Em 1923, Osip Mandel’stam escreve uma poesia (mas a palavra russa vek significa também “época”). Essa contém nao uma ‘eflexzo sobre o século, mas sobre a relagao entre o poe- {2 € 0 seu tempo, isto é, sobre a contemporaneidade. Nao 0 “século’, mas, segundo as palavras que abrem 0 Primeiro verso, 0 “meu século” (vek moi) Meu século, minha fera, quem poderé olhar-te dentro dos ollo ¢ soldar com o seu sangue as vértebras de dois séculos?* €aquele que deve manter fixo o olh: nos olhos do seu sé dar com o seu sangue o dorso quebrado do tempo. Os dois sécul POs ndo so apenas, como foi sugerido, o século XIX ¢ 0 XX, mas também, ¢ antes de tudo, o tempo da vida do individuo (lembrem-se que o latim saeculum significa or © tempo historico colet imente o tempo da vida) e que chamamos, nesse 480, 0 século XX, cujo dorso — compreendemos na tima estrofe da poesia — esté quebrado. O poeta, ! enquanto contemporaneo, é essa fratura, € aquilo que | impede o tempo de compor-se e, a0 mesmo tempo, i © sangue que deve suturar a quebra. O paralelismo entre o tempo —e asvértebras ~ da criatura ¢ 0 tempo ~ lo constitui um dos temas © as vértebras ~ do sé senciais da poesi Enquanto vive a criatura préprias vértebr aloes brincam com a invisivel coluna verteby ‘omo delicada, infantil cartilagem 0 século neonato da terra, O outro grande tema—também este, como o pre- cedente, uma imagem da contemporaneidade — & 0 das vértebras quebradas do século e da sua sutura, que tuo (nesse caso, do poeta): Para liberar o século em cadeias para dar inicio 20 novo mundo € preciso com a flauta reunir 08 joelhas nodosos dos dias. Que se trate de uma tarefainexecutével - ou, de ‘odo modo, paradoxal—esté provado pela estrofe suces- siva que conelui 0 poema. Sesto impossivel para quem tem o dorso stucbrado quer virar-se para trés, contemplar as pré- Prias Pegadas e, desse modo, mostra 0 seu rosto de. mente: Mas es i fraturado 0 teu dorso meu estupendo e pobre século, Com um sorriso insensi como uma fera um tempo graciosa (u te voltas para tris, fraca e cruel, Para contemplar as tuas pegadas, 3. © poeta — 0 contemporaneo — deve manter fixo © olhar no se ‘empo. Mas 0 que vé quem vé o seu fempo, 0 sorriso demente do seu século? Neste ponto Sestaria de thes propor uma segunda definigao da contemporaneidade: contemporaneo é aquele que mantém fxo o olhar no seu tempo, para nele perce- ber nao as luzes, mas 0 escuro, Todos os tempos sao, Para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporineo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que & capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. Mas 0 que significa “ver as trev Uma primeira resposta nos é sugerida pela neurofisiologia da visio. O que acontece quando nos vado deluz, ou quan- “perceber 0 escuro”? encontramos num ambient tant luz, algo como uma nao-visio, mas o resultado da ati- um conceito privativo, a simples auséncia da idade das off-cells, um produto da nossa retina. [sso significa, se voltamos agora a nossa tese sobre 0 escu- ro da contemporaneidade, que perceber esse escu: nao € uma forma de inércia ou de passividade, mas implica uma atividade ¢ uma habilidade particular que, no nosso caso, equivalem a neutralizar as luzes que provém da época para descobrir as suas trevas, 0 seu escuro especial, que nao é, no entanto, separivel daquelas luzes, Pode dizer-se contemporineo apenas quem nao se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever Jos nessas a parte da sombra, a sua intima obscuridade. Com isso, todavia, ainda nao respondemos a nossa Pergunta. Por que conseguir perceber as trevas que Provém da época deveria nos interessar? Nao é taven © escuro uma experiéncia anénin; ©, por definigio, impenetrével, algo que nao esti direcionado para nés © n80 pode, por isso, nos dizer respeito? Ao contré. NO" 9 contemporaneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que Ihe concerne e nao ces. sa de interpela que, mais do que toda luz, di- Tige-se direta e singularmente a ele. Contemporineo faquele que recebe em pleno resto 0 facho de trees gue provém do seu tempo. 4. No firmamento que olhamos de noite, as estre. las resplandecem circundadas por uma densa treva Uma vez que no universo hd um niimero infinito de Balixias € de corpos luminosos, 0 escuro que vennos ‘no céu € algo que, segundo os cientistas, necessita de tims explicasao. B precisamente da explicagdo que a astrofisica contemporanea dé para esse escuro que Sostaria agora de Thes falar. No universo em expan- S20, as galdxias mais remotas se distanciam de nds 4 tims Yelocidade t2o grande que sua luz nao consegue nos alcangar. Aquilo que percebemos como o escuro do céu é essa uz que viaja velocissima até nds e, no entanto, nao pode nos alcancar, porque as galaxias das quais provém se distanciam a uma velocidade supe- rior aquela da luz. Perceber no escuro do presente essa luz que pro- cura nos alcancar e nao pode fazé-Lo, isso significa ser contemporineo. Por isso os contemporaneos si ra- antes de tudo, ros. E por isso ser contemporiineo uma questao de coragem: porque significa ser capaz nao apenas de manter fixo o olhar no escuro da épo- ca, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nés, distancia-se Ou ainda: ser pontual num compromisso ao qual se mente de nds, pode apenas fal Por isso © presente que a contemporai percebe tem as vértebras quebradas. 0 nosso tempo, © presente, nao é, de fato, apenas o mais distante: nado pode em nenhum caso nos alcangar. O seu dorso est fraturado, ¢ nés nos mantemos exatamente no ponto da fratura. Por isso somos, apesar de tudo, contemporineos a esse tempo. Compreendam bem que o compromis- so que esta em questo na contemporaneidade nao tem lugar simplesmente no tempo cronolégico: é, no tem- o, algo que urge dentro deste e que o lade po cronoléy transforma. E essa urgéncia é a intempestividade, 0 | anacronismo que nos permite aprender 0 nosso tem Po na forma de um “muito cedo” que 6, também, um “muito tarde’, de um “js” que é, também, um “ainda 180" E, do mesmo modo, econhecer nas trevas do pre- ‘ente a luz que, sem nunca poder nos alcangar, etd pe- Tenemente em viagem até nés. dessa especial experiéncia do rntemporaneidade &a moda, tempo que chamamosa ilo que define a.m que ela introduz no tem- Po uma peculiar desconti que 0 divide se- Sundo a sua atualidade ou inatualidade, 0 seu estar Ou © set ndo-estar-mais-na-moda (na moda e no simplesmente da moda, que se refere somente as coi sas). Essa cesura, ainda que sut Perspicua no sent do em que aqueles que devem percebé-la a percebem impreterivelmente,e, exatamente desse modo, atestam © sell estar na moda; mas, se procuramos objetivé-la e {ixi-lano tempo cronolgico,elaserevelainapreensivel. Antes de tudo, 0 “agora” da moda, o instante em que esta vem a set, ndo ¢ identficavel através de nenhum ‘

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