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Dilmar Miranda —149 , ANZANDA Di lamev 2 Lavoe@e, dow Siqlia. Yos & corgea goreles beaslave . Coctaleca: Eyerecsas, 20%, Os ANOS DE CHUMBO II: A ALEGORIZACAO DO PROTESTO E A ABERTURA DO ESPECTRO MUSICAL Pai, afasta de mim este cdlice Chico e Milton Nos dias de hoje ndo lhes dé motivo Porque na verdade eu te quero vivo. Ivan Lins e Vitor Martins Os anos 1970 pds AI 5 sao marcados pelo recrudescimento da censura. Se a liberdade de criagdo é cerceada, obrigando artistas se refugiarem no exilio como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Geraldo Vandré, ou a viver em permanentes turnés no exterior como Nara Ledo, Elis Regina, Edu Lobo, Francis Hime, Baden Powell, Vinicius de Moraes e Toquinho, por outro lado, sua inventividade é desafiada, na medida em que buscam outros caminhos nos embates contra o regime militar. Uma das tdticas marcantes da estética da época, ao contrario do protesto engajado mais explicito da década anterior, foi a alegorizagéo das cangées, de sentido contestatério menos manifesto. “De olho na fresta” e através de expressivas metdforas, os artistas buscam contornos de sentido capazes, a um so tempo, de passar pelos desvaos dos interditos da censura, a 150 —_Nés a misica popular brasileira bem como representar pulsagdes de resisténcia aos tempos cinzentos em que viviamos. O poeta e compositor José Carlos Capinam em. emocionante depoimento dado no Centro Cultural BNB (2004), confessa que chegou a pensar em desistir de compor diante da truculéncia do regime. Por expor seus afetos, intengdes e sentidos da vida mediante 0 uso da palavra, ¢ esta The sendo interditada, o poeta € tomado por uma profunda desesperanga. Mas para nao capitular, restou-lhe o caminho de um outro tipo de alegorizago da resisténcia, cantando o lado luminoso da vida negada pela longa noite em que viviamos, como que buscando presentificar um novo tempo que necessariamente teria de vir. Conforme depoimento do préprio autor, compoe 0 xote Moga bonita com Geraldo Azevedo. Chico Buarque foi, certamente, o autor mais visado, e a cangao Apesar de vocé (1970), espécie de abertura signica contra a década obscurantista, foi sua obra mais emblematica na dissimulago de sentidos contra a censura. O album Sinal fechado (1974), titulo maroto de uma cangao de Paulinho da Viola, com cangGes de outros autores (exemplo de Walter Franco, tido como autor maldito, e outra de um desconhecido Julinho da Adelaide), algo inédito para quem sO gravara sua propria obra, foi outro drible 4 sanha militar. O gesto de se apossar de cangées alheias, garimpando-as do repertorio popular, ressignificando-as em outros sentidos e direcdes, situava Chico na contramao da ordem vigente. O nome Julinho da Adelaide, codinome do autor, era uma camuflagem do proprio compositor ‘para celebrar sua subversao estética. Era muito comum, no meio popular, a adogao de nomes com referéncia 4 mae ou companheira como Joao da Baiana, Zé da Zilda e outros. Além disso, 0 uso de nomes ficticios era igualmente necessario e muito comum na radicalidade da luta politica dos que optaram pela resisténcia clandestina e armada ao regime. Wisnik aponta o samba Corrente, como modelo dos embates da década. O samba pra frente era uma dissimulada contrigao ao censurado Apesar de vocé, aderindo, com ironia, a “corrente pra frente” de milhdes de brasileiros felizes com 0 tri, € enganados pelo “milagre brasileiro”. O verso final isso me deixa triste & cabisbaixo “aponta pra duas diregdes, uma melancélica e outra auto-irénica: nao ver a multidao sambar contente, mas fazer um samba bem Dilmar Miranda —151 EB pre frente. O humor critico deixa 0 poeta cansado do elaborado mal abarismo nec rio pra dar transito 4 ambigua mensagem, transito este que permanece cifrado e duvidoso”. te O festival Phono 73 (docu mentado em 3 cds e | dvd) i s 3 realiz: D ae de oe do Anhembi (S. Paulo) durant oes dine s de maio de 1973, com todo o elenco do ( mace 5 selo Phonogram j beat representa certamente o melhor registro do clima mee ee por lescimento da censura bem como das caracteristicas da MPB da bas a Essa multinacional, detentora do contrato de grandes nomes da ja época, resolve reuni-los num i a ‘ Qs | grande festival néo competiti com vistas 4 promogao comercial dos seus contratados. pees ‘ 3 ° aon tal intento escapa dos designos da multinacional, pois o evento Pasi apresentar um inequivoco gesto politico, visto que viviamos o periodo mais repressivo do regime militar, a tragica era Médici fen oe momento mais marcante e tenso da Phono 73 se da quando Gil e Chico cantar a censurada Cdlice, a despeito de i BI a i le intengao dos seus autore: irad : S (Chico e Milton) em dissimular e alegorizar o seu sentido de protesto. Pa 95 apurs a censure e aplausos solidarios da platéia, Gil balbucia sconexos de absoluto non sense. C 38 mi s 2 . Com o som dos microfones ai Chico entremeia suas tentativas de entoar a cangao (sé consegue cae aos pedacos), com reivindicagées de restauragio do som, pela bs ‘ituigado das palavras originais por frases soltas e desconexas ‘como a or a grega” e outras coisas do género, até explodir, depois de cantar ‘otidiano e Baioque, no desabafo de um sonoro “censura filha-da-puta”! 5 Rens “s anos 70, Joao Bosco e Aldir Blanc compdem 0 Bébado e vista, Mesmo usando diversas imagens wilit ; gens @ personagens alegoricas, a pee eum claro manifesto de resisténcia ¢ luta contra a ditadura militar ‘pela \incia ao terror instalado, sendo i i : ao . por isso apropriada por movimento: s gs sem reed oat a oo e presos politicos, como o Movimento Feminino pela o Comité Brasileira pela Anistia qui i é : e prolife ca em vari saa ae que proliferam na época em varios Caia a tarde feito um viaduto E um bébado trajando luto Me lembrou Carlitos... A lua 152— Nés a musica popular brasileira Tal qual a dona do bordel Pedia a cada estrela fria Um brilho de aluguel E nuvens! Ld no mata-borrao do céu Chupavam manchas torturadas Que sufoco! Louco! O bébado com chapéu-coco Fazia irreveréncias mil Pré noite do Brasil. Meu Brasill... Que sonha com a volta Do irmdo do Henfil. Com tanta gente que partiu Num rabo de foguete Chora! A nossa Patria Mae gentil Choram Marias E Clarices No solo do Brasil... Mas sei, que uma dor Assim pungente Nao ha de ser inutilmente A esperanga... Danga na corda bamba De sombrinha E em cada passo Dessa linha Pode se machucar... Asas! A esperanca equilibrista 7 Dilmar Miranda —153 ‘z Sabe que o show De todo artista Tem que continuar... O Iuto é explicita referéncia e homenagem aos militantes que desapareceram ou foram declaradamente assassinados sob tortura, sentido contido nas “manchas torturadas”, ou seja, militantes que manchavam a ordem vigente e, por isso, punidas por suplicio violento e por morte dolorosa. O bébado com chapéu-coco, 0 mesmo Carlitos j4 revelado representa © artista consciente e irreverente que recusa a se calar, como a propria cangao faz, denunciando os crimes da ditadura. A noite, metafora recorrente da época, representa as proprias trevas do regime que se abateram sobre o Brasil que sonha com a volta do irmdo do Henfil, referéncia a Herbert José de Souza, Betinho, dirigente do movimento de esquerda crista Ac¢ao Popular, e irmao do cartunista do irreverente jornal Pasquim, Henrique Filho, Henfil. Um Brasil que sonha com a volta dos exilados politicos, com tanta gente que partiu num rabo de foguete. A cangio denuncia um dos crimes mais cinicos da ditadura: o assassinato, sob tortura, do jornalista Wladimir Herzog, nas dependéncias do DOI-CODI (SP) em outubro de 1975, sob a alegago de suicidio, fato que se repete, em condigées idénticas com o metaltirgico Manuel Fiel Filho, em janeiro de 1976, O pranto das Clarices (Clarice ¢ 0 nome da vitiva de Herzog) e Marias, no solo do Brasil, é pranto de todas as vilivas (como Thereza, vitva de Fiel F °), mies, filhas, enfim, de parentes c amigos daqueles e daquelas que morreram vitimas da noite que se abateu sobre 0 solo do Brasil. E a cango segue com um sentido apelo de esperanga, pois tanto sofrimento nao sera em vo, pois a dor pungente nao hd de ser inutilmente. Aqui nos remetemos, novamente a Apesar de vocé de Chico Buarque que promete: Quando chegar 0 momento/ Esse meu sofrimento/ Vou cobrar com juros. Juro!./... Vocé vai pagar, e é dobrado,/ Cada ldgrima rolada/ Nesse meu penar. Se a esperanga danga na corda bamba , mesmo com todo 0 risco, 0 bébado, 0 equilibrista, 0 artista, 0 militante todos acreditam na luta que segue pois todos sabem que 0 show de todo artista tem que continuar.. UFRK - BIBLIO’ 2 ye x 154— Nos a misica popular brasileira Foto: Celso Oliveira “Jo&io Bosco eElisRegina O bébado e a equilibrista, criador € criagao avolta do samba e o descentramento da criagdo musical jigdo da MPB da década foi a difusio do samba, a partir de trés artistas que 0 elegem como expressao de resisting ludicidade e identidade de nossa arte musical mais fincada as origens a! nO: a mineira Clara Nunes (esposa de Paulo César Pinheiro, autor de veros antolégicos de uma resisténcia mais explicita, como Vocé corta um a Eu escrevo outro./ Vocé me prende vivo/ Eu escapo morto./ De repente, olh eu de novo/ Perturbando a paz/ Exigindo o troco, em parcetia com Manic? Tapajés); 0 carioca Martinho da Vila, da escola de os oe ree , emplacando varios sucessos como 0 Pequeno Burgués e Casa de | a a carioca Beth Carvalho, inicialmente ligada 4 bossa nova, aproximant sucesso do III Festival Ynternacional da Cangao, dos sambistas de divulgadora da obra de muitos autores Um importante trago ligado 4 tradi se, apds 0 $ da velha guarda, tornando-se gran desconhecidos das escolas de samba. a Dilmar Miranda -155 Sea televisdo foi um importante veiculo para os festivais, tornando-os uma grande vitrine para expor novos produtos musicais para 0 consumo massivo de discos, existiu, por outro lado, quando sua formula comega a se exaurir, um correlato universitario, transformando-o em precioso lugar de resisténcia da juventude contra o regime, ensejando o surgimento de uma nova geragao de musicos. O abrir dos anos 70 traz 4 cena musical carioca, um grupo de jovens universitarios, agregados no Movimento Artistico Universitario (MAU), de curta existéncia, porém marcante como experiéncia musical, por apresentar uma geragdo da nova MPB. Fazem parte dela Ivan Lins, Vitor Martins, Gonzaguinha, Rui Maurity e César Costa Filho. De Minas, vem a musica vigorosa de Joao Bosco, que encontra no carioca Aldir Blanc, seu grande parceiro. Sao artistas que fazem uso igualmente de uma linguagem metaforizada de combate ao sistema. Os festivais universitarios se alastram por varios cantos, descentrando a criagao do eixo Rio-S. Paulo. O préprio tropicalismo ja prenunciava tal fato, com o grupo baiano e o piauiense Torquato Neto. A década consolida essa tendéncia com a proliferagdo de varios movimentos regionais, trazendo 4 tona nomes ent&o desconhecidos. Surge o Pessoal do Ceara com Belchior, Ednardo, Fagner e Fausto Nilo, um dos grandes letristas de nosso cancioneiro popular, em Pernambuco, surge Alceu Valenga, Geraldo Azevedo e Paulo Guimaraes, © grupo Construgdo com Nana Vasconcelos e Teca Calazans, 0 Quinteto Violado ¢ 0 Quinteto Armorial; surge 0 grupo Novos Baianos e 0 mineiro Clube da Esquina, tendo Milton Nascimento como sua estrela maior, para citar apenas alguns exemplos. Na verdade, os artistas off-eixo Rio/S.Paulo que conseguiram mais do que seus 15 minutos fugazes de fama e gléria, se mantendo em cena até hoje, expressavam a face visivel de um movimento muito mais amplo, rico e profundo, vindo do mundo universitario e dos festivais regionais. A titulo de exemplo, vejamos 0 grupo que passou a ser conhecido como Pessoal do Ceard. Na virada dos anos 1970, em plena vigéncia do AI5, eclode em Fortaleza, um movimento musical em torno da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Ceara e de alguns bares da cidade (o mais famoso era 0 Bar do Anisio), aglutinando estudantes que se utilizam da musica como linguagem de resisténcia 4 censura da época. x 156—_Nés a misica popular brasileira Se alguns nomes tornam-se conhecidos, sobretudo com a difusdo de suas cangées pela grande cantora da época (Elis Regina faz de Mucuripe, de Fagner/Belchior e Como os Nossos Pais de Belchior, dois sucessos nacionais), 0 Pessoal do Ceard, na verdade, expressa uma geragao de artistas bem mais heterogénea do que a idéia de movimento podia dar, com a participagio de varias pessoas, alguns sem nunca ter deixado 0 Ceara (os que nunca viajaram, conforme se auto-designavam). So poetas e misicos como Augusto Pontes, Francis Vale, Antonio C. Brandao, Rodger Rogério, Tetty, Petricio Maia, Ricardo Bezerra, Manassés, Stélio Vale e outros que nao obtiveram o mesmo espago na midia nacional, mas que continuaram atuantes no cendrio musical do Ceara. Todo esse empenho inventivo de compositores, musicos ¢ intérpretes culminou numa grande celebragao, em margo de 1979: 0 Massa-feira livre, reunindo no Teatro José de Alencar, em Fortaleza, durante 3 dias, mais de duas centenas de artistas numa verdadeira confraternizagaio musical. A tica vida musical expressa no Pessoal do Ceard, com o gran finale do Massa-feira, representa um exemplo extraordinario de algo similar encontravel em outras ricas vidas musicais de varias regides do pais. Sao movimentos que nao surgem do nada. Sao fatos que desvelam algo bastante mais profundo e consistente situado na retaguarda do acontecido. O Ceara, desde longa data, sempre apresentou personalidades musicais de fundamental relevancia na histéria da MPB, como Satiro Bilhar, Humberto Teixeira, Lauro Maia, Luiz Assungio e José Meneses, para citarmos apenas alguns. Além da presenga marcante dessas personalidades e movimentos, hoje convivemos com profissionais que dao continuidade 4 rica e intensa tradigao musical do estado. Musicos como 0s contrabaixistas Jorge Helder e Adriano Giffone, ¢ 0 violonista Francisco Araiijo, além do citado José Meneses atuante até hoje, sao exemplos de profissionais que também migraram e que continuam atuando na cena musical brasileira, recebendo o respcito e reconhecimento da critica e do publico. © violonista virtuose Nonato Luiz ¢ 0 exemplo de misico profun- damente respeitado no cendrio internacional, convidado permanentemente para concertos, aqui e fora do pais. Na musica instrumental de conjunto destaca-se 0 grupo Marimbanda, sob diregio do multiinstrumentista Luiz Duarte, com reconhecimento nac ional, Sao apenas referéncias cearenses que escolhemos para expressar uma realidade que, certamente, 6 identificavel em varias outras regides do pais. 4 Dilimar Miranda —157 z oO aflorar dos movimentos regionais dos anos 1970 se da juste quando a ditadura buscava impor um projeto de integracao, com ; omens impostas garganta a baixo, determinando uma suposta identidade nacional , Para isso, manipula, via propaganda massiva, a conquista d ; tri campeonato de futebol no México (1970), a criagao da staal Embratel propiciando redes nacionais de TV, obras suntuosas coma Transamaz6nica, Ponte Rio/Niterdi e a hidroelétrica de Itaipu. Tudo. sob a égide de um mercado dinamizado pelas benesses do “milagre brasileis estratégia para elevar o poder de compra da classe média de bens durdvei ; de consumo, como carros e aparelhos de som e televisdo. mes a Apesar das diferengas e diversidades, “cearensidade”, “baianidade”, ‘mineiridade” ¢ outras representagSes de regionalizagao da MPB se identific am na mesma expressao da resisténcia cultural a uma falsa identidade nacien, que ira caracterizar certa musica popular do periodo, criada por essa geragao. , Atensio da vida musical da virada dos anos 1970, vista como certo “yazio" da MPB, tributado ao periodo de radicalizagao da vida politica nacional (AI 5. esquerda armada com acées de guerrilha urbana, guerrilha rural do Ara; aia, etc.), redireciona, como vimos, a forga da palavra pela alegorizacao da ae AC , ou ent&o, enseja a retomada da tradi¢ao da musica instrumental. ee No teatro, da-se algo similar, com a alegorizaga i éni recorrendo a pecas do Teatro do Absurdo do ent eae Arrabal (Cemitério de automéveis), do irlandés Samuel Becket (Esperando Godot). edo romeno Eugene Ionesco (O Rinoceronte) ou entao pelo maior uso da expressao da corporalidade cénica difundida pelo casal Klaus e Angel Vianna. Ademais, a cancao popular consolida a inflexdo de seu contetido e forma, afastada de suas tradigdes formais (melodia, ritmica, harmonia e temética), provocada pelo tropicalismo que gera frutos. consolidando a nova orientacdo do contetido e da forma da MPB: a expresso visual adquire status constitutivo da propria musica, a exemplo do grupo Secos e Molhados que impacta e langa definitivamente na cena musical brasileira, o contra-tenor Nei Matogrosso. , 2 revival da musica instrumental e o experimentalismo na musica popular : Outra tendéncia importante da década foi a retomada da misica instrumental popular brasileira. O Brasil sempre teve uma forte tradigao

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