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TRADUCAO * Este ensaio foi publicado originalmente como um capitulo do livro “Problems in Materialism and Culture”. London, ‘Verso Editions, 1980, sob o titulo “The Bloomsbury fraction’. “+ Mestre em Sociologia pela FFLCH. USP, especialista em Politicas Pablicas € Gesto Governamental, assessor do Departamento de Politica do Ensino Superior do SESU-MEC. *** Mestre e doutoranda em Teoria Liters- ‘ria e Literatura Comparada na FELCH. usp. A FRACAO BLOOMSBURY* Raymond Williams Tradugao de Rubens de Oliveira Martins** Marta Cavalcante de Barros*** Existem sérios problemas de método na andlise de grupos culturais. Quando analisamos grandes grupos sociais, temos al- guns métodos dbvios e titeis 4 nossa disposigao. O grande niimero de casos permite andlises estatfsticas significativas; existem geral- mente instituigdes organizadas e crengas relativamente codifi- cadas; existem ainda muitos problemas na andlise propriamente dita, mas nés podemos, pelo menos, iniciar nossa discussio a par- tir dessas consideragées j4 razoavelmente complexas. Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, I.sem, 1999 139 No caso de um grupo cultural, 0 niimero de pessoas envol- vidas € geralmente muito pequeno para que se realizem andlises estatisticas. Podem existir ou nao instituigdes organizadas, através das quais 0 grupo funciona ou se desenvolve; mas até mesmo as instituigdes mais organizadas sio diferentes em escala e em tipo das dos grandes grupos. Os princfpios que unem o grupo podem ou nao estar codificados; e onde quer que eles estejam codifica- dos, um certo tipo de anélise é imediatamente relevante. Mas exis- tem grupos culturais muito importantes que ttm em comum um. corpo de priticas ou um ethos que os distinguem, ao invés de princfpios ou objetivos definidos em um manifesto. O que 0 proprio grupo nao formulou até pode ser reduzido a um conjunto de formulagdes que pode levar a uma redugio, simplificago, ou até mesmo a um empobrecimento de seu significado. Nao hd dividas quanto a importancia social e cultural de tais grupos, desde os mais organizados aos menos organizados. Nenhuma hist6ria da cultura moderna poderia ser escrita sem se dar atengo a eles. Mas, a0 mesmo tempo, tanto a histéria quan- to a sociologia no se sentem a vontade com eles. E possivel encontrar andlises hist6ricas de certos grupos, mas raramente de cunho comparativo ou analitico, Na sociologia da cultura, encon- tramos 0 efeito da sociologia geral em sua tendéncia a concen- trar-se em grupos de cunho mais familiar, com instituigdes rela- tivamente organizadas: igrejas, na sociologia da religido; o sis- tema educacional, na sociologia da educagao. Em outras dreas da cultura — literatura, pintura, miisica, teatro, e para aquilo que implica o pensamento filoséfico e social — hd geralmente ou especializacao ou redugao. O grupo, 0 movimento, o circulo, a tendéncia parecem ou muito marginais ou muito pequenos ou muito efémeros para exigir uma andlise histérica ou social. Entretanto, sua importancia como um fato social e cultural geral, principalmente nos tltimos dois séculos, é grande: naquilo que eles realizaram, e no que seus modos de realizagiio podem nos dizer sobre as sociedades com as quais eles estabelecem relagdes, de certo modo, indefinidas, ambiguas. 140 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, J sem. A fragio Bloomsbury Raymond Williams A fragio Bloomsbury Raymond Williams Estas so consideragdes gerais mas que se tornam particu- larmente importantes sobretudo no caso do grupo Bloomsbury, pelo menos porque, de forma influente, eles sairam de seu cami- ho, por assergao ou sugestio, para desvid-las ou negé-las. Por exemplo, Leonard Woolf diz: “O que veio a ser chamado de grupo Bloomsbury nunca existiu na forma dada a ele pelo mundo exterior. Porque Blooms- bury foi e é utilizado — geralmente de modo abusivo — corrente- mente como um termo aplicado a um grupo, em grande parte imagindrio, de pessoas com objetivos e caracteristicas também em grande parte imagindrias... Nés éramos e sempre permanecemos primeira e fundamentalmente um grupo de amigos.” (WOOLF, 1964, pp. 21,23) E claro que, quando Leonard Woolf queixou-se de um erro de representagao, ele tem coisas importantes a dizer. Mas o inte- esse tedrico de sua observagao é que, em primeiro lugar, ao enun- ciar “grupo em grande parte imagindrio” ele admite como dado a existéncia do conceito de um “mundo exterior”, e, em segundo Iugar, ele contrapée “um grupo de amigos” a uma nogao mais ampla de grupo. Mas é um fato central nas varias consideragdes existentes que nem todos os grupos deste tipo comegam e se desenvolvem como um “grupo de amigos”. O que temos entio que perguntar é se alguma das idéias ou atividades compartilha- das entre eles foram elementos de sua amizade, contribuindo dire- tamente para sua formagao ¢ distingdo como um grupo, e, mais do que isto, se existia algo sobre a forma como eles se tornaram ami- gos que indicasse fatores sociais e culturais mais abrangentes. E interessante, pois, continuar a citagdo: “Nos éramos e sempre permanecemos primeira e funda- mentalmente um grupo de amigos. Nossas raizes e as raizes de nossa amizade estavam na Universidade de Cambridge.” (WOOL, 1964, p. 23) Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, L.sem, 1999 141 Assim, 6 especialmente significative que, para Blooms- ‘frag Bloomsbury bury, a “Universidade de Cambridge” possa ser tomada, desta “ne Wns forma, como se fosse uma simples localidade, ao invés de ser a instituigao social e cultural altamente especifica que ela era e é. Mais que isso, as rafzes sociais e culturais desta forma particular de percepgiio — o “grupo” e o “mundo exterior” — devem, por sua vez, ser investigadas em relacio & sua precisa formagdo e posigdo social. Desta forma, este é 0 verdadeiro problema da andlise social € cultural de qualquer tipo mais organizado de grupos: levar em consideracao no apenas as idéias e atividades manifestas, mas também as idéias e posigdes que esto implicitas ou mesmo que io aceitas como um lugar-comum. Isto € especialmente neces- sirio para a Inglaterra dos tiltimos cem anos, na qual o significado de grupos como Bloomsbury ou, para ter outro exemplo relevante, © grupo Scrutiny de FR. Leavis, tem sido amplamente reconheci- do, embora sob uma perspectiva frégil e generalizante. Uma vez que os conceitos aos quais tais grupos sio referidos pertencem, essencialmente, as definigoes ¢ perspectivas dos préprios grupos, qualquer andlise que se realize tende a ser interna e circular. E 0 que ocorre, por exemplo, com 0 conceito de “aristo- cracia intelectual”, que Lord Annan popularizou e documentou; e também com 0 conceito de “cultura minoritéria”, que Clive Bell, do Bloomsbury, e que FR. Leavis, do Scrutiny, defendiam, cada um a sua maneira, O verdadeiro problema nao € perguntar sobre a inteligéncia ou sobre o grau de educagao de tais grupos auto- definidos. Ao contrério, o importante € relaciond-los, em suas for- mas especificas, Aquelas condigdes mais abrangentes que os con- ceitos de uma “aristocracia” ou de uma “minoria” implicam e obscurecem, Isto significa perguntar sobre a formagdo social de tais grupos, dentro de um contexto definido de uma hist6ria mais ampla, envolvendo relacionamentos mais gerais de classe social e educagio. Significa, além disso, perguntar sobre os efeitos das posiges relativas a qualquer formagiio particular em suas ativi- dades substantivas ¢ autodefinidoras: efeitos que podem geral- 142 Plural; jaciologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1 sem. 18 ‘A frago Bloomsbury Raymond Williams Plural; mente ser apresentados como simples evidéncia da distingao, mas que, observados a partir de uma perspectiva diferente, podem ser vistos de modos menos perceptiveis como definidores. Assim, a apresentagao de Annan de uma aristocracia inte- lectual, composta por um ntimero de familias intelectualmente eminentes, deve ser restringida por duas diferentes consideragées: primeiro, o efeito, incluindo o da descendéncia, da posigao social destas familias influenciando nas oportunidades de distingao inte- lectual de seus membros; e, segundo, o fato de estas familias, enquanto conjunto de pessoas que nao precisam — exceto por uma suposigao fundamentada — ser descritas como se fossem origindrias do mais eminente mundo social (um método que per- mite inclusdes virtualmente indefinidas pelo relacionamento, onde a inclusao pela distingéo independente poderia apresentar mais problemas); mas que, uma vez que as familias eminentes sio © ponto de partida, podem todos, pelo critério aparentemente independente das realizagées intelectuais, serem incluidos e elo- giados. Creio que isto € verdadeiro, pois realmente por critérios independentes, no caso de muitas das questées de Annan, alguns importantes grupos de distingdo so evidentes. Mas estes podem ento estar abertos para tipos bastante diferentes de andlises e conclusées a partir da nogao ideolégica e ideologicamente deriva- da de uma “aristocracia intelectual”. As mesmas consideragdes se aplicam ao grupo Blooms- bury, especialmente como nés 0 vemos agora, com alguma dis- tancia hist6rica. Ele pode ser apresentado como um extraordinério agrupamento de talentos. Ainda que em Bloomsbury também exista, muito claramente, uma superioridade por associagio. 6 interessante ir até o fim da lista de Leonard Woolf sobre o antigo Bloomsbury e suas tiltimas adesées (WOOLF, 1964, p. 22). E dificil ter certeza nestas questdes, mas vale a pena perguntar quan- tas pessoas nesta lista poderiam ser lembradas agora indepen- dente e separadamente, em qualquer sentido cultural significativo, de sua participacio no grupo. Quero dizer que em um tipo de apresentagao nés podemos encabegar a lista com Virginia Woolf, Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1 sem. 1999: 13 EM. Foster ¢ J.M. Keynes, e entéo ampliar o circulo para os outros. Mas suponha que nés tomemos a lista como ela se apre- senta: Vanessa Bell, Virginia Woolf, Leonard Woolf, Adrian Stephen, Karin Stephen, Lytton Strachey, Clive Bell, Maynard Keynes, Duncan Grant, Morgan Foster, Saxon Sydney Turner, Roger Fry, Desdmond MacCarthy, Molly MacCarthy, Julian Bell, Quentin Bell, Angelica Bell, David (Bunny) Garnett. E uma lista de renomados e alguns outros nomes. E exatamente 0 que pode- rfamos esperar de acurada descrigéo de um grupo de amigos ¢ suas relagées, feita por Leonard Woolf, que incluiu algumas pes- soas cujo trabalho poderia ser amplamente respeitado se o préprio. grupo nao fosse lembrado, e outros de quem este nao é claramente © caso, e outros ainda em quem ¢ dificil distinguir entre a reputa- 40 individual e 0 efeito da associagéio no grupo e suas memérias. No entanto, hd uma preocupagio em nao diminuir a importancia de ninguém. Isto poderia ser realmente uma aproxi- magao grosseira com alguns dos préprios modos de julgamento humano que grupos como Bloomsbury efetivamente popu- larizaram. O verdadeiro ponto é ver a importincia do grupo cul- tural para além da simples apresentagio empirica e da auto- definigdo como um “grupo de amigos”. E perguntar o que o grupo era, social e culturalmente, como uma questo distinta (embora relacionada a ela) das realizagdes dos individuos e seus préprios relacionamentos imediatamente percebidos. & exatamente porque tantos grupos culturais modernos importantes so formados e se desenvolvem desta forma que precisamos levantar, mesmo contra as diividas que surgem acerca do Bloomsbury, certas dificeis questées teéricas. Assim est claro que nenhuma anélise que negligencie os elementos de amizade e relacionamento, através dos quais 0 grupo se reconhece e se autodefine, poderia ser adequada. Ao mesmo tempo, qualquer restrig&o a estes termos poderia ser uma clara diminuigao da importancia geral do grupo. Assim, precisamos pensar sobre formas de andlise que evitem que se confunda um tipo de definigao com outro, no que se refere tanto a um grupo 144 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1 sem. 1999 A fracdo Bloomsbury Raymond Williams A fracéo Bloomsbury Raymond Williams generalizado quanto a um agrupamento empirico. E exatamente por causa da sua formagio interna especffica e seu evidente sig- nificado geral — as duas qualidades tomadas em conjunto — que Bloomsbury é tio interessante. E também um caso particular- mente importante do ponto de vista teérico, uma vez que é impos- sfvel desenvolver uma moderna sociologia cultural a menos que encontremos modos de abordagens de tais formagdes, as quais admitem os termos através dos quais os grupos se véem e aqueles pelos quais eles gostariam de ser apresentados, € que, a0 mesmo tempo, nos permitem analisar estes termos e sua significagdo social e cultural. E por causa disto, embora eu pretenda discutir principal- mente Bloomsbury, precisarei dizer algo também sobre Godwin e seu circulo e também sobre a Irmandade Pré-Rafaelita. Isto se da em parte para realizar uma comparacio, incluindo uma compara- ao hist6rica, mas constitui também um meio de comegar a encon- trar termos para uma discussio mais geral. A formacao de Bloomsbury Primeiramente, percebemos que certos princfpios fun- dantes e declarados do grupo Bloomsbury eram de um tipo que correspondiam diretamente ao seu modo preciso de formagao e as atividades pelas quais a maioria deles é lembrada. Uma descrigao apés outra enfatiza a centralidade dos valores compartilhados, da afeigiio pessoal e prazer estético. Para qualquer formulagio cons- ciente desses valores somos freqiientemente remetidos para a grande influéncia de G.E.Moore sobre os amigos excéntricos de Cambridge. Estes valores compartilhados foram expressos de modos especificos. Havia uma énfase sustentada na franqueza: as pessoas deveriam dizer umas as outras exatamente 0 que pen- savam e sentiam. Houve também uma grande énfase na clareza: as afirmagées sinceras, ou qualquer outro tipo de afirmagao, deve- ria estar preparada para a seguinte questio: ‘O que exatamente Plural; Sociologia, USP, S, Paulo, 6: 139-168, I.sem. 1999 us voc8 quer dizer com isso’, Estes habitos e valores compartilha- dos foram entao imediatamente relevantes para a formagio inter- na do grupo e para alguns de seus efeitos externos. Os valores que 0s tornaram tao préximos logo deram a eles uma auto-estima que os fazia sentir, num olhar auto-reflexivo, como diferente dos outros, 0 que, por sua vez, poderia identificd-los imediatamente. Por isso, neste ou em outros pontos importantes, eles tinham uma postura avangada para sua classe: “Quando eu fui ao Ceildo (em 1904) — e até mesmo quando eu retornei (em 1911) — eu ainda chamava Lytton Stra- chey de Strachey e Maynard Keynes de Keynes, e, para eles, eu ainda era Woolf. Quando eu passava uma semana com os Stra- cheys rio interior em 1904, ou jantava na Gordon Square com os Stephens seria inconcebivel que eu chamasse as irmas dos Lytton ou dos Toby por seus primeiros nomes. O significado social de usar o primeiro nome ao invés do sobrenome e de beijar ao invés de apertar as maos é curioso. Seu efeito é maior, eu acho, do que podem imaginar aqueles que nunca viveram em uma sociedade mais formal. Eles produzem um sentido — geralmente incons- ciente — de intimidade e liberdade, e quebram barreiras do pen- samento e dos sentimentos. Era este sentimento de grande intimi- dade e liberdade, de colocar de lado as barreiras e formalidades, que eu achei tao novo e tao estimulante em 1911. Ter discutido alguns assuntos ou ter falado abertamente sobre sexo na pre- senga da Sra. Strachey ou da Sra. Stephen seria inimagindvel sete anos antes; aqui, pela primeira vez, eu encontrei um circulo muito mais intimo (e mais amplo) no qual a liberdade completa de pen- samento e de expressao foi prolongada para Vanessa e Virginia, Pippa e Marjorie.” (WOOLF, 1964, pp. 34-5). Este sentido de liberacdo foi um estégio no desenvolvi- mento do grupo original de amigos de Cambridge. Era uma reali- zagio local de suas primeiras atitudes: 146 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, I sem. 1999 A fragio Bloomsbury Raymond Williams A fragio Bloomsbury Raymond Williams Nos estévamos convencidos de que todos acima de 25 anos, com talvez uma ou duas importantes excegoes, estavam ‘sem esperanca’, tendo perdido o elan da juventude, a capaci- dade de sentir, e a habilidade de distinguir a verdade da falsi- dade... Nés nos encontramos vivendo em uma primavera de uma revolta consciente contra as instituigdes sociais, politicas, reli- giosas, morais, intelectuais e artisticas, contra as crengas e padrées de nossos pais e avés.... Nés ndo estévamos com a van- guarda da época; nés estdvamos na vanguarda dos construtores de uma nova sociedade que deveria ser livre, racional, civilizada, em busca da verdade e do belo.” (WOOLF, 1960, pp. 160-1) Deve estar claro que este era um movimento muito mais amplo que Bloomsbury. Neste sentido mesmo, com uma mistu- ra caracteristica de honestidade e leviandade, Leonard Woolf percebeu que: “nds nos sentiamos como sendo a segunda geragéo neste excitante movimento”, embora a atitude para quase todos acima de 25 anos parece ter sobrevivido a isto. De fato, a maioria das atitudes e opinides foram derivadas, como aqui, de Ibsen, e dizen- do “Tolice!’ para o vasto sistema de hipocrisia que usa mentiras para os interesses velados do establishment, da monarquia, da aristocracia, das classes superiores, da burguesia provinciana, da Igreja, do Exército, do mercado de trocas.” (WOOLF, 1960, p. 164) O que Bloomsbury realmente representou no desenvolvi- mento desse movimento mais ampto foi um “estilo novo”. Era um estilo impressivo para a nova franqueza critica. Mas existiam elementos na sua formacdo que trouxeram outros matizes, e nao apenas caracterizando-os como uma facgdo de uma classe, um avangado grupo autoconsciente. A franqueza podia variar de tom indo da extrema rudeza para a ‘falta de esperanga’. Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, Lem, 1999, 147 Hé também algo muito curioso sobre a fidelidade as afeigdes pes- soais. Isto é dificil de estimar, a distancia ‘de fora’, mas afei¢ao, ao contrario de qualquer outra palavra mais forte, parece ser exata. Uma franqueza insensivel como o tom intelectual dominante parece ter tido seu efeito em certos niveis da vida emocional. Isto era, € claro, j4 evidente em Shaw, e também na correlata (embora mais ampla) formacio de Fabian. H4 um momento inesquecfvel em uma conversa entre Virginia Woolf e Beatrice Webb, em 1918: “Beatrice havia perguntado a Virginia o que ela tenciona- va fazer agora que ela estava casada. Virginia disse que ela queria continuar a escrever romances. Beatrice pareceu aprovar e alertou Virginia para que ndio permitisse que as relagdes emocionais inter- ‘ferissem em seu trabalho. Acrescentou: ‘Nés sempre dizemos que 0 casamento é a lata de lixo das emogées.’ Ao que, como se ambas estivessem chegado a uma compreenséo miitua, Virginia respon- deu: ‘Mas um velho empregado nao a limparia também?? (WOOLF, 1964, p. 117) O fato de que Virginia, em seu préprio registro da conver- sa, tomou “lata de lixo” por “privada”, apenas aprofunda sua fascinagio irénica.' H4 um sentido no qual a racionalidade e a franqueza conferem a ‘afeigdo’ uma definigao restrita, porém importante. Por outro lado, o que € bastante evidente no grupo é uma tole- rancia significativa nas questdes sexuais e emocionais. Esta to- lerancia valiosa e 0 peso exato da ‘afeigao’ parecem realmente estar ligados. Um fator final que deve ser somado a esta definigao ini- cial da estrutura de sentimentos do grupo pode ser representado pelo termo “consciéncia social”. Bles nao foram seus criadores, e em qualquer caso este é um fator muito mais evidente apés 1918 do que antes de 1914. Ele se relaciona, certamente, com a irreveréncia compreensiva a respeito das idéias ¢ instituigdes estabilizadas, na sua fase inicial. Mas ele se torna algo mais. ‘A frago Bloomsbury Raymond Williams 0 trocadilho em inglés se refere, respee- tivamente, aos termos “waste paper basket” e “waste pipe”, 148 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1 sem. 1999 A fragio Bloomsbury Raymond Williams Nada contradiz mais facilmente a imagem que temos de Blooms- bury como estetas retirados ¢ linguidos que o notével registro de envolvimentos politicos e em organizagées, entre as guerras, de Leonard Woolf e Keynes, mas também de outros, incluindo Vir- ginia Woolf, que mantinha encontros de um grupo do Grémio de Cooperagio das Mulheres regularmente em sua casa. O registro publico de Keynes € suficientemente bem conhecido. O de Leonard Woolf, em seu trabalho prolongado na Liga das Nagées, no movimento cooperativo, ¢ para o Partido Trabalhista, espe- cialmente nas questdes antiimperialistas, é especialmente admirdvel. Poderia entdo ser uma surpresa, para Bloomsbury e aque- les formados na sua imagem, possufrem uma certa consciéncia social. O préprio conceito de ‘consciéncia social’, neste periodo, tornou-se amplamente internalizado, o que torna muito dificil analisé-lo. Mas, uma forma de fazer isso é notar sua difundida associagdo com o seguinte e significative enunciado: “preocu- pacdo com os injustigados”. O que precisa ser cuidadosamente definido € a associagao especifica do que sao os sentimentos de classe realmente inalterados — um sentido persistente de uma linha bastante clara entre uma classe superior e uma classe inferi- or — com sentimentos muito fortes de simpatia com as classes inferiores vistas como vitimas. Assim, a ago politica € dirigida para a reforma sistemética ao nivel da classe dirigente; 0 despre- zo pela estupidez dos setores dominantes dessa classe dirigente sobrevive, praticamente inalterado, desde a fase inicial. 6 claro que a contradi¢io inerente a isto — a busca de reformas sis- teméticas ao nivel das classes dirigentes, a qual € considerada, em sua maioria, desprovida de visdo e estipida — nao é ignorada. B uma questo de a consciéncia social continuar explicando e pro- pondo, nos niveis oficiais e, ao mesmo tempo, ajudando na orga- nizagdo e educagdo das vitimas. O problema nao é que esta cons- ciéncia social é irreal; ela 6, na verdade, bastante real. Mas é a for- mulagio precisa de uma posi¢do social particular, na qual uma fragdo da classe superior, rompendo com sua maioria dominante, Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1 sem, 1999 “9 se relaciona com uma classe inferior como uma questio de cons- ciéncia: no em solidariedade, nao em afiliagdo, mas como uma extensio do que é ainda sentido como obrigagao pessoal ou do pequeno grupo, mais uma vez contra a crueldade e estupidez do istema e a favor de suas vitimas desesperancadas. O complexo de atitudes politicas, e conseqiientemente de reformas sociais e politicas de um certo tipo, que decorreu desta ‘consciéncia social’ foi especialmente importante na Inglaterra. Ela tornou-se até mesmo consensual, desde a ala di: reita do Partido Trabalhista até 0 Partido Liberal e uns poucos conservadores mais liberais. Bloomsbury, incluindo Keynes, estava neste como em outros assuntos bem A frente de seu tempo. Em seus érgios, desde o New Statesman até 0 Political Quarterly, ele foi, neste periodo, secundado em importancia neste consenso apenas pela Sociedade de Fabian. Em sua hostili- dade ao imperialismo, em que a identificagao consciente com as vitimas era mais negocidvel que na prdpria Inglaterra, sua con- tribuigdo foi bastante significativa. Sustentando sua hostilidade inicial ao militarismo, ele representou um elemento do consenso que nio foi, mais tarde, e mais precisamente durante a guerra fria, esquecido. Mas 0 que mais nos interessa agora, na definigao do grupo, é a natureza da conexdo entre estes importantes com- portamentos politicos e 0 grupo pequeno, racional e sincero. O verdadeiro termo de ligagao é a ‘consciéncia’. E um senso de obrigagao individual, ratificado entre amigos civilizados, que tanto governa os relacionamentos imediatos quanto pode ser ampliada, sem alterar sua base local, para ‘preocupagdes soci- ais’ mais abrangentes. Ele pode entdo ser diferenciado, como o proprio grupo sempre insistiu, da insensivel, complacente & estipida mentalidade do setor dominante da classe. Ele precisa também ser diferenciado — e isto 0 grupo e seus sucessores nao viram — da ‘consciéncia social’ de uma classe subalterna auto- organizada. Estas posigées politicas to diferentes nunca foram de fato rejeitadas nem tomadas a sério. O contato préximo com elas, a partir desta ‘consciéncia social’, exigia uma quase ndo 150 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1 sem. 1999 A frago Bloomsbury Raymond Williams A fracio Bloomsbury Raymond Williams consciéncia de si mesmo e, a seu préprio modo, quase puro patronato, Assim, se isto nao fosse dado, estas novas forgas no conseguiriam ser mais racionais e civilizadoras que aquelas de seus mestres atuais. Nestas definigdes iniciais dos significados e valores que fizeram deste grupo mais que um grupo de amigos — significados e valores, € dbvio, que a todo momento, por causa do que eles ram, sustentou sua autopercepgdo como apenas um grupo de ami- g0s, uns poucos individuos civilizados —, nds chegamos ao limite da definigao central da importancia social do grupo Bloomsbury. Eles eram uma verdadeira fragdo da classe superior inglesa da época. Eles foram, num primeiro momento, contra as idéias e valo- tes dominantes e continuaram, de modo condescendente, ¢ a0 mesmo tempo, parte dela. E uma posigdo muito complexa e deli- cada, mas o significado de tais fragdes tem sido geralmente subes- timado. Nao é apenas a questo deste relacionamento problemati- co dentro de um momento particular. E também uma questio da fungao de tais relacionamentos e de tais grupos no desenvolvimen- to e adaptagao, através do tempo, da classe como um todo. Godwin e seu circulo E aqui que podemos olhar brevemente, através da com- paragao, para dois grupos ingleses precursores e importantes William Godwin e seu circulo, entre 1780 e 1790, surgiram a par- tir de uma dissidéncia bastante singular. Uma dissidéncia reli giosa, no momento de sua formagiio, que j4 carregava implicagdes sociais especificas: de um setor religioso relativamente em desvantagem, na qual os efeitos de uma posigao econémica e social que eram bastante diferentes daqueles das classes superio- tes € dirigentes de entdo. Godwin e seus amigos eram traba- Ihadores relativamente pobres, uma intelligentzia pequeno-bur- guesa emergente, sem outros meios de influéncia politica ou social. Em sua tentativa de estabelecer racionalidade, tolerancia e Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1 sem, 1999 151 liberdade eles se opunham, ¢ sabiam que se opunham, a toda A fragio Bloomsbury classe e ao sistema acima deles. Dentro de seu préprio grupo eles” uns podiam discutir e tentar praticar os valores racionais da igualdade civilizada, encontrando-se inclusive em uma posigo avangada no que se refere a igualdade sexual, uma vez que contavam com a participagio de Mary Wollstonecraft entre eles. Em sua fase ini- cial eles estavam totalmente persuadidos do poder da explanagao € persuasio racional. O vicio era visto como sendo simplesmente um erro, ¢ 0 erro poderia ser reparado com paciente fornecimento de informagées. A virtude poderia ser assegurada por instituigdes racionais ¢ justas. A estupidez e os dogmas que agora barravam 0 caminho deveriam ser corrigidos através de um esclarecimento gradual e cuidadoso. O que ocorreu entao é ainda muito notdvel. Eles encon- traram uma classe dirigente, bem acima deles, que nao era apenas ~..arrogante e cruel mas que, naquele tempo, estava sob um novo ipo de ameaga advindo da Revolugdo Francesa. As propostas racionais e civilizadoras foram recebidas com a mais cruel Tepressao: processos, prisdes € exilio. O romance de Godwin, Things as they are, é uma notavel evocagao de tal crise, no qual a verdade se torna literalmente um risco de vida, e a explanagio razodvel era impiedosamente perseguida. E um momento impor- tante na cultura inglesa, ainda insuficientemente laureada pela bravura de seus primeiros ataques, ¢ isto principalmente porque a repressio a destruiu tdo profundamente e a colocou num segundo plano por toda uma geracio. Os grupos que falharam nao sao facilmente respeitados, ainda que 0 de Godwin devesse ser, pela notabilidade de suas aspi- rages ao lado da moralidade inerente a suas ilusGes. Nés podemos facilmente chamar de falha aquilo que na verdade foi uma derrota, que neste caso foi uma derrota para uma repressdo feroz. Num aspecto mais geral, e mais decisivo, este grupo nao era uma fragio, uma ruptura da classe superior. Ele era um setor emergente de uma classe ainda relativamente subordinada, a pequena burguesia comercial independente. 152 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1 sem. 1999 A fragio Bloomsbury ‘Raymond Williams Questionando tudo, mas ainda dentro da suposigiio da continuidade de um discurso racional, eles foram derrotados por pessoas que mal se preocupavam em responder seus argumentos mas que, sentindo-se ameagadas e em perigo, simplesmente os tiranizava ou prendia. E entdo o que aprendemos teoricamente € que nao podemos descrever nenhum destes grupos culturais sim- plesmente em termos internos: dos valores que eles sustentam, dos significados que eles tentam viver. Tomados apenas neste sen- tido, Godwin e seu circulo tém algumas notaveis semelhangas com Bloomsbury, apesar de serem suas idéias mais consistentes. Mas o que importa, finalmente, nao é o ambito das idéias abstra- tas, mas o das relagdes efetivas do grupo para com o sistema so- cial como um todo. A irmandade pré-Rafaelita Analisar um sistema social como um todo implica ter sem- pre presente que eles passam por freqiientes modificagdes, seja em sua caracterfstica geral ou em suas relagdes internas, Na época da Irmandade Pré-Rafaelita, na metade do século XIX, uma bur- guesia comercial e industrial estava se tornando dominante, ¢ al- gumas partes daquele discurso precursor tinham encontrado uma pequena base social. Por estas ¢ outras razdes, a caracteristica deste novo grupo era bastante diferente. Eles se opunham funda- mentalmente ao filistinismo de sua época. Em sua fase inicial eles cram irreverentes, impacientes ¢ fingiam-se insolentes: eles es- tavam tentando caminhos novos e menos formais para viver entre si. Por um periodo, que nao durou muito, eles foram parte da tur- buléncia democritica de 1848. Mas a maneira central de sua breve unidade como grupo foi a declaragdo pela verdade na arte, e uma correspondente rejeigdo das convengdes recebidas. Seu objetivo de fato era a verdade da natureza, ‘nada rejeitando, nada sele- cionado e nada desprezando’. Eles definiram um retorno ao anti- go (pré-Rafaelita) como um meio para o novo. Como um grupa Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1 sem. 1999 153 efémero, eles praticaram uma informalidade facil e irreverente, A frase Bloomsbury uma excepcional tolerancia boémia, e alguns elementos de lin. **¥™°n8 Willams guagem especifica do grupo (como as girias empregadas por eles) que deliberadamente os distinguia. Eles poderiam ser descritos como estando, cada um em seu campo especffico da arte, em revolta contra a burguesia co- mercial, ainda que em sua maioria eles fossem origindrios desta mesma classe. O pai de Holman Hunt era um gerente de armazém, 0 de William Morris era um agente de cémbio. Mais que isso, em um grau surpreendente, a medida que eles se tornavam ativos, eles encontravam seus mecenas na mesma classe. E claro que no fim eles acabaram trilhando caminhos separados: fosse em diregdo a uma nova e plena integragdo representada por Millais, fosse em diregio a ruptura de um socialismo revolucionério — embora com as mesmas ligagdes comerciais — de Morris. Mas em seu momento efetivo, com todas as dificuldades, eles nao repre- sentaram apenas uma ruptura em sua classe — os jovens irreve- rentes ¢ rebeldes — mas um meio em direcdio ao necessério proxi- mo estagio dé desenvolvimento daquela prépria classe. Na ver- dade isto est sempre acontecendo com as fragdes burguesas: um grupo que s¢ separa, como no caso da ‘verdade da natureza’, em termos que realmente pertengam a uma fase daquela propria classe, mas uma fase que agora esté sobrecarregada pelos blo- queios do desenvolvimento tardio. E entio uma revolta contra a classe mas para a classe, e ndo surpreende que sua énfase no esti- lo, mediada convenientemente, torne-se a arte popular burguesa do pr6ximo perfodo. A fragio Bloomsbury Sempre hd vantagem no distanciamento hist6rico, e God- win ¢ seu circulo, ou os Pré-Rafaelitas, so, desta forma, mais facilmente definidos do que Bloomsbury, que em certos aspectos tem ainda uma significativa influéncia contemporanea e uma pre- 154 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1 sem, 1999 A fragio Bloomsbury Raymond Williams senga bastante préxima. Assim, o propésito desta breve referéncia a estes primeiros grupos mais antigos enfatizar e revisar alguns dos mais ébvios pontos em comum, analisando nao apenas as diferengas ideais mas as diferengas sociais decisivas, que, por sua vez, podem somente ser compreendidas se acompanharmos 0 desenvolvimento da sociedade em geral. Na segunda metade do século XIX ocorreu um desenvolvimento e uma reforma com- preensiva da vida profissional e cultural da Inglaterra burguesa. As antigas universidades foram reformadas e tomadas mais sérias. Os servigos administrativos foram desenvolvides e reformados, por causa das novas demandas da administragao imperial e estatal, e por causa dos exames competitivos que entrosavam as universi- dades reformadas. O cardter de mudanga da sociedade e a estrutu- ra econémica construiu, de fato, um novo e importante setor pro- fissional altamente educado da classe superior inglesa: muito dife- rente em suas condutas e valores dos da velhha aristocracia ¢ da burguesia comercial. E entiio — uma vez que percebemas isto, no ficamos mais surpresos — foi deste setor, e especialmente de suas segunda e terceira geracdes, que novas definigées € novos grupos emergiram; e especificamente, no sentido pleno, Bloomsbury. As conexdes diretas do grupo Bloomsbury com este novo setor so bem conhecidas. H4 uma freqiiente conexo com os altos nfveis da administragao colonial (geralmente na {ndia), como na familia Stephen, no pai de Lytton Strachey, na carreira inicial de Leonard Woolf. Hé continuidades antes e depois a este respeito: os Mills no século XIX; Orwell no século XX. Mas 0 periodo de emergéncia de Bloomsbury foi o ponto alto deste setor, como também foi 0 ponto alto da ordem social a que serviu. O setor € distinto mas esté ainda muito préximo da parte mais ampla -darclasse. Como diz Leonard Woolf a respeito do mundo social dos Stephens: “Aquela sociedade consistia dos niveis superiores da classe média profissional e das familias provincianas, interpenetra- da até um certo ponto pela aristocracia. [Ou mais genericamente] Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, I.sem. 1999 155 Os Stephens ¢ os Stracheys, os Ritchies, Thackerays e Duckworths _ fragio Bloomsbury tinkam um intricado emaranhado de ratzes antigas e ramos da "mnt Willams familia que se prolongavam amplamente através das classes ‘médias superiores, as familias provincianas e a aristocracia.” (WOOLF, 1964, p. 74) Um dos interesses nas consideragdes de Woolf é que ele mesmo estava entrando neste setor crucial tendo uma formagao a partir de um meio social bastante diferente: “Eu era um outsider para esta classe, porque, embora eu, e antes de mim, meu pai, pertencéssemos @ classe média profis- sional, somente recentemente nds tinhamos forgado nossa entra- da nela a partir do estrato de comerciantes judeus.” (WOOLF, 1964, p. 74) Ele estava ento apto a observar os habitos especificos da classe da qual Bloomsbury iria emergir: “Socialmente eles de modo inconsciente assumiam coisas que eu nunca poderia assumir, conscientemente ou néo. Eles vivi- am em uma atmosfera particular de influéncia, maneiras, respei- tabilidade, e era tao natural para eles que ndo percebiam isso assim como os mamiferos néo percebem 0 ar e os peixes nao per- cebem a dgua em que vive.” (WOOLF, 1964, p. 75) Mas isto era a classe como um todo. O que era decisivo na emergéncia deste setor profissional era a atmosfera intelectual € social das antigas universidades reformadas. Foi nelas, apés a li- beralizagdo, apés-uma significativa recuperagao da seriedade, € apés a reorganizagao interna que assegurava o mérito preparado e competitivo, que as qualidades especificas do setor profissional emergiram dentro de conjecturas gerais da classe. Isto permitiu a presenga de alguns novos recrutados, como 0 proprio Woolf. Isto 156 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1 sem. 1999 A fracio Bloomsbury Raymond Williams * NT: KCSI — Knight Commander of the Order of The Star of India e KCMG Knight Commander of the Order of St. Michael ¢ St. George. Estes eram titulos hhonorificos concedides aqueles que foram a india ¢ as colénias britiicas. promoveu também muitas continuidades significantes e aut6no- mas, dentro das antigas universidades. E por isso que isto ainda pode ser visto, a partir de uma perspectiva deliberadamente sele- tiva, como uma ‘aristocracia intelectual’. “Os membros masculinos da aristocracia intelectual britanica foram automaticamente para as melhores escolas piblicas, para Oxford e Cambridge, e entéo para as mais respeitdveis e poderosas profissées. Eles casaram-se entre si com uma considerdvel freqiiéncia, e a influéncia da familia alia- da ao alto nivel de sua inteligéncia individual os levaram ao topo de suas profissées. Podemos encontrd-los como fun- ciondrios piblicos em um assento permanente de uma subsecre- taria do governo; eles se tornaram generais, almirantes, edito- res, jutzes ou entéo se aposentaram com um KCST ou um KCMG apés carreiras notdveis na India ou nos servicos civis das colénias. Outros ainda criaram sociedades em Oxford ou Cambridge ¢ terminaram como diretores da faculdade ou de algumas escolas piiblicas.” (WOOLF, 1960, p. 186) A confusio destas consideracées € digna de nota assim como a acuidade de suas informagées. Existe tanto 0 reconheci- mento quanto a incerteza dos dois fatores de sucesso: ‘influén- cia da familia’ e ‘alto nivel de inteligéncia individual’. Existe uma confusio ligada ao conceito de ‘aristocracia intelectual’, apoiada por um conjunto de exemplos (diretores de escolas e faculdades; subsecretérios permanentes e editores) e figuras bem diferentes da classe dominante (generais, almirantes). Dentro de cada conjunto, na verdade, 0 efeito da proporedo direta da proveniéncia de uma classe, incluindo a influéncia familiar, ¢ a inteligéncia individual examinada ou demonstrada deveria ser avaliada de forma precisa. Uma vez que 0 que esta sendo descrito é uma composigio setorial, ¢ as diversidades dentro desta composigao precisam muito mais de uma descrigao pre- Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, I.sem. 1999 137 cisa gue de uma auto-apresentagiio e uma férmula de auto- A frasio Bloomsbury a : Raymond Williams recomendagao — com sua metéfora deliberada e reveladora — de uma ‘aristocracia intelectual” Um outro ponto relevante, nesta significante composi¢ao setorial, aparece na referéncia de Woolf ao ‘membros masculi- nos’. Um dos fatores que iria afetar a caracteristica espectfica do grupo Bloomsbury, enquanto uma formagao distinta da totalidade do setor, era a defasagem na educagio mais elevada para as mu- Iheres desta classe. Mesmo nos estdgios iniciais, umas poucas mulheres destas famflias foram diretamente envolvidas; uma das irmas de Strachey, Pernel, tomou-se diretora de Newham. Ainda assim, uma persistente assimetria sexual foi um importante ele- mento na composigo do grupo Bloomsbury. Como coloca Woolf: “Nossas raizes e as ratzes de nossa amizade estavam na Universidade de Cambridge. Das 13 pessoas mencionadas acima [como membros do antigo Bloomsbury] trés sao mulheres e dez jo homens; dos dez homens, nove tinham estado em Cambridge.” (WOOLF, 1964, p. 23) Os efeitos desta assimetria foram lembrados por Virginia Woolf de maneira irénica e com certa indignagao em seu livro A Room of One's Own and Three Guineas. O que é preciso entdo enfatizar, na formagiio sociolégica de Bloomsbury, é, primeiro, a proveniéncia do grupo do setor profissional e mais altamente educado da classe superior inglesa, em suas amplas e sustentadas conexdes como esta clas3e como um todo; segundo, o elemento da contradigao entre algumas destas pessoas altamente educadas ¢ as idéias ¢ instituigdes He sua classe como um todo (a ‘aristocracia intelectual’, em um senso mais restrito, ou pelo menos alguns poucos deles, estavam colo- cando sua inteligéncia e educagdo para mostrar as conexdes do ‘vasto sistema de convengées ¢ hipocrisia’ mantido por muitas das instituigdes — ‘monarquia, aristocracia, classes superiores, bur- guesia suburbana, a Igreja, 0 Exército, 0 mercado de trocas’— as 158 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1 sem. 1999 ‘A frago Bloomsbury Raymond Williams. quais estavam incluidas entre os campos onde esta mesma ‘aris- tocracia do intelecto’ se destacava); terceiro, a contradigao espect- fica entre a presenga de mulheres intelectuais altamente inteligentes, dentro destas familias, e sua relativa exclusdo das instituigdes masculinas dominantes e formadoras; e, quarto, as necessidades intemnas e as tensOes desta classe como um todo, € especialmente de seu setor profissional e altamente educado, em um periodo que, a despeito de sua aparente estabilidade, foi mar- cado por crises sociais, politicas, culturais ¢ intelectuais. Podemos ento dizer que o grupo Bloomsbury colocou-se A parte como uma fraciio distinta, conforme a segunda e a terceira raz4o acima descritas: a critica social intelectual, e a ambigiiidade da posigdo das mulheres. Tomados em conjunto, esses so os habitos no momento de sua formago e de suas realizagdes. Mas © primeiro fator, da proveniéncia geral, deve ser tomado na definigao das qualidades particulares desta fraciio: sua combi- nagdo sustentada e significante de discordante influéncia e conexdes poderosas. E 0 quarto fator indica algo sobre sua sig- nificancia hist6rica geral: que em certos campos, notadamente aqueles da equalizagdo sexual e tolerancia, das atitudes frente arte e especialmente das artes visuais, e das informalidades pri- vadas ou semiptiblicas, © grupo Bloomsbury foi um precursor de uma mutagio mais geral dentro do setor profissional mais educa- do, e até certo ponto, para a classe dirigente inglesa no sentido mais geral. Uma fragdio, como foi ressaltado, geralmente executa este servico para sua classe. Havia entdo uma certa liberalizagio, ao nivel dos relacionamentos pessoais, do gosto estético e da aber- tura intélectual. Havia alguma modernizagdo, ao nivel das condu- tas semiptiblicas, de mobilidade e contato com outras culturas, € de sistemas intelectuais mais adequados e mais amplos. Esta libe- ralizacdo e modernizagio eram, é claro, tendéncias muito genéri- cas, nas circunstancias de mudanga social e especialmente aps os choques da guerra de 1914-18 e, mais tarde, na perda do Império. Nao se trata de afirmar que 0 grupo Bloomsbury causou estas mudangas, mas apenas de dizer que (e isto nao € pouco) eles Plural; Sociologia, USP, S. Panio, 6: 139-168, sem. 1999 159 foram proeminentes e relativamente coerentes como seus A fragio Bloomsbury a ° Raymond Williams primeiros representantes ¢ agentes. Ao mesmo tempo, a liberali- zagdo e modernizagao foram mais estritamente adaptagdes que mudangas basicas na classe, a qual, na sua fungao de dirigir as instituigdes centrais da classe dirigente, mesmo com todas as mudangas de costumes e apés o recrutamento de outros em con- formidade com seus hdbitos, nao apenas persistiu, mas per- maneceu com sucesso devido a estas adaptagGes que tinham sido e continuavam a ser feitas. A contribuigio de Bloomsbury O que precisa entao ser finalmente discutido € 0 carater da contribuicdo cultural, intelectual e artistica de Bloomsbury dentro do contexto de sua formacdo sociolégica especifica e sua signifi- cago histérica. Ainda assim, tal discussio enfrenta severas difi- culdades tedricas ¢ metodolégicas. Nao devem haver diividas ao se reduzir um ntimero de contribuigdes individuais altamente especfficas a alguns contetidos genéricos grosseiros/toscos. Gru- pos culturais deste tipo — fragdes por associagao ao invés de fragdes ou grupos de oposigao segundo um manifesto ou progra- ma — no podem em qualquer caso ser tratados desta forma. Do mesmo modo, as contribuigdes também nao podem ser vistas em uma mera associagao aleatéria. E com esta disposigiio cuidadosa que devemos ler a interessante sintese de Leonard Woolf: “Sempre houve grupos de pessoas, escritores, artistas, que ndo eram apenas amigos, mas que estavam conscientemente unidos por uma doutrina ou objetivo comum, ou propésito art co ou social. Os utilitaristas, os poetas Lake, os impressionistas franceses, os Pré-Rafaelitas ingleses, foram grupos deste tipo. Nosso grupo era bastante diferente. Sua base era a amizade, que, em muitos casos estava enraizada no amor e no casamento. A vivacidade de nossas mentes e pensamentos havia nos sido dada 160 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1.sem. 1999 AA fragéo Bloomsbury Raymond Williams pelo clima de Cambridge e pela filosofia de Moore, tanto quanto 0 clima da Inglaterra dé uma cor ao rosto de um inglés enquanto 0 clima da India dé uma cor bastante diferente ao rosto de um Tamil. Mas nés nao tinhamos nenhuma teoria em comum, nem sistemas ou principios aos quais nds desejdssemos converter 0 mundo; nés ndo faziamos proselitismo, nem éramos missiondrios, cruzados nem propagandistas. E verdade que Maynard produziu o sistema ou teoria Keynesiana de economia que teve um grande efeito sobre a teoria e pratica da economia, financas ¢ politica; € que Roger, Vanessa, Duncan e Clive tiveram importante papel, como pintores ou criticos, no que veio a ser conhecido como 0 ‘movimento pés-impressionista. Mas a cruzada de Maynard pela economia keynesiana contra a ortodoxia dos bancos e contra os economistas académicos, a cruzada de Roger pelo pés-impres- sionismo e pela ‘forma significante’ contra a ortodoxia da ‘repre- sentagao’ académica dos pintores e estetas foram tao puramente individuais quanto o fato de Virginia ter escrito The Waves — eles ndo tinham nada a ver com qualquer grupo. Uma vez que nao havia mais que uma conexao ptiblica entre o Critical and Specu- lative Essais on Art, de Roger; a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, de Maynard; e 0 Orlando, de Virginia do que havia entre a Theory of Legislation, de Bentham; o Principal Pic- ture Galleries in England, de Hazlit; e o Don Juan de Byron.” (WOOLF, 1964, p. 26) Empiricamente, essas consideragdes podem ser tomadas como verdadeiras, embora a comparagio final seja puramente retérica: Bentham, Hazlit e Byron nunca estiveram associados de forma significativa, e seus nomes nao esto em questao. Nem tio pouco a rejeicao caracterfstica de uma “teoria, sistemas ou princt- pios comuns” € tao convincente quanto parece; as atitudes de Bloomsbury em relagio ao sistema, pelo menos, estavam entre suas caracteristicas comuns e de princfpios mais evidentes. Existe realmente algo no modo pelo qual Bloomsbury negava sua existéncia como um grupo formal, enquanto continua- Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, L.sem, 1999 161 va a insistir nas suas qualidades de grupo, que é a pista para a A fragio Bloomsbury definigao essencial. O problema nio era ter qualquer teoria ou sis- “0 tema comum, no apenas porque isto era desnecessério — pior, isto poderia provavelmente ser algum dogma imposto — mas pri- mariamente, como uma questao de principio, porque tais teorias e sistemas eram um obstdculo para o verdadeiro valor organiza- cional do grupo, que era a livre expressao sem restrigdes do indi- viduo civilizado. A forga que o adjetivo ‘civilizado’ carrega, ou supe carregar, nao pode ser superestimada. “Na década anterior @ guerra de 1914 havia um movimen- to politico e social no mundo, e particularmente na Europa e na Gra-Bretanha, 0 qual parecia ser ao mesmo tempo maravilhosa- mente cheio de esperanca e excitante. Era como se os seres huma- nos pudessem realmente estar a ponto de tomarem-se civilizados.” (WOOLF, 1964, p. 36) Neste sentido, no seu mais amplo limite, Bloomsbury esta- va carregando os valores classicos do iluminismo burgués. Ele era contra a hipocrisia, a Supersticao, a pretensio e o escandalo. Tam- bém estava contra a ignotfincia, a pobreza, a discriminagao sexual e racial, o militarismo e o imperialismo. Mas ele estava contra to- das estas coisas em um momento especifico do desenvolvimento do pensamento liberal. Contra todos estes males, o que ele busca- va nio era qualquer idéia alternativa para toda a sociedade. Ao contrério, ele se valia do supremo valor do individuo civilizado, cuja pluralizagdo, enquanto individuos cada vez. mais civilizados, era ela mesma a tinica diregao social aceitavel. cardter profundamente representativo desta perspectiva € seu compromisso pode agora ser visto mais claramente. Ele é hoje a definigao central da ideologia burguesa (a prética burguesa, obviamente, é outra coisa). Ele comanda os ideais piiblicos de uma faixa bastante ampla de opinides politicas ortodoxas, desde os conservadores moderos até ao liberais e os mais representa- tivos social-democratas. £ a filosofia da soberania do individuo 162 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1.sem, 1999 A fracio Bloomsbury Raymond Williams Plural; S civilizado, no apenas contra todas as forgas obscuras do passado, mas também contra todas as outras forcas sociais reais, as quais em conflitos de interesses, em clamores alternativos, em outras definigdes da sociedade e dos relacionamentos, podem ser rapida- mente vistas como inimigas assim como podem rapidamente ser distribufdas ao mais distante limite que € marcado por sua prépria definigao de ‘civilizado’. Aquela confianga inicial em sua posigao, no perfodo anterior a 1914, tem em seu longo encontro com todas estas outras forgas sociais reais, o sentido de “decadéncia a todo vapor”, conforme expresso de Leonard Woolf. Por toda esta con- tinua ortodoxia geral, ele aparece agora muito mais freqiiente- ‘mente como alguém que cerca suas posigdes ao invés de alguém que tenta expandi-las. A repetigo de seus dogmas entdo, por sua vez, torna-se cada vez mais ideoldgica. © momento de Bloomsbury nessa histéria € significante. Em sua pratica — assim como na sensibilidade dos romances de Virginia Woolf ¢ E.M. Foster — ele poderia oferecer evidéncias muito mais convincentes da substancia do individuo civilizado que a expresso “reagrupamento ortodoxo”. Em sua teoria e phitica, desde a economia keynesiana até seu trabalho para a Liga das\ Nagdes, 0 grupo realizou poderosas intervengdes no sentido de ¢riar as condigées politicas, econdmicas ¢ sociais nas quais os individuos, libertados da guerra, da depressio e dos preconceitos, poderiam estar livres para ser e para tornarem-se civilizatlos. Assim, em suas exemplos pessoais ¢ em suas intervengdes publi cas, Bloomsbury assumin posigdes sérias, dedicadas ¢ inventivas de uma forma como nunca havia existido antes no século XX. De fato, 0 paradoxo de muitos dos julgamentos retrospectivos de Bloomsbury é que o grupo viveu ¢ trabalhou sua posigio com uma nova e desconfortavel sinceridade: desconfortdvel, quer dizer, pelo menos para muitos daqueles para quem o ‘individua- lismo civilizado’ € uma idéia sintetizadora para um processo de consumo conspicuo e privilegiado. Nao se trata de uma tentativa de separar as posigdes de Bloomsbury daqueles desenvolvimen- tos posteriores: existem algumas continuidades reais, como no jologia, USP, S. Paulo, 6; 139-168, 1 sem. 1999 163 culto da proeminente-compreensiva-devastagao, e em certas armadithas que emergiram, como na economia keynesiana e nas aliangas militares e monetérias. Mas precisamos ainda ver as diferengas entre o fruto e sua podridado, ou entre a semente culti- vada em meio a grandes expectativas e sua 4rvore elegantemente deformada. Mas, ento, A medida que vemos tanto as conexdes quan- to as diferengas, precisamos continuar a analisar as obscuridades € os enganos da posi¢ao original em torno da qual Bloomsbury definiu a si mesmo. Isto pode ser feito de maneira séria ou des- preocupada. Deixe-nos por um momento optar pela ultima, em um dos préprios costumes de Bloomsbury. Pode ser dito, ¢ foi geralmente dito, que o grupo no tinha uma posi¢éo comum. Mas, enfim, por que eles precisariam de uma? Se olharmos com cuida- do veremos que havia Virginia e Morgan na literatura; Roger, Clive, Vanessa e Duncan nas artes; Leonard na politica; Maynard na economia. Estas éreas nao cobriam o total interesse de todas as. pessoas civilizadas? Talvez com uma excegdo, mas nos anos 20, de maneira significativa, isto era remediado. Um mimero de asso- ciagées e relagdes do grupo — Adrian e Karin Stephen, James Strachey — adotaram a nova pritica da psicandlise, e a editora Hogarth Press de Leonard e Virginia Woolf — sua propria criagio direta e notavel — efetivamente introduziu o pensamento freudi- ano em lingua inglesa. Assim, a impressionante lista de Virginia e Morgan na literatura, Roger, Clive, Vanessa e Duncan nas artes, Leonardo na politica e Maynard na economia, poderfamos, por assim dizer, acrescentar Sigmund no sexo. E tentador negar todas essas afirmagdes, mas a questo subjacente é séria. O trabalho e 0 pensamento do grupo Blooms- bury, e aquele outro trabalho e pensamento que Ihe é efetivamente associado ¢ apresentado — incluindo, € preciso dizer, a poesia ‘comunista’ inicial dos anos 30 — sio notdveis, a primeira vista, por seu ecletismo, por suas evidentes desconexées. Neste sentido, € compreensivel que qualquer um pudesse voltar e perguntar, retoricamente, que conexées poderiam haver entre Clive Bell na 164 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1 sem. 1999 ‘A frago Bloomsbury Raymond Williams. A fragio Bloomsbury Raymond Williams arte e Keynes no emprego, ou Virginia Woolf na ficgao e Leonard Woolf na Liga das Nagées, ou Lytton Strachey em hist6ria e os freudianos em psicanilise. E certo que nao podemos colocar todos estes trabalhos juntos e fazer deles uma teoria comum. Mas é Sbvio que esta é a questdo central. As diferentes posigdes que 0 grupo Bloomsbury reuniu, e as quais eles efetivamente dissemi- naram como sendo 0s contetidos da mente de um individuo civi- lizado, modemno e educado, sao todos, em efeito, alternativas a uma teoria comum. Nao é preciso perguntar, enquanto essas im- pressdes perduraram, se as generalizagdes de Freud sobre a agressio so compativeis com o trabalho desenvolvido para a Liga das NagGes; ou se suas generalizagdes em arte so compativeis com a idéias de Bell de ‘forma significante’ e “éxtase estético’, ou se as idéias de Keynes sobre a intervengio publica no mercado so compatfveis com a profunda concepgio da sociedade como um grupo de amigos e de relagdes. Nao € preciso perguntar por que a integragao efetiva j4 havia tomado lugar, ao nivel do ‘indi- viduo civilizado’, a definicao singular de todas as melhores pes- soas, seguras em sua autonomia mas voltando sua atengdo para aqui e acol, conforme a ocasiao exija. E 0 objetivo que governa todas as intervengées piblicas é 0 de assegurar este tipo de autonomia, encontrando formas de diminuir as pressdes e confli- tos, e de evitar desastres. A consciéncia social, no fim, existe para proteger a consciéncia privada. Onde isto possa ser assegurado sem este tipo de protegiio — nas formas privilegiadas de certos tipos de arte, recusando 0 “sacrificio... para a representago’ como ‘algo roubado da arte’ (BELL, 1914, p. 44), ou de certos tipos de ficgdo, como em Vir- ginia Woolf rejeitando de modo zombeteiro a descrigao social “Comega dizendo que seu pai possuta uma loja em Harro- gate, Descobrir exatamente qual a renda. Descobrir exatamente os saldrios dos funciondrios da loja, em 1878, Descobrir do que sua mée morreu. Descrever o cancer. Descrever algoddo. Descrever... (WOOLF, 1924, p. 18) Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1.sem, 1999 165 — ow nas formas disponiveis e significantes de relaciona- A frago Bloomsbury , . : Raymond Williams mento pessoal e de prazer estético — também-nio hé conflito ape- sar de alguns detalhes “incOmodos” com a consciéncia social. Ao contrério, esta sensibilidade mais elevada € 0 tipo de vida a qual é sua meta e modelo, apés a remogiio racional dos conflitos (‘desne- cessirios’) e das contradigdes e maneiras de despojamento. Para o bem da vida pessoal e da arte, conforme Clive Bell declara: . “A sociedade pode fazer alguma coisa... porque ela pode aumentar a liberdade...Até mesmo os politicos podem fazer algu- ma coisa. Eles podem repelir as leis de censura e abolir as restrigées @ liberdade de pensamento, de linguagem e de condu- ta. Eles podem proteger as minorias. Eles podem proteger a origi- nalidade do édio da multidéo medtocre.” (BELL, 1914, pp. 274-5) Isto nem sempre é aquela estranha mistura de doce e azedo. Isto, na verdade, nunca esté livre das conotagées de classe, como de novo lemos explicitamente em Bell: “Ajliberacao nao serd completa até que aqueles que aprenderdm a desprezar a opinido das classes médias baixas aprendam também a abandonar os padrées e a desaprovar as pessoas que so forgadas por suas limitagdes emocionais a ver a arte como uma elegante amenidade ....0 conforto é 0 inimigo; a luxtiria é simplesmente o defeito da burguesia.” (BELL, 1914, pp. 273-4), E continuando em tom desafiante: “O minimo que o Estado pode fazer é proteger quem tem algo a dizer e que pode causar tumulto. O que nao causar tumul- to provavelmente nao vale a pena ser dito.” (BELL, 1914, p. 275), 166 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1 sem. 1999 A fragio Bloomsbury Raymond Williams Ainda assim, apés ter dito tanto, nao houve tumultos. Por causa de todas suas excentricidades, incluindo as valiosas excen- tricidades, Bloomsbury estava articulando uma posicao a qual, ainda que em instancias cuidadosamente dilatadas, iria tornar-se uma norma ‘civilizada’. No proprio poder de sua demonstragao de uma sensibilidade privada que deveria ser protegida e amplia- da através de formas de interesse publico, eles introduziram as formas efetivas de dissociagao ideolégica contemporanea entre a vida ‘ptblica’ e ‘privada’. A consciéncia de sua propria formagao enquanto individuos na sociedade, daquela formagao social especifica que os fez explicitamente um grupo e implicitamente uma fragao de uma classe, nao estava apenas além de suas reali- zag6es; ela foi diretamente desconsiderada, uma vez que o indivi- duo livre e civilizado tinha j4 seus detalhes estabelecidos. A psi- candlise poderia ser integrada a isto, mas apenas como um estudo achistérico das formagoes individuais espectficas. As politicas ptiblicas poderiam ser integradas a isto, enquanto fossem dirigi- das para a reforma e reparo da ordem social a qual tinha pro- duzido estes individuos livres e civilizados; mas a qual, através da estupidez e anacronismo agora ameagava sua existéncia ¢ sua reprodugio indefinida e generalizada. A natureza final de Blooms- bury, enquanto grupo, é que ele foi realmente, e diferencialmente, um grupo formado por individuos livres e para individuos livres. Qualquer posicdo comum, enquanto distinta desta suposigao, poderia entdo té-lo rompido, ainda uma série completa de posigées especializadas, teria se tornado naturalizada — embora agora mais evidentemente incoerente — em todas as fases poste- riores da cultura inglesa. E neste exato sentido que este grupo de individuos livres deve ser visto, finalmente, como uma fragdo (civilizada) de sua classe. lil Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, I.sem. 1999 167 WILLIANS, Raymond. The Bloomsbury fraction. Plural; Sociologia, USP, 4 fracio Bloomsbury S, Paulo, 6: 139-168, 1.sem. 1999 Raymond Williams Abstract: The author discusses the importance of sociological analysis of cul- tural groups, focusing the Bloomsbury Group, formed in England, in the first decades of the Twentieth Century, in which took part renamed talents such as Virginia Woolf and Maynard Keynes. The author tries to find ways of discussing their formation which acknowledge the terms in which they saw themselves and would wish to be presented, Williams analyses the general social and cultural significance of the group, through their shared values, specially personal affec- tion and aesthetic enjoyment, that made Bloomsbury represented a “new style”. Moreover, its members are considered the forerunners in a more general muta- tion within the professional and highly educated sector. They were also carrying the classical values of bourgeois enlightenment and defending the supreme value of the civilised individual, whose pluralization was itself the only acceptable social direction. Uniterms: Bloomsbury, cultural groups, cultural sociology, individualism, modernity BIBLIOGRAFIA BELL, Clive. Art. London, 1914. WOOLF, Leonard. Sowing. London, 1960. Beginning again. London, 1964. WOOLF, Virginia. Mr. Bennet and Mrs. Brown. London, 1924. 168 Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1 sem. 1999

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