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RICHARD HOGGART ( RICHARD HOGGART . AS UTILIZACGES | AS UTILIZACSES DA CULTURA 1-—_| DA CULTURA 2 ASPECTOS DA VIDA CULTURAL DA CLASSE TRABALHADORA ASPECTOS DA VIDA CULTURAL DA CLASSE TRABALHADORA QUESTOES: CARTA A UMA PROFESSORA, polos rapazes da Escola de Barblana (© BUDISMO ZEN, por Alan W. Watts UMA EXPEREGNCIA NA AMERICA LATINA, por Sal- vador Allende A PSIQUIATRIA EM QUESTAO, por R. D. Laing AS UTILIZAGOES DA CULTURA, por Richard Hoggart RICHARD HOGGART AS UTILIZACOES DA CULTURA ASPECTOS DA VIDA DA CLASSE TRABALHADORA, COM ESPECIAIS REFERENCIAS A PUBLICACOES E DIVERTIMENTOS Colecgéo QuesTSEs + EDITORIAL PRESENCA 1973 Titulo original: ‘The Uses of Literacy © Richard Hoggart, 1957 Sait Tradugio de N& 155625 MARIA DO CARMO CARY Arranjo gréfico de: FC. Reservados os direitos para a lingua portuguesa & EDITORIAL PRESENGA, LDA. Av, Jodo XXI, 56-12 — LISBOA AGRADECIMENTOS Gostaria de exprimir muito galorosamente a minha gratiddo aos meus amigos ¢ colegas, abaixo citados, @ que deram o seu importante, muito particular ¢ yoluntério contributo para a preparagio deste livro. Sera quase desnecessério acrescentar serem os erros & Pontos fracos, que nele ainda se encontram, todos de tninha lavra: ‘A. Atkinson, H. L, Beales, A. Briggs, J. M. Came- ron, D. G. Chariton, J. F. C. Harrison, o falecide F. D. Klingender, G. E. 'T. Mayfield, R. Nettel, S. G. Ray- bould, R. Shaw, A. Shonfiold, E. J. Tinsley, meu inmao Tom e minha mulher. ‘Fiquei também imensamente grato, por um grande volume de trabalho secretarial, a Mrs. E. Clayton, Miss. J. Woodhead, Miss. N. Young, Miss. M. Downs, ‘Mrs. J. Graves, Mr. F, Nicholson e Mr. V. Waterhouse. Entre as varias bibliotecas consultadas, gostaria de mencionar particularmente a Biblioteca Publica de Hull, ‘eujos funcionirios me deram, e sempre com a maior das boas vontades, a mais completa assisténcia, ‘Quero ainda exprimir os meus agradecimentos a todos os autores e editores cujos trabalhos foram aqui citados. As fontes destas citagdes vio indicadas nas Notas ¢ Bibliografia. Se acaso alguma houver sido omi- ttida, apresento desde jé as minhas desculpas aos auto- tes @ editores em questéo, ¢ tentarei omendar tais deficiéncias em quaisquer futuras edigées. PREPACIO Este livro estuda as modificagses que se deram na cultura das classes proletdrias durante os tiltimos trinta ou quarenta anos, ¢ de modo especial aguelas que podem ser atribuidas @ influéncia das publioacées de ‘massa. Creio que obteriamos resultados muito seme- Thantes caso toméssemos como exemplo algumas outras formas de diversio, nomeadamente 0 cinema ¢ a rédio comercial. Sou de opinido que os livros sobre cultura popular muitas vezes perdem parte do seu impacto por nao tornarem suficientemente claro quem € que se entende por <0 povor, por relacionarem inadequadamente os exames feitos a aspectos particulares da vida d’, a qual reduziu de tal modo as diferengas sociais que'a maioria de nés se integra hoje num plano quase raso, o plano que une a baixa classe-média & olasse-média. Dentro do contexto que Ihe é proprio, no nego a veracidade de uma tal afirmagiio, e de modo algum pretendo subestimar a extensio ou o valor de muitas das recentes modifica- Ges soviais. Para apreciarmos devidamente a envar- gadura de tais modiificagdes, particularmente naquilo em que afectam os membros das classes proletirias, bastar-nos-4 reler um estudo sociolégico ou meia dtizia, de romances de, digamos, 0 inicio do séoulo. E quase ‘certo ficarmos surpreendidos com a grande methoria wwerifieada na situacio das classes proletdrias, as quais passaram a dispor de maior poder e mais bens; mas, 0 ‘que se nota sobretudo é o facto de se sentirem cada vez menos membros das «classes inferiores», conscientes da existéncia de outras classes, todas acima dela, e todas ‘superiores segundo 0 modo que 0 mundo tem’ de valo- rizar as coisas. Em parte, esta atitude pode encon- trarse ainda, mas tem sido grandomente reduzida. 5 A despeito destas modificagées, os comportamentos alteram-se sempre muito mais Jentamente do que se nos afigura, como o tenta demonstrar a primeira parte deste livro. Os comportamentos modificam-se lenta- mente mas, também aqui, hi um evidente e vasto nitmero de’ forcas complexas, agindo no sentido de uma alteragio: a segunda metade deste livro discute 98 modos pelos quais se esté processando uma mudanga para uma sociedade culturalmente «sem classes) Sera nevessirio definir de modo mais especifico o que entendo por «classes proletirias>, mas é mais facil fazé-lo do que evitar a atitude romantica a que geralmente propenso todo aquele que estuda «os tra- balhadores» ou do médico local da Pre- widéneia, pois 36 0s muito velhos so ainda do tempo em que @ assisténcia nio existia, Esta breve caracterizacio das classes proletirias néio nos pode Jevar a esquecer o grande niimero de diferengas, as subtis tonalidades, as distingdes de classe, que se manifestam no interior do proprio pro- Ietariado, Os diversos membros do grupo gozam de prestigio diforente, de acondo, por exemplo, com a rua que habitam. Dentro de cada uma dessas Tuas, as prias casas acusam o melhor ou pior nivel de vida dos seus habitantes; determinada casa é ligeiramonte me- thor porque tem uma cozinha separada, ou porque fica no extremo do quarteiréo, ou tem um bocaio de jar- dim, ou a renda custa mais nove pences por sem2na. Ha diferencas de grau entre os ocupantes; esta familia vive bem porque 0 marido é um homem habil e houve uma grande encomenda na fébrica; aqui a mulher é uma boa dona de casa ¢ muito cuidadosa, enquamto que a que vive om frente 6 uma desmazelada; estes ha j4 geragdes que sio uma «familia de Hunslet», porten- cendo portanto & aristocracia hereditiria do bairro. ‘Abé certo ponto, hé também no bairro uma hierar- quia que € fruto ‘da especialiazcio, Hste homem é conhecido como uma espécio de em todas ‘as geragdes e em quase todas as terras. Algumas persistiram, com muito pequenas modifica- es, desde a Inglaterra rural até A urbana; a outras foi atributdo maior relevo em consequéncia dos pro- blemas derivados da urbanizacio. Quando desorevo as atitudes « esto a ser destruldas; e que, nalguns aspectés importantes, a nova cultura de massas € menos saudivel do que a cultura, muitas vezes tosca, que esté substituindo. ‘A distincao entre as atitudes «antigas» alguns —num bairro de casas novas de tijolo em Hunslet. O mesmo estava a acontecer por todo o Norte © nas Midlands; as aldeias eram abandonadas pela gente nova, e as cidades invadiam 0 campo em seu redot, construindo aglomerados habitacionais baratos 29 ¢ estritamente utilitérios. ‘As vantagens sociais de que dispunham, em médicos, medicamentos, educagio e outras, era insufieientes; as ruas deficientemente lim: Pas ¢ escassamente iluminadas, estavam literalmente atulhadas de familias eujo estilo de vida era ainda, om larga medida, rural. Muitos morriam jovens. (via-se ainda, num terreno de manobras de locomotivas por onde ‘eu passava todos os dias, a caminho da escola secundaria uma placa comemorativa de uma epidemia de e6lera que vitimou muita dessa gente). A minha avé passou por tudo isto © ainda pola Primeira Grande Guerra, vivendo até quase ao inicio ‘da segunda; aprendeu a viver como uma citadina. Con- tudo, fm cada trago do sou ¢ om mmuitas das suas les, sobressala a sua origem campesina. A sua casa, euja renda, em 1939, era ainda de nove xelins por Semana, nunca foi verdadeiramente urbana. Do tecto da cozinha pendiam cartuchos feitos com papel de jor- nal.e cheios de ervas, secas em casa; numa prateleira estava sempre um boiio com enxtmdia de ganso para © caso de alguérn estar com ccatarreiray. Na vitalidade do seu espirito, no vigor da sua linguagem, na quali- dade por vezes riistica do seu humor, mantinha ela uma energia que os seus filhos néo possufam, e A qual rea- giam por vezes com um melindre sofisticado e urbano. Dizia sobre as classes proletarias. Mas quando ouvimnos falar os mem- bbros das classes proletarias, em casa como no trabalho, constatamos em iptimeiro lugar nio os efeitos de oln- quenta anos de cinema e de imprensa de grande difusio, mas antes 2 influéncia priticamente nula desses fen6- menos sobre a dinguagem do dia a dia, uma vez que 0s mombres dessas classes continuam’ a inspirar-se, no que & fala e as crencas que implicitamente se expri- nem por meio da fala se refere, numa tradigao oral € local. Sem davida que essa tradi¢&o tende a tornar-se graduaimente mais fraca, no entanto, e caso nos pro- Punhamos examiner a situacio presente daa classes Proletirias, no podemos partir do prinefpio de que essa tradigio se extinguiu jf completamente, quando os faetos mos demonstram que permanece viva e pujante. Os exemplos que passo a apresentar foram recolhi- dos nna sala de espera de uma moderna clinica de crian- gas, de paredes pintadas em tons claros e mobilia de metal, ¢ durante um periodo de tempo relativamente 7 38 eurto. Meia diizia de mies de aspecto bastante pobre e desmazelado esperavam que chegasse a vez dos res- peetivos filhos, ¢ a conversa que travavam entre si, conversa essa ‘bastante pouco varlada mas fluente, referia-se aos habitos dessas eriangas. Num periodo de trés minutos, duas muiheres empregaram as seguintes frases: (referindo-se & inteligéncia necesséria para obter uma bolsa de estudo). «Acondam com 0 cantar do galos (a propésito das ontGom ertangoa oko ik «Com eriancas nfo hd sossego». «A fome abre o apstite '», ‘Pouco depois, nalgumas lojas onde as donas de casa se encontravam de manhi nas compras, foie pos- sivel registar as seguintes frases: —frases ortografadas no original inglés de acords com uma prontincla popular. 3 illndos; chorrivels; egrandioso»; ebestial>; a gratia das Palavras inglesas reproduz uma prontincla incorrecta. 35 No entanto, as formas antigas da linguagom per- sistem muito acentuadamente na fala dag pessoas de meia idade, e de forma mais acentuada do que aquilo que geralmente se eré na das pessoas mais novas: as frases so porém utilizadas automAticamente. Quando escutamos apenas o tom om que sio pronunciadas, te- mos tendéncia pera coneluir que sio ditas de cor, de forma maquinal e destituida de significado, como se em nada se relacionassem com as formas de vida, como se, embora utilizadas, 0 fossem fora do contexto da vida. Caso atendamos tio 36 Aquilo que dizem — a acei- tagio da morte, a troga dirigida ao casamento, que & porém aceite, uma vez que temos de nos acomadar & nossa sorte —ficilmente nos sentirfames fentados a delinear um quadro idilico, o de ums forma de vida na. qual se manteriam inadulteradas as atitudes antigas, simples mas saudaveis, A verdade encontra-se no meio temo: a acentuada permanéneia das antigas formas de linguagem nao constitui sinal da coatinuacio e per- ‘sisténoia da antiga tradiedo, porém essa tradi¢o ndo morreu completamente. A ela se recorre na qualidade de referéncia ainda fidedigna, num munio dificilmente compreensivel. Os aforismos’ constituem uma espécie de consolagio: . Os bébés devem chorar durante 0 baptizado, porque dé sorte; 0 dia do naccimento ¢ as feigdes do’ babé esto na base de uma série de rimas supersticiosas, tais como , até & espera do funeral de um’ viinho 20 Porto do comitério, para lhe eprestar as tiltimas hon. " os «Buss +» ou «Odd Fellows itemos ainda o costume de mandar aos amigos postais humoristicos quando a familia vai & praia, costume que tem. uns cinquenta anos; essas erespeitiveis» Ga milias das classes proletinias normalmente considera. 1 Regimento de Kent, * Sociedade secreta, no género da Maconarla. 40 iam esse tipo de postais escandalosos, mas, porque esto em férias, resolvem divertir-se, e mandam aos amigos alguns desses postais, representando sogras ou policias muito gordos, homenzinhos mindsculos com mulheres enormes, infinitas garrafas de cerveja ou penicos de um humor & base da bebedeira ou da retrete que se mantém estranhamente inalteravel. Em consequéncia do que ficou exposto, os novos meios de comunicagio que a elas se dirigem nio tém~ conseguido afectar grandemente as classas proletarias, sobretudo se tivermos em conta a vastidio e expansio desses novos meios de comunicacio. As referéncias as evastas massas anénimas e suas Teacgdes amortecidas> aio talvez proféticas, e mais nada. Pois até hoje as classes proletarias nao foram de modo algum tio gra- vemente afectadas, uma vez que nem sequer prestam grande atencio a esses meios de comunicagio; vivem de outra forma, intuitivamente, verbalmente, de acordo com antigos habitos, inspirando-se no mito, no aforismo e no ritual. H isso que os salva daquilo que ha de pior nos actuais meios de comunicacio de message foram, nalguns aspectos, afectados pelas condigses vida moderna, foram-no nos pontos fracos, em pontos que a antiga tradigao tornava vulneraveis. B. LAR, DOCE LAR, Quanto mais atentamente consideramos a vida das classes proletrias, ¢ tentamos compreender o que iA de essencial nas atitudes que assumem, mais nos salta @ vista que ease elemento essencial consiste mum son- tido do pessoal, do conereto, do local: dai a impor- ténoia das ideias de familia ¢ de bairro. Hsses factores Permanecem imutaveis, se bem que sejam combatidos or todos os lados, ¢ talvez por essa mesma razio. Encontramos frequentemente, nas revistas que se dirigem as raparigas e as donas de casa das classes proletirias, a palavra , (quase nunea se fala em aborto, acto que é geralmente ‘condenado), «pecado» & por em perigo o préptio casa- mento, cometendo adultério com outro homem ou mu- lher, «pecado> 6 desfazer 0 casamento de outra pessoa, 1B pois epecador o acto que atenta contra a ideia do lar e da familia, contra a nogio da importancia de >camanter o lar». Tudo o que vem do exterior é arriscado 'e perigoso e $6 no lar nos podemos sentir em segu- ‘wanga: de todas as frases de boas-vindas, 2 mais cor- dial & «faca como se estivesse om sta casa». Os membros das classes proletérias tém um horror tradicional ao asilo dos velhos, por varias razées, muitas das quais validas, sendo a principal delas um’ sentido de que a qualidade da vida do lar é tinica ¢ inigualével. A vidwa prefere ematar-se a trabalhar» como mulher @ diag, a colocar os seus filhos num bom orfanato onde Yhes arranjam lugar. Se essa mulher morrer, a fami- lia, que até af pouco ou nada fizera para a ajudar, © ‘eujos membros podem no estar nada interessados em tomar conta de mais uma erianga, repartem esses ‘eriangas entre si, encarregando-se delas. Quando o meu pal morreu, a minha mae ficou com trés filhos, de lum, trés e cinco anos; morreu por sua vez depois de cinco anos de vida durissima, e ainda me lembro de uma tia desvonhecida, que vivia longe, ter sugerido ‘que choje em dia, os orfanatos esto muito melhores». ‘Mas no conveneeu ninguém; cada um de nés foi viver ‘para casa de um dos membros da familia, todos mais pobres do que a tal tia. 42 _ 8 este sentido-da qualidade da vida do lar que 44 origem & conviegio de que essa vida tem de ser resguar- dada dos estranhos. Os vizinhos sio «da nossa jaias © esto prontos a ajudar-nos em caso de necessidade, mas & sabido que so também bisbilhoteirs, ¢ talvex mal-intencionados. «Que é que os vizinhos hio-de pen sar?> Pensam geralmente multo mais do que aquilo que realmente “aconteceu; a hisbilhotice pode nem sempre ser mal-intencionada, mas é por vezes incons- ‘cientemente brutal. Os vizinhos ouvem talvez tudo o que ee passa ma casa, porque as paredes sio frageis, mas temos de «viver & porta fechadas, «viver a nossa. vida», «meternos na nossa vida» —ou seja, ma dos membros da nossa familia mais chegada, que inclui 0s filhos ¢ filhas casados ¢ suas familias, que habitam geralmente em ruas proximas, sendo também da nossa conta_a vida dos nossos amigos mais intimos, aqueles que tém connosco suficiente confianea para nos virem visitar sem convite. E agradével estar em boas rela- Ges com os vizinhos, mas os vizinhos no hao-de sestar sempre metidos na nossa casa»: se a vizinha se mostrar muito atrevida, prooiso «pla no seu lugar». As cortinas de renda que tapam a metade de- baixo da janela tiram também quase todo o sol A casa, mas impedem que se veja 0 que se passa 14 dentro; os parapeitos das janelas e asolcira da porta sio esfre- gados todas as semanas até acabarem por ficar amare lecidos, assim demonstrando 4 toda a gente que mora nessa casa uma familia respeitdvel, que «faz uma lim- pera. fundo> uma vex por semana. ‘Dentro de casa nao encontramos jé a tradicional aspidistra, pois as preferéneias vio agora para os quadros que representam um rapazinho do campo @ comer cerejas, uma gentil menina abrindo @ gaia © se- gurando-a nas pontas dos dedos, ou uma rapariga de ‘eapeline levando & trela dois galgos russos ott um lobo de Alsécia. As mobilias de mogno que caracterizavam antigamente esses interiores vo sendo substituidas a Poueo e poueo por mobilias modernas de qualidade muito 48 inferior, recobertas de vernizes baratos; estio também na moda os bibelots de plastico colorido, as latas de bis- coitos enfeitadas com cromos ¢ as gaiolas de passaros. ‘Essag modas ndo se reduzem a uma cimples imitagio daquilo que fazem os vizinhos; sio objectos que contri- ‘buem para manter o3 valores domésticos, valores ricos ¢ importantes. Podemos ver em muitas casas pié-fabri- eadas panelas de vitrais coloridos, ligados a chumbo, colocadas a expensas do locatrio; mas casas antigas, ‘0s parapeitos largos eram enfeitados com vasos de nar- isos de cores vivas, ou de gerinios ainda mais berran- tes, que davam & casa um toque colorido. Falando por experiéneia pessoal, pois habitei numa dessas casas durante muitos anos, posso dizer que uma ‘boa, , preocupando-se ralmente mais com a manutencio da lareira do que com @ compra de roupa interior de ld de boa qualidade: © fogo esta a vista, todos 0 podem gozar. «A. boa mesa> é também importante, mas uma mesa forecida com grande abundancia de vituaihas, mais do que com alimentos saudaveis. A maior parte das familias consome menos leite do que seria recomen- divel, ¢ as saladas nio sio muito apreciadas. Ha toda uma. ‘série de mitos e comportamentos relatives & comida, sendo alguns deles sensatos, outros despro- 4 Uma corea equivate a cerca do 10500 na nossa mona. 46 vidos de fumdamento. A ccomida caseiray 6 sempre a melhor, e a comida de café est quase sempre estragada. Os donos das padarias exploram essa crenga, escre- wendo ma montra «pao ¢ bolos caseiros», 0 que faz aumentar as vendas; de resto, o letreiro diz geralmente a verdade, se bem que esse ‘pio e eases bolos sejam agora cozidos no forno eléctrico, e nio no forno de Jenha que outrora existia na cozinha da familia, nos fundos da loja. A desconfianga em relagio & comida de café era tanto maior quanto geralmente essa comida se encontrava fora do alcance da maior parte das bol- sas; essa desconfianca foi porém transferida para a comida das cantinas de trabathadores. 0 marido quei- xa-se de que a comida da cantina no tom esubstincia», © mulher tem de arranjar um lanche, gerakmente cons: tituido por uma pilha de sanduiches recheadas com seoisas saborosas>, cozinhando uma grande refeicio quente & noite. para 0 ch4, pelo menos a0 domingo. Os petiscos mais apreciados so geralmente as miudezas — morcela, pézinhos de poreo, figado, mio- od td zinhhas de vaca, tripas, chourtgo, dobrada (e, nos dias de festa, empadio de porco, prato muito apreciado) ; ou ainda os petiscos comprados na peixeria —eamarao, ovas, arenques e améijoas. Em nossa casa a comida era frugal durante os dias de semana; primaeiro almoco ‘tinbamos pio com motho de earne, ao almogo um gui- eado simples; & hora do cha as pessoas mais velhas ‘tinham algum petisco, mas sempre uma coisa barata. Durante o fim de semana comfamos & grande, como fora a gente, 2 esozpeio dos muito pobres,e a melhor refeigio era sempre o cha de domingo. As geis horas ‘© monte de lixo que se acumulava nas traseiras tinha sempre a0 de cima uma quantidade de lates vazias de salméo e compota de frutas. O ananis era de todas a mais apreciada, porque nesse periodo de fruta enlatada muito barata 0 anands custava apenas alguns pence Gizia-se que era nabo com sabor a ananis). Os posse- gos ¢ os alperces eram mais caros, e 66 apareciam quando havia festa—uma festa de anos, ou aquando da visita de parentes que morassem Jonge. O salmio era delicioso, sobretudo as fatias encarnadas do meio do peixe; ainda hoje as acho muito mais . O pai est4 integrado na vida do Jar, nfo é uma (pessoa. que passa todo o sett tempo muito longe de casa, @ ganhar o necessario para sustentar a familia; a mae € 0 coragio da casa, anda sempre atarefada e preo- ‘eupa-se quase exclusivamente com o que se passa na sua sala de estar (os quartos nio passam de lugares ‘onde se dorme). , como acontecia a mui- ‘tos outros, mas tinhamos muito pouco dinheiro. Nos primeiros anos da década de trinta.ia todas as sextas- -feiras para a bicha da mercearia comprar os géneros para a semana; a conta era geralmente de quinze ou Vinte xelins, mas aunea conseguiamos pagéla toda de ‘uma vez. Como adolescente complexado que era, tinha dmensa inveja das pessoas que pagavam a pronto ¢ ume vergonha terrivel de pronunoiar as palavras ri- ‘tuais: «A avé manda dizer qué Ihe paga agora cinco xelins the da o resto para a semana». Sei de uma mulher que, em anos mais reventes, fez a pouto e pouco uma divida de uma tibra * no taiho e, de repente, deu-se conta de quio importante essa divida era jé. ‘Como The era completamente émpossfvel arranjar wna Uibra assim do pé para a mio, deixou de comprar came. ‘Mas a familia estava registada nesse talho, e esse ano de 1952 foi um ano de escassez de came, pelo que the deve ter sido muito dificil eomprita noutro lado. E2- ‘tretanto o dono do talko estava disposto a combinar ‘com ela um pagamento suave, mas nio tornou a vo-la. Todo 0 lojista de bairro poderia contar outras histé- tias do mesmo género. ‘Esta situagio melhorou_gran- demente com o pleno emprego e a legislagio do Hstado + Cerca de quinhentos e cinquenta escutos na nossa mocda. 2 Uma libra—setenta escudos na nossa moeda actual — equivate a vinte xelins. 54 Sovial, mas no foi ainda completamente resolvida; os ‘habitos antigos so muito persistentes. Geralmente é a mie que gaverna sozinha.o dinheiro da casa, B por isso que 0s lojistas de bairro continuam @ compotir para baixar os pregos nem que seja 36 de Poucos tostdes, prontificando-se a aviar pequenas por- Ges disto ou daquilo; esas concessdes tém influéncia. sobre o volume das vendas. Uns tostées a mais ou a menos tum quilo de carne ‘patecom pouca coisa, mas podem transtomar as contas de uma semana; e a ‘compra de fato novo para o Tapaz que vai para a colb- ania de férias ou para a rapariga que tem de tomar pate no concerto da escola, o presente para o primo que vai casar, itrazem grandes problemas ao orgamento fami- lar. B certo que se pode Tecorrer aos olubes, ou as ‘lojas de panos ou de utilidades que, quer aceitem paga- mentos a prestagées quer no, levam um tostio mais barato do que os grandes armazéns do centro da cidade, @ fiam os seus artigos aos clientes, deixando estes um pequeno depésito. H claro que esses artigos sio de qua- lidade muito inferior & daqueles que custam um tostiio mais caro: os presentes sio uma fancaria e partem-se logo, o cromado é muito superficial ¢ risca-se. Os clubes, ou onganizacdes de venda a prestagées, entraram j4 mos hibitos, © os agentes de vendas que andam de casa em casa tém muito jeito para persuadir os clientes a eomprarem sempre mais e mais coisas, até que, em anuitos casos, as prestacdes semansis comecam a €xce- der as possibitidades financeiras da familia, Ora quando @ familia est mal de dinheiro, é a mae que se priva de ‘comida ou fato para equilibrar novamente as finangas. ‘A vida vivida no dia a dia, e 6 quase impossivel par uma quantia avuitada para quando surjam as dificuldades, “As vezes hi na chaminé uma eaixa de lata para meter as economias destinadas ao pa- gamento das férias, mas é raro. Ninguém tem conta no baneo, ou recebe ondenado quando esté doente, além do pouso que & dado pela Previdéncia, ou talves um pequeno subsidio do clube, mas essas somas nao 55 montam a quase nada. As tergas-feiras ainda hoje se véem & porta do correio as bichas das donas de casa que vio receber o abono de familia. Mas se 0 pai de familia adocee, surgem os problemas. 1 talver por isso ‘que subsiste o antigo habito de tratar o methor possivel ‘© homem que traz o dinheiro para casa, sobretudo ali- mentando-o bem; essa situacio de permanente insegu- ranca contribuiu ainda para fomentar o°hibito da entreajuda: doutra maneira ninguém se podia aguentar. Quando a mulher consegue esticar o dinheiro de que dispoe para tudo o que é necessirio, fica j& satisfeita; se the sobram alguns escudos para extras no fim da semana, sente-se feliz. Tal como om quase todos os outros aspectos da vida do lar, a mae é neste ponto a grande responsavel; 0 marido esté fora, a ganhar para todos. Quando chega @ casa, quer comer e ter as suas satisfagoes. B talvex pela mesma raz4o que a muther 6 também tradicional- mente responsivel pela contracepeio, tanto quanto eu sei. A maioria das familias ndo-catdlicas das classes proletérias praticam a contracepgio, que consideram indispensavel, mas tanto os maridos como as mulheres evitam ir 8s clinicas cspeciatizadas em contracepgio, a no ser em iitimo recurso. A. timidez. do marido ¢ uma erenca implicita de que 0 assunto & da competéncia da smulher empurram para cima desta a responsabilidade da contracepedo, pois o marido «tem mais em que pen- sare, A mulher ndo reccbeu qualquer preparagio pré- matrimonial, sabe apenas umas coisas que ouviu dizer a raparigas mais volhas ou a mulheres casadas, e que por vezes no 6 quase nada. Tem portanto de pedir consetho o mais depressa possivel, quando nio arris- ca-sea ter mais filhos do que aqueles que ela e seu marido desejam. Geraimente indicam-the apenas o coitus interruptus, o pessario e 0 contraceptive mas- culino, Como os maridos quase sempre so opéem & ‘utilizagio deste dltimo — tira todo o prazer» —e ela tem muitas vezes vergonha de ir comprar pessétios ou dispositivos masculinos, que ainda por cima sio caros, 56 © método geralmente empregado 6 0 do coitus inter- ruptus. ‘Mas a utilizago de quaisquer destes métodos requer uma diseiplina rigida, um grau de competéncia ¢ per- sisténcia que falta a muitas mutheres. Hsta esqueco-se ‘ou «perde a cabecar, 0 contraceptive masculine era barato e rebenta, ou o marido vem alegre do clube © néo olha a precaugies. Do que resulta que quase todos os filhos depois dos dois primeiros nfo fo- ram desejados. Na pequena burguesia, o filho néo Mesejado nasce geralmente quando os pais andam perto dos quarenta, ou pelo menos assim 9 creio. O casal teve dois ou trés'fithos entre as vinte e tal e os trinta e ‘poueos «nos, utilizando um método contraceptivo eficaz. Corea dos quarenta, sentem-se seguros e descuidam-se nas precaugdes, Nag classes proletarias, ag coisas pas- sam-se de forma diferente: a menos que haja aborto, © primeiro filho nio-desejado nasce geralmente um ou dois anos depois dos outros. E quase sempre accite com filosofia: «afinal para que é que as pessoas se casam?» A aceltacéo & filoséfica, mas nio 6 senti- mental: 403 mitidos dio trabaihoss, 0 trabalho au- menta ¢ as disponibilidades diminuem. Mas essas crian- as so tratadas com os mesmos cuidados e carinho que a mie dispensara aos primeiros. evidente que a mie do proletariado envelhece cedo: aos trinta, depois de ter tido dois ou trés filhos, ‘perdeu quase todos os seus atractivos, ¢ entre os trinta, € cinco © os quarenta toma-se nessa figura informe a que a familia d& 0 nome de

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