Você está na página 1de 4

resenhas 233

titui um subsídio importante que deve


ser utilizado por especialistas na área,
formuladores de políticas públicas e ges-
tores envolvidos com o desempenho de
um trabalho policial mais afinado com as
exigências de um mandato cada vez mais
complexo nas sociedades democráticas
contemporâneas.

GONÇALVES, Marco Antonio. 2008. O real


imaginado: etnografia, cinema e surrealismo
em Jean Rouch. Rio de Janeiro: Topbooks.
239 pp.

Eliska Altmann
Professora adjunta do departamento de Letras
e Ciências Sociais da UFRRJ

“Por que não?” parece uma boa pergunta


introdutória para uma série de inda-
gações despertadas a partir da leitura
do livro O real imaginado: etnografia,
cinema e surrealismo em Jean Rouch, de
Marco Antonio Gonçalves. Homônimo
do navio (em francês, “Pourquoi pas?”)
navegado no início do século passado
pelo pai explorador do futuro antropólo-
go-cineasta, a interrogação parece não
servir somente à obra de Jean Rouch, mas
ao fazer antropológico-cinematográfico
em geral. Nesse sentido, outras inda-
gações se seguiriam. Por que não fazer
antropologia por intermédio de imagens?
Por que não inventar o outro como sujeito
em vez de objeto? Por que não colocar o
antropólogo na posição do observado,
invertendo certas posturas colonialistas
da disciplina? Por que não questionar
a cientificidade e a verdade antropoló-
gicas? Por que não buscar o outro em si
próprio? Por que não inverter, interagir,
ou mesmo hibridizar alteridades, como
as do nativo e do antropólogo? Por que
não tomar o real no nível da fabulação,
234 resenhas

ou melhor, do surreal? Enfim, por que não de autoridade etnográfica em função


extrair e construir “verdades” de “ficções” de uma intersubjetividade. Deste modo,
e vice-versa? Jean Rouch acaba por “autoconstruir ”
Sem querer trazer respostas definitivas um personagem de si juntamente com a
a essas e outras questões, Marco Antonio construção de outros personagens, crian-
disseca três dos 107 filmes realizados por do sua “etnoficção”. O que se privilegia
Jean Rouch entre 1947 e 2002. O recorte aqui é “a verdade do cinema e não a
em Os mestres loucos (1954), Eu, um ne- verdade no cinema”, explica o cineasta.
gro (1958) e Jaguar (1954, finalizado em Em outras palavras, são dois os pontos a
1967), que compõem a “trilogia migrató- compor o método fílmico-etnográfico rou-
ria” do antropólogo-cineasta, dá-se pelo chiano, assim como sua ética. O primeiro
fato de “os três filmes terem como foco é o que trata de fazer do objeto sujeito,
os nativos do Níger que experimentam ponto-chave da antropologia comparti-
a migração, seja na Costa do Ouro, atual lhada. O entrecruzamento proposto nessa
Gana, seja na Costa do Marfim. Foram perspectiva dessubjetiva o antropólogo
filmados com a mesma câmera, a velha em função de uma outra forma de sub-
Bell & Howell 16mm que restringia a jetivação, a saber, a ressubjetivação da
duração dos planos (não alcançavam outridade. O que se questiona, no caso,
mais do que 25 segundos) e a captação do é a hierarquização estabelecida por certa
som, que necessitava ser obtida através antropologia. O segundo ponto encontra-
de uma pós-produção”, explica o autor se no compromisso dessa antropologia
(:27). Indo mais além, nota-se que há uma compartilhada em mudar o foco de uma
ambiguidade insinuada nos três títulos a suposta verdade ou de um conhecimento
tratar, também, de outras espécies de mi- científico inquestionável para uma verda-
gração (ou reinvenção de si): a do próprio de fílmica, que compreende um sentido
Jean Rouch na África com seus sujeitos- de provisoriedade, ou seja, da construção
objetos; a do filme etnográfico e seus de uma verdade que se busca interpretar.
fatos sociais mimetizados; e, finalmente, A concepção de verdade, nesse sentido,
a da antropologia anticolonialista e sua está em sua possibilidade de construção
produção de verdades aparentes. É im- a partir do que é filmado, do que é provo-
perativo atentar, ainda, a importância da cado pela câmera. Valoriza-se, portanto, a
narração nos filmes que, como ferramenta construção de uma verdade fílmica, e não
para contornar problemas de sincronia seu estado bruto. Esse mesmo método
entre som e imagem, acaba por criar uma serviria à etnografia.
linguagem que torna indiscerníveis fron- Isso posto, “Filme-ritual e etnografia
teiras entre documentário e ficção. surrealista: os mestres loucos de Jean
De fato, de toda a obra de Jean Rouch, Rouch”, primeiro capítulo do livro, propõe,
poucos filmes foram realizados fora da a partir da recepção europeia, acadêmica
África, como o clássico do cinema-ver- e africana de Les maîtres fous, um debate
dade Chronique d’un été (1960), filmado sobre a alteridade referente às relações
em sua Paris natal. Nas experimentações nós/outros, nativo/antropólogo. Mais do
sobre etnografia imagética realizadas que isso, sugere-se a possibilidade de um
naquele continente, institui-se a deno- “devir-outro” concernente ao encontro
minada “antropologia compartilhada”, de duas entidades que não chegam a se
na qual o antropólogo literalmente tornar uma especular da outra, refletindo
põe-se em interação com o nativo – o um princípio construtivo e criativo da
outro – a ponto de desconstruir ideias mímesis em detrimento da mera imitação.
resenhas 235

Verifica-se, primeiramente, o não con- do outro é construído por suas próprias


trole em relação às imagens produzidas palavras, que desvelam verdades próprias
a partir de sua polêmica e controversa (ou essenciais). Nesse caso, na medida
recepção, motivada, sobretudo, pela pró- em que Oumarou Ganda se narra como
pria ambiguidade fílmica. Afinal, o ritual Edward G. Robinson, ele atualiza verda-
“selvagem” dos hauka representaria que des imaginadas “comme si” fosse outro.
sociedade: a africana, a dos britânicos, ou Logo, o que se expressa é uma potencia-
as duas ao mesmo tempo? Quem seriam lidade do falso inscrita na sinceridade,
os “mestres loucos”? A partir da consta- que está acima e além da realidade ou
tação de que o filme é uma “ritualização da ficção. Aqui percebemos não apenas
de um ritual”, analisa-se o sentido ético- uma condição do fazer fílmico, mas tam-
estético rouchiano, ancorado no método bém do fazer etnográfico, uma vez que
da antropologia compartilhada e de seu as verdades da etnografia e do filme são
cinéma vérité. O “surrealismo” dessa construídas a partir de palavras ditas pelo
estética ritual estaria na desestabilização outro em relação com o cineasta-antropó-
dos pares opostos realidade/ficção, ob- logo. Acontece, assim, uma fusão entre
jetividade/subjetividade provocada pelo etnografia e cinema, ambos construídos
descompasso entre imagem e som, ritual por imaginações e produtores de repre-
e narração, universo imagético do ritual sentações de outros em si próprios. Na
e densidade etnográfica textual. Longe medida em que “aponta para a dimensão
de ser meramente técnica e descritiva, do vivido, da experiência que se transmu-
a narração (ou os comentários) de Jean ta em imaginação de uma relação vivida”
Rouch sobre o ritual filmado implica um (:119), a sinceridade torna-se princípio
significado emocional, que, subjetivo, da percepção surrealista a pregar uma
acaba por destituir qualquer objetividade libertação tanto da arte quanto da vida,
proposta por parâmetros científicos. Tal uma realidade manifestada por meio da
descentramento – ilustrado pela “beleza imaginação. O risco que o antropólogo-
violenta” da irracional devoração do ca- cineasta pode experimentar orientado por
chorro narrada racionalmente pelo antro- tal método é o de sua “etnoficção” (pro-
pólogo-cineasta – parece compreender a posta ainda na década de 20 por Robert
estética surrealista geradora, justamente, Flaherty) comportar um híbrido que não
daquela recepção polêmica. satisfaça o rigor científico da antropologia
Sob o título “Ficção, imaginação e et- nem o cinema propriamente dito. Vale
nografia: a propósito de Eu, um negro”, o atentar, contudo, o entendimento de que
segundo capítulo aprofunda concepções a verdade encenada engendra um “devir-
sobre verdade e ficção no filme etnográfi- outro” a centrar um “perspectivismo” fun-
co/documentário. A partir de uma análise dado num faz-de-conta. Faz-se de conta,
de planos de Moi, un noir pautada, sobre- portanto, que o cinema é verdade, que o
tudo, nas falas dos personagens, Marco real é ficção, que o branco é negro, que o
Antonio examina a ambiguidade fílmica negro é branco, que “eu é outro”.
como reflexo da ambiguidade da reali- “Jaguar: etnobiografia ou ‘cinema et-
dade. Entendemos, então, a importância nográfico em primeira pessoa”, terceiro e
dada às falas, gravadas posteriormente último capítulo, discute mais detidamente
ao registro das imagens. A reconstituição o exercício da narração em Jean Rouch –
narrativa dos comentários e diálogos motor da simulação de si, da complexifi-
possibilita à palavra imaginada a criação cação da alteridade e da falsificação do
de verdades, ou seja, o mundo imaginado vivido. Jaguar, que conta a viagem de três
236 resenhas

amigos do Níger para a Costa do Ouro, Ao reescrever essas experiências, Mar-


representa a experiência de ser outro não co Antonio estabelece uma espécie de
somente quando se está em outro lugar, “etnodiálogo” com Jean Rouch, seus per-
mas em seu recontar. Representando-se sonagens e etnografias fílmicas, trazendo
na condição de um jaguar – que, além à luz uma narrativa que busca traduzir
do carro inglês, simboliza, no contexto problemáticas essenciais da antropologia
colonial britânico, o homem moderno, para aqueles que pretendem pensá-la e
sedutor, na moda e urbano – Damouré representá-la de forma criativa.
reconta esse “devir-outro”. Filmado em
1954, mesmo ano em que Os mestres
loucos foi rodado, Jaguar foi finalizado 13
anos depois. Assim sendo, o recontar da MATHIEU, Nicole-Claude (org.). 2007. Une
aventura migratória acaba por pressupor maison sans fille est une maison morte: la
um deslocamento no tempo, quando o personne et le genre en sociétés matrili-
outro já é mesmo outro, mas se faz revivido néaires et/ou uxorilocales. 503 páginas.
em sua memória fabuladora. De fato, a Paris: Maison des Sciences de L’Homme.
narração gravada em 1957, improvisada
em cima das imagens – e abrindo cami-
nho para a realização de Eu, um negro –, Vanessa Lea
evidencia a dialética do cinema-verdade UNICAMP
rouchiano: a da verdade da encenação
e vice-versa. Princípio nietzschiano de
desvelar a essência por meio da aparência, A coletânea organizada por Nicole-
ou deleuziano da falsificação potencia- Claude Mathieu contém uma riqueza
lizada, tal dialética suspende qualquer de informações que contribui para nosso
julgamento sobre o eu, o outro e o real. entendimento das relações de gênero em
Da perspectiva do migrante, a narração outros espaços e tempos, sendo relevante
pode ser entendida como tradução no não somente para aqueles interessados
sentido de uma nova autointerpretação apenas na questão da matrilinearidade e
sobre a vivência em realidade adversa. da uxorilocalidade mas também, de forma
Damouré, Illo e Lam experimentam a mi- mais ampla, na de gênero.
gração sazonal nigeriana, que implica ne- O próprio título do livro aponta para a
cessariamente retorno a casa, ao originário. heterogeneidade do material analisado.
Eles experimentam, portanto, um “quase Matrilinearidade é um termo que remete
tornar-se outro no estrangeiro” (:184). O à organização social e à filiação, sendo
processo de aventurar-se no desconhecido, que a questão da descendência (seja
que origina uma “ex-centricidade” do eu (e ela matrilinear, patrilinear ou dupla) é
do outro), é utilizado por Jean Rouch não uma das mais polêmicas na história da
somente em seu cinema, sem roteiro pré- antropologia. Além disso, várias das so-
vio, mas em sua antropologia e etnografia, ciedades discutidas foram interpretadas
ambas pautadas em encontros que geram de formas conflitantes de acordo com o
interpretações e consequentes “invenções respectivo pesquisador. A uxorilocalidade
de si”. Aqui, uma vez mais, a verdade nada constitui outra ordem de realidade: uma
tem de objetiva, sendo olhada e construída regra residencial, constatável empirica-
pela objetiva da câmera, capaz de ver o mente, que obriga o marido a transferir-se
que os olhos não veem – homenagem ao para a casa da esposa e de seus parentes
kino-pravda de Dziga Vertov. corresidentes ao casar. O que matrilinea-

Você também pode gostar