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mário pedrosa
UNDO, HOMEM,
ARTE EM CRISE
7
Mundo, Homem Arte em Crise

.. •
Coleção Debates
Dirigida por J. Guinsburg

mário pedrosa
MUNDO, HOMEM,
ARTE EM CRISE
ú Organização
{\
A RACY AMARAL

Equi pe de Reali zação- Revisão: Mary Amazonas Leite de Barros; Prod ução:
Ricardo W. Neves e Raquel Fernandes Abranches.
Dados Internacionais de Cata logação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasi l)

Pedrosa, Mário
Mundo, homem, arte em crise/ Mário Pedrosa ;
organização Aracy AmaraL -- São Paulo :
Perspectiva, 2007. -- (Debates; 106 / di rigida
por J. Guinsburg)

1' reimpr. da 2. ed. de 1986.


Bibliografia
ISBN 978-85-273-0369-9
1. Arte - Ensaios 2. Crítica de arte I. Amaral,
Aracy. II. Guinsburg, J. Ili. Título. IV. Série.

07-3707 CDD-709

Índices para catálogo sistemático:


1. Arte : Avali ação críti ca 709 SUMARIO
PRIMEIRA PARTE
Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
1. Problemática da Sensibilidade ( 1959) - I . . . . . 11
2. Problemática da Sensibilidade (19 59) - II . . . . 17
3. Considerações Inatuais (1959) . . . . . . . . . . . . . . 23
2ª edição - !ª reimpressão 4. O Paradoxo Concretista (1959) . . . . . . . . . . . . 25
5. Crítica da Crítica (1959) . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
6. Do "Informal" e seus Equívocos (1959) . . . . 33
Direitos resei-vados em língua portuguesa à (1
7. Da Abstração à Auto-Expressão (1959) . . . . . . 35
EDITORA PERSPECT IVAS.A. 8. Internacional - Regional ( 1960) . . . . . . . . . . . 49
9. Arte, Linguagem Internacional (1960) . . . . . . . 53
Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025 10~ Arte e Invenção (1960) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
O1401-000 - São Paulo - SP- Brasil 11 . Das Formas Significantes à Lógica da Expressão
Telefax: (0--11 ) 3885-8388 (1960) ......................... ·... .... ·• 61
www.editoraperspect iva.com .br
2007 5
12. Ciência e Arte, Vasos Comunicantes (1960) 73
13. Veneza: Feira e Política das Artes (1966) 81
14. Crise do Condicionamento Artístico (1966) 87
15. Vicissitudes do Artista Soviético (1966) 93
16 . Opinião . . . Opinião . . . Opinião (1966) . . . . 99
17. Arte e Burocracia (1967) . . . .. . . . .. .. .. . . . 103
18. O "Bicho-da-Seda" na Produção em Massa (1967) 109
19. Consumo de Arte na Sociedade Soviética (1967) 115
20. Especulações Estéticas: 1. O Conflito entre o
"Dizer" . e o "Exprimir" ( 1967) . . . . . . . . . . . . 121
21. Especulações Estéticas: II. Forma e Informa-
ção (1967) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
22. Especulações Estéticas: III. Lance Final (1967) 133
23. Crise da Arte-Poesia e Comunicação (1967) . . 141
24. A Passagem do Verbal ao Visual (1967) . . . . . 147
25. Um Passeio pelas Caixas no Passado (1967) . . 153
26. Crise ou Revolução do Objeto (1967) . . . . . . 159
27. Da Dissolução do Objeto ao Vanguardismo Bra-
sileiro (1967) . . . . . . . . . . .. . . .. . . . .. .. . . .. . 163
28. Do Purismo da Bauhaus à Aldeia Global (1967) 169
29. Quinquilharia e Pop'Art (1967) . . . . . . . . . . . . . 175
30. Surrealismo Ontem, Super-Realidade Hoje (1967) 181
31. Bienal e Participação ... do Povo (1967) . . . . 187
32. Estrutura Genética: Chagall etc. SegalL (1968) 193
33. A Revolução nas Artes - I ( 1967) . . . . . . . . . 199
34. A Revolução nas Artes - II (1967) . . . . . . 209
35. Mundo em Crise, Homem em Crise, Arte em
Crise (1967) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215
36. Arte dos Caduceus, Arte Negra, Artistas de
Hoje (1968) . . . . . . . . . . . .. . . . . . .. . . . . . . . . . 221
37. Da Arte Leiga à Desmistificação Cultural (1968) 227 PREFACIO
38. Do Porco Empalhado ou os Critérios da Críti-
ca (1968) . . .. .. . . . . . .. . ... . . . . . . . . . . . . . . . 231 Esta coletânea de ensaios abrange a década significa-
39. O Manifesto pela Arte Total de Pierre Restany tiva de 60, com a exceção do ·ensaio teórico "Da Problemá-
(1968) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237 tica da sensibilidade" que é de 1959, seguido de outros da
40. Entre a Pesquisa e o Meio Próprio de Expressão 241 mesma data, e versando sobre temas de igual enfoque crítico.
41. Arte e Revolução (1967) . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245 É a época da polêmica dos diversos abstracionismos, que se
prolonga por boa parte daquela década. Esses ensaios re-
fletem a ·busca da superação da mesma problemática, em
SEGUNDA PARTE que a Arte ainda é tratada sobretudo sob o ponto de vista
dialético de forma e conteúdo. Busca-se aprofundar o con-
42. A Bienal de Cá para Lá (1970) . . . . . . . . . . . . 251 ceito de forma para destacá-la em si mesma, em busca de
43 . A Primeira Bienal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259 sua lógica interna. Está-se então no auge da fase que carac-
44 . Entre a Semana e as Bienais . . . . . . . . . . . . . . . . 269 terizou e definiu o que passou à história como "arte mo-
45. Às Vésperas da Bienal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281 derna". Teórica e historicamente trata-se de distinguir da
46. Época das Bienais ............. . ..... . ... ·. . 287 forma abstrata rigorosa a ganga da expressividade ("Das
4 7. Por Dentro e Por Fora das Bienais . . . . . . . . . . 299 formas significantes à lógica da expressão").
48. Mário Pedrosa: Dados Biográficos . . . . . . . . . . 311 O "tachismo" e o "informal" alcançam o apogeu do
desenvolvimento. Pouco a pouco a problemática da arte

6 7
pura esgota-se, e a polêmica crítica começa a invadir outros
campos. O informal transforma-se em mero informalismo,
e o subjetivismo expressivo esbarra no nada solipsista. Não
há mais nada a extrair nem do abstracionisino geométrico
ou do rigor nem das várias designações cada vez menos
precisas ou realmente significantes - "lírico", "expressio-
nista" etc. A arte, dita moderna, arqueja.
Em busca das causas desta crise, que já não é mais
puramente estética, dois enfoques .surgem - o da função
comunicativa da Arte e o da sua função social. Do primeiro
enfoque se vai desenvolver uma nova problemática: a Arte
como linguagem e como reflexo da nova Teoria da Infor-
mação; do segundo enfoque deriva a necessidade de reco-
locar em todo seu vigor o velho problema das raízes sociais
da Arte em face do desenvolvimento da sociedade de con-
sumo pelo consumo determinado pelo "neocapitalismo" ou
pelo "alto capitalismo" das metrópoles mundiais.
:É reflexo dessas complexas questões que vão alterar
completamente o panorama das artes de nosso tempo, a
partir dos meados da década coberta por este livro, o ensaio
"Crise do condicionamento artístico". Também reflete a
crise estético-social no plano da comunicação e da linguagem
outro ensaio como o das '·Especulações Estéticas".
Como parte histórica dessa crise em que se consumiu
a nossa Arte Moderna, que acaba agora de morrer fisica-
mente com a morte de Picasso, conclui o livro A Bienal de PRIMEIRA PARTE
cá para lá. A tentativa por parte do autor, de explicar as
razões de estarem esses artigos e ensaios enfechados em
volume não significa, que atribua a eles um valor super-
-histórico ou definitivo. Antes, quer considerá-los como do-
cumentos de uma época passíveis talvez de interesse como
testemunho da passagem por ela de um "crítico", nem pior
nem melhor que os outros mas que participou ou ainda par-
ticipa, apesar da idade, das vicissitudes de seu tempo, no
Brasil e no estrangeiro. ·

Mário Pedrosa
Santiago, 20 de abril, 1972

8
1. PROBLEMÁTICA DA SENSIBILIDADE - I
O problema da sensibilidade em Arte, como em tudo
o mais, é extremamente delicado, pois as mais das vezes
se reduz a um jogo de palavras ou a apreciações puramente
subjetivas que fogem a qualquer controle ou verificação
menos frouxa. Por -isso mesmo Croce, quando tratava das
velhas categorias estéticas como o "belo", o "trágico", o
"sublime", costumava rir e replicar: "o sublime? pois é tudo
que se queira" .1 ·
A).go parecido se passa quando se ouve dizer: fulano
tem sensibilidade; sicrano não tem. Na maioria das vezes
quando se tenta cercar a sentença de mais perto, a nada
se chega de concreto e positivo.
Cada qual põe no conceito de sensibilidade o que quer;
o que lhe agrada. "lngres não tem sensibilidade; Delacroix
tem demais~ E pergunte-se por que. Verifica-se que tudo
1. B. Croce.

11
,

se resume em que o sujeito não gosta do desenho linear ao passo que o segundo, conforme ainda nos conta o histo-
de lngres e adora as figuras exóticas e coloridas do segundo; riador já• citado, "por mais de vinte anos explorara como
/ quer dizer, ele é que não é sensível à finura ou à delicadeza mina inesgotável os seus croquis e aquarelas da África".
da linha, pois só é tocado pela eloqüência ou a vivacidade A maneira de trabalhar desse "romântico", violento e im-
das cores. Mas se se vai mais adiante, procurando conhecer pulsivo era toda cerebral; ele mesmo o confessa: "Em ma-
o temperamento ou a vida dos dois protagonistas, se chega téria de composições já inteiramente decididas e perfeita-
a conclusões surpreendentes. ·Assim, Ingres, antes d,e ser mente prontas para a execução, tenho trabalho para duas
o pontífice do academismo conservador do neoclassicismo existências humanas, e quanto aos projetos de toda espécie,
em face da revolta romântica com Delacroix, pertenceu quer dizer, de matéria .própria a ocupar o espírito e a mão,
também à "oposição", pois durante a sua moradia na Itália, tenho para quatrocentos anos''.4 Não s6 era ele homem
conforme nos informa Louis Réau, na grande História da muito culto, leitor assíduo e munido de idéias gerais, como
Arte, de André Michel, "o futuro grão-sacerdote do culto na qualidade de artista era bem mais ''intelectual" do que
de Rafael se havia deixado seduzir pelos pré-rafaelistas: logres. Este, que era realmente acadêmico nas grandes com-
tomara gosto pela verdez algo ácida dos Primitivos: Filippo posições, fracassadas pelo espírito de alegoria e de imitação
Lippi e Pisanello". O historiador nos informa ainda que de R:afael que o animava, que era opaco às cores, dava no
''seus pequenos quadros históricos, pintados à maneira das entanto mostra de uma sensibilidade a toda prova nas figu-
velhas iluminuras, faziam com que fosse ele tratado de ras isoladas, nos retratos, onde, encontrando-se a si mesmo,
gótico (sic) e até mesmo de chinês pelos críticos presos a podia entregar-se ao desenho e através deste revelar a quali-
David".2 Era em suma uma figura suspeita para a ortodoxia dade incomparavelmente sensível de sua linha. O outro,
neoclássica. Meridional ele mesmo, dava-se romanticamente, porém, todo temperamento, era apesar disso um· cerebral,
como se sabe, ao seu famoso violino, acompanhado pela paradoxalmente canhestro no desenho e, mais paradoxal- .
noiva com quem depois chegou a romper por causa. . . de mente ainda, sensível às cores, cujos acordes violentos tinham
pintura. E não sem motivo uma das primeiras críticas que a sua preferência.
lhe é feita em França é a de "querer fazer a pintura retro- O exemplo histórico acima pode não ser perfeito, mas
gradar quatro séculos, à maneira de Jean de Bruges". No tem a vantagem de ter sido pegado ao acaso, ao impulso
entanto, esse homem, com a morte de David, é proclamado da primeira idéia. Há sem dúvida pintura "sensível" e pin-
o papa do neoclassicismo em guerra aberta aos novos bár- tura "não-sensível" ou mais "intelectual". O processo de
baros, os românticos que, contra a Grécia e Roma, levan- criação em ambas é porém no fundo idêntico, e nem sempre
taram o pavilhão medieval. ou quase nunca o pintor da primeira é mais "quente", mais
Delacroix, por seu lado, descendia de família impor- temperamental, romântico ou de maior sensibilidade que o
tante, de cujo meio sorveu um desprezo soberano pelas da segunda. Quem tem . mais ''sensibilidade", Rafael ou
coisas de seu tempo. O espetáculo de rua o chocava. Tiziano? Quem é mais frio, Monet ou Cézanne? Essas per-
· O único quadro dele sobre o episódio mais ou menos guntas. chocam, mas é por causa do recuo histórico, pois
contemporâneo - A liberdade guiando o povo - é obra na verdade representam com exatidão a tola querela, mas
convencional, alegórica, cheia de literatura, mera ilustração tão persistente e que ainda hoje rola em certos círculos de
de uns versos medíocres do medíocre Auguste Barbier. Aliás, vanguarda, entre adeptos de um abstracionismo de formas
ele tinha mais curiosidade pelos livros do que pela vida imprecisas, ageométricas, de mancl).as coloridas e um abs-
mesma. E daí é que a maioria de suas composições consta tracionismo de formas geométricas regulares e contornos
de temas tirados de livros de Dante, Byron, Shakespeare, nítidos. Enquanto os últimos são acusados de falta de sensi-
Walter Scott. Ele mesmo escrevia: "Não tenho nenhuma bilidade, os outros o são de fazer uma pintura apenas sen-
simpatia pelo tempo presente; as idéias que apaixonam os sível, de baixo nível mental.
meus contemporâneos me deixam absolutamente frio: todas Num esforço para precisar melhor essa irritante que-
as minhas predileções vão para o passado".3 rela da sensibilidade na arte concreta e nos construtivistas,
A simpatia humana de lngres é mais evidente que a um jovem pintor parisiense assim me colocàra o problema:
do seu tempestuoso rival, como se pode averiguar pelos "A sensibilidade deve ser motriz, ou não será."
admiráveis retratos que nos deixou de contemporâneos seus, Sim, a sensibilidade é motriz em tudo o que o homem
faz, em tudo sobre_que age em tudo o que descobre pela
2. L. Réau - A.M.
3. Delacroix - Citado por Réau . 4. Delacroix - citado por L. Réau.

12 13
imaginação criadora. Em todos os domínios, inclusive nos eia desconhecida, uma organização simbólica nova, pe~c~p-
da política e da ciência. Não é apanágio só dos artistas. tiva ou imaginária. Como não é nunca uma propostçao,
Os cientistas mais fecundos têm de fazer prova de muita seja qual for a sua cla~sificação por ~sc?la, ~en~ência ou
sensibilidade, de muita finura intelectual e de muita imagi- estilo, o que ela nos da, para ser autentica, e se~pre do
nação inventiva quando, partindo de suas experiências, que domínio das formas intuitivas do pensar e do sentir .. Outro
jamais são fruto de simples cadeia lógica de argumentos, traço . distintivo seu é que jamais aquelas formas !tyeram
conseguem formular hipóteses, derrubar teorias, desvendar existência prévia à obra; do contrário, iríamos _admitir que
horizontes. Sem essa espécie de sensibilidade não há tles- os criadores gregos, como condição de ter podido escr~ver
cobertas nem teorias possíveis. Por isso mesmo a indagação as suas tragédias, tinham ·experimentado dentro . de ,st os
de se uma obra, sobretudo artística - de qualidade, já se sentimentos dos seus heróis - :e.dipo ou Electra, Anttgona
vê, exprime ou não uma sensibilidade, a sensibilidade de ou Jocasta - o mesmo se passando COJD Shakespeare ou:
seu criador, nos parece absurda. Dante ou Goethe ou Racine em relação aos tipos que
Por mais que o hábito do racionalismo extrínseco nos criaram. Aqui no Brasil se costuma citar como objeto . de
queira fazer crer possível um gesto, uma ação, um pensa- grande admiração o fato de Euclides da Cunha t~r podido
mento resultante de puro esforço cerebral neutro, adstrito descrever de modo magistral um "estouro de botada" que
às regras do encadeamento dedutivo, a fatalidade biológica nunca viu. .
a reação sensorial primeira, a força organizaclora espontâ- O que o artista faz não é ~s~ conseqüên~ia de algum
nea do aparelho perceptivo, o despertar da memória sensí- impulso irreprimível para exprurur o que vat por dentro
vel, a · interação, afinal, de todo o complexo psíquico posto dele· isso é elemento importante na formação da persona-
em movimento não permitem essa separação absoluta entre lidade · mas se trata de ato psíquico muito anterior ao ato
o processo lógico discursivo em busca de uma conclusão estétic~ criador. A vontacle de comunicar é, sem dúvjda,
abstrata e transferível e o complexo emotivo-subjetivo que é condição absoluta de todo ser vivo.
o ego. Não só o artista, mas o filósofo, o cientista, o políti- No entanto, não entra constitutivamente na fabricação
co também são seres motivados pela sensibilidade. Como da obra de arte, que se faz num .plano já ~uito ~~s al!o
todo fruto da atividade mental, a obra de arte participa da de complexidade intelectiva. A obra de arte e a ob1et1vaça?
nature-La simbólica do pensamento humano. Apenas a sua sensível ou imaginária de uma nova concepção, de um se1;1tt-
essência simbólica é bem distinta da do símbolo verbal mento que passa, assim, pela primeira v_e7;: ª. ser entend_tdo
discursivo; pelos homens, enriquecendo-1hes as v1venc1~. O artista
Este atinge a verdadeira neutralidade entre o sujeito
e a coisa por ele denotada, e isto é impossível na forma
apenas organizou para nós, para nos~? conhectm~nto, par~
nossa contemplação, uma forma-obJeto, · um ob1eto-sent1-
simbólica da Arte. Nesta não há um objeto prévio, anterior, mento um sentimento-imaginação. E esta forma se nos
que se traduza em signo simbólico; o objeto para o artista aprese~ta não como uma comunicação de algo preci~ que
é um valor emocional antes da realização da obra, mas existia e continua a existir lá fora, no mundo extenor ou
que se insere nesta e só nesta toma corpo. Assim, um nuni lugarzinho bem determinado do mundo interior do
sentimento se formaliza que não é particularizado no ar- artista mas como uma aparição que pára, com estrutura
tista que não pertence intrinsecamente a sua alma ou a acabada, e que se repete por inteiro e sempre de súbito, toda
seu temperamento. Na realidade, não exprime mesmo ne- vez que entramos em contato com ela. Su~anne ~nger,
nhum estado . de alma ou perturbação sentimental contin- no seu último livro Feeling and Form - defme admrravel-
gente que inipila o criador a dar-lhe forma. O artista, ao mente essa função precipuamente cognitiva dà obra de arte:
realizar a obra, não faz nenhuma comunicação· ao público "Formular as nossas concepções de sentimento e as nossas
do que se passa dentro dele, pois o contrário seria. equi- concepções da realidade visual, factual , e audível j~ntas''..
parar a forma artística a um sinal de tráfego que numa E . acrescenta que a obra de arte "nos da formas de ~g1-
estrada avisa da proximidade de uma curva. . nação e formas de sentimento inseparavelmente_; quer dizer,
O que a obra de arte exprime é algo de universal e · clarifica e organiza a intuição mesma. E é por isso que tem
permanente, · não expresso até então e que o espectador a força de uma revelação e inspira um sentimento de pro-
recebe e recolhe não como uma mensagem telegráfica ou funda satisfação intelectual, embora não manifeste nenhum
postal que o filho manda ao pai, o marido à mulher, o trabalho intelectual cQ_nsciente (raciocínio)'\
amigo ao amigo, um grupo a outro grupo, o governo ·aos
cidadãos etc. O que ela traz é uma formalização de vivên-

14 .15
2. PROBLEMÁTICA DA SENSIBILIDADE - II

Em qualquer criação artística, quer romântica quer


clássica, trate-se de uma pintura toda sensível, de formas
imprecisas, de cores fundidas, impregnada de profunda
subjetividade, ou de um quadro rigoroso de composição, de
contornos nítidos, formas geométricas · e delimitados con-
trastes de cores - seja de inspiração ·orgânica ou de inspi-
ração geométrica - matemática - chega-se sempre ao
mesmo resultado: uma unidade simbólica com sentido im-
plícito, de ordem sensível ou de ordem imaginária, e que
apreendemos de modo intuitivo, isto é, através de uma for-
ma que fatal e simultaneamente fere o nosso aparelho per-
ceptivo e o nosso poder intelectivo como toda revelação.
Há · toda uma hierarquia da realização artística, que
parte da menos "criada" das obras à de maior autonomia
criadora. No primeiro de.grau ela é mais uma projeção indi-
vidual, um ectoplasma que sai do ego subjetivo do artista,
ou um signo de comunicação direta e imediata com seu

17
referente bem localizado no complexo psíquico do autor Blanchot), o amigo de Hoelderlin que o foi visitar quando
para, no grau derradeiro de autonomia, explicitando enfim o poeta insano completava 75 anos, "a potência mágica
a sua essência, ser uma forma simbólica especial em que que a forma poética exercia sobre Hoelderlin era prodi-
o símbolo e a coisa, o referente ao fato público, o senti- giosa. Nunca vi dele um verso privado de sentido: obscuri-
mento e o signo jamais se separam, inextricavelmente entra-' dades, fraquezas, mas o sentido estava sempre vivo, e ele
nhados um no outro. Nessa escada, a sensibilidade é um escrevia ainda desses versos quando durante dias não se
elemento constante que atua do primeiro ao último degrau, podia tirar dele nada de razoáveJ."1.
mas que, se no momento inicial atua com força natural, A esquizofrenia, como se sabe, ao evoluir, leva à perda
como força bruta, em suas mudanças finais de estado é total da afetividade, e concomitantemente ao alheamento
energia canalizada ou pressentida, é mero sopro, calor ou completo de tudo e de todos. Nesses casos de gênios
ritmo discreto animador. Seguiria assim, num paralelismo transviados :a chama poética é de fulgor frio, quase veículo,
esclarecedor e próprio, a evolução histórica da linguagem. mero condutor neutro . da forma simbólica integralmente
Na obra de arte ela se vai cada vez mais formalizando, numa objetivada em si mesma, limpa de qualquer impureza ou
articulação de integridade de mais a mais independente do umidade subjetiva. De maneira inversa, como numa prova
sujeito, até alcançar, em sua virtualidade expressiva e sim- ne~tiva do mesmo fenômeno, Jaspers verificou, ao estudar
bólica, a própria inteligência com que muitas vezes se funde, o caso de Swedenborg, a permanência do arcabouço lógico
como acontece com os grandes mestres abstratos e con- da linguagem verbal discursiva: "Por mais específicas que
cretos, desde Kandinsky e o neoplasticismo. A linguagem sejam essas experiências patológicas inacessíveis a um ser
por seu lado, parte nas suas origens dos gritos e inter- normal, assim que os doentes falam delas, fazem-nos entrar
jeições expressivas, de amálgamas simbólicos significativos nas categorias gerais. Estas, quadros lógicos com'\!ncionais,
mal articulados, até a sua perfeita e cômoda articulação autônomos, não têm caráter normal ou anormal, não têm
final de função predominantemente conotativa e demons- mesmo valor psíquico, são um simples meio de comuni-
trativa, de resíduo emocional decrescente. A forma artística· cação. Eis o que explica que possa subsistir certa corres-
não pode ser identificada com a simples catarse emocional; pondência entre o edifício racional de um ser normal e as
a ·última é de origem natural, quase biofísica - uma moda- mensagens sobrenaturais que recebem esquizofrênicos do
lidade primária de auto~xpressão, (Kris) em nível psico- gênero de que falamos" (as narrativas sobrenaturais deli-
lógico absolutamente igua:1 ao da simples e rombuda per- rantes de Swedenborg).
cepção originária; a primeira é de pura origem espiritual. Assim, quer enquadrado em categorias lógicas, como
Assim, a obra das crianças é carregada de sensibilidade na visão branca do mundo sobrenatural de Swedenborg
em estado embrionário; a dos loucos é geralmente ditada quer emergindo vitorioso sobre a ruína do falar normal e
por uma sensibilidade explosiva ~rque precisamente nAu~ca do nexo lógico, como na forma poética e inteligível de
pôde desabrochar com a naturalidade de um ser organ1co Hoelderlin, o que fica sempre é um significado, uma sen-
e escorrer fluídica e ritmada. A dos primitivos populares sibilização que se adelgaça, que se transmuda em diáfana
de hoje vale pelo valor expressivo sensitivo que sai de todos inteligência, numa inteligência translúcida, desmateriali-
os seus poros. Mas há em todos esses criadores hipersen- , zada, de pura essência. Quando aos doentes de neurose
síveis um traço comum que os define: a inaptidão para recente ou ainda em vias de desenvolvimento, de se instalar
ultrapassar os limites da pura auto-expressão. Na criança à vontade no · invólucro corpóreo e cortar à consciência e
a obra está condicionada a seu próprio crescimento físico- · ao espírito as suas amarras sensoriais e subjetivas, o estado
-psíquico: ao chegar à adolescência e à puberdade, ela emocional deles os prende a desabafos de auto-expressão.
pára de ser artista ou, se continua, já se trata de outro ser; Nos outros, como nos primitivos populares em geral, o fenô-
é um novo artista que se inicia. Quanto aos doentes men- meno é o mesmo da criança: a obra não tem reservas dentro
tais ou mesmo loucos, é preciso separar os gênios que rom- de si mesma para motivar no criador novas concepções, isto
pem as barreiras e atingem através da obra a uma lucidez é, de aparência objetiva, como se estruturadas do lado de
vertiginosa e enigmática (ver os casos de Uccello, Van der fora, subjetivamente autônomas. Por isso mesmo, na maioria
Goes, Hoelderlin, Swedenborg, Goya, Strindberg, Van Gogh desses casos, quanto mais diretamente carregada de senti-
e alguns menos ilustres mas de idêntica significação, como mentos e paixões, mais tende a obra a ser episódica, sem
Pohl o serralheiro famoso de Prinzhorn e o nosso Rafael significação explicitante, nem para o criador nem para a
de Engenho de Dentro. Conforme nos conta Schwab, ( em
Strindberg et Van Gogh, de K. Jaspers, prefácio de Maurice ----

18 19
história da expenencia estétipa. Eis por que nos parece falta de sensibilidade. A mesma coisa em relação ao artista.
perigoso, ou pelo menos unilateral e no fundo infrutífero, No máximo podemos falar das qualidades sensíveis de uma
estarmos a medir o grau de ''sensibilidade" que aparece tela, em geral dadas pela escolha dos tons, pela maneira
numa obra, ou quanto da vida ou do drama do autor está de estender . as cores, pelas receitas de cozinha enfim da
contida nela; se assim fizermos, como critério para pesar-lhe "velha pintura", como diz Herbin. Os cubistas da primeira
o valor e a qualidade, o resultado será negativo. Daí a im- época, no afã de descobrir novas "qualidades sensíveis" na
portância da preocupação com o que se pode chamar de es- ausência das cores, aumentaram o repertório conhecido
tilo ou o dinamismo próprio da forma artística, em face de dos truques para achar uma boa "matéria", acrescentando
sua época, de seus tabus, de seus materiais e solicitações, o papel colado, areia, o trompe-l'oeil pela imitação de
pois só o estilo na obna nos permite, ao seguir-lhe o desen- diversos materiais, como madeira, papel de parede, metal,
volvimento apreender por fim, para além da obra de arte e gesso etc. Outrora as doçuras das cores atmosféricas, a
somente através dela, a verdadeira fisionomia do seu tempo, harmonização dos tons, as meias-tintas, os dégradés, a mono-
o sentido profundo de civilização em que medrou. cromia eram os velhos meios prediletos dos pintores para
Nesse sentido é superficial a acusação que se faz à arte a expressão de belos e finos sentimentos, sem falar nos
"abstrata" ou "concreta'' de hoje de ser · decorativa. Não é pródromos do Romantismo, no psicologismo das paisagens-
que a. acusação seja, a nosso ver, particularmente depre- -estados de alma. E por isso ainda há quem julgue do valor
ciativa, mas realmente não vai ao fundo das coisas. Com de um quadro, mesmo abstrato, mesmo concreto, exami-
efeito, esta arte não visa enfeitar a vida, mas antes har- nando-lhe a fatura; se esta não se faz visível, ou se é dada
monizá-la, arrancá-la de seu desespero e de suas con- quer pela violência quer pela regularidade e finura das
tradições trágicas. Ela visa interpretá-la em função do pinceladas, o quadro é morto, frio ou ruim. Se ·um claro-
mundo anatural, antinatural ou hipernatural criado pela -escuro cuidadoso não acentua os volumes; se um mode-
ciência e pela técnica e que a enquadra. Seu empenho con- lado carinhoso não amacia as superfícies como a uma
siste precisamente em acabar com a terrível dicotomia da epiderme, a pintura é pobre. Para muitos ainda, as cores
inteligência e da sensibilidade; em fundi-las de novo como planas, os aplat são indício de frieza. Não perdoam a
quando o homem tomou pela primeira vez consciência de omissão ou a despreocupação por uma linda "matéria".
seu destino e de seu ser à parte. O feroz dinamismo da Outros têm horror ao contraste violento de cores, e decre-
inteligência moderna devora o mundo, penetra no âmago do tam então ausência de sensibilidade no pintor. Ou só querem
átomo, desvenda as esferas longínquas, desmonta a: alma ver numa forma esculpida a modelagem, ou então a predo-
do homem e não pára na sua vontade dionisíaca de conhecer minância dos cheios, se não faz.em questão fechada apenas
e desmanchar. Por largos séculos dela dissociada, a sensi- de uma bela superfície lisa onde a luz passeie sem tropeços.
bilidade tende a deixar-se vencer, a deitar-se entretida com Para todos esses a noção de sensibilidade se limita à pri-
a próprila melancolia ou, nos casos mais nobres, ·a nutrir-se meira impressão sensorial, sobretudo a do tato. A sensibi-
sem , fastio das lamentações e dos estremecimentos dessa 1idade se resolve sempre, para esses sibaritas da arte, no
consciência contemporânea irremediavelmente dilacerada. domínio imediatista do sensorial e do sensual. Toda forma,
Ora, a sorte mesma do mundo depende da junção das duas. , toda expressão que vá um pouco além é decretada cerebral,
Um dos esforços mais profundos e fecundos da arte contem- sem interesse. A arte moderna, a arte concreta, têm, porém,
porânea, sobretudo desde Mondrian, Klee e Kándinsky, como dizem os franceses, "outros gatos a fustigar". Pode-
tem visado, no fundo, sensibilizar a inteligência. Os pró- ríamos continuar enumerando exemplos de julgamento
prios concretistas, ageoni.étricos ou construtivistas, procuram inteiramente subjetivo da espécie acima; mas é inútil pois
trazer ao mundo, ou melhor reatualizar no plano da menta- o de que se fala é sobretudo do gosto do apreciador, nada
lidade hodierna um modo de conhecimento abandonado se dizendo quanto à qualidade intrínseca da obra mesma.
pela civilizaçãd ocidental; eles · querem rejuvenescê-lo, por Não, toda essa discussão estéril e escolástica sobre a
meio de símbolos novos, de formas~intuições . ainda não sensibilidade ou a sua ausência na arte moderna o que re-
conhecidas, de origem imaginária ou extraperceptiva. flete é coisa bem mais profunda: a crise da civilização
Colocado o problema nesse plano, o único permanente, verbal. Sob muitos aspectos podemos dizer que esta é mesmo
não-circunstancial, a querela da sensibilidade relativamente um dos traços mais profundos da crise contemporânea. A
à arte abstrata ou concreta perde muito de sua substância. aparélhagem verbal da civilização .contemporânea está, com
Pode-se falar das qualidades sensíveis de uma pintura, mas efeito, em desarranjo.
é pelo menos impreciso e vago falar-se simplesmente de O tema é vasto e complexo, e por isso aqui a}?enas pode

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ser mencionado. O fato é que nessa decadência da civili-
zação verbal, cuja curva descendente começa a delinear-se
diante de nossos olhos, a visão do artista abstrato ou con-
creto pode vir a constituir uma aquisição cultural preciosa.
Suas imagens, suas formas, seus objetos são expressões tí-
midas ainda, articulações primárias de uma estrutura sim-
bólica nova, em formação. Há uma coerência interior, uma
lógica interna crescente nessas unidades formais inéditas,
que pouco a pouco nos preparam a uma visão nova do
mundo. Graças a essa coerência, a essas estruturas, pode-
mos talvez alimentar a esperança de chegar a compreen-
der, a penetrar, enfim a sentir e visualizar todas as novas
dimensões da realidade que a ciência, à medida que dilata
incessantemente este conceito, nos vai criando e propondo a
cada nova investigação. E essa tarefa estética é tanto mais
indispensável quanto é a primeira vez, em toda a história
do conhecimento · humano, que a ciência não pode mais
faz.er chegar ao entendimento comum o resultado de suas
pesquisas, renunciando ao velho hábito salutar e confortável
de, a cada etapa de suas descobertas e conquistas, nos
oferecer um modelo de universo.

3. CONSIDERAÇÕES INATUAIS
Até nossa época, havia, para a aceitação de novos mo-
vimentos artísticos, certas condições - quase diria obstá-
culos _;_ a vencer que tornavam a compreensão uma con-
quista exaltante do apreciador. Não se passava sem uma
formação prévia, sem uma superação mais ou menos de-
morada de uma escola para outra, de um estilo para outro.
Não se passava, por exemplo, do clássico, no sentido
woelffliano, ao barroco, do linear ao pictórico, como se
passa de elevador de um andar para outro. Apesar do opró-
brio que ainda hoje se joga nos pobres retardatários que
de saída não abandonaram sua admiração por Ingres ou
Courbet por uma admiração, sem transição, por Renoir ou
Cézanne, na realidade aqueles desgraçados apenas davam
mostras de fidelidade aos "padrões perceptivos" dentro dos
quais se formaram, esteticamente. E a prova é que os
primeiros· aclamadores de Monet ou Pissarro foram os úl-
timos a bater palmas a Van Gogh ou Gauguin. E assim
22
23
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por diante, até o advento do cubismo, que trazia em si os
germes para novos ."padrões perceptivos'' que levaram toda
uma geração para ser consagrados. Mas quando foram con-
sagnados, era uma nova escola ou sensibilidade que surgia,
o abstracionismo. Então, para não haver mais retardatários
em nenhwn momento, levantaram-se os obstáculos à acei-
tação de tudo que viesse com a etiqueta de novo.
Que se passou? Desapareceu na percepção da obra de
arte aquilo que Hungerlund chamou de "expectativas''. Es-
tas, com efeito, como que cresciam dentro de certos "pa-
drões perceptivos'' que se formavam, a cada nova época
histórica, e que eram o ingrediente que ia permitir aos crí-
ticos artistas, amadores, colecionadores - a opinião escla-
recida, em suma - distinguir uma obra da outra e pene-
trar-lhe o objetivo estético visado. Todas as épocas da his-
tória das artes se distinguiram, assim, por esses padrões
perceptivos capazes de funcionar automaticamente e, por-
tanto, de dar aos apreciadores a possibilidade de julgar in-
dependentemente de preferências estéticas. Nesse fato veri-
ficado empiricamente através das várias épocas é que um
teórico como Hungerlund se baseia para tentar uma classi-
ficação estética menos caprichosa ou inteiramente subjetiva.
Uma vez estabelecidos esses "padrões perceptivos" que
se impunham, independentemente do gosto de cada um,
cada apreciador abordava uma obra armado ou envolvido
numa certa "expectativa". Por que? Porque partia ele de
padrões perceptivos consagrados, isto é, de um estilo. Atra-
vés dessa expectativa, a apreciação ou o julgamento se fa-
zia da obra antes de tudo quanto ao seu objetivo estético.
E era, portanto, acessível aos outros.
Nos dias de hoje, esse fenômeno capital da "expecta- 4. O PARADOXO CONCRETISTA
tiva'' desapareceu do modo da apreciação perceptiva. A pró-
pria apreciação perceptiva desapareceu. Abordam, agora, Por causa de -"concretismo", Rubem Braga, meu ami-
as pinturas sem quaisquer expectativas. O julgamento tor- go, ameaçou-me com cicuta, embora adocicando-a, por ser
na-se, por isso, mera preferência individual, que já nem amigo, _com Coca-Cola: Resignar-me-ei_, talvez, algum dia
mesmo os chamados críticos sabem explicar. f: que não se ( quando estiver ainda mais velho) a bebê-la, mas com
pode falar hoje de estilo. Há mudanças, modelos, novidades, Coca-Cola nunca! . O sacrifício seria demais, pois detesto
isto é, aquilo que caracteriza o objeto industrial moderno e~se meloso xarope funcional.
quando lançado ao mercado consumidor. A extrema varie- Quanto à gramática e _à sintaxe não são ingredientes
dade desses produtos de um ano para outro, seja automóvel, educacionais tão ruins assim. E muito grande escritor es-
bandeja, móveis, facas etc., é o que define o styling no mer- _ creveu bem e vivamente com gramática, sintaxe e tudo.
cado consumidor. O styling tende a caracterizar também essa Resta, no entanto, o problema de autodisciplina em todo
variedade de pintura; de todas as maneiras e modos, que ess7 grupo, _aliás, cr~cente, de jovens artistas e poetas que
vemos proliferar por toda parte. mais ou menos se alinham sob vagas denominações "concre-
A extrema instabilidade dos padrões perceptivos de tistas''. Qual a razão disso num país como o nosso de aco-
nosso tempo, que não têm tempo de se impor porque, como m~dações, de falta de rigor em tudo, de rómantis:Uos pre-
modas, se sucedem vertiginosamente, tornam o julgamento
precaríssimo e tiram à noção de obra de arte sua unicidade gmçosos, de nonchalance (já que a palavra correspon-
específica. dente em português não me vem no momento), que pre-

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fere sempre às distinções nítidas da inteligência o vago das ainda provincianos da Semana de Arte Moderna de São
meias soluções, .as repetições do instinto? · Paulo, um grupo de arquitetos em botão se formava, deci-
Do ponto de vista das circunstâncias digamos históri- dido a submeter-se a severo regime de gramática e sintaxe.
cas imediatas, creio que quem primeiro falou em "concre- Fazendo dos livros de Le Corbusier sua "Bíblia'', aqueles
tismo" foi o nosso caro e grande confrade argentino, Ro- moços juraram macerar-se na pr~tica de se~a austeridade
mero Brest, quando de passagem por aqui fez, entre São no convento do Funcional. No ngor de noviços, qualquer
Paulo e Rio, algumas conferências. Também tivemos pela inclinação, por mínima que fosse, para .º decorativ_o, para
mesma época a grtande retrospectiva de Max Bill, organiza- o barroquismo e até para curvas aparecia como a imagem
da por Bardi no Museu de Arte de São Paulo. E, afinal,
mesma do pecado. .
a primeira Bienal, não esqueçamos, deu o grande prêmio Dessa atitude nasceu, entretanto, a atual arqmtetura
de escultura a uma das obras mais típicas de Bill, a fa- brasileira. Nesse convento se educou Oscar Niemeyer. Os re-
mosa Unidade Tripartida, que acabou seduzindo Mary Viei- sultados daquela prática puritana aí estão com as obras de
ra para a Suíça. Lúcio Costa e seu plano-piloto de Brasília, as de Afonso
Mas por que sua aceitação quando na Europa mesma, Reidy em Pedregulho e n? _Aterro da <?ló.ria, com o MAM,
em seus grandes centros artísticos e nos Estados Unidos, se as de Niemeyer em Bras1ha, as de Sergio ~rnardes _e as
estava fazendo outra espécie de arte, precisamente oposta de muitos outros. Dos rigores do dogmatismo funcional
aos rigores do "concretismo" suíço? Já escrevi, por diver- brotou verdadeira escola brasileira de arquitetura, com pas-
sas ocasiões, que o "paradoxo" sempre me pareceu premo- saporte franco pelo mundo inteiro, e portadora de duas
nitório: não seria indício de um recomeço espiritual e, coisas: o "estilo internacional'' (hoje, inevitável em todas
digamos mesmo, ético no Brasil? E por ser recomeço . é as manifestações artísticas e culturais do mund?) .e. ca~ac-
rigoroso, ortodoxo, quase sectário? terísticas regionais brasileiras, profundamente s1gnif1cat1vas
O fato é que a "gramática'' concretista já tem con- e marcantes.
corrido para melhorar a qualidade artesanal e mesmo esté- Fenômeno de tamanha repercussão cultural não pode-
tica de nossas artes, não somente as ditas nobres, como as ria deixar de ter repercussão também no domínio adjacenti:
industriais. · das artes visuais em geral. A obra estupenda de um_Volp1
Veja-se a melhoria sensível da nossa arte gráfica. Os é irmã de leite dessa arquitetura; a obra em crescimento
livros, as revistas e até jornais se apresentam agora muito de Dacosta respira também o mesmo espírito. Idem, idem
mais modernos, com um nível de gosto incomparavelmente as obras em formação de outros artistas mais jovens, como
mais alto que há dez ou mesmo cinco anos. Na decora- de Djanira, por exemplo, que, ape~r de "f~~at~va", cada
. ção, na arte da movelaria o mesmo efeito se verifica. E vez mais se despoja no mesmo sentido arqmtetom~o, ou de
já se começa notar algo de menos pífio ou torpe até na arru- Lígia Clark, com um sentido novo d,a.monument~lidade dos
mação das vitrinas das lojas, coisa que no Brasil é uma espaços modulados. Não, essa gramahca e es_sa smtaxe con-
pobreza, de um mau gosto, de um provincianismo deso- cretistas têm servido sempre para alguma coisa. Quando os
ladores. jovens se esqueceram dela --;-- e esse_ tempo chegará - suas
E agora podemos divagar. Será que no futuro iremos obras estarão maduras, cheias de vida e de suco, mas ba-
ver manifestações dessa mesma autodisciplina, desse espía nhadas na mesma atmosfera espiritual brasileira e interna-
rito menos complacente consigo mesmo, em outros cam- cional que a nossa arquitetura criou. ·
pos, imediatamente mais importantes e ponderáveis, como os
da administração pública, da política, da educação? A his-
tória da arte já nos tem dado exemplos de antecipações se-
melhantes de movimentos artísticos em relação a outros
campos de atividade mais pragmática. .
Olhando, porém, mais atentamente para o nosso me10,
seremos obrigados a verificar que por volta de 1930 surgiu,
por aqui, um punhado de jovens dispostos a renovar . num
campo novo e importantíssimo da:i atividades culturais e .s:,-
coiais do país: o campo da arqwtetura ( que retoma, alias,
em escala crescente e mundial, a liderança no domínio das
artes). Com efeito, naqueles anos, depois dos escândalos

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/

5. CRITICA DA CRITICA
Em sua brilhante sessão, Jaime Maurício publica em
tradução dois artigos de críticos de Munique sobre a ex-
posição brasileira ora à mostra na Casa de Arte daquela
Cidade. Fez muito bem o cronista em divulgá-los.
Não nos interessa propriamente a opinião sobre os ar-
tistas ~m particular que os críticos apontam, pois em geral,
na bàse de informação ligeira e de uma rápida visita à
enorme relação de centenas de quadros, em verdadeiro pot-
-pourri estilístico, seguem eles as indicações do próprio ca-
tálogo. Descobrir no meio da barafunda a melhor qualidade,
ou as individualidades mais autênticas, é tarefa mais deli-
cada, e demanda dispêndio maior de tempo no exame das
obras, do que em geral dão em suas visitas apressadas e
blasées.
O que nos interessa, principalmente, é a impressão
geral que tiveram. Caótica, contraditória e reticente, se não
desfavorável. :8 evidente ( como s6i acontecer com todos

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eles) penoso sentimento de decepção, pot tudo aquilo não artísticas", "se interpenetram de maneira fecunda'' de país
corresponder ao que queriam que o Brasil lhes mostrasse. a país, "forma-se um estilo internacional; a noção de arte
Cadê "os brasileiros"? - perguntam. Para esses críticos mundial assume contornos nítidos".
provincianos isso significa - mais anedotário, mais pitores- A conclusão é magistral, e é o que, de exposição em
co, mais folclore. E, depois, sendo obrigados a reconhecer exposição, por todos os países, e nos nossos congress~s in-
que o Brasil tem bienais internacionais modernas, arquitetu- ternacionais de críticos, se vem confirmando de mais a mais.
ra moderna, Museu de Arte Moderna em construção espe- Por isso mesmo, não deixa já de ser irritante vermos todos
tacular, quanto à escala e ao arrojo da concepção e do pro- esses senhores provincianos (apesar de espalhados pela culta
jeto; tem uma cidade moderníssima, novíssima em folha, Europa) - diante de apresentação coletiva da arte de qual-
em vias de construção no plano interior do país, então se quer dos países da periferia européia - montar em seus
resignam a alterar a ideiazinha tranqüila que afagavam so- tamancos para decidir o que é brasileiro e o que não é.
bre o longínquo país da América do Sul, com o seu vasto Da próxima vez voltaremos ao assunto para fazer a
Amazonas, sua florestas, papagaios, pirogas de índios ( !) exegese de outra crítica, assinada Matianne P1ch.
e cobras for the exciting.
O Sr. Fritz Nemit, que é o que pergunta "pelos bra-
sileiros" numa exposição de -brasileiros, depois de se refe-
rir a Portinari, por ser naturalmente "o artista repre-
sentativo do País", descobre nas "morenas" - quer dizer
- nas mulatas de Di "gravidade quase mística". Em se-
guida, exprime o seu "prazer" - e aqui se sente que o
crítico é sincero - diante das telas de Djanira, da procissão
multicor de Elisa Martins e do autodidatismo espontâneo
de José Antonio da Silva.
Ao deparar, porém, com o "grande número de pin-
tores abstratos'', seu primeiro impulso é de achar ''estra-
nho'', mas depois é obrigado a ter em conta as "circuns-
tâncias'' explicativas ou "atenuantes'' - intercâmbio artís-
tico internacional, arquitetura moderna, e, o que é novida-
de para nós - a arte abstrata por aqui, ser "incentivada
pelo Governo''.
É pena que nesse plano o crítico meta os pés pelas
mãos, incluindo, de cambulhada, Cícero Dias e Dacosta e
até Vincent Iberson (?!) como formados das "idéias de
Malevitch e a teoria das formas de Max Bill"! Também des-
cobre que Lasar Segall ''manteve durante longo tempo uma
escola em Berlim'', como se isso, caso verdadeiro, trouxesse
qualquer elemento elucidativo para a obra segalliana ou para
os artistas modernos do Brasil. Outra coisa estranha é achar
"comicidade" nas "estatuetas" de Bruno Giorgi e "Cravo
Júnior", os quais, por fundirem "a figura humana", "com
elementos abstratos", "assemelhavam-se'' no que faziam
"a um artesanato brincalhão''. Bruno Giorgi ''artesão brin-
calhão'', fazedor de "estatuetas freqüentemente cômicas"! É
o crítico, como se vê, de muita penetração na apreciação.
Apesar dos pesares, a conclusão do artigo, embora já
bem tardia, é justa: descobre, com muitos suspiros, é ver-
dade, que "os povos'', a despeito das separações de língua
e raça, "constituem uma grande comunidade por suas ex-
pressões artísticas". Assim, como "os problemas e as formas

30 31
6. DO "INFORMAL" E SEUS EQUlVOCOS
Outro dia, em sua coluna, Jaime Maurício me citou
de passagem por causa de minha ojeriza à designação de
informal para certa pintura abstrata atualmente em voga.
Para que não pairem equívocos a propósito, resolvi ex-
plicar aqui, ligeiramente, as razões dessa rejeição do termo.
Acho-a, efetivamente, alvar, mas não de agora, quando
começou a proliferar no Brasil. Já de muitos ianos a venho
criticando, em virtude de seu despropósito .. . teórico. E me
lembro como, num domingo em que fui visitá-lo em seu
tranqüilo Meudon, perto de Paris, o velho e grande Arp se
riu, mas com certo sarcasmo, quando na nossa conversa
houve, não sei mais a que propósito, referência à mesma
designação. Segundo informa o meu jovem confrade e ami-
go, At;1dré Malraux também a adota, o que tranqüiliza, pois,
"afinal", a designação, diz "não é brasileira". Disso sei eu.
Mas o fato de o eminente Ministro do General De Gaulle
a aceitar não é razão para que eu mude de opinião.

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Aliás, esse problema de designações para movimentos
artísticos que surgem não tem maior importância. Os pre-
cedentes históricos são, a respeito, muito ilustrativos e co-
nhecidos. Pois que há de mais estúpido ou alvar do que cha-
mar de impressionistas a coloristas vigorosos como Renoir,
Sisley, -Cézanne? Do mesmo modo para os pintores que,
em torno de Picasso e Braque, iniciaram e prosseguiram
na decomposição. do objeto através de uma estrutura abs-
trata em planos, a apelação de cubistas era mais do que irri-
sória. Todas essas denominações são sempre imprecisas e,
as mais das vezes, tinham nas origens sentido pejorativo.
Muita gente ignora que a de pintura tachista veio do pró-
prio Arp e foi, cremos, pela primeira vez usada, com certa
ironia, em Art d'Aujour<fhui. O uso acaba sempre consa-
grando-a. O mesmo se está dando com tachismo e informal.
Minha repugnância à classificação de arte informal é
porque _acho que a mesma não tem sentido. Se se dissesse
antiformal, teria mais sentido, pois estaria expHcita a von-
tade de fugir à forma, de ser contra, de querer destruí-la, o
que pressupõe uma orientação estética definida, um estado
de sensibilidade ativo, o que não quer dizer, contudo, que
se possa evitar a forma, ou se possa destruí-la. Levanta-se
aí, porém, uma espécie de antiforma, que é ainda um con-
ceito estético e permanece no plano artístico.
Forma é o elemento primeiro de toda percepção, e sem
ela não se poderia discernir coisa alguma; mormente numa
tela que, apesar dos pesares, ainda se destina a ser vista.
Forma não quer dizer apenas a regular, a geométrica, a
forte, no sentido gestaltiano. Mancha é, aliás, a primeira
das formas que se vêem e que se estudam nas experiências
.perceptivas da Gestalt, pois mancha é o que de mais ele- 7. DA ABSTRAÇÃO A AUTO-EXPRESSÃO
mentar e primeiro se destaca do fundo'.
O que se pode dizer, com precisão, é que a pintura ta- A pintura abstrata atual, denominada informal ou ta-
chista atual é uma pintura de predominância do fundo sobre chista, pretende ser produto de mera explosão de energias
a figura. Ao lado dela, a outra - que se pode ou deve que se desencadeia dentro do pintor. Dir-se-ia, a ouvir
reconhecer como pintura do signo, signográfica ou gráfica seus explicadores, que até então os pintores pintavam assim
- é justamente o contrário, quer dizer, nela a figura pre·- como se toma café ou chá ou se assina o ponto na repar-
domina absolutamente sobre o fundo. São duas atitudes es- tição. Os valores dint1micos passaram a ser elevados acima
téticas e psicológicas espirituais, em suma, de consideráveis de todos. Em nossos dias, quando se fala em dinâmico todo
diferenças. mundo fica excitado. É a palavra mágica. Na realidade, po-
Antes de terminar, quero daqui bater palmas à suges- rém, os valores dinâmicos vieram sendo postos em destaque
tão de Jaime Maurício para que, se o Brasil tiver de se desde pelo menos o cubismo e o futurismo. Na época he-
representar naquela mostra, seja entregue a Antônio Bento róica da Revolução Russa, em todas as esferas da Arte,
a tarefa de organizar a representação dos informais brasi- do Teatro e da Poesia à Pintura, Escultura e mesmo à Ar-
leiros e dela ser o comissário, pois, como bem lembra o quitetura, o dinamismo era a virtude que se procurava em
nosso jovem confrade, foi ele quem "mais se bateu por essa primeiro lugar.
tendência informal do Brasil". Tem Bento, com efeito, a Hoje, essa noção, aliás vaga, de dinamismo não é in-
competência e o critério necessários para a tarefa. E entre tegrada propriamente nas obras ou nas coisas, quer dizer, no
nós, qríticos, a prioridade. Universo, mas representada antes pelo próprio artista. Este

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é que é dinâmico. Desse modo, o caráter dinâmico não está mais ou tachistas de agora dificilmente se observa essa su- /
na concepção do universo do artista, mas em si mesmo. E cessão de passagens que vai da projeção à simplificação via
para ser coerente se sentirá obrigado a movimentar-se, a complexidade. .
agir, ao pintar; na realidade, trata-se de um meca,nismo A primeira observação do panorama pictórico atual é
bastante banal de projeção. Mas esse mecanismo não só não que os pintores pararam, em sua maioria, na primeira f~
é desconhecido como tem sido analisado, exaustivamente, do processo criativo - o da projeção. E pararam delibera-
por teóricos, pintores e críticos de várias tendências e muito damente. Há aqui interessantíssimo problema filosófico · e
antes da vaga tachista. mesmo social que pede investigação, com a desejada objeti-
"Quando, nos diz um deles, Leupa, um artista coloca vidade. Se permitem, entretanto, nos mantermos no piano
algo sobre uma tela está parcialmente à mercê de sua pro- artístico para tentar situar o estado dessa pintura, talvez pu-
jeção.'' Não é tampouco de agora, nem a partir do tachismo, déssemos fazer uso de um conceito de grande importância
que se sabe que o processo criador não é intelectual. No para a crítica e para a Psicologia da Arte, introduzido pelo
entanto, entre pseudoteóricos e críticos de hoje (gênero Professor Ed Bullough: é o da distancia plfquica. A obra de
Tapié) há os que pensam, por exemplo, não ter havido ca- arte não pode misturar-se ao cotidiano da vida, equiparada
tarse na criação dos retângulos de Mondrian, o místit:9 e a uma obrigação social que se cumpre, uma farra que se
atormentado pesquisador da exposição dos contrários, e para faça, uma violência que se comete, uma frustração que
quem nessa dialética irredutível estava o segredo do ritmo se sentiu.
universal. Por sua própria natureza, ela tem de se afastar do. chão
Todo processo criador é alimentado por um sentimen- onde fazemos nossas andanças ou, como no teatro, reservar-
to de inacabado que urge ser conduzido à plenitude. O úni- -se uma área onde se encontram e agem os atores, separados
co elemento constante nesse sentimento, diz-nos ainda Leu- de outra maior onde estão os espectadores, carregando · ca-
pa, com a dupla autoridade de pintor moderno americano e pas, comendo amendoim ou empunhando · binóculos. Não
de teórico experimentado, é a sua sempre iminente eva- há obra de arte que não ocupe, em face de nós mesmos,
nescência. No ato de pintar - seja o que for, desde que certa distância metafórica, a qual, contudo, tem o poder
se trate realmente de arte - um primeiro processo apa- de apartar a personalidade concreta do experimentador, diz
rece, precisamente o da projeção. Um segund? se segu~ a Bullough, de suas afeições e sujeições, de seus problemas
este, como uma espécie de contraponto, ou se1a o da sun- práticos, materiais ou espirituais. -
plificação e cristalização da expressão. · Há toda uma graduação nessa distância psíquica que
Segundo ainda o mesmo depoimento, nessa primeira pode, conforme a natureza ou o gênero da arte de que ~
fase se tem a sensação de que a tela cresce, e nesse cres- . trate, ir do menor espaço de separação ( dentro do qual Jª
cimento tende para a complexidade. Numa obra admirável, não distinguem a obra e o cotidiano, com seus el~1!1e0;tos
sob vários títulos, Leupa nos expõe então, em síntese, o e idiossincrasias pessoais diretas, interessadas e utilitárias,
testemunho do processo criador de todos · os artistas signi- suas preocupações P!~ticas e a pe~onalidade do_ artis!a, co~
A

ficativos do século, dado por eles mesmos, desde os ex- sua atividade especificamente cnadora) à maior distancia
pressionistas e cubistas, Mondrian, Kandinsky, Klee, P!- imaginável: neste caso, a obra já não ~ ~e~oa indivi?ua-
casso, até as gerações mais novas da Europa e Estados Um- lizada, porque alcança o plano do que ~ tlpic~, quer dizer,
dos, inclusive Pollock, Kline, Hartung e outros. de generalidade tão abstrata que torna unpossivel qualquer
O artista não permanece no estágio da complexidade comunicação concreta, de ordem estética, entre ela e o
alcançado, pois o processo criativo prossegue e de uma indivíduo que a fez, ou o~ sujeito que a contempla.
tela como que crescida à maneira de um adolescente, pros- Estamos assistindo agora à dominante de uma quali-
segue até passar da complexidade à simplicidade. Tal pro- dade pictórica extremamente direta, e, como tal, rio menor
cesso se verifica no curso da obra de todo grande artista, grau possível de di,stância psíquica. t!. o plano ?ª# chamada
ou melhor, de todo artista autêntico, grande ou menor, e expressão direta. Nele o pint_?r mescla_ su~s afeiç?Cs e s~~-
tem sido acompanhado através das várias épocas da histó- timentos pessoais, seus dese10s e famqwtos mais explíci-
ria da arte, desde que se começou a poder seguir a vida tos, ao ato de realizar, de modo que a obra resultante é
dos artistas, individualmente, ou acompanhar a marcha da apenas uma projeção afetiva dele. t!. ·por isso que ~ obra
obra de cada um deles. t!. possível que o mesmo se dê de arte daí saída tem em grau bem menor as qualidades
hoje ainda, uma vez se admita que ainda falamos todos, ao intrínsecas de toda obra de arte autônoma, para extravasar,
falar de Arte, de um mesmo assunto, Nos artistas infor- como documento humano, toda uma gama de puras mani-

36 37
se tornar comunicável, a qualquer custo, de fixar-se no ele-
festações psíquicas do autor. Ainda por isso mesmo é car- mentarismo de expressão direta, já que a banalíssima e frus-
regada de expressividade em primeiro grau. A obra reduz- trada solução do neo-realismo ou realismo socialista não deu
-se a uma projeção quase nua, lançada numa superfície re- tampouco resultado. O povo continua indiferente às lucubra- _
tangular. Há nessa atitude, nessa estética, sistemática ne- ções pictóricas contemporâneas. . _
gação dos valores artísticos mais desinteressados. Manifes- Pode-se também enxergar outra motivaçao para essa
ta-se, aqui, quase deliberada vontade de suprimir qualquer atitude antiartística: talvez o inconsciente reconhecimento
distância entre o espectador e o autor. Este o que deseja de que as tendências, CJ-Ue iriam predominar daqui ,P_o t dian-
é qüe o seu caso seja percebido pelo público : ali está uma te fossem em definitivo contrárias aos valores estetlcos que
alma sincera, digna de simpatia, admiração ou piedade. atê agora prevaleceram. Ou por outra, seriam no sentido
: Os artistas ficam assim baloiçando entre um hedonismo de abandonar de vez a pintura, como arte nobre, ou as
estético (gênero Mathieu) e outra espécie de hedonismo artes individuais em geral, tais como nos chegaram até
dito de ordem moral, gênero Pollock, Kline ou Feito. No hoje, em troca de meios de expressão ainda mais diret?s, -~-
fundo, trata-se de um compromisso não-estético, mas de or- bretudo mais manejáveis, mais cômodos, de pod~r mfm~-
dem moral ou utilitária; hedonismo tomado num sentido de tamente maior de divulgação e pretensamente mai_s acessi-
que há um interesse (logo um prazer), uma consideração vel ao povo. A solução estaria, então, _no _aproveital:llento
prática em jogo; tratar-se-ia, então, de um apelo pessoal desse campo novo dos meios de co~u_?i~aça~ que atmgem
direto, isto é, positivo, quase explícito, sobre os outros. A diretamente as massas, com suas histonas diretas (sem. a
direção de tal tendência é francamente num sentido anti- - mínima distância psíquica) na base do faz-de-contas, his-
estético, ou, pelo menos, antiartístico. (Ao escrever estas tórias em quadrinhos, anúncios, luminoso~ ou nã~, cartazes,
linhas não estou emitindo nenhum julgamento de valor, pro- filmes populares ou de tema~ da atuah?ade, filmes ~om
priamente dito) : observo fenômeno de ordem geral, que ul- cheiro e ilusionismo convencional perfeito, de conteu?~s
trapassa o campo delimitado da Arte ou da crítica, e, pro- sadomasoquistas etc., televisão, rádio, objet_o s, i?dustnais
fundamente característico de -nossa atualidade, é provavel- que elevam o prestígio social de seus propnetanos e por
mente, reflexo de proclamada. crise dos valores da civili• isso mesmo se renovam, pela moda ~onstantemente ;t~.
zação vigente. - Como se sabe todo um grupo de investigadores no domimo
Pega-se, agora, pela primeira vez, quase, através desses da comunicação, psicólogos e engenheiros, ex-~;í~icos de
quadros, em algo que outrora poderia desacreditar, se ·mui- arte, ex-artistas plásticos, estetas, filósofos, semi?ticos, so-
to explícito, o valor intrínseco de uma obra: um ato de ciólogos etc., já considera insuscetível de prossegu~r, de e;10-
comunicação intencional. O artista de hoje, ao pretender luir ou mesmo de manter-se, como força expressiva e sim-
agarrar-se desesperadamente ou malandra ou prazerosa- bólica do desenvolvimento de nosso sistema cultural, o que
mente (Mathieu) ao estágio da projeção, deseja que sua até aqui se tem chamado de artes plásticas. _
obra nos segure pelo paletó e nos leve diretamente a ele. · Este é outro problema de Sociologia Estética a ser exa-
O pintor dá mais importância ao seu retrato que à sua minado mas não nos cabe fazê-lo aqui: o que podemos
obra. Esta reduz-se a simples objeto de mediação, de in- dizer, p~r enquanto, é que não compartil~a~os aind~ des~e
termediário entre o autor e nós. Daí a tendência, mais ou ponto de vista revolucionário .. . ~as pesslffilsta _e_ r_es1gnata-
menos manifesta a desprezá-la (não no sentido cezanniano rio, pessimista quanto às perspectivas de acess1b1l~dade, ~o
tão dramático e nobre), ou a identificá-la a objetos de pro- povo aos aspectos mais altos da cultura: e _res~g~atano
dução em massa, destinados, por sua própria função na so- quanto às potencialidade~ criadoras do artista, md1v1dual e
ciedade, a certo uso imediato, transitório e sujeito ao styling, desinteressado em nossa epoca. Voltemos, porem, ao nosso
isto é mudanças contínuas e à moda. Jovens pintores da
· atualidade se comprazem com tal eventualidade. Não sendo tema. .
_ A pintura ora em voga - e é o seu gran~e ~ .é nt~ -
nem nobre nem isentamente objetivo procurar-se para essa põe de novo, com toda força, o problema da s1gnlf1caçao. e
atitude de~issionária apenas causas subalternas ou utilitá- comunicabilidade da arte abstrata em geral. Desde o cubis-
rias, em função, por exemplo, de um consumo maior das mo que, passando por cima da acus.~çã? do hermeti~mo, a
próprias obras no mercado das artes, veja-se aqui outro arte dita moderna levou sua expenenc1a de expresao au-
grave sintoma de uma _crise geral. Suprimida a necessária tônoma até a liquidação total do objeto. O abstracionismo
distância psíquica, não se resigna mais o artista àquela trouxe elementos plásticos não diremos novos, mas comple-
verificação grave, m~lancólica e viril de Klee, segundo a tamente depurados, pela primeira vez, de todo compromisso
qual ''o povo não nos sustenta'', daí a decisão a priori de
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de comunicação direta, elevando assim a Arte a uma dis- estuário de onde pârtiram todas as novas tendências da
tância psíquica ideal: de um lado, o artista individual em arte abstrata contemporânea. Foi ele quem revelou, tc;órica
todo o livre desabrochar da personalidade, de outro - a e plasticamente, todos o_s novos elementos e valores; com
obra falando sozinha uma linguagem própria, sem apelos ele o imaginário e o plástico se juntaram. Ele fez pintura
. diretos a sentimentalidades, a prazeres e sugestões externas, coisa mental de Da Vinci e pintura de jato, de pura im-
a angústias ou neuroses da vida privada do seu criador. provisação. Ainda hoje, dificilmente um tachista moderno
Com Kandinsky, Klee, Malevitch, Mondrian, Delaunay, pode mostrar realizações do valor poético, do fulgor cro-
Boccioni e os que· vieram· na esteira deles, em lugar do ob- mático, . do ímpeto vital das melhores improvisações kan-
jeto figurado sobre a tela, os elementos plásticos, um por dinskianas. (Ou, a esse respeito, das de Miró ou - se
um, foram chamados a protagonistas da obra. . espantem - de Magnelli.) E ele se inspirou tão diretamente
Assim, os planos em si foram descobertos com deslum- a concretista absoluto, como Max Bill, também forneceu a
bramento, na época do neoplasticismo, como coroação do Mathieu não só a gramática mas a própria temática do seu
cubismo; as linhas de força foram ressaltadas no quadro, grafismo. Os tacbistas hoje consideram o impressionist_a
transformado numa espécie de campo magnético; os con- Monet o seu grande precursor: o espantoso é que <? pri-
trastes simultâneos, intensamente explorados; as tensões es- meiro a ter a revelação da beleza abstrata da maténa de
paciais, reveladas em todo seu poder sugestivo; o dinamis- Monet foi Kandinsky, ainda nos últimos dias do século pas-
mo das cores puras, perscrutado; o tesouro infindável das sado, numa exposição impressionista em Moscou.
texturas e infratexturas, cavado até o fundo; novos materiais Sob o impacto dessas descobertas e invenções, 0 qua-
utilizados. dro deixou de ser aquela caixa ·dentro da qual se passav~
O resultado de todas essas descobertas; achados e pes- coisas . e se representavam o nosso mundo com suas dt- ·
quisas, foi uma série de obras pictóricas da maior impor- mensões. Diante das experiências de neoplasticismo e do su-
tância, a mostrarem pela primeira vez ao ocidental o mun- prematismo entre outros ismos do tempo, o que tendia a
do das ideações plásticas puras ou desnudas, sem compro- desaparecer era a própria tela, mero suporte material, tudo
missos e insuspeitadas. o que restava da velha pintura. Wols, Hart~g, Pollock e
Se Malevitch passou a procurar na tela, reduzida a uma outros mais novos, no entanto, a redescobriram, embora
estrita materialidade, passiva e bidimensional, a "a sensi- não mais como armação para suas criações; antes como
bilidade da ausência de objeto"; já Mondrian ao expulsar depósito de suas ânsias expressivas, de suas ejaculações pro-
dela toda sugestão de formas individuais ou particulariza- jetivas. Outros artistas, porém, como que a transpuseram,
das, mesmo abstratas ou geométricas que se meteriam, a passando a usá-la para base de ~elevos _o u C'?ffiO plano para
seus olhos, a funcionar também como figurinhas particula- construções realmente no espaço (Arp, Sofia, Teuber-Arp,
res (pés, cabeças, maçãs etc.), o que queria era ver aquela Ben Nicholson, os dadaístas, a primeira equipe histórica de
superfície retangular coincidir, sem um milímetro a mais fazedores de colagem etc.). Uma parte, aliás, dos tachistas
ou a menos, com a distribuição mesma dos grandes planos, de agora prossegue na sua destruição, embora não se com-
isto é, as formas mais gerais e universais possíveis no cho- preenda por que, como na fixação do peru dentro da roda
que mais radical possível de direções. . de giz, artistas co~o Burri, Rivera e outros ainda conservam
Nisto, para ele, resídia o cerne do drama plástico na a delimitação retangular de uma tela inútil.
Arte e .. . no universo. Kandinsky, porém, ainda mantendo Pollock, desrespeitando-a em . sua função tradicional, .
a tela como suporte, e como fundo em certas fases, a en- passou ai usá-la estendida ao chão, para ql!e,. em postura
chia sobretudo de imagens do mundo ainda ignorado, ti- de calígrafo oriental, pudesse escapar aos hmttes emoldu-
radas da sua imaginação oriental; este mundo era, con- rados dela, de seu alto e de seu baixo, a sair ou entrar
tudo, fundado em novas leis que vinham substituir as da nela pelos quatro cantos. Debruçado, dançando sobre ela,
velha pintura. Na verdade, tratava-se de velhas leis também, como um ·James Dean sobre os brotos do feijão que plan-
mas leis imemoriais, cósmicas, por assim dizer, e que nada tou aguardava do arabesco de tinta caído do alto, ao acaso,
tinham com as limitações artificiais das composições aca- sob~e a tela, a primeira direção a seguir, até que um antia-
dêmicas tradicionais, ou seja, os ritmos vitais · que encon- caso luminoso e inevitável, súbito fator de previsão não-
trou mais claros na música, as linhas de força a que re- -esp~cial, interviesse e lhe marcasse a candência .vital que
duzira o objeto, as tensões espaciais já presentes, já intuí- procurava. Saído de uma costela de Klee, Wols fot ante~ de
das pela imaginação e sensibilidade dos outros desbravado• tudo uma doce ave migratória, açoitada pelos temporais, e
res, os Malevitch, os Klee, os Russel etc. Kandinsky foi o que, indiferentemente às especificações da tela, pousava seu

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nin~o em qualquer tronco ou um oco de pau encontrado. camente italiano, consegue por isso mesmo desprender-se
AnJo da corte celeste, nunca chegou ao drama orquestra- da situação insolúvel para transfigurá-la num quadro sim-
do, para sc::r apenas um~ _melodia evocativa e nostálgica. bólico de destruição universal. O artista americano, sem ·
Ha_rtung foi o gr:ande graflco, ou melhor, signográfico do perspectiva, não consegue fazer distância entre o seu ego
Ocidente; seus signos,· lançados num só impulso sobre a e a realidade, entre o mundo e sua visão estática e sua obra:
te!~, eram dotados de estranha profundidade evocativa. daí emaranhar-se nela, transformando sem o querer em
Hoie! o grande artis~a se debate entre a pureza ancestràl ator. (Eis aí as belezas da action· painting.) Conseqüente-
do signo e a necessidade por assim dizer social ou cul- mente, coerentemente, acaba destruído na própria trama, na
t?r~l de superá-lo (para sair, talvez, do monocórdio so- própria engrenagem (e não apenas em sentido estrito, mas
hpsista). moralmente também, pois volta, antes de morrer, à figura).
Em, todos esses artis!as o drama do significado passou O pintor italiano, porém, consegue conservar a distância
a tortura-los. E, com efeito, a· validez da pintura deles está entre sua arte e o mundo, e jamais é ator, para ser ape-
s?br~tud~ na sig?i_ficação que passa ter. Tal caráter signi- nas testemunha, testemunha aguda, consciente, patética. En-
. fica ti~~ e bem, VISlvel na pmtura de outro artista eminente tre essas duas posições se situam os artistas ocidentais ex-
~a Itáha, E . Vedo_ya. Co~ ele, a evolução pictórica, a par- perimentais de nossos dias. É que - refiro-me aos melhores,
tir da velha _ge~açao do secu!o, não se interrompe. Um dos aos autênticos - são todos expressão dessa consciência
• aspectos mais mteressantes de seu caso é de ter sido tal- dilacerada de que nos falava Hegel e que tanto marca os
vez, o ~nic~ artista jovem de importância que prosseguiu, espíritos em nossa época. Fora delas, qualquer outra ati-
PºX: assim dizer, sem solução de continuidade, do futurismo tude é inautêntica, publicitária, hedonista, e se é jogo é jogo
a lmguagem abstrata expressionista. mesmo, ou uma pura aventura sem compromisso. Esta é
• Mathieu, proyé1!1, :m linha direta, de Kandinsky, mas precisamente a atitude do Sr. Georges Mathieu.
com el~ se da ass1m1laçao, apropriação direta e não um de- Não faltou quem ficasse muito entusiasmado pela proe-
senv~lv1~ento como em Védova, a partir do futurismo com za de Mathieu de .fazer um quadro de dez metros em duas
Bocc1om .. Colocando a_ sua _pi~tura na linha de evolução horas. Mas o que impressionou mesmo foi o espetáculo.
que, partmdo do futurismo 1tahano - em seu dinamismo Mathieu é técnico em publicidade, e sabe dar uma volta
~inda ilustrativo e anedótico, em seu otimismo progressista erudita às suas encenações. Não lhe vamos aqui, porém,
mgênuo - ao raionismo russo, com Larinov e Gontachoro- discutir as teses teóricas, no fundo brilhantes, confusas, su-
va, o qual, adiantando-se àquele futurismo, abandona a ane- perficiais e contraditórias, como sua própria pintura. Ele
dota figurativa e alcança verdadeiro dinamismo abstrato preconiza para a arte moderna, para o abstracionismo líri-
vê-se como no pintor italiano de hoje o dinamismo se tom~ co de sua tendência aproximar-se da arte ou da caligrafia
e~pa~o universal, dentro do qual signos premonitórios es- oriental na velocidade da execução, na concentração de
tao impregnados de uma visão trágica do mundo. energia, no automatismo, ou à maneira do Zen, que ensina
A linha de evolução segue curva descendente, isto é, ao aprendiz do tiro de ,a rco não querer atirar a flecha, mas
procedendo . do otimismo provinciano o modernista dos fu- deixá-la que parta do arco por si mesma; e então, sim,
turistas italianos, transforma-se como o russo em dinamismo terá atingido o alvo, o alvo não só material lá fora, mas o
espa~ial não-representativo, revolucionário já e não apenas alvo supremo, a plenitude vital, cá dentro.
oh~msta. , Passada u~a geração, o que -aparece de mais De outra ocasião falarei sobre o sagrado nas mani-
análogo aqueles movimentos é o gesto não mais social mais festações. artísticas, e em relação com a festa e o .jogo.
ao contrário, dissociado, de desespero individualista em Mathieu atinge sempre o µ!timo, mas, quanto à festa, é ele
Pollock ou gesto decantatório em Védova. Na Espanha, todo muito dandy, por natureza alma solitária e aristocrática,
um grupo de jovens pintores surge tempos depois, marcado quer dizer, por definição aborrece a festa, a qual, para ter
também por sombras de pessimismo ou desespero, através o significado querido no plano do ritual, carece de uma
de uma surda, opaca matéria, pateticamente em busca de participação coletiva que é, entretanto, barrada pelo próprio
luz. No meio deles, porém, alguns poucos gráficos nos apre- individualismo aristocrático do autor.
s~ntam uma vontade ainda mais explícita de serem enten- Do grupo dos artistas signográficos, é Mathieu, · sem
didos; seus signos já são figurativos (Cuixart). Pollock favor, um dos mais brilhantes, mas por isso mesmo um dos
emaranha-se sem saída no próprio gesto, como um solda- mais superficiais. Ele fica no plano do puro hedonismo ar-
do_ da guer:ra nos ar~mes farpados das trincheiras, enquanto tístico. Sua arte pode não ser a festa que quer. Mas, de
Vedava, amda adstrito a certo senso do monumental, tipi- qualquer modo, é virada para o luxo e o prazer. Enfeita e

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agrada ambientes. Malraux, com a ligeireza ou a supet- movimento à destreza, são os a priori da composição. há- :e
ficialidade também geniais, o proclamou "eqfim um calí- bito compositivo dele, com efeito, usar o espaço da tela à
grafo ocidental". Por que? Por .ele ter sempre timbrado em moda japonesa ou chinesa, isto é, ocupá-la num lado canto
dar primazia à velocidade da execução? Não basta para para que o espaço que sobra do outro lado realce o vazio
fazer um calígrafo. Para demonstrá-lo, não precisamos re- e se valorize pelo contraste. Nas grandes telas, tudo se
correr aos mestres e teóricos da caligrafia oriental. acumula para o centro, · num verdadeiro amálgama nu-
A velocidade de execução é, sem dúvida, elemento im- clear, enquanto os espaços em volta, os cantos, as margens
portantíssimo no domínio da caligrafia, pois esta requer seja são desprezados, à maneira compositiva acadêmica.
f.eita de um jato, sem retoques e interrupções, para bem · de · :8 moda falarem agora em orgasmo de explosão ou sa-
sua vitalidade e de seu poder expressivo. A destreza do tra- turação de energias - daí viria constante surpresa de ges-
ço é necessária para atingir-se aquele rúvel de forma de tos e formas . ou antiformas- Mas em Mathieu nada se re-
que nos fala Ludwig Klages, o grande teórico da significa- pete tanto quanto os gestos e as formas, ou melhor, os
ção expressiva da caligrafia no Ocidente. Mas a destreza, signos. Apesar de não haver premeditação de formas -
apesar de imprescindível à essência da expressão, pode aca- ou melhor como não há premeditação - as formas se re-
. bar desprovida de qualquer outro valor, isto é, ser redu- petem até 'o enjôo. :e aliás, esta, uma contingência da pin-
zida a reflexos. Em Mathieu isso é visível, bem como em tura dita informal ou tachista. Principalmente nos que tra-
grande parte desses pintores que acreditam bastar não balham automaticamente, ou ao léu do acaso. O automatis-·
porem o cérebro no ato de pintar para atingir o cerne mo-reflexo é uma atividade mecânica. Mathieu, apesar
expressivo ou valores estéticos superiores. Ao contrário, o de ser um gráfico tecnicamente excelente, não escapa à
automatismo é fator criativo em determinados artistas - fórmula.
por exemplo, num Picasso ou num Miró, por vezes - ou O mal desses pretensos calígrafos ocidentais é a gra-
na criança ou num alienado. tuidade da pretensão. A caligrafia na China e no Japão
Vai para dez anos assisti de perto ao trabalho criador sempre foi a primeira das artes e surgiu em todo o seu
de alguns doentes mentais; neles o processo de pintar ou esplendor antes mesmo da pintura. Ela não foi ~nven-
de criar se fazia, realmente, sem controle consciente ou in- tada por ninguém. Nasceu na noite dos tempos. Eis que
telectual. Vi Rafael traçar em segundos, ou em pouquíssi- agora vários senhores e rapazes no Ocidente querem criar
mos minutos, alguns dos desenhos mais belos . de nosso uma caligrafia, como no começo do século espíritos enge-
tempo, e estimados por um Breton como superiores aos de nhosos e simplórios se meteram a inventar línguas, entre
Matisse. E é, ainda agora, com verdadeiro fascínio, que o as quais uma ainda hoje permanece e tem sua gramática
vejo lá na casa de sua velha mãe numa ladeira de Santa e seus adeptos, o esperanto, e outra, o volapuk ficou sinô-
Teresa, sair do brinquedo em que se misturava a crianças da nimo de construções artificiais canhestras e primárias. Ora,
redondeza, e concentrar-se, em relâmpago de tempo, em si nos calígrafos modernos do Japão, quando mesmo os ca-
mesmo, ou sorrindo misterioso e alegre, não sei para quem, racteres que escrevem não são mais legíveis, ainda assim par-
num jogo maravilhoso e autêntico, no curso do qual pas- tem eles - exatamente como os calígrafos de alguns milê-
sava por vezes, pelas costas, o lápis ou pincel d~ uma mão nios atrás partiam do estilo fluente, de escritura corrida, sem
para outra, e com o mesmo movimento deixava o outro ângulos fortes, que libertou a expressividade da arte -
braço, agora armado, correr livremente pelo painel, con- "de um ponto inicial emocional" (fornecido pelos próprios
clusão de um gesto que vinha de longe. Nesse momento, caracteres) ''para uma nova aventura em movimento, que
sim, tudo era jogo, expressão, autenticidade. prescrevia seu próprio desenvolvimento". E aquele estilo
Em Rafael, nesses minutos de trabalho criador, havia fluente "embora satisfatório como símbolo dinâmico, é fre-
visível como uma "contrapartida ao movimento expressi- qüentemente quase ilegível como caráter". Assim se escre-
vo'', aquilo que Klages chama de força plasmadora. Essa via na China, no início da Era Cristã no Ocidente. Era
força plasmadora é o elemento ou o fator antimecânico, an- pura arte abstrata. E como tal julgada, em seus valores
ti-habitual, antiinstintivo indispensável para contrabalançar a estéticos.
atividade exercitada necessariamente até alcançar a veloci- Em todo esse esforço recente de criar condições arti-
dade máxima, a destreza. ficiais para imitar a maneira e conseguir a força expressiva
Nai pintura tachista de hoje é raro encontrar-se essa - mas profundamente plástica! - dos calígrafos orientais,
força plasmadora. O que aparece na obra - obra? - per- o que fica é uma sucessão de auto-expr~ssão:. Cor~ toda su_a
dão, nas realizações ou manifestações de Mathieu, de anti- fenomenal habilidade e talento, Math1eu nao atmge mais

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·do que um signo único, ou, mais precisamente, isto é, de um traça linhas que sulcam, m~ fios que co_brem e adorna':1
ponto de vista semântico, a um sinal que quer dizer: eu! (os primeiros ideogramas chmeses conhec1~os foram rasga-
Como o sinal de curva numa estrada, ele está sempre avi- dos na pedra, no bronze, no osso~ . S~as b1sna~adas,_da;das
sando aos passantes: - "Cuidado! estou aqui". É um signo com maestria artesanal, de fazer mveJa ao mais pento dos
que não vai, em significado, além de sua assinatura. Aliás, confeiteiros, não têm outra função senão a de sup_erpor-se a
o mistério é P.enhum, pois se pode averiguar a flagrante posteriori às manchas coloridas do fupdo. Em vao se pro-
semelhança entre o seu jamegão e o signo ·gráfico que tra- cura nelas uma ordem oculta na desordem nervosa com
ça, de vez por outro, em. suas telas. que são dadas.
Grande parte da pintura gráfica ou mesmo informal Não se fundem de modo que, nas grandes telas, ao
com pretensões a ser produto de fatura espontânea, traduz, de longe, esses fios ~m relevo não conseguem dis!inguir-se
no fundo, terrível obsessão egocêntrica e narcisística. Em do caos cromático geral - o que prova a desnecessidade de-
Mathieu o narcisismo é tão patente que dói na vista. les ou a desnecessidade das gigantescas dimensões da super-
Mesmo as suas grandes telas - o oposto ao espírito fície em que são lançadas. Interrompem-se, contudo, a cada
do calígrafo que nunca embarca em proezas dessa ordem, bisnagada; e aí morrem até que, de out!o_ golpe, com outra
pois que o segredo do gesto e da vitalidade expressiva, su- perspecti\na, novo gesto, diferente pos1çao, outra <:oncen-
prema virtude da arte caligráfica, é que nunca escapem tração de energias, - se é que as houve - torna a bisnagar
ao alcance direto da gesticulação do artista - o elemento a tela, e com outra cor.
narcísico predomina. Se o movimento do traço não é direto O que resulta é uma cacofonia que não chega à mon-
e contínuo, sua interrupção arrisca quebrar a extrema con- tagem dos pedaços de ruído da música co~c~eta. Mas,
centração de energia mental ou espiritual que impele o ca- sobretudo, não há cadência nos intervalos espac1a1s nem nos
lígrafo, de modo que, quando escreve, o corpo e a mente, contrastes de cores, e, o que é mais grave, não há direção
o papel e o pincel, o braço e a respiração, tudo se funde, preferencial nem mesmo inconsciente ou, ap_enas esboç~a
tudo é um. Mathieu, porém, preocupado com suas virtudes naquele amontoado. Em vão se procurara ah o menor vis-
de circo, sobe em bacias adrede arrumadas, dá reviravoltas lumbre de uma rítmica vital. Onde não há parcela de ritmo,
e saltinhos e, na .mais completa descontinuidade, mancha não há vida. Onde não há vida, não há significação. Resta.
aqui, mancha acolá, faz cobrinhas nesse ou naquele ponto, um disparate de sensações isoladas. Mathieu costuma teo-
põe seu signo-jamegão aqui ou ali, e até como na grande rizar a respeito dos qüiproquós de suas realizações; sua teo-
tela que fez no Museu, enche os primeiros planos de grossos rização se vai espalhando também, não só entre jovens ar-
traços, em curvas de abertura para baixo: lembramos de tistas mas entre críticos que já não são tão jovens assim.
seus bigodes, ou involuntária sugestão de auto-retrato. O Segu~do essa teoria, a arte de hoje, que nada tem a ver
mesmo processo se verifica em outra tela, na's mesmas com a arte grega ou da Renascença (fundada toda ela em
dimensões, feita em outra exibição. É já uma fórmula. artesanatos) , que se opõe em sua natureza mesma ao es-
A grande invenção técnica desse pintor é a bisnaga, é pírito e ao rigor da obra clássica, ~ão se _propõe a ~rfec-
pintar diretamente com a bisnaga. A invenção nada tem tibilidade. Perfeito. Numa ,arte de 1mprov1saçao, de signos,
de caligráfica; muito, porém, do confeiteiro que enfeita o problema da perfectibilidade não se coloca, e não se co-
a crosta do bolo com merengue. Quer dizer, decorativa, loca porque outro problema, outro valor se põe. Qu~l ~ este?
apesar do mau gosto. Aqui, aliás, Mathieu revela um tra- Sem dúvida o da vitalidade significativa, o da essenc1ahdade.
ço que não afina nada com a tendência predominante entre Ora infelizmente a arte de Mathieu, como a de tantos ou-
tachistas, os quais, ao invés de bordar sobre a tela, a tros' artistas dito~ tachistas, - que os pintores brasileiros
violentam, a rasgam. O calígrafo precisa de um papel recém-chegados à escola se precavenham, pois o seu gran-
absorvente que lhe ofereça resistência ao pincel, borre e de pecado já é a gratuidade vazia - não é de essência, mas
não permita o retoque, de modo que o seu gesto seja irre- de capricho, de virtuosidade. Há nela _exce~so _de eleme1;1t?.~•
parável. multiplicidade de motivos e de arr~n1os tecmcos, amb1gp1-
Contrariamente à característica mais profunda da pintu- dade de intenções, parti-pris de efeitos. Falta-lhe a auten-
ra informal ou tachista contemporânea, à sensibilidade pre- tica vitalidade; sobra-lhe excentricidade.
dominante entre os seus mais eminentes protagonistas, qµe é
essencialmente háptica, Mathieu é essencialmente um visual.
Ele não entra em violento contato com a matéria; ao con-
trário, sobre ela desliza corho bailarino num tablado. Não

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8. INTERNACIONAL - REGIONAL
O problema d.o internacionalismo da arte moderna é
boje uma questão vital. Será, por exemplo, o tema-mestre
do próximo Congresso ordinário de críticos de arte, a
realizar-se em setembro deste ano*, na formosa Capital da
Polônia. ·
Quando se coloca esse problema, outro imediatamente
se levanta como seu acompanhante, ou contraponto - o
caráter regional do fenômeno. Os organizadores do Con-
gresso de Varsóvia não o esqueceram e, assim, o colocaram
como uma espécie de subtema, pois, naturalmente, decorre
do tema geral.
A questão do regional é, realmente, de enorme impor-
tância para o estudo do fenômeno do internacionalismo da
arte contemporânea. Já de há muito tempo que me vem
ela preocupando. :e, sem dúvida, uma questão capital so-
• 1%0.

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bretudo para países novos, em processo de formação cultu- foi decisivamente a linguagem internacional no século
ral moderna, como o nosso. XVIII - o neoclassicismo. Se tivemos tempo de desenvol-
Outro dia, folheando a pequena mas luminosa obra de ver certo regionalismo com o barroco português, em Minas
Lewis Mumford sobre a South Architecture, suas questões e Bahia, não tivemos tempo de desenvolver nenhum outro
me voltaram à tona, pois · Mumford, ao estudar a contri- regionalismo com as lições acadêmicas do neoclassicismo. O
buição arquitetônica do Sul do seu país, põe em relevo reviva! colonialista foi um movimento estreito e artificial,
precisamente a relação do universalismo e do regionalismo. de curtíssima duração, embora revelasse certa · inquietação
O primeiro é representado para ele na figura de Thomas em face dos problemas de aculturação de formas arquite-
Jefferson, não o Jefferson político, o fundador da Repúbli- tônicas trazidas de fora. Depois, tivemos a importação dos
ca, o autor da Declaração de Princípios, mas· Jefferson, o princípios racionalistas da arquitetura dita moderna, antide-
arquiteto, o entusiasta adepto do neoclassicismo; e o se-. corativa, antiacadêmica. Sob a bandeira do funcional, acima
gundo, na figura de Richardson, da seguinte geração, que de tudo, adotamos então o novo internacionalismo arquite-
influenciou toda a geração que desembocou na era moder-. tônico que domina o mundo.
na. Foi ele, com efeito, o mestre de J. W. Root, o criador Nasce dele toda uma geração de arquitetos que só
do Rockefeller Center, em Nova York, mestre também de L. pouco a pouco, e com muita dificuldade, vai mostrando
Sullivan, de quem F. L. Wright foi discípulo e através do acentos prosódicos, idiotismos vernaculares no contexto de
qual recebeu e desenvolveu os princípios de Richardson. sintaxe internacionaL É um processo de cristalização de for-
Assim, os regionalistas vieram depois dos universalistas mas arquitetônicas brasileiras, quer dizer, regionalização.
ou internacionalist,as, Richardson veio depois de Jefferson. Esta é que é a verdadeira tarefa do espírito criador dos
Não há de que se admirar, pois, segundo Mumford, "ca- arquitetos e artistas brasileiros, nos dias de hoje. Teimo em
racteres regionais" não podem ser confundidos com "ca- pensar que Brasília será um dos fatores mais decisivos para
racteres aborígines". É um erro identificar o regional com que essa cultura regional desabroche, enfim, plenamente,
o puramente ''local, grosseiro e primitivo", diz-nos aquele em nosso país, dentro da linguagem internacional, através
autor. E por que? Porque a "adaptação de uma cultura a da qual os homens de todos os quadrantes e horizontes se
wn meio particular é um processo longo e complicado, e entenderão, na fraterna e existencial intercomunicação que
um caráter regional em pleno florescimento é o último a só a Arquitetura, a Arte podem dar.
emergir". Veja-se, por exemplo, a cultura da vinha; à
medida que se toma mais requintada se contrai mais a re-
. giões cada vez menores, para acabar em alguns hectares ·
apenas de terreno privilegiado.
Para que um .país crie também formas regionais ar-
quitetônicas são precisas várias gerações. O regionalismo
não é apenas uma questão "de usar materiais locais disponí-
veis, ou copiar algúmas formas simples de construção usa-
das por nossos antepassados, na ausência de algo melhor,
um ou dois séculos atrás. As formas regionais são as que
mais de perto respondem às condições .reais da vida e
que melhor conseguem fazer que um . povo se sinta com-
pletamente em casa, dentro do seu meio: elas não apenas
. utilizam o solo mas refletem as condições correntes de cul-
tura na região".
Sob esse critério é que devemos olhar para nossa ar-
quitetura, nossas artes. No Brasil, tivemos primeiro a im-
portação de urna cultura universal, ou pelo menos oci-
dental, através dos padres e mestres-de-obras da era co-
lonial que para cá vieram, embebidos do barroquismo pre-
dominante num Portugal insular. Nas vésperas da Indepen-
dência, tivemos a introdução de outra cultura ocidental, que

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9. ARTE, LINGUAGEM INTERNACION.Al.
· No primeiro quesitó, colocado pelos organizadores do
Congresso de Varsóvia, perigunta-se em que septido se
pode falar "de unidade" da arte moderna: "'."""- "unidade de
"linguagem?" Antes de se responder à pergunta, é preciso
esclarecer o que se •entende quando se fala da Arte como
''linguagem''. Toda uma corrente estética moderna desen-
volve boje a concepção, originada no pensamento de Cas-
sirer, o grande filósofo . "das formas simbólicas", do cará~
ter · significativo-simbólico da Arte. Assim, a Arte, como a
linguagem, é feita de símbolos, quer dizer, de algo que traz
consigo e comunica uma significação.
Mas · enquanto os símbolos lingüísticos (na língua fa-
lada, na Lógica, na Matemática etc.) têm valor cognitivo ou
informativo preciso, subordinados a determinado processo
conceituai e, por assim dizer, da mesma qualidade espiritual
que aceituais ou utilitários destinados a transmitir informa-

$3
ções de ordem abstrato-científica ou de ordem prática, os
símbolos na Arte são portadores de expressão. ou nos Alpes europeus, nas campinas do Oeste americano
ou nos risonhos vales japoneses, nos centros mais cultos e
Para Cassirer, a Arte é fenômeno do mesmo estágio refinados da Europa ou nos mais bárbaros da África ou da
cultural e por assim dizer da mesma qualidade espiritual Oceânia, É a ·primeira vez que tal fenômeno aco,ntece na
que a língua, o mito, a magia. Há, no início dessas manifes- história cultural do Planeta.
tações espirituais e culturais decisivas da humanidade, uma
tensão psíquica que só se resolve na expressão. Que é,
assim, a expressão? É a representação dos impulsos subje-
tivos em formas objetivas. Esse impulso é exatamente o
que leva à formulação simbólica inerente ao espírito huma-
no. É, pois, uma atividade mental básica.
A função da concretização simbólica consiste em tra-
duzir, em representar uma experiência vital em termos de
outra. Essa idéia lembra a definição da metáfora por Aris-
tóteles: dar a uma coisa tim nome que pertence a outra.
Mas, nos primeiros estágios da formação lingüística, ensina
Cassirer, ainda não ·se tratava de "dar nomes", no sentido
estrito aristotéli.co, embora o processo metafórico já esti-
vesse delineado. Por isso mesmo, Cassirer fala, referindo-se
a essa primeira fase, em "metáfora radical", quando não s,e
tratava ainda de traduzir uma expressão verbal em outra,
mas antes na tradução do "sentimento de som''. Nesse sen-
tido analógico, Cassilfer define a Arte como "uma lin-
guagem simbólica". A' Arte, diz ele, "é uma interpretl!ção
da realidade", não através de conceitos, mas de intuições;
não através do instrumento do pensamento, mas de formas
sensoriais.
Os símbolos em Arte são, porém, de nàtureza e fun-
ção diferentes dos da fala discursiva ou dos fins prático-
.informativos, como os sinais de iluminação ou de trânsito.
Por isso mesmo não podem ser transmitidos de um con-
texto a outro, como conceitos ou palavras que podem indi-
ferentemente integrar um sermão, uma sentença filcis6fica,
uma demonstração lógica, um bate-papo, uma especulação
matemática etc. São, pois, não-discursivos, não-lógicos, não-
-propositivos. Só funcionam, só agem, não servem senão
uma vez, num contexto artístico, isto é, na obra em que
se apresentam, onde funcionam como os concretizadores àa
sua qualidade expressional.
Nesse .sentido se pode falar de Arte como linguagem, no
plano· do mito, das formas de pensar intuitivo, não-<:on-
ceitual. E é precisamente por essa qualidade sensível, vital,
não-conceitua}, não-intelectual que a arte moderna, reagin-
do contra o conceitua1ismo representativo acadêmico, ad-
quiriu sua formidável universalidade, e pôde, por sua for-
ça expressiva, entrar em comunicação, ao vivo, entre sen-
sibilidades humanas, estejam estas nas alturas inacessíveis
do Tibete ou nas planícies amazônicas, nas estepes russas

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55
10. ARTE E INVENÇÃO
O MAM nos dá, como uma espécie de abertura de
temporada, quatro exposições de uma só vez: uma que
não chega a ser mostra inaugural, a do aparelho cinecro-
mático do nosso Abraão Palatnik, pois lá já estava ins-
talado, e outra, que é ousada experiência de casa pré-fabri-
cada de autoria do arquiteto Sérgio Rodrigues e sua equipe
da OCA. As duas outras são de artes plásticas de gênero
tradicional, pintura e escultura de alguns artistas italianos
representados na V Bienal, e outra de nossa cara Zélia
Salgado, em vésperas de partir para longa viagem de pere-
grinação artística pelo Velho Mundo.
A mostra de Palatnik visa demonstrar ao público os
progressos técnicos feitos por sua maquininha, desde os
longínquos dias da primeira Bienal paulista, quando nos
pareceu tão difícil fazer os organizadores desse grande cer-
tame aceitarem experiências inusitadas como a daquele jo-
vem artista inventor. E seu aparelho só foi admitido na úl-

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tima hora, instalado no pior porão do edifício, e sob a con- cionanos de nossos dias serão inventores, ou não serão;
dição de não ser . incluído na seção de Pintura ou de qual- mas inventores como os arcaicos, que, tocados da ingenui-
quer outra categoria consagrada de Arte nem muito menos dade das crianças que amam, destruindo seus brinquedos, e
pretender disputar qualquer prêmio. Hoje, para honra do nutridos de pura imaginação, de si mesmos se esquecem,
nosso Museu do Rio, o novo sistema cinecromático ali está à eterna procura da pedra filosofal nos equívocos alam-
instalado, em permanência, como se pertencesse ao seu biques onde, ciência e magia ainda hoje se confundem.
acervo.
A pintura de luz de Palatnik continua a mostrar seus
encantos, a criar relações cromáticas sui generis em que
nem sempre a lei dos complementares se confirma, e com
maior riqueza e melhor distribuição de superfícies.
Mantendo suas qualidades inventivas, o artista aper-
feiçoou muito o mecanismo das projeções, de modo a fa-
zer com, que o campo de exposição seja agora todo ho-
mogeneamente iluminado para que a sucessão das formas
se dê com mais orgânica continuidade. Há também maior
elasticidade nos planos cromáticos, em função de uma en-
grenagem mais fluídica e manejável do que as primeiras,
quando cubos e caixas e prismas giravam, pesada e ca-
nhestramente, sobre si mesmos, a fim de .que as formas
projetadas na tela alcançassem revestimento colorido ponde-
rável e capaz de constituir uma composição: Na função
atual, os golpes de luz e o brusco desenvolvimento linear
são menos freqüentes ou menos destacados do que nas pri-
meiras versões, e, por isso .mesmo, mais integrados.
Entretanto, através do aperfeiçoamento técnico, o re-
pertório formal do artista não mudou, e certas constâncias
de sua imaginação pictórica reaparecem. Quando será que
Palatnik, com o gênio inventivo que Deus lhe deu, nos trará
nova revolução técnica e estética, assenhoreando-se da ele-
trônica para ganhar maior liberdade e variação nas suas
. experiências cinecromáticas? Se já se faz música eletrônica,
por que esse talentoso artista brasileiro não se decide a
palmilhar o terreno inexplorado daquela ciência para criar
também a pintura ou cinecromatismo eletrônico? Já está
na hora.
A arte moderna entra agora numa fase irremediável de
pura invenção e experiências, que arrebenta com os gê-
neros tradicionais (gravura, pintura, escultura etc.). Nessa
nova fase muitas das qualidades artísticas consagradas se
hão de perder, lamentavelmente. Mas a atitude primordial
de toda criação - a da experiência primeira - será de
novo encontrada, e isso é decisivo, uma vez que hoje, pre-
cisamente, o que nos mostram por si nessas amostras e
contramostras nacionais e internacionais são experiências já
feitas e refeitas, que, respeitando os quadros tradicionais,
apelam para o exótico, o insólito, o pueril ou o espetacular
e nunca para o ingenuamente criativo. Os artistas revolu-

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11 . DAS FORMAS SIGNIFICANTES A
LôGICA DA EXPRESSÃO
Desde que os psicólogos da Gestalt descobriram as leis
da percepção mostrando que esta não se cifrava a um caos
de sensações, sendo antes uma organização, uma forma den-
tro da qual as sensações se disciplinavam e se fundiam, e
isto tanto no animal como no homem, em qualquer idade
ou condição, não só o conhecimento psicológico deu um
salto considerável para a frente, como as nossas idéias sobre
o processo ·mental e o mecanismo intelectual tomaram no-
vos rumos e sobretudo uma consistência bem maioi:.
A noção, por exemplo, de intuição passou a ser abor-
dada por filósofos, semanticistas, estetas e psicólogos de
modo muito mais concreto, e o seu papel naqueles processos
a ser melhor compreendido. Cassirer, o genial criador e
sistematizador da "filosofia das formas simbólicas'' pôde
então mostrar como toda cognição de forma é intuitiva. E
fundada nessa asserção S. Langer escreveu: " ... toda or-
dem de relações - distintividade, congruência, correspon-

61
dência de formas, contraste e síntese num total Gestalt - à forma mais alta e desimpedida do símbolo que é a abs-
só pode ser conhecida por uma iluminação (insight) direta tração vocabular. Toda a arte egípcia está contida nesses
que_ é intuição. E: não só toda forma como toda signifi~ limites. Não em vão foram os gregos os verdadeiros her-
caçao formal ou significado (import) é visto intuitivamente deiros do alfabeto fonético, criação dos fenícios, povo de
(e por isso muitas vezes se diz que é "sentido"), ou não o intermediários. Só o grego soube aperfeiçoar a invenção prá-
é de todo; nisto consiste o valor básico simbólico que pro- tica fenícia, transformando-a nesse instrumento cômodo de
vavelmente precede e prepara o significado verbal" (Form admirável elasticidade coro que o seu gênio soube moldar
and F eeling) . o mais alto pensamento abstrato até então atingido e al-
Discutindo a noção de intuição em Bergson e sobre- cançar a libertação intelectual. Não foi também por acaso
tudo em Croce, salienta ela o fato de ser o último a identifi- o ter sido esse mesmo povo simultaneamente mestre da Fi~
cá-la com a "atividade expressiva", veículo pelo qual as im- losofia e da Geometria e igualmente uma nação de artistas.
pressões são "formadas e elaboradas'' e, por esse meio re- Fato psicológico ainda mais expressivo foi sua repugnância
dutíveis à intuição. Croce: "Intuição é a unidade indife- pela Álgebra e toda vez que lhe era impossível repre-
renciada da percepção do real e da simples imagem do sentar os números graficamente. Isso se verificou em par-
possível. Em nossas intuições não opomos nós mesmos ticular com os números negativos. Geômetras acima de
como ser~s . empíricos à r<:alidade externa, mas simples- tudo, tinham os gregos "escrúpulos de consciência com re-
mente obJehvamos nossas impressões, quaisquer que se- lação a números que não podiam desenhar em um gráfico·•
jam". Assim, para o filósofo italiano, intuição é uma sú- ( Cassirer). Ora, este gráfico era o que lhes ficava no pen-
bita definição, a instantânea compreensão de uma im- samento abst.rato da percepção sensível, fato este tanto
pressão. roais curioso quanto, jogando já como malabaristas com o
Explicando o seu conceito de atividade expressiva, ele signo fonético, permitiram ao pensamento racional cientí-
diz: "No fato estético, a atividade expressiva não é acres- fico a sua primeira floração magnífica. Ao mesmo tempo,
centada ao fato das impressões, mas essas últimas são for- separando-se das artes de todas as culturas precedentes,
mad~s e eJaboradas por aquela. . . O fato estético, por con- fundavam a sua na percepção imediata. Resultavam daí
segumte, e forma, e somente forma''. Com isso se descre- obras que eram simultaneamente cópia e modelo das for-
ve, no fundo, o que Langer demonstrou depois de Cassirer, mas naturais.
ser o processo elementar de simbolização, uma vez admitido Antes deles não vararam os egípcios a barreira ideo-
que os símbolos básicos primários do pensamento são ima- gráfica, e sua arte, talvez por isso mesmo, se fundou, coroo
gens. E que significam estas? Precisamente "as impressões nos mostrou H. Schaeffer de modo magistral (Von Aegyp-
passadas que as engendraram e também as futuras que exem- tischer Kunst), não na percepção imediata mas na idéia,
plifica a mesma forma". Essas imagens significativas apa- no conceito, processo aliás seguido pelos artistas de todas
rece!11. à ~ossa mente como ~ímbo~os antes da palavra, as culturas pré-gregas e arcaicas. Em compensação os ára-
matena-pnma do pensamento d1scur's1vo. E foi para esse ní- bes, bem depois deles, e que, ao contrário deles não tiveram
vel, o mais baixo possível, do processo simbolizador que, a consciência geométrica ultra-sensível dos helenos mas fo-
baseada na análise dos dados da experiência em Kant e de- ram os verdadeiros criadores da Álgebra e os mais faná-
pois nos dados experimentais da Gestalt quanto à percep- ticos monoteístas, nunca desceram ao nível ideográfico, e
ção, a filosofia das formas simbólicas apontou como aquele só parcimoniosamente se deixaram seduzir pela sensoria-
onde nasce e começa realmente a articular-se a mentalidade lidade fugidia da percepção primeira. Vedada à sua arte,
humana. Assim, a atividade desta ~omeça antes mesmo da pelos preceitos religiosos, a representação das figuras hu-
cristalização dos símbolos verbais, antes do desenvolvimento manas ou de criaturas vivas, os artistas muçulmanos, de
do modo lógico-discursivo do pensamento. Antes do sím- exemplar habilidade artesanal, se dedicam ao desenho abs-
bolo verbal a imagem é o primeiro veículo de que se serve trato de singular poder atrativo. Até os espíritos mais con-
a inteligência humana em botão. vencionais, e sensíveis apenas aos cânones figurativos do
Não foi por acaso que nas civilizações arcaicas os Ocidente, sentem essa fascinação, não se podendo furtar ao
alfabetos ideográficos, ideoplásticos, os hieróglifos prece- ritmo vital que brota dessas linhas e planos entrelaçados.
deram o alfabeto fonético. O pensamento egípcio não ultra- Um deles chegou mesmo a escrever: "ante o olhar
pas!ou o estágio do hieróglifo, e sua arte é bem a compro- contemplativo do oriental, o movimento rítmico de um de-
vaçao desse fato cultural de tremenda importância. Os hie- senho é uma necessidade tão indispensável como a melodia
róglifos são imagens em transição, que não chegaram ainda para o ouvido de um ocidental. A composição decorativa

62 63
exercia tal fascinação sobre os artífices muçulmanos que sensível que a física atual devassa, decifra à sua maneira.
dedicando contínuo e profundo estudo a seus problemas'. De que maneira? Criando condições artificiais de uma ex-
chegaram na prática a uma sistematização de linhas que periência ·que o homem jamais fizera antes. ~ que, violando
aind_a _não foi alcançada pelo artesanato moderno'' (A. H . com esta a própria natureza, o experimentador a obriga a
Chnstle, Artes menores de Islão e sua influência sobre o predeterminadas reações, que, estas sim, cabem dentro da-
trabalho na Europa). · quela experiência e confirmam por aí as condições preesta-
Ainda mais características do pensamento e da cultura belecidas, Graças a esse proceder experimental-matemático
artística islâmica, do ponto de vista que aqui nos interessa da Física, obtém-se, segundo Weizsaecker, "a visão de um
são as inscrições árabes que representam "o selo universai dos mais misteriosos aspectos de poder cognitivo do .homem
da influência ou dominação muçulmana sobre todo o âmbito em geral''. Ouçamo-lo: ''A física moderna produz sua pró-
de sua extensão"; estas, quando eram cópias de passagem pria experiência como se fosse um ato de violência. O ex-
do Corão, tinham então a dignidade de coisa sagrada. A perimento, que ela mesma traz para dar nascimento ao es-
caligrafia também ali elevou-se com isso à categoria de gran- tado de realidade que nos mostra, é uma manifestação ma-
de arte, e "até os traços de um grande mestre calígrafo terial especialmente eloqüente do espírito, que só conhece
e!ª.11!- procurados pelos colecionadores" ( Christie). A sen- enquanto cria" (The World View of .Physics). Essa con-
si?ilidade muçulmana por esses letreiros tinha algo mais in- clusão do eminente físico e filósofo sublinha a ~ua asserção
tnnseco e entra!111ado que a simples devoção religiosa pelos de que a "própria capacidade para o conhecimento possui
textos de seu hvro sagrado, e não se dirigia ao conteúdo uma espécie de poder criador''. O físico, o sábio moderno
l~teral da9,uelas i?scrições. Bra o meio desse povo antiplás- só chega a conhecer quando age, quando faz, quando rea-
tico, antlperc~ptlvo, de pensamento devorado pelo rigor liza ( ó Cézanne!) , isto é, quando cria. A apreensão científi-
abstrat_o preceitual, entregar-se a um diálogo frenético, quase ca da realidade complexa, de múltiplas dimensões - que é
pecam~oso, com fo~as e símbolos pré-verbais, carregados a única com que hoje nos deparamos - é pois um ato de
di; sentido e de sentimentos ou mais avessos ao gênio in- criação. Aproxima-se assim do mundo da Arte, em si mesmo
tnnseco de sua cultura. Nenhuma cultura, com efeito ex- também modo de conhecimento, ainda que intuitivo.
clu~das as ~s-ren,ascenti_stas ocidentais, já opôs titlvez O homem moderno criou toda uma linguagem artificial
m~iores _obstaculos a cognição pela forma ou ao, ,que na ter- para apreender o imperceptível, a que está agora reduzido
~ologia de Croce, é conhecimento intuitivo e para os teó- o universo físico. Mas a sua imaginação não se resigna a
ncos das formas simbólicas é reconhecimento das formas ser conservada no pórtico do conhecimento, como um · de-
simbólicas não-verbais. Nem por isso, como vimos, a arte voto leigo. Goethe, ao formular o ideal de um conhecimen-
muçulmana deixou de ser, como todas as outras uma arte to biológico independente, submetido a uma espécie de mor-
de sentimento e de inteligência. A idéia monot~ísta ultra- fologia idealistica, acreditava nos seus estudos de anatomia
passa sem dúvida a perceptibilidade, e o Islão se recusava a comparada, em "uma forma ancestral, mas que se opunha
reduzir a idéia suprema a uma imagem ao alcance dos sen- a qualquer forma individualizada'' (horror de Mondrian),
tidos. Herdeiros da cultura e do pensamento científico gre- isto é, ao individual tomado como norma para o todo. Era
gos e da idéia monoteísta via Roma - Judéia, árabes e mu- sua convicção que essa forma se tornaria evidente, se não
çulmanos puderam abroquelar-se com maior ou menor êxito aos sentidos pelo menos à mente. Os artistas modernos (e
na intransigência anti-representativa. Se tivessem ficado iso- com eles muitos sábios e filósofos) se empenham também
lados culturalmente, cercados pelo arcaísmo oriental, quem em encontrar algo semelhante, ou uma forma universal,
sabe teriam perdido a intransigência transcendental e inven- generalizadora e acessível, se não aos sentidos, ao espírito,
tado também uma nova· cosmogonia plástica? cuja atividade primorial é fabricar símbolos, talvez porque
A posição do homem moderno tem algo de semelhante seja de . sua natureza mesma nunca se exprimir a contentQ,
~ dele~ ( descontado o apoio grego), e à do homem primi-
sendo como é uma precária simbiose de inteligência e sen-
tivo diante da natureza quando só a podia conhecer através timento, de discurso e de imagem, às turras com o mundo
das formas do pensamento mítico ou poético. A natureza exterior.
misteriosa e por isso mesmo fecundamtnte estimulante para Felizmente para nossa segurança, já sabemos, que a lin-
o pe?s~me°:to a~caico (d_esprovido ainda de um apare- guagem verbal não foi a primeira. Que algo precede ou é
lho log1co-discurs1vo perfeito e acabado), que aparecia ao primário em relação ao pensamento conceituai lógico. Urban
homem primitivo, é hoje, para nós, esse universo não me- mesmo prudentemente reconhece: "Há razões para crer
nos misterioso e inacessível até mesmo à nossa geometria que a forma estética de expressão é representação, é uma

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forma original, se não a primária''. Tome~os aqui primá-
ria, se não num sentido de prioridade restnta, no de penna- gural. Mas as de padrões menos organizados, de maior os-
cilação de partes, ou de ambivalência marcada na relação
nência, de ter sempre existido. figura-fundo não são por isso mais. facilmente descartáveis
O que "pr~cede e prel?ara a_ significaç_ã? verb~l'' é_~ri- que as outras na visão do artista. Pode verificar-se até o con-
ginal e expressivo, quer dizer, e do dommi~ da mtuiç~o, trário, que a sua ambigüidade mesmo seja um elemento de
logo de conhecimento pela form~. C<;>mo a lm;uagem d_i~- atração a mais. · .
cursiva, aquele conhecimento implica re:aç~s cogn!tt- A forma perceptiva pode também, em lugar de se opor
vas, cujas regras de integração e coordenaçao sao também frontalmente de resistir como as formas das culturas pré-
de certo modo lógicas e abstratas, como sustenta Langer. -colombianas' resistiram às formas culturais dos conquistado-
Não se pode entender a própria forma sem um ª!º de a_bs- res, fazer uma política hábil de envolvimento, de insinuação
tração espontânea, pois é ela sen!o compreen~~~ de, lfil; para guardar se não sua integridade ao menos seus elemen-
pressões já organizadas na percepçao, portanto Jª _i_!}tu~das. tos preponderantes, de maneira a não se descaracterizar to-
Ora, para o homem tomar conhecimento o~ c~msciencia da talmente na forma erudita artística vitoriosa. Em todo caso,
intuição é preciso deter-se, separar-se do propno pensame1!- ficam geralmente traços, marcas da luta, e assim a forma
to ou do esforço mental lógico em que se concentra.! e olha- artística (aliás, toda forma criada que consiga isolar-se,
-la de fora. Isto não é somente um ato de abstraçao como mesmo sob condições experimentais artificiais; surge sem-
também de interpretação. Ambas, tanto; a abstr~çã~ 9uanto pre como algo que não estava previsto nem convencionado,
a interpretação são espontâneas, natm:ais. e . . .. mtmttvas. E exigido ou programado. Hoje, já se sabe que a percepção
tanto vão servir aos símbolos e formas discursivas como as visual não é apenas um processo sensorial e mental de su-
não-discursivas. Elas jazem, como afirma Laoger, na base perfície; é também um processo que vem do inconsciente
da nossa mente. São as raízes de onde se erguem . e__se para chegar à tona na região sensorial consciente, onde en-
ramificam tanto a linguagem verbal como a art7, a religiao, fim se cristaliza, e só o consegue depois de uma luta entre
0 mito. Quanto mais geral a forma, tanto ~ais ca':íegada várias camadas perceptivas, como nos mostrou A. Ehren-
de sentido emocional. Está mais perto do ntmo vital. 1á zweig (The Psycho-Analysis of Artistic Vision and Hearing).
Worringer demonstrava de modo satis!atóri? ~ .força emo- Haveria "uma oscilação rítmica inerente a todo ato de
tiva profunda e explosiva ~as. fo,r~as morgantcas abst!~tas percepção, de modo que toda experiência plenamente cons-
da arte arcaica. Desde a pre-h1stona, desde a art~ neohtica, ciente conteria algum material inconscientemente controla-
sobretudo os símbolos decorativos e ornamentais exercem do". P. Schilder, (Mind: Perception and Thought in their
sobre os 'que os vêem pela primeira ve~ ~a impressão Construction Aspects), o eminente psicólogo morto há ai•
indelével. É que sem dúvida esta~os ah diante de um:3 guns anos, também opinava que toda percepção passava por
expressão básica de formas ancestrais, e, carreg~o co~s1- uma fase mais primitiva, antes de ser conscientemente ar-
go; como toda forma criada, um sentimento, um ntmo vital ticulada. Warendock (The Evolution of the Conscious Fa-
profundo. . · culties) afirma também esse conceito de consciência cicli-
· Não há, com efeito, forma criada que não carre_gue e~ camente deslocada, pretendendo que todo ato perceptivo,
si um impacto emocional._ Mes~o a forma per~J?bva pn- por mais éurto que seja, mesmo a percepção de um lam-
mária é prenhe desse sentido vital. A f?rma artistica orga- pejo, representaria uma alteração cíclica entre diferentes
niza-se sobre aquela, ou como um aperfeiçoa~eD:t?, ou com_o sistemas. Toda imagem ao penetrar na consciência, "é pre-
arranjo ou desenvolvimento, dando-lhe u~ sigmficado_ ~Is cedida, por uma fração de segundo, de dúvida e ambi-
permanente e profundo. T~~ém P?de vir para comgi-la, güidade". As imagens da mente profunda, fragmentárias ou
alterá-la descolocá-la, substttm-la. Eis por que a forma. ar- as alucinações tentariam introduzir-se, infrutiferamente, na
tística não pode constituir-se sem co1:1tradi~õe~,. sem ~tntos memória final articulada representada na pen;epção cons-
e sem conflitos com a forma perceptiva pnmana; Dai vem ciente. Verificar-se-ia assim um impulso insopitável para a
sua maior dose de significado emocional. Ele se sobrepõe articulação, para a estruturação - quer dizer, para rea-
como enxerto na forma perceptiva ou a sobrepuja contra a lizar-se numa forma significante - até mesmo dessas alu-
vontade desta de permanecer, de resistir à medida que o cinações, desse material inarticulado.
artista mais se aferra sobre ela para modificá-la ou descar- O homem nunca viu, nunca, não ouviu nada, nunca,
tá-la. O comum dos homens é mais sujeito que os artist~s às pela primeira vez, impassivelmente. Toda forma é pois uma
percepções de formas privilegiadas na concepção gestalttana, surpresa. O poder sugestivo sobre nós de toda forma artísti-
formas fortes, prenhes, naturalmente de predominância fi- ca vem desse impacto de surpresa e dessa luta, desse afã

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profundo para estruturar-se. E não há surpresa que não mediação na Ciência como na Matemática; na Arte, porém,
nos toque, não nos perturbe, não nos comova. Essa surpre- é uma essência, uma objetivação em si mesma, uma enti-
sa pode ser de diferentes tipos, insidiosa ou chocante; pode dade para si. A Arte é pois esse modo de conhecimento
vir como uma embriaguez ou um atordoamento; como um fundado numa seqüência de · intuições independentes cris-
escorregão ou uma topada, uma impressão de mergulho ou talizadas em formas.
de ascensão; de avanço ou recuo, pode ser contínua ou A arte moderna deu a esse pensamento intuitivo um
descontínua. Se fôssemos agora nos divertir em aplicar o vigor que ele perdera, ao correr dos séculos de desenvol-
princípio às formas dos grandes mestres, diríamos, por vimento do espírito científico ocidental. O pensamento dis-
exemplo, que a forma de Piero della Francesca é ascen- cursivo, acompanhando aquele prodigioso desenvolvimento,
dente, chocante, agressiva, contínua e estática, enquanto que matou na árvore da consciência humana o ramo colateral
a de Da Vinci seria insidiosa, atrativa, recessiva e indefini- mítico-artístico não-verbal do simbolismo cognitivo. Para
da; em Cézanne seria ascendente, descontínua, agressiva, di- salvar a humanidade de morrer de fenecimento espiritual,
nâmica e afirmativa mas contraditória, ao passo que em Re- irrompeu, com a revolução estética sobrevinda com o im-
noir seria insidiosa, escorregadia, inebriante e inafirmativa pressionismo, um movimento inconsciente primeiro e de-
etc. pois conscientizado para restaurar as fontes soterradás da
Há realmente uma lógica na visão; e seu poder sobre imaginação simbólica não-discursiva, criadora dos mitos,
nós vem daí. Os elementos amorfos sensoriais que entram da Poesia e da Arte. ~. a nossa uma época comparável, sob
para ela só se organizam porque esta tem suas leis. ~ muitos aspectos, à da passagem da religião ainda arcaica, co-
as tem, pois, sua lógica, aqueles elementos, quando reum- letiva, fundada nas exigências do sistema social do tabu,
dos, articulados segundo certos princípios, são como uni- para a fase superior de individualização humanística. "Sob
dades fonéticas ou fonemas que entram na formação da a influência dos poemas homéricos", nos diz Cassirer (An-
palavra enquanto esta se constitui movida por uma força tropologia Filosófica), "começam a desenevoar-se todos
interna que se quer articular, concatenando dados da cog- esses traços arcaicos da religião grega . . . A arte grega pre-
nição prática. Esses elementos, porém, não se ?rganiz~m parou o caminho para uma nova concepção dos deuses''.
em símbolo numa identidade absoluta com as umdades bn- Como disse Heródoto, Homero e Hesíodo "deram aos deuses
güísticas propriamente ditas, qu~ t~ finalidade ~erta _e gregos os seus nomes e desenharam as suas figuras''. A obra
precisa: a de dar nomes e pred1caçoes .. Suas funçoes sao começada pela poesia grega foi completada pela escultura:
outras, visando conformar-se com o sentimento que Langer é difícil pensar no Zeus Olímpico sem que ele se nos apre-
chamou de biológico com eflorescência emocional. Essas sente na forma que lhe deu Fídias. A arte grega foi assim
funções, perfeitamente diferenciais das que entram como a mediação entre a imagem, a concepção ou a descrição
componentes do pensamento discursivo, são no entanto, co- mítica e a forma particular da realidade perceptiva. Graças
mo · as últimas, de importância decisiva na formação da a ela, a esse papel mediador, o pensamento arcaico mítico
consciência humana. cede pouco a pouco à preponderância do pensamento racio-
Certamente não exprimem elas proposições, como fa- nal científico-naturalista. A concepção mítica perde então
zem as palavras. Nem por isso, contudo, deixam de cons- seu isolamento exclusivo e sobrepessoal para encarnar-se
tituir também partes de uma gramática de visão, que, como na obra de arte, amoldando-se já a uma concepção mais
quer Langer, "descreve formas plásticas para a expressão individual, mais personalizada, embora de sentido univer-
de ritmos básicos vitais''. . sal. E por esse meio esta última concorre poderosa e sin,
A arte é uma seqüência de surpresas emotivo-cogni- gularmente (paradoxo grego!) para que o espírito científico
tivas. As intuições - significados do que elas dizem são prevaleça sobre o mito na interpretação do mundo. Foi ela,
aí, e só aí, realizadas (na acepção inglesa do verbo). Nesse assim, o instrumento encontrado para desmontar os símbo-
contexto a intuição é quase que fisicamente tocada, tor- los coletivos sagrados do pensamento arcaico.
nando-se como que percebida. E por isso é sempre uma A arte moderna encontra-se hoje diante de uma missão
súbita aparição. Pode ser~delimitada nos seus contornos, de- paralela à da grega, embora em sentido inverso. A força
finida num todo, ao passo que na Ciência ela é sempre cor- da obra de arte está em que, graças ao princípio de conden-
rigida ou idealizada, não sendo nunca conscientemente ar- sação (Freud), se pode encontrar em cada forma ou ex-
ticulada nem propriamente percebida, privada de qualquer pressão simbólica mais de um núcleo significante. Num sím-
autonomia, mero ingrediepte para cozinhar o conteúdo ló- bolo discursivo uma palavra pode ser tomada em sentido
gico que vai definir a proposição final. A intuição é uma literal ou em sentido hiperbólico. Num só contexto, porém,

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dades irrealizáveis pelo nexo causal simples, descobrindo em
não existe senão uma possibilidade significativa. Na forma nós mesmos novas maneiras de sentir e, portanto, de ser.
simbólica não-discursiva a significação é . delimitada pela Uma nova ética. A arte moderna, nas suas formas mais
própria estrutura formal; sendo assim, referências que num depuradas e audazes, nas suas manifestações aparentemente
contexto da razão discursiva só poderiam ser aceitas como menos sensíveis e humanas, está formulando certas pre-
alternativas lógicas podem coexistir na cadeia não-verbal, missas indispensáveis a um novo homem ou a uma hu-
como significados emocionais diversos ou mesmo contradi- manidade bem diferente desta de que estamos vivendo, com
tórios. Langer, entre outros, afirma ser possível a fusão de apreensão, os derradeiros lances.
dois fatos contraditórios em uma só expressão.
Uni dos exemplos mais ilustres dessa fusão ou co- Rio, junho, 1954 (Problemática da Arte Contemporânea).
-presença de interpretações ambivalentes numa mesma obra,
nós o temos em Guernica em relação ao sentido simbólico
do touro. O próprio Picasso variou quanto a esse sentido.
É ainda em 1947, tendo Alfred Barr Jr., então diretor do
Museu de Arte Moderna em Nova York, dirigido uma per-
gunta escrita a Picasso sobre se o touro representava o povo
espanhol vitorioso ou a brutalidade, ou mais especificamen-
te o nacionalismo do governo de Franco, ambas interpreta-
ções correntes e ambas em épocas diferentes aceitas pelo
próprio criador, recebeu do artista uma resposta aparente-
mente contraditória mas profundamente arguta: "Este tou-
ro é um touro, este cavalo um cavalo. Há também uma es-
pécie de pássaro, uma galinha ou um pombo, não me lem-
bro mais, sobre a mesa ... Naturalmente, os símbolos ...
mas não é necessário que o pintor crie esses símbolos,
pois, do contrário seria melhor para ele escrever justamente
o que quer dizer, ao invés. de pintar. É preciso que o pú-
blico ' os espectadores, vejam no cavalo, no touro, p símbolos
que eles devem interpretar como os compreendem .
Essa ambivalência significante da forma artística não
existe em nenhum simbolismo preso ao discurso lógico. Bus-
cando uma explicação do fenômeno, Langer o foi achar
numa espécie de similitude básica, biofísica, de idênticas
raízes neuro-sensoriais, de idênticas reações musculares para
sentimentos primários, fundamentais como a dupla alegria-
-tristeza, desejo-medo etc. As suas estruturas dinâmicas são
semelhantes guardando no interior do organismo relações
diretas entre si. Ora, nenhuma descrição lógico-literal admi-
te essa dualidade, ao contrário, sua função precípua con-
siste em ~epará-los rigorosamente. Não há na realidade sen-
timentos puros· dissecá-los, dar a cada um caráter unívoco,
equivale a de~montá-los artificialmente para a análise e
fins instrutivos. A rica ambivalência significativa dos símbo-
los presentativos, sobretudo da obra de arte só pode entre-
tanto ser verificada e comprovada por suas estruturas for-
mais, jamais .pela palavra ou pelos meios característicos do
pensamento analítico. .
. Eis. por que é privilégio da Arte nos dar da vida uma
imagem muito mais complexa e profunda do que qualquer
outro meio de expressão. Suas formas nos revelam virtuali-

70 71
12. CffiNCIA E ARTE, VASOS COMUNICANTES
A ciência matematizada, extremamente tecnicizada, tor-
na-se social e filosoficamente isolacionista. Ela veda o uni-
verso aos sentidos, e logo à imaginação dos leigos, quer
dizer, dos homens nus, desarmados em face dos mistérios da
Natureza. Renunciando a Ciência a uma imagem total in-
tuitiva, ou realmente sensível do mundo, proclamando a in-
suficiência e a impotência dos sentidos para apreender o
mundo ideomatemático que ela construiu, a humanidade
encontra-se pela primeira vez na sua curva de desenvol-
vimento sem uma concepção cosmogônica intuitiva ou mes-
mo cosmológica do universo. Pode ela, no entanto, viver
sem uma cosmogonia não transitoriamente proposta? Dian-
te dessa ausência vertiginosa e sombria· de formas intuitiva-
mente inteligíveis do universo, .o homem vacila. Suas mãos
tateiam em vão nas trevas, e sua cabeça não se conforma
ao vácuo informe. Ainda mais agora quand_o a hora inevi-
tável se aproxima de embarcar para a viagem interpla-

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tria era a ciência grega por excelência; a Álgebra, a ciência
netária. Não é extravagância, pois, se todo um grupo de por excelência árabe; com Álgebra não se fazem cosmo-
artistas se levanta para a construção dessa imagem forço- gonias, mas com Geometria essas se formam quase que es-
samente visionária por que temos nostalgia. Aliás, dentro pontaneamente. Entretanto, apesar de uma consciência geo-
desse grupo geral se diferenciam dois tipos de visionários - métrica pouco desenvolvida comparada à sua consciência al-
os cegos e os de olhos infantilmente abertos. E estes são gébrica, o pensamento mítico na cultura islâmica não foi
em primeiro lugar os matemáticos, hoje mais do que nunca contido, embora tenha sido talvez aguado pela influência
identificados aos artistas, pois o reino deles é o da pura crescente do pensamento greco-helenístico, já bem distan-
criação, inteiramente desligado de quaisquer amarras com te do pensamento grego arcaico ou mesmo do dos filósofos
o mundo grosseiro onde rem os pés, entregues ao puro pré-socráticos.
prazer das especulações. Entre os artistas propriamente, os Hoje, como já vimos, até a Geometria escapa às suas
visionários cegosl criam empiricamente pelo tato, pelos con- longínquas fundações perceptíveis. Nada mais difícil, com
tatos que ainda mantêm de certo modo e indiretamente com efeito, de. visualizar em abstrato do que certos complexos do
a paisagem exterior. Têm confiança na boa estrela, munidos repertório topológico. Diante dessa realidade geométrica ina-
de antenas que os mantêm virados para os bons ventos. cessível aos sentidos, o homem de hoje se encontra parado-
São veículos, instrumentos operatórios, encostos mediúni- xalmente numa posição paralela à do homem primitivo
cos. Os outros, de olhos abertos, dão diretamente expressão diante da Natureza. Nasceu, provavelmente, dessa analogia
às intuições da imaginação. Expressão em símbolos-objetos, de situações a nostalgia do pensamento mítico tão acentua-
vivências e realidades apenas em potencial. da nos tempos modernos desde o advento da revolução
Só visionários podem criar ou configurar cosmogo- impressionista, mas sobretudo do pós-impressionismo e dos
nias. Possa ou não possa, queira ou não queira, a Ciência, contatos ·com as artes das culturas arcaicas passadas e dos
essa tarefa cosmogônica .é mais do que uma missão sócio- povos primitivos não-europeus: Os filósofos pré-socráticos,
expressiva, é necessidade da ordem mais elementar, de fun- preocupados sobretudo com suas cosmogonias, deixaram ao
ções biopsíquicas do homem. O poder, a maneira de vi- desenvolvimento científico e lógico ulterior o cuidado de
sualizar num todo as impressões fugidias do mundo exterior, discriminar o que era erro do que era intuição verdadeira.
essa incoercível função organizadora da percepção no pri- Demócrito nos deixou a noção do átomo, de cuja existên-
meiro contato do homem com a Natureza, incluindo nesta cia jamais teve provas. Assim houve notícia da existência
o outro homem, já aí o obriga a construir na mente uma de certos fenômenos do universo como os próprios átomos,
síntese, um modelo, uma imagem geral e primária do uni- antes de terem sido descobertos pela Ciência, antes de esta
verso. Dessa espécie de primeiro labor cognitivo, nascem ter formulado leis para seu comportamento. Numa mesma
os mitos, nascem as cosmogonias. A descrição ingênua fe- ordem de .idéias, podemos apontar para o que se passa no
nomenológica é desde o início uma elaboração mítica. O campo da Matemática de hoje. Aí as lucubrações mais fan-
mundo não pode viver sem mitos, nem o cérebro pode cessar tasistas resultam ser geralmente aproximações do real antes
no seu · processo fabulador. Tudo indica estarmos agora insuspeitadas, ao mesmo tempo que redutíveis a entidades
nos começos de nova elaboração coletiva desse gênero. A espaciais geométricas inimagináveis até então, sem contudo
arte moderna, consciente ou inconscientemente, refaz os mi- deixar igualmente de encontrar utilização para decifrar fe-
tos como fez toda a arte do passado. Aliás, a formação nômenos e leis físicas desconhecidas.
dessas vastas concepções imaginárias foi em todas as gran- Se, .desde Newton, a Geometria e a Mecânica têm sido
des épocas uma das mais altas atividades dos artistas, se consideradas as bases indestrutíveis da Física e das demais
não a mais alta: que cultura ou que arte não teve suas Ciências Naturais, · para . os meios do século XIX, porém,
imagens, seus mitos sobre o fim ou sobre o nascimento do essas bases começaram a ser postas em dúvida com o ad-
mundo: o juízo final, as Torres de Babel, o dilúvio, a res- vento de uma nova ciência, a Termodinâmica. A segunda
surreição após a morte etc., etc.? De todos os povos e cul- lei da Termodinâmica relativa à transformação da energia,
turas, os do Islão, além dos judeus, foram talvez os únicos à passagem do valor a outra energia ou vice-versa, junta-
monoteístas a não permitir a representação de Deus, intei- mente com a idéia da entropia puseram em destaque uma
ramente para além da perceptibilidade, por um modelo des- intuição fundamental da mentalidade científica moderna: a
critivo sensorial ou reduzido a figura particular. A Geome- distinção capital entre processos reversíveis e irreversíveis.
1. Depois de escritas estas linhas, Védova, o laureado pintor ih.- A influência dessas -idéias passou então a dominar cada vez
liano, me confessou ein conversa que seu de·sejo era uma "pintura cega". mais o espírito dos cientistas. A luta entre os partidários da
(N. do A., 1960) . . . .

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74
energética encheu todo o resto do século até princípios des- eleva esta última de medida de toda proporção à noção
te. Mas já então Planck, o criador da teoria quântica, eminentemente energética das linhas de força, abstrações vi-
podia escrever, generalizando o alcance daquela distinção talmente atuantes nas estruturas dinâmicas como as cor-
entre processo reversível e processo irreversível para lhe rentes de água, por exemplo. Tratando de dimensões e equi-
dar a importância de um traço básico de todo acontecimen- Hbrio, substitui a velha noção estática de simetria pela de
to na ordem natural, o seguinte: "Esta distinção, com mais "igualização das partes desiguais mas equivalentes". (A arte
direito ·do que qualquer outra, podia ser tomada como base de Calder!) Ao abordar a seguir o problema da posição
preeminente para a classificação de todos os fenômenos fí- do homem e do objeto no espaço, em relação à força de
sicos e poderia ainda eventualmente desempenhar o papel gravidade, ou dinâmica natural das coisas determinada pela
principal em qualquer cosmologia da física do •futuro" curva gravitacional, o artista é sobretudo sensível às "re-
(Conferência em Leyden em 1908, citada por E. Cassirer). giões onde diferentes leis e novos símbolos permitem um
Simultaneamente, a teoria da eletricidade conhecia enorme movimento mais livre e uma posição mais dinâmica''. Na
desenvolvimento, desde que Faraday-Maxwell introduzem a última parte, dedicada aos fenômenos energéticos, ele in-
teoria do campo eletromagnético. troduz, para compreensão e definição dos fenômenos natu-
Com todos esses acontecimentos no plano científico, rais, um elemento extem.o mas fundamental que é o quan-
novos conceitos são transplantados para o domínio especula- tum humano, isto é, a idéia, uma forma simbólica. Para
tivo da Teoria do Conhecimento e outros ramos da Filo- Klee, a "composição'' só existe como "coordenação ciné-
sofia, pois as propriedades geométricas, as únicas que res- tica'' ou "solução de infinitude cinética''. A energia, como
tavam para traduzir os fenômenos do mundo sensível e fí- num sistema termodinâmico, se resolve então por uma "in-
sico, desde o abandono das velhas noções metafísicas prove- t,epsificação da cor" que se move entre o extremo negro e
nientes ainda da física aristotélica, provaram ser insuficien- o extremo branco. Em Kandinsky, os objetos não são outra
tes para a complexidade crescente da realidade exterior. No- coisa senão um campo de energia-tensão, e, quanto à com-
vas qualidades são então chamadas em auxílio para de- posição, é um simples arranjo de linhas (Punkt und Linie
. finir as estranhas concepções objetivadas da visão cientí- zur F laeche). O que ele ensinava aos alunos na Bauhaus era
fica atualizada. Suas propriedad~s têm como características observar, não a aparência externa do objeto, mas os seus
principais um dinamismo intrínseco que as torna ainda me- elementos estruturais e o que ele chamava de força lógica
nos acessíveis à percepção · imediata do que as geomé- e tensões. Para Mondrian, o ritmo é tudo, pois sua função
tricas; superação do diálogo, energia-massa, pelo de dina- é expressar o movimento dinâmico através de uma contínua
mização da massa, descontinuidade da matéria etc. Por coin- oposição dos elementos da composição. Por este meio, a
cidência, deliberada ou inconsciente, os artistàs contempo- obra de arte, uma pintura, é uma espécie de campo ele-
râneos passam também a fundar suas pesquisas nesse dina- tromagnético onde forças contraditórias mas organizadas
mismo novo, nessa visão em movimento, de que Moholy- exprimem o que ele designa por ação, quer dizer, vida.
Nagy foi um dos grandes teóricos e um dos exploradores A ação é criada pela tensão da forma, da linha e da inten-
mais lúcidos. sidade das cores. Na ,sua arte, o mestre holandês só dis-
Cubistas e futuristas, expressionistas e pós-impressionis- tingue oposições de posição e dimensões. Em outra oca-
tas, Klee, Mondrian, Kandinsky, Malevitch, Moholy-Nagy, sião, escreveu: "Tanto a Ciência como a Arte estão desco-
Doesburg, Arp, Pevsner, suprematistas, vorticistas, raionis- brindo e nos fazendo conscientes do fato de que o tempo
tas, neoplasticistas, construtivistas, abstracionistas expressio- é um processo de intensificação, uma evolução do individual
nistas, todos recorrem com maior ou menor propriedade a para o universal, do subjetivo para o objetivo; para a essên-
essas noções para explicar as concepções que os movem. cia das coisas ~ de nós mesmos. . . Através da intensifica-
Klee, que além de artista visionário foi professor emi- ção podemos criar sucessivamente planos cada vez mais
nente e um fino teórico, dividiu o seu livro de Esboços profundos ... " (Plastic Art and Pure Plastic Art).
Pedagógicos, resumo das lições na Bauhaus, em quatro par- Esses conceitos de força, de energética, de dinâmica, in-
tes bem sintomáticas: Linha proporcionada e Estrutura; Di- tensificação etc., vieram daquelas ciências provavelmente
mensões e Equilíbrio; Curvas de gravitação, e Energia Ci- via psicológica moderna, sobretudo as várias escolas holis-
nética e cromática. A sutileza de seu pensamento e de sua tas, como a Gestalt e a variante organísmico-dinâmica de
imaginação plástica vai muito além do puro mecânico e Kurt Lewin. O pintor e teórico Allen Leepa (The Challenge
da simples geometria métrica, como também da projetiva: of Modern Art) a propósito escreveu: "A energia psí-
partindo do simpl,es ponto em progressão para a linha, ele quica de um período tem influência marcante sobre os tipos

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de forma e imagens usadas. Fundamental à atividade do
homem é o alívio de tensões que são causadas por proble- Assim, artistas e teóricos nos falam cada vez mais
mas sociais e pessoais". Kurt Lewin, o .eminente fundador dessas qualidades dinâmicas - tensão, energia, força, vi-
da Psicologia Topológica, que procurou definir os conceitos bração, atração - e cada vez menos dos velhos termos
· psíquico-dinâmicos com os topológicos (A Dynamic Theory surrados das receitas acadêmicas. A idéia de balanceamento
of Personality), dá como causa do comportamento, sob to- tende por isso mesmo a ser substituída pela de relações
dos os seus aspectos, "os sistemas de energia e tensões inter- espaciais; a de composição pela de campo de forças; a de
nas" que resultam das necessidades do indivíduo. Sua teo- desenho pela de inter-relações de linhas e planos etc. A
ria se baseia essencialmente no conceito de campo, trans- noção acadêmica de composição era de ordem essencial-
plantado da teoria eletromagnética para a Psicologia. "Todo mente estática, visando sobretudo chamar a atenção do ob-
comportamento (inclusive a ação, o pensar, o desejar, o es- servador para as figuras ou formas colocadas privilegiada-
forçar-se, o avaliar, o realizar etc.) é concebido como mu- mente nos planos centrais do quadro. As composições ditas
dança de algum estado de um campo em determinada uni- triangular, piramidal, circular etc., tinham grande cotação e
dade de tempo" (Field Theory in Social Science). No plano ainda hoje são minuciosamente descritas nos manuais com-
psicológico individual, essa noção é equivalente ao que Le- positivos.
win chama de "espaço de vida'' do sujeito. O conceito de Numa passagem, muito interessante, sobre, por exem-
campo ajusta-se perfeitamente ao da sensibilidade contem- plo, o problema do balanceamento e composição, Allen Lee-
porânea, feita de oposições diretas de direção e de movi- pa, com a dupla autoridade de artista em exercício e es-
mentos, de intensificação e de tensões, num meio bem de- critor, descreve com precisão o processo criador do ar-
limitado. tista, movido sempre e instantemente (Kandinsky!) pela
Os processos tradicionais de criar espaço como a pers- idéia de força e de equilíbrio num campo definido. O sen-
pectiva, o esforço, os planos em diagonal, ou inclinados, o timento de força e o sentimento de equilíbrio, diz-nos
claro-escuro, nos davam do espaço uma imagem passiva. Leepa, andam sempre confundidos, embora sejam diferentes.
não criando o que é essencial à mentalidade e à sensibili- ainda que relacionados. O último, isolado, como na pintura
dade moderna: um sentido de força espacial. A relação de tradicional, é como um "sentimento de gangorra'': massas
planos numa superfície cria tensão, cria força, enquanto de um lado da tela, massas do outro lado; um canto de
que o espaço em si não cria. Para Leepa "o espaço que tela vis-à-vis ·de outro canto. Ora, o sentimento de força, a
os planos criam se torna ativo por associação com as re- sensação de equilíbrio de formas numa tela produzem sem-
lações de emoção-tensão e o sistema de energia psíquico pre no pintor, quando trabalha, intensa experiência emo-
fundado nessa oposição de tensões". "A força é mais in- cional, de que depois participa o espectador de modo ativo.
timamente ligada com o plano da tela do que com o es- Trata-se, continua ele, descrevendo sua própria experiência,
paço realístico retratado. . . A reacentuação da superfície de . uma reação emocional para com uma relação de partes
pela pintura contemporânea plana traz esse traço essencial que se opõem umas às outras e que o artista sente à medida
do trabalho criador. A tensão-emoção parece ser intima- que avança no trabalho. Mas o simples ato de balanceamen-
mente ligada ao deslocamento e oposição das formas na to de formas na tela não requer necessariamente grande
superfície da tela. O deslocamento das formas controla na intensidade emocional. E, prosseguindo, nos dá a razão pela
realidade a direção da emoção-tensão: é o elemento mais qual o sentimento de força e o de balanceamento são tão
poderoso com que trabalha o artista. Isso não quer dizer freqüentemente confundidos: é que "ambos os processos
que o espaço não funcione nesta emoção-tensão, mas que funcionam ao mesmo tempo durante a atividade criadora,
é criado como elemento mais espontaneamente sentido do à medida que o artista trabalha, desenvolve toda a sua pin-
que compreendido intelectualmente enquanto o artista pin- tura, opondo e balanceando uma forma contra a . outra. Em
ta" (Allen Leepa) . outras palavras, é possível experimentar equilíbrio sem in-
:8 fundamental para a compreensão da pintura moder- tensidade emocional, mas não é possível sentir intensidade
na, e, portanto, da sensibilidade contemporânea, distinguir emocional sem equilíbrio; emoção-tensão não pode ser cria-
entre o espaço que para existir depende que o reconhe- da seni equilíbrio - ela incorpora o balanceamento numa
experiência mais intensa e mais profunda ... Uma pintu-
çamos na tela e o espaço sentido, ou melhor, esse senti-
ra balanceada não é necessariamente uma pintur~ de cria-
mento de um espaço circundante que entra como fator ção. O artista pode sentir balanceamento em sua tela e
indispensável à evidenciação das forças componentes da ainda não experimentar nenhuma intensidade emocional. A
tensão formal. vitalidade expressiva de uma pintura não é determinada pela
78 79
justaposição passiva de formas na tela, mas por uma rela-
ção profundamente sentida dessas formas". Procurando de-
finir com mais profundidade esse misterioso binômio, equi-
líbrio dinâmico-emoção-tensão, Leepa recorre à autoridade
de Mondrian, o austero e formidável mestre da dialética das
oposições de direção e posição, que assim ó descreve: " . . . o
equilíbrio de qualquer aspecto da natureza se apóia na
equivalência de seus contrários''. Essa descrição mostra co-
mo são indissoluvelmente fundidos o elemento inconsciente
e o consciente, o elemento intelectual e o elemento impul-
sivo no·processo criador. Uma coisa porém se destaca com
clareza: o artista, vê, sente, relaciona e coordena simulta-
neamente; e · todas essas experiências são ao mesmo tempo
funções intuitivas, sensh;eis e lógicas. As relações de es-
paço, de forma, de oposição de direções, de linhas de for-
ça, de intensificação, de repulsa e atração, de tensão e
distensão, de diferenciação e integração e essa vigilância
contínua, incessante, para não ver, não sentir, não com-
preender nada unilateralmente, tudo isso que é específico
da atividade criadora artística mostra as afinidades que ir-
manam o processo mental de um sábio como Helmholtz e
o de um artista como Cézanne; de um matemático como
Klein e de um pintor como Kandinsky. Aliás, nesse ponto,
é oportuno lembrar que uma autoridade insuspeita, como
a do grande teórico da semântica moderna W. M. Urban,
põe os desprevenidos em guarda contra uma excessiva sim-
plificação quanto a essa ''popular divisão do simbolismo''
que coloca de um lado Arte, Poesia e Religião e de outro
a Ciência. Isto, diz ele, "pressupõe uma distinção entre Arte
e Ciência, que, pelo menos nessa forma extrema, pratica-
mente não existe. Mais e mais a própria Ciência tende a 13. VENEZA: FEIRA E POL1TICA DAS ARTES
negar o absoluto desta distinção e a insistir sobre o parentes-
co entre a imaginação artística e a científica'' (Language Na feira (perdão) das artes em Veneza, nesta XXXIII
and Reality) (Da Problemática da Arte Contemporânea, Bienal ora aberta, deu-se algo extraordinário: o grande prê-
1954). mio m'ternacional de Pintura para um sul-americano: Jules
Le Pare, argentino, de 33 anos, um dos fundadores do Gru-
po de Recherche Visuelle, e que expôs no Rio de Janeiro, no
nosso MAM, há dois anos, como ainda outro dia lembrava
Jaime Maurício, lá de Veneza. Le Pare representou sozinho
seu país numa autêntica apresentação de última hora, já
que o mundo oficial argentino não conseguira organizar ·
uma mostra em tempo, com copiosa e ilustre delegação de
comissário, vices e subcomissários, como fez o Brasil. O
resultado, no entanto, não foi só o oposto do nosso, como
inesperado e revelador. Le Pare, que em 15 dias juntou suas
coisas e partiu para Veneza, segundo informações de ami-
gos seus que por aqui passaram, estava longe de pensar
em prêmios. O próprio Time conta que foi encontrar o
artista, no dia mesmo das !áureas, lá longe espichado numa

80 81
pra~a do Lido, despreocupado e já pensando nà volta a
Pans,, 9ue reparte seu domicílio com Buenos Aires. Diz
Maunc10 que sua mostra constava de 41 peças deslocáveis sabedoria que está nos ideogramas chineses. Em 1954 oU
por aí, Calder arrebata o prêmio de Escultura, com uma
(J?~r aperto ..d~ botões) para vibrações de luz e formas ci-
n~ti_cas, ou simplesmente jogos de surpresa para uma es-
obra estonteantemente nova e que vai abrir caminhos insus-
peitados ao próprio conceito de Arte: é o primeiro dos cri~L
p~c1e de Luna Park óptico". O Time fala de obras moto- dores ocidentais que brincou com arte e fez grande arte. F1-
nzadas que pulam, num borbulhar de bolas de pingue-pon- ·nalmeilte na precedente Bienal, há mais do que impacto, há
gue em frente a telas de plexiglass ofuscantes. escândal~: Robert Rauschenberg, o capitão bem-humora-
Pelo q1;1e se depreende, Le Pare levou a Veneza obras do da pop'art, bate todos os concorrentes, com algui_nas
na m~sma linha das que, com todo o seu grupo exibiu na obras insólitas, que devem muito mais às técnicas gráficas
IV Bien~l ~~ Jo_vens de· Paris, no ano passado, 'em "nome e publicitárias modernas do que aos sagrados cânones da
da desm1stif1caçao da obra de arte e do ato criador e vi- graride pintura dos · museus. Suas obras são cartazes imen-
sand? à reconsi~eração d?. apreciador num esforço por ar- sos, numa homenagem ao presidente assassinado - Ken-
ranca-lo por me10 de sohc1tações ou provocações à ação''. nedy, fotografado de corpo inteiro; nóutra_ um _relógio real,
Naquela ~ala azougada, a "obra de cada um desaparecia'' material, não-pintado, escandalosamente msendo na tela.
e~ proveito de elementos que contribuem para a organiza- Mas a batalha foi dada também fora dos jardins da Bienal,
~,ªº ~e U_?I lugar de lazer e de ativação, onde esses elementos com uma inscrição provocadora pregada um pouco por
Ja nao sao obras fechadas. Essas definições são de um pe- toda parte: "O centro mundial de arte deixou Paris por
qu~no ~rospecto q_u~ apresentava a sala dos artistas de pes- Nova York''.
quisa visual aos V1S1tantes perplexos e hesitantes entre me- A provocação foi deliberadamente lançada, em obe-
xer e contemplar, ver ou participar. Muitos o faziam· timida- diência às leis de uma publicidade que não é mais apenas
m:nte, como_ criança que. vai, em passeio de domingo, pela a serviço do privatismo concorrencial do mercado, mas em
~ao ?ºs pais a uma ferra ou a alguma exposição. Era nome do prestígio oficial dos Estados Unidos. Os promo-
divertido, atraente e por vezes pueril, mas dava também tores · de Rauschenberg unidos, marchands e burocratas,
para remoçar algum burguês sisudo. Havia ali o embrião jogaram a batalha para vencer, e venceram. Como se sabe,
graças à técnica da publicidade, elevada nos Estados Unidos
ou o embrião.Ade. e~bri~o de algo indefinido ainda, algo pelas· exigências de sua economia de mercado à categoria
como a expenencia médita de uma liberdade nova.
de Arte •e de Ciência, o totalitarismo moderno, sobretudo
Poderia haver na Bienal outros artistas da mesma ten- a · partir do movimento hitlerista que a incorporou no sis-
dência melhor represent~dos. Contam os que viram que a tema, encontrou nela ,meios não fisicamente violentos para
sala de um Jesus Soto, mestre da visualidade cinética outro impor· sua doutrinação política. Desde então, as leis da publi-
sul-americano, da Venezuela, que soube atravessa; vinte cidade passaram a fazer parte da arte ou da ciência de go:
ª!1-ºs de inco~preensões e ostracismo até chegar ao mere- vernar. A publicidade traz em si mesma a primeira condição
c~do rec~nhecimento mundial de hoje, era estupenda. Não totalitária: não permitir nenhuma área das atividades hu-
vem porem ao caso tais considerações. manas, mesmo -privadas, fora de sua ação. ·
Le P~rc ta~~ém é um arpsta de mérito invulgar; ele '' O Estado dito liberal americano, ao adotar como ins-
c~sa 1:llllª mv~nt_!Vldade es~ontanea e rica a uma poderosa trumento de ação política a máquina da publicidade, des-
v1sualida?e plastica. O que Importa aqui é o rompimento de cobriu conseqüentemente a importância moderna da Arte,
um arraigado preconceito cultural artístico: fora da Eu- e já não abandona mais o setor ao laissez-faire de antes.
ropa Ocidental não há grandes pintores ou grandes escul- Ele é hoje um dos que mais absorvem recursos e atenção do
tores. State Department: a Arte a se_rviço da polít~ca ex~erna
Mas já na década de 50, pela pressão de ser formidável americana. Até os idos de 50 mais ou menos, amda nao se
mercado de arte e também pela evidencia da vitalidade viam niaiores traços da ação oficiá! do governo americano
incomparável da arte americana moderna, . o preconceito nas mostras internacionais de Arte. Agora, estas se vão
era furado. Tobey, creio, · o grande mestre _da costa ame- tórnando também campos e luta e cor~petição ~ncarniça~a
ricana, do Pacífico, foi o primeiro a arrancar em Veneza de Washington. Outrora as representaçoes amencanas eram
o galardão pictórico para sua obra. Ele desvendou ao Oci, um modelo de discrição e de comedimento. Uma federação
dente horizontes novos, uma pintura descentralizada e de rle museus, · sem financiamento estatal, as organizava; seus
mil ~raças, estilhaços de signos de ambivalência significati- comíssários nada tinham com o governo, e era freqüente
va vmdos talvez dessa estratificação milenar de cultura e ver-se membros americanos dos júris internacionais vota-

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rem em artistas de outro país, encarando suas obras sob da própria Arte, em face da vida. (Na Europa, em geral,
puro prisma estético. essa atitude de seus artistas é mais intencional ou consciente
Agora as delegações financiadas pelo Estado e por do que nos Estados Unidos.) Estamos diante de uma capi-
estes co_ntroladas chegam dispostas a arregaçar as mangas. tulação aberta à objetividade imediata do cotidiano. O ar-
· Na~a disso - e11tenda-se bem - significa que uma perso- tistas tomam os objetos do cotidiano, do consumo de massa,
nalidade como Rauschenberg não estivesse à altura de levan- e os isolam, os apresentam tal e qual são, ou os copiam, ser-
~ar o prêmio que levantou em Veneza em 1964. Aliás, não vilmente, para não haver dúvidas que não querem "trans-
e de agora,, depois que o Estado passou a promover as Artes figurar" a realidade nem muito menos transcender a nada.
no exterior, •que Nova York se tornou num ou no grande Ajoelham-se, passivamente, diante do objeto em si. Sobre-
centro artístico do mundo. tudo ·não se trata para eles de enfeitar a realidade, de
, 9ueira,mos ou não, os Estados Unidos são hoje ainda idealizá-la no endeusamento de uma sociedade de buro-
º. umco J?ª.1s realmente moderno. Foi a sua a primeira so- cratas dirigentes, como eram obrigados a fazer os artistas
ciedade ClVll a ser de f!to integrada no contexto da produção soviéticos na época do culto a Stálin.
em massa. A produçao em massa trouxe um condiciona- Para o artista pop, um relógio é um relógio mesmo,
mento novo àquela sociedade. Obrigou-a a alterar seus uma salsicha uma salsicha, um motorista no ônibus enges-
hábitos cotidianos, seu modo de viver sua cozinha seu sado uma reprodução exatíssima do verdadeiro, um porco
comer, seu vestir, seu lazer, seus rit~ de iniciação - um porco etc. A realida.de do imediato em que vivem é
nascer, casar, morrer. Não vai nessa afirmação nenhuma um pátio de prisão de muros altíssimos. Dela não se .es--
apreciação de valor; mera constatação. Mas talvez explique capa. Como que dizem os grandes artistas americanos ~e
o fato de a arte moderna, não ali criada, ter tido, no país a vanguarda: a realidade não se idealiza, a realidade .nao
sua maior acolhida. O primeiro Museu de Arte Moderna · se interpreta, a realidade não tem transcendência, ~ reali-
do mundo surgiu em Nova York. O primeiro grande movi- dade é o que ela é, .a um palmo do nariz. (A re~l~~ade. é
mento artístico, depois dos ismos da primeira metade do o Vietnã) . . . brutalidade latente ou oculta da c1vilizaçao
século (cubismo, surrealismo, abstracionismo etc.) foi a americana tomou-se com o cinema e o pop aberta, explí-
action painting nos Estados Unidos e tendo na formidável cita. O paradoxo é que nesse mesmo momento histórico-
figura de Pollock o seu protagonista e o seu mártir como -cultural o Estado americano se sente na. necessidade de
o ~u . teórico em outra admirável figura de int~lectual mobiliza~ a arte de seus artistas para cobrir a face horrenda
radical, desabusado e lúcido, que é meu amigo, Harold de sua política imperialista. .
Rosenberg. O gestual da arte de nossos dias veio sem Os americanos, no entanto, perderam em toda a lmha
dúvida da caligrafia abstrata japonesa, mas através dos do conteste de Veneza. Lichtenstein era o candidato ao
Es~ados Unidos, ~a sua posição mediadora entre a Europa grande prêmio. Lichten~!e~n é ~ aut!~tico_e ~ande a~ista
Ocidental e o Onente. (~ esta talvez a posição privilegiada da tendência pop. Um 1un de d01s cntlcos italianos e cmco
de todas as Américas, se a nossa, cá de baixo, conseguir europeus, dos quais apena,s 1;1m da faix_a oriental, t~hec?,
vencer a barreira do confinamento com que a de cima a acabou por descobrir o artista argentmo. O com1ssáno
do Norte, insiste em nos isolar do· mundo, do Oriente, 'do americano, por sinal um crítico de grande e merecida no~
Extremo Oriente, que não é apenas o Japão e a 1ndia mas meada, não se conteve, e distribuiu nota, _ao saber das
também a enigmática China continental em transform~ção.) premiações, para denunciar o júri e os prêffi!OS como sem
Não é também por acaso se foi nos Estados Unidos significação. O crítico do New York Times desancou a
que emergiu o atual movimento do pop'art, cuja impor- Bienal como "uma das mais esquálidas resenhas de arte
tância imensa é sobretudo de ordem cultural. Com o pop já reunidas". Ao nosso país coube um prêmio secundário,
não se trata mais de "transfigurar a realidade", explica de compensação, embora o nosso Sérgio Camargo, com uma
R:ausc~enberg par_a críticos italianos perplexos, mas de '.' uma escultura de luz e sombra de alto nível, tenha. sido visto
d1~torçao da realidade". No fundo não é distorção mas e ponderado pelo júri, que preferiu parar em Le _Pare. Era
a verificação - · após a profunda, t;anscendente e l~inosa seu direito. Le Pare é um dos nossos, e seu prêmio .marcou
experiência dos puros valores plásticos com o abstracionismo urna data cultural para toda a América do .Sul subdesen-
:-- de uma realidade circundante feia, grotesca, deformante, volvida.
mumana ~ hu?Ian_a, mas poderosa e fascinante pelo que Um artista da periferia é dÍstinguidó entre mestres,
dei! º. artista mtm. '? pop com efeito representa, na sua bem protegidos, dos centros metropolitanos ocidentais, e
essenc1a, uma nova atitude dos artistas americanos em face o é com proposição nova aos visitantes da prestigiosa ins-

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tituiç_ão. Insultaram-no por isso. A indignação de grandes
gale~1as co~. seus_ pupilos e grandes críticos superdesen-
volv1dos. foi msop1tavel. Na Itália mesma ergue-se um de
~eu~ e~mentes críticos para do alto de' sua empáfia de
dois m!! anos de arte'' referir-se ao artista laureado como
apenas uma personagem argentina que não teve receio
d~ apresentar um /una-parque". Não, efetivamente Le Pare
nao teve nenhum receio. É um bárbaro em Ven~za Flo-
rença
. ou
, . Roma, ~ por isso
· - pôde satisfazer ao gosto
nao A '

anstocratico do ~ntico; _trouxe apenas um projeto não tanto


para c~n~empla_ç~o est~t1ca, mas de um viver novo, otimista,
sem duv!da utop1co amda, para os homens atribulados de
nossos dias.

14. CRISE DO CONDICIONAMENTO ARTlSTICO


O problema central da arte de nossos dias é o de sua
integração nà vida social como uma atividade legítima,
natural, permanente e não apenas tolerada ou aceita, mas
à parte, para certas ocasiões, em certos meios. Atividade
natural, legítima como as diversões, o esporte, a publicidade,
as práticas religiosas. Será um dos temas do próximo con-
gresso internacional de críticos em Praga, após ter sido
em Israel, em 1963, por ocasião do outro congresso de
críticos, objeto de debate, sob um ângulo ligeiramente
diferente qual o "da criação artística na tecnologia mo-
derna''.
Esta, como se sabe, vem alterando e de modo cada vez
IJ:1.ais rápido e em profundidade não s,6 o condicionamento
social geral mas o essencial das relações do homem com
o trabalho, do homem com seus instrumentos de trabalho.
Ora, entre os homens que trabalham, que manejam ferra-
mentas e materiais de trabalho até o artista, ou "o supremo
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é de "belas"-artes. A ''obra de arte" se tornou num pro-
técnico" como o chamou o eminente antropólogo Melville duto novo - para uma necessidade nova, uma clientel_a no-
J. Herskovits. Este é, com efeito, e antes de tudo, um va· as camadas sociais superiores, as elites da burguesia as-
fazedor de objetos, um produtor de coisa.s não expressa- ce~dente. Daí saítam os grandes artistas, personali?ades, e
mente solicitadas pelo mercado ou não para este direta- comensais de príncipes, cardeais, home1;1s _bons, ncos . ~o-
mente produzidas. Trata-se de uma categoria de trabalhador mens burgueses, os Michelangelo, Da Vmci,_ Rafael, T~1:1-
social que nas economias pré-capitalistas ou não essencial- no, Greco, Rubens e Cia. Todos os desenvolvimentos sociais,
mente competitivas era predominante, a do produtor indi- econômicos ou culturais posteriores foram, no mesmo sen-
vidual independente. Hoje, no contexto sócio-econômico tido, separação completa entre º, t~abalho manual e ~ tra-
essencialmente capitalista, e mesmo supercapitalista, é por balho intelectual, artesãos e operancis de ~m lado e cnado-
assim dizer uma figura anacrônica, social e culturalmente res e empresários industriai~ de ou~ro, _clientelas cada vez
muito mais próxima e afim ao camponês individual que mais leigas e da aristocracia do dinhe1ro, mercados cada
cultiva seu palmo de terra, ao artesão-artífice que maneja vez maiores e indiscriminados.
seu próprio instrumento do que ao operário ou ao produtor No passado, um, e~tilo ararecia: _e genera~izava-se a
de grande indústria moderna. Embora num condiciona- todas as atividades artisticas e mdustna1s da sociedade, _de-
mento social totalmente capitalista, a natureza intrínseca finindo uma época. Modernamente, o último dos ·estilos
de seu trabalho é ainda necessariamente pré-capitalista, a marcar época, embora não ~n~a duri\do seq1:1er , u~a
artesanal. (Mesmo quando lidam com máquina, manejam geração, foi a art nouveau, n~ port1~'? da_gra~de 1n~ustna
máquinas, porque o fazem individualmente, numa atividade moderna. Hoje, os produtos mdustnais na? _sao ,m~is pro-
insolitamente gratuita, por prazer estético.) jetados e ditados por um ideal de perfeiçao tec1_uca, de
Marx, com outros economistas pensadores sociais do solidez, de comodidade, funcionamento, mas estr~ta_ obe-
século XIX, nos explicava que a propriedade privada do diência às necessidades de seu poder de com??t~çao no
trabalhador dos meios para sua atividade produtiva erl\ mercado poder submetido aos ditames da publicidade e
"o corolário da pequena indústria". Mas esta não era nada do preç~. A força de s~Jese e agl~tina~ão atualmente de
mais nada menos do que a "pepineira da produção social, todos os projetos industna1s e produtivos e dada pelo ~ensa-
a escola onde se elabora a habilidade manual, a perícia mento publicitário, o único_ realmente tot~l. A produçao em
inventiva e a livre individualização do trabalhador''. Era ali massa não poderia sobreviver numa _so~ied_a~e que prefe-
na sua ambiência que emergiam os gênios criadores da risse, como as sociedades de produçao mdividu~l no pas-
indústria e das artes, freqüentemente confundidos nas civi- sado, consumir a qualidade em lugar de c?.nsu~i~ o ~?vo.
lizações passadas .. Aquele modo individual de produção, o último modelo é sempre o melhor; os penultimos ou
que atravessou e constituiu a base produtiva de todos os . são logo trocados ou lançados fora do circuito, como objetos
regimes sociais da escravidão à servidão feudal, do des- velhos, resíduos, monturo. (Os cemitéri~s de autom~v~is
potismo asiático às comunas artesanais medievais, · atingiu nos, Estados Unidos!) A beleza n?s~alg1~amente patetica
sua forma integral e clássica quando o trabalhador produtor desses zumbis, dessas sapucaias, foi imediatamente perce-
é o proprietário livre dos meios de trabalho que ele mesmo bida pelos artistas, esses eternos sau~osistas do pas_sad~ e
e por conta própria põe em ação. S então que é comparável, do futuro. A nostalgia do objeto foi uma das motlvaço:s
na sugestiva expressão de Marx., com "o virtuose e seu profundas da pop'art. A civilização do des~~dício, ess~ncia
instrumento". O trabalho do produtor proprietário indivi- da civilização americana, provocou essa estetica d_~ r~siduo,
dual, livre de seus meios de trabalho na pequena indústria, da dejeção, do lixo, viva em muit~s das expenencias do
é e tem sido sempre, através de civilizações e culturas, a pop, do neo-realismo, do polimater1smo e outras da atua-
condição precípua também do trabalho criativo e artístico. lidade. , . . .
S evidente que tais condições ideais para a produção A partir do impressionismo e ros-impressiorusmo, os
criativa vieram definhando inexoravelmente desde a ascen- movimentos ulteriores que se seguir_am pela me~ad~ do
são da burguesia como classe dominante, quando com ela primeiro século - o fauvismo,_ ~ cubismo, e~pr<:ss1omsmo,
trouxe um capitalismo generalizado nacionalmente e uma futurismo, surrealismo, construt1v1smo, abstr~cioms~o, con-
indústria já organizada em centros manufatureiros nos cretismo - se desenrolaram todos ele mo~i~os am_da ~or
quais os trabalhadores individuais já haviam perdido a uma lógica interior evolutiva. Es~~ suex:ss1V1dade mtenor
posse dos instrumentos de trabalho. A personalidade do de desenvolvimento não lhes permitia defmharem ou serem
artista foi dilacerada, partindo-se em dua,s; a do artesão- ''superados" antes de completar os próprios ciclos evolu-
•artífice que sempre foi a de um produtor de algo novo, isto
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tivos e esgotar suas virtualidades. Evoluíam ainda integrados
no campo da Art~, <; dentro deste em função, por uma objetos de .seu uso eram pessoais, afetivas, duravam uma
gran_de parte, de mtnnsecas solicitações. Mas já então à vida ou mais. As de hoje são impessoais, neutras, pura-
medida que apareciam e se iam sucedendo, uma for a ~x- mente funcionais, não havendo tempo para quem os usa
terna atuava de modo crescente,' no sentido de acelerir-lhes de lhes tomar afeição; De simples existência relativa, não
o processo evolutivo próprio e sugar-lhes as possibilidades individual, como uma mosca na multidão de moscas, não
:ssa forç~A ex!erna ~tu~nte, verdadeira lei de acelerament~ se tr~ta propriamente de um objeto criado pela mão do
as exl';r!enc1~s ar!1sticas contemporâneas, é a expressão homem-produtor-artista, com as características fundamentais
no _dom~nlC~ ate enta? de algum modo reservado das arte~ de uma obra com a marca nele indelevelmente impregnada
1ª u_ifluenc,a determmante do consumo em massa do qual do trabalho humano direto. :e uma coisa.
e hoJe ~ dos setores mais importantes o chamado' Geb ·td t Não é gratuito o fato de a noção de "estilo'' ainda
Konsumiere'!, ( ~onsumo conspícuo)' de Marx. i e carregada de certa nobreza vir sendo pouco a pouco subs-
Como_ Ja vimos, não se pode falar de produção sem tituída pela noção de styling, criada e imposta pelas de-
falar .no siste~a _de trabalho, nas formas de trabalho e terminações do consumo em massa. A regra do styling é a
por f!m,_ de ena~ªº.: No trabalho, qualquer que seja, está sucessão incessante dos modelos, que se substituem uns aos
ª. essencia da cna~ao. Nas condições sociais dadas (prin- outros, sem parar, e tão rapidamente quanto possível, com
cipalmente n~ Oci~ente) que nos regem, . toda atividade a passagem das estações. Saindo-se do domínio do que em
~~mo a mais desmteressada, limitada ao círculo do in~ certos setores, prenhes de nossos velhos ranços românticos,
d1vidual, tende .ª ser absorvida pelo círculo do chamado ainda se timbra em chamar de "arte industrial'' para o
trabalho produtivo, ou o trabalho que só produz para 0 domínio puramente estético da obra de arte, que se veri-
mercado. fica? ~la ser cada dia mais atraída ou forçada a fazer tam-
N~s Esta.dos Unidos, é claro, o fenômeno alcançou sua bém a corrida fatal dos modelos no mercado. Mas pode
~xpress:10 mais completa. O produto industrial o desenho ela ser submetida àquela contingência sem negar sua pró-
liildAust~ial - e isso prova que a volta à "bela forma" pria natureza unívoca?. Sua natureza de ser no nosso con-
essencia do Aai:esanato, é, como este, um arcaísmo se~ dicionamento social o único objeto que não pode existir
futu_ro, romantica - perde progressivamente suas ligações senão como produto em si mesmo? E jamais como produto
afetivas com a questão que parecia tão primordial há algun de substituição, com seu equivalente de uso, em função
anos b~a forma em si, a boa forma e aprioristicament! das mesmas leis que determinam o styling no automóvel,
c~nce ida,. o que guer dizer, com a Arte, em suma, para na camisa, no biqumi? A obra de arte em sua essência
n:10 ser afinal senao um programa total, muito mais pró- não é um objeto para o consumo, não é tampouco uma
xuno do trab~lho de engenheiros que de artistas. Parado- commodité no sentido francês; ela só é "trabalho produ-
xalmente, porem, ui:n,, f~tor iml?ede que esse programa total tivo", isto é, precipuamente feita para a venda em segundo
s~ f~ç~ J?O~ um c~it~no de lucida e plena racionalidade grau, quando entra no círculo do mercado como úma
c1en~1fica. e ª. publicidade, que intervém no programa para commodity no sentido inglês, uma mercadoria. (Não se
desviá-lo, obngando-o_ a atender às solicitações fúteis da trata de impugnar os meios perfeitos de reprodução da
v_end.a e~ massa. Entao, o produ~o industrial não pode ser técnica moderna; trata-se de negar sua unidade intrínseca.)
tão perfeito quanto, poss1ve_l: ~ criação artística não é deixa. A antiga produção artesanal permitia - dado que o
da hvre,. entregue as suas ms1gnes virtualidades. traço principal de seu produto era a individualidade na
Assun, o ,ªu!o~óv~l. não é_ um objeto em si, apoiando- perenidade - que suas qualidades fundamentais se pro- .
-se na s~a .P,:Opna mdividual_identidade, mas um produto pagassem é daí nascesse um estilo. As condições para se
d_e substitmçao, com seu eqmvalente perfeitamente quanti- criar um estilo já não existem hoje. A procura desse estilo
ficad_o em cifr~s e cifrões, não tendo senão uma existência moderno foi durante algum tempo ambição atormentada
relativa, extenor à sua própria natureza específica. o de muitos artistas, críticos e teóricos. Revelou-se uma uto-
a~to ,representa n~ no~sa civilização o cavalo de nossos pia. Faltam as qualidades artesanais de perenidade e si-
bisavos, com os tilbuns que puxava. Os cavalos de an- militudes intrínsecas para criar unidade formal e estilísti-
tanho foram encantados nos cavalos do motor. Que há de ca e falta sobretudo a solidez de profundas tradições cul-
comum, que relação . se pode encontrar entre o dono do turais capa~es de fornecer o estrume para uma criação co-
cavalo e carro ~e outrora e o dono do automóvel de hoje? letiva supeqindividual. Se outrora o artista era o "supremo
Nenhuma. Antigamente as relações entre o homem e os técnico'' hoje é ainda um insólito ser à parte, que o mer-
cado tende a acaparar como o furacão a folha seca. Ou-
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trora eram precisamente os padrões estilísticos preexis-
tentes, a prioris da -permanência de uma cultura, que impe-
diam as mudanças e inovações aos caprichos do acaso. Hoje,
a ausência fatal , irreparável, daqueles padrões preexistentes
indica que a Arte perdeu suas raízes culturais, e foi subor-
dinada a outros padrões necessariamente instáveis e alea-
tórios como os dominantes no mercado consumidor.
O artista ocidental tentou sobreviver sem aqueles pa-
drões próprios, arrimando-se em si mesmo, na autonomia de
seu próprio ser, sugando inspirações de fontes culturais
estranhas, em nome do absoluto dos valores plásticos, inde-
pendentes de padrões culturais originários, alheios às signi-
ficações simbólicas ou míticas nativas. Enquanto essa expe-
riência histórica - estética - cultural pôde ser explorada
pelos artistas individuais, de modo fecundo, a arte moderna
encheu toda a nossa época com obras de autêntico valor.
(Tratava-se no fundo de uma experiência cultural. nova,
inédita, fundada no isolamento por assim dizer deliberado
dos elementos intrínsecos do fenômeno artístico.) Agora,
tudo o indica, a experiência foi consumada. .
Os artistas desenraizados, já disso conscientes desde
quando Klee se lamentava de não os apoiar o povo, passam
a reagir à situação, inserindo-se ao mesmo tempo na am-
biência das técnicas de comunicação moderna e procla-
mando seu desprezo aos cânones consagrados da Arte, numa
operação radical de desmistificar o objeto, a obra de arte.
No fundo, uma vez esgotados os poderes de sublimação dos
puros valores plásticos, eles reagem ao condicionamento do
mercado, como aves que prenunciam novos ventos a sopra-
rem em outras direções. 15. VICISSITUDES DO ARTISTA SOVIÉTICO
Num desespero de suprema objetividade, a que se en-
tregam, negam a Arte, começam a nos propor, consciente Já tivemos ocasião de falar em "lei de acele~amento
ou inconscientemente, outra coisa, sobretudo uma atitude das experiências artísticas c,_on!empo~âneas", ao exam1~armos
nova, de cuja significação mais profunda ainda não têm 0
contexto social e econom1co cnado pela produçao em
perfeita consciência. É um fenômeno cultural e mesmo massa. Esse aceleramento provocado pela força externa,
sociológico inteiramente novo. Já não estamos dentro dos exter~a ao campo intrínseco das artes, do ~e~cado de c~n-
parâmetros do que se chamou de arte moderna. Chamai massa é assim fenômeno modermss1mo. Tambem
a isso de arte pós-moderna, para significar a diferença. Nesse ~f~fm:1 como 'nos regimes pré-capitalistas, _que_ se c~ra~te-
momento de crise e de opção, devemos optar pelos artistas. iizavam pela ausência do mer~ado c?mo mott!açao pnnc1pa~
da rodução em geral, o artista criador equ_1parava-se ?er
feitimente ao trabalhador-produtor 3ão pr?pnamente artista.
Em tais regimes, a obra de arte nao sofna nen~uma meta-
morfose no sentido de se transfor~ar num obJeto da_ pro-
priedade privada capitalista, quer d1_2er, em ~ercadona. A
formidável originalidade de nossa epoc9; est~ e~ que, ao
lado de restos decadentes de regimes pr~-cap1talistas, o re-
gime de produção em massa, sob o capitalismo de mono-
pólio, impôs um condicionamento totalmente novo ao tra-

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balho do artista cr~ador, que de trabalhador improdutivo -artes" para o consumo conspículo da Alta Burocracia
passou a ser tambeI_ll trabalhador produtivo. Quer dizer, soviética. .
passou a seri e cada vez mais assim o é, um trabalhador Os artistas "bicho~de-seda" que se achegassem a um
de mercadorias para o mercado. Isso significa que aquele canto para, fazendo uso de seu dom natural, produzir sua
seu ~om natural de produzir, equiparável ao dom natural "seda'', nãci tinham vez, se não fossem, simplesmente, como
do . b1cho~da-seda que produz seda, tende a ser cada vez tantos o foram, enxotados de seu canto, ou esmagados como
~ais rapidamente absorvido num esforço direto e cons- seres in ou associais, com um pecado irreparável: o de não
ciente do produ!or i~du!tria!, que fornece seu produto ao poderem jamais galgar a base da pirâmide dos heróis J?Osi-
mercado. Essa s1tuaç_ao e hoJe clara para o artista que vive tivos. A contradição era assim profunda entre as premissas
e trabalha num regune de produção em massa como 0 marxistas da economia e a realidade das superestruturas.
do alto capitalismo americano. ' A ética do herói positivo acabou destroçada quando o Abso-
Não esque;emos, ~orém, de que a formidável originali- luto Herói Positivo capitulou, como qualquer não-herói,
dade de nossa epoca nao se esgota no apontar a existência perante a morte. E os "bichos-de-seda" voltaram a mexer-
deste poderoso sistema produtivo ao lado de definhantes se na URSS. O problema da criação artísticà é, então,
regimes pré-capitalistas que por ai vegetam na imensa área reposto em questão na União Soviética, com uma amplitude
do '~Terceiro Mundo". Ou~ro sistema existe que tende à pro- que se aproxima dós albores da Revolução.
d~ç3;0 em massa, mas não é regido pelas leis do mercado ca- Permitam-me agora trazer pequeno depoimento pessoal
pitalista. Trata-se, é claro, da área dita socialista do mundo quanto à atitud~, ainda de alguns anos atrás, de certos
que tem na !,Jn~ão Soviética a sua expressão .mais acabada'. setores dirigentes soviéticos em relação ao mesmo problema.
Dada a a_usenc1a de economia de mercado, na qual por- Na printavera de 1961, tive a ocasião de :visitar Moscou,
tanto . a lei · do aceleram_ento das experiências artísticas não na qualidade de diretor do Museu de Arte Moderna de
deveria ~xercer seus efeitos, a posição do artista ali deveria São Paulo e organizador da VI Bienal paulista. Ia no
ter perdido aquela ambigüidade em que caiu quando, em intuito de conseguir pela primeira vez a · participação da
face do poder avassalador do mercado, o trabalho dele União Soviética no certame de São Paulo. Não tinha ilusões
pa~ou a ser ao ~esmo temp~ "improdutivo'' e "produtivo''. quanto ao valor de sua arte oficial, mas considerava um
Pois o paradoxo mcompreens1vel - mas socialmente muito escândalo que até então a URSS não estivesse presente à
revelador - foi que aquela ambigüidade não desapareceu nossa Bienal. Mas ao mesmo tempo sonhava com a possibi-
na posição social do artista soviético. Ela continuou a me- lidade de trazer, juntamente com a representação soviética,
dra~ pelo menos durante toda a época do obscurantismo uma exposição dos construtivistas e suprematistas russos
~talin1sta, quando o grande país passou pelo processo de da primeira época da Revolução em tomo de nomes glo-
mdustrialização intensiva, no curso do qual se deu terrível riosos e legendários como Malevitch, Tatlin, Kandinsky e
retrocesso cultural. outros. Nos depósitos dos museus, o Tetriakov, em Moscou,
o Ermitage, em Leningrado, se encontravam obras impor-
Como se sabe, foi ali entronizada uma estética buro- tantes daqueles artistas. Até hoje, nem no Ocidente, nem
crático-burguesa, batizada de "realismo socialista" eom na própria URSS, creio, foram elas expostas ao público.
uma função social muito precisa de idealização d; nada Quanto à minha . gestão em Moscou junto ao Ministro da
at~aente realidade social dada. Desse contexto nasceu o Cultura, Madame Furstsova, tive êxito em relação à parti-
mito do "herói positivo" (inspirado também na estética cipação oficial soviética na VI Bienal; em relação à apre-
f «;>togênica das estrelas de Hollywood) , próprio a uma so- sentação dos construtivistas e suprematistas, o fracasso foi
ciedade em que tudo se passa como se fosse constituída total.
de uma nova pirâmide social, cuja base era formada de Um diálogo vivo, contundente, embora cordial, se esta-
~eróis ainda não ou imperfeitamente positivos e que se beleceu, por ocasião do nosso encontro, entre o Ministr~
1am, de degrau em degrau, positivando até o cume onde e eu, concernente ao problema. O espaço falta-me aqm
se t:n~11:tra o único,~bsol~~ her~i positivo, o generaiíssimo para detalhá-lo. A tarde do mesmo dia, 18 de abril, de
ge~al~~o. O her~1 p_os1tivo I e então retratado, em pose volta ao hotel, escrevia-lhe eu uma carta, em que repisava
maJ~tat~ca, pelo Pr~erro Pintor Oficial, que é, por sua vez, o assunto discutido. Nela agradecia ''a recepção calorosa,
o p~1merro dos herÓIS positivos de sua hierarquia (Gua- mas por ve?.es rude que me havia dado", mostrava meu
r~ss1mov esta".ª para ~~á!in como Meissonnier para Napo- contentamento pelo fato de termos pela printeira vez a
leao). Os artistas sov1eticos de então produziam "belas- União Soviética no nosso certame paulista, mas, em nome

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do título de "cabeçudo" qu~ ela me dera, vinha insistir mente, e perguntei pela resposta à carta. Abanando a cabeça
sobre os "construtivistas russos'', embora não no sentido negativamente, quis saber se estava satisfeito. Disse-lhe que
d~ m~u primeiro pedido. É que algo de nossa conversação sim quanto .à participação soviética., mas quanto aos cons-.
nao ficara esclarecido: o destino das obras daqueles artistas trutivistas russos estava eu certo de que iriam ganhar a
conservados nos depósitos dos grandes museus russos. Ela partida, e ela mudar de opinião.
~irma~a ~ reafirmara não terem aqueles artistas a menor Passaram-se alguns anos desse encontro. O degelo
1~p?r.tanc1a; eram afastados do povo; não pertenciam à cultural prosseguiu com altos e baixos. Mas já se ouve a
historia da arte russa de nossa época. Assim, a história voz da posteridade. Em ·1924, em Moscou, Trotsky, escre-
da ar!e russa do século e da arte soviética em particular vendo sobre esses artistas, depois atirados aos porões e
poderia ser escrita, completamente, sem se levar em conta ao olvido, dizia: ''A evolução da Arte no futuro seguirá o
a existência daqueles artistas. É um argumento este, dizia caminho de uma crescente fusão com a vida, quer dizer,
eu, decisivo; não o quero discutir. Mas, se é verdadeiro, com a produção, com as férias populares, com a vida cole-
perguntava, por que "guardais tão obstinadamente nas re- tiva dos grupos. É bom que o grupo Lef ,compreenda isso
servas de vossos museus'' de Moscou e Leoingrado os qua- e explique. Não é bom, porém, quando apresenta um ulti-
dros e objetos desses artistas?· Se não fazem sequer parte mato a curto prazo, na base da arte do dia. . . é necessário
da história da arte soviética, mesmo de um ponto de vista um pouco de visão histórica, ao menos, para compreender
negativo, se não representam absolutamente nada para vós, que entre nossa pobreza econômica e cultural de hoje,. e
a tal ponto que nem mesmo o empréstimo é admissível, o tempo da fusão da Arte com a vida, quer dizer, o tempo
não se compreende que os guardeis. Então, não haveria em que a vida terá alcançado tais proporções, que será feita
para eles senão três soluções, "lógicas e claras" da parte de inteiramente pela Arte, mais de uma geração tem de vir
gente "tão lúcida e coerente na maneira de pensar e de agir, e passar". Mais de uma geração, com efeito, veio e passou;
como vós": "l) Destruí-los; 2) Presenteá-los a algum museu os construtivistas, que já haviam feito, segundo Trotsky,
ou instituto de arte no Ocidente, que tivesse interesse em ainda na mesma época "significativas conquistas, embora
recebê-los; 3) Vendê-los, simplesmente". E eu acrescentava não de fato na direção que se haviam traçado'', os futuristas,
compreender que a idéia de destruí-los "vos repugnasse ime- "cujas realizações em Arte, especialmente na Poesia, difi-
diatamente não só por ser antipática e mesmo bárbara", cilmente se podia negar'', os cubistas, os suprematistas, todos
como porque o gesto se prestaria "às habituais interpre- foram lançados aos porões e perseguidos; todos esses mo-
tações de má fé da parte dos inimigos da União Soviética". vimentos não resistiram à Nova Política Econômica (NEP)
"Restam, pois, essas duas proposições que tomo a respon- que salvou, como se sabe, a economia soviética do im-
sabilidade de vo-las fazer: vendê-los ou dá-los". passe do "comunismo de guerra", com o restaurar do
O nosso museu, acrescentava eu, estaria pronto a com- mercado capitalista para reativar as forças produtivas pa-
prá-los, em condições acessíveis a seus recursos, e no caso ralisadas. Se aqueles movimentos foram sendo afastados,
desta solução pediria de pronto a prioridade sobre os demais um novo surgiu, porém, que se proclamou "filho e essência
pretendentes. Caso, porém, a segunda .proposição fosse a da Revolução'', era o chamado "neoclassicismo''. Sarcasti-
preferida, "é evidente que o nosso museu estaria pronto camente. Trotsky,. pergunta: "Por que só depois de 4 anos
a recebê-los como presente do governo soviético". de reflexão" é que apareceu para nos dizer que "o classi-
"Guardaremos essas obras pelo menos como documen- cismo é a arte da Revolução"? Isso já é, comentava Trotsky,
tos de ordem histórica, que nos tocam em parti~ular, dado "uma precaução ... clássica". "Mas, - continuava o com-
que as fontes de. nossa arte moderna e de nossa arquitetura panheiro de Lênin dos dias heróicos, - não era o neoclassi-
passam certamente por certas pesquisas, de natureza técnica cismo filho da · Revolução do mesmo modo ou no sentido
e estética, mesmo social e científica que estiveram nas que a NEP o é?'' E não está, perguntamos 42 anos depois,
origens desses construtivistas russos, como os cubistas fran- nessa fulgurante intuição do organizador do .exército ver-
ceses, . dos futuristas italianos e dos neoplasticistas holan- melho, a razão daquela disparidade monstruosa, que só
deses.'' · agora se está vencendo, entre os progressos formidáveis das
A carta lhe foi mandada na mesma tarde. O Ministro forças produtivas soviéticas e o retrocesso escandaloso no
da Cultura não alterou com ela sua atitude. Dias depois, às plano das superestruturas culturais, disparidade que assina-
vésperl:ls de minha partida, fui ao seu Ministério combinar lou a era stalinista, com o seu "culto da personalidade", e
alguns detalhes do envio soviético e, por acaso, encontrei correspondente "realismo socialista'' em Arte?
a camarada Furtsova à porta. Cumprimentamo-nos afavel- Os fios da história cultural soviética, partidos com a

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NEP e a era stalinista, então sendo agora reamarrados
pelas gerações atuais de seus artistas, que chamam dos
porões onde jaziam os seus maiores, os Kandio5ky, os Ma-
levitch, os Tatlin, cujos projetos de então, como o cilindro
de vidro giratório do último para sede da Internacional
.Comunista, que parecia audacioso demais, mesmo para um
Trotsky, não são hoje senão embriões, embora gloriosos,
de uma revolução arquitetônica que s6 agora vai alcançando
seu apogeu.

16. OPINIÃO. . . OPINIÃO. . . OPINIÃO


No mundo, em geral, mas pelos centros cultur.ais peri-
féricos em particular, as grandes manifestações públicas
coletivas de Arte raramente são contemporâneas. Ou melhor,
são "Opiniões" do ano. "Opinião" do ano é "o salão de
automóvel'', como, por exemplo, o de Paris. Por que? Por-
que este é diretamente organizado e .dirigido para o mer-
cado consumidor. Daí seu teor realmente up to date. ~
o último modelo. Nas manifestações da arte de nossos dias
o movimento espontâneo, deixado a si mesmo, sem os atro-
pelamentos, fricções e resistências dos próprios artistas,
dos próprios criadores, iria àquela perfeição do Salão do
Automóvel, por sinal inaugurador em Paris da "temporada
das artes" do ano, que começa como as aulas ao fim do
verão.
Houve aqui pequena _mostra no ano passado que apa-
receu, sob a feliz iniciativa de Ceres Franco e Jean Boghici,
com o título enormemente sugestivo de Opinião 1965. A
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idéia foi um achado naquele instante. Por que? Porque se passando no setor do Teatro, do Cinema e da Poesia ( o
inspirava no teatro, no teatro popular tão próximo, por 8xito espantoso para o público da<!ui e do mundo do r~c:it~l
sua própria natureza, ao clima social, à atmosfera política de Vida e Morte Severina, de Joao Cabral) e um cnteno
da época. Pode-se dizer que o grupo do Teatro de Arena, de ordem puramente plástica. Este, com a repetição das
com sua Opinião 65, foi o grande respiradouro dos cidadãos mostras, acaba identificando estas aos inúmeros salões
abafados pelo clima de terror e de opressão cultural do anuais ou tradicionais, gênero Bienal.
regime militar implantado em 1964 e definido moral, polí-. Em 1965, o calor comunicativo social da mostra, i,obre-
tica e culturalmente pelas incursões de uma entidade anô- tudo da jovem equipe brasileira, era muito ~ais efetivo.
nima e irresponsável dita linha dura. Desse contexto geral Havia ali uma resultante viva de graves acontecimentos que
opressor surgiu uma formidável criação revolucionária e nos tocaram a todos, artistas e não-artistas da coletividade
simbólica que foi Carcará de João do Vale. Pouca gente consumidora cultural brasileira. Personagens sociais foram,
ouvia então aquele canto, expressando a realidade implaca- por exemplo, elevados à categoria. de representações_ ,cole-
velmente feia, malvada e egoística da miséria natural e tivas míticas como o General, a M1ss etc., sem falar Jª nas
social do Nordeste, sem ser sacudido por dentro e sem puras manifestações coletivas da comunidade urbana, como
lágrimas nos olhos. Desde então Carcará é um hino da o samba o carnaval. Antes de o ser pelo conteúdo plástico
revolução social camponesa nordestina como a Carmagnole das obr;s (muitas delas de alto valor) ou pelo seu estilo ou
o foi da plebe urbana e dos sans-culottes da Revolução proposições- técnicas, eram elas, por mais diferentes que
Francesa, durante o Terror. fossem individualmente, esteticamente identificadas pela
Este calor de contemporaneidade é o que marcava para marca muito significativa de emergirem todos os seus autores
todos nós a significação profunda da Opinião 65 do Teatro de um meio social comum, por igual convulsionado, por
de Arena. Foi um ano formidável que nos deu - deu igual motivado. Daí vermos a arte altamente interiorizada
para o Brasil - o signo de uma espécie de criatividade de símbolos (corações, falos, sexos) e que se distribuem,
coletiva com Carcará e Deus e o Diabo na Terra do Sol. rigorosamente, num esquema formal simétrico que lembra
Edgar Morin, de volta do Brasil onde viera tomar parte o da arte bizantina; de cores (vermelhos, pretos etc.), que
no festival do Cinema Novo Brasileiro, me dizia em Paris, obedecem antes de tudo a representações litúrgicas de um
onde me encontrava : "Está-se passando qualquer coisa de Antônio Dias, ao lado da arte essencialmente dinâmica de
novo em seu país, Mário Pedrosa". E logo me apresentava um Roberto Magalhães, cuja irresistível força expressiva do
como amostragens desse "novo" Carcará e Deus e o Diabo. desenho é ainda assim vencida ou dominada pela extra-
A observação dele comoveu-me porque -respondia exata- ordinária clareza predicativa do seu esquema formal.
mente ao meu sentimento. Carcará está trezentos anos atrás A arte de um Rubem Gerchman, despojada já dos
culturalmente dos parisienses que dançavam a Carmagnole, resquícios expressionistas, cada vez mais explicitada, sem
ao som do canhão. Lá no sertão, Carcará não tem canhões; refólios simbólicos, para falar diretamente a linguagem do
e só no seu bico volteado, e "pega, mata e come". Ali coletivo urbano, onde todos mergulhamos, dormindo ou
é bicho contra a natureza e bicho contra bicho. Atrasado, acordados, conscientes ou aturdidos, ao lado da a.presentação
arcaico; a trezentos anos de nós, daqui da cidade, mas como analítica e propositiva de forte poder narrativo de um
é nosso contemporâneo, como é atual! Eis por que era Vergara e das manifestações já de pura intenção verista de
Opinião 65. ·um Escostegui que, no afã de comunicação, se atém na
Em contraste, nem tudo o que se· faz hoje em matéria mensagem informativa ao fator redundância.
de ·arte é contemporâneo. Não se faz obra de arte de seu . Podia acrescentar outras personalidades participantes
tempo, de sua época, por deliberação própria consciente. da Opinião 65, como Hélio Oiticica, que já se havia arran-
Nem muito menos por decreto. Uma mostra todos os anos cado da obra em si para a ação ambiental com o seu Paran-
com· o propósito de representar a opinião do ano torna-se golé. Naquele ano ainda foram apresentados outros nomes
com a . seqüência num salão anual, como . há aos bandos mais jovens, como Aquino, Pasqualini, Landim e os de
por aí. O dito de 1966, apesar de excelentes obras ali São Paulo, com Valdemar Cordeiro, Spiguel e outros. E
apresentadas, já não tem a mesma frescura ·do primeiro, não se podia esquecer a presença ali de um Krajcberg, a
de 1965. Há uma contradição insanável na idéia. Na sua fazer como que uma volta romântica à natureza, 'de onde
formulação, dois critérios se chocam: o critério inspirador nos trouxe estranhas amostragens de uma natureza sele-
inicial, de conotações extra-estéticas para · lá dos valores cionada e, por isso mesmo, "desnaturada" pelo próprio artis-
puramente plá-sticos, em harmonia com o que se estava ta - terras capitosas virgens, troncos, raízes, flores insolita-

100 101
mente repintadas, e nessa medida transfigurados em coisas
para além da natureza, pós-naturais, restos de vida extraídos
fora do tempe, eternizados, calcinados pela explosão atô-
mica, numa paisagística de gênero indefinido e artificial-
mente criada à la Hiroshima pelo gênio criminoso do ho-
mem. A réplica da visão apocalíptica de Krajcberg de 1965
estaria nas experiências de Lígia Clark na mostra deste ano,
cuja visão não é pessimista como a daquela ·poderosa e
patética personalidade. Com suas proposições lúdicas, com
caixas de fósforo, borracha, pedras, gazes, plásticos, em parte
já apresentadas em Londres, ela nos apresenta uma pesquisa
plurissensorial do corpo, que é assim analiticamente de-
composto em feixes de sensações sensoriais, sobretudo táteis
.e hápticas e para a qual a participação do espectador con-
siste em apalpar e sentir o que está fora e o que está dentro,
o que está à flor da pele e o que vem das profundezas das
vísceras. A ·sensação visual é aqui deliberamente afastada;
seria, como já propõe também Rauschenberg, Le Pare e
outros, uma arte pàra cego. Mas eis que de· novo Clark
recorre aos plásticos cheios de ar e água, numa volta às
virtualidades espaciais. Dentro daqueles elementos primor-
diais, água e . ar, estão corpos que flutuam, cores que se
dispersam, se repercutem, dispersas e espatifadas. A pluri-
dimensiçmalidade criada tende a fugir às servidões da gra-
vidade, e ·p or isso mesmo dentro dos espaços criados e das
superfícies enrugadas em mil dobras e invólucros, . dão-se
deslocamentos retardados no tempo de corpos a procurarem
a acomodação final, como a busca de um estado de homo-
geneidade perfeita, de entropia. Em contraposição a essa
tendência ao repouso final, emerge uma imagem antagônica 17. ARTE E BUROCRACIA
àquela acomodação, a do espaço afinal aberto de nosso
Universo quando se deu o escape simbólico do primeiro Em geral, tenho por norma não_ ~cu,tir prêmios de
sputnik., recompensa ou de reconheciment? ~istnbu1dos p0r todos
Muitos foram os artistas estrangeiros de várias pro- esses salões coletivos que se multiphcam, à ~edida que a
cedências que foram apresentados na Opinião 66, entre proteção das artes é considerada como alto si~~ de pres-
os quais Adzac, Foldes. Genovês, Gaitis, Macreau, Biras, tígio social e de progress.ivismo. t!. que pre°:llos corno
Zekveldi, artistas sem dµvida de nosso tempo pelas técnicas reconhecimento intrínseco do valor de wp- ~ista º'! ~e
e pelo ideário, mas não caracterizadores da Opinião 66 uma obra é para lá de relativo. A importancia do prellllo
do Rio de Janeiro ou do Brasil. E não falemos no grande é que, aqui e acolá, ~enos frAeq~entemente do qu~ se pen~a,
nome de Corneille, que está fora das ''opiniões'' por já pode ajudar um artista autentico do modo m~s . rast:rro
ser um dos protagonistas mais importantes dos últimos possível, isto é, materialme_nte. t!, o _caso dos premios ditos
esquadrões da pintura propriamente moderna. Sua obra já de "viagem" do Salão Nacional. (Diga-se de passagem que
ultrapassou a área da polêmica. · a premiação deste ano foi exemplar) . .
Mediante os 500 dólares mensais que um artista .vai
receber durante dois anos, o premiado pode ter a _ilus!o
de que vive de sua arte e Pª:~ $Ua arte, sem a ob!igaç~
extenuante e geralmente mortificante de ganhar.º P~ªº coti-
diano com o suor do rosto. Mas essa pobre dusao só a

103
102
têm os que, galardoados, são mesmo artistas, não sabem Mas por que não se chega a abolir essa duplicação obsoleta?
viver de outra coisa, querem continuar artistas mesmo depois Porque há os interesses investidos no velho salão, e essa
de realizada a viagem, objeto do prêmio. O Salão Nacional invencível proteção da rotina que as coisas do Estado criam,
não tem outra finalidade, nem mérito. O difícil, porém, e se tornam irremovíveia.
é acertar num artista, em meio aos que só querem a viagem O anacronismo da própria instituição do Salão já é
pela viagem, e de volta vão tratar de outros negócios mais gritante. E só se justifica pela mesquinhez do nosso mer-
rendosos, sem nunca mais olhar um quadro ou entrar numa cado de arte e a inexistência de uma opinião pública
exposição. Uma larga brecha, aberta a esses pára-quedistas qualificada no domínio artístico, ou sua completa incompe-
é o outro Salão, o chamado de "Arte Clássica", que o tência e inoperância. Colunistas sociais aliados à grã-finagem
Estado brasileiro, com a falta de caráter que sempre o diletante fazem e desfazem valores, promovem "artistas"
caracterizou, permitiu continuar a funcionar, ao lado do de uma liora para outra com alguma publicidade e coque-
rival dito "Moderno". - téis com bastante uísque, e, depois, passam adiante a tratar
O Brasil é, assim, o único país do mundo que reco- de outros negócios. Nos meios oficiais, o processo é seme-
nhece, oficialmente, a existência de duas espécies de arte, lhante. O Itamarati é useiro e vezeiro em organizar expo-
uma ''acadêmica" ou "clássica" e outra "moderna'', e salo- sições e mostras na completa clandestinidade, a fim de
monicamente protege as duas, estimula as duas, não de promover a carreira de funcionários; o pior é que sempre
cambulhada, o que seria mais natural, já que não compete no exteríor, onde por vezes - poucas vezes, é verdade
ao Estado distinguir artes e muito menos institucionalizar - são tais mostras visitadas por gente do país, além do
diferenças, espécies, escolas. Temos, pois, todos os anos pessoal obrigatório das embaixadas e consulados e, even-
dois salões nacionais, oficiais, com os mesmos regulamentos tualmente, por brasileiros de passagem. Acontece ainda que,
e prêmios, um a funcionar como o duplo do outro. O uma vez realizada a mostra-promoção do diplomata organi-
exercício do sistema já criou mesmo a aberração de na zador, a despreocupação pelas obras dos artistas é de tal
prática ter feito desaparecer a diferença ( qualitativa ou ordem que estas se perdem pelo caminho de retorno ou
estética) entre uma arte e a outra. Como? Permitindo a ficam nos armazéns do Cais do Porto, até, arruinados ou
um participante do salão acadêmico, já isento de júri, no mutilados, irem para os leilões de salvados e arrematados
dia seguinte apresentar-se ao salão "moderno" e ganhar em hasta pública. Não faz muito tempo, os meios artísticos
neste o grande prêmio de viagem cobiçado. Assim, reco- do Rio e sobretudo de São Paulo foram convulsionados
nhece-se oficialmente a possibilidade de um sujeito, já pelo escândalo de se ver obras de certos artistas, tidas
consagrado como artista "acadêmico" ou "clássico" ser como desaparecidas desde que foram enviadas pelo ltama-
meses depois consagrado como artista ''moderno'' no salão rati para uma exposição de artistas brasileiros a correr
destinado à tal arte moderna. mundo, aparecer na posse de um leiloeiro privado e ofe-
O número dos que fazem esse atalho, e entram em recidas clandestinamente nos mercados de arte de São Paulo
busca de isenção para seus "produtos" à la Osvaldo Teixeira e Rio de Janeiro.
no salão "acadêmico" para aparecer no ano seguinte com É ainda de uma maneira clandestina que o operoso
os crachás modernistas é cada vez maior. O Estado reco- conselheiro W. Murtinho, encarregado das obras de trans-
nhece a identidade burocrática entre os dois salões e não ferência do seu ministério para Brasília, contrata artistas,
os distingue. Mais ainda, permite a promiscuidade entre os compra obras destinadas ao Palácio dos Arcos, de Oscar
artistas participantes dos dois salões, e torna com esse Niemeyer, em Brasília, Ao que se sabe, há ali de tudo,
proceder evidente não haver mais nenhuma razão para a obras de valor de artistas de valor e obras sem maior valia
existência dos dois salões. Faça-se então um salão só, e
de artistas inexpressivos, mas bem protegidos, em meio a
para que o Estado não economize essa duplicação de des-
pesas e de prêmios, que não vêm beneficiar ninguém, que grande profusão de mármore, de luxo e de água. Manda o
duplique os prêmios, ou os aumente, em valor, ou crie exclusivo e particular critério do ilustre diplomata. Este
bolsas, melhore as instalações do salão anual, pague os que critério, aliás, não se limita., ao que parece, à escolha dos
têm a incumbência . incômoda e difícil de prepará-lo, in- artistas ou de obras, mas recai sobre o próprio destino
clusive os pobres membros do Júri, cujo trabalho é exaus- destas, das quais dispõe como quer, inclusive quanto à
tivo, ingrato e delicado, Tal como é, a existência de dois colocação no contexto do Palácio ou até desfigurando-as
salões oficiais é um atentado à dignidade cultural e estética para que ali se ajeitem. É perigoso entregar a um só homem,
do país e uma excrescência burocrática desmoralizante. por mais competente ou virtuose que seja, a tarefa de pre-

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parar, mobiliar, ornamentar o palácio niemeyeresco para por isso mesmo entre os palácios e mármores, lagos e jardins
as suas funções diplomáticas e representativas. de Brasília, limpos ou despovoados, nada existe que .respire
o calor do drama cultural e artístico de hoje. Os artistas
No Brasil de hoje, basta a um burocrata assegurar-se de
jovens (nãb apenas de idade) e revolucionários de nossos
algum _noticiário simpático da grande imprensa e seu em- dias estão marginalizados, conservados bem a distância dela,
preendimento, ou melhor ainda, do apoio de algum general,
enquanto burocratas, confinados no seu isolamento, tratam
para que plena liberdade de ação lhe seja dada e ele passe de montar ali uma arte oficial, a seu gosto e pequena
a ~g~ dis:ri~ionariarnente, no ~~is soberano desprezo pela dimensão, fora do compasso da atualidade, indiferente ou
opm1ao publica, mesmo a quahflcada. Se uma burocracia estranho ao que se faz hoje no Brasil de mais arriscado,
soberana pode ser da maior eficiência - no acerto ou no
erro - em vastos domínios práticos, no campo das artes de mais vivo e de mais. . . brasileiro.
tenderá sempre tal eficiência a ser desastrosa. Não esto~
dizendo com isso que a arrumação do Palácio dos Arcos
em Brasília, ~ja um. desastre, pois desconheço o que ali
se fez e se esta fazendo, mas que o olho da opinião culta
o olho da crítica se ponha sobre aquele trabalho. Par~
aplaudir, ou para fazer os reparos necessários. Aliás Bra-
sí~a inteira é no plano cultural uma clandestinidad~. Ali
nao. ~~nas se, e~pancam estudantes; no seu campus uni-
vers1tano o Exercito tem acampado, e a polícia não se retém
de pegar estudantes pelo gasganete dentro da bibilioteca de
sua Universidade e de seus auditórios e arrastá-los para
fora a bofetões; os professores também são expulsos ou
pegos como arruaceiros. Mas no plano urbanístico, por
exemplo, se faz o que quer, e a bela concepção de Lúcio
Costa de dia para dia é mais desvirtuada. No Congresso
Internacional de Críticos de Arte, em 1959, sobre ''Brasília"
cidade nova - "síntese das artes", a voz· desabusada d~
Bruno Zevi vaticinava: O plano fechado de Brasília não
será mantido. Hoje, é o que se verifica, o plano fechado
de Brasília não foi respeitado. E o crescimento da cidade
se se~ fizer, abrirá brechas cada vez maiores naquele plano'.
Se nao se der, porém, esse crescimento, a Capital vegetará
como um aglomerado de arranjos e improvisações, ao gosto
do b~rocratismo cívico-militar que a tem prisioneira e
isolada no ecúmeno nacional. Para que o patrimônio cultu-
ral do país . seja enriquecido de um verdadeiro acréscimo
que , ~rasília, ao ser concebida e criada, prometia, é ne-
cessano tornar-se uma obra coletiva do corpo cultural do
país. Isso implica, porém, que em lugar de ser protegida
pelo formulário democrático de um burocrata Jrresponsável
porque inatingível pela crítica, o seja pela democracia viva
do espírito _do livre exame, da crítica independente, um
controle permanente _da opinião pública nacional.
A arte de nossos dias ganha cada vez mais as ruas as
praças e os jardins, as grandes aglomerações urbanas. Emi-
nentemente urbanística, não quer ela ser confinada a coisa
alguma; é extrovertida, objetiva e moderniz~dora da vida,
onde quer que chegue. Brasília é mantida, entretanto em
·escandaloso anacronismo, fora de seu hálito irreveren'te e
'
107
106
18. O "BICHO-DA-SEDA" NA PRODUÇÃO
EM MASSA

Desde que o artista-artífice deixou de ser um produtor


independente numa economia real, corno qualquer artesão
medieval ou camponês senhor de seu pedaço de terra e
do velho arado de mão, quer dizer, produtor independente,
não essencialmente como todo artista, mas funcionalmente
como o era nos regimes econômicos anteriores ao capitalismo
moderno, se tornara inevitável (só agora o vemos) a evo-
lução da arte que então se ,fazia na arte que hoje se de-
signou como "arte moderna". Culturalmente pode-se dizer
que os germes do abstracionismo moderno já estavam lá
dentro nas lucubrações altaneiras do herói da Capela Sistjna
como nas puras variações sensoriais da.s telas de um Tiziano
ou de um Veronese. Já se estavam assentando as condições
sociais para a plena autonomia das Artes que iria irromper
em toda sua força com o cubismo de Picasso-Braque e desa-
brochar em toda sua plenitude com o abstracionismo de
Kandinsky-Mondrian. No plano estético-crítico o funda•

109
mento teórico nos foi dado sobretudo nos famosos pares tinha O maior entusiasmo, em compensação odiava os
de conceitos de Heini:ich Woelfflin, para o estudo da evo- outros os chamados servidores públicos, os que incluiu na
lução das formas de arte a partir do Renascimento. classe 'dos produtores improdutivos, isto é, além dos reis
Mas vamos, por enquanto, ficar por aqui. Estamos e príncipes, "os clérigos, os juristas, os letra?os de t~da
agora interessados em cercar o problema tão complexo e espécie, atores, bufões, músicos, c~tores de opera, ~~ila-
contradit_ório da condição do artista na sociedade moderna. rinas etc." Smith queria remunera-los com um mm1mo
~ esta uma preliminar indispensável para ~ compreender possível, cioso, sobretudo, em defender os in_teresses dessa
a posição não só da arte atualíssima atual 'como de seus nosa 'classe revolucionária de burgueses movidos por uma
artistas, sobretudo do pop (com todas as variações e de- energia produtiva e criadora formidável.
signações que dentro dele cabem) e do op (também com Uma vez dominante na sociedade, a nova classe não
todas as variações e designações que cabem dentro daquela tardou a encontrar lazer para os refinamentos do "consumo
sílaba tão vasta e tão abstrata) . Creio não ser exagero conspícuo", e atraiu a seu serviço todo~ ?S ~orpos ideoló-
afirmar que o traço decisivo que caracteriza o comporta- gicos da sociedade e os trabalhadores espmtua1s. O grupo de
mento artístico de agora é a liberdade, ou o sentimento de trabalhadores improdutivos cresceu. Enquanto no trabalho
uma liberdade nova. Já faz bastante tempo que, tentando produtivo o conteúdo nada tem a ver com o conteúdo desse
analisar o fenômeno, defini a arte de nossos dias como o trabalho, com sua utilidade particular, seu valor de uso
exercício experimental da liberdade. O ~volvimento próprio, no outro, fora do circuito produtivo, o conteúdo
ulterior registrado nas pesquisas artísticas a partir do abstra- do trabalho não entra em questão. Não é alterado.
cionismo me parece ter confirmado aquela conceituação. A ambigüidade da posição do artista, outrora autêntico
Trata-se sem dúvida de um fenômeno cultural e social produtor independente, tornou-se, porém, patente, explícita.
absolutamente novo na história da civilização que chamamos É que em face do poder avassalador do mercado, o mesmo
de ocidental, por comodidade. De onde vem essa liber- trabalho pode ser ao mesmo tempo "produtivo" e ''impro- ·
dade, de onde vem esse fator que impeliu os artistas à dutivo''. E Marx (outra vez?!), ao diferenciar um trabalho
necessidade daquele exercício, daquela experiência? ~ este do outro, nos dá também um exemplo da posição ambígua
hoje o problema fundamental da Crítica. Sem seu escla- do artista da nova sociedade: "Milton, que escreveu o
recimento o trabalho da Crítica é hoje um tatear empírico, Paraíso Perdido, era um trabalhador improdutivo. Em
no melhor dos casos; inseguro, improvisado, no comum dos contraposição, o trabalhador que confecciona o livro para
casos. E a ,questão não se confina a nós outros, aqui no seu editor é um trabalhador··produtivo. Milton produziu o
Brasil, mas se estende a toda a crítica mundial. (Esperamos Paraíso Perdido pelos mesmos motivos que o bicho-da-seda
que o próximo congresso da crítica internacional, em setem- produz seda. Era isso um dom de sua natureza. Posterior-
bro, na velha Praga, barroca e linda, todo ele dedicado mente, Milton vendeu seu produto por 5 libras. Mas .o
ao problema, destrinche alguma coisa no emaranhado feixe proletário-literato de Leipzig que, sob a direçã~ de, um
de confusões reinantes. Infelizmente, desta vez, ao que livreiro, fabrica (digamos, um manual de Econo1D1a) e ?m
parece, o Brasil estará ausente dele.) trabalhador produtivo cujo produto é de antemão subsumido
Se olhamos a posição do artista no contexto social que no capital e ali encontra seu valor. Uma cantora que por
é o seu, de uma mirada histórica, verificamos ter ,ele conti- sua conta vende sua canção é uma trabalhadora improdu-
nuado a ·ser, eni teoria pelo menos, aquele "produtor inde- tiva. A mesma cantora, porém, se contratada por um
pendente" dos regimes pré-capitalistas. Com o advento do empresário para que cante a fim de fazer dinheiro, é um
capitalismo, porém, foi ele classificado numa categoria trabalhador produtivo, pois produz capi!al". _
· nova, cunhada por não outra figura que o pai da economia Tal dicotomia só passou a existir no regime capitalista.
política moderna, o patriarca Adam Smith; refiro-me à Nos regimes precedentes não se trabalhava para o mercado,
categoria de "trabalhador improdutivo". Nesta categoria mas para satisfazer às necessidades imediatas e às solic_i-
Smith incluiu todos os que, do Rei e dos príncipes com suas tações pessoais ou mediatas. O trabalho-produto pertencia
clientelas, aos homens togados e oficiais de tropas, ao Exér- por inteiro ao produtor, que dele podia dispor em geral
cito e à Marinha, não tinham nenhuma função no aparelho livremente (salvo nos casos do trabalho escravo e do servo
de produção, obra de uma classe nova, cheia de ~nergia e da gleba). O dinheiro não intervinha, como intermediário
sem tempo para distrações, empenhada, dia e noite, pessoal- necessário, nas relações entre um produtor e o~tro. O
mente, no aumento contínuo das riquezas. Se por esses Paraíso Perdido não foi criado para ser mercadona, mas
,homens novos, os burgueses recentemente nb poder, Smith para atender a um dom natural do se~ criador. A obra

110 111
ocorrer, pois seria inadmissível que· viesse ela a. ca~r sob o
de arte, o objeto de aite não era uma mercadoria, proprie- mesmo condicionamento, que prevalece n~ capitahs~o de
dade de um dono que não o fez. Como propriedade pri- produção em massa. Não se pod~ con~ebe-la, d~spo1ando-
vada, o objeto deixa de existir em si para existir apenas -se desfazendo-se da própria part1culandade. Tena d~ cor~-
como produto de substituição, como equivalente. Perdida ser~ar em tal regime sua unicidade, sem perder a identi-
sua identidade própria, esta não se exprime mais senão dade intrínseca, mesmo quand? fosse, conforme o caso, re-
em relação a outra coisa. O objeto da propriedade privada produzida mecanicamente, p01s que no caso da mudança
tornou-se assim valor e, de maneira imediata,. valor de não seria de situação, nem qu~litativ~, m_as ~eramente
A
troca. Sua existência como valor é diferente de sua exis- técnica. Sua permanência sempre igual, idenhca a su~ ?-atu-
tência imediata, quase que poderia dizer existência primeira, reza primeira, não poderá ser alterada. J?o cont!ano, a
pois é exterior à sua natureza específica. Não tendo mais condição precípua de seu aparecimento tena fenec1do: um
a obra senão uma existência relativa, é "uma determinação criador que a faz, movido por um dom natural como o do
alienada de seu próprio ser".
bicho-da-seda, que produz seda. •A •

Ora, nenhuma obra de arte pode existir - mais ainda Os artistas de hoje não só tomaram consc1encia, como
que qualquer outro objeto - a não ser como produto de os seus maiores, de que são bichos-da-sed~, como tomaram
si mesma, e jamais como substituição. Nas economias pré- e onsciência de um impulso novo que os rmpele ao uso ~a
-capitalistas não se podia dar, em regra, essa metamorfose liberdade. De onde vem esse impulso~ Mas onde ~tao
de um objeto, fruto do trabalho do produtor, em uma pro- as condições sociais e culturais que permitam a esses bichos
priedade privada de valor de troca determinado por um continuar a produzir incessant~mente a sua seda e a u,s~r
equivalente, que o torna indiferente à sua natureza espe- de seu dom natural em toda liberdade? Co?-10. co_!lserva-,a
cífica. Não se dava, pois, mediante essa determinação em sua autenticidade originária e como d1stnb;1i-la, sem
estranha à sua natureza e .às suas finalidades intrínsecas, o alterá-la na sua existência intrínseca, ou como doa-la:., tr~cá-
processo de alienação do objeto, arrancado de seu próprio -la numa sociedade com sedas sintéticas em a1?und_anc1a e
ser, de sua existência autêntica para não assumir senão a entregue às mobilizações em massa e aos divertimentos
hipótese de ,u ma existência relativa, relativa a outra oU em massa?
outras coisas.
Eis, porém, que uma situação nova se criou no mundo
de nossos dias. Estamos em pleno regime de produção em
massa, cada vez mais automatizada e mecânica, na base
do mercado, e que exclui progressivamente a equação pes-
soal, humana da própria produção; e em face do o.utro
regime rival, que se prepara à produção em massa, também
tendendo de mais a mais à automação, embora não mais
na base do mercado. Se supomos ser este último um regime
de economia pós-capitalista, não-competitiva, não ,sujeita a
leis de mercado, então dever-se-ia ter ali uma situação que
volta a aproximar-se daquela existente para o artista nos
modos de produção anteriores ao capitalismo. Com efeito,
num regime pós-capitalista, de superação do mercado, o
trabalho assalariado deve desaparecer, e, conseqüentemente,
a velha divisão de trabalho em produtivo e improdutivo.
O artista voltaria a ser um produtor independente e não
mais alienado no seu próprio objeto. O objeto, ou sua
obra, não estaria mais condenada a perder a autenticidade
existencial, reduzida a uma simples existência relativa e
referida a outra coisa, na forma de uma equivalência própria
a unir e identificar todos os objetos e todas as obras à
mais abstrata e à mais absoluta das mercadorias, o dinheiro.
Assim, numa economia digamos socialista o fenômeno da
transformação da obra de arte em valor de troca não deveria
113
112
19. CONSUMO DE ARTE NA
SOCIEDADE SOVI:E:TICA
Outro dia os jornais noticiaram um fato ocorrido em
Moscou que prova quão longe estão as relações sociais e
culturais entre os artistas e o Estado da União Soviética
de ser sadias ou integradas. Abriu-se ali uma exposição de
pintores .abstratos, numa cerimônia dessas que fazem aqui
por toda parte na ocasião. Eis, porém, que uma hora depois
de inaugurada festivamente chegavam autoridades para en-
cerrar a mostra, sob o pretexto de que a sala era necessária
para outra cerimônia ou função. Os expositores, uma dez.ena
deles, viam suas obras retiradas das paredes, e recolhidas.
Negavam-lhes, assim, sob uma forma hipócrita, o direito de
exibi-las.
Ao tempo de Kruschev, este em pessoa - Nikita era
para isso um temperamento - foi desafiar os artistas
• modernos que começavam a aparecer, e até os ameaçou
de lhes tirar o pão de cada .dià, ao interpelá-los se era
para produzir tais coisas que o Estado os sustentava. Na

115
realidade, Kruschev exigia daqueles artistas "um trabalho algo fora da propriedade privada, ou uma relação essencial
produtivo", quer dizer, um produto com valor de uso tran- muito diferente da que colocou os dois proprietários em
qüilo, ou uma mercadoria. O grande burocrata lhes lem- face um do outro. Descobre cada um deles no seu desejo
brava que, contrariamente ao que pudessem crer, a posição que · essa relação seja diferente, longe de ser secundária,
deles na sociedade soviética ( teoricamente sem classes) contingente, e essencial. Assim, fora da propriedade privada
não era a .do "trabalhador improdutivo", como Milton no revela-se uma relação essencial a demonstrar que o pro-
exemplo clássico de Marx, ou não produtor de mercadoria, prietário privado não se extingue no ser particular que acre-
mas no máximo um "produtor independente" que leva ao ditava ser, há nele "um ser total" cujas necessidades se
mercado seu produto de valor de troca assegurado, ou mero encontram vis-à-vis das produções do trabalho de outrem
trabalhador produtivo, isto é, um assalariado no mercado "numa relação de propriedade interior", pois, segunqo Marx,
capitalista. "a necessidade que tenho de uma coisa é a prova evidente,
Quando Kruschev ameaça tirar o pão ao artista, porque irrefutável de que ela pertence a meu ser, de que a existência
este não retribui em troca do dinheiro (equivalente geral) desse objeto para mim, de que sua propriedade, é a proprie-
que recebe com o produto de valor de uso desimpedido no dade, a particularidade de minha natureza".
circuito distributivo, na verdade está a reduzir a uma relação E veio Nikita e vem agora a equipe impessoal que o,, .
contingente, secundária, a produção do artista no . sistema, sucedeu a querer impor ao artista, produtor independente ·
embora esta não se dispa de seu caráter pessoal e seja sua de objeto não em si quantificável no mercadq, uma con-
vocação forçar a relação direta, essencial de objeto para dição ~ocialmente alienada de relação secundária, contin-
objeto_, de um produtor pessoal para outro produtor pessoal. gente de um ser particular. Ora, o artista numa sociedade
lmpelmdo o artista para uma relação mediatizada pelo equi- já não mais competitiva, já para além do circuito do mer-
valente geral num sistema de trocas regulado por este equi- cado, ou é nada, nem mesmo admissível, sem lugar próprio
valente, o burocrata estava, sem assim agir, negando a natu- no contexto social, ou é, de si mesmo, e cada vez mais,
reza socialista de seu regime. Pior ainda, ele brutaliza a uma antecipação do ''ser total", perspectiva s6 concebível
natur~za do artista, trabalhador improdutivo, obrigando-o no socialismo plenamento realizado, ou, se quiserem, nas
a a~eit~r uma volta atrás ao sistema da propriedade privada calendas do comunismo.
cap1tahsta, em que a fatalidade da troca, do mercado, ar- A explicação teórica dessa premissa está em que o
ranca aos produtos íntegros do homem sua qualidade essen- objeto considerado como propriedade privada só existe como
cial de "criações pessoais". produto de substituição, como equivalente. Nesta condição,
A burocracia desconhece qualquer criação pessoal. A o objeto deixa de existir fundado em sua própria identidade
burocracia que se elevou, se não a classe, certamente a para exprimir-se apenas em relação a outra coisa. Na po-
grupo · dirigente nos países que fizeram dos meios de pro- sição de equivalente, sua própria existência não é mais
dução propriedades do Estado, também não reconhece sua própria particularidade. (A obra de arte deixa de ser
''criações pessoais". Os objetos vêm ao circuito distributivo obra de arte.) O objeto da propriedade privada tornou-se
como produtos quaisquer de troca indistinta. Basta para assim valor, e de modo imediato, valor de troca. Ora, "sua
tanto que a qualidade generalizada que os identifique seja existência como valor é diferente de sua existência irne-
o seu valor de uso, graças a um instrumento histórico indis-. <liata; externa à sua natureza específica: é uma determi-
pensável, . modelo abstrato universal · da mercadoria que <> nação alienada de seu próprio ser. Não tem mais senão
capitalismo criou, sob a forma de um supremo mediador uma existência relàtiva". ·
ou equivalente geral, a dinheiro. Com a adoção generali~ A ação retrógrada de Kruschev e agora a de seus suces-
zada do modelo, todas as outras formas de. troca· foram sores fica bem exposta e prova com isso que, apesar das
banidas. Esta é a relaçiio que predomina hoje no regime divergências que os separaram na política, suas concepções
burocrático do socialismo de Estado Soviético. são idênticas, e, no fundo, patrimônio ou preconceito cultu-
Para Marx, contudo, quando dois proprietários pri- ral do grupo a que todos pertencem; Como consideram, com
vados donos de dois objetos são póstos um em relação ao efeito, esses respeitáveis senhores os artistas na grande
outro, descobrem eles desse contato haver uma natureZd sociedade que dirigem? Como "trabalhadores improdutivos",
específica de cada um desses objetos, a que precisamente na qualificação de Marx? Não, porque esses altos buro-
constitui a matéria da propriedade privada de cada um dos cratas cobram dos artistas um produto com valor de troca,
proprietários. O desejo, a necessidade que estes ·sentem dos predeterminado, ou um produto alienado de seu próprio
objetos;mostra a cada um dos proprietários privados existir ser, mero objeto de substituição, aferiçJo por um equiva-

116 117
lente comum. :e claro, aqui, o retrocesso no caminho das
rel3:ç~s . capitalistas de propriedade pr~vada, pois se impõe contra os pintores abstratos, sob o pretexto de que suas
apnonsticamente um valor de troca a obra dos pintores, obras não interessam ao sujeito soviético. São sinais esses
negando-se-lhes aquela "relação essei:icial" que já deve ominosos para o futuro da cultura socialista ainda em
reger, num país de socialismo, o produto do artista, as germe . .
obras de arte. Seja como for, dessa atitude ·reacionária partem os bu-
O dirigente .burocrático define-se socialmente pelo seu rocratas soviéticos dirigentes para pretender, anacronica-
comportamento em face dos artistas quando, partindo do mente, que o consumo do povo trabalhador no país é direto
f~to econômico inexorável de que todos os objetos produ- ou espontâneo, e o que este deseja ou quer é o que deve
zidos na sociedade russa ainda não submetidos a um me- ser produzido e estimulado. Agora mesmo, aliás, a alta bu-
diador comum, equivalente geral, dinheiro, mercado, ou rocracia cedeu à pressão das camadas sociais mais privile-
~ ''.alienação essencial", submete as obras de arte, produto giadas no sentido do consumo conspícuo, ao encomendar na
~ipica,mente nascido fora do mercado, ao mesmo padrão, Itália e na França (Fiat e Renault) duas fábricas de au-
isto e, valerem no que representem o mediador comum. tomóveis individuais, quando ainda sob Kruschev a resis-
Faz-se assim a inversão da relação original preexistente ao tência era grande ao fabrico de carros de passeio em detri-
capitalismo, quando o mediador dinheiro parecia só ter mento da produção de tratores, de máquinas e veículos &..O-
ou adquirir valor na medida em que ele mesmo só valia letivos. No entanto, as mostras de "arte abstrata" continuam
no_ ~ue pudesse representar algum produto. Essa relação a ser sabotadas, se não proibidas na Rússia. Mas agora cabe
ongmal e que deve ser reencontrada para a obra de arte, a pergunta: Para quando os salões anuais do automóvel em
numa economia já socialista. E por quê? Porque no sistema Moscou? Sob essa luz, podemos tentar analisar a preten-
de mercado o trabalho humano é reduzido a um simples são de Kruschev e seus sucessores segundo o qual o que
ganha-pão. Resulta daí que inevitavelmente se exclui de os artistas soviéticos fazem só se justifica se for de diges-
toda ativ~dade produtora qualquer fruição pessoal; · o pro- tão fácil para os consumidores da sociedade soviética. Tor-
dutor deixa de ter qualquer relação com o trabalho. O na-se assim claro o significado social dessa política cultural
trabalho passa a ser uma alienação e uma contingência em burocrática.
relação ao próprio trabalhador, e implica sua dependência A obra de arte para ser válida deve trazer consigo ex-
em relação às necessidades sociais, alheias ao operário mas pressamente um valor de uso espontaneamente assegurado
que a ele _se impõem pela coação. O trabalhador, o antigo como sapatos, chapéus, sorvete, perfume, revistas de sen-
produtor mdependente se submete a ele por inelutável ne- sação, brevemente automóveis de passeio. Isso pode ser ine-
cessidade. A conservação da própria existência individual vitável nas condições dadas, mas violenta o pensamento, a
é-lhe agora o problema máximo, premente, elevado a fim paixão social, a doutrina mesma do velho Marx. Jamais,
supremo de atividade do operário. A atividade real do tra- com efeito, admitiu ele que a Arte devesse ser ditada pelo
balhador perde qualquer finalidade intrínseca, para ser-lhe consumo espontâneo do povo: "Quando o consumo se li-
apenas um meio. Desaparecida a relação essencial, original berta de sua grosseria primitiva e de sua espontaneidade,
de um produtor para outro produtor, de um objeto para nela atardar-se será ainda o resultado de uma produção que
outro objeto, "o trabalhador só vive sua vida para adquirir não ultrapassou o estágio da barbárie. Como instinto, o con-
os meios de viver". As famosas "necessidades sociais" se sumo . é estimulado pelo objeto, pela necessidade que dele
transformam num monstro crescente que o oprime e ·o amea- sente, pela sensação que dele tem". E eis como ele des-
ça, na sua insana voracidade, como o Minotauro devorador mascara aqui, por antecipação, o privilégio que se arroga a
de virgens. A condição mesma do trabalhador, mesmo já, alta_ bl!;ocra~ia de ditar ao artista o que este deve pro-
com algum lazer, não lhe permite em geral um interesse duzir: O ob1eto de arte - como qualquer outro produto
maior por atividades que, na contingência social do trabalho • - cria um público sensível à arte, um público que sabe
e no estranhamento fatal deste em relação ao próprio pro- gozar da beleza". Numa admirável intuição do que seria
duto, cuja finalidade lhe é cada vez mais estranha, estão a inter-relação da produção e do consumo na futura so-
fora do circuito de sua vida. A Arte já está sobrando na ciedade de produção em massa, Marx acrescenta: "A pro-
civilização de massa ocidental, mas eis que também começa dução não cria apenas um objeto para o sujeito, mas tam-
a dar sinais de sobrar na civilização socialista incipiente, bém um sujeito para o objeto. A produção pois também
ao entrar. esta no estágio de grande produção em màssa, produz o consumo, seja fornecendo-lhe a matéria ou de-
quando se vêem os altos burocratas soviéticos erguerem-se terminando-lhe o modo de consumir, ou fazendo dascer no
consumidor a necessidade de produtos que o consumo co-
118
119
locou primeiramente sob a forma de objetos. Ela cria por
conseguinte o objeto, o modo .e o instinto do consumo. Do
mesmo modo o consumo produz o talento do produtor so-
licitando-o como necessidade amadurecida por uma fina-
lidade".
A passagem de Marx é surpreendente. O socialismo era
para ele essa permanente provocação aos talentos solicitados,
não como a necessidade criada imediata e direta do consu-
mismo pelo consumismo da produção em massa do capitalis-
mo, mas por uma necessidade amadurecida por uma fina-
lidade. O mais alto capitalismo da produção em massa criou
a cultura de massa, o consumismo pelo consumismo, além
do consumo conspícuo. O socialismo, em que a mais alta
produtividade em fluxo contínuo e automático será a con-
dição de sua existência, criará, em lugar do consumismo
pelo consumismo, o consumo comunitário, o consumo cul-
tural, premissa essencial para que o fenômeno mesmo da
Arte sobreviva, autônomo e pleno, na sociedade dos ho-
mens. O que não é certo;

20. ESPECULAÇÕES ESTÉTICAS:


O CONFLITO ENTRE O "DIZER" E O
"EXPRIMIR" - I

A Física foi, ainda neste século, dilacerada pelo conflito


de duas hipóteses que de nenhum modo se afinavam no edi-
fício teórico da Ciência, embora, nos campos específicos de
suas aplicações, respondessem ambas perfeitamente às con-
dições propostas às experiências, à teoria corpuscular da luz
e à teoria ondulatória. Hoje, um conflito ainda talvez mais
marcante se pode encontrar no próprio campo perceptivo,
do homem, entre as hipóteses novas da Teoria da Infor-
mação e as hipóteses das psicologias gestaltianas e estru-
turais, cujos alicerces se fundam na própria fenomenologia.
Este •último conflito nos interessa bem mais de perto por
termos, como · organismos humanos, nos nossos sólios per-
ceptivos sensoriais a causa mesma do conflito.
A formff perceptiva mesma, ou o modo pelo qual temos
a percepção das coisas e a palavra, nosso primeiro meio de
comunícação imaterial, experiências fenomenológicas antes
de tudo, essenciais por suas profundas e contraditórias im-

120 121
plicaçõcs para aquela teoria, provocaram o conflito. Trata- ração. Quer dizer, tudo isso não é _ainda_ discurso m~s e~-
-se de retomar a análise das percepções com seus meios pri- pressão, e por isso nos toca e nos mstrui como um mteh-
mários, intuitivos de se organizarem em todos formais, e a gível, isto é, como uma forma ou gestalt: sem ~rov?c~r
análise da palavra ou da linguagem, outro conduto prima- nosso mecanismo lógico. O paradoxo de Wittgenstem s1gm-
cial, intuitivo, de comunicação para que sejam submetidas a fica que "por meio da linguagem" não pode ser dito º. q?e
maior precisão científica, mesmo quantificante. Pode-se por si mesmo se expressa. "Dizer" é diferente ~e exprimir;
também ver de imediato que com isso o conceito e o dçs- é outra disciplina, já é parte do mundo conceit?al, _como
tino mesmo da Arte e o conceito e o destino mesmo da quando se propõem enunciad?~ ou uma combmaçao de
Poesia estão diretamente envolvidos. enunciados que podem ser verificados ou controlados. (B.
A linguagem veio, como se sabe, sofrendo uma severa Russell os classificou em "tautologias'', "contradições'.', ou
dissecação por parte de uma plêiade de filósofos e cientis- "enunciados indeterminados''.) Dentro dessa classificação é
tas, desde a primeira revolução fonética empreendida, creio, que se encontraria seu v!,lor (de us~),_ f~ado no que W.
ainda no século passado na Europa, até os desenvolvimentos chamou de estrutura ou esqueleto log1co . .
ulteriores da Semântica e a criação da Semiótica, com Char- Mostrar, porém, pertence a outras, c~tegorias de con-
les Morris (Signs, Language and Behavior), a partir de ceituação· não é fixado pelo esqueleto logico; sua estrutura
Charles Sanders Peirce, velho filósofo ainda do século XIX já não é ' intrinsecamente a linguagem. Se " most ~~r,,, s1g-
.
cuja obra fundou em grande parte o moderno empirismo nüica com efeito "expressar-se espontaneamente , e do
americano e para quem o pragmatismo não era uma teoria domí~io ainda do intrinsecamente psicológico, ist~ é, ~a ex-
metafísica, mas uma regra lógica, e a própria lógica nada pressão. Esta efetivamente surge, quando da orgamzaçaoA das
mais que uma filosofia da comunicação, ou uma teoria dos partes sensoriais do todo perceptivo aparecem, espontanea
signos. . ou ingenuamente, com ca~acteres di~tintos_ dos dados sen-
Deixemos esse vasto assunto por aqui e nos fixemos, soriais e físicos mensuráveis (peso, dimensao etc.) gestalts,
por um momento, em outro pensador, mais moderno, e "todos" como ·se "caras'', ''fisionomias'', coisas cujas pro-
morto prematuramente, Ludwig Wittgenstein, cujas idéias priedades que nos impressionam são qualitativas ou afetivas.
sobre o problema da linguagem nos servem para colocar o Quer dizer, que atraem ou repele~, amedront_a~ ou ha~-
problema da transformação da linguagem de instrumento monizam encantam etc. Tem-se ai o que o psicologo assi-
empírico, ingênuo de comunicação em um instrumento ri- nala som~ "o primado do expressivo sobre o sensível", re-
goroso, lógico, de informação. Foi ele um dos mais originais sultante por sua vez necessária do primado do todo so-
provocadores desse processo, . de ascese lingüística, ou tal- bre as partes. Assim, "most:ar" na ,acepçã? dada por '!'·
vez o primeiro a definir a linguagem como "uma totalidade pertence ao reino da expr~ssao, qu~ e também, _como se m;
de fatos atômicos", e o fato atômico, por sua vez, como fere o velho reino de Alice no paJS das mµravilhas. E esta
constituído de coisas ou entidades. Mediante nomes, pro- aí por que W. e outros teimam em arrancar d~quele reino
nomes pessoais e adjetivos possessivos, Wittgenstein decla- libertando-a de suas feitiçarias, a linguagem, mstrumento
rou essas coisas nomeáveis. Dessa operação partiu para de- conduto, por meio do qual "se diz", ou aquilo com que se
monstrar haver uma relação precisa das coisas ou entidades informa no plano semântico.
com as palavras, que permite provê-las de um esqueleto · Mas W. não se contentou com essa operação inicial e
lógico, ou uma linguagem ideal. (Essa operação foi rea- passou a dar-se por tarefa "limpar'' a linguagem de "suas
lizada no Tractatus Logico-Philosophicus.) superstições". Agora "refugar" o "embruxamento" de nossa
Não nos interessa aqui fazer a exposição da obra do linguagem mediante a linguagem. Não se procure - é ~ua
filósofo. Interessa-nos, no entanto, destacar uma de suas advertência - na linguagem algo oculto como uma essen-
afirmações mais curiosas e que nos põe no centro de nosso cia. O que importa é descobrir como funciona em seus
problema: "O que se exprime por si mesmo na linguagem usos. Não se deve mais perguntar pelas significações, mas
não podemos expressá-lo por meio da linguagem", o que pelos usos que são múltiplos. N_ão há a lin_guage~, ~as_ lin- .
equivale a afirmar: "O que se pode mostrar não se pode guagens ou melhor, jogos de lmguagem, Jogos lmguistlcos.
dizer". Mas, que é que se expressa por si mesmo na lin- O filósofo passa de seu atomismo lógico inicial para a aná-
guagem? Nossa resposta seria esta: O que ela nos dá na lise lingüística, démarche aliás comum,,a~ J?C~~amento con-
espontaneidade, o que, saído diretamente do forno de nossa temporâneo ocidental q'!e ~bandona p ~abito de_ trabalhar
fabulação, não se caracteriza propriamente por um nexo ló- com categorias de substancia, de essenc1a, de qualidade, pe-
gico límpido, mas como imagem, reação instintiva, figu- las manipulações e análises das mediações, dos intermediá-
122 123
cê-las, descrever um objeto, segundo sua aparênci:;t ou
rios, dos instrumentos mesmos com que operam as sonda~
dando suas medidas, resolver um problema em aritmética
gens da realidade. Nesse sentido, a última operação agora
de nosso filósofo é desatrelar a palavra de "sua'' significa- prática etc. . . _
Entre a névoa embruxadora a d1ss1par e a vegetaçao a
ção. "Entender uma palavra numa linguagem não é propria- preservar, a opção implica, não decisões teóricas, mas antes
mente comprender sua significação, mas saber como funcios
na, ou como é usada dentro desses jogos. A noção de sig- deliberações práticas ou comp~rtamento. Um _subm:t€: a pa-
lavra a um tratamento anaht1co de severo ngor log1co. O
nificação, longe de esclarecer a linguagem, a rodeia de né- outro credita a palavra com latentes virtualidades criativas.
voa.''
O conflito · porém, abre-se a uma terceira abordagem, que
A palavra dos poetas e dos alquimistas, contudo, não não se co;tenta nem com a especulação brilhante e pro-
foi vencida ou jogada às urtigas como enunciados indeter: funda do filósofo francês, nem com a análise penetrante
minados, de que nos fala Russell. "Quebra-se a linguagem mas puramente lógica do pensador austro-britânico.
quando se fala dela como um código ou meio para o pensa- A Teoria da Informação, com efeito, desloca o proble-
mento, e se nos proíbe de compreender a que profundezas ma para outro plano, d~ caráter prá~ic~-expe~imental que
entram em nós. . . as significações" que "a palavra arranca permite outros desenvolvimentos. Deshtmda a lmguage~ ~e
ou rasga". . . "no todo indivisível do nomeável, como os sua trama de significações independentes, espanada diana-
nossos gestos no do sensível". Agora quem fala é um .fe- mente para limpá-la de suas "superstições•: J:>elos. se~i_do-
nomenologista eminente, Merleau-Ponty. A codificação da res de Wittgenstein, pelos opera~ores da log1c~ srmbohca,
linguagem nos proíbe compreender que há um desejo, uma continua ela, contudo, a produzlf sua ve~et:i~ao de P:11ª~
paixão de falar, uma necessidade de se falar assim que se vras a nos envolver na sua bruma de m1steno e eqmvo-
pensa, que as palavras têm o poder de suscitar pensa- cos. 'Suas ambigüidades intrínsecas não são dissipadas, pelo
mentos, de implantar dimensões do pensamento doravante menos em parte considerável, enquanto permanecer o de-
inalienáveis, que nos põem nos lábios respostas de que não bate em torno dela no plano teórico, lógico, e não for tra-
nos sentíamos capazes, que nos dão conhecimento, diz Sar- tada como instrumento, como objeto manipulável, como
tre, do nosso própriÕ pensamento. Da outra ponta -do con- ''materialidade". Os teóricos da Informação vêm para fazer
flito, Merieau verifica algo parecido ao que Wittgenstein essa outra abordagem bem mais concreta, e suscetível de me-
verificou do lado oposto : "Há entre os homens e em cada dição e controle, concentrando_ a _atenção so~re a m~nsagem
um uma inacreditável vegetação de palavras de que os em si o estudo de sua transm1ssao e recepçao. Partmdo do
'pensamentos' constituem a nervura". Sua conclusão, porém, plano' da psicofisiologia, a atenção deles vai sobretudo ao
se opõe, à dos codificadores: "D ir-se-ia que para ter diante estudo dos requisitos sensoriais, dos dados daí ~ecorrentes,
de nós um significado, seja à emissão ou à recepção, é ingredientes vivos das mensagens, para que, extirpadas das
preciso que deixemos de nos representar o código e mesmo excrescências expressivas que nelas se acumulam, possam
a mensagem, que nos façamos puros operadores da palavra". eles chegar a uma quantidade de informação semântica pre-
Para Merleau o pensamento é apenas a nervura da vegetação cisa.
da palavra. No fundo, é como se cada homem tivesse cons- Que fizeram assim esses cientistas? Deslocaram o pro-
ciente ou inconscientemente, por trás dela, sua caverna de blema do plan~ abstrato dos !o;icistas, sem ~esfazer o ~t~-
representações. Desta é que partiria a emissão. gonismo que fica entre as h1poteses ?estalhanas fenomen!-
Para Wittgenstein é preciso antes de tudo apartar da cas onde se aninha a população do remo das grandes amb!-
palavra sua pretensa signüicação, pois, ao contrário de es- güidades humanas e as verif~cações qua_!lti~ativas €:stabelec1-
clarecer, a noção de significação a rodeia de uma névoa. das no domínio da percepçao pela propna Teona da In-
Para Merleau, a palavra é vegetação na sua natureza intrín- formação. Assim, o problema foi apenas recolocado em
seca, geradora de significações, impondo dimensões de pen- bases, se quiserem, mais científicas; o conflito, porém, con-
samentos que se tornam inalienáveis, assim que é falada. tinua aberto dentro dos limites do próprio homem.
Ao contrário de Wittgenstein, quebra-se para ele a linguagem
quando se faz dela um código. Para um, a significação é o
verdor fecundo e eterno da linguagem, para o outro, uma
névca embruxadora. Não se pode transformar a lingua-
gem em código, diz um; não há linguagem, mas ling~a-
gens, sustenta o outro; instrumentos de uso, regras de JO-
go, e os jogos são muitos como - dar ordens e obede-
125
124
21. ESPECULAÇÕES ESTÉTICAS:
FORMA E INFORMAÇÃO - II
Quando não se considera a arte de nossos dias como
objeto da apreciação imediata, do ponto de vista meramen-
te crítico ou mesmo do ponto de vista de sua situação no
contexto social, econômico, político, mas de um ângulo
mais restrito, se quiserem, embora intrínseco ao próprio
complexo orgânico humano, onde se produzem as condições
primordiais para o seu fenômeno, a sua problemática toma
uma feição inquietante quanto ao futuro.
A. Moles, abordando com lucidez o antagonismo ora
expresso, ora latente entre a hipótese gestaltiana da per-
cepção e as experiências no plano perceptivo da Teoria da
Informação, foi um dos primeiros a compreender que nele
estava envolvido um problema cultural ainda mais grave: a
preservação, em sua inteireza, do domínio próprio dos fe-
nômenos artísticos e intuitivos, em face das ameaças de sua
invasão pela análise matematizante e da Informação. A so-
lução por ele encontrada foi a de distinguir da informação

127
semântica uma informação estética. A arte de hoje i se de- trutura no tempo. Mas o tempo físico quando metrificado,
bate, sem o saber, nos . vértices desse conflito que para ela marcado por intervalos ao ser registrado, faz surgir, ma-
toma a forma de uma espécie de polêmica entre os produ- terializado numa estrutura; o fenômeno, até então não per-
tos de "informação'' e os de "expressão". cebido analiticamente, do escoamento. Esta forma, por sua
~ ponto de partida de Moles é o campo experimental vez, produzida experirnentalment,e para ganhar concretici-
sensonal, ou o psíquico-fisiológico, que está na soleira a dade, é submetida a outra operação, que a vai decompor.
partir da qual o homem, o organismo human.o, entra em Desta decomposição resultam, no plano experimental, outros
contato com o mundo exterior. Ele parte por isso mesmo fenômenos ou objetos. Assim, pela análise da decomposição
para cá da palavra. Seu intento não é opor o existencial do escoamento, produto metrificado, articulado no tempo
ao lógico, mas conciliar ou integrar o puro fenomênico, m físico, a teoria vai conseguir produzir uma diferenciação ca-
d_ados q!le este nos dá, nos cômputos quantitativos ou expe- pital. Vai conseguir, com efeito, pela oposição por assim di-
nmenta1s da Informação. O que lhes interessa é um pro- zer espontânea à noção de escoamento, outro fenômeno des-
b_le,ma concre50_ aparentemente mais modesto do que o dos ta vez de . irredutível natureza psicológica, a duração, que
f1losofos e log1cos, embora de importância paradigmática tem como característica denotante a de só ser percebida
para o desenvo_lvimento das investigações perceptivas. A psicologicamente, ou apenas como um todo. Mo1es a desig-
tarefa que por isso mesmo se impôs foi a de definir com nou por isso como uma "dimensão de sensação".
a desejada precisão o fenômeno sonoro numa mensagem. A duração, de intrínseca natureza psicológica, quan-
A Teoria da Informação deu ao estudo do problema d_o, para fins de análise, se procede a seu isolamento, veri-
s~noro todo um desenvolvimento científico, a ponto de eles fica-se que o isolamento não a submerg,e. Ao contrário
va-lo, segundo Moles, a uma Física da Mensagem, quando faz atrair sobre ela uma atenção toda particular, em si
ap~recera~ _as po~ibilidades do registro da música. Seu pri- mesma. :f: que a duração não pode ser decomposta em ele-
meir~ _obJetLvo foi então de elaborar um método que lhe mentos entre os elementos de uma estrutura complexa, que
permitisse colocar de per si, independentemente das ligações só interessa para a análise dos objetos sonoros. Assim, ela
tradicionais, a existência do fenômeno sonoro ou em suma só nos toca na qualidade de percepção gestaltiana inde-
a existência do objeto sonoro. A abordage~ d~ próblem~ componível. O fenômeno aqui é o oposto da nota musical
da mensagem muda então radicalmente. E essa mudança se que, arrancada à sua origem empírica inicial, propriedade
faz precis~mente porque a mesma começa a escapar das de um determinado instrumento, é subsumida numa seqüên-
contmg~nc~as Ada percepção imediata, com seu aparelho de cia no tempo, desaparecendo como tal por se ter transfor-
apre_ensao mgenuo, tateante e no fundo da natureza impres- mado num mero fenômeno sonoro desparticularizado, já
s10msta ou qualitativa. A dificuldade de outra abordagem participante da categoria de· objeto sonoro, com as proprie-
mais .objetiva até então residira na ausência mesma na dades físicas, de medida, de extensão etc. Como já nota-
mensagem de algo, por mínimo que fosse, que possibilitasse mos, os fenômenos sonoros, uma vez registrados, passam
detectar nela a materialidade. Esta até que enfim · apareceu do plano perceptivo para o plano quantitativo, numerados,
quando se verificou o sinal musical e circular nos fios nos medidos que são .como objetos, depois de terem sido iso-
circuitos, e a ser "transmitido, estocado, recebido e v~ndi- lados e colhidos nos sólios sensoriais de nosso organismo.
do''. A sua materialidade indiscutível cresceu até o sinal Por esse ·processo, o escoamento acaba analisado nos seus
~usical _e pôde concretizar-se num objeto, objeto cujas ma- eiementos, medido e quantificado, ao passo que, por exem-
mfestaçoes nos são dadas pelos seus efeitos. O registro deu plo, mediante contraste experimentalmente produzido, é dis-
à etérea música sua matéria. A peça musical deixa doravan- tinguido do fenômeno da duração, o qual, não sendo de-
te de ser música para tornar-se coisa, com dimensões no es- componível física e analiticamente, não perde sua categoria
paço, que se observa, que se mede como um ''produto primeira, de pura percepção psicológica, pura gestalt.
temporal''. Em face desses seus processos analíticos, Moles não
A operação decisiva aqui foi, além do fato revolucio- esconde a tendência da Teoria da Informação de confundir
nário das invenções tecnológicas, o ter ido buscar o fenô- "os órgãos humanos da percepção com os sistemas mecâni-
meno sonoro no nosso sólio de percepção e de lá trazê-lo cos ou inateriais de transmissão e recepção". O psicofisio-
para isolá-lo, registrá-lo medi-lo produzi-lo reproduzi-lo logista não hesita em considerar o receptor individual como
tratá-lo em suma como ,u m objet~. ' ' um dispositivo exploratório. (Apesar de certo desconsolo de
Quando a simples nota musical destacou-se de seu Moles, talvez nada haja a fazer contra isso:/ - a Ciberné-
instrumento originário foi para, a seguir, emergir numa es- tica está aí.) Seja como for, nos .seus pendores atomísticos,

128 129
percepção. E aí está: o equilíbrio, ou ainda menos uma sín-
a teoria recusa de princ1p1<;> oertos aspectos do real do tese entre as duas teorias, não se obterá facilmente. Um fator
mundo perceptivo, os quais são, no entanto, o apanágio decisivo dificulta essa síntese ou equilíbrio. É o conceito
mesmo; ou a matéria-prima das teorias holísticas, globali- novo de "quantidade de informação" que leva a uma comi-
zantes ~a Psicologia. Defrontam-se assim duas concepções tante procura _de romper os limites aos campos de validade
perceptivas, que Moles chama de a "exploratória" e a ''glo-
bal". No fundo, são simples desdobramentos da polêmica do <l:as _d_uas teonas. Ora, a tendência a romper esses limites
c_omeço do século entre a tese atomística e a tese gestal- s1gmf1ca, por sua vez, alargar constantemente os parâmetros
de uma percepção exaustiva. Tal tendência é característi-
tlan_a.,~ g~ande i~~vação da primeira proveio principalmente ca da percepção exploratória, mas não participa da nature-
da 1de1a c1bernehc1sta da procura das analogias do organis-
mo e da ~áquina. Ela procede, por isso mesmo, por fases za intrínsec.a da investigação gestaltiana, mormente em ter-
exploratónas que se vão integrando à medida dos encon~ mos de tempo, de prazo mínimo de percepção exaustiva.
t~os analógicos coi:n a visão das câ~aras de televisão, que Há, contudo, para um e outro campo perceptivo limi-
sistemas de memonzação de base experimental completam. tes q~e ~ão de_ci~ivos (pelo menos por algum tempo) - ou
um bm1te maxuno - de apercepções para o indivíduo.
. <;ontrapondo-se a essa concepção, os gestaltianos da (Trata-se aqui, na verdade, de uma barreira que já trans-
pnme1ra hora (Koehler) e os posteriores (talvez menos am- põe o cam~ estri!o dos psicofisiologistas para projetar-se no
biciosos) conseguiram encontrar um dos fundamentos de ca~po muito mais vasto do cultural.) Já se chegou, com
sua concepção perceptiva na verificação, conseqüente ao es- · e_fe1to, a calcular o débito máximo de informação percep-
tudo sistemático do córtex cerebral particular do campo vi- tlvel, e também já se sabe o quanto esse débito máximo é
sual, do fato de ser o campo visual difuso muito extenso geralmente muito inferior no que concerne às fontes que
enquanto o campo visual central é, ao contrário, muito res: nos envolvem, sejam auditivas, sonoras, visuais, táteis. Só
trito. Essa verificação no campo sensorial de algum modo utilizamos em verdade uma fração, fração ínfima, de in-
confi_rmou as experiências no puro campo psicológico da formações que nos vêm do mundo exterior, do mundo am-
Teona da Forma, segundo a qual a percepção visual proce- biente. Dessa deficiência no quanto informativo que po-
de Pº: apreensão de todos e não exploratoriamente, numa demos assimilar se infere que o controle desse mundo exte-
sucessao de detalhes de sensações que se vão reunir e acumu- rior vai depender, _em média crescente, do nosso aprendiza-
·1ar a posteriori, em outra operação mental. Assim em fun- do, quanto a selecionar nas mensagens do meio envolvente
ç~o da ~isparidade e~tre a extensão muito grande do campo os elementos que, cáptados e reunidos nos habilitem a cada
visual difuso e o carater muito restrito do campo central, é ins!ante a controlar aquele mundo. O~a, nessa operação se-
que, no processo perceptivo, não se apreende letra por letra ~ec,ona?ora, ne~sa _operação de escolha há alguma coisa de
numa palavra, nem palavra por palavra numa página, mas trredutivel qualitativo, que se eleva acima das análises ex-
se procede por saltos, de um grupo visual a outro ou por pl?ratór!as. Que coisa é? O conceito de forma, que sempre
todos perceptivos. ' foi a pnmeira generalização, a primeira síntese abstrata que
Os teóricos da exploração não aceitaram essas limita- conseguimos alcançar no conceito do real. Renovando a
ções, e mostraram como, mesmo nos casos mais favoráveis formulação do velho conceito, Moles propõe: O primeiro
para as gestalts ( visão de um quadro, de uma tela de ci- elemento de uma estrutura.
nema), o processo exploratório pode intervir no sentido de Sua função perene nos é, outra vez, clara e primordial:
intensificar a percepção, de modo exaustivo e memorizante. exprimir, como tal, o domínio do inteligível na organiza-
No ~lano_ ~a informaçã~,. ~á- que co~ceber, a percepção gloc ção do perceptíviel, · ou o primado sobre o sensível. Eis ai
bal e positivamente def1c1tana. O proprio Moles, o teórico e precisamente onde nos estão sobrando, ou nos restam os
defe_?s~r ~a "informação estética'', ao lado da "informação lan:es intuitivos, as significações oriundas da eterna v~ge-
semant1ca reconhece que as gestalts perceptivas embora
taçao da palavra, os blocos estéticos residuais a que o ho-
evidentes, nos ensinam bem pouco sobre a nature~a intrín- mem - de~tr? dos sólios perceptivos sensoriais que o equi.
seca dos fenômenos subjacentes à percepção. paro e o delimitam, no momento - se tem adstrito até aqui
. Há, contudo, um fator irredutível que protege o con- para fazer poesia, arte, filosofia.
ceito de Forma dos assaltos exploratórios mais tenazes e
producentes no seu próprio plano perceptivo. É ·o fato ·até
agora indisputável de a percepção global de elementos ''não
ser produto de nenhuma combinação ao acaso". Esta com-
binação, ao contrário, é· intrinsecamente inerente ao ato da

130 131
22. ESPECULAÇÕES ESTÉTICAS:
LANCE FINAL - III
No ideário socialista ou comunista, o momento em que
o homem alcança o domínio pleno da natureza será o
momento em que a humanidade passará, enfim, do reino da
necessidade para o reino da liberdade (Engels). Até aqui
a evocação do ponto mais próximo desse momento nos foi
dado quando o homem conseguiu desintegrar o átomo, abrir
o âmago da matéria. Daí, porém, que se seguiu? As aber-
turas para a captação da energia nuclear - e Hiroshima!
seguidas dos lances extraplanetários de uma competição à
Lua.
No ideário socialista ou comunista, o momento em que
tureza estaria, agora o vemos, bem mais próximo na me-
dida em que cresce o poder do homem sobre a massa in-
finita de informações que caem sobre nós do mundo exte-
rior, como poeira de estrelas. É que mediante esse crescente
poder o próprio homem que o controla se altera, em suas
faculdades assimiladoras, inclusive sensoriais, psíquicas e

133
mentais. A tarefa que se coloca é · então determinar o pro- icas "viram" aparecer a periodicidade. Assim, . a intensifi-
cesso de discriminação e seleção de informações. Se "per- cação da escala acarreta em nós o esvaecer fenomenológi-
ceber é selecionar" isso equivale a dizer que conhecer o co, -quer dizer, nos tira no caso concreto a ~r~pção 'da~-
mundo significa conhecer as regras do selecionar percep- riodicidade. Ora1 esse esvaecer fenomenologico da perio-
tivo. Não teremos aqui a chave da transformação de nossa dicidade se verifica quando a Ciência passou, a nosso re-
cultura "moderna" numa cultura universal integrada, na qual vés, a percebê-la, e criou em conseqüência, a possibilidade
e pela qual o homem, que a criou ou que a vai criando, é de se alcançar um novo campo de experiências visuais.
e será cada vez mais modificado, no seu organismo e nos Onde? Em que terreno? Precisamente no cinema, arte por
seus poderes? isso mesmo intrinsecamente nova, nova não apenas como
Quando os nossos sólios perceptivos se dilatam ou se invenção tecnológica, externamente, mas como enriqueci-
intensificam, e a voracidade analítica na seleção de mais in- mento psicossensorial, internamente, na nossa caixa percep-
formações não pára, como em busca do marco inatingível tiva. A essência de sua imagem não provém mais da perio-
de uma percepção exaustiva, cabe-nos perguntar: que es- dicidade, resultante como vimos de uma percepção globali-
truturas globais, totais podem permanecer intactas (ou re- zante, mas da continuidade, fora do sólio perceptivo direto.
tocadas) para exprimir o simples domínio do inteligível se- Se a noção de periodicidade na música é delimitada
não o seu primado, sobre o sensível? Por quanto te:npo por uma "espessura do presente" ou sólios perceptÍ\'.eis não
ainda a percepção estética poderá fundar-se nos afinal ar- transponíveis, que se passa quanto à medição do sólio com
caicos ensinamentos das experiências primeiras, quando o outro fenômeno perceptivo da importância da duração? Fez-
desenvolvimento exploratório inexorável das relações do su- -se-lhe a operação de medição, graças a experiências arti-
jeito com o mundo solapa constantemente a base daqueles ficiais de degradação das formas temporais até intervalos
ensinamentos? Há, entretanto, com tudo isso uma evidência: cada vez mais curtos ou breves das modulações musicais se
a abordagem fenomenológica prossegue válida, ou pelo .dissolverem, se misturarem, anteriores e ulteriores, em re-
menos inevitavelmente. sultado de que se verificou que o que dá o sólio percep-
Se nos permite~ ainda exemplos de uma abordagem tivo da duração sonora é a velocidade em que se esvai a
dessa ordem como, digamos, na noção de periodicidade que forma. Assim, enquanto a noção de periodicidade só nos é
nos chega como uma forma, e se a comparamos à aborda- sugerida por fenômenos perceptivos ainda nos limites de
gem matemática, ver-se-á que a última é incapaz de dar nossa escala fenomenológica, ou essencialmente a repetição
d!'lquela um~ n<;>Ção. pe~feita. :e, que ta} noção de periodi- isocrônica produzida pelo ritmo, a noção de duração se
cidade perfeita rmphcaria - na experiencia de Moles com transmuda para nós em fenômeno a partir do valor de uma
D;Otas m~si~ais - não ,t~re~ esta~ nem um começo nem um velocidade em que a forma e suas definições, como a perio-
f1?1. ~ n~1~ez matemat1ca e entao corrigida pela experiên- dicidade, o ritmo, se esvaem quando é alcançado o sólio
cia ps1colog1ca, que revelou como a nota de música se di- perceptivo sonoro.
ferencia de um apito ( controlado na altura por um oscilô- Decorre assim da própria civilização tecnológica e cien-
111etr?) precisamente por ter começo e fim. De tal experiên- tífica de hoje uma arte que se tem de fundar, obrigatoria-
cia tiraram os experimentadores a .conclusão de ser a es- mente, cada vez menos nas velhas experiências perceptivas
cala que cria o fenômeno. A consciência da periodicidade fenomenológicas, de onde promanaram seml?re os todos in-
microscópica não à apreendemos diretamente da sensibili- teligíveis formais, e, fatalmente, em algo assim como a "es-
dade auditiva; mas também, lembra Moles, não consegui- pessura do presente" (para os sólios da percepção sonora).
mos fazer uma idéia direta do fato de a luz ser um fenô- Ela é constantemente solicitada a acompanhar, para mere-
meno ondulatório. Mas o fenômeno - o fenômeno? - cer atenção, o processo sistemático de ampliações, intensi-
ou o fato, simplesmente, existe para lá de nosso sentir di- ficações dos sólios perceptivos, que uma exploração estru-
reto. A escala perceptiva é pois o que cria o fenômeno. A turada em busca de novas mensagens informativas vai como
periodicidade só se torna explícita em nós nos fenômenos que tentando exaurir. O Cinema foi o primeiro dos frutos
que aparecem dentro de nossa escala sensorial no tempo; desse perscrutar faustiano que resultou em arte, numa gran-
por isso mesmo ela desaparece para cá do que chamam de arte nova. Mas aí estão o rádio, a tevê e outros pro-
"espessura do presente'' ou, nas medições da experiência, cessos transmissores, produtos todos dos mesmos desbrava-
quando os ritmos se tornam mais rápidos do que 16 a 20 mentos, embora frustras ainda quanto ao nível cultural. Em
por segundo (cinema, sons musicais). Quer dizer, precisa- música esses sólios vão sendo rompidos mais facilmente,
mente quando as Ciências exatas e suas aquisições tecnoló- desde as primeiras pesquisas ainda artesanais do atonalis-

134 135
mo, do dodecafonismo até o registro mecamco, a fita de ns mutações bastante graves ou fundamentais por que, den-
gravação, as manifestações concretistas, eletrônicas, ruidis- tro de naturezas de 2. 0 e 3.0 graus nas quais já vive, cria-
tas da "música" experimental de hoje. das pela Ciência, está passando o próprio homem, essa cai-
As artes no espaço, as artes da visualidade, fora a do xa orgânica aberta em remodelação, em ritmos alucinantes.
plano das experiências cada vez mais precisas ou preciosas Em todo esse vasto processo, a Arte nos aparece como
no campo óptico, como os aparelhos de luz, os jogos cro- sondagens precárias mas antecipadoras das mutações que se
máticos (op'art), são forçosamente de limitação mais óbvia, estão preparando para o homem. Ela tateia à procura tal-
porque mais confinadas ao condicionamento artesanal e vez do justo comportamento humano nesse longe, grave
tradicional e, por isso mesmo, menos flexíveis às intensi- curso mutativo que se abriu. Tudo se passa como se o
ficações exploratórias dos sólios perceptivos. velho homem estivesse a preparar-se para deixar, como
Interprete-se como se queira todo o formidável esfor: precária borboleta, o casulo dentro do qual até ,a9,ui vi~e~
ço científico exploratório da Teoria da Informação, esse no seu arcaico habitat, na sua velha cultura folclonca-mag1-
terrível acelerador sensorial; mas não terá aqui - pergun- ca-idealista-capitalista-ocidental, e sair por aí, a debater-se,
ta-se - sua explicação essa inquieta, quase neurótica ob- incerto e corajoso, num outro habitat cultural que ele mes-
sessão da pesquisa que .domina os artistas mais audaciosos e mo veio criando, ou se vai formando, já agora por si mes-
criativos da época? Trata-se ainda e no fundo de absorver, mo, e que também o vai transformando, de contradição em
de abarcar campos cada vez mais vastos na apreensão sen- contradição. O mínimo que lhe acontece então é ser ele
sorial e também substantiva do mundo, o que em outros mesmo posto em exponência para ser visto, analisado, me-
tempos, ou desde mesmo a arte das cavernas, foi sempre, dido, quantificado, e.m sua totalidade e nos detalhes, como
afinal de contas, a grande missão civilizadora da Arte. um objeto, um produto material. Até bem pouco tempo,
Observe-se, a propósito, que o ponto de partida, a di- . tudo o que o envolvia, a dois palmos do nariz, lhe vinha
reção dessas pesquisas têm sido sempre no sentido de am- incoberto numa camada de magia e mistério. Que maior mi-
pliar ou intensificar, interpenetrar os sólios perceptivos, a lagre ou mistério foi para o homem ver aparecer sua pa-
"espessura do presente". Em face da constância dessa di- lavra, sua voz, sem saber como, ao Deus dará? Uma "lei"
reção nas pesquisas é que se infere que uma idéia simples- o estava formando, criando, conduzindo, sem que ele sou-
mente discursiva, embora "nova" dificilmente pode presidir besse ou conhecesse. Mas eis que essa voz ou essa palavra
ou comover uma pesquisa no plano específico de qualquer acabou destacada, isolada de seus condutos naturais, para
arte, visual, auditiva, ou não. O sólio perceptivo tende a ser um objeto concreto, pesado e medido, como um produ-
ser rompido, constantemente, e em todas as direçõ;:s senso- to material. A voz é agora transmitida materialmente por
riais. Dir-se-ia estarmos no ponto de assistir a um alarga- condutos artificiais melhores, mais perfeitos do que o pri-
mento ou aprofundamento não somente no sentido vertical meiro conduto natural, a primaríssima garganta, com suas
dos sólios de cada campo, mas no sentido horizontal, como primitivas cordas vocais, do mesmo modo que as asas dos
se fosse para abranger, organizar, revelar, fecundar, num aviões de hoje são instrumentos mais perfeitos e mais pro-
leque aberto, todas as fontes, minúsculas que sejam, de emis- pícios ao vôo do que as asas imemoriais da águia. O seu
são sensorial acumuladas nos trilhões de células do orga- próprio nativo habitat, seu planeta, lhe aparece a ele - ó
nismo humano. . homem 'das dimensões camonianas, bicho da terra tão pe-
Todos os campos sensoriais vão passando a ser, desde queno, pouco mais que verme - examinado ~e fora, como
1a, objetos também da pesquisa estética, para além do vi- se estivesse sob a lente de alguns entomologistas que, en-
sual, do auditivo, do tátil, e, digamos, do olfativo. Pesquisa tretidos, examinassem o último besouro achado.
que não se proponha a desbravamentos dessa ordem, a que- O artista de hoje tenta, sem o saber, em suas pesquisas
brar os limites das "espessuras do presente", em qualquer por vezes tão premonitórias, situar o homem no contexto
campo, não terá caráter ou categoria de inovadora. Poderá futuro. O homem moderno se vai transformando numa caixa
se_r ainda interessante no sentido tradicional, poderá ser de condutos de comunicações cada vez mais complicados,
gratuita, no sentido formalista, ou redundante, no sentido cada vez mais aperfeiçoados. Toda a sua evolução, tudo
social. Não estará, porém, no rumo das aberturas culturais que fez até agora o seu progresso e que lhe vai poder as-
ve~dadeiras. Quando · idealista ou discursiva, poderá ser in- segurar (talvez) a sobrevivência em espécie no universo
tehgeote, mas pode não ser válida no sentido de contribuir aberto passa de mais a mais a depender da 1crescente com-
para que a arte no s.eu fazer de hoje acompanhe as ino- . plexidade e poder discriminatório desses condutos informa-
vações tecnológicas do mundo e, mais decisivamente ainda, tivos. Ele é cada vez mais outra coisa que ele próprio, e,

136 137
11 c ntrar-se, ou encontrar sua essência ou sua substância:
na medida dessa progressiva e dialética objetivação, se vai 'l' •rá ele feito, então, a cambalhota no cosmos sobre s1
tornando no tema exclusivo ou absorvente de sua própria
1n smo, seu destino. l\fas saberá, então, naqueles inconcebí- ,
arte. Assim como seu coração pode ser substituído por v is tempos, que é ele próprio? Isto é, que é nós mesmos,
outro artificial, que se aperfeiçoa, sua alma vai sendo tam- 11l nda e sempre?
bém reconstituída lá fora na trama das comunicações que
recebe e transmite. A evolução por que vai passando e que
não vai parar, quando quisermos, não será apenas quanti-
tativo mas qualificativo. Será uma verdadeira mutação, mu-
tação de que nós, seus antepassados, não podemos alcançar
a extensão nem a forma. Que será, com efeito, o ser hu-
mano atual · para seus netos, bisnetos, tataranetos daqui a
um milhão de anos? Provavelmente mais diferentes de nós,
essa periclitante, brilhante mas algo fútil humanidade dos
fins do século XX, do que nós do homem de Neandertal.
Mesmo anatomicamente as diferenças serão surpreenden-
tes entre o bípede indeciso quase alado de hoje e a má-
quina-organismo, em grande parte mutável e desmontável,
ou os longínquos _descendentes. dos ciberneticistas e infor-
mativistas de hoje que viverão naqueles fabulosos tempos
futuros.
Em plano bem menor, mas por isso mesmo mais pre-
ciso, um dos grandes físicos de nosso tempo, dotado tam-
bém de uma boa dose especulativa, Heisenberg, numa su-
gestiva reflexão sobre as relações do sujeito com a natu-
reza em função do estado da Ciência contemporânea, nos
advertia que no futuro "os numerosos aparelhos técnicos
serão talvez tão inseparáveis do homem quanto a concha
o é do caramujo ou a teia da aranha". Mas tinha o sábio
o cuidado de acrescentar: "Mesmo nesse caso, esses apare-
lhos seriam partes do organismo humano mais do que
partes da natureza envolvente''. Já se poderia fazer hoje
uma lista desses apêndices indispensáveis do organismo hu-
mano que se criam por aí todos os dias, desde o transístor,
a futura carta de identidade de cada cidadão onde quer que
se encontre, aos diversos órgãos · de sobressalência que o
homem já carrega e carregará ainda consigo, numa bolsa,
por toda parte.
Heidegger, numa de suas meditações sobre o pensa-
mento de Nietzsche, creio, afirmou que no início a com-
preensão do ser era pré-ontológica, mas que esta, de si mes-
ma, acabou por transmudar-se em saber explícito do ser.
Esse saber explícito do ser se compreende, mas o que é
difícil de explicação é a ausência de limite para essa ex-
plicitação, uma vez que pode terminar pelo estranhamento
do próprio ser. O saber explícito esclarece, sem dúvida, a
compreensão pré-ontológica do ser, mas o diabo é que pode
implicar o obscurecimento do próprio ser transmudado em
objeto "pré-ontológico". O homem, objeto de objeto de si
mesmo, talvez vá terminar seu ciclo, sem saber mais onde

138
139
23. CRISE DA ARTE-POESIA E COMUNICAÇÃO
A crise da Arte ou a crise da Poesia de que somos
todos testemunhas, entre deslumbrados e apreensivos, deve
refletir um dos aspectos de uma crise mais geral, a crise
mutacional do homem no cosmo. O homem está mudando,
o homem vai mudar. Nós sabemos •mas não verificamos
ainda; nós sentimos mas não fizemos ainda o esforço de
abstração necessário para compreender, ou melhor, nos si-
tuar conscientemente e desde já no processo. Mas olhe-se a
política. Se por ser ou de_ver ser a Ciência ou ao menos a
técnica mais apropriada a situar o homem nesse temível pro-
cesso, nada mais desolador e provinciano, olhe-se para onde
se olhar no panorama do mundo.
No campo, porém, das Ciências e disciplinas menos
gerais ou mais especializadas, é diferente. Aí se toma cons-
ciência desse fenômeno capital para a história e a sobrevi-
vência da humanidade. Os biólogos já estão fartos de nos
advertir sobre os efeitos mais palpáveis e mais perigosos que

141
os novos condicionamentos tecnológicos e energéticos v u um un-icação para além do natural, do orgânico, seria sua
criando para a espécie, enquanto físicos e filósofos cienti ontínua expansão, como complexo orgânico-cultural, para
t~s dos v~os ramos da Astronáutica, ciberneticist~s e te • 1 ira das fronteiras naturais do organismo biológico. Se para
ristas da mformação e da comunicação (juntamente com M les o que marca o momento do homem no cosmo é a
poet~ e visionários) vão debulhando afanosamente, como t' nscientização da materialidade da informação, essa to-
fornu~as, os detalhes e os desenvolvimentos do processo ir- nrnda de consciência não deve ser entendida como se a ma-
reversivel. Como pensar, com efeito, que a Poesia, a Art l rialidade viesse abolir os aspectos ideais das mensagens
- as. grandes vertentes da fantasia e da fabulação - pos• ( ue as pessoas se trocam, mas apenas, no sentido de que os
sam ficar estranhas_ ao fenômeno, ao lado das legiões assa- ultimos não abafam nem escondem mais o lado material
nhadas d'?~ ~harlatoes, dos profetas, médiuns, parapsicólo- da operação. As idéias que se transmitiam, explica Moles,
gos, messiamcos e os eternos fundadores de religião? faziam esquecer a transmissão. Outrora, os que tinham algo
Mas chega de generalização. Voltemos ao nosso canti- ou mensagem a comunicar, os filósofos, os profetas, por
nho. Falav~-~e em crise ~a Arte, que se pode tomar pelo seu exemplo, não viam na materialidade do escrito ( ou do gra-
aspecto estetico, ~uer dizer, leio prisma da apreciação da vado) senão uma contingência aborrecida, e da qual era
obra de arte, o prisma da critica. Hoje quer-se sobretudo Imperioso que se libertasse a palavra. (Quanto mais etérea
saber o que significa p~ra o espectado~ a Arte: a obra d; e milagrosa aparecesse, mais estava perto da verdade.)
arte. O aspecto ontológico d~ s« da oj:>ra de arte é posto
de lado, ou o aspecto propnamente· dito da Filosofia da Quando as línguas se formaram e a tarefa dos pen-
Arte. (~ de se ver sob esse ângulo a obra recente de sadores, filósofos, mandarins, sacerdotes, médicos, curan-
~tienne Gilson, de estupenda abertura e penetração filosó- deiros, mágicos, foi a de fixar o valor necessariamente flu-
fica da n_atu!eza da obra de arte.) A própria predominância tuante das palavras, o processo de isolamento de suas várias
da apr~Clªrªº· ou a parte do espectador, sobre o cooheci- significações estava também, no fundo, ligado a um pro-
m~nto mtrinseco da obr~, revela a mudança de posição so- cesso paralelo, embora muito lento, de materialização tec-
frida, pela a~ 7 pelo a~t1sta no mundo em relação do mes- nológica de proceder. Mas quando, como que num pro-
mo a f!se 1~1c1al do. seculo, q~ando se repudiaram todas cesso inverso, a palavra é liberta de seu suporte condutivo,
as rel~çoes nao propriamente plasticas inerentes à obra por ela é metáfora que a poesia ou a metafísica isola para dela
necessidade de isolar o fenômeno desta, para a análi~ e extrair novas mensagens. Ao longo do reino infindável do
r7ssaltaram-se os valores formais. Criou-se então O con'di- nominalismo, a palavra passa a ser ela mesma entidade,
c!o?amento cultural de onde surgiu o que passou a ser de- coisa, objeto, e, como todo objeto, a ser identificada numa
f101do como "arte moderna". necessária extensão tempo-espacial.
. Agora, à me~ida qu_e a obra de arte vai perdendo sua Ela vai deixando de ser imagem para ser signo; deixa
umdade, que o artista vai superando a própria obra, os filó- de ser verbo que faz com a ação um feixe inextricavelmen-
sof o_s da arte_ ce?7m ~ugar à crí~ica estética e sobretudo aos te dialético para ser disciplinado significante numa estrutu-
teori~os .?ª s1gm~1caçao, quer dizer, das linguagens, da co- ra sintática, signo semântico num enquadramento lógico, e,
mumcaçao, da mformação. Todos preocupados com as enfim, sinal numa mensagem codificada. A palavra liberta-
mensagens do lado dos receptores. Isto só dá a dimensão -se de seus canhestros canais biofisiológicos do permanente
do moment? cultural que estamos vivendo. Dir-se-ia que to- nevoeiro e "embruxamento" (Wittgenstein) psíquico-percep-
do~ os ouvidos e todos os olhos estão abertos a todos os tivo do que é rodeada, de algum modo ligados ao esforço
estimulos, a to~as as provocaç~s, a todas as comunicações, emitente inicial, mesmo hoje incerta ou precariamente apre-
a ~os os ~gos. O homem e hoje um animal aberto e, endido pelos recipientes correspondentemente também mal
po1~, um amm_al - o velho animal ensimesmado - em e empiricamente condicionados. Todo o processo como que
definh~to _e, ainda, 9-uand~ mais não seja, por força continuaria preso ao esforço semântico criativo reflexivo da
de ~a slDletria, uma caixa, maquina em progressiva com- própria formação da língua ou das linguagens. Algo está
plexidade. sempre a entupir os condutos. O instintivo é um leite que
Abrah~ Moles, o teórico mais importante, no mom.en- cola ao desabrochar da palavra, e nutre esse emaranhado
to, d~ Teoria d~ Informação . no plano estético, quer ca- de trepadeiras parasitárias do expressivismo humano que se
racterizar o homem moderno ·pelo uso dos canais artificiais enroscam pelos canais emitentes e impedem ou dificultam o
de comunicação. Na verdade, o que caracterizaria esse ho- fluxo límpido semântico. O homem em si, por seus próprios
mem seria a ampliação de seus poderes biofisiológicos de recursos naturais orgânicos, é incapaz de atingir a fluidez
142 143
clara de uma em1ssao- puramente semântica, sem resíduos. Todos esses jovens poetas e críticos acabaram por si-
Até aqui, no entanto, temos vivido em grandíssima parte tuar, no plano estético deles, o problema em foco, da pala-
dessa floração embruxadora (oh!· Joyce! oh! nosso Guima- vra e seus condutos. No Rio, com o neoconcretismo de fa-
rães Rosa!), mas que nos deu, no entanto, toda a arte e laz existência, seus artistas e poetas descobriram ainda assim
poesia que temos, a energa explosiva das metáforas da nossa o fator tempo para com ele destruir a estética do simulta-
retórica, ainda homérica, à nossa fabulação ainda bíblica. neísmo visual formal, em busca da ação no momento do
Antes de entregue à lavagem dos semanticistas, à dis- processo criativo, idéia que felizmente teve seus desdobra-
criminação da Semiótica, à pesagem da lógica simbólica a mentos nas pesquisas fecundas e indagações especulatívas
palavra liberta foi obra dos poetas, no afã de torná-la lí~- de Lígia Clark e nas experiências plásticas ainda criativas de
pida e polida na sua unicidade mítica. Os alquimistas tra- Hélio Oiticica. Quanto aos concretistas de São Paulo, todos
balham a matéria, a água com paciência e eternidade até poetas, armam à palavra uma estrutura espacial bidimen-
ch;g~rem à água pesada e ao ponto de suas transformações sional cada vez mais . complexa, a correr em todas as di-
atom1cas ou da pedra filosofal. Os poetas também vieram reções, em escalas de decomposição e recomposição rítmi-
trabalhando a palavra com a mesma paciência e eternidade cas espaciais, numa verdadeira pauta de notações musicais,
e a mesma elementaridade de meios dos alquimistas sobre até encontrar-lhe um conduto artificial capaz de levar aos
a matéria até chegarem à sua autonomia atual, qua~do os pontos receptores uma mensagem informativa ótima, num
condutos materiais artificiais conscientizados permitem me- mínimo de redundância. Não devem esquecer, entretanto,
di-la; Não queremos gastar erudição, que não temos, más que a redundância é substância ou vírus de toda mensa-
mt; permitam invocar, correndo, depois de Rimbaud, Mallar- gem, de toda retórica, quer a persuasiva, quer a em-
me, que trabalhou a palavra com a paciência e a eternidade baladora .
. de ~ alquimista (Uli coup de dés):, mas só para lembrar
daqui de casa o trabalho dos nossos jovens poetas concre-
tistas, sem omitir as experiências de Ferreira Gullar o mar-
cante criador de A Luta Corporal. '
Todas as experiências deliberadas com a palavra, inde-
pendentemente da arte do poema, inscrevem-se artesanal-
mente no mesmo longo, erudito protesto. Gullar fez, por
exemplo, algumas tentativas de inteira validade com o que
chamou de "não-objeto" e se iniciou pelo Poema Enterra-
do, ~ara o q~al o saudoso José Oiticica, sob doce pressão de
Heho, seu filho - que então ainda não havia entregue a
alma ao diabo para tornar-se o artista possesso de hoje -
chegou a construir, no jardim da casa, um abrigo subter-
râneo. O poeta procura encontrar, alquimisticamente, o lu-
gar, o sítio estatutário da palavra, um útero (conduto arti-
ficial) para que renascesse como da primeira vez. O teórico
do "não-objeto" queria restaurar-lhe a pureza do gestante,
e foi nesse sentido o primeiro criador, sem querer, da "es-
tética'' ou da "escola" de caixas do Brasil, ( de que tanto se
fala agóra por aqui, a torto e a direito, mais a torto do
que a direito). A démarche dos poetas concretistas é algo
diferente: eles tentam isolá-la também, mas não no espaço-
-tempo real, pois não a tratam como gestante. Querem re-·
criá-la, fornecendo-lhe estruturas planas específicas para
dela ressaltar ou criar substâncias visuais específicas. A con-
tribuição desses poetas, sobretudo os de São Paulo, tem sido
altamente apreciável, graças em particular à poesia crítica
ou à crítica cria~iva dos Campos ou mesmo à agressividade
por vezes tão lúcida de Décio Pignatari.

144 145
24. A PASSAGEM DO VERBAL AO VISUAL
Vivemos, dizia eu, ainda simploriamente, por volta de
1950, "num mundo de imagens-clichês, tanto na linguagem
(hoje, diríamos informação) verbal como na visual. :8 a
civilização de hoje uma civilização exclusivamente de cli-
chês, geometricamente multiplicados". :8ramos, ou somos,
prisioneiros de antigas orientações amalgamadas nas línguas
que herdamos. Verificada essa espécie de conflito que ia
crescer, cada vez mais, em ritmo acelerado entre a infor-
mação do verbo e a informação da imagem, já podíamos
sentir que "a linguagem da visão, talvez ainda mais sutil e
completa que a verbal, determinava a estrutura de nossa
consciência". Naqueles tempos, um cientista como o pro-
fessor Hayakawa do Instituto de Tecnologia de Illi0<,1is, ain-
da podia, ao afirmar que ver dentro de limitados modos de
visão não era ver, mas enfeixar-nos no mais tacanho paro-
quialismo de sentimento, lamentar-se, cotno nós mesmos,
que, espectadores de uma revolução industrial e tecnológica

147
sem precedentes na ~istória, ainda estivéssemos espiritual l11rnram-lhe a superfície, botaram-lhe bordas altas, e depois
mente n1;1~. atr_!SO barbam em relação às percussões d lninpas e fundos falsos, dobraram-no sobre si mesmo, e por
mesma c1v1hzaçao. r m arremessaram-no para um lado, como traste gasto.
Adotando então - como se era ingênuo logo após 11 Preferiram ao espaço plano, isolado (,a tela ou quadro)
Segunda Grande Guerra - ponto de vista de mero ·crítico plonos no espaço, traços no espaço, construções e até caixas
d~ arte, cl~mávamos porque os nossos artistas visuais ainda m articulações ou sem elas, com orifícios ou sem orifícios,
nao ~ haviam acomodado ao movimento cinético e à visão 1111 quais no Brasil, não se sabe bem por que, ficaram na
multiang~l~r do cinem~ e do avião. Até aqui, continuáva- inoda, até com prêmios estimulantes para sua confecção.
~os, a v1sao era, depois da linguagem verbal, 0 meio mais A informação é senhora do mundo, e na medida em
u~portante de penetra~ão e apreensão da realidade. E mos- que o impacto da tecnologia cresce, maior a predominância
travamos como na cnança e nos povos primitivos, a luta do papel da informação para a definição da representação
q_u~ se esta~le~e no processo de seu crescimento interior, do mundo. Esta se modifica radicalmente porque as infor-
f1S1~0-sensonal-mtel~ctu~l, para a predominância entre 0 mações do real que o homem acumulara consigo através de
me10 de representaçao visual e o meio de representação ver- experiências e conhecimentos acumulados são submergidas
~al, acaba sempre pela vitória do último. Mas, prognos- por esquemas cada vez mais abundantes de informações tra-
hcav~, a Art~ ~ode~na veio no fundo para lutar a favor zidas pelos processos tecnológicos mecânicos. Enquanto o
?º ~isu_al. Hoie, e evidente, essa missão coube ao cinema e mundo de informações do real prende os homens ao seu
as tecmcas de comunicação de massa. Os artistas plásticos meio por assim dizer natural, um mundo novíssimo ou "pu-
que encheram a época com seu denodo descobridor de al- ros mundos de percepção", produtos principalmente do ci-
gum modo marcharam na mesma direção. Mas o fizeram nema e da televisão,. atuam, modificam o real imediato, in-
em .campo fechado e sobretudo ideal ou metaforicamente. corporando-o a eles e se incorporando neles. A essa inter-
Assim, por ~xe~plo, na tela o ponto de vista central é des- missão é que os autores do ensaio chamam de "informação
locado, ?1ultiphcado no espaço ilusório da mesma. O cine- visual".
ma, porem, º. faz no espaço real, e sobretudo é ele que dá O que a distingue é que tende, em lugar de refletir
a todos os arhsta_s e ª. todos os homens a imagem mesma de passivamente as refações fundamentais do homem e do seu
um m~ndo em dmam1smo contínuo. É metaforicamente que meio, a sobredeterminá-los de um modo decisivo, complexa
~alev1tc~ ~ outros, por exemplo, suprimem a linha de ho- e maciçamente. Tanto o cinema como a televisão e a ima-
n_zonte bas1co do quadro, quando o observador aéreo já 0 ginária difusa do conjunto dos meios de informação e ex-
dispensou de sua visão na realidade. E agora não podemos pressão modernos distribuem a massas cada vez mais com-
perguntar se ainda há baixo de alto para o astronauta li- pactas materiais de informação que não são em sua maioria,
be_rto ou at_arantado, ~or falta de apoio da gravidade? 'su- e não forçosamente, nem extraídos de seu meio imediato ou
mida a honzontal bas1ca de seu apoio sobre a terra O ho- próximo, nem de nada que a ele se relacione, à primeira
m~m .se vê diante da vertigem da instabilidade em perma- vista. "Tudo se passa como se a evolução da informação-do
menc1a. verbal ao visual tivesse desarraigado a representação do
éo1?o sabemos, a arte moderna se apresentou em sua mundo e a tivesse, pelo menos parcialmente, libertado dos
c_omplex1dade quand? o qua~o de cavalete aparece aos ar~ laços que a prendiam outrora ao meio natural e social." A
listas como um totalidade autonoma, e não como até então observação é poderosa. A avalancha de informação sub-
n~ vel~a ~rte representativa uma superfície destinada a merge a todos, elite e massa. O homem culto, educado, não
cr~ar a Ilusao de uma realidade exterior tridimensional. Mas pode mais servir de modelo. Não se pode obter que todos
a Justa e fecun~~ convenção de então, em sua autonomia e se façam como ele, pois que não controla melhor do que os
na sua concre~1c1dade real, hoje é de novo desrespeitada. não-cultos ou broncos a ação que sobre ele exerce a in-
Por q~e °:l arhstas cansados voltaram atrás para fazer suas formação geral, e notadamente a visual. Outrorai, a Ciência
preleçoeszmhas. em perspectiva na procura da .ilusão corpó- vinha à vida imersa num mundo imediato e já dado de sua
rea ou do real rmediato? Claro que não. O çlesrespeito vem intervenção, dentro do qual se fazia a sua répresentação das
d'? fato de que. o quadro perdeu sua integridade anterior. coisas idêntica em média à dos outros, adultos inclusive;
T1raram-lhe o isolamento que lhe dava a moldura, vasa- hoje, ela desperta não só de saída para o velho universo
ram-no, rasgaram-no, !?regaram-lhe coisas e cacos, acaba- de sua rotina mas também para um universo factício e
ram com o tabu do retangu)o, puseram-lhe relevos, avança- muito mais complexo fornecido pela informação. A con-
ram-no sobre o espaço, fugmdo do muro, riscaram e mo!- clusão dos autores é inegável: Todo o processo da forma-

148 149
ção da personalidade em movimento vai nos permitir_uma A substituição do verbal pelo visual apresenta-se como
nova conceitualização da realidade, mais consentânea com uma derrota do saber em face das conseqüências _da parti-
o espírito científico da época e as sensações dinâmicas que •lpação do real. Faltam-lhe todos os m~ios cul~uraIS de 9ue
o aparelho tecnológico nos oferece todos os dias? Um pro- dispunha outrora. No mundo dos artistas eXIste por ~sso
fetazinho sempre engasgado dentro de nós nos fazia então mesmo o desconcerto. Outrora, em nome da perspectiva,.
responder: "Marchamos para uma civilização de signos iné- Piero della Francesca e Ucello nos davam uma perfeita
ditos ou universais ainda mal absorvidos, de imagens-símbo- re presentação do mundo do Renascimento. Picasso, ainda, o
los. Já a Cibernética nos propõe uma civilização de pura ênio parasita por excelência, passeou pelos museus euro-
comunicação, não mais de força, nem da eletricidade, nem peus, pelas coleções etnográficas e alguns s}tios sagrados ~
do vapor. Uma civilização de comunicação sem contato di- nos trouxe dessas incursões uma representação do mundo vi-
reto". Para esta constatação também já encontrávamos (ô! sual daqueles povos primitivos; mas hoje isso é impossível.
Otimismo!) um paralelo na arte de então, a arte abstrata Os artistas da op'art brincam com aparelhos eletrônicos ou
que "viera para educar o povo, prepará-lo para entender-se, com a luz para nos chamar a um can1? .e nos divertir. ?s
para comunicar-se sem ser pela palavra". da pop ajuntam o que podem para nos tmpor algo que nao
Um dia, profetizávamos, em Paris, numa entrevista em é nem um conceito, nem uma forma, nem uma represen-
1953: "O povo e os artistas restabelecerão, graças às rea- tação. Esta - do mundo - já não é mais elab~rada pelos
lizações da arte abstrata, o contato perdido. Na decadência artistas, mas pela informação visual e outras. Eis o drama
da civilização verbal, cuja curva descendente começa a de- da arte contemporânea. As técnicas da comunicação avan-
linear-se · diante de nossos olhos e que arrasta consigo çam sobre a imaginação deles, num desenvolvimento cada
as conceituações mais sólidas e sagradas, a nova arte ten- vez mais autônomo. Os artistas debatem-se dentro de uma
tará restaurar o sentido· das coisas eternas, dando vida a representação sobre que não fizeram, nem receberam faixa;
novos mitos que, só eles, poderão trazer aos homens urna mas que se elabora sem eles.
nova razão de ser e de esperar".
Estamos agora em 1967. O conflito do verbal e do vi-
sual nunca esteve mais acerbo. Os teóricos da informação
só agora começam a situá-lo bem. E somente agora come-
çam realmente a tirar as verdadeiras ilações do grave pro-
blema, que está nas raízes da civilização de massa da hora
presente. Ainda muito recentemente num brilhante ensaio
sobre as colunas-mestras dessa civilização, o cinema e a
televisão, o que seus autores, Cohen-Séat e Fougeyrollas,
ressaltam sobretudo é a ação desses meios sobre o homem.
Na civilização em marcha a ação exercida sobre o homem
passa pelas técnicas da informação visual. E isto aqui é
grave e decisivo: a ação que o homem deve procurar exer-
cer sobre si inesmo e sobre o mundo, num fito de eman~
cipação, não pode mais evitar a sua submissão àquelas téc-
nicas. A explicação para essa submissão se encontra espe-
cialmente no fato de que os meios de expressão do cinema
e da televisão não pertencem mais essencialmente à ordem
do verbal, pertencem à ordem do visual. A situação é ra-
dicalmente nova. A ordem do verbal, é claro, prevalece na
zona do pensamento científico ou lógico, e também no com-
portamento rotineiro do cotidiano. Suas manifestações ainda
subsistem no contexto de uma sociedade cada vez mais do-
minada por modalidades é desse modo alterado. O homem,
arrancado de seu ritmo de maturação e adaptação, justo e
orgânico, tem de se integrar na "esfera do audiovisual, ou
na iconosfera'.', na denominação de Cohen-Fougeyrollas.

150 151
25. UM PASSEIO PELAS CAIXAS NO PASSADO
:É. sempre uma tendência de todos nós andarmos a pro-
curar precedentes e antecedentes às manifestações e movi-
mentos artísticos mais atuais ou recentes. Mas é isso um tra-
balho vão, ou mesmo inútil. Os que não participam deles,
por isso ou por aquilo, ficam como que despeitados e tra-
tam de mostrar que os mesmos não são originais pois fu-
lano ou sicrano já fei melhor ou que em tal ou qual época,
aquilo que se pretende apontar hoje como originalidade ou
vanguarda já fora feito. Quem procurar encontrará sempre
algo que possa lembrar ou sugerir qualquer desses múlti-
plos e sucessivos ismos moderníssimos. Até mesmo nos for-
midáveis trogloditas do paleolítico superior não é impossí-
vel encontrar paradigmas ou sugestões para as pesquisas
mais de "vanguarda" de hoje.
Tais reflexões me vinham a propósito de certa ciumei-
ra que anda por aí concernente à "descoberta'' ou uso de
"caixas'' ou de "continentes'' em substituição do quadro na

153
p~tu~a. (Cronologicamente, creio que Ferreira Gull~r foi , contudo, de ilustração à tese de que é inimportante esta~-se
pnm_e1ro a conceb~r um invólucro, um cubo para a palavr , à cata de predecessores para os movimentos va~guardeiros
poesia, quando cnou a teoria do "não-objeto", atualmcnl de agora em ilustres precursores de uma geraçao ~a_ssad~;
representada na exposição da "nova-objetividade" no Mu u Não porque não os haja, os há em Jodos os do~m1os, Ja
de Arte Moderna por dois extraordinários espécimes.) Creio que nas primeiras duas décadas ~o seculo tud<? f01 tent_ado
também que o primeiro de nossos jovens artistas que saiu e descoberto, mas como lampeJos de u~ dia, ante:1pa-
do plano da pintura diretamente para o espaço pictórico ções (privilégio da Arte!) brotos tem~oraos de fenome-
Para Os " nuc ' 1eos" ou " penet rave1s
' · " , as catxas
· e vidros o~' nos que só vão reapar~ce! madUf<?S mais tarde num <?utro
"bólidos", foi o pintor Hélio Oiticica em busca da co; n~ contexto social e econom1co, pohtico e cultural, ~ep01s ~e
superfície, da cor no espaço, da cor ~o alto e no baixo, da uma ou duas gerações. (Dada, _p or exe~plo, surg_m ~m dia
cor por todos os lados, de modo a que se "visse" a cor num pequeno cabaré de um~ pequena ci~ade _proymciana da
sentisse a cor, se roçasse a cor, se pisasse a cor, se ~er- Europa, irradiou-se esporadicamente aqm e ac?la como s~r-
gulhasse em cor, se apalpasse a cor, se cheirasse a cor. Do tos de guerrilhas isolados, para ser em se~da abs?rv1~0
m~smo_ modo de~emos convir ter cabido a Lígia Clark a nas grandes correntes artísticas que, a p~rr da Primeira
pnma~ia do con~1te ao espectador para participar na obra Guerra Mundial, se espraiaram ~~A E~rop~ litera~e~te pel~s
do artista, a partir de seus "bichos" e depois com o Càmi- outros continentes.) As consequencias unprevisiveis enta_o
nhan40 até as últimas experiências sensoriais corpóreas que de sua virulência intrínseca não feneceram; no entanto, pois
a artista vem propondo ao público. Devemos ressaltar no vão explodir, desabrochar quarenta ou cinqüenta anos de-
entanto, a prioridade de Agam (Israel) com pequenos qua- pois numa sociedade revolvida nos seus ahcerces pela Se-
dros em que o espectador muda a composição deslocando gunda Grande Guerra, a bomba atômica, a comu~icação. d_e
na tela grampos coloridos. · massa o levante das raças não-brancas, a saturaçao da civi-
O problema das primazias não tem porém importância lizaçã~ de conforto, o crescente inconfon_nismo d~s. duas
no plano decisivo do mérito artístico. Quem foi o desco- maiores forças da civilização cada vez mats planetana~ de
bridor do cubismo? Braque ou Picasso? Os amadores de hoje - a juventude e ~obreza do mundo - e, fmal-
anedotas ainda hoje discutem a questão. Mas a ordem do mente, o impasse generalizado _a que ;:hegou em seu pla-
dia agora é outra. Contestem-se ou não aquelas prioridades neta a humanidade do nosso flm-de-seculo. Mas todos os
que propus, uma coisa é certa: os valores da dita "van- impasses de agora estavam em germe naqueles começos de
guarda" brasileira não saem diminuídos por isso. A con- século.
tribuição capital do primeiro grupo concretista de São Paulo Não se pode reduzir a déma~che essencial dos artisJas
( c~m Sacil<!tº; ~ordeiro, Maurício e outros) está hoje in- que acabaram descobrindo o contmente sob f?~ª de caixa
serida !1ª h1stona da arte moderna deste país. As audácias para suas lucubrações plásticas e _uma predileça~ _externa
comumcantes de objetos e pinturas e gráficos de um Wesley pela forma em ângulo reto das caixas. O de armanos, p_or
Duke representam uma abertura de caminho à temática e exemplo. E de repente nos surge o gr~nde nome de Lomse
estilística iconográfica internacional no contexto moderno Nevelson que na escultura norte-amencana e m_oderna _faz
brasileiro. E também a iniciação de um Gastão Henrique grupo à parte. Ela, trouxe antes dos outros, ereto, a ca~a,
q~ando nos _deu uma série de ''portas" de oratórios, escrí- 0
armário em dourado ou em prateado como t~ma e nao
mos e gosto arcaizante inspirados nos velhos trastes do re- como forma, à escultura abstrata moderna. Havia algo ~e
pe~ório hispâni;O:luso das sacristias, igrejas, palácios metro- insólito e mesmo rebarbativo ( quanto ao bom gosto e as
pobtanos e colomas de nossa formação cultural. E, sobre- tradições modernistas) naquela proposição. S que ela nos
tudo? quem pode _negar, hoje, a impressionante contempo- colocava a todos perplexos entre o arcaico e o moderno,
raneidade do movimento neoconcreto do Rio para as mais entre o seu mistério prosaico e o óbvio simbólico daq~eles
audaciosas experiências plásticas da ultimíssima "vanguar- armários. O "claro enigma" do poeta? Mas _não vamos amd,a
da"? Registremos o fenômeno auspicioso .e passemos adiante. desta vez falar de Nevelson; vamos passar de seus anna-
Cedendo, apesar de todas as considerações acima, à rios para outros, e destes para outra época, muito distant_e
tentação de dar um ligeiro passeio ao passado e procurar da nossa, mas aberta como a nossa. A especulaçao é penm-
alguma relação com a moda das "caixas'' (já que se tornou tida.
moda no Brasil, ou melhor, atestado de vanguardismo pro- Segundo pesquisadores históricos d? _assunto, d':~~e a
duzi-Ias), achamos também algo que propomos, eventual- segunda metade do século XV, uma espec1e de novo gene-
mente, sem, é claro, qualquer empenho dogmático. Serve, ro" de obra surgiu e se espalhou pela Europa. Foram as

154 .155
. t, . o das coisas na ambivalência dos sítios, dão lugar às
marchetarias italianas que passaram a oferecer a toda um 1 ~~:u~~zas mortas de objetos de uso. imediato (lemb~~mtnos
clientela de burgueses e mercadores ricos e nobres coleclo do cubismo com suas cartas de ~ogar! seus cac ~m os e
nadores armários entreabertos cheios de objetos lá dentro, . . ) e também de usos menos imediatos ou mais recen-
Em 1952, em Paris, na Grande Exposição de Naturezn 1ornais
te Que significa essa súbita apropnaçao· - art'ist·ica de coisas
Mortas, da Antiguidade a nossos dias, vi uma dessas p:~saicas ou não-nobres? Simboliza,!11 o~ rep~esentam :1 ver-
ças. Ao lado delas, algumas naturezas mortas das mais an são de um mundo com duas ou tres d~mensoes a I_!lªl~ que
tigas não eram senão a reprodução em trompe-foeil dos ob velho mundo medieval definido na simples relaçao linear
0
jetos nos armários entreabertos. As próprias marchetarin _ Homem-Deus. As distâncias, o espaço e o tempo, a ~eo-
acabam transformando-se em painéis pintados decorativos. metria, a paisagem, a fauna, a flora do mundo, repentina-
A origem da idéia proviria dos círculos humanistas do Qua- mente se ampliaram em escala assombrosa. Inaugurand~ a
trocentos (Módena, Urbino) , influenciados por sua vez pelo nova época, Piero della Francesca, criador da perspectiva,
amor flamengo da descrição realista das coisas cotidianas, mediu o mundo; Galileu o pesou. Ao . mesmo ~empo, as
caseiras ou da manipulação artesanal ou profissional, flore plantas eram pela primeira vez estudadas como <:_01~as. Erar
e livros, compassos e tesouras, armas e instrumentos de mú- os naturalistas que chegavam, e com eles botam~'?s ~ :1 -
sica, de navegação etc. Esses objetos e instrumentos mostra- quimistas, médicos e farmacêuticos, ge~grafos e v1s10nanâ!
dos ·nos armários entreabertos e nos nichos com estantes de uma espécie nova surgiam. Em ~e10 ~eles, de posse
acabam saindo daqueles continentes para ser representados, tudo, 0 homem social novo, o burgues, av!damente no gozo
em si mesmos, realisticamente, em face da curiosidade dos de cada coisa, material e terrena, a sentir tudo, a provar
artistas flamengos e alemães. A medida que o século XVI gloriosamente de tudo. .. ,
avança, esse novo gênero começa a espalhar-se e a encher A natureza morta, o primeiro passo dec1s!vo_ a autono-
certos centros mercadores da Europa de objetos c::stranhos mia da pintura será a arte burguesa por excelenc1a. No seu
e exóticos, vindos no séquito das descobertas marítimas apogeu culturai. Por isso mesmo foi a ~ltim~ a morrer, ~o
como os índios brasileiros que encantaram a corte de Ca- pórtico de outra ci~ilização. (Mas a caixa nisso tudo on e
tarina de Mediei e prenderam a sábia curiosidade de Mon- fica? Veremos depois.)
taigne. :e a época dos "Gabinetes de Curiosidade" nas casas
e palácios dos burgueses enriquecidos no comércio das
índias . .
Os armários e _caixas que foram nas marchetarias ita-
lianas repositários de várias alegorias de simbologia reli-
giosa, como a Vaidade etc., se tornam pretextos a painéis
decorativos nos quais se faz o rol mais completo possível
das coisas novas ou recentemente chegadas de longes terras,
resultantes de um comércio que vai encher as lojas dàs ci-
dades burguesas prósperas de novidades cada vez mais exó-
ticas. Se na Alemanha pré-renascentista ainda o motivo do
armário aberto ou entreaberto, estreitamente ligado a uma
simbologia mágica, predominava na pintura religiosa, na
Itália já altamente renascentizada, o mesmo motivo é iso- .
lado e utilizado como decoração. Mas a sua autonomia não
fica aí, pois o que se exibia nos seus nichos e estantes apenas
em trompe-foeil transforma-se em .temas, em si mesmos,
para os pintores ... modernos. São as "naturezas mortas".
Na Itália, onde nasceram, na Alemanha, mas sobretudo nas
cidades burguesas comerciais de Flandres se multiplicam, e
vão parar na Espanha, onde tomam as formas mais singula-
res e culminam nos famosos "bodegones" .de Velásquez.
Assim, as marchetarias italianas do Quati-ocenos, com
seus temas alegóricos e simbólicos inscritos em formas de
armários e nichos entreabertos, como que para ressaltar o
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156
26. CRISE OU REVOLUÇÃO DO OBJETO
Homenagem a André Breton
Se o artista de hoje pudesse ser definido, no contexto
sociocultural que é o seu, por um só traço, diria que era
pela recusa à auto-expressividade. Quer dizer, uma atitude
ou comportamento que se coloca no lado oposto em relação
ao ponto de equilíbrio pendular em que se encontrava faz
pouco tempo, quando reinava a estética solipsista do infor-
mal e do tachismo. O pêndulo quase que subitamente baixou
do ponto alto -à direita, onde se encontrava, passou sem
parar pelo centro e subiu à esquerda, onde. paira, sob a es-
tética do pop ou melhor da antiarte. O processo de mudança
não se verifica numa curva, continua a subir, mas num rit-
mo pulsativo, pendular, para um lado e para outro. Tem
sido assim desde o início do ciclo dito da ''arte moderna"
até seus desenvolvimento~ últimos, quando se abre novo ci-
clo de características e mesmo finalidades tão diferentes que
me levaram a falar em "arte pós-moderna".
Toda a "arte moderna'', desde os seus primórdios, veio

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se destaca1;1do co~o um processo de destruição sistemáti 11 em Paris, de objetos - ''objetos matemáticos, objetos na-
do_ naturahsmo,, r~mante na estética do século XIX, em , turais, objetos selvagens, objetos encontrados, objetos ir-
gu1~a ao ne~c~ass1co. C~mo numa etapa lógica a essa prl racionais, objetos ready-made, objetos interpretados, objetos
meira_ destru1çao se segum outra, que foi a do objetivismo, incorporados, objetos móbiles"; essei; objetos, como os cons-
O objeto passa, /mesmo a. partir do cubismo, do fauvismo, truídos, ou são dados geométricos euclidianos, ou dados não-
e natural~ente do express10nismo a ser dissecado desestru- -euclidianos, mas que entretêm no espaço, tal como geral-
turado e dissolvido. O "modelo exterior" é afinal ;ubstituído mente o concebemos, "relações as mais apaixonantes, as
por ou~ro modelo, que o formidável poeta e descobridor do mais equívocas", pois são "de natureza sobretudo a le-
surreahsi:no, morto em outubro do ano passado, André Bre- vantar o interdito resultante da repetição esmagadora dos
to~, des1gn_ara como "modelo interior". A partir deste o que caem diariamente sob os nossos sentidos e nos convi-
objeto se dissolve. E ~g~r~ assistimos ao pêndulo voltar da dam a considerar tudo o que poderia estar fora deles como
ponta extrem~ ~~ subjet1V1smo e buscar atingir a ponta ex- ilusório'', Na realidade o que importava então ao fundador
trema do _su?j~hv1smo, na outra escala. Vivemos numa fase do surrealismo e seus companheiros era fortificar "os meios
de neo-Objehv1smo, de neoconstrutivismo, em tudo _ numa de defesa que poderiam ser opostos à invasão do mundo
P,r?cu_ra ard~nte e nervosa do espaço real, dum centro ou sensível pelas coisas de que, antes por hábito que por ne-
s1t10 ideal, mdependente das conjunturas egocêntricas de cessidade, se servem aos homens".
onde algo se, construa, se ajuste, se erga, numa dir~ção Essa atitude revista sob o ângulo de hoje; o. que se
constante, umvoca - de si para fora. salienta dela é a barreira ( tão precária) que em nome do
E:~ 1936, Breton, numa ensaio cujo significativo tí- sonho .~ da poesia o surrealismo tentava erguer à invenção
tulo" d1~1a tudo -;-: C~!se do Objeto - propugnava a criação da produção em massa. Trinta anos depois, o que vemos? A
de ob~etos_ poeticos , ao lado dos "objetos matemáticos", pop'art que, ao invés de levantar-lhe uma barreira, capi-
concretJ~açoes ?e equações complexíssimas, então expostos tula perante ela. A palavra de Breton então era, aqui como 1
n? ~usee de I Ho~me, de Paris, uma das fontes de ins- alhures, perseguir a ."besta louca" do uso. Não em vão o,,:
p1raçao de concret1stas como Max Bill. Mas já antes 0 surrealismo jamais se apresentou como um moviment.o ou,
grand_e poeta P!Opunha a fabricação e o lançamento em cir- escola artística, mas sempre como um inconformismo ético:
culaçao de objetos aparecidos em sonho· o acesso acen- Havia nele um aristocratismo desinteressado e desinibido em
tuava B~et~n_, à existência desses objeto's, a desp;ito do defesa dos valores da poesia, do sonho, da revolta contra 1
asp_ecto 1~sohto que podiam revestir, era antes "como um a aceitação passiva, a vulgarização, a comercialização cres- '
~e1_0 .e_ nao coi:no ~m fim". Ele esperava contudo da mul- cente da civilização de consumo de massa que apenas bro-
t1phca~~o de tais obje~os uma depreciação daqueles que com tava. A derrota do poeta foi, no entanto, implacável ou
sua utilidade conven~10nalizada (embora contestável) atra- irremissível.
v~cam o mundo dito real. A função dessa depreciação Estamos agora áfogados na produção em massa de ob-
sena no pensamento do poeta ''de natureza a desencadear jetos cadá vez mais variados e duvidosos, que invadem o
as potências da invenção, as quais, nos termos de tudo 0 mundo sensível, "antes por hábito que por necessidade'',
que podemos saber do sonho, se teria exaltado ao contato conforme o aviso ainda otimista do poeta. Hoje a necessi-
dos objetos de origem onírica, verdadeiros desejos solidifi- dade . . . a produção em massa a inventa. Apoiando-se
cados". Mas no fundo o que visava Breton e seus amigos num pensamento de Bachelard segundo o qual o conceito
er~ ''.par~ lá da criação de tais objetos nada menos que a da realidade se traduz sobretudo na convicção de que se
ObjetJ".'açao . . . da atividade do sonho, sua passagem para achará mais no real oculto do que no dado imediato, Bre-
a realidade". Por essas épocas é que Salvador Dali, antes de ton declara tender a démarche surrealista a provocar "uma
se tornar o personagem funambulesco do anedotário artísti- revolução .total do objeto", que consistiria na ação de des-
co i_nt~rnacional, (Avida Dolars, segundo o próprio Breton) viá-lo de seus fins, dando-lhe um novo nome ou o assinando,
havia mventado os "objetos com funcionamento simbólico". ou acarretando sua requalificação pela escolha (ready-made
Com a clarividência que sempre foi seu apanágio Bre- de Duchamp); mostrá-lo no estado em que o colocar.am, ao
ton ~screvia "todo o patético da vida intelectual d; hoje acaso, os agentes externos, tais como tremor de terra, o
consiste nesta vo;1tade de objetivaç~o ~ue não pode conhe- fogo, a água (poderíamos acrescentar, hoje, os desgastes do
cer nenhuma tregua e que renunc1ana a si mesnia se se consumo, as crises econômicas); guardá-lo em razão mesmo
~tardas~ a fa~er valer suas conquistas passadas". Dessa da dúvida que pode .pesar sobre sua destinação anterior,
epoca amda foi a exposição surrealista, no inverno de 1936, da ambigüidade resultante de seu condicionamento total ou

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parcialmente irracional, que acarreta a dignificação pelo
achado ( objeto achado) e deixa uma margem apreciável i1
interpretação se necessário a mais ativa ( objeto-achado-in-
terpretado de Max Ernst); e reconstruí-lo enfim, completa-
mente, em todas as peças, a partir de elementos esparsos
tomados ao lado imediato, ou o objeto surrealista propria-
mente dito, como o modelo de uma caixa apresentado então
pelo próprio Breton. "A perturbação e a deformação são
aqui procuradas em si mesmas, desde que se admita não
se poder esperar delas senão uma retificação contínua e
viva da lei."
A poesia surrealista desarruma o cotidiano. O poeta
e o artista têm por missão · retificar contínua e vivamente
a lei, quer dizer, a ordem. No lugar da rotina propõem o
insólito. O paradoxo da pop'art é criar ou manter o insó-
lito na redundância da comunicação de massa. A vulgari-
dade viril do comércio e da propaganda é o seu clima. Os
surrealistas queriam quebrar as cadeias do cotidiano intrin-
secamente redundante e vulgar, introduzindo nele a dina-
mite do insólito. Os pop'artistas de agora brincam com
aquelas cadeias, fabricando com seus materiàis vulgares
, . objetos insólitos, mas permeados de redundância. ·
, Os fazedores de caixas de. nossas paragens e outras
•paragens de baixo rendimento per capita, os melhores e
mais autênticos, como entre nós (além de um Hélio Oiticica,
'seu precursor, mas em nome de outra estética que a da
relação insólito-redundância) um Rubens Gerchma:n, par-
tem d~ redundância, usam os materiais que a civilização da
vulgaridade oferece, mas em nome de uma idéia que não 27 . . DA DISSOLUÇÃO DO OBJETO
v!sa ~ criação d? insólito .pelo insólito, e sim a uma parti- AO VANGUARDISMO BRASILEIRO
c1paçao do coletivo. As Caixas de Morar de Gerchinan não
são um insólito na redundância do cotidiano, para retificá- Quando O processo de dissol~ção do natur!lismo alcan-
lo (mensagem surrealista) ou para comprazer-se nele (men- çou um grau de maior profundidade, e a co.1sa repre_sen-
s~gem da pop'art) mas numa redução radical do real dado. tativa foi rechaçada das lucubraçõe~ dos art1~ta~, . apos o
Eles nos propõem uma reedificação urbanística da cidade cubismo ter sido digerido por Mondnan e o ob1ettv1smo ter
eugênica do futuro. :e uma caixa de subdesenvolvido. Daí sido · tragado pelo surrealismo, iniciou-se u~a arte fu':1dada
seu mérito. A objetividade de sua démarche não está na no "modelo interior" de onde brotou o tach1smo ou o mfor-
construção das caixas por ela mesma, mas na direção ex- mal e a noção de espaço sobrou da derrocada. Sobrou_na
trovertida de sua prática. O insólito não está no cotidiano forma mais abstrata possível, ou .menos repre~ntativa,
fundado no uso e na rotina. O insólito aqui é a infra-rea- como um plano sem suporte ou a~1a~do-se _em s1 !11es~o.
lidade, ou a rea1idade que . está por baixo das estruturas e Lígia Clark foi no Brasil a primeira a tir!r ?~1 as :un-
não demanda o poeta para detectá-lo, mas uma ação, um plicações, ao tentar desmoldurar o quadr? p1~t?nco para
acontecimento para encontrar a lei de uma realidade que ue O mesmo, flutuando no espaço real, se _1dent1ficasse c?m
qquele ou a redução final de todo conceito representativo .
o produz. A relação redundância-insólito é assim invertida.
Em Gerchman e em outros a redundância é que revela o ~o mu'ndo plástico. Desse passo segu~rª';ll:se os outros que a
fizeram passar da superfície plana p1ctonca ~o espaço real,
insólito e o que lhes sai das caixas, por exemplo, não é
nenhum exército da auto-expressividade, mas um esforço de onde, dando articulação aos planos p~~ _me10,, de uma. d~-
construir uma nova relação com a rea1idade. bradiça, chegou ao movimento com os bichos . Se se hqm-

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dava o espaço pictórico do plano criava-se uma coisa um uma nova relação espacial que se define pela relação, :pri-
"objeto'' ou neo-objeto, ou "objeto artificial" (no do~íni mordial do interior-exterior. Suas esculturas, como ªflll:ano~,
das teorizações estruturais) ou o "não objeto", se ficarmo o uma janela aberta para os espaços, os espaços res1dua1s
com a prata de casa na teoria então exposta com muita in- que não são paisagens porque são e1:1qua~ramento~? ~u res-
teligência por Ferreira Gullar, ou na concepção do neocon- tos destes do homem fazedor de c01sas la fora que e tam-
cretismo cuja intuição fundamental esteve na descoberta do bém cá dentro, onde formas mágicas se entrevêem como
tempo no esforço formidável do concretismo de definir o continentes da sabedoria ou da maldade humana conserva-
espaço _ou o ~on~eito _es~acial simultâneo de nossa época. da pelos séculos.
A unportanc1a ho1e tao grande do neoconcretismo con- Em Pintura também um artista como Fontana cmpeteu
sistiu nesse agregar do tempo para realçar na démarche ver- um ato mágico sobre o plano pictórico ~uando n~o so per-
bivicovisual do concretismo um elemento estranho, quer di- fu rou O quadro, mas ~ !alhou _com sentido espacial, ou de
zer, carregado de certa dose de subjetivismo. A expressão "integrar o espaço ilusono co~tido no quad~o com o espaço
mais "concreta" desse movimento foi o ballet neoconcreto real que O rodeia e atrayessa '. Para el~, nao ~e. ~:atava de
realizado no Rio, com Lígia Pape e outros. Outra derivação fazer quadros "espaciais' ou esculturas espac1a1s , mas de
transcendental dele foi trazida por Clark quando com os "bi- abordar em si mesmo o "conceito espacial" da Arte._ Nesse
chos" apontava para a necessidade de se estabelecer com o conceito, inevitavelmente, pintura e escultura se f?nd1~m ou
outro uma relação perdida, desde que a obra de arte - no perdiam suas respectivas especificidades ~on~e~c1ona1s. Ele
domínio do puro plasticismo ou "neoplasticismo" - se expressamente o diz quando, em um s1mpos10 em 1955,
apresentava em si mesma, como única em sua solene sole- assim se manifesta: "Como pintor ... não que~o íaz:r
dade. Aqui está a origem da famosa participação do es- um quadro; desejo abrir o espaço, criar uma nova d1men~ao
pectador na obra de arte. Se aponto Clark como a iniciadora para a Arte, enlaçá-lo ao cosmos como ,,se se expandisse
dessa participação, com os outros companheiros de neocon- para além do plano confinado do quadro. Quando comete
c!etismo, não é para recla~ar para ela e camaradas a prio- talhos repetidos no quadro, "não intento _de~or~r u~a su-
ridade absoluta nesse movimento, mas para indicar a abso- perfície mas, ao contrário, romper suas hm1~açoes dimen-
luta coerência interior das suas pesquisas e pensamentos sionais. Para lá das perfurações, uma nova hberda1e co3-
quando alcançou a noção ou a necessidade · de uma rela- quistada de interpretações nos espera, embora tambem, tao
ção nova entre o artista e o sujeito. Na cultura ou na ci- certa como O fim da arte". A Arte rompe com to~os . os
vilizaç~o m_?deroa m~ndial d~ hoje as prioridades para isto seus limites, embora arrisque nessa ruptura seu amqmla-
ou aquilo sao pretensoes pueris. Tudo que nasça aqui ou em mento. . bo
Belo Horizonte ou em São Paulo pode nascer no Japão ou Um escultor brasileiro, dos maiores em ra menos co-
na França ou nos Estados Unidos. Na verdade, aqui como nhecidos Amílcar de Castro, ora muito justamente ~of':lpen-
alhures surgia no domínio intuitivo das Artes uma nova sàdo po; um júri lúcido do último S~lão, com pre~10 de
conceituação primitiva, primária, da realidade que se defi- viagem ao estrangeiro, é um protagonista de~se movunento
nira na novíssima ciência da Cibernética quando substituiu de luta com ou contra o plano, único s<;1brev1v;nte que _res-
a velha relação sujeito-objeto . pelo complexo objeto-orga- tou do naufrágio do naturalismo e da d•~~oluçao do ob1eto.
nismo. O objeto é recriado em função da relação organismo- Castro veio de Belo Horizonte, onde frequentou a Escoh~h_a
-máquina-organismo. A Cibernética descobriu (o ovo de de Guignard no Parque, e se formo~ ao lado de Ma_ry_ y1e1-
Colombo) que, como a máquina, todo organismo é fina- ra nos idos de 50 emigrava para Zurique, onde, brasile1rmha
lizado. A construção do objeto-arte é a expressão de uma sohtária, cresceu em sabedoria e ciên~ia, _sob as asas de
necessidade intuitiva ou inconsciente do artista de completar Max Bill que com a sua Unid?de. Trip_artida arr;batou o
ou fechar o ciclo finalista em que se move sua criati- grande prêmio escultórico na Pruneira Bienal de Sa<;> Paulo.
vidade. Vieira é agora uma artista independente, e na .lmha _do
Mas por enquanto voltemos ao plano solto no espaço plasticismo concreto, a que para honra su~ !e Il!ºs!rou fiel,
virtual quando na sua evolução o fenômeno dito de arte mo- apresenta uma série de peças, onde a perfe1çao tecmca con..5-
derna, liquidando os últimos vestígios do naturalismo, dis- trutiva denota a alta qualidade de acab:imento e execuçao
solveu também o velho objeto representativo de todas as da indústria suíça. São peças que, partmdo de um. esque-
artes passadas. Outros artistas contemporâneos como a es- ma formal abstrato, um retângulo, um c}rc~lo, .P:rmitem ~s
cultora norte-americana Louise Nevelson destruíram não o variantes formais mais surpreendentes, a d1s_cnçao da mao
plano mas os planos da escultura para criar em lugar deles acariciadora ou modeladora do que as manipule. Ela con-

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antes de um processo de prospecção e descoberta. De ·um
vida também o espectador a manejar sua idéia, que se man- quadrado inicial ou de um círculo su~ m~rcha se ~esdo~ra
tém fiel à forma matriz. Seu movimento não é descon- numa espiral ideal sem fim. Tudo ~sta_ ah dentro,, mclus1ve
tínuo, ou não o deve ser, a fim de que as superfícies em as aspirações mais sôfregas da imagmaçao ou das_v1Sceras do
que se desenvolvem não se quebrem .em desalinho. Se Franz artista. o plano de Castro como o dos outro! artis!as d~ sua
Weissman, também um homem que teve atelier na escoli- equipe mental, de sua· família cont~mpor!°ea e ass111:1 a
nha de Guignard, como mestre, resolveu depois martelar a semente para se encontrarem novas .~11I':ens~s para o viver
superfície de alumínio e de zinco para seus planos arque- do homem nessa época de perenes 1hm1taçoes.
jantes e luminosos; Mary Vieira, que se iniciou com ele
na escultura, não permite que se violente o metal, mas ao
contrário quer que se o boline, se o acaricie. Ela parte
de hastes separadas, rigorosamente iguais em espessura e
em distância, para que, apalpando as hastes, se chegue a
superfícies unidas com perfis sinuosos ou contínuos, de ex-
trema finura. Vieira pretende industrializar suas criações
para que percam a aristocrática unicidade da obra de arte
e possam, como objetos à,venda, alcançar bolsos menos pol-
pudos. Bela proposição. .
Amílcar de Castro teve também formação concretista,
mas no Rio de Janeiro. No seu diálogo ou monólogo com
o plano, chegou ele, à sua .maneira tímida e silenciosa,
a romper as limitações situacionais da escultura para trans-
formar suas realizações em objetos voltados em si mesmos,
independentes de pedestal ou mesmo de base, a fatídica li-
mitação de toda escultura representativa. Se Clark libertou
seus quadros da moldura, Castro (e Weissman também,
quando na fase conc:retista) libertou suas esculturas de qual-
quer precisão de base. Suas peças são válidas de todos
os lados, em todas as posições. Não apresentam nenhum
ângulo ou sítio privilegiado para aparecer.
Ele partiu do plano material, do ferro, para uma aven-
tura especial de aparência modesta .mas na verdade cheia
de implicações inclusive metafísicas. Vieira nos dá uma
série de peças que pedem bases para que sobre estas evo-
luam as formas. As relações que se estabelecem entre elas
e o sujeito são lúdicas. Encantam como brinquedos privi-
legiados. Sob esse ponto de vista, a arte de Vieira tem uma
relação muito próxima com a op'art. As de Amílcar nãc;>
convidam ao lúdico, mas ao meditativo. O que há de espe-
cífico na sua démarche opei:acional é que não parte de um
a priori mas de um desenho vago no" papel para depois,
em face do quadrado, círculo ou retângulo plano, abri-lo.
desdobrá-lo; ele não constrói violentamente; ou não cons-
trói na realidade. Obedece a um todo misterioso que não
está para ele em nenhum a priori. Uma vez o plano ferido
ou talhado ou aberto, o espaço que daí se cria o conduz.
O conduz como se estivesse sentindo o apelo de uma fa-
talidade biológica ou orgânica, em busca da terceira di-
mensão. Esta, nessa arte de rigor, não resulta de um es-
quema construtivo ou geométrico previamente dado, mas
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166
28. DO PURISMO DA BAUHAUS À
ALDEIA GLOBAL
Em -sem mano relativamente recente ( dezembro de
1964) reuniram-se em Washington alguns eminentes histo-
riadores, críticos e professores de Arquitetura que conse-
guiram trazer umas poucas idéias, digamos, novas sobre os
problemas de suas respectivas ocupações. Não é minha in-
tenção resumi-las ou transcrevê-las, mas apenas situar velhas
questões nos planos da atualidàde.
O Professor Peter Collins, da Universidade de Me Gill,
ao tratar da questão da relevância ou não do estudo da
História da Arquitetura e da teoria da Arquitetura em
relação à prática e à elaboração da Arquitetura e em fun-
ção da crítica e do próprio desenho arquitetônico, lembra
o primeiro dilema que se levantou da nossa época relativa-
mente ao problema: deveria a História da Arquitetura ser
ensinada em geral? Muitos grandes edifícios forain construí-
dos, afinal, antes de serem escritos livros de texto sobre a
sua história. E aqui se põe a grande objeção dos anti-histo-

169
ricist~; foi o aparecimento de livros sobre a História da todos envolvidos na arte da construção, e, também, na sua
Arqwte!ura que produziu o revivalismo, e daí, se teria um manutenção ou remodelação. Todo mundo estava familiari-
~cadenusmo ... moderno, quer dizer, organicamente eclé- zado com os propósitos e programas de cada construção
tico. apresentados na cultura cm questão. Explicava-se essa fa-
. · No início do 'século, a primeira reação ao fenômeno foi miliaridade geral por uma continuidade de ordem cultural. e
a ~xclu~ão da História da Arquitetura dos currículos ar- técnica· que permitia aos homens melhorar o que se havia
q~u.tetomcos. E como se sabe a Bauhaus baniu de seu con- considerado aceitável, polir em busca de uma qualidade ex-
v1vio os ~u.r:sos de História da Arquitetura. Mas tarde, celente. Os usuários ulteriores vinham trazer uma aprova-
quando f?I fechada e Gropius teve de emigrar para os Es- ção post facto, e dessa maneira o que fosse excelente ou
tados U mdos, atenuou este seu radicalismo e permitiu em mesmo meramente bom se tornava arquitetura.
J:I~rvard a introdução de cursos, mas para estudantes su- Hoje, porém, essa tranqüila sucessão d~ form~s ou, téi:-
ficientemente adiantados e maduros a ponto de já ter en- nicas não é mais possível. As alterações e movaçoes técm-
contr~do seus meios de ~XJ?r~ssão. De qualquer forma, para cas e culturais não se fazem mais gradualmente, sem perda
Gropms o estudo da Histona da Arquitetura não traz ne- de continuidade. Apresentam-se em blocos, simultaneamen-
nhuma contribuiç!o à evolução de qualquer teoria da arqui- te, a ponto de o professor d~ ~esenbo ar'!,uitetônico _de
te":1ra contemporanea, e pode até lhe ser estorvo. Não dis- Yale apontar o perigo da prof1ssao da arqmtetura e, pior •
cutlrem~s o pro~l~~a aqui, mas apenas mencionamos, com ainda, da educação arquitetural se tornar obsoleta. En-
aprovaçao, a opimao do professor Collins segundo a qual quanto os profissionais e praticistas em cam~. pe~em con-
uma vez q1;1e é_ ~mpossível imunizar estu'dantes contra 0 ~ tinuidade de atitudes, de interesses e qualif1caçoes, essa
mal~s ~o hi_stonc1smo arquitetural por meio de isolamento continuidade vai deixando de existir. Daí os expedientes em
profdático, importa i·noculá-los com certas doses que, em- · em número cada vez maior, que vão tomando conta do
bo~a. os conservando vacinados contra uma epidemia de his- profissional, do praticista, vão entrando n~ sua p~ática, !1ª
toncismos, _permita que obtenham certas idéias básicas so- sua atitude nas suas concepções. Os desvios ou mvençoes
~re ª! qua~s desenvolver uma teoria do desenho .. A Histó- na prática 'profissional não se. inserem harmonios~ ou or-
na nao _ena nem contribui diretamente para uma teoria ganicamente na sua arte ou si_!IlJ?lesmente n?. con1unto ~e
da :\rqmtetura, nem para um pensamento filosófico arqui- sua técnica, mas são peças ute1s em matena ·de pubhc
t~t'?mco contemporâneo, mas sua função é outra: dar O con- ,·elations ou de propaganda, arranjos que nunca entram e~
dicionamento social, cultural, político, econômico, modal de contraste ou em oposição à linha geral da prática ou teona
~nde e_merge cada desenho arquitetônico autóctone. Seu en- predominante. Haverá sempre de fora uma espécie de pe-
sm~ ~ao ,P?de ser, portanto, linear, nem cronológico. Desta quena confraria, para não usar o vocábulo espetacl:'1ar ou
e~pe~ie última de, ensino é qu~ surgem os perigos do re- por demais explosivo ·de vanguarda, em geral reumda em
v1~a_hsmo, os arca1smos academizantes, os devaneios de dog- tomo de mestres, críticos, estudantes engajados ou interessa-
matl~a dos estilos e, finalmente, o pecado soberano do dos em pesquisas e princípios com orientação filosófica mais
ecletismo. .. profunda. O campo arquitetônico se amplia, in.cessante_men-
,Assim como a fórmula sulliviana que marcou o início te, movidos os seus ocupantes por uma crescente necessidade
do seculo - de que a forma segue a função - foi sobre- de aprofundar a análise. Para o professor Chermayeff,
tudo um preceito sanitário de imunização contra ~ ecletismo cria-se como que uma obrigação moral e intelectual ao pes-
necessário à emergência da arquitetura que se chamou d~ quisador, ao professor e ao estudante, de, a despeito deles
.n_ioderna, també~ º. anti-historicismo f~~ m~dida de assep- mesmos mas também em face da pressão do mercado, se
sia contra o revivalismo e sua consequenc1a o ecletismo tomarem "opositores dos praticistas.''
Estes são perigos ou pecados de nossa époc~. Outrora ~ O ensino da História da Arquitetura é aqui que se pode
praticista fazia arquitetura aprendida empírica e socialme~te tomar rapidamente anacrônico e, através de um historicis-
no atelier _d um .mestre, e estava acabado, e o acadêmico mo dogmático ou de mera ilustração, fazer-se · aliado do
mal aparecia porque não havia como codificar uma série de praticismo ou um espeque para o academismo. Dessa con-
normas e impô-Ias em escolas e academias. Quanto mais se tradição imanente à extrema complexidade da civilização
recua no passado, mais a proposição precedente se revela contemporânea surge a imposição de uma atividade já glo-
conforme aos fatos. Segundo outro mestre, o professor Cher- balizante, nova ou o planejamento, não só social e eco-
mayeff, de: Yale, isso se explica pelo fato de que todo nômico, mas cultural e tecnológico. As culturas são trans-
mundo sabia de que se tratava quando se construía, estando tornadas técnica e politicamente de dia para dia. A buma-

170 171
0 11 estaremos necessariamente alienados. Não são os ensi·
n~dade é.,Cada vez mais deslocada, redistribuída, recondi- namentos da História em abstrato que nos salvarão de
cionada. A taxa de mudanças técnicas se tornou a medida dois escolhos inevitáveis: de um lado, o isolacionismo aca-
do mundo moderno;•: Se se traça_sse, imagina o professor dêmico para os tradiciomµistas; do outro, o ecletismo prat~-
Cherm~yeff, um ~~ico de pressoes sobre a cultura con- cista que é outro processo de alienação dentro do burburi-
tem~oran1:,a, o , gr~ico seria quase vertical, em, termos de nho da feira . A concepção da aldeia global seria, no fundo,
m?dificaçoes tecmcas. A aceitação individual biofísica de uma decorrência da idéia central hoje do planejamento re-
tais m;1danças pode mostrar pequenas curvas de melhoria
em sa(lde ~ comportamento ( onde não impere o analfabetis- gional.
No início do século, as vozes mais eloqüentes da teo-
mo)', em liberalismo como exemplificado na cena america- ria e da crítica arquitetônica tinham outro som. Se de um
na _(e o professor de Yale quem fala) através de uma acei- lado o pensamento poderoso de um Gropius bania a his-
taç~o geral dos efeitos das mudanças técnicas; 0 gráfico tória de Bauhaus em nome da autenticidade do esforço
porem,. como um todo seria extramente raso. Como fech~ criativo na Arquitetura que se renovava, do outro, o pensa-
a brecha entre c~usa e efeito no processo de mudanças que mento não menos profundo de outro teórico e crítico,
se acum~am? E!s .º pr~blem:1, que também pode ser colo- Geoffrey Scott (The Architecture of Humanism, 1914) re-
cado no seu mimmo, ·isto e, como evitar que a brecha clamava para a Arquitetura o primeiro requisito de toda
se alargue. obra de arte - ser simples e diretamente percebida .. Em
. Essas condições sociais e culturais inteiramente iné- ambos, havia uma preocupação de depuração cultural para
ditas, que fazem concentrar sobre o presente tumultuário desimpedir a arte deles e fazê-la elevar-se outra vez do char-
t?das as energias criativas, arrancam desenhistas e .proje- co do revivalismo e do ecletismo onde jazia. A tarefa de
tistas de suas pranchetas isolacionistas. Trata-se agora de desobstrução e depuramento foi feita. Hoje, as necessidades
f~rma~, na expressão do mesmo professor, projetores am- culturais e sociais são outras. Nada mais pode estar iso-
~ientai~ de um futuro que já está aqui. Esta última con- lado.
sideraçao deve prevalec~r sobre o espírito do arquiteto Com as mudanças tecnológicas e culturais que se
dos. países subdesenvolvidos, cultural e tecnologicamente acumularam e se acumulam, incessantemente, e nos fazem
co~o o nosso, ~uito mais do que sobre os colegas do~ debater num presente caótico e irremediável, não se trata
paises desenvolvidos. O problema é definir os ambientes: mais de "perceber simples e diretamente" esta ou aquela
para quem, para onde e para que ou por quê? obra isolada: os instrumentos audiovisuais e a eletrônica,
· A Arqmtetura chega aqui ao ponto crucial para sua in- casados à formidável mobilidade da época, nos empanaram
tegração no complexo social que nos envolve. Desde que. a o velho mundo definido pelo verbo e desenhado pela visão.
palavra perdeu sua he~emonia, para nos impor uma visão Todos os sentidos ampliados caem sobre nós, simultanea-
do mundo sobretudo visual, que o homem é envolvido em mente, ou se entopem os canais para sua comunicação e
um condicionamento simultâneo sensorial e bem mais di- morremos de asfixia.
mensões que as nossas três usuais. Esse processo de cresci- Críticos e pensadores atuais reclamam uma ordem nesse
men!~nvolvimento encontra seu ponto de . transformação caos, e aspiram a que os homens moderníssimos de agora
q~alitat1va no advento da eletrônica, inserida na vida so- possam reencontrar numa espécie de aldeia global atualís-
cial e mo~al como um hóspede caseiro e na banalização sima os condicionamentos harmoniosos de sentidos e de
da comumcação audiovisual em instrumento a nosso servi- espírito do ambiente tribal de nossos antepassados. As últi-
ço, sem falar no intrínseco dinamismo da época. A partir mas instâncias da arte de nossos dias, ou da arte pós-moder-
desse pont~, entramos "num mundo de aldeia global''. Esta na vão nesse sentido. Caberia assim à Arquitetura englobar
se caractenza pelo fato de "tudo estar . presente durante esse esforço de síntese plurissensorial tribal ou comunal,
t~o o tempo, numa escala mais complexa e mais gene- nostalgia do perdido homem deste nosso fim-de-século.
r~lizada, mas num equivalente ao velho meio. tribal am-
biente,.que t?do membro da tribo conhecia muito bem, mas
pouco _mcentivo ou :°ecessidade tinha de falar a respeito, em-
bora t~vesse necessidade de ver, sentir, ouvir e tocar para
sobreVIver". O concei!o da aldeia global, q~e nos vem de
~arshall McLuhan, via Chermayeff, é de uma extraordiná-
na contemporaneidade, tanto no plano da Arquitetura como
no das artes em geral. Ou -viveremos numa aldeia .global
173
172
29. QUINQUILHARIA E POP'ART
O crítico grego, hoje norte-americanizado, Nicolas Ca-
las, escrevendo sobre Pop Icons, argumenta que como a
"arte moderna" se tomou a arte do establishment, seus opo-
nentes se tornaram antiarte. E, a propósito, invoca a época
do passado, quando, no- século XVIII, rebentou uma que-
rela entre os defensores da arte cJos antigos, em nome da
perfeição, e os que, em nome do progresso, pugnavam pela
dos modernos. E, aplicando a analogia, afirma que hoje a
"arte moderna'' é vista em · termos de História de Arte e
antiarte em termos de "vida". E não parece admitir qtie as
"antiartes" de agora se inspiram, com o -tempo, nos ca-
pítulos bem emoldurados da História da Arte de a posteriori.
Se, nos anos 20 o surrealismo era a antiarte do cubismo,
a pop'art de hoje é a antiarte do expressionismo abstrato
que o precedeu. - · ·
Agora, nesta sétima .década do século, no nosso país,
continua Calas, os doutores de Filosofia também preferi-

175
riam fazer a mesma operação, considerando pop'ari como escândalo de nosso amigo crític_o, "ter uma alta idéia da
uma escala perceptiva de antiarte. E daí começam a sur- arte" e "ser até um romântico a esse respeito". E mesmo seu
gir os estudos de pintura em termos de· padrões ou formas processo "de humilhá'-lo é só para testá-la, para reduzir
básicas que abolem a diferença entre Roy Lichtenstein e Ni- tudo ao mesmo nível e então ver o que se obtém". Segundo
colas Krushenick, entre Jasper Johns e Kenneth Noland; um de seus teóricos (Lawrence Alloway) os artistas popis-
ou mesmo que enquadram os bouquets de Andy Warhol tas de Nova York ''não se vêem como distruidores da arte,
com os retâ~gulos, de Joseph Albers. E, indignado contra mas como os doadores de uma transfusão para contra-restar
essa perspectiva de envolvimento de tudo no mesmo vasto os efeitos da rarefeita atmosfera do expressionismo abstra-
panorama, Calas, o outrora brilhante teórico do surrealismo to". Para Lichtenstein, a arte desde Cézanne se tomou ex-
a_migo de Breton, e com quem discutia por vezes horas ~ tremamente romântica e irrealista, e utópiéa, e tendo cada
f10 numa mesa de café em Paris sobre Política e sobre vez menos que ver com o mundo, a olhar para dentro.
A;t~, prop~ outra vez essa analogia: Se a forma é o critério Mas "o mundo é lá fora". "Pop'art - diz ele - "olha
bas1co para Julgar Arte, então por que também não compa- para fora do mundo e parece aceitar s~u meio ambiente,
rar, um padrão básico de duas pinturas com os padrões que não é nem bom nem mau, mas diferente, outro es-
analogos encontrados na natureza? E por que não compa- tado mental".
rar os pontos de um Lichtenstein com a sujeira de um be- Pop'art é, assim, em sua inspiração, conformista ou
sourinho de Deus? Sim, sem dúvida, a integração da antiar- otimista. Um de seus representantes mais importantes (es-
te na arte é uma louvável preocupação, pois permitiria que tará na nossa próxima Bienal) , R. Indiana, num típico
se erguessem muitas divisões. E que irão fazer os museus, painel seu (USA 666, 1964), comentando a palavra "co~
sem paredes? - pergunta ainda, já com sarcasmo o nosso me" (nele inscrita) exphca: "A palavra 'come' é tranqüi-
Calas. E, justiceiro, ameaça: ''Se o papel do crítico é es- lizadora, significa não apenas alimento, mas vida. Quando
ta~elecer que antiarte é arte, talvez uma sibila venha pro- uma mãe alimenta sua criança, o processo torna-a indul-
fet12ar a vinda dos anticríticos." ( O que Calas parece igno- gente, um doador de vida, de amor, de bondade". Esta é
rar é que a profecia de sua sibila já é uma realidade: os uma confissão preciosa. A inspiração aqui vem direta da
anticríticos já chegaram.) função da publicidade, que estimula acima de tudo o P?si-
. Mas na~a há a fazer. Pop'art ou a penúltima forma de tivo das motivações para o consumo. No mesmo sentido,
antiarte surgida nos Estados Unidos e Inglaterra está dés- exprime-se Warhol, no seu aforismo: "Pop-art - é gostar
tinada à integração em capítulos de História da Arte e das coisas". Não há paródia nas suas manifestações e, se
mesmo em manuais de divulgação. A partir das primei~as o observador assim as interpreta, isso é da responsabilidade
fases que vieram com as assemblages e colagens, de lon- dele e não. do artista. E quando se nota um elemento de hu-
gínquas origens européias, desde Dadá ao surrealismo, do mor ou sátira em suas obras, raramente é intencional (Al-
cubismo aos neo-realistas, e saídas diretamente do pós-ex- loway). O fun do meio urbano é comumente percebido,
pressionismo abstrato, - a época da cultura do detrito - apreciado e exaltado pelos popistas. Lichtenstein, falando
a pop'art se especializa, se "depura'', distinguindo-se do do que pode haver de paródia nos seus manifestos, conf~ssa
"ambiente das colagens", com suas luzes, sinais luminosos que "na ,p aródia a implicação é de perversidade, e eu smto
em pisca-pisca, cemitérios de automóveis, detritos dos gue- que na minha própria obra não é esta minha intenção. Por-
tos e favelas etc. - e dos "novos antigos'', que tanto en- que não desgosto o mundo que estou parodiando · . . . &
feitiçaram poetas e artistas desde os primeiros tempos do coisas que aparentemente parodiei, na realidade as ad-
cubismo. ·
miro".
Jim Dine foi dos primeiros a repelir as atividades em Mas o que marca esses artistas é que não são ingênuos
busca dos objetos achados, porque "eles já estavam carre- idealizadores de seus temas ou assuntos. Ou da realidade.
gados demais do ·mistério de outra gente." E por reação, Eles pertencem de corpo e alma ao meio de onde tiram
nos deu em 1962 sua Pá, contra pá, pintada em painel. seus assuntos, e têm pleno conhecimento do que fazem,
Esse ano, aliás, é o que se considera como o ano da entrada porque todos foram ou são formados em arte comercial, ou
real do pop nova-iorquino, com Wesselman, Oldenburg, na arte da publicidade. Não são artistas, porque são técni-
_Segai, Ma-riso!, Warhol, ou, no comentário de um crítico, a cos da produção de massa. São especialistas que traba-
chegada dos "novos vulgares". Em que pesem, porém, as lham (ou trabalharam) para a atividade decisiva da civi-
objeções de Calas, esses "artistas" repelem o comentário so- lização americana: o consumo de massa. Warhol foi um
cial e a narrativa. Oldenburg chega mesmo a afirmar, para desenhista' de sapatos da moda; Lichtenstein é um desenhis-
176 177
ta e técnico na arrumação de vitrinas; Oldenburg é ilustrador coleur revela toda a paridade existente entre o bricoleur,
de revistas. Nenhum deles, porém, vale acentuar, trans- com seus "projetos indefiníveis a priori, feito·s de resíduos
põe para sua "arte" os refinamentos obtidos nas escolas de construções e destruições antecedentes" e o artista ou
industriais, verdadeiros poncifs da iconografia do abstracio- antiartista ajuntador de coisas heteróclitas no espaço ( o
nismo, da Bauhaus, de bom gosto etc. Eles procuram fugir curioso é que de repente se formou uma coletividade de
a tudo que lembra as "belas-artes" tão em voga na publici- artistas irmanada pelo mesmo gosto de coletor de lixo,
dade acadêmica ou oficial ou generalizadamente aceita. pela mesma sensibilidade envolvente e sobretudo pela mesma
Temem acima de tudo as boas tradições da velha pintura, atitude ética).
e Lichtenstein, quando se transferiu dos animated cartoons Nos Estados Unidos, eles, cedo, deram com os limi-
aos comic books, de conteúdo mais sério, como Forças Ar- tes dessa pesquisa. À medida que aquela atividade deixou
madas na Guerra e Teen Romance "confessou" ter sido mui- de ser individual ou ter caráter isolado, nessa mesma me-
to difícil não mostrar tudo que sabia sobre toda uma dida o impasse da saturação chegou, e eles passaram a
tradição. Era difícil não ser seduzido pelos matizes da "boa precisar ou sobretudo a requintar nas intenções e recuar no
pintura". Há assim (ou houve) uma _deliberada reação desses uso dos meios. Se os resíduos e detritos constituíam como
popistas às _seduções da "arte", e para Claes Oldenburg, uma natureza emergente do acúmulo e abandono dos pro-
numa fórmula precisa, "fazer impessoal o estilo caracteriza dutos imprestáveis, e completada pelo tempo com seu de-
pop'art num sentido puro''. caimento orgânico, sua poeira, seus frangalhos, sua ferru-
Os artistas de pop'art mergulharam como nenhum ou- gem, novos meios entraram em uso ativo. São sobretudo
.tro grupo de artistas de seu tempo, mesmo os japoneses, instrumentos de operação das técnicas gráficas e da comu-
num repertório heteróclito de recursos e de objetos que nicação de toda sorte. O pop'artista já é antes um engenhei-
constituem verdadeiro subproduto cultural tipicamente ro que um quinquilheiro; e, como aquele, faz o inventário
americano. A poderosa civilização urbana os envolve a de um conjunto predeterminado de conhecimentos, sem
todos, como numa redoma. Quando reagiram ao expressio- mais ficar adstrito à coleção de resíduos de obras humanas,
nismo abstrato _e deram os primeiros passos da "arte pós- ou, na linguagem estrutural, "subconjunto da cultura''. Sua
-moderna", sua atividade foi como a do quinquilheiro ou lide agora é com os instrumentos operatórios da cultura
do faz.edor de bricabraque. ,Este, como se sabe, produz na e d<\ tecnologia americana em sua especificidade. Vem tal-
medida em que encontra coisas e objetos em seu caminho. vez daí o otimismo resultante da pop'a-rt, ou o conformis-
Pode ser um maníaco como o carteiro•Cheval, que construiu mo complacente, já porém estremecido com a novíssima ge-
seu castelo de conchas numa praia da Bretanha, ou um ração de beatles e dos hippies que, contudo, preferem à
subtenente em Brasília que vem de levantar uma casa de Arte; seja por que aspecto for, a própria vida, a ação co-
morar feita de latas de óleo. Schwitters, o fabricante de letiva e não mais o simples fazer individual.
"merz" foi, no plano das Artes, o grande manejador de Perto dos últimos, entretanto, um obscuro "subcon-
quinquilharias, na época de Dadá. junto cultural" emerge explosivamente dos próprios meios
Foi ele o mais consciente dos artistas que, repelindo o urbanos daqueles artistas, que repõe em questão o todo cul-
pintor na superfície, proclamou a assemblage e a colagem tural de .onde provém e se exerce, com fascinante inven-
como fundamento de toda arte futura. Na geração poste- ção, o pop'artista norte-americano. Trata-se dos lev~ntes
rior do neodadaísmo, do neo-realismo, do neo-surrealismo, negros.
do polimaterismo etc., a atividade dos antiabstracionistas
consistiu em dirigir-se para o mundo, e catar coisas. Nos
Estados Unidos (Rauschenberg, Westerman e outros) en-
tregaram-se a juntar coisas . disparatadas, não para efeitos
líricos ou com intenções oníricas do primeiro surrealismo,
mas para produzir objetos inéditos entre a imagem e o con-
ceito, num esforço bem mais próximo da · informação e da
mensagem. Foi a fase mais intensa _dos catadores de detri-
tos do meio urbano. A exploração deste tinha em si mesma
suas limitações definidas pelo conjunto • das ocasiões que
aparecem para renovar ou enriquecer o estoque de resíduos
disponível. Aqui · a definição dada por Lévi-Strauss de bri-

178 179
30. SURREALISMO ONTEM,
SUPER-REALIDADE HOJE
Um dos homens realmente importantes de nosso tem-
po, que foi odiado e amado, ridicularizado também ( causa
aparente: . alguns tiques de au,tocomplacência de uma perso-
nalidade de fato soberana) - refiro-me a André Breton -
a quem Jean Paulhan (antes seu adversário que amigo)
chamou de "herói intelectual do Ocidente", há mais de
trinta ànos escrevia isso, a meu ver decisivo, sobre o sur-
realismo: ''O surrealismo, tal como vários de nós o con-
cebemos durante anos, só deverá ser considerado existente
graças à não-especialização a priori de seu esforço. Desejo
que ele passe por não ter tentado nada melhor do que
lançar um fio condutor entre os mundos dissociados da vi-
gília e do sono, da realidade exterior e interior, da razão
e da loucura, da calma e do conhecimento e do amor, da
vida pela vida e da revolução".
Es.t a vasta ambição o fendeu e o reuniu vezes e mais
vezes, o dilacerou e o exaltou desde o primeiro instante,

181
levando-o freqüentemente a ser atropelado pelas diversas pejo". "Todo erro'', diz então Breton, magnificamente, "na
rodas da circulação social e política. Em compensação, é interpretação do homem acarreta um erro na interpretação
verdade, também por causa dela tem sobrevivido, e so- do universo; ela é conseqüentemente um obstáculo à trans-
brevive como a guerrilha, cuja função não é tanto vencer formação" (Les 1Vases Communicants).
e empolgar como persistir para perturbar, durar para in- O homem vem sendo, apesar das advertências do poe-
candescer. O surrealismo quis sempre ser a poesia e a re- ta, a presa contínua desses "erros'' interpretativos, mesmo
volta em estado permanente. A Arte para ele era apenas lá onde "as transformações sociais" já foram iniciadas. A
um meio, como outro, de modificar o homem por dentro, crise contemporânea que não é só política ou social,
enquanto a revolução o modificava por fora, nas instit~- mas ética e psíquica também, está mais viva do que nunca,
ções. O reYolucionário, como qualquer outro, sonha. A éti- e principalmênte no juventude do mündo. Por isso mesmo,
ca surrealista quer que este revolucionário "tome conhe- malgrado os acentos por vezes patéticos demais para o gosto
cimento de seu próprio comportamento, e no esforço em contemporâneo, a crítica surrealista continua válida, sua
pôr-se de acordo, sob todos os pontos, consigo mesmo", ética e sua estética não desapareceram. No domínio da
o surrealismo pensa não ter empreendido outra coisa senão criação e das reações subjetivas das jovens gerações, as suas
engrandecê-lo. · preocupações e pesquisas foram, no fundo, retomadas, em-
Se o sonho tira todos os seus elementos da realidade, bora sob outras formas menos românticas ou ingenuamente
e não implica fora desta o reconhecimento de nenhuma arrogantes e mais práticas e numa escala muito maior e
outra ou nova realidade, o desdobramento da vida do ho- coletiva. Se do lado da transformação social há ainda muito
mem em ação e em sonho, que tantos se esforçam em e muito que fazer, do lado das transformações no compor-
considerar como antagonismo, é um desdobramento pura- tamento humano nada ainda foi feito. Mas aqui as reações
mente formal, uma ficção: "toda filosofia materialista, são já muito mais espontâneas e traduzem a revolta em
apoiada nas ciências naturais, testemunha o fato de que a . marcha da juventude do mundo.
vida humana, concebida fora de seus estritos limites que Não é por outra razão que, ao emudecerem, as vozes
são o nascimento e a morte, não é para a vida real senão dos protagonistas do surrealismo deixam no ar um eco nos-
o que o sonho de uma noite é para o dia que vem de ser tálgico. Quando, com efeito, no ano passado, morreu André
vivido''. Um dos pecados que para os surrealistas não tinha Breton, houve num instante um recolhimento na algazarra
perdão era fazer a apologia do sonho como terreno de intelectual do mundo. E agora mesmo, neste nosso provin-
evasão ou apelos à vida sobrenatural, expressão de uma ciano rincão, a morte de um dos artistas mais represen-
vontade puramente platônica se não mera desistência. tativos do surrealismo dos tempos heróicos não passou des-
A tal vontade inoperante Breton opunha "uma von- percebida. Evoquei em crônica a memória de René Ma-
tade de transformação das causas do nojo do homem, uma gritte, amigo que foi da nossa Maria Martins. Conheci-o em
vontade de transformação geral das relações sociais, uma Paris pelas cercanias da Place Blanche, neste ou naquele
vontade prática que é a vontade revolucionária''. Dentro café da estação, em tomo de Breton, Eluard, Aragon, Pé-
.desse esquema do surrealismo tocou em todas as claves ret, por volta de 1928. Ives Tanguy, meu amigo pessoal, lá
da ação humana. A ação para ele não tinha apenas um estava sempre, taciturno mas sorridente; André Masson,
sentido exterior mas também um sentido interior. O homem culto e brilhante, Miró, em plena glória recente e inocente.
era tanto o que se exteriorizava na ação como · o que se Man Ray, com os seus "raiogramas fotográficos", assinava
introvertia no sonho ou nas experiências subjetivas de toda o ponto. Arp, por vezes. ·
sorte. Não admitiam que após a grande revolução iniciada A pintura dita . surrealista ainda era jovem, pois tinha
e esperada na Europa, ou no mundo, a vida privada con- por assim dizer nascido logo após o lançamento do Mani-
tinuasse nas frustrações que eram o seu cotidiano viver na festo do Surrealismo em 1925, com as descobertas de
sociedade capitalista não-transformada. E então parecia aos Chirico dos espaços metafísicos de praças que evocavam
protagonistas do "Surrealismo, a serviço da Revolução", estranhamente velhas cidades italianas, onde o drama se
(em face das vivências decepcionantes dos artistas soviéti- desenrolava entre os vazios e estátuas e aparições subita-
cos, como o próprio Maiakówski, que acabou se suicidan- mente presentes, em solidão ou em férias. Mas já -então a
do) que a única maneira de evitar o mal "era preparar à glória de Chirico se apagava na objeção e no conformismo,
experiência subjetiva uma revanche reconfortadora no ter- quando o artista retorna à Itália mussolinizada. Duchamp
reno do conhecimento, da consciência sem fraqueza e sem e Arp, com suás insígnias dos combates de Dadá, trazem

182 183
o ajuntamento automático de coisas ou de papéis recor- Mas René Magritte não vem ao surrealismo por essa
tados. Mas cabe a Max Ernst, ainda desconhecido em Paris, via real, e sim pela fixação dita em trompe-foeil das imagens
ápesar das proezas de Colônia, sua terra natal, dar a do sonho. A démarche de Magritte é plenamente delibe-
arrancada nova. Breton conta como as colagens de Ernst rada. Ele abordava a pintura no espírito "das lições de
lhe deram "uma organização visual absolutamente virgem'', coisas'' (Breton) e faria "o processo sistemático da ima-
embora em correspondência com o que haviam procurado gem visual da qual se comprazia a sublinhar as falhas''.
Lautréamont e Rimbaud, em poesia. Sua vi~ão construtiva assinalava com precisão os lugares de
O objeto exterior desprende-se de seu campo habitual, suas figuras, mas de modo a que emergisse nelas algo a
e suas partes como que ganham independência, passando a significar dependência aos processos da linguagem e do
entreter com partes libertadas de outros . sistemas relações pensamento. Essa dependência não seria, como propunha
inteiramente novas. Para Breton, isso significava a negação Breton, aos processos lingüísticos mas a outro processo,
ou o desmanchar da velha noção de realidade. (O processo ultramoderno, que se iria desenrolar com toda a sua força
lembrava as ainda recentes experiências gestaltianas em no cinema, ou um processo de violação e alargamento
busca das leis da organização perceptiva.) Em relação a constante do velho espaço-tempo convencional e estático.
André Masson, que se entrega com todo o seu cartesia- Magritte, insatisfeito, pelo próprio rigor de seu espírito, com
nismo francês ao delírio novo então da mão libertada de a ordem universal dada, propunha a cada representação sua
· todo controle, Breton diz: "Nada que nos cerca nos é uma 1:1ova relação entre os sentidos disciplinados ou enqua~
objeto, tudo nos é sujeito". Mas é Juan Miró o demônio drados e uma energia mental dificilmente conformada. Há
total do automatismo psíquico, e por isso mesmo conside- em sua pintura se não uma narrativa o anseio por uma
rado "o mais surrealista de todos", ou aquele que entre ordem transcendental, que até hoje continua a colocar-nos
os companheiros é o menos afetado "pela química da inte- uma questão angustiante. Em sua Bela Cativa, de 1935,
ligência. Até sobre Picasso o jovem catalão exerceu seus como em Condição Humana, da mesma época, o severo
feitiços automatistas. pintor belga, poeta da beleza convulsiva, nos dava na tela
Numa outra linha aparece Tanguy que, para Breton, foi como o modelo do modelo quando inseria nesta a cena,
o que primeiro se apercebeu não legendariamente de uma a imagem ou a simples idéia que antes lhe nascera na
tensão do mundo mental, em sua gênese. Tanguy pintava mente e não ia tomar o quadro todo. Com isso ele atro-
não por automatismo, mas embebido de um estado de en- pelava o seu próprio tempo mental: um cavalete com uma
cantamento mental que conseguia transpassar à tela mer- tela dava entrada no quadro, com todos os detalhes, de
gulhada numa foz atmosférica onde figuras indistinguíveis, modo que a tela abstrata de uma cena (Bela Cativa) se
entre seres vivos e não-seres, criavam um amanhecer ou confundisse com a tela objetiva do quadro, numa interpe-
um entardecer perene. O automatismo, herança dos mé- netração de tempos.
diuns, era a gazua eficaz para o inconsciente, era a ''única Magritte é a própria super-realidade. Em Retrato, na
estrutura que respondia a não distinção, cada vez melhor mesa bem posta há uma garrafa de vinho, o talher e um
estabelecida, . . . das funções sensíveis e das funções inte- prato dir-se-ia com uma camada de presunto, mas onde
lectuais, e por isso a única a satisfaur igualmente o espí- no centro um olho aberto, beni pintado, nos encara. O
rito". Mas a ambição poética surrealista não se satisfaz com equívoco de situações é cinematográfico. E no famoso
um automatismo de periferia sensorial. Exige que atinja Modelo Vermelho, 1937, descreve o pintor em puro trom- -
o campo psicofísico total ( de que a consciência é apenas pe-roeil, sob um chão de cascalhos, um par de botas ou
uma fraca parte) . Aí é que se encontra aquela região de pés nus, · de veias salientes e unhas .rigorosamente desenha-
profundeza abismal, de que Freud foi o Colombo, onde das, terminados em canos de botas de cordões mal amar-
há ausência de contradição, intemporalidade e substituição rados, sobre um fundo de madeira com todos os seus nós .
.da realidade externa pela psíquica, submetida ao princípio A técnica da pintura convenciona~ é exemplar. Há mesmo
do prazer. (Breton é então um freudiano ortodoxo.) So- nisso um parti-pris obsessivo. :e a premeditação do discun;o
mente o automatismo para Breton leva em linha direta no clímax metafórico. O _trompe-foeil em Magritte não leva
àquela região. (Hoje, outros processos até mais cientifica- ao local logicamente predeterminado no espaço e no tempo
mente controlados levam a iguais profundezas. No campo envolvente, mas arrasta a outra realidade situacional quem
das "artes" aparece · agora um capítulo dedicado à psico- o quer fixar na fuga da realidade imediata ambiental.
délica.) Nova relação mental se estabelece numa ambivalência do

184 185
espaço-tempo que prenuncia o conflito da realidade do
presente e do passado, do sonho e da vivência concreta,
de um tempo dentro do tempo, como no cinema moderno.
(L'année derniere à Marienbad.) ~ estranho como a lógica
mental mais estática pode trazer associações mais opostas de
outro mundo, um mundo de transformações simultâneas
incessantes.

31. BIENAL E PARTICIPAÇÃO ... DO POVO


Com todos os seus defeitos, a Bienal deste ano em
São Paulo é uma data. Marca uma transição para algo de
novo, em dois sentidos: de um lado, no comportamento
do público; do outro, na atitude dos artistas em relação
ao próprio trabalho criativo.
O público que, em número crescente, a vem freqüen-
tando não só é hoje incomparavelmente mais vasto como
não se restringe mais ao pequeno grupo dos entendidos
e privilegiados nos arcanos da Arte. Agora, é o grande
público, a massa, o povo que começa o perambular, a
olhar e a mexer pelas exaustivas extensões do outrora
pavilhão das máquinas das comemorações do IV Centenário
de São Paulo. Para ele - liberado sobretudo pelas crianças
naturalmente muito mais desinibidas que os pais - a "arte''
deixou de ser aquela coisa distante e. chata, mas terrivel-
mente respeitável que via pendurada às paredes e em certos
pedestais, . com guardas ao lado para impedir que alguém

186 187
se aproximasse e tocasse. :e agora algo que se mexe e pode lancha, e que sugeri, modestamente, que se chamasse, a
ser mexido. Quando hoje um ''popular" chega perto de fim de diferenciá-Ia da precedente, de "arte pós-moderna''.
um~ escultura, pintura, objeto, caixa, o que for, já vai Agora volto ao início para retomar a idéia de transição mar-
cun_oso d_e saber qual a "surpresa'' que ali encerra-, o que cada ou expressa caoticamente, contraditoriamente, na pre-
aquilo vai fazer ou onde está o ponto ou lugar que se deve sente Bienal, e com relação aos expositores, isto é, aos artis-
pegar para fazê-lo mudàr. O~servei ~urante bastante tempo tas. Estes, em número crescente, rompem as fronteiras da
º. comp_or_t_amento popular ah no Ibirapuera e constatei ter "distância psíquica" pelo lado de dentro, quer dizer, do
~ido a ideia que abriu a barreira da aproximação do povo lado do criador da obra. Não as fazem para que sejam con-
as obras do~ ar!istas e ~a "participação do observador'' que, templadas a distância, como a face da lua. Convidam os
entr~ os prUJ?,eiros artistas do mundo, aqui no Brasil cm espectadores para, quebrando o velho respeito tradicional
particular, foi posta em execução por Lígia Clark com os pela ''obra de arte'', também violarem as fronteiras que
seus "bichos''. Nos idos de 50 o que se conhecia' sobre o os separam dela. Isto, é justo que se reconheça, tem sido
assunto era a ex~eriência de Agam com uma espécie de feito pelo público paulistano com um gosto, um despacho
grampos que se tiravam da tela onde estavam arrumados que se vai tornando sem cerimônia, início de verdadeira
para _-rec_olocá-los à vontade. (No Brasil, Niomar Moniz invasão "bárbara'' do povo no campo até então fechado
Sodre Blttencourt, com seu espírito pioneiro, trouxe uma ou sagrado da Arte.
dessas telas para o acervo do Museu de Arte Moderna.) Com efeito, as conseqüências desse primeiro · assalto
A "participação do espectador'' revelou-se cada vez para o contato têm sido um estrago: o número de obras
mais como um conceito revolucionário a opor-se - quase desfeitas ou desmanteladas pela intervenção sempre diaboli-
que como o traço específico da sensibilidade de nossa camente inventiva das crianças - debruçadas sobre as
época - ao conceito estético decisivo sem dúvida das épocas peças com aquela curiosidade terrivelmente cruel com que
anteriores, ou o da "distância psíquica''. extirpam pernas às lagartixas ou fazem outras operações ao
. Um dos teóricos modernos mais penetrantes do con- vivo nos sapos e rãs - ou pelas manipulações ainda tími-
ceito, . Eduard Bullogh, num admirável ensaio, ( "Psychical das e por isso mesmo mais rudes dos pais e adultos, é
Distance" as a Fac~or in Art and an Aesthetic Principie), grande. Vi a apresentação de um dos mais inventivos e
ª,
começa~aApo~ nos d~er: "Tal~ez sugestão mais óbvia seja inteligentes dos jovens artistas brasileiros experimentais,
a da d1stanc1a espacial real, isto e, a distância entre uma Vlademir Dias Pinto, reduzida quase a pedaços, tiras sobre
obra de arte e o espectador ... •' (1912), noção esta que a mesa. E sei quão ricas e plasticamente belas são várias
segundo ele, já viria de Aristóteles. O professor Bullogh, a~ de suas telas e objetos. O artista que não trabalha com
tentar precisar o conceito de "distância psíquica'', de que materiais preciosos não se desespera por isso; é que ele
~ outra espéc}e de distância é apenas uma forma especial, sabe que, apesar das aparências, tudo aquilo se refaz e
mvoca o fenomeno do fog. Neste, "a transformação pela se reintegra outra vez, sem maiores dificuldades. Não se
distância seria produzida em primeira instância com o deve tampouco censurar a direção da Bienal pelo fato, que
colocar do fenômeno fora de contato com o nosso ego, é inteiramente novo, inédito. Aqui como alhures. Lá se
real, prático". "A vista das coisas a distância não é, nem põe um problema: ou as instruções dos artistas são para
poderia ser'.', diz-nos Bullogh, "nossa maneira de ver nor- serem obedecidas, e suas proposições tomam então sua
mal . . . Não somos comumente atentos àqueles aspectos verdadeira significação, ou não o são, em virtude de ordens
das coisas que não nos tocam imediata e praticamente, nem administrativas aos guardas para que proíbam a "partici-
somos geralmente conscientes de impressões apartadas de pação'' do espectador, e o desastre será muito maior: a
nós mesmos . . . A súbita visão de coisas pelo seu outro experiência estética e . . . revolucionária proposta terá sido
lado, de revés, usualmente não percebido, cai sobre nós condenada. (Com a formidável sala de Le Pare, a cuja
como uma revelação, e tais revelações são precisamente entrada se faz fila permanentemente, o mesmo problema
as da arte. Nesse sentido mais geral, distância é um fator se põe; mas lá como se trata de instalações elétricas deli-
em todas as artes". · cadas, como há escuridão lá dentro e uma porta assaz es-
Creio que seguramos aqui a diferença fundamental treita para se entrar, a própria "participação" é mais res-
entre a apreensão da Arte que vinha dominando até agora, trita além de o fato da própria aparelhagem elétrica, com
e sobretudo em toda essa fase histórica da evolução artís- seus fios, seus registros, seus botões e painéis impór mais
tica que passou a ser conhecida como "arte moderna", e respeito à multidão. Com o artista brasileiro, a participação
a que hoje se vai difundindo pelo mundo, como uma ava- é realmente mais manipulativa, exige maior comunhão com

188 189
a obra, feita, construída, composta manualmente, isto é, proximos desenvolvimentos economicos, sociais e culturajs
artesanalmente.) da sociedade seria decisivo. Mas que vemos? As conseqüên-
Estamos aqui em terreno novo, que exige inclusive dos cias aparentes da produção em massa e do grande consumo
responsáveis pela montagem das futuras bienais e mostras da civilização de massa parecem começar a redestruir aque-
coletivas outras soluções que as habituais. Um outro con- le conceito para fazer das obras de arte cada vez mais um
dicionamento espacial é necessário às demonstrações dos objeto de consumo transitprio como o automóvel, a unha e
.artistas, além de monitores preparados pelos próprios cria- a cabeleira postiças. Dizer que isso é antiarte, por exemplo,
dores expositores no manejo das respectivas obras. (Apro- não resolve, porque antiarte é apenas o reflexo exato, em
veitamos !ambém a ocasião para dizer que agravou o pro- contrapartida, da própria Arte. (Mas há muitas coisas ainda
blema, principalmente da sala brasileira, um número exces- a falar sobre a IX Bienal.)
sivo de obras ou de artistas, graças à generosa complacência
do Júri de Seleção, cuja filosofia ou orientação pareceu ser
a de pecar por generosidade e não por severidade em face
desse fato real, importante no plano sociológico e cultural
- o grande número de jovens artistas que se apresentavam
com obras consagradas à pesquisa e à experiência. Como
cortá-las maciçamente se o próprio júri se todos nós críticos
e não-críticos do Brasil e do estrangei~o que nos p;eocupa-
mos com a arte de nossos dias, também tateamos, também
estamos à cata de conceitos ou a consolidar critérios com
que possamos abarcar todo o formidável e complexo fenô-
meno da Arte na civiliza~ão mundial que se vai abrindG,
por paus e por pedras, diante de nós?) .
Os puristas não aceitam nada disso, e têm dez mil
raz.ões para procurar preservar os velhos padrões da Arte.
:8 inj~sto ac~sarem-nos de "acadêmicos''. A querela de agora
é mwto mais profunda do que a querela entre "clássicos"
e "românticos'' do tempo de Ingres e Delacroix, entre
naturalistas e impressionistas, entre Cézanne e Bouguereau,
entre "modernos" e "acadêmicos" dos salões brasileiros.
Eles não defendem regras nem academias; defendem o
conceito mesmo de Arte, tal como foi restaurado, na sua
pureza, especificidade e autonomia, no curso de toda uma
época histórica que se passou na luta contra preconceitos
de uma filosofia e de uma estética que reduziam a Arte a
uma cópia servil da realidade perceptiva imediata. Ou que
fizeram do repertório greco-romano renascentista os padrões
supremos da criação artística, no intuito de considerar tudo
o que se fez e se fazia fora do âmbito e do pensamento
da pátria burguesa européia bárbaro, inferior, inartístico.
Foi obra dele a restauração em sua plenitude do conceito
de Arte, e seu desenvolvimento, de Cézanne a Picasso, de
Picasso a Mondrian, de Mondrian a Pollock, durou mais
ou men~s um século: nesse tempo histórico, desenrolou-se
o que ficou conhecido como o movimento da "arte mo-
derna". ~creditou,:-se que se havia chegado com ele à plena
autonomia d~ fenomeno da Arte no campo complexo socio-
cultural. Enflffi, com este conceituai esteticamente isolado
bem definido e bem trabalhado, o papel da Arte no~

190 191
32. ESTRUTURA GEN:f:TICA: CHAGALL ETC.
SEGALL
Levando mais adiante que Lévi-Strauss o conceito es-
truturalista no estudo das Ciências Sociais, Lucien Gold-
mann tenta inserir na noção de estrutura a de processo.
A noção. de processo ou a gênese. A "estrutura genética''
introduz, diz ele, perspectivas novas na medida em que
considera não serem compreensão e explicação apenas
processos intelectuais conexos mas um único e mesmo pro-
cesso relacionado a dois níveis diferentes de decupagem do
objeto. A descrição de uma estrutura dinâmica, ou, na fór-
mula de Piaget, "processo de estruturação'' traz sempre
consigo um duplo caráter compreensivo em relação ao
objeto estudado e um caráter explicativo em relação às es-
truturas mais limitadas que compõem os elementos consti-
tutivos daquele.
Goldmann dá, tirado de seu próprio campo específico
de estudo, exemplo de uma descrição compreensiva: des-
tacar a estrutura interna dos Pensamentos de Pascal e des-

193
tacar, relevar a estrutura interna do movimento jansenista Num encontro cultural relativamente recente sobre as
e de sua gênese, que constitui também tanto uma descrição
compreensiva em relação a esse movimento como já uma noções de estrutura e gên~~e, ~oldma?,n. ª?ordou,_ ª, t!tu!?
experimental, sob a classif1caçao de h1potese p1ctonca ,
A
análise explicativa em relação ao pensamento de Pascal e a obra de um grande pintor contemporaneo : ChagalL Gold-
ao teatro de Racine. A análise genética da estrutura interna mann explicou de antemão as razões pelas quais escolheu
da nobreza de toga no século XVII em França, de sua vida o grande pintor para elabor~ sua ''hipótese Íl:ltrodutor~"
afetiva e intelectual, de seu comportamento político cons- à obra pictórica do mesmo artista. Do ponto de v1s_ta da ana;
titui uma análise compreensiva em relação à nobreza de lise estrutural genética. da obra chagalhana, o que mteressa e
toga e uma análise explicativa em relação ao movimento poder chegar a se descobrir "um conteúdo coere!lte'', ou ,,,-
jansenista. Do mesmo modo a análise genética das relações uma "visão do mundo'', tal como Goldmann realizou em
de classe na sociedade francesa da primeira metade do relação a Kant, Racine e sobretudo Pascal. A despeito de
século XVII tem um valor explicativo para se compreender reconhecer a sua incompetência quanto "aos meios técnicos
as transformações intelectuais e afetivas na consciência da da expressão pictórica", ele abordou a pintura de Chagall
nobreza de toga. pelo fato de ser muito familiar com meios sociais bastante
Goldmann, aliás, não enconde quanto o estruturalis~o próximos aos em que viveu o jovem Chagall.
deve à fenomenologia de Husserl e antes de tudo às teonas
da Gestalt, com suas noções da Gestalt, com suas noções A RúSSIA, AOS BURROS, AS ALMAS
de "todo". Daí sua postulação fundamental de . que todo
fenômeno pertence a um número maior ou menor de estru- A respeito dessa tela e de o~tras ~a_mesma é~oca, ?
turas de diferentes níveis, ou como ele prefere, de "totali- crítico de Arte fala: Chagall aplica a hçao do cubismo a
dades relativas'', no interior das quais há uma significação descrição dos elementos autônomos do real, transmitidos
particular. Assim: toda criação cultural é ao mesmo tempo por suas reminiscências ou sua imaginação. Para ele o real
um fenômeno individual e social e se insere nas duas .estru- comporta sempre projeções ao passado e ao futuro; suas
turas constituídas pela personalidade do criador e pelo grupo pinturas se constroem sobre vários plan?~· Resulta dest~s
social no qual foram elaboradas as categorias mentais que a um mundo interior insubstituível, transmitido sem que se1a
estruturaram. desnaturado ou tornado desenxabido. Agora, a respeito
Essa afirmativa é decisiva para que se possa levar dessa mesma fase chagalliana, ouçamos o estruturalista: As
adiante a análise das obras criadas e dos seus criadores, teorias dominantes nos meios literários e artísticos do Oci-
operando-se com os instrumentos do estruturalismo genéti~o. dente põem o pintor em guarda contra um ~1;rto_ "realismo''.
Goldmann exemplifica sua teoria com o teatro ~e Kle1st, Mas por outro lado, o pintor toma consc1enc1a cada vez
o grande poeta e dramaturgo alemão. Esse teatro é posto em mais· nítida de tudo o que havia de ''insólito" e de "estranho"
ligação não só com a situação familiar de Kleist, suas re- no mundo camponês de sua aldeia natal. Três obras de
lações com o pai e a irmã como também com o conflito 1911, observa G., (Eu e a aldeia; À Rússia, aos burros,
entre os ideólogos da liberdade e da autoridade que agita~ às almas; A aldeia russa da }ua) sublinha~ esse duplo ca-
vam a Alemanha de seu tempo. Do ponto de vista metodo- ráter com mais força · que nas telas antenores.
lógico, isto é, quando não se leva em conta qualquer consi- A análise de G., porém, não pára aqui. O contato com
deração de validez concreta de tais ou quais análises para a sociedade ocidental só faz "reforçar o distanciamento de
só concentrar-se na clareza da exposição teórica, parece Chagall em relação ao mundo judeu da infância". Em o
a Goldmann evidente não poder a primeira estrutura des- Homem Barbudo (1910-1911), o Violinista, (1911-1914)
tacar, isolar senão a significação biográfica e individual esse mundo judeu se dessacraliza. Esse processo ~e d~ssa-
dessa obra em relação ao indivíduo Kleist. Tal significação cralização prossegue, e através de certos tra~os msólito~,
é sem dúvida muito importante para o psicólogo interessado embora ainda secundários, observa G., é sugendo um cara-
em conhecer o indivíduo, mas na realidade não difere em ter "não-natural'' e mesmo "mórbido" desse mundo. O
essência da que numerosos outros fatos da vida de Kleist estruturalista apresenta como demonstração ?ª. sua tese o
podem oferecer nessa mesma perspectiva, e, portanto, não livro do Rabino Amarelo (1912), metade dire1to, metade
contém qualquer valor estético. A segunda interpretação, inverso, e ao Músico (1912-1913) "que flutua por cima
porém, orienta-se, ainda no plano metodológico, em primeiro da aldeia". ''O judeu", conclui G., deixa o seu "quarto'',
lugar no sentido do valor universal, quer dizer, estético, enquanto o pintor nele sublinha seu caráter "lábil''. Em
histórico, social da obra. relação à evolução da obra de Segall, é evidente que ·este

194 195
não dessacraliza o seu mundo judeu. Em dois óleos · na O artista brasileiro, se se libertou como Chagall de
mostra do M.A.M., Segall nos apresenta um Rabino com seu duplo meio · de infância, não foi para integrar-se em
o xale de rezas (1927) e Judeu com o livro de rezas (1930). outra sociedade, mas antes para poder monologar, indefini-
Esses estão em suas funções religiosas normais, embora tra- damente, numa solidão trágica e meiga. Quanto a Chagall,
gicamente carregados em seus traços pela deformação cubi&- de volta ao Ocidente, após a estada na Rússia Revolucio-
ta segalliaila e o tratamento denso, fatura por fatura, da nária, judeus e camponeses da infância se confundem numa
matéria. mesma irrealidade de nostalgia infantil. O artista brasileiro
Chagall dessacraliza o seu mundo racial judeu e idea- invade e isola com sua profundeza a realidade imediata do
liza o mundo, ou melhor, a imagem da paisagem campesina ser; o artista russo afasta-se com sua fantasia da realidade
da infância. De ambos os meios, o judaico e o camponês, para devanear perpetuamente sobre as coisas e os homens.
nos quais se formou entre os dilaceramentos complemen- Na abordagem da pintura de Chagall tem-se de- partir
tares deles, o artista se vai desenraizando. Desenraiza-se do meio social em que sua infância e juventude _se .desen-
deles, mas nem por isso é realmente integrado no meio rolam. Quer dizer, o grupo social judeu da vila e da aldeia
ocidental. Um sentimento de isolamento aparece constante- russa. Esse grupo, diz-nos G., já estava bastante abalado nos
mente na sua produção da época ( O auto-retrato com sete primeiros anos do século para que o próprio pintor pudesse
dedos, 1913). escolher um métier que passava por tipicamente. "não-
Ao contrário de Chagall, porém, Segall não idealizou
-judeu". ce. impossível a nós, brasileiros, em face dessa
realidade situacional, não termos imediatamente à lembrança
o seu meio natal; conserva dele sombrias recordações (Wil- o caso de nosso Lasar Segall. Chagall nasceu em Witebsk,
no), uma memória por assim dizer litúrgica do seu mundo Rússia, em 1887; Segall nasceu em Vilna, Rússia, quatro
judaico. Ele também abandona o quarto da infância. Emigra anos mais tarde. Ambos pertencentes a grupo social idêntico
para longe, depois de um intermezzo ocidental, Be;~- no contexto da vila e da aldeia russas da época. Ambos
Não foge do realismo como Chagai} para quem o propno pintores, não assim fixados por uma mesma estrutura pri-
Cubismo já era por demais realista, com seu repertório de meira, ou aquela que nos dá uma análise de compreensão
objetos caseiros fabricados. Mas tranca-se em sua nova em relação ao indivíduo. A análise que a seguir faz G.
casa, e passa de lá, de sua janela a registrar o que vai pelo para Chagall vai valer, numa boa medida, para Segall.)
velho mundo de trágico para sua raça e a paisagem do No interior de uma ''totalidade relativa'' (a da aldeia
novo mundo onde se instalou. Esta ele vê de fora, como e, numa certa medida, da pequena cidade, ou vila) distin-
formas a estudar; Bois chapados de Campos do Jordão; guem-se facilmente até certo ponto dois "grupos comple-
Animais e Paisagens, num dos quais a anotação muito sig- mentares'', relativamente fechados um em relação ao outro:
nificativa é - Homem a cavalo, visto por trás (1936-1949). a sociedade camponesa russa e a sociedade judia "composta
E a série de suas "Florestas'". Em 1910, o tema aparece sobretudo de comerciantes, artesãos, empregados, letrados,
mas na sua generalidade geográfica, como vizinhança da além de representantes de algumas profissões marginais".
aldeia; no Brasil, o pintor olha-as com curiosidade, anali- Estas são exemplificadas por G. em dois tipos representa-
sando-as sob vários aspectos formais: "florestas com refle- tivos - "o violinista'' e o "carregador de água". A própria
xos de luz" florestas "densas" ou "crepusculares", "com complementaridade desses dois grupos reforça o particula-
troncos lançados", "com troncos arredondados", "troncos rismo de cada um, uma vez que, pre-cisamente por serem
entrelaçados", "com folhagem negra", "com troncos negrOi diferentes, um tem necessidade do outro. Note-se aqui,
densos" etc. Quanto aos dramas sociais, Segall .os olha com de passagem, essa coincidência que, no contexto exposto por
simpatia humana e comiseração; mas suas figuras, isoladas G., não é gratuita: tanto a obra de Chagall abunda em qua-
ou em grupos, aparecem sempre como tipos, sem qualquer dros ou desenhos com tais tipos, como à de Segall também.
individualização (As mulheres do Mangue). A individua- Na bela exposição da obra total de Segall, tão em boa hora
lização humana, esta o grande pintor separa para s_uas pro- escolhida pelo nosso Museu de Arte Moderna para a inau-
fundas análises de matéria, de cor, de sombras e de luzes guração de seu formidável pavilhão de exposições, lá se vê
bruxuleantés, as quais saem de dentro das suas naturezas Homem com violino, datado de 1909, isto é, quando Segall,
mortas e dos seus retratos com uma extraordinária chama já em Berlim, ia pelos seus 18 anos. De sua série de dese-
de vida e de pura beleza pictórica. Em Segafl a visão é nhos, "Figuras e composições", o mesmo tema não está
profunda mas imediata, de lente à mão. Nisso está o se- ausente. Ao contrário, repete-se. Em outra série "Aspectos
gredo de seus retratos, de suas naturezas mortas. de Vilna", Ôõ 1910, o nosso pintor não esquece de anotar

196 197
Carregador de água, como também da mesma série, mas
de 1911, lá está anotado outro instrumento típico dessas
siniprofissões, de que nos fala G., a propósito do grupo
judaico da aldeia ou da Vila russa de então; A Carroça.
Para G., o fato de Chagall ter podido escolher um
métier tão tipicamente "não-judeu" como o de pintor de-
correria da sitµação já periclitante .o u abalada daquele grupo
social nos primeiros anos do século XX. Em confidências
a Jacques Lassaigne, num livro de 1957, Chagall explica
por que se tomou pintor. "Por uma espécie de teimosia
russa em pintar." Fazia questão de falar, então como uni
russo e, nessa qualidade, pretendia desmanchar o precon-
ceito muito generalizado de que "os artistas na Rússia não
têm gênio plástico". Esforçando-se em dar para sua escolha
razões conscientes puramente estéticas, ele diz ao eminente
crítico francês : "Meu coração acalmava-se com os ícones".
Sua religiosidade e mística teriam nascido com a sua desco,-
berta dos ícones, de Rubleff (Museu Alexandre III, São Pe-
tersburgo). "Com ele", a quem chama de "nosso Cimabue", .
"nasci para a mística e a religiosidade". Assim, ele afasta
deliberadamente o clima religioso da família judaica para
justificar então seu misticismo; este, no entanto, muito mais
tarde reencontrará suas origens numa sinagoga de Jerusa-
lém israelita, que Chagall decorou. Ele dá ainda como ra7.ão
para ter deixado a Rússia em 1910 o fato de "esta não
ter plástica desde a arte dos ícones". Aí está, diz a Lassaigne,
"por que pru_ti". E se foi para Paris. Eis aí uma razão
de ter partido de sua terra natal, que .jamais se po<t.eria
encontrar em Segall. Este de lá partiu aos quinze anos.
Chagall, porém, nascido em 1887, chega ao Ocidente em 33. A REVOLUÇÃO NAS ARTES ..:_ I
1910, aos vinte e três anos. Segall parte de Vilna para
sempre. Em Berlim, com efeito, pelos idos de 1910, um Nesse cinqüentenário da Revolução Russa já podemos
desenho •seu tem esse título extremamente significativo da dizer, participando de sua comemoração, que a arte. que
idéia de separação: Vilna e eu. Chagall, ao contrário, em ela criou ou que a simbolizou não foi o chamado "realismo
1910, mal chegado pois a Paris, volta-se para a terra natal, socialista". Este foi uma criação típica do regime de buro-
num grande quadro intitulado Eu e minha aldeia. cracia bonapartista, erigido ao po~er despó~ico, · depois. da
derrota da "oposição de esquerda no P artido Comumsta
e seguido da derrota da "oposição da direita" quando a
vida interna do mesmo partido foi substituída pela vontade
onipresente de Stálin. O "culto da personal~ade" e o "rea-
lismo socialistà' são criações do mesmo regime e da mesma
época, embora o primeiro tenha de pouco precedido o se-
gundo, como era lógico.
O episódio mesmo da proletcult, isto é, de uma cultura
proletária, foi passageiro, na base aliás de um fundamento
teórico falso: o de que o proletariado, classe última a
chegar ao poder e instituir a derradeira das ditaduras de
classe, antes da entrada do socialismo e do fenecimento do

198
199
Estado, conforme a doutrina clássica do marxismo, plltlesse que seus quadros fossem elevados acima de !oda a s~ie-
na época necessariamente transitória de sua dominação de dade e seu regime consagrado. Nessa consagra~ª? ~o regime,
classe criar uma cultura própria, em oposição à "cultura era necessário também que seu chefe fosse . div1mzado. Em
burguesa". Lênin como Trotsky foram contrários a esta lugar da lealdade impessoal à revolução e seu Estado,
pretensão, desde os primeiros tempos. O destino do prole- impôs-se pela propaganda, pelo terror, pelos fatos a ado-
tariado como classe é não se preservar como tal, e criar ração ao secretário-geral.
um Estado de classe, uma ditadura de classe e nesses funda- Um ex-comunista e escritor, de cuja integridade pessoal
mentos criar uma sociedade e uma cultura segundo seus não se pode duvidar, Bertram D. Wolfe, conta como um
interesses,. seus modos de ser, seu comportamento e ideais, dia, em ·Moscou, onde se encontrava há meses em 1929,
mas dissolver-se na primeira sociedade sem classes da todas as .revistas e jornais da URSS apare~em. co~ o re-.
história. A demanda de uma arte ou cultura proletária· foi trato de Stálin na primeira página. No pnme1ro mstante
a mediação para se passar da arte de vanguarda, da arte o fato lhe pareceu até "racional", tendo · em consideração
em si mesma revolucionária que se fazia já nos primeiros que com a eliminação de Bukharin ( de cujas opiniões e~a
momentos da Revolução, e foi suprimida aos poucos por adepto nas fileiras do Partido Comunista americano) Stáhn
motivos políticos e obscurantistas mas também por motivos ficava como o único do "velho bolchevismo" dentre os
econômicos e da miséria generalizada que levou à instituição camaradas mais próximos de Lênin. Mas logo depois com-
da Nova Política Econômica, criadora do mercado e da preendeu toda a profunda significação, social e política;
liberdade de comércio, imposta pela pressão do camponês, do fato, que se tornou para ele a data do início do culto
para a arte da burocracia ulterior. de Stálin. Várias circunstâncias levaram-no a essa con-
Um historiador liberal inglês nada simpático à Revo- clusão. Primeiramente, a fúria das purgas, com a prisão,
lução, mas observador por vezes arguto e competente, tra- execução ou redução ao trabalho escravo de ~il~ões, nos
tando das controvérsias da ''frente cultural'' soviética dos quais se incluíam não somente os neutros, os md1ferentes,
anos vinte, reconhecia haver neles "homens de dons notá- os leais e até camadas inteiras de técnicos, militares e buro-
veis e de temperamento, e suas atitudes, honestas ou opor- cratas ~m si mesmos tão necessários ao próprio reforça-
tunas, er_am as de seres humanos excepcionais. Lunacharski, mento do poder mesmo do Estado. Mas, observa com
Vorovsk1, Anerbach não eram, de modo algum, críticos certa agudeza Wolfe, o caráter vago e abrangente do !e~-
de primeira água, mas possuíam uma genuína eloqüência ror era uma necessidade: "Se quiser fazer medo a seus 1m-
revolucionária; Bukharin, Trotsky, Radek, eram como pen- migos, comece cortando a cabeça de seus amigos''.
sadores negligenciáveis (?), mas um deles era um homem Nesse mesmo ano, o aniversário de Stálin se tornou
de gênio, e os outros eram no mínimo notáveis agitadores. um dia maior de sua primeira glorificação por todo o país.
E entre os escritores criativos e artistas havia ainda algumas Ainda em 1929, poucos dias antes daquele. aniversário,
figuras de primeiro plano que não emigraram ou voltaram. Trotsky, já no exílio forçado em . Con~t:intmopla, num
Só isso fez os anos vinte memoráveis, não somente na artigo em que celebrava o 12.0 amversar10 de Outubro,
história russa mas na cultura russa. A tudo isso Stálin mostrava como a República dos Sovietes se encontrava nu-
pôs um fim brusco, e uma nova fase começou" (Isaia ma situação em que "os maiores êxitos se combinam com as
Berlin, The Silence in Russian Culture, 1957). dificuldades mais consideráveis, e os êxitos como as difi-
Depois da vitória de Stálin, o Partido interveio direta- culdades crescem simultaneamente. ~ este o traço essencial
mente no processo interno da criação artística para pedir da situação, é o grande problema. A indústria fez e continu_a
aos escritores e artistas um serviço cem por cento de pro- a fazer conquistas prodigiosas, a julgar pela escala capi-
paganda em favor dos projetos de investimento, de reformas talista. A agricultura, nesses últimos a1;1os, progr~diu ~wto
administrativas e para prestígio dos seus quadros dirigentes mais lentamente, embora seu reergu1mento nao seJa de
e o todo coroado pelo endeusamento do Líder Supremo, duvidar. No entanto, constata-se esse fato paradoxal: há
cabeça coroada da burocracia. Esta, depois de vencidas no mercado uma carência muito séria de mercadorias que,
as primeiras fases da guerra civil, depois de abafadas as apesar dos progressos da economia geral, se mantém de
vozes autorizadas dentro do Partido, suprimida qualquer ano para ano, e atinge em ce~os períod_os . ~ grau d~
veleidade de . autonomia e democracia nos sindicatos ope- crise extrema. Os produtos fabricados mais md1spensáve1s
rários, nos Sovietes e por fim dentro do próprio Partido, faltam, apesar da progressão impetuosa da indústria. ~
passou a ser o grupo dirigente único e soberano, no Estado a insuficiência dos produtos agrícolas, embora esse p~s
e no país. Era social, moral e politicamente indispensável tenha ainda um caráter agrícola preponderante, se faz sentir

200 201
parte dos dirigentes. A esse estado de espírito de "pequeno
a um ponto verdadeiramente int_?l~rável . . . Essas con~r~- patrão" que teme grandes empreendimentos Trótski cham~o
dições têm causas de duas espec1es: as causas essenc1a1s de ''menchevismo em economia". Em abril de 1927, .Stálm
residem na situação objetiva de um país economicamente afirmava ser a barragem do Dniepostrol reivindicada pela
atrasado que foi o primeiro a ser forçado a chegar à dita~ oposição tão pouco necessária ao país quanto um gramo-
dura do proletariado e à edificação socialista. As causas fone para um rnujique, A · conseqüência de tamanha pe-
de segunda ordem residem na falsa política da direção que quenez de -visão foi fatal. Em pânico, Stálin decreta a cole-
sofre as influências da pequena burguesia, incapaz de com- tivização forçada, ou a "revolução por cima" em alguns
preender no tempo certo a situação _e ?e utilizar,?ª ma- dias. A propósito; um eminente lll:arxólogo, velh? menche-
neira mais racional · os recursos econom1cos e pohbcos da vista que conheceu de perto a rna10r pa~te dos l~dert:~ bo~-
ditadura". cheviques, especialmente Bukharin, B~ns L. N1colaievsk1,
Trotsky via claramente onde se encontrava o ponto cohta a entrevista que teve com Bukhann em 1936, quando
nevrálgico das tensões: no retardamento da agricultura em este em missão do Instituto Marx-Engels,- esteve na Europa;
relação à industrialização, na incapacidade . desta de for- ein ~ircunstâncias dramáticas. · .· · · · ·.
necer produtos industriais os mais necessános e a preços . Bukharin já .então sabia que iria ser pJ.'.eso aó vo}tar
acessíveis em virtude do monopólio do comércio exterior à Moscou (sua mulher já o havia sido n3: sua ausênc~a):
absoluta~ente indispensável ao progresso industrial, que Conversou · 1ongamente com o ex-companheiro de pesqmsas
por sua vez excluía a Rússia dessa divisão int:rnaci~na~ de históricas sobre o marxismo. Ao falarem · dos horrores da
trabalho na base da qual se realizou sua evoluçao cap1tahsta. coletivização, Bukharin ainda trazia vívidas as impressões
Tudo o que a Rússia podia receber do exterior tem agora dos ·que foram abalados até o fundo pelo que viram.durante
de ser produzido em ritmos acelerados, e os recursos faltam à operação. . '
para atender ã;S necessidades d~ pro1u~ão, ca~pon~sa_. A Vários foram os comunistas que se suicidar-aro, alguns
aldeia paga assim um pesado tnbuto a md,u~tna social!s!ª· acabaram lóucos e muitos fugiram ou desapareceram, sim-
O balanço das duas revoluções, a democratica (a agrana,
plesment~. Em 1919, diz Bukharin, _h':m~e o _t~rror, e vira
a única válida para a massa campesina) e a proletária, coisas que não desejava que seus m1ID1gos vissem. Mas,
unidas em Outubro, se estabelece para a classe camponesa,
0 anó de 1919 não pode ser comparado aos de 1930 e
ainda agora com um menos que se pode avaliar em várias 1932. Se então executavam gente, arriscavam a vida no
centenas de milhões de rublos. Aí está o fato incontestável processo. Mas no último período, eles estavam levando a
e o mais importante para quem quer apreciar não somente efeito uma aniquilação em massa de homens co~pletamente
a situação econômica como a situação política do país. sem ~efesa, juntamente com suas mulheres e cnanças. "111~s
Esse fato deve ser encarado com nitidez. Acha-se na base para Bukharin o pior não estava nos. horrores :da co_letiv1-
das relações tensas ·que existem entré a classe camponesa e zação. O pior "foi a profunda mudança na psicologia da-
o governo dos Sovietes.
queles comunistas que participaram nessa campanha, e que,
Tal estado de coisas ia revelar-se em toda a sua agu- em lugar de enlouquecerem, se to_rnaram_ buroc~atas pr~~
deza com a · greve do trigo instituída pelas càmadas mais fissionais para quem o terror daqm por diante foi . um me-
prósperas do campesinato, resultando daí a fome nas todo normal de administrar, e obedecer a qualquer ordem
cidades, e, · por fim, a coletivização forçada para acabar de cima uma alta virtude". "Não são mais seres humanos",
compulsoriamente, pelo terror e o massacre, :extrema dizia deles. "São realmente uma peça numa · terrível má-
dispersão das empresas agrícolas agravada pelo ntmo ex- quina''. Houve urna verdadeira desumanização na gente
tremamente lento da transformação socialista da economia que trabalhava no aparelho do . Estado, concluía Bokharin,
aldeã e pelo conseqüente reforço de suas próprias pro- na sua patética confidência. A ironia tanto é maior quanto
pensões consumidoras. E por isso os produtos agrícolas fal- foi ele mesmo o principal teórico do "humanismo" -da
tavam.
"cultura proletária". ·
A oposição sempre acusou a direção do Part~do e do
Não se pode compreender a passagem ao famoso culto
Estado de imprevidência e ignorância da necessidade de à personalidade e ao regime do . chicote para obrigar os
ritmos acelerados para restabelecer a aliança do proleta- escritores e artistas a fazerem a ''arte" e a "literatura" dita-
riado das cidades com os camponeses que não exploram das peÍo gosto do líder genial, sem conhecer as circuns-
ninguém. Desde 1923 , 1924, 1925 que a· oposição era acusa-
tâncias históricas que avassalaram o país a partir da crise
d~ de "superindustrializadora''. Sua reclamação de um plano de 1929. Em 1930, criava-se a famosa doutrina do "rea·
qüinqüenal foi durante seis anos objeto de zombaria por

202 203
tismo socialista'', oficializada em 1931, num congresso de que os futuristas e construtivistas engalanaram Moscou e
escritores em Karkov, ao qual compareceu o poeta surrea- fizeram verdadeiros desfiles de arte em caminhões pelas
lista Louis Aragon, que de lá voltou fazendo litanias ( Graças ruas da cidade. Kandinsky, russo e russo asiático até as
a ti, Grande Chefe Stálin etc.) a Stálin e rompendo com raízes, o formidável destruidor do objeto na pintura do
os seus amigos · surrealistas, Breton à frente. Uma verda- Ocidente, onde criara na Alemanha o movimento do Blau
deira arte soviética não podia ter nada com essas sinistras Reiter, que regressara à Rússia quando da declaração de
manipulações baixadas pelo supremo burocrata. A teoria guerra, era então algo como um inspetor das artes na
segundo a qual a Arte devia servir ao Estado e à sua política Rússia revolucionária. Suas qualidades de líder, de teórico
e ser préxima do gosto do povo não responde nem à própria e de mestre que se iam revelar em toda a grandeza na
essência do marxismo nem à verdade das tradições culturais Bauhaus de Walter Gropius, já se faziam então sentir por
da Revolução. toda a parte. Moscou e Petrogrado estavam então na
A verdadeira arte da Revolução foi a que surgiu na- vanguarda da vanguarda das artes em todos os domínios,
turalmente, espontaneamente dos jovens artistas da época. desde o Teatro com Meyerhold; as Artes Plásticas com
Victor Serge, o revolucionário exemplar, num livro de Kandinsky, Chagall, El Lissitski, Malevitch; na Pintura, Ta-
memórias admirável, testemunha as peripécias da vida inte- tlin, Pevsner e Gabo; na &cultura, sem falar na voz domi-
lectual e artística da heróica Petrogrado de 1919-1920. nadora de Maiakóvski; na Poesia e nas glórias nascentes
Em Moscou, havia vários cafés dos poetas na Rua Tvers- do Cinema, com Eisenstein, Pudovkin etc. As condições
kaia; "era o. tempo em que Serge Bssenin se revelava, es- econômicas e políticas cruéis que se agravaram não permi-
crevendo por vezes a giz versos magníficos nos muros do tiram um maior e mais prolongado desenvolv4n,ento da-
mosteiro desocupado da Paixão. Enconttei,-o num café quelas experiências. Lênin, que não pretendia na sua proba
sombrio . . . Essenin, quando o vi pela primeira vez, me modéstia entender de Arte, e muito menos de vanguarda,
desagradou. Tinha 24 anos, freqüentava as prostitutas, os permitia de fora os experimentos, e, balançando sua ca-
bandidos, os vagabundos dos maus cantos de Moscou. Bebia, beça socrática em conversações com Clara Zetkin, decla-
tinha a voz cansada, as pálpebras caídas . . . Era uma rava sua perplexidade e se confessava com aquela serem
verdadeira glória, os velhos poetas simbolistas reconheciam passadistas, fora do tempo, em matéria de Arte. Mas acima
nele um igual, a intelligentsia arrebatava suas plaquetas e de sua vontade estava a miséria dos recursos que restavam
a rua cantava seus poemas. Ele merecia tudo isso. De blusa ao Estado para restaurar as forças produtivas do país, a
branca subia no estrado e começava a declamar''. Apesar zero. E havia para ele, como tarefa preliminar intransferível,
de indisposto contra ele, Serge confessava: "Como os outros uma campanha maciça contra o analfabetismo generali-
eu cedia ao cabo de um momento ao encantamento real zado. As possibilidades econômicas e sociais foram por
dessa voz quebrada e de uma poesia que vinha do funqo isso minguando na paupérrima e gloriosa Rússia dos So-
do ser e do fundo da época. Saído dali parava diante das vietes.
vitrinas, algumas fendidas de alto abaixo pelas balas do Quando Stálin chegou ao ápice do poder, tudo mudou.
ano passado, onde Maiakóvski pregava seus cartazes de O partido oficial condenou in )imine as atividades desses
agitação contra a Entente, o Piolho, os generais brancos, artistas, grandes artistas que iam marcar para sempre a
Lloyd George, Clemenceau, o capitalismo encarnado por arte de nosso séc,ulo, e se dedicaram à causa da Revolução
um ser barrigudo, uma cartola à cabeça e fumando um com ingenuidade se quiserem mas com total devotamento
bruto charuto. Uma plaqueta de Ehrenburg (em fuga) e entusiasmo; eles sentiam a profunda identificação entre
circulava: era uma Reza pela Rússia violada e crucificada o que queriam no domínio da criação e o que o governo
pela Revolução. Lunatcharski, comissário do povo da ins- soviético queria no domínio da transformação socialista
trução pública, entregava aos pintores futuristas ( construti- da, sociedade russa. No famoso Congresso de Karkov, em
vistas etc.) Moscou para ser decorada, e eles transformaram 1931, a burocracia reúne intelectuais russos e ocidentais
as lojas de um mercado em flores gigantescas. O grande em vias de conversão ou . . . de corrupção para condenar
lirismo, até então confinado nos círculos literários, abria o futurismo como "decadência burguesa". As ''acrobacias
vias novas nas praças públicas. Os poetas aprendiam a lingüísticas" já em pleno surto, juntamente com uma ver-
declamar ou a salmodiar seus versos diante de grandes dadeira revolução gráfica, quanto ao letrismo e quanto
auditórios vindos da rua; tirlham um acento novo, e os a novas estruturas de apresentação, foram condenadas como
açucaramentos davam lugar à força e ao ardor". Ehrenburg, "sem fundamentos ideológicos e sem significação social".
conta, por sua vez, um fulgurante Primeiro de Maio em E todas essas objeções, muitas de · puro obscurantismo e

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ignorância, eram estendidas à pintura abstrata e escultura. carregador de forças. Levando adiante a unidade de cons-
O construtivismo, o dadaísmo (a cujas sessões Lênin assis- trução, um sistema dinâmico construtivo de força é alcan-
tiu no Café Voltaire, em Zurique, nos anos de 1915 e 1916), çado quando o homem, até aqui mer~mente receptivo e_?t
o cubismo encontraram a mesma hostilidade. Como disse suas observações da obra de arte, expenmenta uma elevaçao
Moholy-Nagy num formidável livro profético (Vision in (intensificação) de suas próprias faculdades, e se torna
Motion, 1946), cada obra experimental que não mostrasse ele mesmo um participante ativo das forças que sé mani-
imediatamente servir às tendências políticas, e não desse festam''.
chaves inequívocas à sua completa conformidade à "linha" Os primeiros projetos nesse sentido eram no fundo
do Partido, · era rejeitada. apenas tentativas, visando à demónstração experimental no
O que é espantoso é que as experiências em todos os tratar a conexão entre o homem, o material, forças e espaço.
domínios da criação feitas na época eram · como que pre- Depois, vaticinava Moholy-Nagy, em 1922, virá a utilização
determinadas por um apelo antecipado do futuro. Todas dos resultados experimentais para a criação de obras de arte
elas não morreram nem desapareceram com o banimento de movimentos livres. De então para cá, tivemos as primei-
de seus experimentadores ou o seu ostracismo, mas fruti- ras experiências de Tatlin, o formidável projeto da sede
ficaram fora da Rússia. O suprematismo, com Casemir da Internacional Comunista, uma torre com um cilindro de
Malévitch, que já em 1913 apresentavam seu famoso qua- vidro móvel, apresentado em maquete e sobre o qual Trót-
dro do quadrado preto sobre quadrado branco e depois qua- ski escrevia em 1924, com compreensão, prudência e sabe-
drado branco sobre tela branca que ele definiu como a aqui- doria, no seu ensaio Arte Revolucionária e Socialista: ''Por
sição de uma realidade nova - a da ausência do objeto - ora estamos começando a consertar os calçamentos, a re-
não ·desapareceu com a queda do grande artista, mas pros- mendar os canos de esgoto, acabar as casas inacabadas que
seguiu na Europa Ocidental, sob a forma de arte abstrata, nos foram deixadas por herança - mas apenas estamos
do neoplasticismo e por fim da arte cinética. Também o começando. Fizemos os edifícios da nossa Exposi~ão Agrí-
construtivismo com Antoine Pevsner e Gabo foi a corrente cola em madeira. Temos de pôr de lado construções em
mais irredutível de todo o formidável desenvolvimento da grande escala. Assim damos, ainda que involuntariamen~e,
arte moderna. E agora renasce sob diversas modalidades, aos iniciadores de projetos gigantescos, homens como Tatlin,
apesar do tachismo e da pop'art americana. No seu Manifes- tempo para mais medi.tação, revisão e radical reexame. Mas
to Realista, Pevsner-Gabo afirmava serem "o espaço e o não se deve pensar que planejamos consertar calçamentos
tempo as duas formas exclusivas da plenitude da vida", de- e casas pelas décadas a virem. Nesse processo, como nos
vendo "a arte ser guiada por essas duas forças básicas". O demais, há períodos de reparações, de lenta preparação
manifesto propugnava pela "incorporação de nossa experi- e acumulação de forças, e período de rápido desenvolvi-
ência do mundo nas formas do espaço e do tempo", como o mento. Assim que um excedente vier depois de as neces-
único fundamento da arte criativa. "Na escultura elimina• sidades mais urgentes e agudas da vida terem sido atendi-
mos a massa (física) como elemento plástico. Todo enge- das, o Estado soviético tomará em mãos o problema de
nheiro sabe que o poder estático e o poder de resistência construções gigantescas, que hão de exprimir conveniente-
de uin objeto não dependem da massa . . . Em Arte nós mente o espírito monumental de nossa época. Tatlin está
libertamos de um erro de mil anos, originário do Egito, indubitavelmente certo em descartar de seu projeto estilos
segundo o qual somente os ritmos estáticos podem ter seus nacionais, esculturas alegóricas ( tudo o que caracterizou a
elementos. Proclamamos que para as percepções de nossos época de dominação staliniana), monogramas modelados,
dias os elementos mais importantes da Arte são os ritmos guirlandas e caudas, e tentar subordinar o desenho total a
cinéticos". Na mesma linha de Pevsner-Gabo, e o revolu- um correto uso construtivo do material. :e, por esse processo
·cionário húngaro Moholy-Nagy lançava com Alfred Ke- que as máquinas, as pontes e mercados cobertos são cons-
meny um manifesto construtivista (Berlim, 1922) no qual, truídos, desde muito tempo. Mas Tatlin tem ainda a provar
propugnando por um "sistema dinâmico-oonstrutívo de que está certo no que parece ser sua invenção pessoal, um
forças'', diziam: "Devemos colocar no lugar do princípio cubo rotativo, uma pirâmide e um cilindro, tudo em vidro.
estático da arte clássica o princípio dinâmico da vida uni- Para bem ou para mal, as circunstâncias Jhe estão dando
versal. Praticamente: em lugar da construção em material tempo bastante para que encontre os argumentos em favor
estático (relações de material e forma) a construção dinâ- de seu projeto".
mica (construtivismo vital e relações de forças) deve ser Eis aí a linguagem nacional, honesta, de um dos
desenvolvida, na qual o material é empregado apenas como grandes construtores do regime, em face dos projetos mai!t

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livres e audaciosos dos seus artistas. Mas tudo mudou de-
pois; a arte dos mais autênticos artistas revolucionários
russos é expulsa, jogada nos porões dos museus e muitos
deles são obrigados a exilar-se ou esconder-se ou capitular
moral e esteticamente diante dos poderes cada mais distantes
e amedrontadores do dia, no ano mesmo em que Trótski
é também expulso da própria Rússia soviética, em 1929.
e transformado num herético tangido de país em país,
até morrer assassinado por um agente de Stálin, no México,
em 1940, às vésperas da invasão da Rússia dos Sovietes,
sua terra e sua obra também, pelas hordas de Hitler.

34. A REVOLUÇÃO NAS ARTES - II


Se a era de· Zdanov foi uma tragédia, a campanha
neozdanovista encetada muito depois, em dezembro de 1962,
não conseguiu chegar à mesma intensidade trágica para
os artistas da primeira investida da polícia das artes de
Stálin. Ela foi provocada pela famosa exposição Manege
de Moscou daquele mês. Nessa exposição, toda dedicada aos
artistas soviéticos em geral, desde os oficiais acadêmicos,
com Gerasinov à frente e Laktionov, o pintor da obra-
-prima de toda a arte oficial, Carta da Frente, que cheguei
a ver no Tetriakov, rodeada ainda de uma multidão de
bobocas a ouvir a explicação detalhada do guia. Este, com
efeito, explicava todos os detalhes da carta, que lia à mulher
e toda a família, enquanto soldado ferido à la Hollywood
era o herói limpo e esplêndido na frente, a lembrar-se
de Stálin na hora de morrer. Mas nessa mesma exposição
figuravam os dissidentes, isto é, pintores de algum talento
como Elkonin, Sterenberg, Konchalovsk, Tyshlar e outros

208 209
nos quais se sentia a influência dos grandes mestres, mo- página, que foi glosada depois em todos os tons. Foi o
dernos ocidentais, como Chagai), Gauguin, ou Matisse. toque de reuriir dos velhos do "realismo socialista". Os
Muitos deles já não pintavam gente, porque interessados na numerosos "liberais" ficaram alarmados e o resultado foi
"alienação das naturezas mortas, (imaginem : uma "Na- a condenação não. somente de Falk, que viveu sempre sob
tureza morta com bananas'' de Kuznetzov, pintor consa- a~eaça, mas ·praticamente de todos ou quase todos bons
grado já em 1912), além do escândalo de um Nu, de outro pmtores da Grande Exposição. Em conseqüência dessa dose
pintor que sobrou da hecatombe, Falk. A propósito deste demasiada de liberalismo é que Kruschev reuniu seu comitê
último, o professor Etiemble, da Sorbonne, então em Mos- central a 8 de março de 1963 para discutir sobre o estado
cou dando curso de Literatura Comparada, escreveu ali cultural da sociedade soviética e a necessidade de uma
mesmo na exposição diante do quadro: "Nada de realismo supervisão mais estrita.
Quando estive em Moscou mais de um ano antes · em
socialista no sentido ordinário. Perfeitamente verdadeiro.
~elo da mesma maneira que os bois esquartejados de Sou- abril de 1961, a mesma incompreensão encontrei da parte
tme. Se eles aceitam isso, têm de aceitar tudo- Aceitaram- do M.inistro da Cultura, e a camarada K. Furstsova, que me
-no há um mês. Vão então ter de aceitar tudo, e a partir negou de pés juntos o envio, com a representação soviética
de agora teremos que contar com a arte soviética". à VI _Bienal de São Paulo de que era o secretário-geral e
O otimista professor da Sorbonne ia ser desmentido orgamzador, de uma coleção dos construtivistas russos
bem cedo. Ele mesmo conta como, na sua biblioteca no então (e ainda boje) guardada nos porões do Tetriako;
trabalho em Moscou, ao abrir um dia L'Humanité fres- em Moscou e do Ermitage, em Leningrado. Em 1946
quinha de Paris, é informado pelo corn!spondente em quando um burocrata da cultura foi visitar Matisse em
Moscou que naquela mostra de 2 000 telas desenhos e Paris, e o convidou a visitar o país dos Sovietes, os qu~dros
esculturas, Nikita soube apreciar as obras q~ ofereciam do mestre ainda estavam também, como os outros da cé-
uma representação exata da vida. E que, segundo o mesmo lebre coleção de impressionistas e pós-impressionistas fran-
correspon~ente, se o Pravda notou os progressos feitos por ceses do Ermitage, escondidos dos olhos do público. Então,
. . . Laktionov (com sua exatidão fotográfica) também segundo a opinião abalizada de Gerassimov, o Meissonnier
notou, desapontado, alguns trabalhos que provocaram do Napoleão-Stálin, os impressionistas não eram mais do
sérias objeções. Em algumas obras de Falk . . . tendências que "um produto da decomposição capitalista". E ainda
formalistas são visíveis. E ademais suas figuras "tomam em fevereiro de 1947, o mesmo senhor assegurava a um
f~rmas monstruosas". Indignado o professor pergunta: Já colaborador do The New Statesman and Nation (8 de
vm essa gente alguma vez uma mulher nua? Uma mulher fevereiro de 1947) que jamais a coleção dos impressionistas
real, dessas que se podem ver num Jeito de hospital ou fr3:nceses seria exposta novamente nas paredes do Ermitage,
na casa mortuária? Dessa realidade que é duro aceitar? poIS aqueles quadros deveriam continuar guardados nos
Mas o correspondente de L'Humanité continua a dar conta porões do museu para evilar que alguém pudesse ser
da exposição e das relações de Kruschev para seus leitores corrompido por eles. Quando, porém, em abril de 1961
parisienses: ''Alguns pintores desprezam a opinião pública; visitei o estupendo museu, vi nas paredes excelentes tel~
mas .se uma obra só pode ser compreendida pelo seu autor, impressionistas (Renoir, Degas) e Matisses extraordiná-
declara Kruschev, se o povo não a reconhece, não pode ser rios. E o Picasso da fase azul. O resto continuava nos po-
considerada uma obra de arte". · rões. A profecia antiimpressionista de Gerassimov assim
não se realizou. Houve uma abertura liberal. Mas como
Por essa ocasião é ·que um grupo de pintores abstratos os acontecimentos de 1962-1963 mostraram, a velha pre-
conseguiu fazer também a sua exposição. Foi a gota que v~nção _?as ai~ esferas burocráticas contra os impressio-
deu o basta no "liberalismo". nistas nao amamara.
Nikita com um séquito de personagens importantes do Com efeito, ainda por essa época dos círculos oficiais
regime não se conteve, diante da tolerância dos organiza- da União dos Artistas, e erguiam-se vozes contra os artistas
dores da grande exposição que permitiram a apresentação fi~ativos ~sos da escola impressionista ou pós-impressio-
ali de .obras de um nível intoleravelmente baixo e o desvio msta; bons pmtores como Falk, eram denunciados porque
moral dos "informais" aos quais acusou de prodtrLir "pin- estranhos à arte soviética, partidários da "arte reacionária
tura alheia ao nosso povo" e tão má que não se podia da América e da França" e inimigos dos verdadeiros artistas,
deixar de perguntar se tinham sido "feitas por uma mão que por seu trabalho ajudam o Partido a edificar o comu-
humana ou lambuzada por um rabo de macaco". O nismo". Indignado por ver todos esses "artistas eméritos"
Pravda e o lzvestia publicaram essa opinião na primeira

210 211
invocarem a autoridade de Wladimir Ilitch para quem todo Frederico Morais, na sua coluna no Diário de Notícias,
artista "deve ter_ completa liberdade para exercer sua ini- informava que, segundo um jornal francês de Arte, um
ciativa pessoal, liberdade de: pensamento e imaginção, de grupo de vanguardistas foi afinal reconhecido oficialmente.
forma e conteúdo", o professor Etiemble opôs àquela gente Trata-se dum grupo que se designa a si mesmo, muito
não a µnin que freqüentava o Café Voltaire, de Zurique, caracteristicamente, de Movimento. Ele retoma as tradições
fraternIZando com os dadaíst_as, em 1916, mas um Lênin da arte construtiva de Tatlin, de Pevsner-Gabo. Para as
fascinado, parado diante de um quadro de um Vaso de comemorações do cinqüentenário da revolução preparam
Flores, numa vitrina na Suíça, e a exclamar nessa ocasião: uma gigantesca demonstração com telas cinematográficas,
"Esta é a época de pintura que exprime a felicidade que esculturas-fogo, estruturas em movimento ( o ·monumento
quero levar ao povo da Rússia''. O espantoso não era a do cubo giratório de Tatlin para sede da Internacional
fascinação de Lênin por uma tela com flores ( o símbolo Comunista não nos vem aqui à memória?), homenagem à
mesmo da arte hedonista), mas o fato de se tratar de Revolução e à Ciência Soviética. "A URSS é pelo cine~
pintura de um dos mais eminentes mestres da "arte rea- tismo'', anuncia-se como o primeiro espetáculo. t! mais
cionária da França", isto é, de Monet. do que evidente que o grupo reassume as idéias de Tatlin
Os vaivéns da política cultural ou da política das artes e do Manifesto construtivista de Pevsner-Gabo. Para os
da burocracia soviéticas revelam apenas a insegurança de vanguardistas russos, segundo o jornal francês citado por
suas próprias posições na estrutura social do Estado dos Morais, ''a pop é a reação, o cinetismo, a revolução".
Sovietes. Ela teme que o desenvolvimento para o progres- Será assim o fio histórico que se partira com o stali·
so e, digamos, para o socialismo escape ao seu controle. · nismo reatado em nome da Revolução, mas também desta
O partido oficial ainda não conseguiu armar-se cultural vez em nome de uma arte não ao nível do gosto e do con-
espiritual, política e moralmente para as novas tarefas d~ sumo do burocrata, mas ao nível de uma nova realidade
uma marcha real, para uma nova cultura que terá de ser que a própria Arte tem por missão criar, de parceria com
nec~s~ariamente socialista. O plano em que se coloca as a Ciência, ou a realidade do socialismo.
pos1çoes que toma, o elenco de idéias de que dispõe mos-
tram ser ela ainda, e sobretudo, uma formação interme-
diária entre a primeira fase da edificação de um sistema
de produção tecnológica numa base pré-socialista, ou me-
lh?r, estatal, buq~uesa, capitalista e uma possível e de-
seJável etapa ultenor na qual todo o sistema de idéias de
necessidades culturais, de conquistas artísticas já nada 'terá
que ver com as preocupações burguesas de acumulação em
todos os campos, econômico, tecnológico, estético, que ca-
racterizou e caracteriza o papel inicial da burocracia na
sociedade soviética. Foi um pouco fundado nessas perspec-
tivas que pude num último encontro com a camarada
Katarina Furstsova, na porta de seu Ministério, fazer-lhe
entre brincando e sério esse desafio: Então não nos manda
a São Paulo os construtivistas russos? Não no-los · quer
dar? Não no-los quer vender? E diante de seu abanar
de cabeça, firmemente negativo, replicar: volto satisfeito
porque teremos pela primeira vez na nossa Bienal Paulista
a presença da União Soviética. Quanto porém, à querela
entre nós sobre os construtivistas, estou tranqüilo dos seus
just~s resultados, certo de que, com o tempo, iria ganhar a
partida, e ela mudar de opinião. Os construtivistas sairiam
do ostracismo.
Eis que agora começam a circular boatos de que
esses mesmos construtivistas vão reaparecer ao público so-
viético. Ainda no fim do mês passado, meu confrade

212 213
35. MUNDO EM CRISE, HOMEM EM CRISE,
ARTE EM CRISE
A extrema complexidade da civilização .moderna não
permite a nenhuma atividade de ordem científica, cultural
ou estética desenrolar-se no isolamento. Ela impõe uma
atividade globalizante em todos os sentidos. A tecnologia
que é condutora de todas as atividades e experiências ope-
racionais é também a · socializadora, por excelência, dessas
atividades. Em grande parte determina também os com-
portamentos e atitudes. Além da sua tendência globalizante,
a época é típica de transformações técnicas e sociais que
se sucedem dia a dià, recondicionando incessantemente a
humanidade em todos ·os campos. Essa cada vez mais ver-
tiginosa sucessão mudancista é de tal ordem e se faz num
tal ritmo que já se cónsidera "a taxa das mudanças técnicas
como a medida. . do homem moderno".
Condições sociais e culturais inteiramente inéditas e
cumulativas acarretam um fenômeno de concentração sobre
o presente de todas as energias criativas, que arran·c a os

215
~ . arquitetoo, projetistas, de um isolacionismo indivi. diverso, num condicionamento sensorial simultâneo, que
dualista em que teimam viver, filhos ainda que são de nos dá uma imagem da realidade de bem mais dimensões
uma tradição essencialmente artesanal. Para vencer a de• que as três em que,. gostosa e preguiçosamente, a humani-
fasagem entre o acúmulo das tranformações tecnológicas dade se havia instalado. O visual vem · sendo cada vez mais
n? pre~nte e o isolacionismo do fundo artesanal, não se separado do verbal discursivo para aliar-se num complexo
ve, ~~Je, ~ut~~ rec11;~ senão em tudo projetar, seja no inextricável ao modo auditivo, e o tempo está chegando em
d~mm10 c1entífl<:,o, tecmco ou estético, em termos ambien- que ao mesmo complexo será agregado o modo olfativo.
tais. A ?,,romoçao ou concepção de um futuro que ''já O novo sistema audiovisual do cinema, da televisão, impõe
está aqw , na tórmula do professor Chermayeff, não se uma reestruturação do sujeito receptivo e fatalmente par-
pode fazer senao através de um esforço de criação de ticipante pelo discurso não mais escrito, mas fílmico. Assim
algo como o seu ambiente. Essa tarefa capital é a \Ínica nesse processo mundial de modernização, que irrompe por
que pod~ ~barcar, em seu todo, as atividades de algum toda parte e por todo o hemisfério subdesenvolvido, através
modo cna!1v:1s de no~a época, como planejamento regio• dos canais da rádio-düusão, do cinema e da televisão, os
nal, urbamsbca, arqmtetura, desenho industrial e as artes homens, observa finalmente Fougeyrollas, são alcançados
desinteressadas, principalmente a escultura e as diversas pelas mensagens fílmicas, antes de saber ler ou escrever.
construções e arranjos de objetos no espaço. Com efeito, mesmo a informação visual se processa, hoje,
O problema decisivo é definir os ambientes; para sobretudo através de úm discurso sensorial no qual o modo
q~e~, para '?nde, e para que ou por quê? Já não é per- tátil, o elemento háptico tem parte indispensável na de-
m1ss1vel contmuar a falar de Escultura ou de Pintura ou cifração da mensagem. Quase já não se pode ver sem
de qualquer outra arte no espaço e no tempo isoladamente. tocar ou sentir. Aí está o _cinema para testemunhar. O
I-:1em mesmo,. ou sobretudo, de Arquitetura. A obra em homem é inundado, dia e noite, por uma verdadeira caco-
s1 de um. artista não pode mais ser examinada .por ela fonia multidimensional que tende a filtrar-se por um fluxo
mesma. J?igamos b~talmente: não é mais a competência plurissensorial para, pouco a pouco, substituir o velho
ou capac~dade do artista em fazê-la ou manipulá-la que so• discurso lógico, abstrato, lido. A humanidade não é mais
bremodo mteressa. Ou é realmente o decisivo. O artista pode separada de um lado pelo homem (burguês) da escrita todo
ser um excelente artesão - no sentido da confecção da virado para o abstrato, o intelectual e o racional e o ho-
obra - e não passar disto. Sua obra apresenta-se solitária mem sem escrita virado para o concreto, o imaginário e
com~ algo abando~ado ou esquecido numa porta de estação. o emocional. E qual é a mais profunda conseqüência dessa
Al?uem pode leva-la para casa como um ready-made. E novíssima indistinção? Como observou ainda Fougeyrollas,
fe}1z. com o s7u achado. Nem mesmo o jardim ou a praça uma extraordinária ressurgência do instintivo, do afetivo, do
pubh~a, as feiras e os grandes espaços urbanos são válidos emocional, do imaginário na sociedade ultramodema. E
em s1 mesmos. Mas é dentro do contexto ambiental que nessa base dá-se também um fato novo, e o fato já se
todas as artes e atividades correlatas podem encontrar 0 havia verificado com o aparecimento da arte abstrata e
mo!lle~to cru~ial ~ de sua integração, quer dizer, de sua sobretudo da informal e do tachismo - os homens de todos
autentica reahzaçao no complexo social. os quadrantes se vêem agora numa situação bem melhor
. Qual .é a ca!!ct:rística fundamental deste complexo que a de seus predecessores, enquadrados ainda que eram
social, dessa amb1enc1a cultural (e tecnológica) que en- pelos meios de comunicações, fundados na hegemonia da
volve o homem de nossas cidades e do nosso tempo? Cons- escrita discursiva e na hegemonia da cultura abstrata racio-
tate-se antes de tudo um fato cultural da maior importância nalista da burguesia ocidental, para compreender e comu-
e alcanc;, em suas imensas implicações; a perda progressiva nicar-se com outras culturas.
da multissecular hegemonia da expressão verbal, da escrita, Concretamente, tenha-se em conta o que uma des-
da palavra sobre qualquer outro meio ou recurso expres- coberta técnica decisiva para o processo unitário - cre~•
sional na civilização ocidental, incluindo nesta todos os cimento e desenvolvimento - vem exercendo sobre a nossa
países da E?TºPª. e as ~éricas. Uma concepção geral vida social e moral. Refiro-me banalmente ao advento da
puramente d1scurs1va numa nnagem do mundo abstrata e eletrônica que é hoje, numa feliz expressão de Chermayeff,
deci~ivamente visual, tem sido a resultante daquela bege• como "um hóspede caseiro". O contato cotidiano com esse
moma. novo hóspede nosso faz o homem sentir de perto a neces-
I?,_esd; o . advento da Teoria da Informação, tomou-se sidade de um novo ambiente, de novas aberturas sensoriais
consc1enc1a de que vivemos, hoje, num condicionamento que vão sendo ainda .vagamente traduzidas por uma aspi•

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raçã_o nova, . ~J?~ora para~oxalmente arcaica, ou uma nos-
nato individual. Mas não. O artesanato é uma rotina ins-
.t~~1a co~um~na. Tudo isso é o que McLuhan definiu na trumental adquirida, ao passo que na apreensão de vivências
1de1a de alçleia global". Nenhuma noção é mais ampla
do que essa de "aldeia global''. (Não é no fundo o senti- se trata de um exercício orgânico de ampliações pluri, supra,
infra-sensoriais para o mundo exterior.
~ento vago dess~ nostalgia .comunitária que move os hip-
pi~s, em seu vagabundeio pelo ,mundo armados de esponta- Os estímulos vindos com os meios de comunicação de
neidade, amor e flores?) Ela so talvez possa abran·ger todos massa, com a linguagem plurissensorial e fílmica, que não
os aspe~tos dessa aspiração do artista moderno em sair se afasta do concreto, têm sido um terrível acelerador das
do seu isolamento ( contra o qual já tanto reclamara Paul energias orgânicas exteriorizàntes do sujeito. No plano psí-
Klee, nos idos de vinte) , em sair da alienação estética quico-tecnológico está uma das chaves para a explicação
mas també~ ou sobretudo moral e social, em que é con: dessa inquieta e quase neurótica obsessão da pesquisa, que
denado a viver pelo condicionamento da civilização bur- domina os artistas mais audazes e criativos da época. Nessa
guesa de produção e consumo de massa. grave encruzilhada em que sé encontra a Arte, o artista é
. A mais penetrante conceituação daquela idéia foi dada excitado por mil solicitações, vindas do mundo-ambiente,
amda por McLuhan quando explica que nela "tudo está cada vez mais amplo, mais· complexo e surpreendente. O
no presente durante todo o tempo, numa escala mais com- mundo exterior, o mundo-ambiente é uma permanente sur-
plexa e mais generalizada, mas de qualquer modo equivalen- presa. A posição do artista de hoje tende, assim, por um
te ao velho meio tribal ambiente". Que caracterizaria, por estranho retorno, a equiparar-se à do artista das cavernas
sua .~ez, esse velho meio ambi~te tribal? O fato de ser do paleolítico, espicaçado, dia e noite, sensorial e magica-
familiar, a todos os membros da tribo,. os quais, sem ter mente, pelas formidáveis excitações do seu mundo-ambiente,
de se referir ao mesmo, sem ter talvez consciência clara do mundo lá fora dos bisões, das renas, dos bovídeos, da
dele, ~savam_ de todos os sentidos, em sua plenitude, de natureza, enfim, permanentemente misteriosa, atuante, aní-
manha à nmte, como condição sine qua non de interco- mica como o Grande Ser, mas onde o artista-caçador tinha
municação e sobrevivência. A idéia de McLuhan se vai de ir buscar as principais fontes de sua sobrevivência e de
revelando :ada vez com · maior acuidade na decifração do sua tecnologia. No mundo aberto de hoje, trata-se, ainda,
contemporaneo, em todos os planos da convivência social e no fundo, de absorver, de abarcar campos cada vez mais
à convivência estética, da Arquitetura às Artes em geral. vastos, na apreensão sensorial, e também substantiva, do
Por ela se pode conceber a superação da crise dispersiva mundo ou do universo, o que, afinal, desde a arte das
. dos gêneros de Arte, que vinham prevalecendo até aqui cavernas, foi sempre a grande missão civilizadora da Arte.
por gerações e gerações, e cuja dispersão é precisamente Quando Abraham Moles definiu os nossos sólios per-
o traço a assinalar com mais força e impasse mesmo da ceptivos atuais como a "espessura do presente", quis, com
Arte em geral, na sociedade de consumo de massa do isso, traçar-lhes os limites, mostrando, porém, que não fo-
mundo capitalista ocidental. ram dados para sempre. São permanentemente mutáveis, co-
· As artes no espaço vêem dia a dia que o seu reper- mo os recordes olímpicos. Isso talvez indique que uma idéia,
tório se vai ampliando independente da vontade de seus simplesmente discursiva, embora "no ar'', dificilmente po-
criadores. ll o caso típico da velha escultura que, sem mais deria comover uma pesquisa no campo estético ou específico
o arrimo do muro catedralesco ou de pedestais bombás- de qualquer arte. Pesquisa que não for assim orientada,
ticos em praças públicas ou ângulos de palácios burocrá- no sentido de alargamento desses sólios, em qualquer cam-
ticos para apologia dos poderes públicos, de senhores mag- po, do infra ao extra-sensorial, não terá caráter ou catego-
natas ou generais emedalhados, se vira para apreender os ria de inovadora. Poderá, é claro, ser ainda interessante, no.
espaços vazios, para incorporar a si o movimento e a . sentido tradicional, poderá ser esteticamente gratuita, no
chusma dos novos materiais e . de todos os veículos de sentido formal, ou redundante, no sentido social. Neste últi-
comunicação. (Daí a voga dos objetos, ou das ••caixas" mo sentido, que é o que mais se aproxima do discursivo, a
que no Brasil ficaram, de repente, em moda.) O fenômeno redundância na informação é o elemento valorizante, por
é mais importante no campo do óptico, dos jogos cromá- excelência. Nenhuma dessas pesquisas, porém, por mais
ticos e auditivos, graças à colabor·ação cada vez mais cons- qualitativamente válidas que sejam, se poderá classificar co-
tante e indispensável .da eletrônica e no campo da apreen- mo abertura cultural nova. Quando idealista ou discursiva,
são de vivências sensoriais as mais múltiplas e sutis. Poder- poderá ser inteligente; não poderá, contudo, ambicionar
se-ia pensar que neste último imperaria o simples artesa- contribuir para que a Arte, no seu fazer de hoje, acompanhe
as inovações tecnológicas e ambientais. Ou, mais decisiva-
218
219
mente, ainda, acompanhe as mutações, bastante graves, por
que está passando o próprio homem. Perdido, com efeito,
o contato com a nossa velha madre natureza, esse homem
vive em um mundo cada vez menos natural, ou cada vez
mais artificial, quer dizer, em "naturezas" de 2.0 e 3.º graus,
onde sujeitos como nós já se aprontam a viver com cora-
ções !ransplanta?os, ou, como os primeiros argonautas, já
expenmentam viver sem a linha da terra ou da gravidade
por baixo dos pés. O homem é recondicionado, isto é, mu-
da; sua arte também mudará, sob pena de chegar ao fim.
0!1 m~lhor, transm'!dar-se, de um modo imprevisível, para
nos, amda menos bipedes.

36. ARTE DOS CADUCEUS, ARTE NEGRA,


. ARTISTAS DE HOJE
Um dos traços mais marcantes da Arte nos povos de
culturas primitivas foi descoberto ou assinalado pelo emi-
nente mestre da Antropologia moderna, F , Boas, quando
descreveu, .com minúcia, o deslocamento dos corpos e dos
rostos na arte das tribos norte-americanas da costa no-
roeste. Os órgãos e os próprios membros do corpo, objeto
da composição e do desenho do artista triba], são recor-
tados em obediência a uma certa lei. Através desses re-
cortes e desdobramentos, o indivíduo é reconstruído de um
modo ao mesmo tempo arbitrário e simétrico.
De.ssa observação de Boas é que partiu Lévi-Strauss
para fundar sua análise da arte dos povos primitivos no
princípio . do desdobramento das representações. Quando,
com efeito, Strauss estudou a cultura de alguns de nossos
grupos indigenas em regressão, teve ocasião de, numa aná-
lise penetrante, verificar ser a arte dos caduceus obediente
ao mesmo princípio do desdobramento das representações.

220 221
Os caduceus levam o deslocamento da figura mais longe e decorativa, modificadora das relações sociais e das servi-
menos longe que o observado nas pesquisas de Boas. A ra- dões da realidade, continua presente, continua a exercer-se.
zão principal do fato é simples: o artista caduceu opera Tal função é, hoje, talvez, o elemento que mais fas-
sobre um corpo e um rosto em carne e osso o que toma cina a sensibilidade dos meios artísticos contemporâneos.
impossível ~rell?- de~~D?-postos e recompostos,' a menos que Ao início do século, quando artistas individuais como um
por uma cirurgia dificilmente concebível. O rosto (tatua- Matisse ou Picasso, em Paris, ou um Mark, em Dresden, na
~º) , porém, se tem sua integridade respeitada, nem por isso Alemanha, tiveram a revelação da arte negra, não foi nos
e menos deslocado pela assimetria sistemática do desenho museus de Arte ou galerias de Arte, onde não havia lugar
cuja função principal seria violar a harmonia habitual par~ para ela. Foi nas lojas de exotismo ou em alguns museus de
substituí-la por outra harmonia, · a harmonia artificial da História Natural que só então se abriam. O que os aba-
pintura. Strauss tira daí uma conclusão capital: essa pintura, lou foi a vitalidade plástica, a beleza formal daquelas ima-
em lugar de representar a imagem de um rosto deformado, gens, daqueles fetiches negros ali expostos como curiosi-
deform~, efetivamente, um rosto verdadeiro. E por isso ele dade exótica, extraídos de seu contexto cultural natural, na-
pode dizer que na arte dos caduceus o princípio do deslo- tivo, onde exerciam uma função social e coletiva perene,
camento vai mais longe que na arte da costa noroeste da tocados de uma significação sagrada.
América do Norte. O cubismo nasceu das costelas desses fetiches (Les
A observação straussiana nos permite um momento de Demoiselles d'Avignon, de Picasso) e, como ele, as figuras
reflexão para marcar a diferença e, simultaneamente a ana- obscuras talhadas em madeira ou marfim dos negros qa
logia do espírito da arte dessas culturas primitivas' com o Costa do Marfim e da Costa do Ouro, do Daomé e do Be-
da arte que se veio caracterizando em nosso século como nino foram subitamente elevadas à categoria de arte de
''arte moderna''. Apesar de todo o seu empenho em fugir uma grande escultura capaz de rivalizar com a escultura
a _uma _arte de representação, o cubismo, mesmo picassiano, das melhores épocas, como a estatuária grega e renas-
nao de1Xou de ser, na deformação da imagem ou ela figura, centista.
uma aT!e de represe~tação. Na arte dos caduceus, porém, Hoje, as artes das culturas primitivas, mesmo modestís-
o que e _deformado e uma imagem dada, a matéria dada, simas, como a dos modestíssimos caduceus, exercem fascí-
ou a realidade. A arte picassiana é apenas. uma deformação nio sobre a sensibilidade moderna pelo que significavam,
da representação da realidade. A diferença é fundamental. pela ação que exerciam, pelo comportamento coletivo que
. Do!s ingredientes entram na arte dos caduceus, em par- impunham à sociedade de onde brotavam- Nessa diferença
tes iguais: um elemento decorativo e um elemento de sa- de atitude do artista de hoje com a dos Derains e Matisses
dismo. ~ conj?~ação desses dois elementos criou UlÍla força do começo do século está toda a diferença que vai da arte
de atraçao erohcf. e extremament_e poderosa, de parte das de então, da arte cubista · de um Picasso ou da arte abs-
mulheres caduce1as, segundo mformação do próprio trata de um Mondrian, à arte pós-moderna, popista ambien-
tal ou de um Oldenburg ou um Segall, cinética com um
Strauss, . sobre os buscadores de aventura das margens do Le Pare ou Schoffer, ambiental participante com uma Lígia
Paraguai. O gosto do ornamental e decorativo que assinala
o homem das culturas primitivas (gosto que se nota também Clark ou Hélio Oiticica.
em certas famílias de animais), é a vontade de modificar a A arte negra continua a valer para nós com todas as
suas eminentes qualidades estéticas e formais. Mas o que o
ordem natu!al, alt~r~ ? ambiente em que está mergulhado, artista de hoje procura é uma equivalência entre a sua ati-
de modo ativo e dmam1co. O macho atrai a fêmea, ou vice- tude, seu trabalho, e a atitude e o trabalho do artista
-versa, pe_lo ornamento, enquanto o artífice-artista-produtor negro ou do artista caduceu, nos seus respectivos contextos
altera a imagem dos ambientes naturais cria a estrutura
dos objetos. ' sociais.
Na realidade o que torna os artistas de hoje - refi-
_ A arte. dessas ~u!turas não é uma arte de contempla- ro-me aos mais exigentes, aos mais profundos - nostálgi-
çao, mas ativa, participante, coletiva, e não substitui nada cos, no seu isolamento cultural e espiritual, é a ausência
em n~nhuma de suas manifes!ações. Não é representação de de ressonâncias culturais coletivas acima do apelo estético
~a unagem, mesma da realidade, porque é a própria rea- de sua obra. Esta não consegue vencer o isolamento, alcan-
lidade, ou uma das fontes de recriação dessa realidade. Na çar o coletivo e o mítico, .através do campo solitário do
arte de um grupo já tão desgarrado e decadente, como o gosto individual, cujo pólo contrário, mas ainda assim per-
dos caduceus, no Brasil, sua função dinâmica, erótica e tencente ao mesmo sistema, é o gosto da moda. Também

222 223
caprichoso, também de momento, subordinado que é à fun- ou melhor, o décor é que o cria. O desdobramento da re-
ção desregradora da publicidade, ou à sua congênita dis- presentação figural tem que se dar em qualquer situação,
-função cultural. Quando os fauvistas, expressionistas e pré- ou, como diríamos nós, com qualquer suporte. Este é ne-
cubistas descobriram a arte negra, embora nada soubessem gado pelo artista indígena. Uma caixa de um artista da
da cultura negra, não o fizeram, como alguns sociólogos, costa noroeste não é apenas um recipiente decorado de uma
antropólogos e naturalistas distraídos ou pedantes pensaram, imagem animal ou esculpida, mas o próprio animal que
pelo seu lado "exótico, bárbaro ou escandaloso", mas por guarda ativamente os ornamentos cerimoniais que lhe são
suas intrínsecas qualidades formais, sua estrutura hierarqui- confiados. Assim, se a estrutura modifica o décor, este é
zada em face de uma escultura deliqüescente, amorfa, des- que é a causa final daquela, fatalmente adaptada às exi-
fibrada, naturalista ou naturalizante, puro amálgama de gências dele. Disto resulta, segundo Strauss, estarmos sem-
massas ou teatralidade convencional que então dominava pre diante dum "utensílio-ornamento", dum objeto animal
os centros artísticos mais eminentes da Europa. ou de uma "caixa-que-fala''.
Contra os preconceitos acadêmicos de então, dos his- O artista primitivo cria um objeto "que participa". O
toriadores de arte ruditíssimos aos críticos mais festejados, artista de hoje, com algo de um desespero dentro dele,
tiveram razão os jovens artistas ainda ignorados da época. chama os outros a que dêem participação ao seu objeto.
Michel Leiris, num livro denso sobre o sentimento estético
nos negros africanos, tentando diferenciar a atitude negra
da atitude européia no plano estético, conclui que os oci-
dentais julgariam o belo como individualista, segundo cri-
térios individuais, enquanto os negros da África, seres es-
sencia~mente sociais, não julgam. Ao invés de julgamento,
que mnguém lhes pede, o que fazem é verificar a parti- ·
cipação do objeto. Tal verificação só pode ser -feita em
nome de uma tradição, que se compõe de regras arte-
sanais, de regras litúrgicas ou plásticas historicamente fi-
xadas, pela coletividade social, pelo grupo. :e assim que, no
contexto cultural deles, o que sobretudo interessa é a par-
ticipação do objeto.
Procurando encontrar o elemento fundamental que
tanto na arte da costa noroeste como na arte guaicuru e
maiori e mesmo da China arcaica explicaria a continuidade
e a rigidez com que o processo do desdobramento da re-
presentação ( que seria função de uma teoria sociológica do
desdobramento da personalidade) é aplicado, Strauss o en-
contra nunia relação muito particular entre o elemento grá-
fico e o elemento plástico. Longe de independentes, estes
seriam ligados por uma relação ambivalente, quer dizer,
uma relação de oposição e uma relação funcional. Quanto
ao funcional, o objeto é sempre concebido sob um duplo
aspecto plástico e gráfico: o vaso, a -caixa, o muro não são
objetos independentes nem preexistentes, que se trata de
decorar, a posteriori. S que estes objetos s6 adquirem exl.s-
tência definitiva quando o decorativo ( a ação do artista
sobre a coisa; pode ser um rosto real, ou uma estrutura
por assim dizer ainda implícita) e a função utilitária se
integram. Quando a artista caducéia pinta sobre um rosto,
o décor cria o rosto. Para ela, o próprio papel não é uma
superfície plana qualquer, para que desenhe ou pinte, é
uma figura. No pensamento indígena o décor é o rosto,

224 225
37. DA ARTE LEIGA À DESMISTIFICAÇÃO
CULTURAL
Os estudos antropológicos modernos tiveram _relevan-
te papel na desmistificação do homem branco (o explorador,
o padre, o imperialista, nessa ordem, precisamente) que ao
penetrar na África, Ásia, Polinésia, Austrália, América do
Norte e América do Sul, descobriu a inferioridade mental
e moral do "selvagem'', invariavelmente negro ou amarelo,
morador dessas paragens. (Curioso: ainda hoje, essas re-
giões constituem, em sua grande maioria, o nosso atualíssi-
mo "terceiro mundo'', o mundo subdesenvolvido, na se-
mântica moderna.) Primeiramente, o próprio inventor da
teoria da "mentalidade pré-lógica" característica dos povos
ditos primitivos, Lévy Bruhl, ao fim da carreira, nobremen-
te, em face de novas investigações, reconheceu a falácia de
sua descoberta. Desde F. Boas, pelo menos, que se sabe que
o "selvagem", o primitivo _tem um aparelho mental igual ao
nosso, reage em face do meio natural de modo experi-

227
mental e racional como o homem das civilizações mais poraneidade. Desta erguer-se-ia um monumento novo, ou
adiantadas, e dele tira a melhor técnica instrumental para "desinteressado", o Monumento das Belas-Artes. A Arte
viver, sobreviver e conviver, socialmente. Não em vão são muda então de natureza, de rumo e . . . de função, passan-
artesãos admiráveis, poetas, filósofos, curandeiros estu- do a ser um movimento essencial e progressivamente leigo~
pendos etc. Forjava-se com isso um novo mito para a grande civiliza-
Os próprios mitos e ritos que estruturam essas cultu- ção burguesa que começava, - o da beleza pura e su-
ras primitivas não são criações puramente fantàsiosas, "obra prema, para o qual logo se institucionalizou uma nova or-
de uma função fabuladora" que, não se fundando em qual- dem sacerdotal, cuja função precípua seria badalar-lhe a
quer realidade, ao contrário deliberadamente a desconhece inacessibilidade de seus valores, de suas v.irtudes! A Acade-
e/ou "lhe vira as costas". Nada disso, mostra Lévi-Strauss; mia de Belas-Artes.
"mitos e ritos'' têm outra função muito mais importante Instituiu-se, primeiramente, o padrão insuperável da
e fecunda que consiste "em preservar até nossa época", em- beleza feminina num torso de braços quebrados, encontrado
bora "sob uma forma residual, modos de observação e re- nas ruínas de um centro cultural provinciano grego, a ilha
flexões exatamente adaptados a descobertas autorizadas pela de Milo, já da época helenística, em plena decadênci~. ~
natureza". E esses modos permanecem. E exatamente por- Vênus de Milo, de torso bem plasmado, cabeça ins1g01-
que fundados naquela inapelável "autoridade" é que, ''a ficante e face estúpida, cretinizou eruditos, historiadores de
partir de uma organização e exploração especulativas do arte, intelectuais, príncipes, ricos homens, aristocratas e crí-
mundo sensível em termos do sensível'', seus resultados "per- ticos durante séculos e ainda hoje, embora apressadamen-
duram há dez mil anos e continuam a ser o substrato de te, µnpelem-se multidões a desfilarem diante dela no Lou-
nossa civilização". O processo sensível e intuitivo da obser- vre. Já que estamos, como se diz algo vulgarmente, com a
vação, que é o seu, dá ao pensamento mítico e aos ritos mão na massa, lembremos outro caso paralelo de ins-
que lhe definem as coordenadas mágico-estética1, sua incoer- titucionalização de mais um padrão supremo de beleza. Re-
cível coexistência espácio-temporal com as sucessivas ci- firo-me agora a outra figura feminina, o retrato de uma
vilizações históricas. A Arte, que é outro modo de conheci- dama ilustre de Florença, por Leonardo da Vinci. De_sta
mento intuitivo, nasceu e viveu desse processo. O leito de vez, foi o rosto inteligente, aristocrático da dama que im-
suas manifestações foi sempre o mesmo dos ritos sagrados pressionou o artista. De novo toneladas de livro~ com su-
e mitos que constituem o arcabouço social cultural das co- blimidades e cretinices de toda ordem foram escntos sobre
munidades primitivas. No correr das idades, nunca a cria- o sorriso enigmático da senhora retratada. A Mona Lisa foi
ção artística transbordou dele que lhe serviu sempre de tal- deificada, e nenhum burguês progressista ou intelectual po-
vegue direcional e necessário. deria ouvir falar na Gioconda sem, fora de si, cair em
Algo aconteceu, entretanto, na passagem de uma de êxtase. Porém, um dia, nos idos vinte deste século, um pu-
suas épocas históricas, quando o talvegue se perdeu, ou nhado de homens, de artistas, apareceu, levantando sobre
foi obstruído. O processo de obstrução começou a se dar, todas as cabeças a bandeira de desmistificação cultural. Fo-
digamos, a partir do Renascimento. Tentou-se criar, então, ram os dadaístas. Um descendente deles cometeu então o
para a edificação artística, novos alicerces. Uma situação grande sacrilégio de nos apresentar uma cópia da Gioconda
i_nteiramente inédita se formou. Aquela edificação não será com bastas bigodes de mosqueteiro. Mais profundamente
mais resultante no fluxo do tempo das construções míticas do que a paranóia dirigida de Dali, Marcel Duchamp apa-
e rituais que, sob forma residual, vieram se perpetuando nhava um objeto qualquer e o elevava à categoria de obra
até a época moderna, e cujo segredo de permanência con- de arte. Foram os ready-made, que lançados em 1910 ainda
sistia em guardar dentro de si como construções imemoriais são colhidos por aí.
todo um sistema de observações e reflexão que, não sendo Os grandes sacerdotes da cultura têm de ensinar ao
derivado de mera função fabuladora, impermeável à rea- povo o que é bom e o que não é bom; e também, o que é
lidade, contou sempre para instaurar-se com a chancela pri- belo e o que não é belo. Ao contrário - já temia Ernest
mordial da natureza. Renan para os fins do século passado - Caliban poderia
Os novos alicerces da edificação artística foram lança- sair de seu canto obscuro e virar a mesa das iguarias, onde
dos num terreno ou contexto espácio-temporal adrede pre- melhor se podem admirar a Vênus de Milo e a Gioconda.
parado, quer dizer, já construção artificial, idealizada quase Ainda na alta Renascença o povo iletrado era instruído nos
que sob um modelo platônico de "república'', ou a praça mistérios . da religião católica pelos afrescos das catedrais
concebida em abstrato. Chamemo-la a Praça da Contem- e igrejas que contavam, numa linguagem transida de fé, epi-

228 229
sódios da vida de Cristo ou das Santas Escrituras. Alguma
coisa ainda de sagrado inspirava aqueles afresquistas, do
me$mO modo que, ao tempo das catedrais góticas, era ainda
a sua edificação verdadeiro ato de fé coletiva. Os seus cons-
trutores, arquitetos, pedreiros, artesãos, plebeus estavam .ali
não como artistas, mas como participantes na mesma ceri-
mônia sagrada.
A medida que· a dessacralização da Arte se acentuava,
nessa mesma medida a nova sociedade burguesa ia impondo
uma série de valores leigos para acomodar a Arte à nova
cultura, à sua cultura. Da derrocada de valores que se vem
dando inexoravelmente desde então, um veio sobrando
para ficar pairando no ar até o nosso século; o famoso ideal
de beleza. No entanto, desde sobretudo Dadã, que esse pró-
. prio passou a ser posto em xeque cada vez mais seria-
mente, e até rechaçado de setor em setor. O pop e o op
vieram pará lhe dar as últimas cutiladas. O advento, porém,
dos grandes meios de comunicação de massa veio oferecer
aos poderes vigentes da sociedade novos instrumentos para
"edificar" Caliban, para obrigã-Io a continuar a digerir e a
ruminar esses sublimes valores, hoje cada vez mais mesclados
de ideologia.
A publicidade, com efeito, apodera-se desses moder-
níssimos instrumentos para preservar junto às massas o pres-
tígio daquelas divindades. O objeto belo da chamada (pelos
franceses) estética industrial não garante, contudo, por si
mesmo, a sua aceitação pelo povo. Diante do impasse, uma
nova técnica "estética" surgiu para vencer o impasse. Foi
o styling que acabou por demonstrar, segundo as fórmulas 38. DO PORCO EMPALHADO OU OS CRI'ffiRIOS
de Raymond Loew, que o objeto feio se vende mal, é tam- DA CRITICA
bém inútil ao objeto ser belo, se se ignora que o é. Daí
surgiu, como uma necessidade inelutãvel, o papel da pu- A época contemporânea tem sido particularmente fér-
blicidade em convencer a massa que o objeto é belo. E til em mudanças de critérios críticos, em mudanças de va-
aí estã, em sua redução final, a sobrevivência da arte leiga lores, em face das mudanças sucessivas de escolas, estilos,
que se veio desenvolvendo desde o Renascimento, até trans- movimentos. Vejam: muitos dos nosso_s mestres e co':1frades
formar-se nessa última modalidade de consumo da nossa mais ilustres, por exemplo, de um L1onello Ventun a um
cultura burguesa. Paul Fierens, o primeiro presidente . que teve a nossa
A.I.C.A., ambos mortos, e muitos outros ainda nos princi-
pais países europeus,, i?icia!am-se na "c!ê~cia", n~ •:arte"
ou na "técnica'' da cnbca amda com o pos-1IDpress1omsmo,
e, sem tempo de tomar fôlego, ei-los diante _do "escândalo''
do expressionismo ou do "desa[io" do fauv!smo . Mas logo
tiveram que se haver co~ o cubismo, o futunsmo, o constf']--
tivismo. O grande público - o grand_e? 9-ual _nada, '! p_u-
blico ilustrado - apenas começava a d1genr o 1mpress1oms-
mo primeiríssimo, o de Manet, que jã nã? é para a se~-
sibilidade de hoje impressionista e, em seguida, o de Renoir
das lindas senhoras e das lindas crianças, nos belos parques

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230
com belos vestidos, e o de Degas, das bailarinas. Cézanne que nega o cubismo, ao passo que, no pólo oposto, o neo-
ainda era um ermitão discutido, temido ou ridicularizado, plasticismo de Mondrian, levando o cubismo às suas últi-
enquanto que Manet só para o meio século é realmente mas conclusões plásticas, se propõe superá-lo no seu pró-
tirado da penumbra. O tachismo, o informal, descobriram prio terreno.
nele o primeiro dos abstracionistas. O crítico -planteia-se nesse tropel de movimentos, como
· Para avaliar-se bem do caleidoscópio art[stico que ia o outro lado inevitável do artista; seria a consciência in-
pela Europa, em torno de Paris, efetivamente, então, o cen- volun~ária, ou não reprimida deste. Sua função, cada vez
tro do mundo das Artes, basta atentar-se para o fato de mais incômoda, o leva ou a assumir deliberadamente um
que Seurat e Gauguin, ou Cézanne, ainda não eram acei- papel partidário, ativo de um ismo ou a ser, de mais a
tos, e já amadores e críticos vanguardistas esbarravam com niais, uma alma dilacerada que, por dever de universalidade,
o grupo, logo batizado das feras (Les Fauves), no Salão testemunha impávida e viva de seu tempo, tem de relacio-
de Outono, de 1905, onde Manet ainda tinha as honras de nar os pólos, descobrir-lhes a estrutura comum em que se
uma importante retrospectiva. Na sala das "feras", lá esta- colocam, e dar sobre eles o depoimento de sua presença,
vam Matisse e Derain, que pegava de um tubo fresco de que encerra ou deve encerrar os critérios de juízo que são
tinta e o descarregava na tela, como um cartucho· Wla- os seus. Cada artista faz, uma vez, sua revolução, mas o
minck, o brutamontes bonachão que pintava a mãos' cheias crítico é a testemunha sem repouso de cada revolução. Um
suas paisagens. . episódio revolucionário após outro perfaz, numa só época,
Antes do cinema, uma nouvelle vague, após outra, inun- um processo. O papel do crítico é definir em sua totalitla-
dou as praias das Artes Plásticas, desde o começo do século de esse processo, ou o processo de uma só revolução mas
até hoje; a tendência tem sido para essas vagas se precipi- em permanência. O crítico, pelo estudo · e conhecimento
tarem sobre nós, em tropel. (Na base dessa verificação desse processo é o único a saber que tudo é uma só revo-
estético-histórico-sociológica é que falei numa "lei de ace- lução. Ora, com efeito, a revolução permanente é o único
leramento dos ismos", à medida que se avançava para o úl- conceito que abarca de um modo mais geral e profundo a
timo quartel do século.) Com efeito; nem bem o fauvismo nossa época. O crítico vive, pois, em revolução permanente.
é, não direi domesticado ou digerido, mas apenas constado, Victor Hugo definira uma vez o poeta ( ou ele mesmo)
e canhestramente definido, que a vaga mais alta se desfaz como aquele que Deus colocara ''no centro de tudo, como
sobre Paris. :É, com a revelação da arte negra, a chegada um eco sonoro". Se não fosse a ênfase hugoana,. que torna-
dos jacobinos da Revolução: os cubistas. Picasso abala o ria grandiloqüente demais a comparação, quando medida
mundo das Artes com uma verdadeira explosão revolucio- pelo modesto estalão de nossas funções, seria capaz de lan-
nária, Les Demoiselles á Avignon. Através dos escombros çar mão dela para definir a posição da crítica. Mas, então,
produzidos pela explosão, verifica-se - a gente está atôni- ao invés de ser o "eco sonoro" no centro de tudo, diria ser
ta - como muitos dos valores-tabus estão por terra: a uma espécie de grilo chato que não pára, num canto da
perspectiva aérea, a luz atmosférica, os jogos ópticos de sala grande social, de dar sinal de sua presença, testemu-
luz,· a fusão cromática na retina, a pasta-argamassa, a pro- nhando que a noite chega mas é sempre verão.
fundeza figural, os tons altos. O impressionismo, enfim, A revolução prossegue, e da Alemanha e da Rússia sur-
está enterrado. Aos olhos das novas vagas, ele aparece como gem, respectivamente, com o Blau Reiter, o abstracionismo
uma arte da pequena burguesia, à cata de prazeres senso- antiobjetai .de Kandinsky, e com Malevitch, que proclama,
riais não muito caros e inocentes. num despojamento total já a prenunciar as apreensões in-
· Paul Valéry, alarmado em face do cubismo, quer sa- fra-sensoriais ulteriores, "a sensibilidade da ausência do ob-
ber como de então por diante se vai distinguir um artista jeto", o suprematismo, e coni Tatlin, Pevsner. Gabo, que se .
do outro, um Braque de um Picasso, quando tódos geome- propõe já o cinetismo, e a projeção com Moholy-Nagy, a
trizam sua paisagem, anulam as perspectivas, planificam os síntese construtivista. Nesse processo que _envolve a Europa
volumes, "analisam'' os retratos, terrificam os tons. Depois inteira, do Atlântico aos Urais, no fluxo incessante dos is- ·
da revolução cubista, o tropel das vagas não cessou. Ao sul mos, o crítico tem assim de conservar a cabeça acima da
e a leste, já haviam soado ou soavam os clarins do fu. corrente. A cada momento tem de acompanhar o artista nas
turismo e do construtivismo. A guerra vem, e antes mesmo suas investigações, na sua inquietude criadora, mas tem adi-
de acabar estalam as baterias do dadaísmo, contra todos os cionalmente de se esforçar por, a cada momento, saber não
valores até então proclamados. Surge; a seguir, a revolta só captá-las, mas colocá-las em situação. Mesmo quando ·
total, poética, antiplástica, moral e política do surrealismo, combate por uma idéia, por um movimento, a unilaterali-

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d~de do artista, inere':1te, natural à personalidade do ~ista, ou melhor, de seu indiferentismo plurissensorial e corpóreo,
n~o pod~ ser ,sua; p01s. que~ para explicar, defender, sitiaar, de seu neutralismo moral e cultural. No fundo de todo esse
hierar<!mzar, ~ _sua obng~çao ver também de outros ângu- movimento antiarte o que jaz por baixo é uma sagrada nos-
los.A ~ do critico que nao reconhece os valores plásticos talgia dos artistas por uma sociedade em que fossem tão in-
autenticos onde se encontrem, em qualquer movime.nto; ou tegrados, tão imprescindível a sua vida coletiva como nas'
que d~s:,onhece outros valores, como os poéticos, por exem- sociedades de culturas primitivas, de comunidade social au-
plo; dirao que sua gama de apreensão é em escala reduzi- têntica, o eram à sua sobrevivência, à preservação de seus
da; o mesmo dirá do que passar intocado por documentos de ritos sagrados e mitos, os êmulos dos artistas marginaliza-
v:Üo~es estéJicós ~ais elementares, como no artista primá- dos de hoje, seus tanoeiros e caçadores, costeiros e trança-
no, inconsciente, ingênuo ou de evidente primitividade num dores, oleiros e tatuadores, dançarinos e construtores, fa-
completo isolamento cultural. ' zedores de coisas do cotidiano, de coisas do sagrado. Nada
_l!m crític~ de a~e, hoje em di~, me, dizia um eminente diz, entretanto, que a partida esteja ganha para a família
critico franc~, rr~c1sa ~r um enc1clopedico, conhecer não dos artistas atuais. Por enquanto eles se acham ainda na,
somente as disciplinas diretamente relacionadas ao métier fase de desmistificação cultural e estética, iniciada meio in-
~as ser versado ou pelo menos lido em qualquer das Ciên: conscientemente, marginalmente, pelo punhado de dadaístas
c1_as H~manas e em Ma~e~ática, sem falar, é claro, . em no começo do século. Não é por acaso que ao mesmo tempo
1:ilo~fia. Com o a~st~aciomsmo em suas múltiplas rami- que os artistas vanguardeiros de hoje, conscientes, parte ativa
ficaçoes1 ~esde a ma10na do concretismo, novas disciplinas, da juventude do mundo sai por aí em grupo de beatniks,
mod~~issimas, for~ chamadas a campo, da Semântica à hippies e não sei mais quê, numa ação coletiva, no ÍUIIdo
Semiótica, da Teoria da Informação à Cibernética. Uma paralela de desmistificação moral.
bus5a ávida. ~e significação passou a superar a busca até É nesse contexto que vem um jovem artista paulista de
entao exclus1V1sta dos valores expressivos. Quis-se, acima de talento, duma família aliás de artistas, para interpelar o
tudo, desvendar o que era o abstracionismo. Decifrar-lhe as Júri do Salão de Brasília, em carta publicada em jornal, so-
mensagens. Mas havia um "mas" que reunia todos os ismos bre o critério que o levou a aceitar sua ''obra" Porco Em-
precedentes num mesmo estruturamento, se não no mesmo palhado, que mandou com outro um cepo de madeira, sob
p~ocesso. Era a obra única, privilegiada, do artista, do su- a designação genérica algo escolástica de "matéria e forma".
Jeito. O supremo valor que era necessário ajuizar estava ou Esperava Nelson Leirner que o Júri a tivesse recusado?
era a obr~ de arte em si. Uma linguagem extremamente apu- Porque não tinha valor plástico? Porque não era "uma obra
~ada havia se formado no curso do século para definir, de arte"? Porque não fora "criada" ou não tinha origina-
isolar, exaltar os valores plásticos, expressivos, estéticos su- lidade? Mas se se trata de um ''porco empalhado'', al-
premos encerrados em cada obra, em cada movimento. guém o empalhou. Empalhar animais é uma arte reconhe-
. Esse vocabulári<;>, instrumento maior da crítica, porém, cida e apreciada, a taxidermia. É também Nelson perito
ve10 entrando em cnse desde o concretismo, e dissolveu-se nela? Mas se ele apenas comprou o porco empalhado en-
com o advento da pop'art e cinetismo. Os supremos valores gradado e mandou a Brasília, a obra cai na categoria dos
plásticos são agora relativizados. A obra de arte em si ready-made à la Duchamp. Quereria o jovem artista que o
mesm~ _perde sua unicidade e pretensão à eternidade. Os Júri fosse negar validez (ainda reconhecendo seus preceden-
materiais com que passa a ser feita não têm mais tampouco tes) a essa proposição, uma das mais ricas de conseqüên-
a velha no~reza do mármore ou do bronze ou do óleo, que cias, que se bolaram desde Dadá, no mesmo contexto de
pretende fixar-se para sempre. Os gêneros tradicionais da desmistificação cultural e estética? Se, porém, a objeção la-
~scul~ura e Pintura são negados. Os materiais mais precá- tente é quanto à originalidade da obra, não entenderia Leir-
rios sao usados pelos artistas; não perduram, mas são reno- ner o que está fazendo? Então que me deixe reportar a
vávejs_. A _Prete~são à originalidade se perde; a ojeriza aris- algo de muito curioso que sucedeu com uma mostra in-
tocratica a cópia acabou. (As técnicas de reprodução cada dividual de Andy Warhol, numa galeria de Toronto Ca-
vez mais_ aperfeiçoadas vão sendo avidamente procuradas nadá, em março de 1965. Warhol, que é um dos prota-
pelos ~rhst~s, no ÍUIIdo para que sua obra esteja ao alcance gonistas do pop, naquela época se apropriava de séries de
de mais coisas.) objetos de uso comercial, e os arrumava em exposição.
Os artistas querem sobretudo sair do isolamento social Quando chegaram ali as caixas de papelão e latas com ró-
e moral de antes. A arte de participação p;trece que visa tulos de produtos comerciais conhecidíssimas, o Dr. Cóm-
a arrancar o espectador de sua passividade contemplativa, fort, diretor da Galeria Nacional do Canadá, foi consul-

234 235
tado · sobre a autenticidade ou o valor daquelas "obras''.
A suprema autoridade das artes no mundo oficial cana-
dense determinou, então, que não sendo aqueles "produtos"
escultura priginal de Warhol deviam pagar os 20% de taxa
de importação (tinham sido trazidos de Nova York residên-
cia do artista) para poder ser expostos. O dono' da gale-
ria aceitou -a decisão. Ignoro se pelas leis de nosso fisco,
aquele produto, o Porco Empalhado, (aliás, com valor de
venda inscrito) devia pagar alguma taxa. Também havia a
considerar que nenhum de nós, membros do Júri, tinha
qualquer autoridade oficial para decidir sobre a natureza
fiscal do objeto ou mesmo qual a natureza que Leirner
emprestara mentalmente à obra mandada a Brasília. Tinha,
porém, o Júri toda autoridade para aceitá-la no Salão urna
vez que _o Porco Empalhado havia de ser para ele conse-
qüência de todo um cornpprtamento estético e moral do ar-
tista. Na arte pós-moderna, a idéia, a atitude por trás do
artista é decisiva.

39. O MANIFESTO PELA ARTE TOTAL


DE PIERRE RESTANY

"Saúdo o vigésimo-primeiro século que é a minha épo-


ca, meu presente e meu futuro. O século XX já alguma
vez existiu? Eu me -pergunto: as seqüências bastardas do
romantismo continuaram a proliferar até 1960, sob a capa
do · surrealismo, da ciência-ficção ou da pintura gestual
( action painting) . Da filosofia ao teatro, da política à pin-
tura, o rQmantismo teve resposta para tudo. Sua receita era
simples, cabendo numa definição do lirismo: a manifestação
do .ser em movimento. Em seus limites, a vida é apenas lin-
81Jªgém. Esta extroversão sistemática da ontologia criou urna
bela confusão. A existência foi assimilada à urgência ex-
pressiva . .Assim se desenvolveu a noção subjetiva da Arte
concebida coino u~a singularização da linguagem. A partir
do estilo de uma época, ramo principal que é p instrumento
da comunicação- de base, irradiam-se os ramos particulares
da personalidade individual. Não se trata de nenhum modo
de repor em questão os fundamentos de uma linguagem vei-

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cular, tanto mais eficiente quanto está perfeitamente assi- fismas servem de paravento à sua impotência perceptiva. Os
milada, mas de explorar-lhe as variantes, com fitos pessoais; pintores narrativos encarnam as ilusões dessa parolagem: a
cartéis, ,produção, mercado. Essa preocupação da expressão história em quacfrinhos tornou-se chamariz ilusório da co-
'individual' projetou o século XIX romântico para lá de tovia clássica.
seus limites temporais: nunca acabou de morrer ... "Todas as proposições da iconografia não apresentam
"Até o dia em que o advento de um sentido novo da - e felizmente - o caráter da •anacrônica pobreza da figu-
natureza moderna lhe deu o golpe de misericórdia: uma na- ração narrativa. A arte mecânica tende à reestruturação da
tureza perfeitamente objetivada, concebida não mais exclu- imagem plana pelo recurso exclusivo aos meios fotomecâni-
sivamente em suas coordenadas de relação como o eu, mas cos: transposições fotográficas, análises de tramas, impres-
existindo em si, como produto de uma síntese coletiva, o sões diretas sobre superfícies emulsionadas etc., ou modos
fenômeno industrial e urbano, república de nossos inter- de expressão que pedem tiragens limitadas e negam implici-
câmbios sociais, bem comum da atividade de todos os tamente o velho conceito da obra única. O futuro da Arte .
homens. está longe, aliás, de se identificar como puro e simples des-
"O desenvolvimento da mass-media tomou o fenômeno tino da imagem plana. A arte do século XXI trocou o
ainda mais tangível, ao nos fornecer os elementos de de- salão e o museu pela fábrica e pela rua: é um adeus sem
talhe de uma linguagem imediata; a fonte de um novo fol- retorno. A evolução atual das formas pluridimensionais de
clore. Pioneiros da derrubada realista dos valores, neodadás expressão é testemunha clara do fenômeno. Se o mito do
e novos realistas, ao assumir os gestos-limites da apropria- ano 2 000 retém ainda algum sentido é que encarna o sím-
ção do real, cavaram o leito da pop'art. Ao passo que os bolo da metamorfose de todas as linguagens.
europeus davam uma poesia e uma sintaxe aos ready-made ''Numa sociedade que se prepara para viver sua segun-
de Ma~cel Duchamp, os americanos descobriam a riqueza dà Revolução Industrial, desembocando na era da automa-
expressiva de sua cultura industrial, através da verificação ção e do lazer, a função da Arte mudou. Ela é o catalisador
do folclore moderno. da sensibilidade coletiva e da emoção partilhada. Uma festa
"Tudo parecia róseo no melhor dos mundos. O mau do espírito e dos sentidos, uma metamorfose coletiva em
pintor romântico, aí, tem a vida dura•. Imerso na banalida- benefício do maior número.
de do cotidiano, submetido à implacável ·concorrência dos "A internacional da mediocridade traduz, .sob falsas
meios modernos da comunicação visual, alarmado enfim pelo aparências modernísticas, a inércia cultural da época, os
anacronismo da sua situação, pensou encontrar uma prancha reflexos residuais do passado romântico; o medo e a pre-
de salvação na singularização do banal. Como singularizar o guiça criaram o falso problema da narração figurativa. Têm
banal se não for disfarçando-o? Ajeita-se tudo, à vontade, olhos e não vêem! Tanto pior para os medíocres. Não se
com o cartão postal, a história em quadrinhos, os planos do vai contra esta verdade dinâmica que contém em si mesma
cinema, as seqüências de televisão. Tudo serve, contanto sua própria revelação. Concebida por poetas do tempo li-
que a partir desta contingência anônima transformada no vre e; por especialistas da sensibilidade urbana, a arte de
grau zero da percepção - apareça o traço 'pictórico' tan- amanhã, será uma arte total correspondente a uma estética
gível da expressão individual. Assim, hoje ainda, pretende-se popular generalizada, fundamento das indispensáveis me-
justificar a produção maciça do quadro e a existência do tamorfoses 'planetárias."
colecionador. Aqui está transmitido aos leitores desta coluna o ma-
"A mediocridade da chamada figuração narrativa está nifesto último - Contra a Internacional da Mediocridade
na medida exata de seus protagonistas e de seu público. O - do enfant terrible da crítica internacional, que é Pierre
crescimento desta indústria baixamente figurativa reflete a Restany. Há muito que discutir no documento. Nele Restany
proliferaç~o de uma internacional da mediocridade preo- rompe com sua própria estética expressionista e individua-
cupada acima de tudo em preservar o seu conforto. De Mi- lista por assim dizer ainda recente para colocar-se, surpre-
lão a Bruxelas, de Paris a Tóquio ou Buenos Aires uma endentemente, num plano sociológico se não social. Rom-
geração de pequenos burgueses modernistas pretende go- pendo com a estética ainda individualista e romântica da
zar em paz a relativa prosperidade de seu p6s-guerra: ela figuração narrativa, Restany tenta a fusão ou a síntese da
encontrou seus petits-maítres. Esta iconografia menor ilus- pop'art americana com o néo-realismo europeu. Nessa fu.
tra os restos culturais de uma época em plena transição, são, porém, ele exclui toda produção que técnica ou este-
perdida diante da inexorável mutação dos valores. Os eter- ticamente se negue ou recuse reproduzir-se, mecanicamente.
nos cornos da História são naturalmente tagarelas. Os so- O ponto central do manifesto está na recusa de princípio à

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unicidade da obra de arte. Isto não é mais nenhuma novi-
dade. Tem sido objeto de debate e discussão aqui e aiim-
res. Presidi mesmo um debate sobre o tema, num Con-
gresso de Críticos de Arte em Tel-Aviv, Israel, em 1961.
O que, contudo, não se havia feito ainda com maior genera-
lidade era tirar a conclusão estética e lógica desse fenô- .
meno capital: a perda da unicidade da obra de arte. Foi a
partir dessa constatação que achei de designar como "arte
pós-moderna" toda atividade artística enquadrada nesse no-
vo contexto técnico-cultural. Eis porém que Restany, o pro-
tagonista, se não principal, certamente o mais atuante dos
ismos significativos da segunda metade do século, toma uma
atitude radical em face de todo o movimento artístico pre-
-cedente, até as suas últimas modalidades, para •negar a
existência real do século XX e projetar-se como o arauto
da "arte total" do século XXI.
A arte de hoje seria apenas um embrião malformulado
de uma arte que não mais se exprimiria através de obras
insubstituíveis de artistas individuais, como se verifica em
toda a história da cultura ocidental até nossos dias, mas
através de manifestações coletivas, de festas, numa sociedade
que, depois de ter passado pela segunda Revolução In-
dustrial, se instala na automação, no tempo livre, no lazer.
Hoje, o que o artista mais consciente faz é algo inédito
na história: o exercício experimental da liberdade. Restany
parte do pressuposto otimista de que essa metamorfose tec-
nológica e cultural se fará sem tropeços e sem catástrofes,
fundada ainda sem dúvida numa ordem sócio-econômica de
apropriação privada dos meios produtivos, de mercado e
de consumismo pelo consumismo. 40. ENTRE A PESQUISA E O MEIO
Não é certo, todavia, que uma sociedade alicerçada. PRóPRIO DE EXPRESSÃO
nessas premissas possa produzir arte ainda que sob forma
coletiva ou como festa. Nenhuma sociedade, que negue como Encontrar seu meio de expressão próprio é problema
esta nossa qualquer manifestação de ordem coletiva, sim- sério para um artista. Casos têm havido em que, até o en-
bólica ou gratuita, tem forças interiores capazes de alcan- velhecer, o artista não o encontra. Em nossos dias, isso é
çar algo que, nas sociedades culturais primitivas, foi decisivo menos freqüente, pela simples razão de que a tendência
para a sua conservação e florescimento; as manifestações dominante não é a do confinamento individual em ·um só
do sagrado entre as quais a Arte sem dúvida era a mais gênero ou ramo, mas a da experimentação generalizada de
profunda, comunicativa e integradora. todos ou de muitos, simultaneamente.
Como a, por assim dizer, predominância da pesquisa
sobre tudo o mais, na busca afanosa e febril de novos
meios expressivos, a pintura extravasa a cada instante de
seus elementos próprios, rompendo tela, suprimindo a mol-
dura, abandonando o cavalete, desprezando as cores tra-
dicionais por tintas industriais novas, plásticas ou materiais
quaisquer, (estopa, saco, arame etc.) e, ao cabo, já não
se sabe se estamos _em presença de uma pintura ou de
qualquer outro gênero ou meio expressivo inédito. Na Es-
cultura, dá-se o mesmo.

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De um lado, pintura e escultura tendem a amalgamar- encontro com o verdadeiro meio de expressão. Uma doen-
se, ora com predominância de uma, ora de outra. Que é a ça, obrigando-a à imobilidade numa cadeira, a levou à gra-
pintura-objeto - pintura, relevo ou escultura? E a es- vura sobre metal. Depois da água-forte, exercitou-se na pon-
cultura, que por vezes é simples combinação de cores no ta seca, no buril e, por fim, na gravura à maneira negra
espaço ou simples retângulo retalhado, ou jogo de espaço com o berceau, ou o mezzo tinto. Numa série de pássaros
e linha no plano bidimensional? Temos também a escultura (em marrom, água-forte e buril) consegue tirar, de efeitos
que se transforma até fundir-se à arquitetura, pois que co- de cópia e de matéria, um conteúdo gráfico que nos .desen-
loca problemas espaciais ou de volume numa relação dimen- fastia de tanta moleza pictórica abstratizante. Na série es-
sional ou estática mais arquitetônica que pictórica. Até no cura, (marrom e preto) combina a ponta seca, o buril, o
plano cinético essa fusão ou confusão se dá: veja-se por berceau para nos dar um preto sonoro, aveludado, belas
exemplo, a maquininha de Abraão Palatnik, tem tanto de passagens para talhos por vezes realmente supérfluos, mas
pintura quanto de cinema. E não falemos nos bichos revo- por vezes realmente efetivos no tocar a superfície e lhe dar
lucionários de Lígia Clark, cujos planos, que se geram no uma coesão plástica significativa. O acabamento do desenho
espaço acionados pelo observador, têm movimentos que, vem assim harmoniosamente acompanhado pela delicadeza
partindo de um centro, de um eixo, de um coração, se tonal e evocativa da água-forte. Em algumas gravuras, sen-
assemelham aos de um ser vivo, ou criam com os vãos e te-se a evocação de certos temas formais da Espanha ro-
vácuos por eles formados verdadeiras projeções arquitetô- rântica de sua terra. Nela, a temática casa-se bem aos efeitos
nicas. Na Europa, ainda, as marionetes de K.ramer que se específicos do métier. Íá é uma qualidade positiva.
movem sobre rodas arcaicas, de estranha beleza, são teatro e
são profundamente escultóricas. Os elementos plásticos, no
entanto, sobrepujam todas as conotações literárias e coreo-
gráficas ·que K.ramer, bailarino proibido, lhes quis incutir,
ao criá-Ias. ·
Não há, tampouco, quem não saiba da confusão que
andam fazendo por aí entre gravura e pintura. Se os que
trabalham em xilo, por exemplo, em virtude das condi-
ções mesmas do métier ainda mais facilmente se conservam
dentro da especificidade do gênero, ou dos próprios ins-
trumentos de trabalho, buril, goiva, escopa etc., que pe-
dem força, talho incisivo, violentação da madeira, os que
vão para o talho doce não sentem as mesmas limitações. E
instintiva ou inadvertidamente se deixam escorregar, gos-
tosamente, para as facilidades dos efeitos inesperados, as do-
çuras femininas que o ácido, o verniz, os grãos de areia ou
de açúcar, o breu provocam sobre o metal. Nesse caso,
torna-se difícil saber qual o fator preponderante ao adotar
tal caminho ou gênero, - se a própria personalidade ou
sensibilidade do artista-gravador ou simplesmente o como-
dismo, a certeza malandra de que por esses processos ou
efeitos bonitos são mais facilmente obtidos e mais afins ao
gosto geral dominante, do que, por exemplo, pelo talho em
relevo, a incisão, o desenho. (Não se faz aqui a menor
restrição ao próprio gênero, o que seria estultice, e alguns
dos nossos gravadores já nos deram obras magistrais em
metal.)
Talvez possamos mencionar, agora, o caso recente de
Isabel Pons que, não faz muito tempo, ainda era péssima
pintora; ei-la ·com sua mostra na Barcinski, a revelar-se gra-
vadora que não se pode ignorar. Aqui, dá-se um caso de

242 243
41. ARTE E REVOLUÇÃO
Nessas intermináveis discussões sobre as tendências da
arte moderna, tão em moda atuahnente no Brasil, não se
sabe o que mais admirar - se o vazio da discussão ou a
suficiência ainda mais vazia dos discutidores. Na realidade,
toda essa discusão se funda numa superficialíssima analogia
entre a luta política da atualidade, os choques sociais que
convulsionam a nossa época e os esforços de criação ar-
tística do tempo.
"Estamos numa época de transição", é o primeiro lu-
gar-comum de que partem. "Trava-se pela terra toda uma
luta final entre a burguesia e o proletariado": segundo lu-
gar-comum. "A revolução consiste na passagem do poder po-
lítico das mãos da classe burguesa para a classe proletária."
Desse terceiro lugar-comum marxista, passam para o cam-
po das Artes, e pontificam: a Arte deve ''refletir" essa luta.
A Arte deve ser revolucionária. A arte revolucionária é a
que "exprime" (dizem os discutidores com tinturas de ma-

245
terialismo dialético) esse duelo social e políti.::o. Quando se representativos de nossa época e da civilização atual, os
vai ver o que significa essa palavra "exprimir'', verifica-se reservados públicos são coletivos, isto é, sem separações in-
que tudo se resume em obrigar o artista, o pintor, por dividuais. As pequenas histórias em quadrinhos - gênero
exemplo, a só pintar operários de macacão, famintos ou essencialmente moderno - é o máidmo que a impaciência
revoltados mães proletárias grávidas cercadas de dezenas de moderníssima pode suportar em matéria de narrativa. As
filhos esq~álidos, burgueses pançudos, de bigodes retorci- massas não querem outra literatura. E, no fundo, as elites
dos eni tomo de uma mesa onde o champanha corre a rodo também. O cinema, eis a grande arte do povo em nossos
e com mulheres lascivas no colo. Também é permitido pin- dias. E daí seu triunfo indiscutível. Só ele pode educar,
tar retratos bem favorecidos e · marciais de alguns heróis e edificar, elevar e comover multidões, e conjugar com todas
líderes políticos populares. Essa pintura é designada de rea- essas funções a de documentar, que outrora, antes da fo-
lismo: sendo que alguns acrescentam a esse vocábulo o tografia, pertencia à pintura e à escultura.
adjetivo "socialista''. Os pintores ditos abstracionistas são os artistas mais
Segundo esses "teóricos", a pintura não é para as eli- conscientes da época histórica que estamos vivendo; Eles
tes, pois a Arte deve ser ''para massas". Eles dividem, não sabem que a pintura não pode competir no gosto popula_r
se sabe bem com que direito, qual o alimento cultural com as manifestações culturais mais modernas como o ci-
que as massas devem consumi~. Na realidade cotidia~a, nema, o rádio, a televisão. Eles sabem que o papel do-
as massas não mostram nenhum mteresse pelas artes. Alias, cumentário dela acabou. Sua função agora é outra: a de
as chamadas elites também não mostram interesse mai~ ampliar o campo da linguagem humana na pura percep-
profundo por elas. O que interessa às massas é o cinema, ção. Como a escultura, ela é um esforço para transcender
é o futebol, o box, o circo, o teatro chulo ou vaudevillesco, a visão convencional, isto é, toml\r o homem de hoje, e
o carnaval. O grande móvel delas é divertir-se. Elas são sobretudo o de amanhã, capaz de abarcar pela imaginação,
absolutamente indiferentes, tanto à boa pintura figurativa de conceber plasticamente o mundo fabuloso que a técnica
como à abstrata. As elites também só querem divertimento. e a ciência moderna vão devassando diariamente.
~ natural que tal aconteça. A civilização burguesa, nas suas Os resultados da Microfísica, da Astrofísica, da Biolo-
expressões mais felizes, é uma civilização de extrovertidos. gia, das Ciências em geral ainda não passaram do estádio
A exteriorização é a sua característica mais geral. O ritmo das formulações abstratas, e por isso mesmo permanecem
acelerado da vida moderna por sua vez não deixa ao homem estranhas ao sujeito comum, cuja imaginação e sensi-
tempo para a contemplação. E pintura, como escritura, exi- bilidade são ainda povoadas com imagens e arquétipos de
ge contemplação. outras eras.
A vida interior do homem, entretanto, se destrói de . A revolução política está a caminho; a revolução so-
dia para dia, à medida que os meios de difusão, de comu- cial se vai processando de qualquer modo. Nada poderá de-
nicação e de expressão cada vez mais mecanizados se mul- tê-las. Mas a revolução da sensibilidade, a revolução que
tiplicam, atingindo os rincões mais afastados e as camadas irá alcançar o âmago do indivíduo, sua alma, não virá se-
sociais mais profundas. . . não quando os homens tiverem novos olhos para olhar o
Os jornais ilustrados, os cartazes, ~ fotografia, o cme- mundo, novos sentidos para compreender suas tremendas
ma o rádio e a televisão expandem-se não apenas em ex- transformações e intuição para superá-las. Esta será a gran-
ten;ão, pois penetram também em profundidade, e na J?rÓ- de revolução, a mais profunda e permanente, e não se-
pria casa do cidadão não o deixam em paz, nem um ms- rão os políticos, mesmo os atualmente mais radicais, nem os
tante sequer consigo mesmo. Por isso mesmo, Bachelard, burocratas do Estado que irão realizá-la. Confundir revo-
num magnífico ensaio sobre o rádio, advogava para o lar lução política e revolução artística é, pois, um primarismo
moderno já tão dévassado, inteiramente à mercê das po- bem típico da mentalidade totalitária dominante.
tências externas, a criação de um cantinho do "inconsciente O Sr. I. P. Martins achou outro dia muito pitoresco e
coletivo", onde o homem pudesse entregar-se, por uns mo- "gozado'' o fato de haver "banqueiros, industriais, comer-
mentos, aos jogos de sua imaginação, aos caprichos da fan- ciantes e fazendeiros" capazes de apreciar a "arte abstrata'',
t!lSia, aos .embalos do sonho acordado. apesar das pretensões ''revolucionárias" desta. Ora, isto nada
O paradoxo de nossa época é que os meios de pro- tem de gozado. Os abecês do materialismo dialético ensi-
dução ainda não · foram socializados (racionalização não é nam que as "classes sociais dominantes" não são homogê-
socialização), mas a vida íntima do homem já o foi, quase. neas, e delas até saem intelectuais revolucionários que se
Nos Estkdos Unidos como na Rússia, os dois países mais passam para o proletariado, como Marx, Engels e Lênin.
246 247
No Brasil, aliás, Carlos Prestes cansou de tirar dinheiro
e obter apoio de uma categoria social que ele mesmo ba-
tizou de "burguesia progressista". Burgueses, com efeito,
os há de todo jeito: progressistas, reacionários, arrivistas e
até os snobs. O "gozo" verdadeiro não está, portanto, em
ver burgueses ricos, capitalistas e fazendeiros a aceitarem o
abstracionismo; mas sim em ver Stálin, Truman e o Papa
unidos e uníssonos, a condenar os pobres artistas não-figu-
rativistas. E o Sr. Martins também faz parte do coro, o
que não deixa de ser também muito pitoresco.

SEGUNDA PARTE

248
42. A BIENAL DE CÁ PARA LA
Tomando um ângulo de · visão histórica necessária a
quem quer apreender a marcha da arte no Brasil no seu
todo, até a abertura da Bienal de São Paulo, convém deter-
mo-nos sobre as circunstâncias que a criaram. A primeira
Bienal, em 1951, foi um ato que pareceu na época aos olhos
de seu próprio criador, Francisco Matarazzo Sobrinho, co-
mo um gesto, uma iniciativa do momento, que .não obriga-
va necessariamente a seguimentos. Assim como quem joga
uma semente de sapoti no terreiro da casa para ver se pega.
~ claro estar pressuposto no gesto que tivesse o sujeito ex-
perimentado da fruta e gostado. O fato é que pelo menos
ele já havia em 1948 criado também o seu museu de arte,
como Assis Chateaubriand, o dele, menos de um ano antes.
Somente que, no seu, Cicilo Matarazzo acrescentara a desig-
nação essencial e inapelável de "moderna". Quando de volta
de uma das suas idas e vindas anuais à Itália, talvez com a
idéia de uma ''Bienal" na cabeça, como vira de passagem

251
por Veneza, interpelou já o segundo diretor de seu museu, vernança da cidade de São Paulo outra figura não menos
com menos de um ano, sobre "quanto custava uma bie- famosa pela audácia de seu jogo político e cuja ascensão em
nal". Esse diretor, já professor eminente e escritor de Arte, flecha e meteórica na política brasileira apenas começava:
Lourival Gomes Machado, cuja morte prematura para as Jânio Quadros. Sob um aspecto fortuito, sob uma aparência
Artes e a cultura brasileira responde exatamente ao famoso aventureira, o gesto súbito no alto da estrutura respondia,
lugar-comum da lacuna irreparável, enquanto aos amigos entretanto, cá embaixo na infra-estrutura a um dinamismo
ficou uma saudade aberta, temendo que o desdobramento novo que movia as energias produtivas de São .:Paulo.
e os encargos gigantescos decorrentes da iniciativa fossem Na década decisiva de 1940-1950, em que toma im-
matar o museu ainda em botão. (E na verdade o museu, pulso o surto de industrialização através do mecanismo de
por isso mesmo, nunca chegou a ser um autêntico museu substituição das importações, a população urbana do país
e acabou sendo sumariamente dissolvido, o seu acervo ex- cresceu de 45 % ; com um aumento populacional de
pedido em troca de favores e títulos para a Universidade de 10 500 000 pessoas, 5 800 000 são absorvidas pelo setor ur-
São Paulo, e suas instalações museográficas apropriadas bano. As cidades brasileiras de ponta a ponta crescem. As
para servir de fundo à Fundação Bienal de São Paulo, en- de 100 000 habitantes crescem em número e absorvem 47%
tidade privada autônoma.) 1 O fundador do MAM e da do acréscimo urbano enquanto as metrópoles chamam a si
Bienal pertencia a outra família de espíritos, vinha de percentagem ainda maior desses brasileiros - são milhões
outros meios, jogava um outro jogo. O diretor do Museu que deixa,m a roça - , o isolamento da vida rural em troca
era apenas um jovem intelectual, forrado de uma bagagem da fermentação cosmopolita da vida urbana. Concomitante-
cultural séria, já afeito, entretanto, à disciplina do pro- mente com esse deslocamento brutal de gente para as cida-
fessor que não só tem de transmitir a seus alunos o que des, a classe operária brasileira nessa década mais do que
sabe, mas medir de imediato as conseqüências desse minis- dobrou. Ao mesmo tempo em que o capitalismo brasileiro-
trar de saber aos estudantes. A disciplina aprendida como paulista recebe o sangue dessa mais-valia que entra em tor-
professor lhe era necessária para as responsabilidades de téc- rente pelos portões adentro das fábricas novas que se vão
nico qualificado à frente de uma instituição cultural, tam- abrindo em São Paulo, descem nos portos e aeroportos do
bém de contato permanente com o público. O outro não. Rio e de São Paulo, na mesma década, novas camadas de
Grande homem de negócios, jogava como um autêntico ca- imigrantes que, diferentemente dos das primeiras vagas imi-
pitão de indústria de época, daqueles cujos moldes foram gratórias do início da República e do começo do século,
tão bem escritos por Schumpeter. E, com efeito, a I Bienal não vêm com contrato de trabalho para as fazendas de
foi uma pura jogada de improvisação. A sorte ajudou, como café, mas com bens, capitais e krww-how, para aqui mesmo
é costume acontecer aos grandes capitães de indústria ( é a instalar seus .negócios, fábricas e empresas. Esses homens
história mesma do capitalismo), ao seu fundador. A reali- que fogem às catástrofes políticas e sociais do Velho Mun-
zação tocou a imaginação dos paulistas, e o resultado é do, trazem também com eles certas experiências, certos gos-
que Francisco Matarazzo Sobrinho é chamado a presidir tos pessoais, certa bagagem cultural, em suma (modesta, não
as comemorações do IV Centenário da fundação de São nos façamos tampouco ilusões). Considere-se ainda que,
Paulo, em 1953. Ora, entre os projetos da comemoração se pelo censo de 1950, a população paulistana contava segun-
ia inserir, com toda naturalidade, a realização de uma se- do as atividades profissionais, 1 754 000 trabalhadores
gunda Bienal: a idéia vingava. A estrela do industrial em- industriais e de serviços de toda espécie do setor terciário,
preendedor subia no horizonte, soprada ainda mais pela representando 60% de seus habitantes. Em face d~a cifra
coincidência singular, embora no fundo não fortuito de estar é interessante reter que 50% dos novos empresários dessa
respectivamente na governança do Estado de São Paulo um época vêm de fora, do estrangeiro. De um lado são capi-
famoso "gerente", que por temperamento e afinidades era talistas batidos pelas intempéries da Europa, à procura de
muito próximo à família dos homens de negócios e capi- uma nova. pátria; do outro, são milhões de brasileiros açoi-
tães de indústria audaciosos: Adernar de Barros; e na go- tados de suas terras no interior pela miséria endêmica, em
busca de um ganhã:pão mais seguro na metrópole sedenta
1. O "Museu de Arte Moderna", recentemente instalado numa depen- de força de trabalho, e que já fazem em São Paulo 60%
dência do Ibirapuera, cedida pelo Prefeito Faria Lima, é sobrevivência do
antigo Museu, e que se deve a uma parte dos velhos sócios, inconfor- de seus assalariados ativos, contando o censo nessa massa,
mados com a sua dissolução, instituição que já havia granjeado merecido inclusive "maiores" de dez anos. Esses assalariados consti-
renome no Brasil e no estrangeiro, e se tornado já úma tradição cultural tuíam um fluxo ininterrupto de força de trabalho, virgem
viva de São Paulo. À frente desses sócioo inconformados se colOl:ou
Oscar Pedroso Horta. e ignorante, logo explorável ao máximo; os capitalistas no-

252 253
a explicação para o fenômeno: tais países não têm pressu-
vos na terra carregavam esperanças e otimismo, já sequiosos posições naturais fora dos indivíduos que neles se esta-
de contribuírem para as atividades do terciário da sua ci- belecem e que a isso foram impelidos pelas formas de co-
dade que dão prestígio, satisfações e são fonte de gozo e mércio dos velhos países, os qu~is não res~on~~m às su~
lazeres. A base de animação social para iniciativas de con- necessidades. Eles começam, pois, com os mdiv1duos mais
sumo conspícuo do teor das bienais não esteve, portanto, avançados dos velhos países e conseqüentemente com a
ausente. forma de comércio mais desenvolvida correspondente a esses
Que efeitos, que repercussões trouxe para a expansão últimos antes mesmo desta forma poder triunfar nesses ve-
da arte moderna no Brasil a série de bienais que se suce- lhos p;íses. Assim, segundo Marx, os países novos se ~-
deram à primeira? Antes de tudo a Bienal de São Paulo ciam com os indivíduos mais avançados dos velhos paises
veio ampliar os horizontes da arte brasileira. Criada literal- ou com a forma de comércio mais avançada correspon-
mente nos moldes da Bienal de Veneza, seu primeiro resul- dente àqueles países. Ao e~emplo d<?s Est~d~s Unidos se
tado foi o de romper o círculo fechado em que se desenro- pode acrescentar os do Brasll, Argentma, Russta e as novas
A

lavam as atividades artísticas do Brasil, tirando-as de um colônias em geral. Marx estende o fenomeno a todas as ·
isolacionismo provinciano. Ela proporcionou um encontro colônias antigas, Cartago, Colônias gregas, Islândia rios sé-
internacional em nossa terra, ao facultar aos artistas e ao culos XI e XII. A mesma coisa, precisa Marx, acompanha
público brasileiros o contato direto com o que se fazia de a conquista, quando é importada, toda pronta no país con-
mais "novo'' e de mais audacioso no mundo. Para muitos quistado, a forma de comércio exercida no out~o. solo.
isso foi um bem, para outros isso foi um mal. Na realidade, Trotsky, na base dessas importações acabadas de atividades
como todo fenômeno vivo, há nele um lado bom e um lado e técnicas mais adiantadas nos países atrasados ou depen-
mau, um aspecto positivo e um aspecto negativo ou con- dentes :....... um país, por exemplo, que não chegou ainda à
traditório. De fato, esse contato era inevitável, pois que ferrovia mas já adotou a linha aérea tentou complemen-
nenhum país e o nosso em particular poderia desenvol- tar a fórmula do desenvolvimento desigual com a que de-
ver-se no isolacionismo fechado ·autarcicamente às influên- signou de "desenvolvimento combinado''.
cias, ao comércio com o mundo exterior. O t)lercantilismo Há técnicas também que, como a estrutura de comér-
internacional que de.scobriu o Brasil, o fez, e arrastou desde cio são importadas "acabadas". Lewis Musford deu, sem
os seus primeiros dias ao tráfico marítimo internacional, pr~vavelmente conhecer a fórmula, um ~xemplo ~o plano
fundado então exclusivamente na lei da pirataria, o explo- cultural desse "combinado" quando salientou a importa-
rou incessantemente e monopolisticai:nente como colônia até ção integral para o Sul dos Estados Unidos das ,fórmulas
entregá-lo à exploração mais intensiva, mais sistemática, neoclássicas da arquitetura em voga nos ~elhos pa1S,es eur<:
mais sábia do imperialismo, contemporaneamente. Pois até peus. Esta importação se estendeu tambem aos paISes lati-
essa exploração incessante, desde o seu nascer até agora, nos do Novo Mundo, na sua fase de independência e em ou-
teve e tem seus aspectos positivos. tros países europeus em processo de modernização e revo-
Muito e muito antes de se falar tanto em ''lei do lução pela mesma época. Ce~as contribuições arquitetôni- .
desenvolvimento desigual'' que Lênin tentou formular, na nicas nessas da época colorual, sobretudo do barroco de
base da observação empírica dos fatos da política interna- Minas Gerais, foram imersas ou esquecidas na torrente das
cional, o jovem Marx da Ideologia Alemã mostrava como importações modernizantes. . .
nas sociedades em desenvolvimento, as diferentes condições O fenômeno, aliás, torna a. repetir-se com a arqwtet~-
que aparecem primeiramente como condições de atividade ra racional moderna, importada acabada no te~po da di-
pessoal, e depois como entraves desta mesma atividade, cons- tadura, que constitui a segunda fase de evo!uçao da arte
tituem no curso do desenvolvimento histórico uma série moderna no nosso país. E de novo na ten:4:1ra ~ase dessa
contínua de formas de comércio, cuja conexão consiste em evolução, que precisamente com~ç~ com as, b~ena1s, quando
que, no lugar da antiga forma l:le comércio transformada em as formas mais avançadas da atividade art1sttca entram em
entrave é posta uma outra forma respondente a forças pro- massa no país pelo conduto daquelas. . . .
dutivas mais desenvolvidas e, por conseguinte, ao modo O Brasil ao nascer, entra em cheio no ctrcmto do
mais avançado da atividade pessoal dos indivíduos, o que comércio esc;avo, quando o tráfico negreiro está no apo-
por sua vez, se toma um entrave e então é substituído por geu no mundo e simultaneamente, adot~ o bari:oco, a mo-
outro . . . Em compensação, em países como a América do derníssima arte da Con.tra-Reforma, e sao prec1s~ente ~s
Norte que, numa época já desenvolvida, começam pelo seus soldados mais devotados, os seus propagandistas mat9
começo, o desenvolvimento opera-se muito depressa. E eis
255
254
competentes - os jesuítas ---, que vêm para o Brasil impor nais em torno de prêmios etc., política de prestígio entre
à nossa população indígena todas as formas de tra~o, delegações nacionais, política de cambalachos entre indi-
comércio, religião, educação, arte que a Contra-Reforma víduos. A mostra de arte passa a ser feira de arte, e os
propugna. Na época da independência, ele importa a for- marchands passam a dominar. As leis do mercado capi-
ma de comércio mais desenvolvid!I- que vem da Inglaterra talista não perdoam: a arte, uma vez que assw:ne valor
e na Arquitetura e Artes em geral, as formas neoclássicas da de câmbio, torna-se mercadoria como qualquer presunto.
França, da Itália etc.
Com a Revolução de 30, e a implantação da ditadura,
esta importa, já acabadas, as formas de comércio contin-
gentado e de medidas de salvação contra os estragos das
crises de superprodução dos grandes países (Estados Uni-
dos) e as fonílas mais avançadas da arquitetura moderna.
Finalmente, . depois da guerra, ao fim da ditadura, mas com
a intensificação do segundo surto de industrialização, im-
portam-se estruturas tecnológicas inteiras, formas de comér-
cio mais complexos, a fórmula intacta da Bienal de Ve-
neza e as formas mais atrevidas das artes plásticas.
Voltemos -agora à Bienal e ao seu campo específico.
Graças a ela, o nosso público tomou conhecimento dos
maiores movimentos artísticos do século. A Il Bienal trouxe
de uma só vez b cubismo, o futurismo, o neoplasticismo,
além de retrospectivas dos maiores mestres de nosso tempo,
Picasso, Mondrian, Klee, Munch, Enser, Laurens, Moore,
Marini, Calder e outros, enquanto as seguintes bienais trou-
xeram o expressionismo, o surrealismo além de retrospecti-
vas de outros grandes mestres, Léger, Morandi, Chagall
etc. Tornando-se centro de atração para todos os artistas do
Brasil, a Bienal pôde, por ·sua vez, despertar um. movimento
interno de aproximação artística entre as divers~s provín-
cias culturais do país, e notadamente entre os dois princi-
pais centros, Rio e São Paulo. Os localismos regionais
renitentes deste ou daquele centro começam a ser venci-
dos na vastidão continental do Brasil. A irradiação da Bien~l
não se limitou, entretanto, ao seu país; cedo extravasou
nossas fronteiras, e, atraindo a atenção dos meios artísti-
cos dos países vizinhos, permitiu que se identificasse o in-
tercâmbi01 cultural entre o Brasil e as nações latino-ame-
. ricanas. E sobre esses mesmos países, os mais remotos e
isolados, exerceu a influência que exerceu sobre os centros
regionais do Brasil. Na época das bienais, São Paulo se
tornava, com efeito, um centro vivo de contato e inter-
câmbio de impressões e de idéias entre críticos e artistas
do mundo, mas sobretudo da América Latina. Nem todos os
progressos, contudo, se fazem sem contramovimentos, sem
retrocessos, e sem perigo: a Bienal paulista não escapou a
essa dialética. Ao ·arrancar o Brasil de seu doce e pachor-
rento isolacionismo, ela o lançou na arena da moda inter-
nacional, na . arena das especulações não somente comer-
ciais mas de escusas combinações pessoais e mesmo nacio-

256 257
43. A PRIMEIRA BIENAL

Em 1951, com a abertura da I Bienal de São Paulo,


os artistas de maior renome na época - alguns deles
formados na Europa, como Lasar Segall, Victor Brecheret,
Bruno Giorgi, Osvaldo Goeldi - foram convidados a par-
ticipar com salas especiais na representação brasileira do
certame. Formados ou não na Europa, todos demonstra-
vam maior ou menor ligação com os temas da nossa rea-
lidade física ou histórico-cultural. Segall, Pôrtinari e Di Ca-
valcanti foram convidados na qualidade de os pintores;
Brecheret e Bruno Giorgi na qualidade de os escultores e
Osvaldo Goeldi e Lívio Abramo na de os gravadores. Não
houve distinção especial para desenhistas, apesar de no re-
gulamento da instituição constar o desenho como uma se-
ção autônoma com direito a grande prêmio também. Não
se considerava assim que houvesse no nosso meio artístico
o desenhista. Pela distinção do convite especial, foram aque-
les artistas consagrados oficialmente pela Bienal como os

259
grandes mestres da arte brasileira, nos seus respectivos de perto (mesmo a paisagem de Campos de Jordão), com
ofícios. parcimônia, atenção, amor e sentimento para, das anotações
Com a passagem do tempo não se sabe bem, hoje, ricas de tons, de achados primorosos, de acidentes fina-
por que .foram excluídos da distinção duas glórias vivas da mente observados, somar-se uma imagem que já está cá
fase da Semana de Arte Moderna, de 1922: Anita Malfatti, dentro no artista e não lá fora, nas manchas dos boizinhos
de primeira plana, participante da Semana, e Tarsila Ama- da serra, nos capins e nas flores do caminho. Suas cores
ral, ainda em plena forma na época. E também Alf~edo V<:1- não se recortam no ar, embebidas em luz local. Seus focos
pi, um mestre pintor como os outros, embora amda n_ao de iluminação são interiores. Ao lado de um Volpi ou de
consagrado fora do meio. E mais ainda um Alberto Gmg- uma Tarsila, de um Pancetti e de um Guignard, Segall é ·
nard, com uma bagagem pictórica já considerável e de re- um grande pintor nostálgico, de uma saudade que vem dos
nome em círculos mais amplos, principalmente do Rio e de tempos e não de uma lufada de tristeza de uma tarde tro-
Belo Horizonte, ou também um José Pancetti, uma estrela pical que nos entorpece, como em Pancetti, de uma noite
brilhante e já com a distinção de ter sido mandado partici- que nos enternece, como em Guignard. Não deixou sequa-
par pelo Brasil da Bienal de Veneza de 1950, um ano zes a não ser Luci Citti Ferreira, que ·emigrou do Brasil
antes da abertura da nossa I Bienal. E todos esses nomes com a honra de ter sido objeto de retratos do mestre, os
tiveram de se submeter' a um júri de seleção e ao limite mais belos, os mais profundos que jamais se pintaram no
regulamentar de cinco quadros para a massa dos preten- Brasil, por um longo período de tempo, enquanto serena-
dentes. Para o nível, ou melhor, as preocupações e os cri- mente amadurecia de espírito e de ofício, nossa Y olanda
térios estéticos da época, isso não tinha explicação. A Mohaly, cuja hora de reconhecimento chegou quando foi a
direção artística do Museu de Arte Moderna, e, pois, da grande laureada de pintura da VIII Bienal.
Bienal ( entregue a Lourival Gomes Machado, perfeitamente Cândido Portinari, que estava na Bienal repi:esentado
consciente da situação), tendo em vista certamente maior em todas as suas fases; com exceção da fase primeira,
comodidade na apresentação de número mais restrito de sa- brodosquiana, apresenta uma obra cheia de drama humano.
las especiais, cedeu a considerações de prestígio: nos meios No entanto ele também é, na sua pintura, mais espetacular,
sociais e cultos os três pintores em questão eram indiscuti- mais eloqüente, que sombrio ou triste. Com os gravadores,
velmente os que gozavam de maior prestígio. com Goeldi, é que se expressam, pela primeira vez, verda-
'Lasar Segall foi, como se sabe, o primeiro a apresen- deiramente, os temas noturnos e dos sofrimentos abafados e
tar pintura moderna no Brasil, ou sua própria pintura ex- solitários do homem desamparado da sorte, · do marginal.
pressionista já então - 1913 - decalava algo na escala da Com os pintores, saivo Segall, para quem a tragédia huma-
"moderna" em relação ao cubismo e ao abstracionismo. na é a condição de criar, o elemento trágico ou dramático
(Coube entretanto a Anita Malfatti a glória de ter des- da vida é secundário ou inexistente. Mesmo em Di Caval-
pertado, com sua mostra individual de 1917, também ex- canti, com sua predileção pelos tons surdos, dos ambientes
pressionista veia germânica, as iras da opinião conserva- fechados e densos do conviver humano popular, o convi-
dora, representada então infelizmente por um nome já glo- ver sobrepaira a condição de vida. Quanto a Portinari, suas
rioso das letras brasileiras, Monteiro Lobato, o genial cria- cores são em geral chapadas, claras e sem mistério à me-
dor do Sítio do Pica-pau Amarelo, contrabalançada - ago- dida que avança na iniciação modernista, pois começou com
ra felizmente - pelo apoio entusiástico a Malfatti que lhe terras inspiradas nas terras roxas de Brodósqui. Seu sober-
deu nome bem mais jovem mas não menos consagrado pela bo modelado é classicamente separado das cores, ao passo
posteridade, o do formidável poeta de Paulicéia Desvairada. que Tarsila, Volpi, Guignard, Pancetti, se dão às cores pe-
Mário de Andrade.) las cores. Amam-nas. Volpi é, aliás, o mestre da cor pura
Não foi contudo Segall um pintor cultural, existencial- no Brasil.
mente brasileiro. (Não se emite com isso nenhuma aprecia- Ao abrir-se a Bienal, em 1951, no local do antigo Tria-
ção pejorativa à sua obra.) Sua arte, decididamente sombria non, na Avenida Paulista, onde se ergue hoje o Museu de
e pessimista, não o é à man eira brasileira, temperamental de Arte, era Portinari, sem dúvida, o maior ''nome" da '
ou sentimental, ingênua ou · extrovertida, mas interiorizada, pintura brasileira, quase sinônimo para o povo, como Pi-
profunda, nutrida numa concepção filosófica do mundo, e casso para o mundo, de arte "moderna" ou "futurista''.
essa carga de tristeza se sente mesmo quando os temas de Sua poderosa aparelhagem artesanal lhe permitia excepcio-
que trata são de natureza risonha ou festiva. Sua pintt:1ra, nal ecletismo de maneiras, escolas e experiência. Ele era
na base de terras, é de tons baixos, de quem olha as c01sas um artista social por excelência. Com isso queremos dizer

260 261
no sobretudo das deformações do desenho clássico, à
que sua inspiração vinha de fora, do convívio cultural, das Pi;asso, foi considerável, ou mesmo sua chave para sair do
influências determinantes no momento, dos problemas da aprendizado acadêmico e iniciar-se na "maneira mode~a'.',
época. Sua vocação era "política'', não no sentido estrito depois virou-se, como já vimos, para os aspectos sociais
da palavra, pois nunca foi um político, mesmo quando se de escola dos muralistas mexicanos, onde distinguiu Ri-
candidatou e foi eleito no duro senador pelo PCB, mas vera pelo esquema formal linear alongado, em parte tirado
num sentido amplo, de gosto, de convivência, de comércio do vocabulário giottesco, e pelas cores ralas, chapadas, de
social · de participação. Magnificamente armado artesanal- capa, mas repeliu dele e dos outr_os a ausência do modela_d?,
ment;, ouvia e . gostava de captar idéias e sugestões dos para ele a essência mesmo da boa pintura. Toda a sene
meios intelectuais que apreciava. Aqui, permitam-me, num dos Retirantes se distingue das obras paralelas dos mexica-
parêntese, · uma nota pessoal: em Washington, d~rante a nos, a despeito da semelhança temática, pela procura de
guerra, · quando Cândido Portinari chegou para pmtar os uma boa matéria, por esse modelado. A partir dessas aqui-
painéis da Biblioteca do Congresso, retomamos a velha sições, tomadas daqui e de acolá, acabou o pintor por con-
camaradagem e o velho papo de outros tempos. U~ dia, seguir uma maneira própria que afinal o marcou como um
ele havia acabado o painel dedicado ao ouro do ganmpo. dos momentos importantes da pintura brasileira. Não foi,
Era o painel mais audacioso e expressivo do conjunto e entretanto, Portinari um colorista, não foi tampouco um
este um dos mais felizes na obra portinaresca. Comentava retratista excepcional, · para o que lhe faltava o gosto do
eu, entusiasticamente, a maneira atrevida com que o pin- instantâneo psicológico, da marcação sintética dos planos
tor reduzia os detalhes figurativos, pé, nariz, cabeça, camisa, da figura ou da cabeça no espaço; não foi um inventor ds
peneira, batel, água, pedra etc., a manchas coloridas, a sig- formas nem jamais se deixou arrebatar pelo ímpeto de um
nos, a formas geométricas como triângulos, por exemplo, ritmo linear autônomo ou criativo. Mas foi sem dúvida
para realçar a força plástica significativa de todo, quando um grande artista do Brasil pelo poder de absorção que
ele, com aquele seu jeitão esperto, à caipira, o bonachão, tinha no agregar para definir na sua obra tudo o que lhe
interrompe: "- Pois é, eu aqui me sinto mais livre do que podia interessar e pelo didatismo permanente que lhe em-
no Brasil. Os literatos me atrapalham". Ele queria di:zer prestava, no desejo de responder a uma demanda que sen-
com isso que as idéias forçosamente literárias dos intelec- tia existir no ar e de assim atuar sobre o meio social am-
tuais amigos interferiam freqüentemente com as suas, ou os biente.
seus projetos puramente pictóricos. E ele nunca so0:be,
com efeito, se livrar delas. No princípio da sua .carreira, Emiliano di Cavalcanti, carioca de origem paraibana
eu também, então seu amigo e freqüentador, me incluo entre - seu pai foi alto oficial da Polícia do Estado ao tempo da
aqueles intelectuais. Exemplo: a insistência com que todos instalação da República - mal teve tempo de esperar que
nós procuramos incutir nele a importância ''<;~lminant~•• dos a sua mãe descesse de bordo do navio procedente do Nor-
muralistas mexicanos, não só quanto à temattca mas inclu- te para nascer. Na I Bienal, entre. os grandes era o mais
sive quanto à técnica: E Portin~ri manda i~continen~i bus- brasileiro- E era natural que o fosse, se não pelo tema
car no México uma pistola de pmtar, precomzada entao por seguramente pelo motivo. Já instalado nas mulatas brasilei-
Siqueiros em suas andanças por aqui, como o neo plus. ras, pedestalizadas pelo Carnaval, familiarizado com as ce-
ultra em matéria de arte social e coletiva. Experimenta-a, e nas da vida suburbana carioca, de que o foi o primeiro a
vem decepcionado nos dizer que não serve, não dá matéria nela detectar e a trazer para a pintura a marca de uma
e a cor é chata, plana. civilização plebéia urbana, carregava Di nos seus pincéis
um jogo de cores baixas com contracanto de tons altos, em-
Ele tinha no fundo o gosto coloquial do narrador, do bora apenas marcado por um ritmo linear hesitante, pesa-
comentador de temas em voga. No plano porém das rea- do, num espaço sempre fechado, apinhado de gente. Seu
·lizações pictóricas, são os aspectos técnicos particulares que modo era deixar-se ficar sensual como um gato sobre
o interessam: uma magnífica fusão ética de tons que ob- coxins, todo entregue às delícias de uma boa matéria que,
teve nesta ou naquela de suas telas, e nos mostra com um por vezes, de pormenor na composição, passava a tema.
prazer misturado de certo orgulho artesanal; ou ainda quan- Técnica, esteticamente, era sobretudo um filho adotivo da
do descobre um achado, um pormenor até então inespe- Escola de Paris, (o modelado simples de Léger, o traçado,
rado na obra do grande mestre de sua particular devoção, os azuis líricos de Dufy) onde esteve e vivera várias vezes
um Delacroix um Bonmtrd. As preocupações do bom ar- e por longos anos. Esse artista hedonístico, indefeso às se-
tesão eram o' que mais espontaneamente a_pare<:ia nele. Se duções da vida, não foi porém um desligado das idéias
de início seu tributo às invenções revoluc1onánas no pia-

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gerais - há um intelectual nele - armou-se mesmo de
uma concepção do mundo, já antes das modas de mais Moderna. É um atestado cultural vivo, mas artisticamente
tarde, precursor pois aqui também: cenas e tipos popula- morto, como toda estilização.
res de seu repertório disso dão testemunho. Mas as idéiàS De volta a cidade natal, em 1939, depois de vinte
nele são imersas naquele seu mundo primeiro, no sólio das anos de permanência na Itália e em seguida na França,
sensações, e maream-se por isso mesmo, e facilmente ao Bruno Giorgi chega como um desconhecido, aos 34 anos,
contato pegajoso das coisas terrenas. Boêmio de raça 'sua · mas com um métier formado, aluno que foi de Maillol, e é
verdade está · na contingência do cotidiano, que o p;ende o primeiro desses artistas ilustres inteiramente estranho à
a~s outros, e o faz submisso aos primeiros acenos da se- Semana e às suas tradições. Sua temática é mais alegórica
reia, prenhe de encantos e pecados. Nunca subiu ele desse e abstrata, e não é por acaso se a primeira obra importante
i:iível ,e~stencial . às r;present~ções abstratas, alegóricas ou dele realizada no Brasil foi o Monumento à Juventude para
1deologicas, de situaçoes patéticas ou de dramas sociais que os jardins do Ministério da Educação e Cultura então em
aprendt:u com ~ cabeça_ mas não conheceu com o , corpo, vias de construção.
como fizeram amda asslffi os outros mestres brasileiros do Giorgi vai encontrar em São Pàulo uma grande per-
~u te~po, Segall, Portinari ou mesmo Tarsila. Mais preso sonalidade artística, de origem ítalo-alemã, Ernesto de Fio-
a matena qu~ outros, seu hedonismo foi sempre a condição ri, instalado ali desde 1936, fugido das nuvens negras que
para contradizer-se constantemente e, contradizendo-se al- se acumulavam nos céus da Europa. Escultor de raça, cujas
cança_r por vezes a plenitude de uma arte liberta de ~om- figuras magistralmente bem lançadas são de uma elegância
proffilssos. que já é produto da forma e não de estilo. Morto em
A _escultura de Victor Brecheret, marcada por uma 1945, deixou uma obra preciosa, mal conhecida e que in-
formaçao romana, apesar da ascendência francesa, foi sem- felizmente não faz caminho aos mais jovens de casa. Não
P:e um volume pleno que não chegava, entretanto, à ma- era de Fiori apenas um escultor de grandes méritos, era
cicez _densa, Ape~ada da matéria para a qual, no fundo, não também excelente pintor. Sua obra pictórica tinha tal en-
dava_ importancia. Essa constância reflete uma predileção, a vergadura que chegou a influenciar o único entre os con-
predileçao ~º. esculto! pelos_ contornos lineares, precisos, temporâneos no mundo, o próprio grande Volpi. Sua pin-
quase manemstas, cu1a funçao na sua obra era definir a tura de espírito francamente moderno, era toda em planos e
~u~erfície extei:na, onde o desenhista que era gostava de em cores chapadas, em contrastes ou apenas transidas de
mc!sar um sutil grafismo de motivos indianistas. Pagava branco, sem modelado, clara estrutura formal, de rasgada
assim o escultor seu tributo às idéias estéticas que estavam bidimensionalidade. De Fiori não deixou atrás de si toda a
no ~r, na ,li~ratura modernista do tempo, nas lucubrações ressonância que era de se esperar de seus ensinamentos e da
teónco-esteticas dos Andrade, Oswald e Mário, desenvolvi- própria obra. A ditadura que no Rio, em torno do Mi-
das. d~e pelo menos Pau-brasil, do primeiro, e Paulicéia nistério da Educação, arrebanhou arquitetos e artistas plás-
L!_esvairada, do segundo. Não era Brecheret uma organiza- ticos, que em Belo Horizonte descobriu Oscar Niemeyer
ça~ ~en!al pod;rosa; era um sólido e simples artesão que ainda em botão e com ele fez Pampulha, para a qual Por-
se~ia mgenuo nao fora a longa convivência em Paris. Ele tinari foi chamado a dar sua contribuição para um exem-
foi, com Malfatti, os tacapes que manejaram os paulistas plo de integração das artes na capelinha local que ainda
d5>~ anos vintt: contra os reacionários e pelo advento da es- não se havia akançado no Brasil, desde o Aleijadinho, em
te~ica modermsta, assim como na geração ulterior, na de São Paulo, apesar das grandes remodelações urbanísticas
trmta, esse papel coube a Portinari. Seja como for o Mo- que sofria a capital paulistana, a ditadura nada fez do mes-
num~nt~ às Bandei;~s, que encome~daram para co~emorar mo nível e um artista das dimensões de de Fiori passou por
o Pn_meiro Centenario da Independencia, permaneceu mais ali em brancas nuvens ('o fato atesta o provincianismo
de tnnta anos esquecido no atelier do artista sob os protes- acentuado do meio).
tos de Mário de Andrade e outros, até 1953 quando foi O vendaval da guerra ainda tangeu outros pássaros do ·
colocado em praça pública, no lbirapuera, para comemo- céu da Europa para o Brasil. No Rio, pela mesma época
rar o Quarto Centenário da fundação de São Paulo. Nessa de de Fiori, se instalou uma personalidade vigorosa e singu-
longa distância no tempo, entre a concepção da obra e sua lar, A. Lescoschek, que tinha mais ar de oficial de cavalaria
implantação na rua, o monumento envelheceu. Resta en- austríaco do que de artista. Teve ele papel importante na
tretanto, como a expressão sintética e congelada no t~mpo formação de vários artistas brasileiros, · hoje maduros e de
das concepções que fizeram a glória da Semana de Arte nomeada. Manteve inclusive curso de gravura e desenho
na Fundação Getúlio Vargas. Por sua orientação ·pas-
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saram muitos entre outros Fayga Ostrower e Ivan Ser Esse borralho acabou sendo efetivamente representado
pa que foram.rivais no seu curso como os alunos mais des- por um probo artista, heróica e anacronicamente fiel à lição
ta~ados. Lescoschek botou-se pouco depois de terminada a de seu mestre, Bourddle; com efeito, apesar da solidão e
guerra para a Áustria, onde voltou, ao que parece, a exer- da terrível adversidade, em longos e longos anos, Cels~
cer velhas atividades políticas. Era um gravador severo, de Antônio continuou ( e continua) intratável no que tange a
formação clássica. E no Rio ainda se aninhara11; num vi:r- intocabilidade de suas concepções. Ficou tristemente fa-
dadeiro recolhimento uma portuguesa e um hungaro nao moso pela covardia das autoridades da época, o caso do Mo-
comuns, filhos espirituais de Paris, Maria Helena e Arpad numento ao Trabalhador Nacional, encomendado nos bons
Szenes. De volta a Paris, onde se transformou numa ver- tempos modernizantes do populisD?o demagógico ao escultor
dadeira estrela da pintura abstrata mundial, sob o nome de da Moça em pé. A escultura, feita sobre um modelo _ne-
Vieira da Silva, deixou por aqui algumas telas em que se gro, tinha proporções quase faraônicas. Assust~u-se _o cl!e~-
sentia o peso da poesia numa pintura magnífica: numa nar- te, ou o Mecenas oficial, com essas proporçoes tao vms.
rativa do inefável e do onírico em espaços interiores já Inaugurado o monumento em praça pública, um mo-
de inquietantes perspectivas, onde o mistério do cotidiano vimento popular foi forjado contra a nudez do Trabalhador
era também o cotidiano do mistério. Quando ganhou o que, ao parecer, saía do banho envolto em :uma pequena
grande prêmio da nossa VI Bienal, sua obra em que a toalha. Sem perda de tempo mandaram retirar .º mon:u-
pintura e a poesia continuavam unidas, deixa ver agora que mento dos olhos escandalizados dos transeuntes. Amda exis-
é a pintura que conduz o fio da imaginação. Quanto à tirá a obra? Era em pedra. O primeiro projeto,. uma es-
Arpad Szenes, ensina pintura, desenho, arte. É um estranho pécie de réplica à sua Moça em pé, e~ gesso,, ~01 em boa
métier o que ensina, é tão estranho que os estranhos que hora dissolvido pelas chuvas no barracao pr~cano q~e. ser-
com ele aprenderam, por exemplo, Lígia Clark ou Almir via de atelier a Celso Antônio, salvando assrm o Mm1stro
Mavignier, não esqueceram nunca, mesmo quando o que Mecenas dos vexames que a enorme figura negra com seu
passaram a fazer contraria tudo o que Arpad transmitiu. enormíssimo órgão viril iria certamente lhe causar.
Grande pintor que vive na sombra, que ama . a sombra, a
pintura de Arpad, se é cosa menta/e, é principalmente um Sem dúvida o maneirismo elegante de Bruno Giorgi
pensamento que não é traduzível senão em pintura. Não foi era mais oalatável ao gosto oficial e, naturalmente, ao gosto
por acaso que quem os descobriu no Rio, quem os acolheu, dos burgÜeses já progressistas da época. Justiça porém, lhe
quem os alojou numa singular pensão de russas num velho seja feita - a obra de Giorgi acrescentou_ uma nota de
casarão do Flamengo, foi um poeta, e que poeta, Murilo modernização à provinciana escultura de ent~o. E era pelo
Mendes, e como se vê, grande crítico também. Mas não é menos lógico que ao discípulo de Bourdelle f!zesse pen~an_t
só: foi ele ainda quem descobriu vinte anos antes o gênio discípulo de Maillol. Mas o que ela trazia era prmc1-
de Ismael Nery. palmente um ritmo linear, que termina por penetrar~ massa
Bruno Giorgi veio também da Europa açoitado pelo para vazá-la, à maneira de Moore, e alcançar uma 1m_agem
vendaval político, o fascismo primeiro que o correu da imediatamente apreendida pelo olhar, sem desenvolvimen -
Itália e a Grande Guerra depois, que o ·expulsou da Fran- to de surpresa, ora elegante, ora ide~lista, ?u pr~-f_o~mada
ça. A hora artística brasileira foi entretanto oportuna, ape- ainda em função daquele mesmo ntmo lmear m1c1al. E
sar de reinar a ditadur!i estadonovista. Mas esta, à cata de este é rigorosamente ditado pela linha de contorno do de-
prestígio ( artigo de consumo indispensável aos ditadores), senho. A obra desse escultor é para ser lida como em relevo,
num país sem tradições culturais e com uma opinião pú- mesmo quando a forma é g?rda Ae c_heia. É que ele guardo!1
blica incompetente . e incapaz de opinar mesmo sobre sempre, mesmo na fase de mfluenc1a de Moore, uma espe-
coisas mais decisivas que Arte, se decidiu a proteger os cie de vocação vegetal, ou uma procura de f~rm_a que ra-
modernismos, pelo menos campo ''inocente" das artes plás- ramente ultrapassa a estilização. E nunca atmgm a pro-
ticas e no muito menos inocente da Arquitetura (graças so- fundeza do espaço, a tridimensionalidade. Derivação· ainda
bretudo à conjuntura de contar com um ministro da Edu- de Maillol? Ou antes rebento tardio, longínquo do art nou-
veau?
cação e Cultura bem cercado de intelectuais esclare::idos).
Com efeito, não tardou que o escultor recém-chegado de Talvez se possa hoje, olhando para tr~s, ver n_~ ~pisó-
Paris passasse a exercer sua presença nos meios artísticos dio Celso Antônio o fim de uma fase mtermed1ana do
do Rio onde a escultura, mais do que uma parenta pobre, modernismo brasileiro, entre a fase da Semana de Arte Mo-
era autêntica borralheira. derna que foi o prólogo e a da Bienal, que é a do triunfo.

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44. ENTRE A SEMANA E AS BIENAIS
Essa fase intermediária (já que falamos nela), foi
aberta pela Revolução de 30, e assinala-se pela intervenção
do Estado não só no domínio econômico e político como
no cultural. A intervenção iniciou-se no plano artístico pri-
meiramente pela nomeação revolucionária de Lúcio Costa,
o futuro definidor da idéia de Brasília, para a direção da
Escola Nacional de Belas-Artes de que resultou o desmem-
bramento da arcaica instituição do ensino da Arquitetura,
que vai enfim assumir a necessária autonomia na nossa Fa-
culdade Nacional de Arquitetura. Poucos anos depois, por
um ato de puro teor burocrático, a feição também dos des-
potismos esclarecidos de outras eras ( quando se instituciona-
lizaram as academias) , um salão nacional de arte moderna
é tirado, como Eva da costela de Adão, do vetusto S.N.B.A.,
cujas origens longínquas remontam ao Império, e a tarefa
precípua que tinha: mandar todos anos, graças a uma me-
dalha de ouro obtida num concurso convencional, um baba-

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guara caboclo freqüentar mais uma academia em Paris ou os jovens talentos como um Niemeyer, um Reidy, não te-
Roma. Portinari foi o primeiro a sair daquele moinho de riam tido a oportunidade de suas vertiginosas carreiras. Ou-
mediocridades coroadas um artista vivo. A justiça manda trora, quando o espírito do liberalismo ainda era predo-
ainda que se assinale ter sido Milton Dacosta o primeiro minante, intelectuais e homens provectos costumavam la-
salvado da Divisão Moderna do -mesmo salão, precedido mentar que tudo fosse feito por meio do Estado. Ora, tudo
porém de Pancetti, que teve também sua viagem ao estran- no Brasil, desde pelo menos o rei D. João II e Tomé de
geiro, onde já havia estado aliás várias vezes e mesmo vi- Souza, tem sido feito pelo Estado, seja a Coroa portuguesa,
vido muitos anos. seja a Coroa imperial, e mesmo a Primeira República, com
:e a época em que se inicia o surto sensacional da sua constituição liberal; o trabalho enfim tomado livre, a
arquitetura moderna do Brasil, sobretudo a arquitetura mo- livre concorrência e os capitais internacionais sobretudo in-
numental de palácios e projetos suntuários oficiais. Foi o gleses que entravam, promovendo o progresso e carreando
momento da primeira geração de arquitetos modernos brasi- as riquezas.
leiros. Uma falange de figuras jovens de primeira plana A essa geração de pioneiros se deve acrescentar o no-
tomou o Brasil e fez deste, ao terminar a Segunda Guerra, me de um autêntico precursor, Warchavchik, que tentou fa-
um país de vanguarda arquitetônica. O país foi mesmo por zer, timidamente, já antes de 1930, verdadeiras amostra-
um instante o paraíso dos arquitetos, pois que nele estes só gens em escala privada do que depois, sob bafejo oficial,
consideravam o programa e o partido e se davam ao luxo se ia realizar em grande no Rio de Janeiro. Com efeito,
de todas as experimentações em materiais novos (vidro, alu- Warchavchik, emigrando para o Brasil praticamente ao mes-
mínio etc., como se brincou com eles), inovações moder- mo tempo que Segall ainda nos inícios dos anos vinte,
nistas, caprichos, ( o brinquedo dos brise-soleil e basculan- constrói a primeira casa do Brasil, segundo a fórmula "mo-
tes até em fachadas de sombra dos balanços gratuitos) e até derna". Toda em planos geométricos que era o que mais se
obsessões detalhistas e acabistas. Tudo isso ficava por conta admirava nas construções do tempo, inclusive o teto, mar-
do cliente para inveja, por exemplo, de um Alvar Aalto cando-se assim o momento em que a estética cubista exer-
que quando premiou uma nova estrela ascendente da arqui- ceu uma hegemonia sobre todos os ramos da Arte. Além do
tetura, Sérgio Bernardes, pela ductilidade no uso de material realce deliberado dos planos, a outra regra indiscutível era
novo, já na II Bienal, lamentava-se de ter ele mesmo de a supressão do supérfluo com o banimento de toda orna-
fazer às suas custas e na própria residência em Helsinque, mentação, na linha do pensamento ético-estético de Van de
experiências e inovações de que se anda cogitando (por isso Velde e da Bauhaus, conforme o que fosse racional seria
mesmo a Finlândia, país pobre, tem, a partir desse mes- funcional e o que fosse funcional acabaria por ser belo ou
tre, uma arquitetura bem plantada no solo homogênea, como tal consagrado (nesta linha de pensamento estava ain-
revolucionária nos processos de construção, no uso do ma- da o Le Corbusier do tempo de "casa-máquina de viver",
terial - a madeira - , nas articulações de estrutura, nas até o calvinista que ele era explodir no -Palácio da Jus-
soluções espaciais e, last but not least, barata. tiça de Chandigard e curvar-se, contrito, ao peso das pró-
De qualquer modo, essa primeira geração brasileira prias profundezas e em terras românicas, e nos dar Ron-
cumpriu seu momento histórico de lançadora no Brasil das champ). E ainda na sua via precursora o nosso Warchav-
idéias fundamentais da revolução na Arquitetura, com t(!- chik, sobre quem Geraldo Ferraz escreveu um livro primo-
das as implicações de ordem geral, social e de ordem téc- roso, editado pelo Museu de Arte de São Paulo, expôs em
nica daí decorrentes.t Ela veio como muitíssimas outras 1930 uma casa que ele mesmo chamou ''modernista", numa
coisas e instituições do alto e do exterior. Sem o Estado e tentativa de integração das artes, sob a presidência da
o Estado ditatorial a introdução da nova arquitetura no país arquitetura, indo da pintura e escultura a murais, decora-
teria sido feita pelos canais privados e portanto de modo ções e jardinagem. A iniciativa teve sobretudo valor de-
mais esporádico e gradual. A maneira súbita, maciça, em monstrativo, valor didático.
grande escala, de caráter suntuário, burocrático, monumen- Assim, a segunda fase da arte moderna no Brasil se-
tal, com que foi introduzida, não se teria dado. E sobretudo ria inconcebível sem a liderança desse grupo de jovens ar-
quitetos do Rio de Janeiro e de São Paulo. E o que ele
1. Provavelmente sua maior contribuição foi o uso sistemático do trouxe, talvez sem muita consciência disso, ou pôs em cir-
- concreto, wavando ser esse tão durável, elástico, maleável quanto o ferro,
e tão versátil a ser capaz de atender a todas as especulações da imaginação culação como idéia central, e que Warchavchik tentara de-
plástica de Oscar Niemeyer. finir com sua "casa modernista" em São Paulo, foi pre-

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cisamente a idéia de uma arquitetura integracionista.2 E modo regular e orgânico da avent.ura fascinante da arq\li- ..
quando o projeto do Ministério da Educação e Cultura foi tetura e urbanística moderna. Transformou-se pelas cir-
lançado, a Arquitetura tomou o comando geral, e chamou cunstâncias numa espécie de Le Nôtre caboclo.
para com ela colaborar Portinari com decoração de azu- Aqui se pode pegar ao concreto uma diferença mar-
lejos de uma parede externa, painéis no interior e, fi!lal- cante entre a primeira fase da Semana de Arte Mo?e~na
mente, a ·grande empreitada dos afrescos sobre os cultivas e a fase intermediária. Naquela trata-se de levar ao pu~hco
da cana-de-açúcar, fumo, café e algodão, talvez sua obra- através do escândalo ou da terapêutica de choque espécimes
-prima. Foram estes, cremos, os primeiros afrescos em gran- da revolução modernista que vai pelo mundo. Um punhado
de escala realizados no Brasil, precedidos embora, das ten- de artistas plásticos, de poetas, literatos, músicos que se_ pro-
tativas muito mais modestas e também de ordem privada de clamam "modernos" se reúnem em nome desse moderntsmo,
A. G. Gomide, curiosa e simpática personalidade, nascido para apresentar ao burguês provinciano. Cada ramo de a~e
em 1895 em Itapetininga, e morto em 1965. A sua man':ira mostra com seus artigos seus representantes. Todos estao
individual, desempenhou ele papel à parte mas bastante im- ali na presunção de que são individualidades geniais. Agora,
portante nos idos de vinte. Embora não participante direto na segunda fase , o pensamento dominante já tem uma ce~ta
da Semana ( estava ausente do Brasil), esteve perfeita- conotação social e coletiva, e não por acas? o verdaderro
mente integrado no seu clima e prt?ocupaçêies por voca- protagonista é agora o arq,uiteto. 3 :i-:ra !e.rcei~a fase, a das
ção didática e gosto da pesquisa em outros ramos de- bienais, o pêndulo volta as artes md1viduais, e a ~eg~-
corativos como o vitral, o afresco etc. Nos meados de monia passa à pintura, como era na Europa. J?es~a pnf!Iei-
vinte tivemos ocasião de ver afrescos seus em sua própria ra geração de arquitetos, algumas das s~as pnn71pa1~ figu-
casa (A Ceia) e depois, por encomenda particular executou ras já se foram, como em São Paulo. Rmo Lev1, bn!h~nte
Gomide afrescos para a residência de D.ª Olívia Penteado, ponta de fila, e lançador da primeira epís~ola aos cnst_aos,
a patroa dos modernistas, e pouco mais tarde, entre 33 e quando de Roma, onde ainda estudava, deitou seu ~amfes-
34 outra Santa Ceia em parede interna da casa de um sau- to ao povo ( 1928), pelo advento da m_oderna arqmtetu~a;
do;o intelectual ativo na época da Semana e depois até ou esse admirável homem e mestre arqmteto entre os ma10-
a morte no mundo das artes: Carlos Pinto Alves. res da geração, que foi Afonso Eduardo Reidy, 1!º Rio, des-
Assim, se em São Paulo, em surto de crescimento de- falcado também prematuramente de dois dos tres Roberto,
mográfico e industrial, as coisas se fazem através dos par- irmãos no sangue e na boa linhagem profissional, abrido-
ticulares, embora em menor escala, no Rio, a capital da Re- res igualmente de caminho ( o edifício pioneiro da ABI). E
pública, as grandes iniciativas vêm do Estado, do governo. ainda em plena mocidade há que lembrar, com o pensar pr<;>-
Não foi somente Portinari que foi chamado a participar da fundo do primeiro dia de sua morte, uma das estrelas mais
criação do Ministério da Educação e Cultura; também mais promissoras da geração, Atílio Correia Lima, que vai mos-
um pintor, como Guignard, que ali tem dois excelentes trar numa só obra as relações profundas que se estabele-
quadros, de sua fase ainda surrealista, a escultores como ceram no Brasil entre a criatividade espacial na Arquitetura
Bruno Giorgi, Celso Antônio, Ceschiatti, bem mais jovem, e a criatividade da arte abstrata brasileira dos anos ulterio-
e pela primeira vez no Brasil ou no Ocidente, em época res. Queremos nos referir àquilo que ainda hoje se pode
contemporânea, um artista oficialmente convocado a colabo- considerar uma jóia da arquitetura moderna brasileira, ~
rar da obra coletiva exclusivamente como jardinista. Desde Estação de Hidroaviões, transformada num clube de ofi-
então, Roberto Burle Marx, que inicia assim sua carreira ciais da Aeronáutica. Em nenhum momento a intuição do
de paisagista muito jovem, ainda o faz com .a glória de espaço apreendido foi mais felizmente captada num apa-
ter sido o primeiro de sua especialidade a participar de relho arquitetônico de proporções mais ao ponto em suas
vivas, tensas articulações do que naquela singela constru-
2. Em 1959, a propósito da construção de Brasília, houve um Con- ção de Correia Lima. Passados tantos anos, ela nada per-
gresso Internacional de Críticos de Arte com a colaboração de arquitetos, deu de sua vitalidade espacial, .de sua organicidade, apesar
urbanistas, teóricos, organizado pela seção brasileira da Assocfação Interna-
oional de Críticos, então sob a presidência de nosso saudoso Sérgio de embrutecida por terem montado sobre os degraus livres
Milliet, sobre o tema: "A Cidade Nova, Síntese das Artes". O congresso da escadinha em caracol, ligando o piso do andar superior,
reuniu-se em Brasília no Palácio da Justiça, ainda desnudo, e depois em
S. Paulo e no Rio de Janeiro. Os Anais do Congresso contêm uma 3. Destaque-se nesse contexto o nome de Vilanova Artigas, não só
documentação completa e suas conclusões foram: 1) Brasília não era arquiteto, como professor eminente, que quis fazer ide seu Departam~nto na
modelo de integração nem de síntese; 2) A idéia de integração das Faculdade de Arquitetura de São Paulo um centro pr?pul_sor daqu,I? que
Artes é uma idéia superada ou incona:bível numa civilização dilacerada Gropius chamou · de "arquiteturn total", mas no amb1to ecológ1co e
, como a nossa. cultural do país.

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um_ corrim~o maciço que quase faz daquela pura linha em ou tão anti-sociais quanto o núcleo urbano de Nova York,
esp1ral a nscar o espaço um tubo insólito. (Dizem que o Chicago ou outro qualquer de Detroit. Seu mal ganha os
"m~lhoramento" introduzido foi feito para evitar que bairros adjacentes e vai pela periferia de modo que a formi-
cunosos olhassem os baixos das mulheres ao subirem.) De dável metrópole é hoje uma triste e caótica aglomeração de
qualquer modo, olhando-se agora a pequena obra do ma- gente que empurra de manhã a noite para ganhar o di-
logrado arquiteto, após a experiência estética adquirida em nheiro. A arq11-itetura-arte, a arquitetura-atividade cultural,
todos esses anos de arte moderna e de bienais no Brasil transformou-se num mito, que ainda não foi mas precisa
não há de exagerar demais ao proclamar ser ela uma da~ ser denunciado, sem no entanto, o que é pior, se tornar
obras abstratas mais belas ou mais perfeitas que se cria- por isso atividade social racional e consciente numa téc-
ram por aqui. nica construtiva reformulada em função das condições de
Nesses anos de hegemonia da Arquitetura no campo pobreza do vasto país do interior ou em função da revo-
das Artes, a prodigalidade edílica não ficou isolada. Ela lução tecnológica que prossegue pelo mundo quanto a ma-
f?i sustentad~ ??r uma formidável reafirmação dos negó- teriais, quanto a processos de edificar, quanto à emergente
cios, que se ~n1c1ou _c_om a famosa "febre" de . construções, a
libertação dos limites de localização. (Para vencer barrei-
~u,. com ~ais prec1sao, uma especulação imobiliária sem ra do subdesenvolvimento, o Brasil carece de toda sorte de
limites. Foi então que São Paulo bateu todos os recordes reformulações, inclusive no plano arquitetônico.) Mas afi- ,,
nas ~onstruções, isto é, daquela especulação, tornando-se a nal, de qualquer modo, o progresso capitalista veio car-
metropole onde mais se edificava .no mundo, a ponto de reando tudo na sua torrente. Inclusive as Artes. - e de
superar mesmo Chicago ou Nova York, ao fazer uma novo - a Arquitetura para as bienais, que vão começar.
casa por hora ou por ainda menos. O crescimento anár-
Da década de vinte para a de trinta, grandes aconte-
quico de nossas capitais, com o escândalo dos loteamentos
selvagens sem o menor vislumbre de consciência social teve cimentos políticos sacudiram o Brasil de Sul ao Norte; e
aí seu apo~e~ .. O milagre, como se diz, da iniciativ~ pri- São Paulo se tornou o ponto nevrálgico da revolução, em-
vada_ fez m1senas, e no verdadeiro sep.tido da palavra. Os bora o poder central continuasse no Rio, as forças suble-
arqmtetos não encontravam tempo nem gosto para anali- vadas viessem do Rio Grande do Sul, com os provisórios,
s~r de perto a natureza do milagre. E foram, querendo ou de Minas e do Nordeste. São Paulo foi ocupada militar-
na? querendo, cúmplices de selvageria urbanística que de- mente, com um interventor militar de fora, um autêntico
po!s dos estragos de Copacabana, tornando-o o bairro mais ''tenente''. Em nenhum Estado da Federação, o processo
odiento do Rio, tomou conta da nossa cara cidade de São de transformação política e social foi. mais acentuado do
Sebastião do Ri? de Janeiro, cuja intrínseca paisagem pede que na terra de Piratininga. As convulsões ali foram maio-
apenas que a deixem como está, que não a violem e parem res, e terminaram com a revolta da burguesia e pequena
de trepar hotéis hiltonianos no topo dos morros ~petacula- burguesia paulista, em nome da reconstitucionalização ge-
res ou de tapar com fileiras de blocos de arranha-céus re- ral e da autonomia do Estado. A divisão de classes já
dondos e tristes! ~s mais lindas encostas. Pondo-se à parte num sentido moderno foi maior em São Paulo. Se Higie-
os aspectos sociais das favelas, que é o lado negativo de nópolis, o bairro aristocrático, era hostil ao novo poder re-
todo progresso urbanístico capitalista, uma coisa é evi- volucionário, o Brás proletário era favorável. E já lhe ma-
dente, ~ precisa que se diga: os barracos improvisados e nifestava sua ingênua simpatia. Mas em vinte, esse Brás ou
clandestmos que se estruturam morro acima nas favelas in- esse Cambuci capazes de manifestar de público ou coleti-
tegram-se, mal ou bem, na paisagem; as construções mo- vamente essa simpatia política ainda não haviam crescido
dernas com licença urbanística ferem-na, e brutalmente. bastante; por isso mesmo, se .foi Higienópolis que fez a
Mas o caso de São Paulo talvez ainda seja pior; é de qual- Semana de Arte Moderna em 1922, foram Cambuci e adja-
q~er ~odo, mais grave, pois a iniciativa privada sempre foi cências que fizeram a Família Artística Paulista na outra
ali _mais po,derosa do que aqui, e em geral sua paisagem ci- etapa. Se o local em que se realizou a Semana foi o ma-
tadma ou e obra dos homens ou simplesmente não existe. jestoso f oyer do Teatro Municipal de São Paulo, · a sede
A natureza não ajudando, o desastre é maior. E assim o da Família era numa sala do Edifício Santa Helena, no
~en~ro, onde outrora se assentava a .simpática cidade pro- Largo da Sé, onde desde 1933 sé localizava a maior parte
vmc1ana sobre as colinas em torno do Convento dos Padres dos sindicatos operários novos criados com a revolução. São
foi transformado num irrespirável antro de medonhos arra~ Paulo de vinte para trinta mudou muito a sua estrutura
nha-céus, tão anárquicos quanto um denso burgo medieval social e demográfica. Este dado demográfico do . Censo de

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1950 dá o sentido dessa mudança. De 1901 a 1920, só depois o núcleo ' da .Família Artística Paulista, muito bem
de imigrantes italianos •entraram 900 000. Mesmo que a intuído. por Mário de Andracle quando deu o nome ao gru-
massa dessa imigração fosse destinada às fazendas de café po e sobre ele escreveu em 1931. Aliás, o próprio Mário só
do interior, pouco a pouco, parte considerável dela, e a veio a conhecer Volpi por essa época quando, segundo este,
mais ativa e empreendedora, vinha já com os filhos insta- juntos confraternizaram num porre.
lar-se nos bairros proletários do Cambuci, Brás, Mooca, Uma atmosfera intelectual paira sobre a Semana; uma
·Lapa. Essa massa imigratória cessou às vésperas da Sema- atmosfera profissional pairava modestamente sobre a Fa-
na. Mas antes dela, na década anterior, com a abolição mília. As generosas aspirações nacionalistas que moviam vá-
do braço escravo; deu-se a prilll;eira grande entrada de rios poetas e artistas participantes da Semana foram de-
trabalhadores livres, procedentes de Portugal, Itália, Espa- sembocar em movimentos literários, sociais e políticos; um,
nha e outros países. Nessa primeira levá de colonos é que com maior originalidade, como por exemplo a antropofagia,
vieram esses sujeitos enérgicos e empreendedores que aqui de natureza filosófico-estética interpretativa da formação
fundaram verdadeiras dinastias de homens de negócio, in- brasileira; outros como o verde-amarelismo, já de franCQ
dustriais, fazendeiros como os Matarazzo e outros que cria- teor reacionário que foi degenerar sem tardança no inte-
ram o São Paulo para além do café. Muitos outros dentre gralismo. . ·
estes cujos nomes nos são familiares não chegaram a fazer As idéias políticas revolucionárias vieram à tona com a
fortuna, mas deixaram descendentes que iriam trazer sua crise das instituições e a crise econômica do café que der!lm
contribuição às Artes, às letras, à imprensa do país como por· um momento, sobretudo em São Paulo, ligeiros sinto-
um Menotti dei Picchia, um Alfredo Volpi, um Lívio Abra- mas de vacância de poder. Osvaldo de Andrade, numa pro-
mo, mais moço, pois nascido em 1903, filho de uma dessas fissão de fé comunista, rompeu com a própria classe, a
p~rsonalidades típicas da época, · com energia e inteligên- aristocracia do café, · vencida e decadente, convertido por
cia também para empreender mil coisas como os outros ou um momento à ideologia do Partido Comunista de então e
antes dos outros, mas sem ser tocado pelo graça da for- à revolução proletária. Ao lado e em oposição à Sociedade
tuna. Daqueles nomes mencionados, só o poeta de 1-juca- Paulista de Arte Moderna, fundada por antigos promotores
-pirama pôde aristocratizar-se bastante para passar em 1922 da Semana, já agora acusados de grã-finos, aristocratas e
além do Largo da Sé, atravessar o Viaduto do Chá e vir reacionários, lança-se o Clube de Arte Moderna. Flávio de
participar com a gente do outro lado das demonstrações da Carvalho, seu organizador e animador, intelectual de alta
Semana. Os outros, ou o outro, da idade dos artistas par- têmpera, artista de múltiplas possibilidades, rico e desabu-
ticipantes da Semana (nascido nos idos de noventa, como sado, também oriundo de velha família paulista, enche o
todos aqueles, ou mais precisamente em 1896, na Itália ain- meio paulistano com os ecos de suas atividades e seus de-
da, mas para aqui trazido pelos pais, aos dois anos de vida, safios. Ele adota como lema, talvez sem o saber, a velha
isto é, na primeira leva, já era pintor de cavalete, e bem palavra de ordem dos surrealistas, lançada por Louis Ara-
lançado, quando se realizou a Semana). Mas proletário, pin- gon, então um dos seus mais brilhantes paladinos, de "o
tor · de parede de profissão, os fazedores da Semana não escândalo pelo escândalo". Assim, numa exposição de sua
tinham conhecimento dele, como ele e seus companheiros pintura, denuncia ele mesmo em carta anônima aos jornais
de convivência e pintura tampouco talvez tivessem sabido e à polícia, quadros obscenos que lá estão à mostra, em
dele. Do Largo da Sé não passavam; deste era para trás, autêntica ofensa ao pudor. Feita a denúncia, arma-se o es-
para o Cambuci, para o Brás. Jl que nesses bairros impe- cândalo, e o público corre à exposição antes de ela ser fe-
ravam os ofícios- e as oficinas do artesanato. Volpi já bom chada pela polícia. Ou então é a E~periência n.O 2, delicio-
pintor, numa veia nada acadêmica mas antes ,impressionis- so livro em que narra com detalhes e ilustrações a ameaça
ta ou pós-impressionista, à maneira italiana, estava perfei- de linchamento que sofreu e o medo que teve por ter desa-
tamente qualificado para tomar parte na Semana; faltava- fiado o .sentimento piedoso de milhares de fiéis que acom-
lhe, porém, o status social para a prévia convivência com panhavam uma procissão, ao conservar o chapéu na cabeça. ·
seus promotores. E muito caracteristicamente ainda era ele Outro "escândalo" mas este de real e profunda ética e es-
no plano profissional um pintor de paredes e com os ou- tética foram os belos desenhos que fez dos vários momentos
tros companheiros do meio que como ele pintavam, dese- da agonia da mãe. Flávio de Carvalho atingiu aqui seu
nhavam, trocavam idéias sobre os progressos que faziam na apogeu como homem e como artista. O seu CAM, até ser
"bela pintura'', eram todos oficiais em vias de passar a fechado pela polícia sob o velho pretexto de subversividade
mestres-de-obras. Foi este o ambiente em que nasceu muito e orgias. foi uma tribuna de debates bastante livre. Ali se

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expôs, pela primeira vez no país, a obra revolucionária da Então, a seu apelo, uma frente única de todas as esqu.er-
formidável gravadora alemã, Kaethe Kollwitz, a amiga de das se formou com o fito expresso de, em face da passiva
Rosa de Luxemburgo. Houve, a propósito, conferência se- neutralidade do governo, dispersar pela violência aquele
guida de debate sobre "as tendências sociais da arte", do desfile. A 7 de outubro de 1934, com efeito, o povo em
ponto de vista marxista4, o que se havia feito no Brasil. Foi massa dos bairros proletários acorreu ao Largo da Sé ar-
por esse tempo que apareceram os primeiros artistas bra- mado de qualquer coisa (pau, faca, foice, espingarda, pis-
sileiros com mensagem social consciente. Ao lado de um tola) e dissolveu no peito (centenas de feridos, uma dezena
Osvaldo Goeldi surge, mais moço, um novo gràvador de de mortos dum lado e do outro, muitíssimas prisões) a
força que é Lívio Abramo. :e ele o primeiro artista, ao parada dos galinhas-verdes que nunca mais desfilaram pelas
que saiba, a transpor para a xilo o tema da luta de ruas de São Paulo. Continuaram porém a fazê-lo no Rio
classes: o operário na fábrica, o operário coletivamente em até o golpe estado-novista de novembro de 1937, com que,
protesto, a velha fábrica de tecidos com o seu perfil recor- · com a sua cumplicidade, a ditadura liberal indefinida de
tado, grades e chaminés erectas como uma infantaria em 1930 se definiu como fascista, e o Sr. Filinto Muller, esse
face do inimigo e em volta, pela acidentada topografia ad- lídimo democrata de boje, é elevado à categoria de
jacente, o casario operário, em grupos, trepados pelas ele- Himmler para instituir pela primeira vez o terror nazista em
vações como troços emboscados de assaltantes (guerrilhei- nossa terra. Precisamente naquele ano organizava-se a Fa-
ros?). Havia nas xilos e linóleos de Abramo, num desenho mília Artística Paulista, que, afastando toda espécie de po-
límpido e forte, um acento caloroso de solidariedade de lêmica ou estética, entre ''modernos" e "acadêmicos'', con-
classe. · centra-se sobre questões de métier, de ofício; ela refletia
Por essa época, Tarsila estava em sua fase social, quan- assim, no fundo, uma mentalidade artesanal que era real-
do nos deu algumas telas como Operários e Segunda Classe, mente a de seus membros em geral.
em que transparecem todas as suas simpatias proletárias As preocupações profissionais vinham à tona por toda
expressas por uma profunda compaixão pelos humildes. No parte e as preocupações ideológicas ou políticas passavam
plano pictórico, são telas magníficas num esquema de cores para trás. O Estado Novo, de âmbito totalitário, não per-
muito diverso do esquema anterior, em cuja realização a mitia mais polêmicas ou discussões livres de idéias nem
artista pôs todo o seu amor. A grande pintora pagou essas veleidades políticas ou ideológicas autônomas. A era dos
simpatias com a prisão em que foi jogada por sua própria clubes de arte "moderna" estava morta; não por acaso sur-
classe, como outro pintor ilustre, Di Cavalcanti, e vários in- ge, em seu lugar, o Sindicato de Artistas Plásticos. Cuide
telectuais, durante os dias do levante paulista de 1932. O doravante cada um de seus negócios privados, de seus afa-
ambiente de alta tensão social e de crise institucional não zeres profissionais: o resto é com o Estado ... Novo.
permitia mais as explosões puramente estéticas ou cultu- Um clima morno se instala. Os dias monótonos e sufo-
rais da Semana. cantes de ditadura se prolongam. Salões disso e daquilo se
A polêmica não era mais artística, mas declaradamente abrem e se fecham com maior ou menor brilho, e somem
política. O nazismo vitorioso na Alemanha estimulou os fas- não deixando eco. Exposições individuais deste ou daquele
cistas caboclos a vestirem camisa verde, fazerem saudação artista se fazem ora em São Paulo, ora no Rio. Uma nova
de braço estendido, arranjarem um führer nacional, arma- geração de artistas, pintores sobretudo, começa a dar o
rem-se e saírem às ruas espancando homens de esquerda seu recado. Mas personalidades marcantes são raras. As ga-
onde encontrassem, e desfilando com sua milícia militariza- lerias de arte são praticamente inexistentes. O mercado de
da de milhares de homens até cerimônia de juramento à arte, uma excentricidade. A guerra começa e a guerra aca-
bandeira no Largo da Sé, em face do edifício Santa Helena, ba, e uma nova inquietação geral toma conta dos espíritos;
onde tinha sede a Federação Brasileira dos Sindicatos dos a ditadura esboroa-se. A agitação política aumenta. A fer-
Trabalhadores, recém-criada. O aparato militar e acintoso mentação estética recomeça, e é a moda dos museus; em
d~ cerimônia visava, conforme a tática nazista da conquista São Paulo, o de Arte em 1947, e o de Arte Moderna, em
dá rua antes da tomada do poder, intimidar os trabalha- 1948; o MAM no Rio, em 1949. Estava-se às vésperas da
dores ameaçando a própria existência de seus sindicatos Bienal.
de classe. Apesar de inexperiente ainda, A Federação com-
preendeu o perigo e o sentido da manobra e da ameaça.
4. O c.onferencista da ocasião foi o autor do presente trabalho.

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45. AS VÉSPERAS DA BIENAL

Pouco antes da abertura da I Bienal, com a retomada


do comércio mundial e conseqüente intensificação das co-
municações internacionais, à cata de retemperar seu pres-
tígio muito abalado com a guerra, manda a França, primeira
que qualquer outra nação, uma mostra ambulante coletiva
de arte francesa do século XIX aos contemporâneos; era
uma retrospectiva não muito completa e ressentindo-se de
certo conservadorismo na sua seleção. O Sr. Germain Ba-
zin, o engom;ido conservador-chefe do Louvre, estava longe
de ser úm homem em dia. René Huyghe, este eminente es-
critor de Arte, também passou por aqui pela mesma época
com uma mostra moderna francesa; apesar do brilho das
suas conferências e as analogias por vezes curiosas que esta-
belecia entre este e aquele artista, não ia contudo além da
escola de Paris tradicional, cujos limites bordejavam entre
um surrealismo corrigido à la Balthus, um pós-cubismo fran-
cês à la Bazaine e um expressionismo moderado à la

281
Sruber, morto de pouco o seu herói. O esforço propagandís- desmistificada de nossos dias, com seus estábiles e móbiles,
tico francês impressionou o grande público mas não con- seu circo de brinquedo, seu humor, seu prosaísmo, seu
venceu as gerações mais novas ansiosas por expressões mais plebeísmo de materiais sujeitos a desgastes imediatos,
audazes e revolucionárias: o mundo após a guerra vitoriosa ( arame, paus, cacos de vidro etc.) e conseqüentemente a
contra as forças do mal, o obscurantismo nazi-fascista, serem substituídos sem perda da sacrossanta unicidade.
não ia ser totalmente outro? Quanto à mostra de Max Bill, admiravelmente orga-
Cedo, no entanto, dois acontecimentos artísticos im- nizada no Museu de Arte de São Paulo, 1950, foi uma
portantes vieram revelar.àquelas gerações mostras das novas revelação para os artistas mais inquietos e jovens do Rio
tendências. Trata-se de duas exposições capitais que se rea- e de São Paulo e para a crítica militante. Bill nos dava
lizaram, uma no Rio de Janeiro, no salão do Ministério da um conju_nto de toda a sua obra, desde as séries em progres-
Educação e Cultura, em 1948, de iniciativa de · Henrique são de formas geométricas elementares, o processo das
Mindlin, e outra em São Paulo, na sede do Museu de aproximações cromáticas de limite-não-limite, até as cons•
Arte, organizada por seu diretor, P. M. Bardi. Essas duas truções espaciais em figuras topológicas como a fita de
mostras indicavam sobretudo aos jovens que Paris rÍão é Moebius, de onde saiu a admirável Unidade Tripartida,
mais a capital propulsora das Artes no mundo como o grande prêmio de escultura da I Bienal de São Paulo,
foi durante séculos. Eis aqui, com efeito, duas expressões também um dos raros prêmios revolucionários dos longos
de vanguarda a mais avançada, o que não vêm de .Paris, anos de bienais nossas. Pode-se dizer que o importante
que são mesmo desdenhadas ou desconhecidas em Paris: movimento concretista brasileiro e argentino teve seu pri-
Alexander Calder e Max Bill. Este, só agora neste fim meiro ponto de apoio nessa demonstração de Bill, então
de ano último é revelado em Paris, numa grande exposição o mais insigne representante da arte concreta suíça e
retrospectiva no Museu de Arte Moderna, e ali consagrado mundial, se excluímos o nome do grande precursor esque-
pela crítica. O outro, embora vivendo parte do tempo em cido em Paris, morto faz alguns anos, o belga Vantongerloo,
P~ris ou mesmo no interior da França, era sobretudo con- mestre confessado de Bill, seu testamenteiro. O que seduzia
siderado, e isso nos meios artísticos, como uma persona- os moços nessa arte era o anti-romantismo declarado, a
. lidade antes curiosa que artista criador. Em 1943, de Nova soberba pretensão de fazer uma arte calculada matematica-
York, onde vivia, Mário Pedrosa escreveu para o Co"eio mente, desenvolvida sobre uma idéia perfeitamente definida
da Manhã um longo artigo sobre Calder, comentando sua e exposta, e não nos momentos vagos ou subjetivos de ins-
extraordinária exposição no Museu de Arte Moderna da piração para os quais não poderia haver critérios de julga-
grande cidade. A mostra dele no Rio exibia um grande mentos preciosos ou não-aleatórios- (Este trabalho dedicado
artista, sui generis, que, pela própria maneira jovial e ori- ao campo específico das Artes Plásticas não abarca o movi-
ginal com que se apresentava em pessoa e na obra, parecia mento concreto na Poesia que por sua importância, nacional
a mujtos espíritos da Europa e daqui também, e dos mais e internacional, merece estudo à parte.)
avisados, como não se enquadrando na concepção que E que mais? Que há de mais peculiar ou de mais im-
tinham da escultura. Esta exposição teve também uma evi- portante no campo cultural-artístico no Brasil antes da
dente significação histórica: era a primeira vez que se Bienal? Dois acontecimentos nesse plano, e mesmo no plano
apresentava no Brasil, no plano das artes plásticas, um educacional e antropológico, interessam de perto as ativi-
grande artista norte-americano. Ele veio sem nenhum bafejo dades e a criação artística em geral. E que vieram mesmo
oficial de seu país. Fazia então o governo de Washington romper a estreiteza de concepções convencionais e acadê-
uma política cultural de laissez-faire. Quer dizer, não tinha micas e velhos preconceitos intelectualistas reinantes quanto
ainda política cultural própria. Ainda praticava um libera- à natureza do fenômeno artístico em geral, incluindo neste
lismo provinciano neste como em outros domínios. A arte a formação e a psicologia dos próprios artistas. Tais pre-
livre de Calder era totalmente ignorada dos meios oficiais. conceitos dominam não somente nos meios artísticos ofi-
O próprio establishment a olhava com reservas porque ciais mas mesmo nos meios modernistas mais avançados.
ainda não ganhara os galardões da fama nos ·meios inter- O primeiro desses acontecimentos se deu no campo
nacionais nem prêmios nos mercados de Arte. (A compe- da educação artística e da psicologia infantil, e foi sem
tição ferrenha, em todos os domínios, aberta com a guerra dúvida uma verdadeira revolução pedagógica que começou
fria -- Truman - apenas começava, limitada porém então no Brasil quando se- criou a primeira escola de arte para
ao campo econômico e político.) Como s6 agora se veri- crianças no Brasil: a Escolinha de Arte de Augusto Rodri-
fica, Calder mostrava-se como precursor de certa arte gues, cujos talentos demonstravam não serem apenas os

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t um ·gráfico, de um desenhista, mas também os de um
mo educador.. E como base de orientação de sua escolinha,
orientação científica, uma seção equivalente .à do Centro
do Rio de Janeiro.
Au8;:to Rodngues teve o bom gosto ou a perspicácia de No plano científico, psicológico e estético, tais acon-
,esco er a obra 'fundamental de Herbert Read a Educação tecimentos indicavam à ebulição em idéias e concepções,
pela ffrte. Na mesma linha de abordagem su;giram outras que começavam a agitar o corpQ cultural e artístico do
escolinhas co'!lo :1 de Iv~ Serpa, que se revelou, então, Rio e de São Paulo, com repercussões maiores ou menores
:tra:;.,és
das pnmeu:as exposições de arte infantil no Museu pelos estados. Independentemente dos próprios artistas, às
e · rte Moderna ( dando este com isso já prova de uma vezes sem consciência do que se passava em profundidade
rara abertura para o problelíla da criação artística) e ao no campo cultural, o mundo das Artes ia ampliando pouco
o
~ado ~e suas excelentes qualidades plásticas, fino co~dutor a pouco o que havia de restrito, de preconceitual, de elitismo
e cnanças no campo do exercício criativo.
nas concepções circulantes sobre a matéria nos meios mais
A liberdade criado~a das crianças, sob o seu desvelo, ''avançados" do Brasil.
~e to~ou exemplar, e disso saíram alguns exemplos de arte A "arte moderna'' ia mostrar-se assim mais do que
mfantil dos mais belos que se conhecem no país. uma simples moda ou escola, como qualquer das inúmeras
~fa~s importante _ainda foi a iniciativa da Dra. Nise que passaram pela história contemporânea ( e incluindo-se
da Silveira, ao organizar no Centro Psiquiátrico do En- nesta a art nouveau e ampliando-se também o rococó e o
genho_ de Dentro uma s~~ ~ _terapêutica ocupacional para neoclássico), um movimento cultural da maior transcen-
seus mternados.. Desta miciativa, de resultados fecundos dência. Primeiro que tudo vinha revelar o que se havia
no ~ampo propnamentc psiquiátrico, brotavam duas admi- esquecido no curso do desenvolvimento da civilização bur-
ráveis e ~bs'?lutamente pioneiras exposições de arte de enor- guesa, , de seu racionalismo abstrato, conseqüente à supre-·
me re!~yan~ia cultural, estética e psíquica. Uma, a primeira, macia . da economia capitalista com suas relações de pro-
no. Mirustén,_o _da Educação, onde se teve a revelação de um dução fundadas no mercado, onde as coisas perdem a rea-
artista de gemo, Rafael, cujos desenhos André Breton ao lidade concreta, e transferidas ao plano das superestruturas
vê-lo~, considerou superiores aos de Matisse. A outra, bem em escala mundial: que a Arte em nenhum momento da
dep~is,: n? saguão da Câmara dos Vereadores, então sob a evolução humana foi monopólio ou produto direto dos
presidencia, excusez du peu, de não outra personalidade progressos econômicos e intelectualistas. Foi, entretanto,
que de_ um do~ maiores•poetas deste país, Jorge de Lima. em nome dessa supremacia econômica e política e dos co-
Outro Jovem pmtor de então, Almir Mavignier O primeiro nhecimentos que adquiriam sistematicamente reduzidos a
a ~nveredar no Rio pelo caminho do abstraci~nismo sob normas lógicas esvaziadas de seu conteúdo contraditório,
a i!lfluência das idéias da Gestaltpsychologie divulgadas e que as burguesias nacionais européias passaram a proclamar
aplicadas à arte por Mário Pedrosa em te~ (1949) para ter também a supremacia e o monopólio da "grande" arte,
concurso na Fa~uldade de ~rquitetura, foi a alma daquelas das "belas-artes'', desde o advento do chamado milagre
mostras, na qualidade ~e assistente dá Dra. Nise da Silveira; grego, em · que querem encontrar suas origens ou sen
~ém d~ trabalho capital de orientação psiquiátrica, espi- modelo.t ·
ntual, ética de Nise da Silveira, a Almir a seu entusiasmo No entanto; por uma dessas . reviravoltas dialéticas
~esvelo_ e se?,sibilidade se deve a revelação dos artistas d~ da história, a própria expansão imperialista que se inicia
arte. vrr_gem . em Engenho de Dentro que Léon Degand, pelo fim do século vai abrir à arte ocidental o contato
o pr!~eiro diretor do Museu de Arte de F. Matarazzo com as culturas dos povos primitivos, ainda em estágios
ao VlSlt~-los no _Centro, chamou de. "A Escola de Parii tribais, comunitários ou pré-capitalistas. Desse contato é
do Brasil. Inclusive de outro pintor de gênio, Emygdio de que, se não nasce, desenvolve-se o que será a "arte moder-
Ba1;.os, de quem se fez uma exposição individual no IBEU, na". O impacto desse contato foi tremendo sobre as Ciên-
e~~ao com se.d~ na rua Senador Vergueiro. Emygdio chegou, · cias ·Sociais, da Sociologia à Antropologia, à Etnografia, à
alias, a participar da representação brasileira à Bienal de Psicologia Social que até então se desenrolavam indepen-
Venez~ em 1952. A grande exposição de arte virgem que dentemente das investigações de campo, por analogi~ e de-
se realizou no saguão da Câmara dos Vereadores se realizou
também _no. Museu _de Arte Moderna de São Paulo onde, 1. O "milagre grego" em Arte é ideologia das burguesias ascenden-
outro ps1<,:imatra emmente, o Dr. Osório Gomes, mantinha tes da Europa (italianas) e q11e atingiu também o próprio Karl Marx, inex-
. no Hospital do Juquery, com notável êxito e diferente periente nessas matérias e altamebte desconhecedor das descobertas arq11eo-
lógicas e antroj>ológicas do fim do sécllio.

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285
duções conforme a lógica formal, de natureza idealista ou
mistificadora, ou por algumas induções e intuições geniais
isoladas de seus sábios.
A idéia da superioridade branca sobre os outros povos
da periferia econômica e cultural começava a ser batida
em brecha _pelo próprio desenvolvimento das Ciências
Sociais e culturais na época imperialista. A arte moderna
é em grande parte resultante dessa dialética cultural. Assim,
ao mesmo tempo que o imperialismo conquista, explora e
destrói as economias, o viver-e as culturas autóctones desses
povos "bárbaros", a arte que se começa a fazer no Oci-
dente vai enriquecer-se com a contribuição das forças cultu-
rais até então insuspeitas desses mesmos povos. (Revelação
d_os _ukyo-e, estampas populares japonesas, sobre os impres-
s1orustas e pó~-impressionistas; influência dos fetiches negros
sobre os cubistas; a revolução da escultura branca sob o
impacto da escultura pré-colombiana mexicana; o impacto
da arte de. todo o arquipélago polinésio e Oceânia, da
arte dos remos de Kmor e de Camboja, da arte arcaica
e das Cíclades gregas elevada acima da arte clássica sob
Péricles etc., etc., transformam a visão e sensibilidade das
novas gerações artísticas da Europa desde Van Gogh e
Gauguin.)
Mas igualmente pela mesma época, em função das
contradições_ da própria sociedade e cultura metropolitanas,
outra conqmsta, desta vez na vertical, em profundeza, des-
cobre um novo mundo já suspeito de ·existir mas· até então
desprezado ou ignorado pelos preconceitos racionalistas inte-
lectua!is~s dessa mesma cultura burguesa. Trata-se, dentro 46 . ÉPOCA DAS BIENAIS
do .propno homem, do mundo do inconsciente afinal cienti-
ficamente isolado e destacado por Sigmund Freud e de O alargamento das fronteiras criadoras artísticas,
que decorre por uma boa parte o desenvolvimento da~ contribuição fundamental da arte moderna da história do
psicologias em profundidade que iam trazer ao conheci- nosso tempo, -que começou a verificar-se tímida e isolada-
~ento _humano uma nov_a dimensão. Com essa ampliação mente no Brasil antes da abertura da Bienal de São Paulo,
d1mens1onal estava-se afinal apto a discernir no homem
vai ser apresentado ao público; empiricamente e em vasta
além de uma racionalidade em botão permanentement~
~storva~a pelas estruturas sociais de classe, uma necessidade escala, com aquela abertura. O terreno estava preparado a
mcoerc1vel de fabulação, como compensação sem dúvida colher todas as semeaduras. E logo às primeiras bienais dá-se
a um domínio imperfeito sobre a natureza e que se ex- a vitória do abstracionismo sobre o velho figurativismo e
por todo o país, apesar de algumas resistências regionais
te~io~i~a, incessantemente, nas criações míticas dos povos
pnm1bvos no seu longo e doloroso processo de passar da aqui e acolá. Infelizmente daquele início não participou
natureza à cultura na imaginária infantil desimpedida e, Cícero Dias, o primeiro pintor brasileiro de justo renome
aos trancos e barrancos, nessa insopitável necessidade de que, partindo de um regionalismo poético cheio de fantasia,
expressão que está em todo ser vivo, em todo ser humano numa conotação surrealista quando do Brasil se partiu,
psicótico ou inocente. · ' chegou a um abstracionismo universal para cujo ingrediente
entravam sobretudo as cores, a luz do seu Pernambuco
nativo. Ele teria dado mais peso, com a autoridade da sua
presença, ao pequeno time abstrato brasileiro de jovens

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desconhecidos (Almir Mavignier, Serpa, Maluf então estu- maquininha cinecromática (idéia que lhe veio do caleidos-
dante de Arquitetura e que ganhou o concurs~ de cartazes cópio). O júri internacional, movido também pelos precon-
para a I Bienal). Os velhos maestros consagrados resmun- ceitos de categorias então irremovíveis, só por forte pressão
gam (sobretudo Segall), mas não são ouvidos. E aqui não de alguns dos seus membros concordou em fazer constar da
há como parar sobre esse fenômeno insólito que -se deu ata uma recomen~ação para que a direção do -Museu de
na Arg~~tina e no Brasil e, por ricochete, em outros países Arte adquirisse a maquininha para seu acervo. Ivan Serpa,
da Amenca do Sul em contraste com a atualidade artística membro também do grupo, está presente na mesma Bienal;
da Europa, dos Estados Unidos e do Japão. Referimo-nos como Mavignier e Palatinik e com uma tela abstrata geo-
à forma mais severa e duradoura que tomou o abstracio- métrica levanta o prêmio destinado ao artista jovem. E
nismo: a geométrica, logo a desembocar no concretismo tempos depois Serpa atrai por suas atividades de professor
e ulteriormente do "neoconcretismo''. toda uma turma de jovens artistas que vão ter ulteriormente
Baseado nos fundamentos da estética do concretismo real renome: Décio Vieira, esse dândi de bom gosto infa-
de Vantongerloo-Bill, logo se formou em São Paulo um lível; Aloísio Carvão, já na época artesão excelente e pintor
grupo de artistas jovens e entusiastas em torno de Waldemar de surpreendentes especulações plásticas; Lígia Pape, então
Cordeiro, c:uj~ inquietação te?ri<;_a fez dele um centro pro- dedicada à xilo; como a única a representar na categoria
pulsor de idéias, por vezes mcomodo ou estéril mas ·fre- a corrente concretista, antes de desenvolver todo o seu
9,üe~temente es~imula~t~: um Geraldo Barros, de formação rico manancial de idéias criativas na fase neoconcreta e
Ja diferente, pois participou com Mavignier, Pàlatinik · dos posteriormente; e mais, o jovem estudante de Arquitetura,
nossos entusiasmos pelos artistas de Engenho de D~ntro João José, os caçulas Hélio, já com a marca da sua profun-
e foi o primeiro a farer da fotografia dita de arte não esse deza e originalidade e César Oiticica, seu irmão, hoje ta-
enlanguescimento pictórico do gosto convencional mas uma lentoso arquiteto. De Belo Horizonte, Amílcar de Castro,
experiência viril de imagens instantâneas ou fixadas, simul- seduzido pelo rigor plástico do concretismo, ·adere às idéias
tâneas óu dissolvidas em signos da vida e do espaço urba- do grupo e inicia experiências espaciais que vão se crista-
nístico; um Luís Saciloto, de origem proletária, jovem lizar numa escultura de planos desdobrados que, em seu
escultor de talento, Kasmer Fejer, escultor também e ex- desenvolvimento, nos dá a mais poderosa expressão espa-
perime~tador original em vários materiais da produção cial plástica da escultura brasileira contemporânea; e Mary
mdustnal moderna; Lothar Charoux, sereno e tranqüilo de- Vieira, que como Amílcar, foi discípula de Guignard, com
senhist~ de formas seriadas e ritmos sutis; e pintores como quem aprendeu a pintar retratos à maneira do mestre. Mary
Hermelmdo Fiaminghi e Maurício Nogueira Lima, com Vieira, pouco tempo depois da abertura da I Bienal e sob
algumas realizações do nível dentro dos cânones concre- · o impacto da obra de Bill, segue para Zurique, onde se
tistas, Jud~th Luand, e não pertencentes ao grupo mas como instala numa vida austera e solitária para iniciar-se na
companheiros de estrada: um Hércules Barsotti artista de arte concreta. Bill é o seu mestre, não no sentido didático
alta sensibilidade plástica, e Willys de Castro, ~ais jovem convencional mas num sentido mais lato pois na realidade
também rico de idéias e de finura. Seja qual for o mérit~ tudo se· resume ·em visitas da jovem iniciada ao atelier do
ou demérito deles - e alguns são dotados de real valor e mestre para consultá-lo sobre as idéias em que está traba-
com uma bagagem artística ponderável - foram os únicos lhaódo em casa ou sobre .modelos que está construindo no
qu~,. ao abrir-se a I Bienal, já tinham um ponto de vista papel. O resto é influência natural que um grande espírito
estéti~o formado, e a receberam não como basbaques ou exerce sobre os artistas começantes. Em 1953, apresenta-se
negativamente, como acadêmicos reacionários mas com um à II Bienal com algumas obras ( entre estas a bela coluna
critério, certo ou errado (não vem ao caso) que os tornava centrimental adquirida pelo Museu de Arte Moderna do
capazes de aferir o que viam de um modo atualizado ou Rio) todas rigorosamente conforme os cânones concretistas
menos arbitrário e individualístico. O mesmo se pode dizer e nas quais se sente influência billiana que já revelam, con-
do grupo afim do Rio. tudo, algumas das qualidades própria,s que a artista vai
~ouve com efeito idêntico fenômeno de aglutinação desenvolver depois · como a clareza cristalina das soluções,
n_o Rio d~ !aneiro, onde Almir Mavignier, com seu entu- e com acabamento no artesanato e na idéia, a ciência das
s1asm~, alicia Abrão P~latinik, que se entrega então a uma articulações no espaço, o pendor formal clássico, a monu-
pes9msa de cor por me10 da luz e na I Bienal conseguiu ver mentalidade. O seu · isolamento na Suíça, onde as idéias
aceita, ~as_fora dos regulamentos e de seus-prêmios, para e as coisas resistem ao tempo e se aperfeiçoam, permitiu
os quais nao se . enquadrava em nenhuma categoria, sua que ela _seguisse sua linha de desenvolvimento, sem a des-
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continuidade, imperturbavelmente,. do concretismo suíço ini- O movimento concretista foi o primeiro movimento
cial às belas soluções movediças atuais em que, se a es- brasileiro a apresentar resistência aos ventos internacionais
cultura varia ou se desenrola pela manipulação do espec- então predominantes. E tanto assim é que o apego das
tador, não se transforma propriamente pois se mantém jovens vanguardas artísticas brasileiras - vanguardas pão
erecta no seu pedestal. E depois é Lígia Clark que, de volta só pela juventude como sobretudo pelas concepções estéticas
de Paris, onde foi estudar pintura entre outros com Léger, ~ às formações mais severas e universais da abstração
se integra ao grupo ·,dos abstratos cariocas e pela mediação geométrica, ao cabo de algum tempo começou a causar irri-
de Mondrian, de Albers e a lição concretista inicia sua tação e impaciência a muita gente e, sobretudo, à crítica
carreira difícil. De fato, partindo do quadro sem moldura, internacional, já aferrada, em sua maioria, a uma estética
reduzido a superfícies moduladas, ela passa de um estágio subjetiva romântica então reinante por toda ...parte · sob a
a outro até construir no espaço real com os "casulos'' e os designação de "tachismo" ou "informal". Não se compreen-
''bichos", que inauguram a obra de participação do espec- dia aquela resistência brasileira, por tanto tempo, à corrente
tador no Brasil. Estamos em 1958. Seu insaciável espírito internacional. Todos aqueles não atinavam · que se essa re-
de investigação e pesquisa não pára aí. Ela prossegue até sistência local era capaz ·de enfrentar a moda internacional
a redução atual da obra a uma mera atividade criativa que, era porque não podia deixar de ter raízes na própria dia-
por intermédio de algum pobre material, como que tenta lética cultural dó país.
reinaugurar o gesto dos primeiros contactos humanos de Primeiro que tudo não era permitido, na situação, des-
um para outro ou outros, num anseio grupal tribal em que denh;u- o formidável peso estético e cultural da nova
se remocem as fontes vivas do corpo pela mediação pluris- arquitetura no Brasil. Por sua simples .existência ela colo-
sensorial, ou a descoberta no outro do próprio ego, a partir cava em cheio a questão da disciplina formal construtiva
da qual tudo recomeçaria - a vida, o amor, a convivência, e, pela própria posição hegemônica que exercia na con-
a comuna primeira solidária. Outra figura destacada do juntura, vinha de si ,mesmo à tona o problema estético social
grupo foi Franz Weissman, que trouxe para o concretismo da integração das Artes. E se pôde verificar, com _efeito,
uma qualidade inabitual - uma indecisão congênita que alguns exemplos raros, muito raros, embora de integração
ele sabe transformar em finura, em uma espécie de trans- de r~lativo êxito. Finalmente estava-se diante de um singular
cendência dó "acabado-não-acabado" muito sensível em momento de sadia mudança de sensibilidade, que veio com
várias de suas soluções escultóricas. · a segunda e terceira vagas de artistas modernos brasileiros.
Quanto ao neoé:oncretismo em que se resolveu tempos Rss:a m':1dança se traduzia numa necessidade imperiosa por
depois o movimento concretista do Rio, foi sobretudo um asslDl diur da ordem contra o caos, de ordem ética contra
produto cultural carioca, embora tenha atraído alguns ar- o ~orme, necessidade de opor-se à tradição supostamente
tistas paulistas como Barsotti, Willys de Castro, o Poeta nacional de acomodação ao existente, à rotina, ao confor-
Theon Spanudis e outros. Repelindo as formas seriadas ~ismo, às indefinições em que todos se ajeitam, ao roman-
do .concretismo e reabsorvendo o velho apelo expressional, tismo frouxo qu~ sem descontinuidade chega ao sentimenta-
banido da arte concreta, o neoconcretismo buscava uma obra lismo, numa sociedade de persistentes ressaibos paternalistas
total; um todo global cujas partes fossem indistinguíveis, tanto nas. relações sociais como nas relações de produção.
sem funções separadas ou extrínsecas à obra como molduras ~ tudo isso acrescenta-se a pressâo enorme, contínua, pas-
em quadro; como pedestais ou lados privilegiados, ou fundo siva, .de Qllla natureza tropical não-domesticada, cúmplice
ou suportes em escultura; margens em papel passivamente também no conformismo, na conservação da miséria social
utilizado apenas para nele inscrever-se o desenho ou, o que_ a grande propr_iedade fundiária e o capitalismo inter-
poema, mas ao contrário integralmente valorizado, de modo nac!onal produzem mcessantemente.
que todo o espaço de papel fosse conjugado ao tempo, Aliás, um crítico estrangeiro, austríaco, Jorge Lampe,
resultando daí inevitável escalonamento gráfico para um em fa~e de uina exposição brasileira itinerante, apresentada
epílogo expressivo, fatal como um escoamento, e pudesse em Viena, em 1959, estranhou, como todos os demais da
o próprio momento poético imaterial da palavra isolada confraria, a predominância do abstracionismo geométrico
integrado no todo evolar-se, concretizado enfim, sem nada, na mostra. Esta estranheza avultava tanto mais que procedia
nada que não concorresse intrinsecamente para o significado a mostra de um país dos· trópicos, indesenvolvido, o qual,
. plástico emocional. (Foi a esse ser-arte-poesia total que o segundo os_ preconceitos cultivados nos países do hemis-
poeta Ferreira Gullar tentou definir, com profunda intuição fério norte, deveria ter uma arte toda entregue a exube-
l?Oética, como o "não-objeto". râncias temperamêntais e ao infalível exotismo. Mas desta

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vez o crítico estrangeiro fez meritório esforço de reflexão a quem se associoli aliás, por bastante tempo, uma figura
no sentido de apreender as razões do "paradoxo''. E, com marcante da segunda geração, Djanira. Mas fora a temática
efeito, Lampe escrevia, a propósito, em Die Presse, ~e popular e a simplificação de formas, a afinidade dela com
Viena: " . . . impressionantes . . . são as abstrações geomé- Volpi só se pode encontrar talvez no amor à cor plana e
tricas que por seus autores dominam esta exposição. E o no instinto com que sabe integrar grandes composições numa
visitante vê-se impelido a formular consigo a seguinte per- parede arquitetônica. 1
gunta: Como pode tal tendência crescer a ponto de dominar O contestador da corrente construtiva abstrata, para
a produção artística de um povo que vive num meio sub- incluir nessa larga designação o concretismo também, apesar
tropical, em que a natureza ·ameaça? ... ". E a resposta desse negar, e com fundamento, afinidades com o simples
que achou não deixava de ser lúcida: ''A não ser que tenha abstracionismo geométrico de um Magnelli ou de um Da-
sido precisamente como reação ou defesa contra essa cir- costa, foi Franz Krajcberg. Nascido e formado na Polônia,
cunstância ameaçadora e contra o caos borbulhante ... " arrancado de sua terra pelo torvelinho da guerra que o
"De qualquer maneira, prossegue, as obras de Serpa, Da- jogou como um pária daqui para acolá até poder, após mil
costa, Décio Vieira, Lígia Clark e sobretudo Volpi são o sofrimentos, vir encontrar porto, pouso e carreira no Brasil,
resultado de uma vontade profunda e não de um calculado Krajcberg era naturalmente como artista um expressionista
formalismo." E para o crítico essa vontade profunda de nórdico, mas de um expressionismo já escoimado das for-
construir estava em paralelo com a arquitetura moderna mas torturadas figurativas do gênero, pois entregara-se (aco-
brasileira, então em pleno ímpeto. Convenhamos ser bas- modação brasileira?) a um vocabulário abstrato, ainda que
tante razoável a explicação encontrada por ele para o fenô- de clara intenção icônica. Na época do prêmio era ainda um
meno da "anomalia brasileira" e se aproximava da opinião pintor jovem em ascensão. Na Bienal, seus trabalhos sobres-
dos. críticos ·teóricos cá de casa. saíam pela exuberância dos pretos expressivos e violentos,
A nitidez, a lógica das novas estruturas, a descoberta que não chegavam porém à metáfora dos contrastes, porque
súbita, reveladora, da beleza das formas ortogônicas que absorvidos nos cinzas e meios-tons admiráveis até uma
ensandeceram Mondrian ("a sublime beleza da linha reta franja de brancos espumarentos. O motivo vegetal de suas
não encontrada na natureza") como a invenção da pers- formas (folhas) não se disfarçava muito. Com ele a natu-
pectiva torrou os miolos de Ucello, num intervalo de cinco reza reaparecia na pintura moderna brasileira, embora tráns-
séculos, a pureza enfim do novo vocabulário, surgiam posta em linguagem abstrata. E sua obra se vai desenvolver
àqueles artistas como o antídoto às deliqüescências român- em profundidade, tendo a natureza telúrica não como tema
ticas ou folclóricas, falsamente ingênuas, a um figurativismo mas como protagonista: terras, pedras, raízes, que ele vai
banalizado nos temas e nas formas usadas de um elenco buscar na fonte. De um naturalismo perigoso por vezes, ele
exausto, destinado a contentar uma magra clientela de eleva-se como que à posição de naturalista.
burgueses ou pequeno-burgueses provincianos. Em face dele estava Ivan Serpa com uma represen-
Essa ·corrente de resistência autóctone ao gosto inter- tação em que suas qualidades formais, também de textura,
nacional é contestada de frente, pela primeira vez, na IV de excelente acabamento, de preciosismo mesmo, de refi-
Bienal, em 1957. Na III - 1955 - ela era vitoriosa com nado equilíbrio plástico, estavam no alto. A equipe concre-
o grande prêmio de pintura dado a Dacosta, o primeiro na tista do Rio e de São Paulo estava bem representada por
segunda geração de modernos a ser distinguido com o Aluísio Carvão, com um homogêneo conjunto em tema
galardão, ao apresentar uma obra de extrema depuração e circular e tema triangular, Lígia Clark com suas superfícies
rara beleza, numa fusão dialética, de sua pura criação, de moduladas, Mavignier, que já em Ulm mandou duas telas,
Mondrian a Morandi. E já na II Bienal, e grande de 1953, Fiaminghi, com uma pintura em ritmos alternados, Maurício
Volpi em plena evolução para a fase das fachadas cada vez Nogueira Lima, Saciloto, com uma excelente peça escultó-
mais abstratas até criar com elas o modelo insuperável da rica, Concreçiw e, por fim, o então benjamim de toda a
paisagem urbanística abstrata da pintura moderna brasileira, Bienal, Hélio Oiticica, grave rapazola de vinte anos.
levantava o laurel, embora ex-aeque com Di Cavalcanti. O processo de penetração e interpenetração na escultura
. Essa divisão .do prêmio de pintura foi produto · de uma se fez,' porém, de modo diferente do da pintura. Depois,
última tentativa de conciliação dos membros brasileiros do
júri entre a geração dos grandes veteranos e a nova geração 1. Mas nesta bienal ainda Herbert Read, membro do Júri, descobre
um rapazola escultor e propõe lhe dêem um _prêmip, que existia, ll;DIª
em ascensão, ainda que, no fundo, representada por um viagem à Europa: é Caciporé Torres. A carreira deste talentoso artista
artista que em idade pertencia à primeira, Alfredo Volpi, começou aí. ·

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com efeito, do primeiro grande prêmio na I Bienal ter sido de Rebolo, de Djanira, afirma-se na V Bienal como um
dado a V. Brecheret, iniciou-se uma espécie de promoção pintor jovem que rompe dolorosamente com um passado de
por antiguidade de modo que o grande prêmio da II Bienal ferrenho figurativo, e pela mediação de carretéis macabra-
foi para Bruno Giorgi e o da III para Maria Martins. O mente transformados em ossos, alcança uma matéria obsesa
caso desta artista é diferente por ter sido ela uma figura sivamente torturada, de densa pasta negra, puro betume,
isolada na galeria de nossa cultura. Maria tem formação informe, buliçosa, e exausta como substância orgânica.
tarda na Europa e, tarde chegada ao nosso meio artístico, (Para contrabalançar essa obsessiva necessidade de arga-
trouxe para a escultura brasileira algo inexistente aqui, ou massar negros cada vez mais negros numa pasta cada vez
um completo desimpedimento temático - a primeira ex- mais densa, a gravura em metal, de que é mestre insupe-
pressão erótica aparecida nas nossas paragens - de ins- rável, atende às suas outras exigências de ritmo e de forma.
piração surrealista e violenta reação ao abstracionismo, pois Na VI Bienal, 1961, porém, apesar da consagração
que fez seu o lema explosivo de André Breton - ''La dos . abstracionismos não regidos por uma disciplina formal
beauté sera convulsive ou ne sera pas''. ou mesmo pela disciplina cromática imposta pelas exigências
Na IV Bienal, esgotada a lista de personalidades da cor pura com que Volpi deu ao concretismo brasileiro
"históricas", o prêmio de escultura vai para Franz Weiss- um toque extremamente original de viveza e vibração colo-
man, o ci:ue de alg~m modo balança Krajcberg na pintura. rística, que prenunciava a pintura pós-tachista da optic art,
Com a Bienal segumte (a V, 1959) a ofensiva tachista e in- é o neoconcretismo que leva a palma com o grande prêmio
formal já ocupa o acampamento de Ibirapuera. Um jovem de escultura para Clark. Esse prêmio representa uma rup-
artista japonês desconhecido, Manabu Mabe, é o vitorioso. tura com os cânones tradicionais da arte moderna. Ela traz
Mal chegado do interior de São Paulo, onde fazia seu à apreciação internacional a invenção revolucionária dos
estágio obrigatório de imigrante, Mabe ganha instantânea "bichos", ou uma construção de planos articulados no es-
notoriedade. De gosto inefavelmente japonês, as manchas paço por dobradiças e que se armam e se combinam pela
de Mabe têm um poder emocional de fácil comunicabili- ação do espectador. Este passa a participar por assim dizer
dade, e com ela inaugura-se em definitivo a voga tachista da obra, e a fazê-la e a desfazê-la dentro das combinações
no Brasil. Em pouco tempo se faz fila à porta do atelier do possíveis. Com isso ela abria caminho, por suas implicações,
pequeno e feliz japonês à esperá cada qual do seu quadro. a uma das tendências decisivas entre as modalidades inú-
O golpe feliz do pincel na tela determina em torno dele o meras que vieram após o tachismo e o informal, ou precisa-
resto da composição. A "produtividade" do pintor cresce, mente a que nega a contemplação da obra de arte como
e é claro em detrimento da qualidade. Mas a fórmula. essencial ao completar do ato do gozo estético. E assim
agrada, e a geometria é, ao mesmo tempo, repelida com negando, nega a sacrossanta intocabilidade da obra de arté.
ódio. A noção de ''distância psíquica'', tão imprescindível à con-
_- O Brasil insere-se, afinal, na grande corrente inter- templação e ao provar da obra de arte, é substituída por
nac10nal, cuja pintura, quando autêntica, é uma espécie outra relação que a da obra e do sujeito que a contempla.
de teste Rorschach para a interpretação das almas angus- Ou a relação em que a figura do contemplador cede lugar
tiadas das classes médias urbanas de todo o mundo. Na à do espectador, cujo papel não é mais apenas o de con-
~li:ª~ eloqüênc!a comunicativa ela é, por vezes, uma inter- templar: ele entra por assim dizer na idéia ou no projeto
1e1çao do artista no desespero de sua solidão. Evocando o do criador, completa-o, redescobre-o, enriquece-o com sua
grito de consciência dilacerada de Klee, ainda nos dias intervenção. O espectador não sai do cotidiano, contem-
matinais da Bauhaus, uma geração depois dele é tomada plando; sai agindo, fazendo. Já se está longe da estética
po_r u~a vaga de ensimesmamento solipsista, das fímbrias subjetiva, do informal, do tachismo. Pede-se agora uma
onenta1s da Europa e Japão ao Extremo Ocidente que é nova atitude do público para com a obra criada, uma nova
América. ' educação mesmo. De educação, aliás, a Bienal nunca co-
. Depois ~a viragem decisiva do gosto do pequeno pú- gitou. Nunca deu atenção ao problema. Daí a parte propria-
blico consumidor de arte, em 1959, na VI Bienal outro mente pedagógica, instrutiva, informativa das bienais ter
pintor é distinguido com a !áurea; desta vez é um brasi- sido nula. E por isso mesmo em face de tantas obras, de
l~iro, de nascimento e formação: Iberê Camargo. Iberê tantos artistas, ··os maiores do mundo, de tantas expressões
vm~a ~e um tenaz figurativismo, quando passou para a originais e contrárias de todo o movimento contemporâneo
~ais v10len!a, a mais conseqüente expressão tachista da e também histórico, o que o público assimilou não chega
pmtura nacional contemporânea. Da geração de Dacosta, certamente a um quarto, a um quinto, a um sexto do que

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lhe foi mostrado. E o pouco de assimilação consumida foi Lepntina uma inquietação maior, mais incertezas sem dú-
caótico, contraditório, deformado e insuficiente. E pelo vida e uma abertura à brasileira que não havia na obra
esforço, pelos cuidados da própria Bienal, a documentação de di Prete, perfeitamente enquadrada numa fórmula con-
que ficou é paupérrima. Todo o seu esforço editorial ficou sagrada. O Júri optou precisamente pelo caráter europeu
nos catálogos muito gerais. Muito pouco. A desinformação da pintura, de boa fatura e rica na modulação cromática.
é quase total. E os nomes dos bons pintores à la page não terminam::
As novas tendências não se impuseram de uma vez um Flexor, com sua tarimba e sua perfeita consciência dos
por todas. Mas sim .a conta-gotas, pois críticos, artistas, meios; Fukushima, risonho hedonista à la japonesa, cuja
amadores que tanto custaram a apreender, a assimilar esta matéria preciosa nunca foi tão bem aproveitada quanto nas
ou aquela escola, movimento, não tinham em geral capa- experiências informais de seu abstracionismo; ou essa admi-
cidade degustativa, digestiva para no ano seguinte aceitar, rável vocação pictórica que é Tomie Ohtake e Sheila Bran-
engolir outra dose de novidade, outra ultimíssima tendência ningan, cuja poderosa e profunda descarga expressiva era
contrária aos princípios, às idéias das precedentes. E por transmitida através de um desenho muito sensível com
isso mesmo ficava preso eternamente ao cubismo, cuja real impacto pictórico. E a enumeração de talentos podia
essência tivera tanto trabalho em apreender, outro se agar- continuar, como, por exemplo, um Fernando Lemos, com
rava ao fauvismo, este ao abstracionismo sob suas diversas sua pintura sólida e lírica, um Ivan Serpa, convertido por
variantes, aquele ao expressionismo, aquele outro, mais um momento ao informal, um Flávio Shiro, e o saudoso,
moço, ao tachismo ou ao informal ou mesmo ao concre- doce Antônio Bandeira, o primeiro tachista a surgir no
tismo, já intelectual e culturalmente mais sofisticado ou Brasil, saído da quase secreta confraria de. Wolls, no seu
fundamentado. (Pobres dos críticos! Em sua maioria, nesta antro parisiense. E mais aqueles cujos nomes aqui não são
altura do século já de língua de fora. Ai de quem não se enumerados ( entre os quais alguns escultores e desenhistas
fizer uma visão global do conjunto do fenômeno artístico de meu apreço), mas que se não o são não é por ignorá-
da época, ou se armar de uma concepção filosófica, cientí- los ou por desmerecerem, mas porque, sendo partes do
fica, sociológica, estética, histórica para enfrentar o calei- mesmo contexto, bem o poderiam ter sido no lugar dos que
d~scópio dos ism~s_, sem faniquitos de impaciência, sem ti- o foram.
midez, sem segwd1smo acrílico ou bocó, sem frustrações
de incompreensão, sem negativismos, mas aberto aberto e
crítico!) '
A fila, por isso mesmo, dos bons, excelentes cozinheiros
das várias pinturas abstratas prossegue pelas bienais, com
maior ou menor força expressiva ou individualidade. E a
começar por Yolanda Mohaly, o grande prêmio de pintura
na última bienal a reger-se ainda pelo velho regulamento
que distinguiu a representação brasileira da estrangeira
para distribuir o palmares de prêmios, separadamente. Lá
está Maria Leontina que na I Bienal balançou o Júri Inter-
nacional, qu~ndo teve este de escolher o premiado da pintura
entre bras1le1ros. Para surpresa geral, tirou então o grande
prêmio, c<;>mo _se sabe, um pintor mal chegado da Itália,
desc~mhe~1do amda em São Paulo, embora com qualidades,
D~mlo d! Prete, hoje um brasileiro como nós. A tela pre-
miada foi u~a natureza morta, Limões, em verdes transpa-
rentes e resmosos, ao gosto de um pós-impressionismo ita-
liano. Em face dele, a jovem Maria Leontina apresentava
também Natureza Morta, e rmagens de Santana, segundo a
iconografia popular. Se sua mostra podia ou não ser inferior
a de di Prete quanto ao tratamento cromático, era mais
avançada que a dele no que toca à composição em planos e
de uma maior liberdade espacial. Havia nas telas de Maria

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47. POR DENTRO E POR FORA DAS
BIENAIS

~ inútil e sem qualquer interesse fazer o registro das


bienais, uma por uma, com suas listas de premiações de ar-
tistas presentes. Para isso existem os catálogos. (Mesmo da
II Bienal, 1953, a do Quarto Centenário, que foi a maior
exposição de arte moderna que se fez no mundo durante
a década.) Depois da VI que marcou a sua passagem com
algumas das mostras mais importantes, e internacionalmente
raras, expostas no lbirapuera, tanto do ponto de vista mu-
seográfico como do ponto de vista cultural, antropológico,
histórico, estético (por exemplo, o barroco jesuítico para-
guaio, a retrospectiva da caligrafia sino-japonesa do século
VIII aos calígrafos abstratos contemporâneos do Japão, a
dos aborígines australianos com sua pintura em córtex de
árvore, um dos momentos antropológicos e estéticos mais
significativos do mundo contemporâneo, sem falar em outros
mestres histórico-culturais de valor, além da admirável re-

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trospectiva de Schwitters, o mestre dadaísta precursor das nosos ou de vitrines da General Electric, foi consumida até
colagens modernas, das apropriações polimateristas e das a saciedade e à destruição pelas crianças primeiro, e pelos
assemblages atuais) as sucessivas bienais, com uma ou outra pais a seguir, quando o fascínio e a curiosidade sobrepuja-
exposição museográfica notável, mas ao acaso das circuns- ram a timidez. E Tinguely também, o descendente de Calder
tâncias ou isolada no contexto sem sistemática, se vão pela fantasia inv~ntiva e sobretudo pelo humor, com suas
repetindo enfadonhamente. Seus prêmios acabam por perder máquinas para nada ou só para se autodestruírem, também
qualquer significação, tomando-se um jogo de marchands por lá passou e foi entendido, bem como a série infindável
ou de combinações políticas em função de rivalidades na- de proposições que pedem a participação pública. O. tabu
cionais que se compensam reciprocamente, quando não . do "não me toques" é afinal abandonado. E os espectadores
explodem em conflitos e escândalos no plano internacional; em massa enfim compreendem, e aceitam, o convite e parti-
enquanto que no pla:no nacional se a influência do mar- cipação. A vanguarda do público, isto é, as crianças, não
chand não é tão pronunciada, é ainda contudo menos retida se retém mais. Mexem por toda parte e adoram. Os adultos,
ou controlada a dos conchavos políticos e personalistas. ou a retaguarda, os seguem. O resultado é uma destruição
(Houve um júri internacional de uma das bienais em que total ou quase uma alegria contagiosa. O público ou o
várias mulheres artistas espalhadas pelos diversos pavilhões povo, em tudo em que se mete em massa, e com prazer,
tinham seus respectivos esposos como membros do Júri: é em si mesmo bárbaro, condição aliás, sine qua non para
todas sem exceção foram contempladas com prêmios.) todas as grandes iniciativas. Como as crianças, ele só apren-
A falta de qualquer critério objetivo da distribuição de destruindo. E realmente, após dias de abertura, não
desses prêmios acabou por levar um desses júris a dar ao havia mais obras intactas na Bienal, e as engrenagens elé-
mesmo pintor que ganhou o grande prêmio brasileiro de tricas e mecânicas haviam saltado todas. As máquinas e
pintura na I Bienal, o grande da VII. Até hoje não se motores estavam fora de uso, os interruptores destroçados,
sabe a razão das preferências, o que terminou por afundar as luzes apagadas e os sons mudos. Nas salas brasileiras,
no ridículo essa cerimônia custosa e arcaica. Em face do para as quais um júri da seleção de missionário, sob a as-
desenvolvimento vertiginoso de tendências e da dissolução cendência de Mário Schenberg, deixou passar tudo, o bom
cada vez mais radical das categorias tradicionais de arte, e o mau, o achado e o inacabado, bastando para tanto que
pintura, escultura, gravura, desenho, e sobretudo em face algum embrião de idéia despontasse, as geringonças mon-
do caráter cada vez mais experimental do próprio processo tadas muitas delas a duras penas, não resistiram ao contato,
criativo, a quem premiar? Como premiar? Tem um júri ao b~lir do espectador. Ao fim do certame, só havia ruínas,
aleatório, reunido ao acaso, mesmo que formado de nomes destroços, principalmente no pavilhão brasileiro. E não se
consagrados ou respeitados internacionalmente, o que vem sabia se ali tinha havido um dia de maravilhosa festa ou
acontecendo cada vez mais raramente, ou pode ter qualquer uma feroz batalha de vândalos. O povo consagra a arte
critério comum possível para dar prêmio a este e não àquele nova.
cara quando um apresenta um boneco de pano e urra à sua De agora em diante tudo se pode fazer, fazer de novo
passagem, outro faz um buraco no chão cheio de pedras, as bienais que se faziam 1 é um desperdício provinciano de
um terceiro, uma sala com muitos botões para você apertar, dinheiro, energias, de boa vontade. t!, o "prestígio'' que dava
um quarto e um quinto, uma reprodução mecânica do ao Brasil, já deu, não dá mais. (Nos últimos anos o único
velho anúncio com pisca-pisca, ou mesmo uma nova figu- pavilhão com mostras dignamente apresentado, de padrão
ração já idosa, ou mesmo uma insolitamente velha pintura museográfico, com organização científica, tem sido o ame-
tachista à la Mabe ou Mathieu? ricano como quando nos deu a maravilhosa sala da pop'art
. Mas que ainda se faça referência à penúltima das em to;no de um velho mestre local esquecido, Hopper, mas
bienais, a IX, e, por força das coisas à última, a X do ano é quase em recinto fechado, de fácil controle e custando
passado. A IX Bienal, 1967, foi aquela em que as inovações rios de dinheiro.) O resto dos pavilhões, tanto na técnica
radicais que. começaram a acontecer a partir da VI, ou presentativa como no critério de seleção dos artistas, com
à primeira década de sessenta, tiveram sua plena expansão. raras exceções, pelo menos quanto .à escolha de nomes é
No lbirapuera, 1967, o grande público afinal entendeu que 1. A idéia de pré-bienal, ora lançad a, poderi a ser ~ecunda se fosse
se tratava agora de algo diferente do que vinha apreciando mesmo para explorar in loco o esforço criativo que vru pelos Estados
desde as primeiras mostras. Desta vez, a safa mágica de Le da periferia, Amazonas, Piauí. Santa Catarina, Mato .Grosso .etc. Pelo
contãgio da Bienal de São Paulo, abriu-se uma na Bahia. Infelizmente a
Pare, com seus painéis de usina elétrica, seus fios, mesas, feudalidade local não permitiu que ela escapasse dah e desse frutos . Mas
sinais que se movem com uma fantasia de anúncios lumi- também a entrava a conjuntura política, lã como aliás pelo Brasil.

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fruto do momento. Em sua grande maioria, os pavilhões es- momca, o último dos grandes premiados: primoroso na
trangeiros são organizados ao deus dará, ou segundo a técnica, cosmopolita no espaço, hedonista na estética. Do
rotina burocrática já estabelecida. Para esse mecanismo en- brasileiro Goeldi ao brasileiro Delamônica há um espaço
trar a funcionar, basta uma carta também rotineira da di- histórico comum irreversível, numa diacronia fatal embora
reção da Bienal, em ano par, à autoridade competente de estranhamente tumultuada.
cada país. Mas falemos agora da família de artista que, se das
A X Bienal foi uma paródia das outras, mas triste bienais vários participaram, a elas por assim dizer ficaram ,
e insignificante. A crise, porém, não é só da Bienal de culturalmente estranhos. São os que na linha do longo e
São Paulo. A de Veneza passou agora por uma reforma para acidentado perfil orográfico do co_ntinente brasileiro, se
ver se sobrevive. Sendo entretanto uma organização do abrigam ou se aninham pelos diferentes desníveis do perfil.
turismo italiano, e de mais a mais das menos importantes, O Brasil, como toda nação viva, é uma anônima e co-
seu funcionamento regulamentar está perfeitamente garan- letiva aspiração às mais altas plataformas para seu destino.
tido. As grandes ~anifestações coletivas de arte por toda No fundo, no fundo, se Brasília foi criada, apesar de tudo
parte estão em crise; e a contestação faz parte delas ou lhes e de todos, era porque _obedecia àquela misteriosa aspiração.
é inerente, uma vez que contestação e cultura são hoje um Quando, ao nascer da nacionalidade, tomou-se consciência
e o outro lado do mesmo fenômeno. Crítica é hoje a poesia, de sua existência como tal, ainda se era o caranguejo a
crítica é hoje a arte, crítica a ciência, crítica a educação, arranhar as areias da costa, na imagem do bom frei Vicente
moral, a religião. A consciência dilacerada não é hoje do Salvador, o primeiro de nossos historiadores. O olhar
apenas a consciência do povo, das massas, das classes; é estrábico do caranguejo espiava ao mesmo tempo as cara-
também e das elites e das vanguardas. A arte é um esforço velas que vinham do mar e o mato virgem que ià de terra
perene de superação da consciência dilacerada. Ela é por adentro. Lá fora estava um destino por assim dizer já de-
isso mesmo vencida sempre, substituída por outro esforço, senhado ou feito. Lá dentro um destino - se houvesse -
e assim indefinidamente até o ser da sociedade deixar de a fazer. O planalto central foi o primeiro mito telúrico a
ser dilacerado. As bienais, ao se institucionalizarem, configurar o Brasil. Geógrafos eminentes - e ingleses -
são, como as escolas de arte, as academias, os museus, ins- divisaram o planalto central como a causa geográfica da
trumentos de glorificação do estado presente da arte e do nossa unidade continental; do nosso imenso esqueleto ele
resto das superestruturas, quer dizer, o estado da cons- seria uma espécie de gigantesco eterno, chave protetora do
ciência dilacerada. Daí a contradição entre as duas finali- peito e do coração. Ali foi colocada Brasília, desde antes de
dades e suas funções. ser construída. Antes mesmo de se saber o que era a região
Se artistas brasileiros de valor foram distinguidos com - pântano, vulcão, abismo. Por isso mesmo, ao tornar-se
prêmios no curso das bienais, outros ficaram de fora do fato, Brasília criou para o país todo algo que não existia,
circuito delas. E praticamente em todas as categorias. Como uma perspectiva que física e espiritualmente pela primeira
se sabe, a VIII Bienal foi a última a distribuir prêmios sepa- vez o abarca - perspectiva de Brasília.2
rados para brasileiros e estrangeiros e aconteceu que os Dela, e só dela, se vê irem ventos que outrora sopra-
principais laureados foram merecedores da distinção. E vam nas caravelas, se vê virem os ventos que ainda sopram
co~o exemplo ~e_sse acerto destacamos Sérgio Camargo, nos brasis . destroçados que mal sobrevivem, nas senzalas
cuJa obra escultonca no fundo de expressão "óptica" mo- que não desapareceram, nas estruturas coloniais que não
~erna tem a orip~alidade ( a velha originalidade de tudo que · acabaram. No dia em que Brasília for Brasília, isto é, a
e realmente ongmal) de captar a luz que baixa sobre as capital verdadeira de um Brasil renovado, a plataforma do
coisas por ser a ·sombra o que controla. Também, se, da planalto central será realmente a mais alta plataforma eco-
altura no tempo em que nos encontramos, examinamos os nômica, social, ética, cultural alcançada por toda a nação.
lauréis máximos dados à categoria dos gravadores, verifi- Os desníveis serão desmanchados. Do alto dessa plataforma
camos ter havido quase uma lógica interna na sucessão dos o regional será subsumido no nacional, o nacional subsu-
.premiados, desde o, ".elho glorioso Goeldi, anais do que o mido no internacional. Um Brasil outro que o de hoje terá
maugurador cronologico da nossa gravura, o seu criador no a sua mensagem, seu acento, seus fonemas, seus modos,
no_sso. espaço cultural, passando por Fayga Ostrower, a
pnmeira que em metal elevou as manchas, os matizes, as 2. A consciêno.ia des.sa perspectiva 'd e Brasflia nasceu precisamente
entre os membros do júri dum salão de Brasflia excelentemente planejado
sugestões metafóricas tirados daquela, na categoria digamos por Frederico Morais e constituído por Clarival Valadares, Mário Barata,
informal - a um verdadeiro pensamento plástico até Dela- Walter Zan.inl, o próprio Morais e Mário Pedrosa (IV S_alão, 1967).

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inclusive sua arte perfeitamente inteligíveis a outras mensa- falam a nossa linguagem, agem como os outros, mas há um
gens, dentro do sistema semiológico único de comunicação significado esotérico por trás do que dizem; um arcaísmo
mundial. gestual ou mesmo conceituai preside a seus atos criativos.
Eles se encontra'.m entre os anônimos f!).Zedores de coisas,
Se a Arte ou modo regional de um pernambucano, de entre os "exóticos'' de canto de rua nas aldeias. Um deles
um baiano, de um mato-grossense, de um amazonense ou pinta 30 anos a fio, em S. José do Rio Preto (um ofício
de um gaúcho, seja de um aristocrata como F. Brennand, de que aprendeu de oitiva, ou nasceu sabendo), mas não repete
um plebeu como Rubem Valentim, de um pequeno-burguês detalhes "ingênuos" que caíram no gosto do público e
como Humberto Espíndola, parece, hoje, não se afinar com os marchands sabem explorar. Refiro-me a José Antônio
a grande arte transcendente de Mira Schendel, com o pensa- da Silva que, em voga ou fora de voga, pinta e desenha com
mento urbanístico de Gerchman - Dias - Rezende - a vitalidade dos primeiros dias, quando sabichões da cidade
Nasser - Tomoshigue - Tozzi - Vergara - Nitsche o descobriram. (Pois na VII Bienal, por um triz não levanta
- Gastão Manuel - Antônio H. Amaral - Ronaldo Lima o galardão maior de pintura: pesou sobre o júri a timidez
e a falange dos mais moços ainda em que apontam um da maioria.)
Cildo Meireles, um Barrios, uma Lotus Lobo, um Antônio
Manuel, um Ascânio, uma Tereza Soares ou a conotação Outro membro dessa família à parte de criadores foi
cosmopolita de um Wesley D. Lee ou um Nelson Leimer, Raymundo de Oliveira, todo entregue à evocação de umn
ou as atividades - criatividades de um Hélio Oiticica, esse era arcaica, de arquétipos, de homens barbudos, de homens
formidável antropófago de si mesmo, o mais brasileiro dos contrários ou superiores a .nós, mas iguais entre, si, que se
artistas brasileiros, ou as de uma Lígia Clark - afinam-se repetem em teoria numa mesma faina, numa mesma cena,
contudo pelo clima da plataforma brasílica, pela perspectiva baIJ,quete, bacanal, coroamento, distribuição de bens, ceri-
de Brasília, pela invencível diacronia da linguagem . . . a . mônia fúnebre, nascimento, iniciação, casamento, julga-
das metalinguagens em que se amalgamam, pela fatalidade mento, castigo, oferendas, ritos, ritos, ritos, numa icono-
histérica e o pulsar endo - e - exogâmico sob que vivem. grafia de protótipos de uma burocracia eterna e sagrada.
Está subentendido que essas perspetivas estão ainda muito Em cores de miniatura, num formalismo hierárquico, Ray-
condicionadas. Tudo isso é incerto. O futuro é inseguro. mundo de Oliveira, como um escriba à la egípcia, foi para
Uma revolução precisa passar e varrer o Brasil como um nós, numa pintura por.vezes fulgurante, o registrador inquie-
tufão. tante de mensagens tiradas dos velhos livros sagrados das
Há ainda aqui, como por toda parte, uma outra família antiqüíssimas e cruéis civilizações que um dia emergiram e
de seres que vive parcialmente de fora desse contexto. um dia submergiram nas margens dos rios também sagrados
Vive numa intemporalidade perene, porque se situa fora da- Mesopotâmia. Estra.nho ao terripo e à moda, a vocação
desse condicionamento cultural terciário que é o de todos hedonística do artista não o poupou, entretanto; de matar-se.
nós. Nela, os que são artistas o são sobretudo por serem E assim expulsou de si mesmo e da confraria dos "ingê-
homens com determinações pré-sociais absorventes, e não nuos" em que o ·quiseram profissionalizar. E me abalanço a
se integram senão em segundo ou em terceiro grau no meio destacar um nome bem mais moço dessa família, o de
social e cultural por onde circulam. Pesam mais que os Darcílio Lim_a que não participou de nenhuma bienal, e
nossos, .seus condicionamentos primários, biológicos, psí- com coragem recusou-se à última. Este veio do Ceará com
quicos. São artistas fora do tempo. Numa designação peri- uma obsessão que está no ápice de uma onda de contestação
gosa, propícia às explorações de um mercado de arte perpe- revolucionária, a obsessão erótica a que ele emprestou a
tuamente à cata de excentricismos que quando não existem profundeza de uma religião, uma reforma herética. Ele
são inventados, tratam-nos de "primitivos" ou "ingênuos". não sabe, mas dir-se-ia ter suas raízes na velha terra da
Mas não se trata desses. Trata-se dos que trazem consigo, lndia do Ganges que ele ignora. Ao aparecei:" está ele, graças
insuportáveis a carregar, mensagens que não sendo de hoje ao erotismo de seus desenhos e objetos, em plena moda;
jamais se transformarão em média. São imemoriais como a na realidade, porém, sendo um ''ultra'' já parece fora de
consciência. No sincrônico condicionamento deles para moda, pois fora de tempo já é. Sua mensagem é das horas
conosco, evidencia-se um descompasso entre eles e nós, fundamentais, quando o indivíduo ainda não encontrou na
quanto às atividades coletivas e obrigatórias do cotidiano, série determinante das nossas sucessivas servidões da so-
quanto às idéias e às modas que moldam ou entre nós ciedade classista em que vivemos. Mas seu caso é aberto.
circulam. Fazem coisas insólitas e claras, gratuitas ou não, S que está passando pela prova terrível do êxito. Muito

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moço, desconhece a formidável definição de Marx: "Ho- o calor, a elegância, o pique e o amor de que careciam os
mem, carcaça do tempo". seus criadores.
Uma coisa são os artistas fora do tempo, num des- A arte ambiental no Brasil, de que foi no mundo um
compasso cultural e moral que em parte os libera do coti- dos países precursores, caracteriza-se sobretudo por ser·
diano; outra coisa são os "fantásticos" e "ingênuos" de seu vivencial e por nunca se ter embarafustado (a não ser
tempo, e até das modas, cujo condicionamento é cada vez posteriormente, sobretudo em São Paulo) pela outra moda-
mais adequado aos fins, ao comércio. lidade ambiental que é a ambiental abstrata, reflexo das
virtualidades tecnológicas da civilização industrial. Que esse
Os movimentos sucessivos internacionais, que chegaram movimento foi fecundo dizem as imediatas repercussões que
e se foram tiveram a Bienal como seu portão imigratório. o levaram a extravasar do núcleo inicial dos artistas plás-
Depois do tachismo e do informal que constituem a impor- ticos para atrair poetas como Rogério Duarte e músicos
tantíssima fase de assimilação das novidades no Brasil, ini- populares de gênio como Caetano Veloso, e ampliar-se, com
ciou-se quase inconscientemente aqui um esforço de elabo- as deformações dos meios, até as boates e a televisão. E
ração própria no campo criativo. O momento desse esforço a novíssima geração que já aponta prossegue na trilha da
deu-se grosso modo com os ''bichos" de Clark e o "não- ambiência urbana carioca, embora ainda mais despojada
-objeto" de Ferreira Gullar. Outro instante decisivo foi a de meios técnicos, ainda mais minimalizada de conteúdo
dolorosa iniciação de Hélio Oiticica como passista de Man- artístico, mais adstrita aos recursos próprios diretos apro-
gueira, seguida da tentativa de participação num desfile priáveis, à pobreza, enfim, numa consciência grupal menos
dela de uma escultora, espécie de portada monumental e de aberta ou idealista, ou mais radical de postura . .
painéis alusivos ao samba-enredo do ano, de Amílcar Em São Paulo, onde o prestígio tecnológico é maior
Castro, além de um dos pesados fetiches de Fernando e as cavilações teóricas sempre foram de maior peso, apare-
Jacson. Oiticica rompe as barreiras com os núcleos, os cem pequenos núcleos dedicados à arte programada através
"penetráveis'', e (designação dele, antes de ter sido dada a dos IBM e à Cibernética com, entre outros o veterano Cor-
certos ambientes de J. Soto) e sobretudo os. bólidos e os deiro, Efísio Putzoli além de pequenos círculos aqui e acolá
parangolés, enquanto Clark rejeita o visual e começa a principalmente entre estudantes de Arquitetura, do qual cito
sua exploração plurissensorial, em que se · analisam as sen- o nome de Salvador, por conhecer melhor o que faz. E
sações, uma por uma, como para redescobri-la em face de entre os que negam a nobreza de produto único, isto é,
uma civilização que as embotou. São operações hápticas, da obra de arte aristocrática, inacessível, destinada a ser
táteis que vão desde o livro sensorial até a roupa-corpo- encerrada em museu ou em coleção privada seletíssima,
-roupa em que tenta refazer nas relações roupa-corpo a está Amélia Toledo, que manda tranqüila e desmistificadora-
síntese das sensações que havia decomposto para, a seguir, mente seus artigos, como qualquer outro, às pequenas lojas.
redefinir o próprio corpo em suas funções interiores deci- Sua consciência social esconde, entretanto, uma alta espe-
sivas com o Labirinto, ou a fórmula magistral: "A Casa culação plástica. A produção dela não é porém o que se
é o Corpo". E Gerchman, mais moço, passa a descrever chama de "múltiplos", pois é artesanal e não industrial,
o viver coletivo de sua cidade desde o ônibus aos "aparta- fabricada em massa por máquina. (Ione Saldanha, feliz in-
mentos", do vidro de balas dos botequins às marmitas do ventora de tabiques e bambus, seria da família de Amélia
ambulante comer proletário; que a imagem é trágica, mas o Toledo, se uma timidez aristocrática não a retivesse.) E
seu pop é carioca, como seus futibólers e suas mulheres. há ainda na Paulicéia o grupo de excelentes experimenta-
Cariocas ainda são os pequenos atravancados de móveis dos dores dedicados a um gênero especial de pintura ou uma
pequenos-burgueses e marginais do Rio, que nos deu An- espécie de modelo reduzido de paisagem como Rezende,
tônio Dias antes de viajar para fora. E tem ainda a marca Tomoshigue e outros, como Colares no Rio, talvez ainda
quente dessa ambiência o que fez Roberto Magalhães, esse como ressonância do artista pop americano de Indiana.
prodigioso detonador de imagens, o mais poderoso dese- Enfim, no Brasil se faz também de tudo. Os bolsões de
nhista icônico desde Marcelo Grassman jovem. E quando, a espírito colonialista, que a:inda teimam em só aceitar "novi-
partir de Mangueira, Oiticica descobre a "Tropicália", de dades" quando vêm de fora, Europa e Estados Unidos, se
que é sede os jardins do Museu de Arte Moderna, estava concentram hoje sobretudo nos provectos responsáveis e
visto que todo esse movimento novo era mais do que bra- dirigentes das entidades culturais e artísticas que regulam ou
sileiro, era essencialmente carioca. E só realmente o Rio determinam nossas artes. Essa fauna é principalmente buli-
podia ter-lhes oferecido a ambiência, e extroversão, o nervo, çosa e influente em São Paulo.

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A sociedade de consumo de massa não é propícia às o suor de seu rosto, para que pelo trabalho e pelo lazer,
artes. Desde a passagem do tachismo que a sucessividade sem mais diferenças entre um e outro, aprenda a viver ( o
dos movimentos vanguardistas, ao contrário de se vir ate- artista já é o único ser para quem, hoje mesmo, <;> lazer não
nuando, veio se acelerando. Em face disso, começamos a é urna ociosa ausência de trabalho, corno na concepção
falar na "lei do aceleramento dos ismos''. Na realidade, à burguesa).
medida que essa sociedade se amplia, ( o eixo econômico Em face dos prodigiosos produtos da arte e da cultura
Rio - S. Paulo, metrópole em relação ao resto do país, de massas, a despeito de seus poderes contagiantes, s!o
envereda cada vez mais por esse caminho.) se intensifica, aquelas experiências que pensam; elas é que no fundo estao
se exaspera até a histeria, vai já alcançando a saturação, e mudando a figura da Arte, a natureza da Arte, o papel,
dá na revolta anárquica (dos hippies) e, ao contrário, na a finalidade da Arte, e talvez mesmo, pondo em questão
negatividade total. Não há mais lugar nessa sociedade para o seu sobreviver numa civilização em naufrágio, num mun-
a arte moderna, com suas exigências de qualidade e não- do em vias de transformações imprevisíveis.
. -ambigüidade. Por ter ficado elitista, sem o querer, Mon-
drian queria que a Arte morresse para que a vida mesma na
sociedade assumisse as suas funções. Klee queria que o Cabo Frio, fevereiro, 1970.
povo a sustentasse - ela saiu da ordem do dia, foi rebai-
xada a uma atividade intimista de clube fechado. Uma ''arte
pós-moderna" inicia-se. :É que entre aquela e o povo a
sociedade de consumo de massa se interpôs pela comu-
nicação de massa que deu à imagem uma força atributiva
maior do que a palavra, e forneceu à indústria, ao poder
da publicidade, suas invencíveis armas ofensivas. A chamada
cultura de massa e arte de massa já não têm, entretanto,
forças para deter a debandada geral. O ismos vêm dé desa-
parecer na voragem do mercado de massa. No seio mesmo
dos artistas, concomitantemente com a reação espontânea
e cada vez mais torrencial da juventude mundial, inclusive
a das classes proletárias dos países altamente desenvolvidos,
que começa a cerrar fileiras nos "exércitos culturais de re-
serva" dos jovens burgueses e pequeno-burgueses do mundo,
na recusa à integração na sociedade de consumo de massa,
uma reação nasceu contra o consumismo pelo consumidor,
e artistas passaram a recusar produzir para o marchand. Daí
surgiram, ao lado das produções ainda manipuladas e ma-
nipuláveis pelo mercado de arte, as mais desabridas ou
as mais niilistas experiências atuais, por aqui e pelo mundo.
Eles se entregam, consciente ou inconscientemente, a uma
operação inteiramente inédita com esse caráter extrovertido
de massa nas sociedades burguesas ou nas sociedades em
geral: o exercício, mas o exercício experimental da liber-
dade. E a primeira conseqüência disto é não criar para o
mercado capitalista, é não criar para que tudo de novo se
metamorfoseie em valor de troca, isto é, em mercadoria.
Não fazem obras perenes, mas antes propõem atos·, gestos,
ações coletivas, movimentos no plano da atividade ----,- criati-
vidade. :É possível que muitos desses artistas sonhem ou já
se inspirem numa aspiração utópica ( os artistas são sempre
antecipadores do devenir histórico) de urna sociedade em
que o homem não trabalhe mais para ganhar a vida com

308 309
48. MARIO PEDROSA: DADOS BIOGRÁFICOS
Nasceu em 20 de abril de 1900, na cidade de Tim-
baúba, Pernambuco (divisa com a Paraíba), de família
paràibana.
Estudou em Lausanne, na Suíça. Formou-se em Di-
reito (1923) pela então Faculdade de Direito do Rio de
Janeiro.
Viveu em São Paulo no período de 1920-22, quando
conheceu Mário de Andrade, de quem ficou amigo. Tra-
balhou como redator de política internacional no Diário da
Noite, de São Paulo, no tempo de Osvaldo Chateaubriand
e Rafael Corrêa de Oliveira, convivendo com os meios artís-
ticos da época, tendo como companheiros de redação, entre
outros, o pintor Di Cavalcanti e Lívio Xavier. Naquela
época chegou a exercer a crítica literária do Jornal.
Em 1927, foi para a Alemanha, estudar na Faculdade
de Filosofia da Universidade de Berlim, fazendo cursos de
Filosofia, Sociologia e Estética, tendo como professores,

311
entre outros, Breysig, Werner Sombart, Thurnewald, Spran- seu de Arte Moderna do Japão, no preparo do ensaio sobre
gel e Vogel. . A Caligrafia Sino-Japonesa Moderna e a Arte Abstrata do
Voltou ao Brasil em 1929. Ainda em 1927, ligou-se Ocidente. Tomou parte no Júri da Bienal de São Paulo
ao movimento surrealista na França, com Breton, Benjamin de 1953 e 1955.
Péret, Tanguy e Miró. Teve grande atividade política desde Foi organizador do Congresso Internacional de Críticos
os tempos da Faculdade de Direito. d.! Arte que se reuniu em Brasília, São Paulo e Rio de
Janeiro, em 1959, tendo sido relator da tese principal.
O primeiro grande ensaio sobre Artes Plásticas que
Tomou parte no Congresso Internacional de Críticos
escreveu foi a conferência "As tendências sociais da arte
de Arte, realizado em Varsóvia.
e Kaethe Kolwitz", realizada em 1932, no Club dos Artistas
Crítico de Arte, durante algum tempo da Tribuna da
Modernos, fundado por Flávio de Carvalho.
Imprensa, Rio de Janeiro, ocupou em 1957 a crítica de
Em 1934 foi ferido na Praça da Sé, num conflito com artes visuais do Jornal do Brasil, mantendo-a por vários
integralistas. Transfere-se para o Rio em 1935. Trabalha, anos.
então, na Agência Havas. Com o golpe ~e Estado de 37, Livre-docente da Faculdade de Arquitetura da Univer-
foi exilado do Brasil, permanecendo refugiado durante todo sidade do Rio de Janeiro, cadeira de História da Arte e
o período do Estado Novo. Estética. Professor de História do Brasil do Colégio Pedro
Passa os anos de 1937 e 38 em Paris, transferindo-se II, Internato, do Rio de Janeiro. Escreveu tese de concurso
neste último ano para Nova York, onde trabalhou no Museu para catedrático desta última cadeira intitulada Dos Obstá-
de Arte Moderna e no Escritório do Coordenador de As- oulos Políticos à Missão Artística Francesa. ~. também,
suntos Interamericanos, passando depois para o Boletim da livre-docente de Filosofia do mesmo Colégio Pedro II,
União Pan-Americana, em Washington. Na França e nos tendo defendido a tese: Evolução do conceito de ideologia:
Estados Unidos colaborou ativamente em revistas de cultu- da Filosofia d Sociologia. Foi diretor do Museo de la Soli-
ra política e arte. dariedad, de Santiago, Chile. . Reside atualmente em Paris.
Em 1940 volta ao Brasil, mas é preso e de novo de- Outras obras publicadas: Forma e Personalidade; Pano-
portado pela ditadura para os Estados Unidos. rama da Pintura Contemporânea; Dimensões da Arte; A
Quando da inauguração dos painéis de Portinari na Problemática da Arte Contemporânea, ensaio em que estuda
Biblioteca do Congresso, em Washington, escreve longo as relações da Ciência com a Arte. Crescimento e Criação
estudo a respeito, o mais completo escrito até aquela época. (observações sobre arte infantil). No livro Arte de Agora,
Em 1945 volta ao Brasil ao terminar a guerra e parti- Agora, publicado por esta Editora, foi autor da segunda
cipa da luta pela derrubada da ditadura. Inicia naquele ano parte intitulada "Retoques a Auto-Retrato", em que estu-
a seção de Artes Plásticas do Correio da Manhã. da a personalidade do crítico de arte inglês Herbert Read.
Defende tese em concurso para a cátedra de História Dirigiu o semanário Vanguarda Socialista, ali publi-
da Arte e Estética da Faculdade de Arquitetura do Rio de cando diversos artigos em que especula sobre as tendências
Janeiro, sob o título Da Natureza Afetiva da forma na Obra da Política. A Opção Imperialista e A Opção Brasileira são
de Arte (1949), tese em que pela primeira vez no Brasil dois livros de sua autoria, publicados em 1966, em que
e uma das primeiras no mundo em que os problemas da trata de problemas políticos.
Arte são abordados do ponto de vista da ''psicologia da Mário Pedrosa é casado com Mary Houston Pedrosa,
forma" (Gestalt), merecendo a tese um comentário crítico tendo uma filha casada e três netos.
muito elogioso do professor Etienne Souriau, na Revista de
Estética da Sorbonne. Publica, na mesma época, Arte,
Necessidade Vital, livro de ensaios sobre Arte.
~ membro da Associação Internacional de Críticos de
Arte desde a fundação, em 1948, tendo sido eleito vice-
-presidente da entidade no Congresso de Palermo, 1957.
Indicado por aquele Congresso para Bolsa da
UNESCO, no grande projeto Oriente-Ocidente, para estudar
como crítico ocidental as relações da arte japon~sa com a
arte contemporânea do Ocidente. No Japão demorou-se
quase dez meses, tendo trabalhado constantemente no Mu-

312 313
FONTES
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Janeiro, 11 e 12 julho 1959.
Problemática da sensibilidade - II. Jornal do Brasil, Rio
de Janeiro, 18 julho 1959.
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14 novembro 1959.
O Paradoxo concretista. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,
24 junho 1959.
Crítica da crítica. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 ju-
lho 1959.
Do "Informal'' e seus equívocos. Jornal do Brasil, Rio
de Janeiro, 16 novembro 1959.
Da Abstração · à auto-expressão. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 19 dezembro 1959.
Internacional - regional. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,
20 janeiro 1960.

315
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Janeiro, 17 fevereiro 1960. ' Janeiro, 5 novembro 1967.
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ço 1960. neiro, 12 novembro 1967.
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de Janeiro, 31 julho 1966. . ' da Manhã, Rio de Janeiro, 11 fevereiro 1968.
Vicissitudes do artista soviético. Correio da Manhã Rio de O manifesto pela arte total de Pierre Restany. Correio da
Janeiro, 28 agosto 1966. ' Manhã, Rio de Janeiro, 17 março 1968.
Opinião ... opinião ... opinião. Correio da Manhã Rio
de Janeiro, 11 setembro 1966. '
Arte e burocracia. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 4 ju-
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O "bicho-da-seda" na produção em massa. Correio da Ma-
nhã, Rio de Janeiro, 14 agosto 1967.
Consumo de arte na sociedade soviética. Correio da Manhã
Rio de Janeiro, 12 novembro 1967. '
Especulações estéticas: O conflito entre o ''dizer" e o
"exprimir" - 1. Correio da Manhã, Rio de Janeiro,
12 março 1967.
Especulações estéticas: Forma e informação - II.
Especulações estéticas: Lance final - III. Correio da Ma-
nhã, Rio de Janeiro, 9 abril 1967.
Crise da arte-poesia e comunicação. Correio da Manhã, Rio
de Janeiro, 26 fevereiro 1967.
A passagem do verbal ao visual. Correio da Manhã Rio
de Janeiro, 23 março 1967. '
Um passeio pelas caixas no passado. Correio da Manhã
Rio de Janeiro, 7 maio 1967. '
Crise ou revolução do objeto. Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 21 maio 1967.
Da dissolução do objeto ao vanguardismo brasileiro. Correio
da Manhã, Rio de Janeiro, 18 ·junho 1967.
Do purismo da Bauhaus à aldeia global. Correio da Ma-
nhã, Rio de Janeiro, 16 julho 1967.
Quinquilharia e Pop'Art . .Correio da Manhã, Rio de Janei-
ro, 13 agosto 1967.
Surrealismo ontem, super-realidade hoje. Correio da Manhã
Rio de Janeiro, 27 agosto 1967. '
Bienal e participação ... do povo. Correio da Manhã, Rio
de Janeiro, 8 outubro 1967. ·
Estrutura genética: Chagall etc. Segall. Correio da Manhã,
Rio de Janeiro, 31 março 1968.

316 317
ARTE NA DEBATES

Barroco Mineiro O Futurismo It aliano


Lourival Gomes Machado (DO 11 ) Au rora Bernardini (o rg.) (D 167)
O Lúdico e as Projeções do Mundo Feitura das Artes
Barroco José Ne islein (D 174)
Affo nso Ávi la (0035) Mário Zanini e seu Tempo
A Arte de Agora, Agora A lice Br ill (D 187)
Herbert Read (D046) Marcel Duchamp: Engenheiro do
A Nova Arte Tempo Perdido
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Pierre Reslany (D 13 7) Ricardo Ara új o (0275)
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M. Nadeau (0 147) Jorge Co li (D295)
Impresso nas oficinas da
Gráfica Palas Achena
Em junho de 2007
Próximo lançamento
Ensaios Críticos e Fil osóficos
Ramón Xirau

"
Uma reportagem no tempo e um novo espaço crítico. A informação, o re-
gistro e a documentação aliados à análise penetrante e ao desenvolvimento
teórico. Essas páginas ressaltam a crise em que se consumiu a arte moderna
a partir da remontagem de um complexo social que engloba artista, público
e crítica. A arte nacional e internacional em situação. Um valioso exame de
tendências, escolas e movimentos. Roteiro e significação das Bienais no Bra-
sil. A crítica da crítica. A função social da Arte e o exame detalhado de sua
estrutura. Das formas significantes ~1oo;c- 0 ......ox.n .-~c::c::a o P Ruroc.r_!:11 -

cia. Quinquilharia e Pop' Art. Da A CIRC


Arte, vasos comunicantes. O p•ado•
culam um vivo e movimentado gráfic Tombo: 58314
uma década. Mundo, Homem, Arte en
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