Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
I. K. TAIMNI
BHAKTI-SUTRA DE NARADA,
COM ENUNCIADO EM SANSCRITO E COMENTÁRIOS
Tradução:
Grupo de Trabalho Annie Besant
EDITORA TEOSÓFICA
Brasília - DF
2
Título do Original:
Self-Realization Through Love
PREFÁCIO
Há diversos caminhos opcionais que podem ser trilhados para se atingir a união com
Deus, ou Auto-Realização, como é geralmente conhecida, O caminho da devoção ou amor,
chamado Bhakti-mârga em sânscrito, é considerado, em geral, como uma alternativa para o
caminho do conhecimento ou Jnâna-mârga, de que trata o Yoga-Sutra de Pataiíjali. Karma-
mârga ou o caminho da ação é considerado subsidiário de ambos, porque visa purificar a
mente, prevenir a formação de futuro karma e atenuar o sentimento de egoísmo. Provê a
necessária autodisciplina para colocar a mente em condição apropriada à prática da Ioga
por qualquer dos métodos.
Como foi explicado em outros contextos, os chamados sistemas diferentes de Ioga não
são realmente métodos independentes e auto-suficientes para o atingimento da Auto-
Realização, como em geral se supõe. Deveriam antes de ser considerados como diferentes
ramos da abrangente Ciência da Ioga, cada sistema pondo mais ênfase em determinada
técnica de Ioga que em outras. Além disso, quem está trilhando o caminho da Ioga pode
adotar uma ou outra dessas técnicas numa determinada ocasião, segundo suas
necessidades individuais do memento e a fase evolutiva que estiver atravessando.
O ponto importante que se há de ter sempre em mente é que o caminho do
desenvolvimento espiritual não é uma trilha batida que todos têm de seguir pera atingir sua
meta. "Cada homem é para si o caminho, a verdade e a vida", e a senda que ele seguir se
desenvolverá de seu interior à medida que avançar, segundo a sua unicidade individual e o
papel que lhe está destinado representar no Plano Divino em futuro distante.
O Bhakti-Sutra de Nârada dá em esboço alguns dos traços salientes do caminho da
devoção ou amor, e é considerado como uma espécie de manual para aqueles que desejam
realizar Deus através do poder do amor. Ele não trata do assunto com a maestria que é
evidente em tratados como Yoga-Sutra e Shiva-Sutra, mas dá uma ideia geral razoavelmente
boa do Bhakti-mârga, e é de grande auxílio àqueles que estão procurando cultivar a devoção
e desejam alguma orientação e informação sobre o assunto nos estágios iniciais de seu
desenvolvimento. Aos que são de natureza emotiva e aos quais Bhakti-mârga é
particularmente adequado, Bhakti-Sutra pode servir como um guia muito útil.
Mas não se conclua do que se disse acima que o cultivo da devoção é necessário só aos
de temperamento emocional e que podem dispensá-lo aqueles que estão palmilhando a
sendo do conhecimento. A natureza visa à perfeição global da individualidade, e isto
significa que todos os aspectos da natureza humana têm de ser desenvolvidos, em qualquer
época, na série de vidas pelas quais o indivíduo passa em seu desenvolvimento espiritual,
que termina no atingimento da Auto-Realização e liberação das ilusões e limitações dos
mundos manifestados. A posse de um temperamento emocional numa determinada vida
significa apenas que nessa vida o indivíduo achará mais fácil desenvolver suas
3
potencialidades espirituais através de sua natureza emocional.
A devoção transcende os aspectos inferiores da natureza humana os quais se expressam
por emoções, pensamentos e ações, e seu desenvolvimento nos estágios mais elevados não
depende do limitado escopo e poder das emoções. É o veículo Búdico ou Ânandamaya-kosha
que entra em ação nesses estágios mais elevados, e é a descida de forças do plano Búdico
que suscita as emoções refinadíssimas experimentadas nesses estágios. De fato, essas
experiências são de natureza tão sutil que não só são indescritíveis mas também incapazes
de ser expressas através de emoções comuns. Eis porque um devoto que é influenciado e
frequentemente dominado por violentas emoções de amor a Deus nos estágios iniciais,
torna-se tranquilo, autocontrolado e reservado quando no estágios posteriores.
Antes de prosseguirmos seria desejável tornar claro o verdadeiro significado da palavra
sânscrita bhakti, e mostrar como ela difere dos vocábulos amor e devoção, geralmente
empregados em português na tradução do termo sânscrito.
A palavra amor tem uma gama muito ampla de conotações e passou a ser usada muito
livremente nos tempos atuais. Em sua mais pura e elevada forma é um aspecto do próprio
Deus, O qual não somente ama todos os seres vivos e cuida de suas necessidades e
evolução através do mecanismo complexo da Natureza, mas também se verifica ser Ele o
próprio Amor em Sua natureza transcendental. Eis a razão por que vemos o amor
penetrando toda a vida e expressando-se de diferentes maneiras através de todas as
criaturas vivas.
Pode-se ver, por conseguinte, que, apesar de a concepção do amor em sua forma mais
alta e essencial ser santa e estar associada às mais refinadas experiências da vida, sua
expressão em suas formas mais baixas e cruas nos reinos animal e humano levou à
vulgarização e aviltamento dessa concepção ao mais baixo nível. É assim que, um grande
número de pessoas, mesmo inteligentes, em sua procura cega de prazeres tem chegado a
encerar o amor como sinônimo de paixão sexual. A palavra bhakti nada tem a ver com
essas formas inferiores de amor, quer no reino animal quer humano, associado ou não com
sexo. É usada tão só para aquele amor que o homem sinta ou por Deus abstrato ou pelos
Seres Divinos geralmente considerados representações simbólicas ou encarnações de Deus.
O significado da devoção é igualmente amplo e vago, A fim de compreendê-lo
plenamente, temos de diferenciar as três formas em que a devoção é comumente expressa:
1) devoção a uma causa; 2) devoção a um indivíduo e 3) devoção a Deus.
A devoção a uma causa é muito comum. Encontramos em toda parte pessoas
participando de movimentos lançados para promover uma causa. Devoção desse tipo
dependerá naturalmente da natureza da causa que se procura promover. Se a causa for boa
e benéfica e os que a abraçam forem de natureza moral e espiritual adequadamente
desenvolvida, a devoção produzirá resultados que trarão felicidade ou benefícios de várias
espécies para grande número de pessoas e, enquanto se processa, desenvolve as
potencialidades espirituais das pessoas nela empenhadas. Mas se for má e conduzida por
pessoas sem visão moral e espiritual, inclinadas a adotar métodos cruéis e inescrupulosos,
então a devoção pode tornar-se o meio de infringir sofrimentos enormes e em larga escala.
A história e o curso de muitos movimentos baseados em considerações ideológicas, nos
dias de hoje, demonstram claramente a verdade do que foi dito acima.
4
A devoção a uma pessoa, ainda que de alcance não tão extenso, também depende da
natureza e motivo do indivíduo que se devota e do que é objeto da devoção. No campo da
política ou negócios que estejam ligados ao poder e ao dinheiro, na maior parte dos casos
não é devoção real, mas simples interesses próprios mascarados de devoção. Onde a
devoção está livre dessas falhas e é baseada no apego a uma pessoa devido a suas
qualidades intelectuais, morais e espirituais, essa devoção contém certa qualidade de
excelência moral ou espiritual que é ao mesmo tempo digna e admirável.
Há um perigo inerente a esse tipo de devoção contra o qual deve precaver-se o devoto,
pois tende a circunscrever mais ou menos, podendo mesmo aprisionar a mente do devoto e
privá-la de sua capacidade de considerar ideias e problemas da vida com liberdade, sem
peias nem predileções. Se o indivíduo é devotado a um instrutor religioso ou espiritual, por
exemplo, sua mente pode tornar-se tão condicionada pelos ensinamentos desse instrutor
que se torne incapaz de ver e apreciar outros aspectos da verdade igualmente importantes.
Esse tipo de devoção pode também restringir a esfera de interesses e atividades do devoto
a uma faixa extremamente limitada. Ashramas de instrutores religiosos espalhados pela
Índia estão cheios dessa espécie de indivíduos cuja vida tem sido "engaiolada, refreada e
confinada" dentro de quatro paredes, deliberadamente levantadas por aqueles que
desejam isolar do mundo externo seus seguidores por medo de perdê-los.
Pode-se ver, entretanto, que tanto a devoção a uma causa como a um indivíduo, não
somente estão sujeitas a defeitos de várias espécies, mas têm geralmente como resultado
limitar de muito a liberdade de mente e ação do indivíduo e sua aptidão para desenvolver
livremente suas potencialidades mentais e espirituais. Somente a devoção a Deus está, não
apenas livre desses defeitos e perigos, mas tem também a força e poder de desenvolver ad
infinitum as potencialidades espirituais e Divinas que estão ocultas no coração de todo ser
humano. A devoção a Deus tem, não apenas o poder de estimular tremendamente essas
potencialidades, mas, devido a ser dirigida a uma fonte de infinito amor e infinitas bênçãos,
pode trazer como resposta um poder espiritual tal que modifique completamente a vida do
devoto. Eis porque é recomendada e enfatizada no Bhakti-Sutra, aforismo 81, a devoção a
Deus de preferência a devoção à indivíduos. Mesmo a devoção dirigida a um instrutor
espiritual não deve ser dirigida à personalidade, mas a Deus que nele reside. I'svara é o
verdadeiro Guru de todos os aspirantes e devotos, como é realçado no seguinte aforismo
do Yoga-Sutra:
"Sendo incondicionado pelo tempo, Ele é o maior Instrutor, mesmo dos Anciões (Seres
Primevos)" (1-26).
Ainda que haja muitas religiões no mundo, cada qual servindo de guia de conduta para
seus seguidores, é necessário lembrar a natureza e o propósito essenciais da religião na
vida humana. Quaisquer que sejam os aspectos possíveis da religião, o mais importante e
essencial é o que assinala e torna claro os meios de encontrar Deus. As concepções de Deus
podem variar, os caminhos podem variar, as disciplinas podem variar no caso das diferentes
religiões, mas esse propósito essencial é básico e comum a todas as religiões. Se esse
propósito não existe, então a religião não é religião, é qualquer outra coisa. Os códigos de
conduta e toda a parafernália da vida religiosa, prescritos nas diferentes religiões, são meio
e não fim em si mesmos, ainda que sejam considerados como tais por muitos de seus
5
seguidores. O fato acima deve ser reiteradamente enfatizado, não só para tornar mais
significativa e definida a vida religiosa, mas também para capacitar os aspirantes a
separarem o essencial do não essencial da vida religiosa e a concentrarem-se no essencial.
Pode-se inferir no que foi dito acima, que a religião está relacionada mais estreitamente
com o misticismo do que com o ocultismo e que é a própria essência do misticismo e da
vida mística. O verdadeiro místico não dá muita atenção a outras questões ligadas à vida
humana, nem mesmo à natureza do universo em que ele se encontra. Seu único objeto de
conhecimento e devoção é Deus, e ele persegue este objeto de maneira sincera e atenção
concentrada, excluindo tudo o mais. Ao estudante do Bhakti-Sutra impressiona a ausência
de comentário sobre qualquer assunto que não o da devoção a Deus, no decorrer de todo o
livro. O místico se preocupa com Deus e somente com Deus, e considera toda a sua vida um
assunto entre ele e seu Deus. Não há no Bhakti-Sutra menção de quaisquer questões
filosóficas abstratas nem de qualquer problema de desenvolvimento de siddhis.
Essa concentração sincera num propósito é talvez uma das razões por que o caminho da
devoção é muito mais eficiente que os outros no atingimento do objetivo. Nenhum
problema filosófico a preocupar, nenhuma regra rígida a ser seguida, nenhum padrão
estabelecido e nenhuma parafernália da vida religiosa a conformar e limitar·a liberdade.
Pode-se cultivar a devoção em qualquer lugar e circunstância em que se encontre.
Mas isso quer dizer também que o propósito da devoção a Deus não pode ser atingido a
menos que o indivíduo encare o problema seriamente e esteja de fato inteiramente
interessado. Deus não responde ao chamado dos aspirantes tíbios e preguiçosos que
desejam ter o melhor de ambos os mundos ou se contentam em ter as satisfações
emocionais da vida religiosa, tais como a exaltação temporária criada pelo estímulo externo
de cânticos, hinos, etc. Esse tipo de vida religiosa folgada, não pode levar ninguém muito
longe; na melhor das hipóteses conserva o indivíduo sintonizado com o seu ideal espiritual
em vez de sair da linha por completo. Essa é a condição em que se acham os aspirantes, em
sua maior parte, e da qual terão de partir para um modo de vida religiosa mais enérgico, se
são realmente sérios.
Posto que o desenvolvimento da devoção é necessário a todo aspirante, é de
importância vital a pergunta, "Como desenvolver a devoção?" e deve ser cuidadosamente
considerada. De certa maneira o homem tem maior controle sobre sua mente do que sobre
suas emoções. É mais fácil dirigir a mente para qualquer problema de natureza intelectual e
empenhar-se nele considerando seus vários aspectos. Não é tão fácil despertar nossas
emoções e começar a sentir fortemente nosso amor por alguém, por mais querido que nos
seja. Assim, o aspirante que decide cultivar a devoção a Deus tem que descobrir como
começar. Esse problema não foi tratado clara e satisfatoriamente no Bhakti-Sutra. Os passos
preliminares que têm sido recomendados podem ser compreendidos e adotados somente
por aqueles que estão perfeitamente familiarizados com o pensamento hindu. Desde que o
cultivo da devoção é necessário a todo aspirante, devemos compreender e ser capazes de
aplicar os princípios gerais em que se baseia esse cultivo.
O ponto mais importante a se ter em mente ao considerar o problema acima, é que o
desenvolvimento da devoção não é absolutamente uma questão de desenvolvimento, mas
de retirada de um véu, porque a Realidade que é referida como Deus já está presente no
6
coração de cada ser humano, em seu pleno esplendor, e em seu aspecto mais importante, o
próprio Amor. Não ha dúvida de que a presença de Deus está oculta e que o homem
comum dela está inconsciente devido aos seus desejos e outras tendências humanas que
mais ou menos a obscurecem. Mas o que já está presente e meramente obscurecido pode
ser descoberto e revelado desde que saibamos quais os agentes obscurecedores e a
maneira de removê-los.
Não é necessário abordar aqui em detalhes as tendências, limitações e ilusões humanas
que servem como agentes obscurecedores e tornam o indivíduo inconsciente da Realidade
que está oculta em seu próprio coração e que ele procura em vão no mundo exterior
através dos prazeres e buscas de infinita variedade. O que temos de compreender
claramente é que nossa verdadeira tarefa para resolver esse difícil problema, consiste em
tomarmos a mente e livrá-la dessas tendências e impurezas, que servem de agentes
obscurecedores e velam a Realidade oculta no interior. À medida que a mente vai se
purificando, se harmonizando e livrando das distorções de várias espécies, os véus vão aos
poucos se esgarçando e acabam por desaparecer, o que acarreta uma conscientização
progressiva da Realidade que, num de seus aspectos, é o próprio Amor.
Assim, a preparação preliminar para o cultivo do amor consiste em purificar e
harmonizar a mente e trazê-la a um estado em que ela possa servir como veículo do amor a
Deus. O propósito de toda a autodisciplina prescrita e das virtudes cultivadas é produzir
esse estado da mente, e quando o aspirante consegue isso e também adota os outros
meios de abertura do canal entre os níveis interno e externo de nosso Ser, o amor começa a
surgir do interior naturalmente e numa dimensão cada vez maior. Pois, como se dirá mais
adiante, este processo é auto-alimentador. Quanto mais amamos a Deus, mais O
conhecemos, e quanto mais O conhecemos, mais nosso amor por Ele cresce, até que
conhecimento e amor se fundem num estado de permanente conscientização da Realidade,
que é denominada Auto-Realização.
O aspirante deve examinar cuidadosamente os dois estágios no Bhakti-mârga. O
primeiro estágio é um período de constante esforço, autodisciplina, purificação e
desenvolvimento das virtudes e do estado mental requeridos para a expressão de bhakti.
Nesse estágio, períodos de exaltação emocional e depressão seguem-se alternadamente.
Mas se o aspirante persevera em seu esforço intenso e tem em seu interior a
potencialidade necessária, ele passa aos poucos ao segundo estágio no qual o amor a Deus
começa a brotar natural e constantemente de seu interior, em grau progressivo e sem
qualquer esforço de sua parte. Esse estágio, chamado parâ-bhakti ou paramaprema, que
aparece ao ser atingida a conscientização direta da Realidade, é descrito com muita
propriedade no aforismo 54 e torna o devoto Auto-suficiente, cheio de bem-aventurança e
"Paz que ultrapassa o entendimento".
É necessário distinguir entre esses dois estágios porque enquanto o segundo estágio
não tiver sido atingido e o devoto não se achar firmemente estabelecido no amor a Deus,
ele não poderá permitir-se um relaxamento de seus esforços em cultivar da maneira mais
intensa os estados mais profundos de amor, denominados prema. Muitíssimos aspirantes
começam a imaginar que adquiriram o mais alto estágio de amor e não necessitam fazer
mais nada daí para frente, quando na verdade eles apenas acabaram de entrar no caminho
7
do amor e experimentaram o amor em sua forma mais elementar. Tão intensa e fora do
comum é a experiência dessa espécie de amor que um vislumbre dele pode ser tomado
enganosamente pelo devoto como sendo a mais elevada experiência possível no assunto, e
incliná-lo a relaxar seus esforços no cultivo desse amor que é insondável e transcende
qualquer experiência humana. Se o devoto não está alerta e torna-se complacente, a
estagnação lhe sobrevém e o impede de atingir o segundo estágio, para-maprema, no qual
a expansão do amor se torna auto-regenerativa.
A dúvida se a devoção deve ser dirigida a um Deus pessoal ou impessoal perturba
muitos aspirantes. Alguns deles acham impossível despertar sua emotividade em relação a
uma Realidade que não tem nem forma nem atributos e, portanto, parece incapaz de
responder a seu amor. Outros pensam ser incongruente imaginar e adorar o que é um
Princípio transcendental, onipresente em sua natureza essencial, através de uma forma
concreta. A dificuldade está baseada numa concepção errônea ou noção confusa sobre a
natureza da Realidade referida como Deus. Há somente Uma Realidade com seus dois
aspectos - o transcendental e o manifestado. Em seu aspecto transcendental é um princípio
sem qualquer forma ou atributo. Em seu aspecto manifestado é a base sobre a qual
repousa o universo manifestado, que é uma criação mental da Mente Divina. Assim, não
importa se dirigimos nossa devoção a um Deus pessoal, na forma de uma representação
simbólica de alguns de seus atributos, ou de uma encarnação na forma humana, ou se O
adoramos em Seu aspecto impessoal. Nossa devoção atinge a realidade Una, e a resposta
vem da mesma Realidade. Cada devoto inteligente, mesmo quando adora Deus numa
forma concreta, está consciente ou inconscientemente atento para o fato de que sua
devoção está sendo dirigida à Realidade que penetra e abrange todo o universo e está
portanto também presente em seu pleno esplendor e poder na forma concreta que serve
como seu símbolo.
Embora uma forma concreta (que pode ser uma representação simbólica ou um
indivíduo sob a forma de avatâra) ajude algumas pessoas, fornecendo às suas mentes algo
tangível para imaginar, ela não é necessária a todos os devotos. É possível cultivar a
devoção em seu mais alto grau e dirigi-Ia para a realidade impessoal que está oculta no
interior de nossos próprios corações. Essa Realidade é, sem dúvida, amorfa, invisível,
inaudível e, no entanto, como ela existe em nosso coração em sua plenitude e é a fonte de
todo conhecimento, poder, bem-aventurança e de tudo associado à vida espiritual, a
devoção não só lhe pode ser dirigida, mas também desenvolvida ao mais alto grau e mesmo
até ao êxtase.
Pode parecer incrível que se possa amar com a maior intensidade aquilo que não tem
forma, substância ou som, nada indicando a sua existência, mas essa é a verdade e matéria
de experiência a mais vívida e requintada para os que são realmente devotos e sobre quem
a graça Divina desce frequentemente erguendo suas consciências e alturas extáticas. Não
há razão, portanto, para um indivíduo desanimar se não sente atração alguma por uma
forma particular. Mesmo Deus, em seu aspecto impessoal, pode ser o objeto de devoção do
mais alto nível.
De fato, a devoção por um Deus pessoal, se é real e intensa, tende a tornar-se mais e
mais impessoal à medida que vai transcendendo as limitações da forma, tempo e espaço,
8
trazendo a consciência do devoto ao contato com a Realidade Una que está acima do
tempo e do espaço. Quando tal acontece, o amor em sua forma a mais refinada se mantém
brotando do interior, como se brotasse do nada e mesmo quando o devoto está
empenhado em atividade física ou mental, sua consciência pode estar imersa no oceano do
Amor Divino com um quase imperceptível sentimento de separação deixado para indicar
quem é o amante e quem é o amado.
Ainda que esta espécie de amor não seja atingível facilmente, ,a potencialidade para
cultivá-lo existe em todo ser humano, porque Deus está entronizado no coração de todos,
bastando que abramos as portas desse templo para que tenhamos uma visão da Deidade
em Sua plenitude de Amor e Beleza que nos inunda e alça nossa consciência à união com
Sua Consciência. É esta espécie de visão, ainda que parcial e temporária, que lança o devoto
num êxtase de amor, e quando ele desce desse estado de exaltação, torna-o auto-
suficiente, independente e cheio de indescritível bem-aventurança.
Nada de valor real é atingido subitamente e sem esforço, e nada existe que não possa
ser ganho com esforço perseverante. Isto é particularmente verdadeiro no tocante àquelas
grandes coisas da vida que já estão presentes dentro de nós em forma potencial e que
estamos destinados a desenvolver numa forma mais ativa, mais cedo ou mais tarde, porque
fazem parte de nossa herança Divina. Quanto tempo nos conservaremos privados dessa
herança Divina depende parte de nosso karma e parte de nosso senso de discernimento ou
viveka que nos habilita a distinguir entre o Real e o irreal, entre o que é ilusório e o que é de
valor real e permanente. Mas nosso karma não é inexaurível e nossa faculdade de
discernimento está apenas adormecida. Podemos remover ambos os impedimentos se o
quisermos. Tudo o que temos de fazer é começar e preservar em nossos esforços. É
portanto possível a todo aspirante cultivar o amor a Deus ao mais alto grau e atingir aquela
Auto-suficiência e paz do Eterno que são inerentes àquele Amor e que não podem ser
encontradas sem aquele Amor.
O Shakti-Sutra de Nârada contém 84 aforismos. Os últimos três aforismos descem a
detalhes como os nomes de alguns dos grandes Instrutores da antiguidade que propuseram
a doutrina da devoção para benefício do homem comum. Visto não serem esses detalhes
de importância teórica ou prática, e serem de difícil compreensão para os não
familiarizados com as escrituras hindus, esses três aforismos foram aqui omitidos.
I. K. Taimni
9
AUTO-REALIZAÇÃO PELO AMOR
2. sâ tvasmim paremaprema-rûpâ
2. BHAKTI OU DEVOÇÃO A DEUS TEM A FORMA DE INTENSO AMOR DIRIGIDO A ELE.
Enquanto a devoção a alguma causa ou pessoa pode não ser da natureza do amor, mas
pode tomar a forma de determinação para servir a causa ou de lealdade à pessoa, a
verdadeira devoção a Deus, denominada bhakti, envolvendo submissão, é sempre
acompanhada por intensa emoção de amor por Ele. Mas, este amor emocional é apenas a
sua expressão externa; isto é, a forma que toma em seu comportamento externe em
relação a Deus. Há um aspecto mais profundo desse amor, que é mencionado no próximo
aforismo.
3. amrtasvarûpâ ca
3. ENQUANTO QUE A FORMA EXTERNA DE BHAKTI É AMOR EMOCIONAL, SUA FORMA
ESSENCIAL, A MAIS ÍNTIMA, PERCEBE NOSSA NATUREZA VERDADEIRA, QUE É ETERNA E
TRANSCENDE A REGIÃO DA DECADÊNCIA E DA MORTE.
Este aforismo deve ser lido juntamente com o que o precede, como indica a palavra
sânscrita ca. O segundo aforismo refere-se à forma externa de bhakti em contraposição à
sua forma essencial, mencionada no terceiro aforismo. Tudo tem dois aspectos em sua
natureza; um como aparece àqueles que o veem superficialmente do lado de fora, e outro
como é conhecido em sua natureza essencial por aqueles que o experimentam de dentro.
Se olharmos de fora para um devoto que tem intenso amor a Deus, vemo-lo geralmente
mostrando todos os sintomas presentes numa pessoa que está profundamente apaixonada
por outra. Sua mente está obsecada por ideias em relação à outra pessoa. Chora quando
lhe sobrevém uma excitação de intensa emoção. Sente-se abandonado quando está
separado do amado.
Essa é a forma externa de bhakti, seu rûpa, que está geralmente presente em forma
proeminente nos estágios iniciais de seu desenvolvimento. Mas à medida que bhakti
amadurece e põe o bhakta em relação cada vez mais estreita com Deus, assume a forma de
um sentimento de unidade com Ele em grau cada vez maior. Quando tal acontece, os
sintomas externos tendem a desaparecer em grande parte, sendo substituídos por um
estado de constante conscientização da unidade com Ele. Posto que Ele é eterno em Sua
natureza essencial, essa conscientização de unidade resulta em tornar-se o devoto
progressivamente consciente de sua natureza eterna e permanecendo finalmente nesse
estado, um estado constante de unidade com Ele. Essa é a forma essencial de bhakti - seu
svarûpa. O estudante deve ter em mente a clara distinção entre a imortalidade que está
ainda dentro do reino do tempo e eternidade que está totalmente acima do tempo.
11
4.yal labdhvâ pumân siddho bhavaty, amrto bhavati trpto bhavati
4. PELO ATINGIMENTO DO AMOR A DEUS, O HOMEM TORNA-SE UM SIDDHA, IMORTAL E
AUTO-SATISFEITO.
Estes resultados são obtidos porque sua consciência se tornou una com a consciência
de Deus. Poderes de toda espécie são inerentes à Consciência Divina que é eterna e tudo
contém em si mesma. Quando a consciência de um indivíduo se funde com a Consciência
Divina, ela naturalmente adquire todos os atributos da Consciência Divina e o que quer que
esteja presente na Consciência oniabarcante. Não é necessário esforço especial para a
aquisição de qualquer coisa, pois tudo está presente nessa Consciência. Podemos desejar e
tentar adquirir somente aquilo que não possuímos.
Todos os estados mentais a que se refere este aforismo, só podem estar presentes
quando o indivíduo sente falta de diferentes coisas em seu Interior. Se sua consciência se
funde com a Consciência Divina, que tudo contém em forma potencial, ele naturalmente se
torna Auto-suficiente e nada pode desejar fora de si mesmo. E posto que se sente uno com
tudo no reino da manifestação, não pode ter aversão ou ódio ao que quer que seja. Nós, em
maioria, não entendemos o grande valor de sermos Auto-suficientes quando nada
desejamos, porque a fonte de todos os objetos desejáveis, é sabido, esta dentro de nós
mesmos. A ausência de desejo não é um estado negativo da mente, que produza um vácuo
em nossa vida. Agindo o desejo como um véu sobre a Consciência Divina oculta em nosso
coração, a ausência de desejo, removendo esse véu, dá-nos a percepção desta Consciência
Divina e de nossa união com ela.
7. sâ na kâmyamânâ nirodharûpatvât
7. ELE (O AMOR A DEUS) NÃO É MOTIVADO PELO DESEJO PORQUE ENCONTRA EXPRESSÃO E
É ATINGIDO PELA ELIMINAÇÃO DE TODOS OS DESEJOS MUNDANOS.
Deveria ser óbvio que o verdadeiro amor a Deus não pode ser motivado por qualquer
desejo mundano, porque somente pode ser atingido quando os desejos mundanos são
gradualmente eliminados ou preferivelmente, transmutados no supremo desejo de
encontrar e unificar-se com a Vida Divina oculta em nós. Isso é também mostrado pelo fato
de que quando o amor Divino aparece no coração de um devoto e, como resultado, ele se
torna Auto-suficiente todos os desejos desaparecem de sua mente de modo natural e sem
que qualquer esforço seja feito nesta direção.
Cumpre ressaltar, entretanto, que o que se disse acima só é verdadeiro para o amor
absolutamente não egoísta e amadurecido, mencionado como parama prema nos
aforismos subsequentes. Este estágio supremo de amor a Deus não se atinge subitamente,
mas passa por um certo número de fases nas quais o egoísmo e os desejos pessoais
representam um papel definido, mas sempre decrescente. Porém é tal o poder e mistério
deste amor que quando o dirigimos a Deus, mesmo com um motivo egoísta, a resposta
provinda da fonte Divina não só preenche nosso desejo como também, parcialmente, tem o
efeito de purificar nossa natureza e liberá-la da degradante influência do desejo. Essa é a
alquimia que, estabelecendo um círculo virtuoso, acaba por nos livrar completamente dos
desejos de toda espécie e nos tornar Auto-suficientes e independentes.
Este aforismo esclarece a seguir a natureza da ausência de desejos que deve ser
desenvolvida pelo devoto. Esta ausência de desejos não quer dizer que o devoto nada
deseje nem mesmo a Deus. De fato, ele tem de desejar a Deus e Deus somente, e tem de
adotar uma atitude de indiferença em relação a tudo que Lhe seja antagônico. Para que o
aspirante não interprete erroneamente o que querem dizer as duas proposições neste
aforismo, o seu significado é esclarecido nos dois aforismos que se sequem.
Este aforismo tem por fim advertir o devoto contra a ideia errônea de que no cultivo da
devoção integral a Ele os deveres profanos e religiosos possam interferir, tendo assim de
ser abandonados. A devoção a Deus é uma questão de atitude e estado de consciência
internos, não interferindo portanto com nossa atividade física ou mesmo mental. Como
15
está indicado no Shiva-Sutra, as atividades físicas e mentais têm lugar na periferia de nossa
consciência e os níveis internos não são afetados por elas. Posto que a devoção a Deus é
dirigida para o interior através do centro de nossa consciência, ela envolve realmente esses
níveis internos de consciência e o que está acontecendo na periferia da consciência não
deve interferir nela, desde que a devoção seja real e cultivada de maneira correta. Eis
porque é possível cumprir nossos deveres profanos e religiosos e, ao mesmo tempo,
conservar a mente em estado de intensa devoção.
Cumpre notar que se dá importância à execução dos deveres religiosos e profanos de
modo que uma vida de real devoção a Deus não encoraje as pessoas, quando cultivando a
devoção, ao abandono de seus deveres, tornando-se assim causa de perturbação e caos
para a sociedade. Isto pode provocar hostilidade daqueles que são afetados e levá-los a
condenar a doutrina e o valor da devoção.
Um devoto chega a um estágio em sua vida em que seu amor a Deus se torna tão
intenso, que sua consciência se recolhe aos níveis internos do ser, ficando-lhe assim muito
difícil levar adiante as atividades usuais que são parte de suas obrigações religiosas e
sociais. Ao devoto se recomenda continuar tanto quanto possível tais atividades.
Naturalmente isso se torna impossível depois de um certo estágio devido à intensidade
subjugadora de seu amor, e o devoto não pode então evitar o abandono temporário de
suas atividades até que seu amor amadureça e ele readquira o equilíbrio emocional e
mental.
O devoto é aconselhado a levar adiante seus deveres tanto quanto possível, pois que
de outra maneira há o risco de sair dos trilhos e cair de novo nas atrações e desejos da vida
mundana. A conformidade continuada de suas obrigações religiosas e sociais assegura sua
permanência na trilha certa, devido à orientação e à proteção dadas pelo dharma.
Abandonando o caminho do dharma ele se assemelha a um barco sem leme vagando sem
bússola pelo oceano da vida. Somente quando o devoto está muito avançado e a luz clara
da intuição começa a iluminar seu caminho é que ele pode permitir-se dispensar a segura
direção fornecida pela prescrição de um código de conduta. Cumpre-lhe também não
esquecer que aqueles que estão avançando no caminho do desenvolvimento interior da
consciência, são sempre testados para descobrir e remover qualquer fraqueza que possa
16
subsistir em seu caráter.
Pode-se ver que as atividades ligadas à vida de um devoto são divididas em três
categorias: 1. preceitos religiosos; 2. preceitos referentes aos costumes e usos sociais e 3.
atividades ligadas à manutenção do corpo físico.
Os preceitos religiosos devem ser observados até que a devoção se torne tão
amadurecida, firme e profundamente estabilizada, que a luz interna da intuição possa guiar
o devoto no caminho que ele está palmilhando e na vida que está vivendo. Os costumes e
usos sociais devem também ser observados enquanto for necessário obedecer a deveres
religiosos e podem ser desistidos simultaneamente com estes. Mas obviamente o devoto
não pode eximir-se das atividades necessárias à manutenção do corpo físico. Estas podem
parecer comparativamente triviais, mas são essenciais para conservar o corpo vivo e em
estado de funcionamento eficiente.
17
17. kathâdisv iti gargah
17. SEGUNDO GARGA, A DEVOÇÃO PODE SER INDICADA PELO FATO DE O DEVOTO FAZER
FREQUENTEMENTE DISCURSOS SOBRE A GLÓRIA E A GRANDEZA DO SENHOR.
Como foi mostrado, há muitas espécies de devoção. Por exemplo, houve a devoção
de Hanûmân por Râma tal como se narra no Râmâyana. Mas neste caso a atitude do
devoto era a do servo para com o seu senhor. No caso das Gopis (1) de Vraja, a devoção era
a de natureza do amor que um amante tem para a pessoa amada, isto é, com a atitude
mencionada como kânta bhâva em sânscrito.
A vida de Sri Krishna como a descreve o Bhâgavata ilustra a verdade do acima exposto.
18
As Gopis, ainda que o amassem intensamente, estavam sempre conscientes de Sua
divindade e assim seu amor permaneceu puro e acima de qualquer crítica. Sem esta
atitude, bhakti não pode se tornar um meio de desenvolvimento espiritual.
Este aforismo chama a atenção do bhakta para que seu amor não se degenere no amor
apaixonado que na vida humana é comum entre homem e mulher.
Tais afirmativas, envolvendo comparações dos diferentes caminhos que levam no final à
união com Deus, não devem ser tomadas com exagerada seriedade. O sucesso nesse
empreendimento requer um esforço total de todas as nossas faculdades, porque a vida não
pode ser dividida em compartimentos estanques. Em geral são necessárias diferentes
espécies de esforços nas diferentes fases de nosso desenvolvimento espiritual, e a
característica que predomina no esforço feito numa determinada vida, parecer ser o
"caminho" que o aspirante está trilhando.
19
26. phala-rûpatvât
26. PORQUE O RESULTADO DE FAZER O ESFORÇO PARA DESENVOLVER A DEVOÇÃO E
INTENSIFICAR MAIS A DEVOÇÃO.
Este aforismo indica a razão de ser o caminho da devoção considerado superior aos
demais caminhos mencionados no aforismo anterior. O significado deste enigmático
aforismo se tornará claro se compreendermos como se estabelece um "círculo virtuoso",
em contraposição a um "círculo vicioso". Quando um devoto se esforça por desenvolver a
devoção e como resultado sua devoção se intensifica, ele fica habilitado a fazer o esforço
seguinte em nível superior e assim atingir a um estado de devoção ainda mais intenso. Este
processo de reforço progressivo continua até haver a fusão da consciência do devoto com a
Divina Consciência num êxtase, e tem então lugar a Auto·Realização.
Este aforismo dá outra razão para o autor considerar o caminho da devoção maior do
que os da ação e do conhecimento. Os que tomam o caminho da ação propendem muito a
desenvolver o sentimento do egotismo por se considerarem como a fonte do poder em vez
de meros instrumentos do Poder Divino que flui através deles para a realização de um
determinado propósito no Plano Divino. Esse egotismo obscurece seu sentido de
discernimento e, criando um círculo vicioso, coloca-os no caminho da ambição que os
conduz finalmente à ruína sob o ponto de vista espiritual. O mesmo pode acontecer àqueles
que tomam o caminho do conhecimento ou jñâna. Tomando erradamente o mero
aprendizado pelo conhecimento real das realidades internas da vida e carecendo de
percepção espiritual, tornam-se muito orgulhosos de seu saber e começam a considerar-se
superiores aos seus semelhantes. Esse estado mental resulta em afundar em mais
ignorância e ilusões da vida, como está eficientemente exposto num dos s'lokas do
Isâvasyopanisad.
O caminho da devoção é isento de tais perigos. Primeiro, porque a própria técnica do
desenvolvimento da devoção é baseada na eliminação de todos os desejos mundanos ou na
transmutação deles no desejo único de encontrar Deus, que está oculto no âmago do
coração. Segundo, o objetivo final do devoto é de fundir sua consciência com a Consciência
Divina pela atenuação gradual do próprio "eu". Há, assim, pouco escopo para o
desenvolvimento do egotismo que funciona como barreira entre ele e seu Deus e pode
resultar no gradual abandono do caminho da Auto-Realização. A metáfora usada para
advertir o aspirante contra o perigo de desenvolver o egotismo, não deve levá-lo a pensar
haver aversão ou favoritismo na Consciência Divina. A própria natureza da Consciência
Divina, que tudo abrange e tudo contém no universo manifestado, é tal que esses defeitos
não podem estar presentes nela, mesmo em traços mínimos. Os Grandes Seres cuja
20
consciência está estabelecida no mundo da Realidade, devem estar também
necessariamente livres dessas fraquezas humanas.
Os dois aforismos acima têm por fim indicar a relação do conhecimento com a devoção.
Em nossas relações humanas, o conhecimento de uma pessoa por outra não significa
necessariamente intensificação da devoção para essa pessoa. Contato mais aproximado
com a pessoa pode revelar tanto suas fraquezas quanto os pontos fortes de seu caráter,
sendo assim imprevisível o resultado. Mas na relação do devoto com Deus tal possibilidade
não existe, pois ele alcança contato mais íntimo com a Realidade que é Perfeita ou sem
mácula. Assim, quanto mais o devoto conhece a Deus, pela unificação da consciência, mais
tende a crescer sua devoção por Ele. Por sua vez, a intensificação da devoção, trazendo
mais profunda unificação da consciência, resultará em conhecimento mais profundo da
Suprema Realidade. A devoção e o conhecimento continuam assim a reforçar-se
mutuamente até haver uma perfeita unificação e fusão dos dois num estado de consciência
no qual ambos se tornam indistinguíveis.
Este aforismo dá a ideia do aforismo 26 num contexto diferente e pode ser considerado
como apresentando a razão pela qual a devoção é o seu próprio fruto, e é somente pela
prática da devoção que podemos intensificar nossa devoção a Deus gradualmente, até que
a consciência do devoto se identifique com a Consciência de Deus e as duas se tornem
indistinguíveis.
Há alguns contos interessantes no Bhâgavata que esclarecem essa unificação da
consciência e os resultados que daí se seguem. Um desses contos mostra Râdhâ, o amor
ideal de Sri Krishna, procurando-O em certa ocasião quando Ele desaparecera de seu lado,
deixando-a na agonia da separação mencionada em sânscrito como viraha. Râdhâ corre de
lugar para outro nos bosques de Vrndâvan e pergunta a todas as Gopis ou pastoras que ela
encontra, sobre o paradeiro de Krishna. Mas a pergunta que ela formula não é: "Onde está
Krishna?", mas "Onde está Râdhâ?" Sua consciência tinha de tal maneira se fundido com a
de Krishna que na confusão ela tinha perdido o sentido de sua própria identidade,
misturando-a com a de Krishna. Somente aqueles que experimentaram o êstase do intenso
21
amor podem apreciar a beleza da história. Seu profundo significado dificilmente será
notado por um endurecido filósofo intelectual que fala de Deus sob ponto de vista
acadêmico e analisa a natureza dessa Realidade como o biólogo que disseca um animal em
sua mesa.
Este aforismo e o antecedente têm por finalidade mostrar que sem a verdadeira
devoção não há satisfação nem para Deus nem para aqueles que recebem Suas graças.
Numa casa real todos os que servem obtêm favores do rei, mas somente aqueles que lhe
estão próximos e lhe são caros têm seu amor e assim a verdadeira felicidade. Deus em sua
generosidade concede a cada um o que cada um deseja. É uma lei da vida que cada um
acaba por obter o que deseja. Mas na satisfação desses desejos não há verdadeira
felicidade, porque está ausente a devoção ou amor. E possível tirar prazeres e alegrias da
satisfação dos desejos mundanos porque eles têm sua fonte nos níveis inferiores do ser do
homem - sua mente e sua emoção. Mas a verdadeira felicidade tem sua fonte nas regiões
mais profundas do ser, em sua natureza espiritual. Essas regiões podem ser penetradas pela
aquisição, pelo menos parcial, da consciência de nossa verdadeira natureza, que
partilhamos com a natureza Divina. A única, maneira de ganhar esse tipo de conscientização
é através do amor ou devoção. Eis porque é recomendado ao estudante, no próximo
aforismo, adotar o caminho da devoção.
Deus está oculto no centro de nossa consciência, ao passo que as coisas mundanas
estão presentes no mundo exterior. Enquanto nosso interesse e nossa afeição estiverem
dirigidos para fora, para esses objetos externos de desejo, a mente não pode ser dirigida
para dentro, para a sua fonte. Estando assim inapta a experimentar o conhecimento e a
bem-aventurança que está oculta nessa fonte, a mente não pode desenvolver a devoção
por Ele.
36. avyâvrtta-bhajanât
36. A DEVOÇÃO É TAMBEM CULTIVADA MAIS EFICIENTEMENTE PELA CONSTANTE E
ININTERRUPTA ADORAÇÃO E LEMBRANÇA DE DEUS.
Este aforismo deve ser estudado junto com o anterior no qual são recomendados a
renúncia e o desapego às coisas e atividades mundanas. A mente humana jamais pode ficar
vazia. Se se vai renunciar às coisas do mundo e a mente vai ser desviada delas, deve haver
algo maior que lhes tome o lugar, de outra forma, cedo ou tarde a mente reverterá à
condição anterior e mergulhará nas atrações e buscas da vida humana com redobrado
vigor, como uma reação à temporária abstinência delas. O que deverá, então, tomar-lhes o
lugar em alguém que deseje a unificação de sua consciência com a Consciência Divina? E
claro, essa Realidade que se procura. A mente deve ser dirigida a Deus, deve estar
constantemente ocupada com pensamentos ligados a Ele e com os métodos de maior
aproximação com Ele.
Há dois pontos que cumpre notar a este respeito. Muitas pessoas em quem a devoção
não está ainda desenvolvida e desejam uma desculpa para não mudar de vida, apresentam
a objeção de ter trabalho a efetuar no mundo exterior ou ter de ganhar o seu sustento, ou
promover alguma causa para a melhoria do bem-estar da humanidade. Essas pessoas
devem saber que a constante lembrança e adoração necessárias ao cultivo da devoção não
significam que devam retirar-se do mundo, abandonar seus deveres mundanos e fechar-se
23
num quarto a fim de conquistar seu objetivo. Seria absurdo recomendar-se tal maneira de
agir, impossível no caso da maioria das pessoas, mesmo que tenham o necessário zelo para
a adoção desse tipo de vida.
A fim de compreender como se podem conciliar as atividades no mundo externo em
que o homem comum tem de participar e o cultivo da lembrança constante, é mister
recordar que a mente humana tem uma constituição peculiar, podendo ao mesmo tempo
funcionar em diferentes níveis e empenhar-se em diferentes atividades. Assim, o trabalho
no mundo externo pode ser levado avante simultaneamente com a constante lembrança de
Deus e o esforço para aproximar-se mais de Deus. Isso não só é possível, mas também a
aptidão para fazê-lo deve ser adquirida por todos os aspirantes.
O segundo ponto a ser notado a esse respeito é o absurdo de se propagar uma filosofia
e modo de vida espiritual negativos sem ao mesmo tempo colocar ante o aspirante um
ideal e objetivo positivos e dinâmicos a serem atingidos. Tornou-se usual nos tempos atuais
falar em termos gerais e vagos sobre os problemas da vida espiritual, sem indicar o alvo e o
propósito de todo esse esforço, o que se assemelha a caminhar em torno de um bosque
sem tentar nele penetrar para verificar o que nele está oculto. Esse convite às pessoas para
que vagueiem numa nuvem de incertezas e generalidades é tanto mais estranho se
considerarmos que o verdadeiro Ocultismo coloca ante os seres humanos um objetivo
muito bem definido e grandioso - a Auto-Realização - que é não só desejável mas também o
nosso destino inevitável e o único meio possível de nos libertarmos permanentemente das
ilusões e misérias da vida.
A verdade é que aqueles que falam em termos vagos e gerais não compreendem
realmente o tremendo significado e importância do que estão advogando, mas sabem que
essa espécie de vago idealismo é como fazer um apelo atraente, criando o interesse
superficial do homem comum que realmente não deseja fazer qualquer coisa que mude seu
modo de viver e fica alarmado com a perspectiva de adotar uma vida de autodisciplina para
a destruição do falso ego. O atingimento de um objetivo definido no campo da realização
espiritual constitui um desafio à nossa vida, o que não acontece com um elevado ideal
puramente teórico. Assim, temos estado conversando em termos de idealismo vago, e
podemos continuar desta maneira por séculos, sem mais sabedoria e mais aproximação do
ideal professado. Sejamos, porém, claros em nossa mente sobre um fato. Para a aquisição
de qualquer coisa na vida, temos de pagar o seu preço e quanto mais valiosa, maior é o
preço a ser pago. Se nada fazemos nem sacrificamos a natureza nada nos dá.
O significado mais profundo deste aforismo deve ser entendido para a compreensão de
sua importância e eficiência no cultivo da devoção. Meramente proferir discursos religiosos
ou ouvi-los é de muito pouca importância. Milhares de pregadores fazem sermões nas
igrejas todos os domingos, milhares de sábios sâdhus ou samnyasis fazem discursos em
24
reuniões organizadas para esse fim ou em âshramas estabelecidos por toda parte, para
promover a espiritualidade no mundo. Mas quão eficientes são tais atividades para tornar
as pessoas mais espirituais e promover a real devoção nos ouvintes? Muito pouco. Por quê?
Porque todo esse trabalho é feito num nível muito superficial e como matéria de rotina.
Não lhes toca os corações e portanto não sopra a fagulha da devoção oculta nos corações
humanos, transformando-a na chama que produz e luz da sabedoria e aquece a inspiração
espiritual naqueles que tomam parte nessas atividades.
Tenho percorrido grupos de pessoas professando altos ideais de vida espiritual, e
achado até graça com a súbita mudança que se opera quando chegam ao fim as
formalidades de proferir uma conferência religiosa ou de seguir rituais. As pessoas
começam a conversar e discutir toda espécie de coisas menos o objeto da reunião que
deviam tentar compreender e realizar em certa medida, demonstrando assim, por seu
comportamento, que não estão de fato interessadas nas coisas concernentes à vida interna
e Real do homem, e querem meramente ter a satisfação do sentimento do seu dever
cumprido em relação a Deus.
Que aconteceria se todos nós estivéssemos real e intensamente interessado nas coisas
concernentes a Deus? Onde quer que nos encontrássemos: conferência, simpósio ou o que
quer que fosse, se nossas mentes estivessem cheias de devoção a Ele e fosse Ele o real
objeto de nosso interesse e busca, começaríamos a falar sobre Ele e sobre assuntos
correlatos com Ele. Quando os políticos se encontram, invariavelmente começam a falar
sobre política. Quando cientistas se encontram, sua conversa se volta naturalmente para
discussão de problemas científicos. Quando membros de uma família se encontram, falam
sobre seus problemas pessoais ligados à família. Mas quando gente que professa, não
somente crença em Deus, mas também seu zeloso desejo de achá-Lo, se encontra, sobre o
que fala? Acerca de todas as coisas sob o sol, exceto Deus.
E esse estado de mente e intensidade de interesse que o presente aforismo espera seja
cultivado pelo devoto a Deus, de modo que, seja lá quando e onde quer que se encontre,
sua mente e sua expressão na conversa ou discussão se voltem naturalmente para assuntos
espirituais nos quais seu interesse deve ser constante e permanente.
O que este aforismo visa realçar é o fato de que, a fim de obter contato pessoal com
os Grandes Seres, o melhor caminho a ser seguido é o estabelecimento de contato com a
Vida Divina oculta em nosso coração, o mais próximo possível de nós, e portanto, o mais
facilmente acessível. Se conseguirmos isso, elevamo-nos ao nível dos Grandes Seres e
entramos em contato com Eles, naturalmente, por força da afinidade que com Eles
desenvolvemos. A graça de Deus acima mencionada não é algo que venha a uma pessoa
acidental ou arbitrariamente, mas é o resultado de um privilégio ganho pelo próprio esforço
para erguer-se ao alto padrão requerido de viver e ser.
O devoto deve tentar cultivar somente o amor a Deus, posto que os Grandes Seres são
expressões e instrumentos da Vida e Consciência Divinas e suas graças descem sobre seus
devotos juntamente com a graça de Deus. A razão pela qual é recomendado esse processo
27
deve estar bem claro ante o que foi dito nos aforismos anteriores. Dessa maneira o devoto
está seguro de obter, não somente a graça de Deus, mas também a dos Grandes Seres.
Além disso, posto que Deus está num altar em nosso próprio coração, Ele está mais
facilmente acessível e mais próximo de nós que qualquer outra corporificação da Vida
Divina. Na Auto-Realização nosso Espírito individual entra em contato com o Supremo
Espírito. Mas se tentamos encontrar Deus em alguém mais, os corpos podem atuar como
barreira, ser obstáculo entre os dois.
O fato a ter em mente é que devemos estar aptos a erguer nossa consciência ao nível
de Âtmâ. Nesse estado percebemos, não somente nossa natureza Real, mas também a
Realidade oculta no coração de todo ser humano e a Realidade Una da qual cada Mônada
individual é uma expressão separada e única. Pois, nesse nível há perfeita unificação de
consciência e vê-se a unidade na diversidade, ou o UM e o Múltiplo ao mesmo tempo. Há
um estágio além do qual a Mônada penetra no centro da própria consciência e emerge no
reino da Realidade Una. Nesse estado a consciência do logue se expande até abranger o
universo inteiro e todas as distinções de qualquer espécie desaparecem como, com tanta
beleza, está exposto no aforismo 15 do Pratyabhijñâ Hridayam.
28
44. kâma-krodha-moha-smrtibhrams'a-buddhinâs'a-sarvanãs'a-kãranatvât
44. A ASSOCIAÇÃO COM PESSOAS MÁS OU DE TENDENCIAS MÁS PREDISPOE AO
DESENVOLVIMENTO DA LUXÚRIA, IRA, FIXAÇÃO EM OBJETOS MUNDANOS, ESQUECIMENTO
DE NOSSOS IDEAIS ESPIRITUAIS E PERDA DE VIVEKA, RESULTANDO FINALMENTE NA RUÍNA
TOTAL DE NOSSAS POTENCIALIDADES E VIDA ESPIRITUAL.
Este aforismo é de grande importância, não porque se refira a algumas tendências más
e à necessidade de erradicá-las de nosso caráter, mas porque traça a cadeia de causa e efeito
que começa com essas tendências e resulta no fim em ruína da vida do indivíduo. O efeito
primário dessas tendências más é fazer o indivíduo esquecer seus ideais espirituais. Ele
esquece aos poucos o ideal da vida espiritual que tinha colocado à sua frente depois de
considerar as ilusões e limitações da vida humana e os meios de atingir esse ideal. Esta
percepção da verdadeira natureza da vida humana e suas misérias tinha despertado em sua
mente ao passar por muito sofrimento e o desejo de evitar esse sofrimento no futuro. Se
continua a ser auto-indulgente com suas fraquezas e tendências más, ou a elas reverte
depois de tê-las eliminado até um certo ponto, ele perde outra vez essa percepção, torna-
se confuso e deixa-se envolver no círculo vicioso resultante, em que as más ações
obscurecem nossa faculdade de viveka, e o enfraquecimento desta faculdade conduz a
maneiras de má conduta mais graves.
É muito importante lembrar que ,a faculdade de discernimento espiritual ou buddhi é o
único guia dentro de nós que nos habilita a distinguir entre o certo e o errado, e a praticar o
certo em todas as circunstâncias mesmo que de momento nos coloque em desvantagem ou
nos cause alguma perda ou sofrimento. Se vivemos de acordo com esse princípio básico da
vida espiritual, nos tornamos dharma-nistha ou firmemente estabelecidos em dharma ou
retidão, e nos tornamos imunes às tendências más. Então, a faculdade de discernimento
permanece imperturbável a todo o tempo, e daí em diante podemos viver uma vida livre de
ilusões e misérias oriundas das más ações.
Por outro lado se somos auto-indulgentes com as más ações, então buddhi, a faculdade
de discernimento espiritual, torna-se cada vez mais obscurecido, e consequentemente se
fortalece cada vez mais a tendência para fazer o mal, resultando no fim completa ruína de
nossa vida sob o ponto de vista espiritual. Podemos continuar a prosperar e a ter sucesso
em nossas vidas sob o ponto de vista do mundo, mas os efeitos das más ações continuam
firmemente a acumular-se nos reinos invisíveis da Natureza, e chega o dia em que a represa
arrebenta destruindo nossa vida. A deteriorização de nossa natureza poderia ser muito mais
rápida do que o é em geral, mas o temor de ser denunciado, ou de ser apanhado pela lei,
conserva estas tendências sob certo controle, e nos impede de descer muito rapidamente o
plano inclinado. Mas a menos que compreendamos o perigo inerente à má conduta, e nos
abstenhamos dessas tendências, continuamos a nos mover lenta ou rapidamente para o fim
inevitável chamado sarvanâs'a.
Este aforismo expressa e realça sob a forma de uma bela metáfora a verdade exposta
no anterior. Muitas tendências más que estão presentes em estado latente em nossa
natureza e que nessa condição devem permanecer, são estimuladas assumindo proporções
gigantescas sob o impacto de associações más de variadas espécies. O simples fato de não
as trazermos à atividade não nos imuniza contra elas. Como se pode destruir a própria
potencialidade dessas tendências, encontra-se com clareza e propriedade nos aforismos 11-
10, 11 e 33 dos Yoga-Sutras.
Ver-se-á também como boas e más inclinações tendem a ser fortificadas quando se é
auto-indulgente com elas e se permite a entrada de maus pensamentos na mente.
Pensamento e ação que estimulam a devoção incrementam-na, o mesmo acontecendo com
as emoções de ira, cobiça, etc., etc.
Essa lei natural pode ser utilizada para melhorar as boas tendências e para reprimir, ou
antes, eliminar as más.
46.kas tarati kas tarati mâyâm? yah sanga tyajati yo mahânubhâvam sevate nirmamo
bhavati
46. QUEM ATRAVESSA O OCEANO DE SAMSÃRA, O MUNDO CRIADO PELA ILUSÃO DE
MAYA? QUEM ATRAVESSA O OCEANO DE SAMSÃRA, O MUNDO CRIADO PELA ILUSÃO DE
MAYA? AQUELE QUE RENUNCIA AO APEGO A OBJETOS E BUSCAS MUNDANOS. AQUELE
QUE SERVE FIELMENTE OS GRANDES SERES. AQUELE QUE SE TORNA SEM EGOÍSMO OU
SEM O SENTIMENTO DO "EU" OU DO "MEU".
Este aforismo não deve ser tomado ao pé da letra, mas o aspirante deve tentar alcançar
o espírito que lhe está por trás e tentar viver tanto quanto possível sua vida de acordo com
ele. As condições no mundo moderno são tão diferentes do que eram quando o tratado foi
escrito que tais ajustamentos são inevitáveis. Levar uma vida espiritual não significa seguir
um rígido código de conduta prescrito por um instrutor ou religião, mas viver
inteligentemente de acordo com as leis da vida interna do Espírito, tendo em conta as
circunstâncias em que nos encontramos. Isso não significa, entretanto, transigir com o mal.
Devemos estar alerta e decididos a distinguir entre o certo e o errado e a fazer o certo sob
qualquer circunstância, mesmo que nos traga temporariamente inconveniência ou prejuízo.
Isso não somente garante permanecer sem nuvens nossa faculdade de discernimento,
dando-nos a norma correta para vivermos nossa vida mas também evita que nos
envolvamos em perturbações de várias espécies. A ideia de que somos livres de fazer o que
nos apraz desde que evitemos cair nas garras das leis comuns, é perigosa e indefensável
num mundo governado não somente pelas leis físicas, mas também pelas leis morais e
espirituais.
A fim de encontrar Deus, temos de cultivar um estado da mente no qual não haja
distúrbio. A fim de não haver distúrbio devemos remover a causa dos distúrbios que estão
constantemente perturbando nosso equilíbrio. Essa causa é o apego aos frutos das ações
que praticamos para a obtenção dos objetos desejados. Por serem nossas ações motivadas
pelo desejo, estamos apegados aos seus frutos, sendo portanto afetados pelos
acontecimentos resultantes dessas ações. Não somente somos afetados pelos
acontecimentos resultantes dessas ações, mas também pelos resultados cármicos que são
uma fonte de prisão aos mundos inferiores. A única maneira de evitar esse encadeamento
de causa e efeito que se estabeleceu, é praticarmos ações sem qualquer desejo pessoal de
lucro, mas somente cumprir nossas obrigações nas circunstâncias em que nos
encontrarmos. Esta atitude pode ser desenvolvida pela dedicação habitual de todas as
nossas ações a Deus, como tão claramente foi explicado no Bhagavad-Gitâ.
31
49.yo vedân api samnyasyati kevalam avicchin-nânurâgam labhate
49. QUEM PÕE DE LADO MESMO AS INJUNÇÕES DAS SAGRADAS ESCRITURAS PARA
DESENVOLVER UM FLUXO DE AMOR INDIVISO E ININTERRUPTO A DEUS.
Tudo na Natureza radicada no Real possui duas formas. Uma é a sua forma externa,
visível, pela qual ela encontra expressão nos planos inferiores de manifestação, podendo
ser percebida através dos órgãos dos sentidos. Essa é ilusória e depende de circunstâncias
externas. A outra é a forma real, essencial, que não pode ser percebida pelos órgãos dos
sentidos, mas somente experimentada dentro dos reinos de consciência. As formas
externas do amor a Deus já foram indicadas em alguns dos aforismos anteriores e são
realmente suas expressões ou antes os sintomas produzidos nos mundos físico, emocionai e
mental. Elas são geralmente produzidas nos estágios iniciais do desenvolvimento da
devoção pelo impacto de sua experiência nos veículos inferiores, e geralmente desaparece
quando a devoção se torna madura e é experimentada em sua forma real ou svarüpa no
interior da consciência do devoto.
52. mûkâsvâdanavata
52. COMO O PALADAR DE UMA PESSOA QUE É MUDA.
Assim como o mudo pode sentir o paladar de alguma coisa mas não pode descrevê-lo a
outros, assim também o devoto pode sentir a forma intensa e real do amor mas não pode
descrevê-la a outros.
32
53. prakâs'yate kvâpi pâtre
53. ESSA FORMA REAL E INTENSA DO AMOR A DEUS APARECE POR SI MESMA QUANDO O
RECEPTÁCULO E APROPRIADO, ISTO É O VERDADEIRO DEVOTO.
Este aforismo descreve com muita beleza e eficiência a natureza do intenso e sutil amor
a Deus, que está presente no coração do devoto quando já amadurecido e é matéria de
experiência nos reinos mais internos do ser. O bhakti que é demonstrativo e acompanhado
de violentas emoções, embora seja uma etapa necessária no desenvolvimento do amor a
Deus, é um estado inferior daquele amor que nasce quando há união da consciência do
devoto com a Consciência Divina e desaparece a tênue distinção entre aquele que ama e
Aquele que é amado, dando lugar a um estado de percepção da não dualidade e bem-
aventurança inerentes a esse estado.
55. tat prâpya tad evâvalokayati tad eva s'rnoti tad eva cintayati
55. TENDO ATINGIDO ESSE ELEVADO ESTADO DE AMOR A DEUS, O DEVOTO NADA VE
SENÃO DEUS, NADA OUVE SENÃO DEUS E NÃO PENSA SENÃO EM DEUS.
33
É fácil de entender o significado deste enigmático aforismo se nos lembrarmos da
inigualável transformação que se opera na mente do devoto como resultado do
atingimento do mais elevado estágio do amor. Há somente Uma Realidade em existência,
que denominamos Deus, e todas as coisas e todas as criaturas viventes são expressão dessa
Realidade em diferentes formas e em diferentes níveis de evolução. O amor produz uma
fusão de consciência daquele que ama e Daquele que é amado, e essa fusão leva por
conseguinte também ao conhecimento de Deus, que satura, contém e abrange tudo quanto
existe. Quanto mais amamos a Deus, mais intimamente O conhecemos e quanto mais O
conhecemos, mais somos levados a amá-LO. É esse conhecimento e o amor a Deus, cada
um reforçando o outro, que ocasiona a unificação da consciência onde a distinção entre os
dois desaparece e é experimentado o mais alto estado de conhecimento da unidade
proclamada por todos os santos e sábios.
Este aforismo realça em linguagem mais abrangente o que foi explicado no aforismo
precedente.
34
59. pramânântarasyânapeksatvât svayam pramânatvât
59. NÃO É NECESSÁRIO PROVAR O QUE ESTÁ DITO NO AFORISMO PRECEDENTE POR
QUALQUER OUTRO MÉTODO, PORQUE O RESULTADO DA PRÓPRIA DEVOÇÃO CONSTITUI A
PROVA.
São estas as duas coisas que toda alma deseja para sua própria felicidade, e são
inerentes à devoção a Deus.
A objeção que se poderia levantar contra o seguir o caminho da devoção é que isto
trará a desorganização social. Mas tal temor é absolutamente infundado porque o devoto é
estimulado a continuar a cumprir seus deveres religiosos e sociais depois de consagrar
todas suas atividades a Deus.
Este aforismo repete o que foi dito num aforismo anterior em outro contexto.
Estas injunções devem ser seguidas mais em espírito do que literalmente. Não há
dúvida de que a mente mantida ocupada com assuntos ligados a sexo, aquisição de fortuna e
doutrinas ateístas é muito propensa a distrair-se e desviar-se do caminho que o devoto
35
escolheu para si, que é o desenvolvimento da devoção a Deus. As tendências modernas em
nossa vida trazem ampla corroboração ao que se diz neste aforismo. A mania do sexo de
fazer dinheiro e a profissão ostensiva de ateísmo, que encontramos por toda parte, vão de
mãos dadas com o declínio da fé nos ideais verdadeiramente religiosos e espirituais. São
bastante evidentes as desastrosas consequências dessa atitude, que resulta em tornar a
vida humana sem significado e sem propósito, gerando descontentamento e cinismo. Por
toda a parte encontramos gente empenhada na busca de objetos triviais no mundo
exterior, na esperança de obter deles alguma felicidade por pequena e efêmera que seja.
Essa gente se torna internamente cada vez mais desiludida e insatisfeita com a vida. Todas
as grandes religiões e todos os instrutores espirituais têm declarado que a verdadeira e
permanente Felicidade só pode ser encontrada dentro de cada um, porque aí está a fonte
de todo o conhecimento, força e bem-aventurança - Deus. Mas ninguém presta atenção a
esse aviso e os resultados são os inevitáveis.
Como já foi dito no comentário do aforismo anterior, essa espécie de devoção sem
mistura pode ser adquirida somente por etapas e esforços persistentes em seu cultivo. Nos
raros casos em que um devoto mostre sinais de devoção intensa e uni-direcional desde
tenra idade estamos lidando com almas altamente avançadas que vieram cultivando a
devoção e desenvolvendo a consciência espiritual durante uma série de vidas anteriores.
Nada na Natureza pode acontecer acidental ou subitamente, ainda que, devido à nossa
visão e conhecimento limitados, certos acontecimentos ou desenvolvimento assim
pareçam.
Aqueles que nunca frequentaram círculos em que os devotos se reúnem para falar
sobre Ele e entoar cânticos sobre Ele e Seus atributos, não estarão aptos a apreciar o estado
de mente cuja expressão externa é descrita no aforismo. O declínio e desaparecimento
gradual do sentimento religioso verdadeiro, mesmo em países como a Índia, onde a religião
sempre representou um papel preponderante na vida dos hindus, fazem com que cenas
como as descritas acima se tornem muito raras. Conferências, exposição de doutrinas
filosóficas e execução de rituais elaborados tomaram o lugar de reuniões nas quais os
verdadeiros devotos se encontram para ter a alegria de trocar ideias e sentimentos
religiosos e entoar cânticos altamente carregados de emoção despertada por esses mesmos
cânticos.
A verdade é que as religiões e as instituições religiosas divorciaram-se dos reais
objetivos religiosos e em vez de cultivarem e promoverem os sentimentos religiosos e a
devoção a Deus, ingressaram no campo dos grandes negócios e tornaram-se meios de fazer
dinheiro. Falando de hindus, seja-me permitido dizer que somos por natureza inclinados à
religião, mas nos permitimos ser varridos pela onda de materialismo e procura de objetivos
mundanos que ameaçam engolfar o mundo inteiro e destruir o que quer que haja de valor
genuíno na vida humana, pela procura de ilusórios objetos de prazer e pela vaidade
humana.
Se nós e o mundo, em conjunto, chegarmos a compreender o vazio das experiências
físicas e psicodélicas e a impossibilidade de se encontrar .a verdadeira paz e felicidade
nelas, é matéria a ser verificada, mas a menos que isso aconteça, não parece haver muita
oportunidade de vir o homem a abandonar a persecução desses objetivos superficiais e
inquirir onde a verdadeira felicidade possivelmente se encontra. Mesmo que o homem
esteja desiludido com os objetos atrás dos quais corre e faz essa pergunta pertinente, sua
mente possivelmente não procurará na religião uma resposta. Pois, como foi dito acima, o
que faz da religião uma fonte de paz e real felicidade acabou por submergir na parafernália
e formalidades superficiais da vida religiosa, e aqueles que tem qualquer senso de
discernimento e estão procurando as realidades da vida religiosa, provavelmente acharão
toda essa exibição de vida religiosa uma casca vazia, sem qualquer vida.
Há inúmeros ashramas, espalhados por todo este país (1), estabelecidos com e
propósito de promover a vida religiosa. Muitos aspirantes, à procura de verdadeira paz e
verdadeira felicidade que somente a religião pode dar, andam de um ashrama para o outro
à procura da satisfação interior que esperam da vida religiosa. Mas, em geral, os aspirantes
verificam que os ashramas são meras instituições, e aqueles que os dirigem ou os presidem
estão mais preocupados cem o problema de administrar a instituição do que com os reais
objetivos da instituição religiosa. A razão das condições mencionadas acima em todas as
esferas da vida religiosa é que as pessoas se esqueceram ou ignoram o fato de que a
verdadeira fonte de satisfação religiosa e de progresso é a Vida Divina oculta em nossos
corações, e a menos que procuremos ,e consigamos entrar em contato com essa Vida, quer
38
individual quer coletivamente, nada do exterior será de utilidade.
Na intelectualização da vida religiosa e no esquecimento do fato de que a vida religiosa
deve basear-se nas emoções, está a responsabilidade do decréscimo da atração da religião
para o homem comum. O propósito da verdadeira religião é trazer o homem a um
relacionamento mais íntimo com Deus. O homem não pode se aproximar de Deus exceto
através da devoção e do amor. Sem a devoção e o amor a Deus não pode haver verdadeira
felicidade interior ou a sua mais intensa forma de bem-aventurança que o homem procura
na religião. Assim a vida religiosa baseada no intelecto e seguindo um código prescrito de
conduta externa tira à religião a satisfação interna e a paz que são o objetivo de se levar
uma vida religiosa. Não somente há intelectualização da vida religiosa, mas as emoções
vieram a ser encaradas na chamada sociedade civilizada como um sinal de fraqueza. Mesmo
os que sentem emoções religiosas tendem à ocultar seus sentimentos a outros. É difícil para
tais pessoas entender ou apreciar o que se procura transmitir no aforismo que estamos
discutindo.
É necessário lembrar, entretanto, que essas manifestações externas de devoção são as
expressões de um estado mais profundo da mente, existentes nos planos espirituais do ser.
Esses planos do ser não somente são invisíveis mas inacessíveis ao devoto comum. Somente
quando sua consciência se desenvolve o suficiente para habilitá-lo a entrar em contato
direto com esses planos é que ele se torna atento para o fato de que as manifestações
externas são o resultado de uma união mais íntima de sua consciência com a Consciência
Divina e do amor e, bem-aventurança inerentes a essa união.
Por que adquiriram sua santidade lugares hoje considerados santos e tornados lugares
de peregrinação? Porque os santos homens que atingiram a união com Deus pela devoção
aí viveram. De que maneira gente comum aprendeu a praticar atos que são meritórios sob
o ponto de vista religioso? Pelo exemplo dado pelos santos homens que viveram em
comunhão com Deus. Como aconteceu que certos escritos adquirirem a categoria de
escrituras? Pelo fato de terem sido escritos por aqueles que tentaram encontrar Deus
através da devoção e tiveram sucesso em seus esforços. Todas as escritures sagradas são
registros da vida, ideias e prescrições dos santos homens que chegaram à união íntima com
Deus e se transformaram por essa união em santos e sábios, erguendo indivíduos e
comunidades a um nível mais elevado de moralidade e espiritualidade.
70. tanmayâh
70. ELES SABEM DA PRESENÇA DE DEUS EM TODA PARTE E SEMPRE, DENTRO E FORA
39
DELES.
Desde que existe só a Realidade Única e que tudo que existe é uma expressão dessa
Realidade, quem quer que se aperceba dessa Realidade se acha inundado dessa Realidade.
Esta assertiva permanece enquanto a. dualidade estiver presente, isto é, a pessoa se vê
separada de Deus conquanto una com Ele em essência. Há, porém, um estágio posterior e
final no qual mesmo essa dualidade desaparece e a união entre o devoto e Deus é tão
perfeita que o devoto não consegue distinguir sua consciência da de Deus. De acordo com
uma tradição hindu, a maioria dos devotos ou bhaktas prefere permanecer no reino do
dualismo para que eles possam gozar a bem-aventurança que é inerente ao intenso amor a
Deus. Esta se baseie na concepção errônea do estado não-dual, pois, ainda que não possa
haver amor quando aquele que ama e o objeto de seu amor se tornem um, no sentido que
consideramos amor, a experiência do ser imerso no Oceano de Amor e Ânanda deve
certamente ser de natureza mais delicada que o amor de um indivíduo isolado em relação à
Alma Suprema denominada Deus. Mas estas coisas são realmente matéria de experiências
nos planos os mais elevados e não há utilidade em discuti-Ias com nossas limitadas
experiências de amor e felicidade.
As ideias dadas neste aforismo são tipicamente de tradição hindu e aqueles que não
estão familiarizados com elas acharão difícil compreender o que este aforismo quer dizer. É
suficiente que tais pessoas captem a ideia fundamental de que quando um devoto a Deus,
que atingiu a Auto-Realização, está presente entre os homens nesta terra, não são somente
aqueles que entram em contato com ele no plano físico os beneficiados, mas também os
que vivem nos planos superfísicos. Pois, a consciência de um Mahâtmâ abrange também os
planos superfísicos e Ele está apto a ajudar também os habitantes daqueles planos. Toda a
Natureza se rejubila. Mesmo as coisas que supostamente não são capazes de pensar e
sentir experimentam uma forma misteriosa de soerguimento como resultado da descida da
Vida Divina vinda do alto.
O que acima se diz não é um mero ideal espiritual que se procura atingir sem jamais
conseguir. São exemplos disso as vidas de todos os grandes santos, sábios ou Instrutores
Espirituais, que vieram à terra para revelar o destino Divino do homem e a possibilidade de
realização da própria natureza Divina.
Esses dois aforismos fornecem alimento para reflexão daqueles que professem a
fraternidade do homem como um ideal a ser seguido. Somente aqueles que estão cientes
dessa Vida Divina no homem podem praticar a fraternidade no verdadeiro sentido. Aqueles
que não estão conscientes da unidade de toda a Vida, mas, sentindo essa unidade,
devotam-se seriamente ao trabalho de ajudar aos outros de todas as maneiras possíveis e
de minorar seus sofrimentos, estão caminhando na vereda que leva à realização da
verdadeira fraternidade. Aqueles que apenas admitem a fraternidade mas não estão
conscientes da unidade, nem têm verdadeira simpatia ou compaixão por todas as criaturas
vivas, realmente não sabem o que significa a fraternidade, mesmo que estejam aptos a
ministrar sábios ensinamentos a respeito e escrever livros proclamando a unidade da
humanidade.
Há um mundo de diferença entre a fraternidade ideológica e a verdadeira fraternidade.
A primeira é baseada na teoria de que os seres humanos devem ligar-se numa comunidade
ainda que isto implique em crueldade, destruição em grande escala e violação de todas as
leis morais aceitas como válidas na esfera do relacionamento humano. Aqueles que juraram
pela "fraternidade" na revolução francesa enviaram milhares e milhares de pessoas
inocentes à guilhotina em nome da fraternidade. E desnecessário dizer que essa espécie de
41
fraternidade artificial criada para a obtenção de uma finalidade política ou social é mera
frase feita e é geralmente violada ao ser praticada e promovida.
A verdadeira fraternidade, por outro lado, não é uma teoria, mas um fato de
experiência direta para aqueles que desenvolveram suficientemente sua consciência
espiritual para se tornarem cônscios da unidade de toda a vida. Não é criada artificialmente
por força ou persuasão, mas existe eternamente como um fato da Natureza no conjunto do
universo manifestado ainda que possivelmente ninguém o reconheça ou pratique. A única
maneira de promover a verdadeira fraternidade é aumentar aos poucos o número daqueles
que se tomem cônscios da unidade de toda a vida, ou pelo menos comecem a senti-la,
seguindo o caminho do desenvolvimento espiritual por meio da devoção ou qualquer outro
método. Isso, por lento que possa parecer o processo, trará à existência um grupo humano
que transformará a civilização, natural e rapidamente, de acordo com os ideais espirituais.
Considerando o que um grande santo ou um Instrutor do Mundo pode fazer pelo
soerguimento dos homens, pode-se imaginar o que podem realizar uns poucos milhares de
tais devotos.
Este aforismo responde à pergunta feita no anterior. Quer dizer que conversas e
discussões sem fim sobre Deus é futilidade, pois nunca poderemos chegar à verdade sobre
este assunto discutindo, lendo ou ouvindo conferências. Este é assunto para experiência e
não para discussão, como é o caso de outros problemas da vida. O que se disse acima deve
servir como advertência àqueles que dependem completamente de conferências, leitura e
discussão para a solução de problemas da vida espiritual. Tais coisas não podem ser
evitadas completamente, mas tão logo o aspirante ganhe conhecimento adequado para seu
propósito, ele deve concentrar todas as suas energias e faculdades seguindo o caminho e
praticando os métodos que levam à realização pela experiência direta em sua consciência.
O aforismo acima tem por finalidade dar ao aspirante uma ideia da atitude e da vida
que deve adotar em seu esforço para desenvolver .a devoção. Em primeiro lugar, ele deve
abandonar e eliminar todas as tendências a desviar a mente e dirigi-Ia a objetos mundanos
em vez de concentrá-la no Senhor. Em segundo lugar, deve adotar uma atitude de infinita
paciência em sua autodisciplina, e não se deixar desencorajar se os resultados de seus
esforços não aparecerem rapidamente. Só é possível adotar esta atitude se o aspirante tem
confiança ilimitada na eficácia dos métodos que está seguindo e na compaixão do Senhor
que guia e satisfaz o desejo de todo devoto de união com Ele, desde que seja zeloso e
perseverante em seus esforços. E por último, sendo o desenvolvimento da devoção uma
questão de gerar força, é necessário despender tanto tempo quanto possível nesses
exercícios, que têm por finalidade desenvolver essa força e aumentar seu potencial a um
grau adequado.
78.ahimsâ-satya's'auca-dayâstikyâdi-câritryâni paripâlaniyâni
78. INOFENSIVIDADE, VERACIDADE, LIMPEZA, BONDADE E OUTRAS VIRTUDES REQUERIDAS,
OU TRAÇOS DE CARÁTER, DEVEM SER ADOTADOS E CULTIVADOS PELO ASPIRANTE A
DEVOÇÃO.
O devoto deve lembrar-se de que o objeto de sua devoção é a Realidade que tudo
inclui, abrangendo todas as coisas e todo poder em manifestação. Assim, qualquer que seja
a atitude que o devoto adote em relação a Ele, dirigindo-Lhe sua devoção, é apropriada e
eficiente para d'Ele obter resposta. Sendo Ele a própria natureza do Amor e compaixão, a
resposta só pode ser de natureza benéfica, seguramente trazendo o devoto para mais perto
d'Ele. Nas escrituras hindus, tais como Bhâgavatam, diz-se que mesmo um indivíduo d'Ele
se aproximando numa atitude hostil, acaba por adquirir libertação das ilusões e limitações
da vida mundana. Pois, ainda que a atitude do indivíduo seja de hostilidade, a resposta do
Senhor de amor e compaixão só pode ser de compaixão e aos poucos vai produzindo uma
transformação no indivíduo em relação a Ele. Mas, é claro, não há razão para que alguém,
desejando se chegar a Ele, deva adotar qualquer outra atitude que não seja a de devoção e
completa confiança n'Ele.
O que se diz neste aforismo já fora dito também em alguns dos aforismos anteriores,
mas a grande ênfase com que se exalta a eficiência do amor para atrair e finalmente obter a
união com Deus, deve fazer com que o aspirante pare e pondere a questão em
profundidade. Muitos aspirantes consideram tais afirmativas como expressões de
parcialidade para seus métodos próprios de desenvolvimento das potencialidades
espirituais da parte dos que têm temperamento emocional. Não compreendem
adequadamente a qualidade intrínseca do amor em aproximar e finalmente fundir a
consciência do amante com a do Amado. E quando o amado é Deus, cuja resposta ao apelo
é infalível e ilimitada, não pode haver dúvida quanto à eficácia da devoção em encontra-LO
e unificar-se com Ele. Muitos pensam que isso talvez seja assim porém não é fácil
desenvolver essa espécie de devoção. Esquecem-se de que não e a dificuldade em
desenvolver a devoção que é o verdadeiro problema da vida espiritual. O verdadeiro
problema é que não queremos encontrar Deus, ou porque não estamos ainda
desenvolvidos espiritualmente, ou porque nossa mente está tão ocupada com assuntos
mundanos que nela não sobra lugar para Deus.
46