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INSTITUTO DE DIREITO PENAL ECONOMICO E EUROPEU FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA DIREITO PENAL ECONOMICO E EUROPEU: TEXTOS DOUTRINARIOS Vol. IL PROBLEMAS ESPECIAIS @ Coimbra Editora 1999 Compesigao e impressao oimbra Editora, Limitada ISBN 972-32-0836-9 (obra completa) ISBN 972-32-0838-5 (vol. 11). Depésito Legal n° 125 502/98 Margo de 1999 13 O BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS (ALGUMAS REFLEXGES A LUZ DO DIREITO PENAL § E DA POLITICA CRIMINAL) (*) José De Faria Costa 1. As disciplinas cientificas — nomeadamente em uma érea onde impera a razio pratica — surgem e autonomizam-se no momento em que: a) se encontra um objecto de estudo proprio; b) se insinua ou descobre uma met6dica que melhor con- segue atingir as finalidades propostas; e c) sempre que a densidade dos valores comu- nitérios desencadeia a necessidade de um auténomo tratamento de um pedago da realidade, & manifesto, por outro lado, que este tltimo componente representa ou espelha, a todas as luzes, a singularidade daquilo que une as disciplinas normati- vas ¢ as diferencia, por conseguinte, das chamadas ciéncias exactas ou da natureza. Ora, se 0 que se acaba de dizer tem o grio de verdade necesséria para que se aceite como algo de interessado e historicamente situado, logo relativo, também no € menos certo estarem, no poucas vezes, essas disciplinas nascentes ligadas aum nome, Nome que, emblematicamente, representa — porque cristalizou prin- cipios, rompeu barreiras e definiu sistemas — a propria disciplina e, assim, com ela amitide se confundindo. Deste jeito, poder-se-4 avangar, sem medo de se cometer erro ou desvio de correcta apreciagao, que um dos exemplos mais significativos da cumplicidade entre um nome ¢ uma disciplina esta justamente na inarredavel liga- go entre 0 nome do Prof. Klaus Tiedemann e 0 direito penal econémico. E se a imediata conexio que se denota entre 0 direito penal econémico e o nome do penalista de Freiburgo pode valer relativamente a tantas ¢ tio diversas areas ‘ou espacos juridico-culturais, € indiscutivel que vale para o campo do saber penal econémico que desde o principio da década de setenta se desenvolve em Portugal. ‘Nota: Publicado in Boletim da Faculdade de Direito, LXVIII (1992), pp. 59-86. (*) Oestudo apresentado esté, como todas as coisas, datado. Foi elaborado tendo em vista a participagio no Coléquio Internacional de Direito Penal Econémico, subordinado ao tema “Hacfa un derecho penal economico europeo” que teve lugar, em Outubro de 1992, na Universidade Auténoma de Madrid, aquando da concessdo, por aquela mesma Universidade, do grau de Dostor Honoris Causa ao Prof. Klaus Tiedemann, 302 José de Faria Costa Com efeito, foi nos idos, jé longinquos, do comego de 1974, que o Prof. Klaus Tiedemann, a convite do saudoso Mestre Eduardo Correia, proferiu, na Universi- dade de Coimbra, duas conferéncias que versaram temas da sua disciplina de eleigdo. A partir dai, entre nés, as circunstdncias hist6ricas pressionaram, de forma indesmentivel, os cultores da ciéncia penal a debrucarem-se sobre a nova proble- matica que o direito penal econémico traduzia. Todavia, neste especifico caso, 0 fermento da hist6ria beneficiou do facto de poder ser fecundado por um saber ja sedimentado — sedimentagio, aliés, que em muito se ficou a dever, como se sabe, a Klaus Tiedemann — tornando, desse modo, mais faceis as coisas para quem tinha que desbravar, internamente, os caminhos relativos, por exemplo, as reformas legislativas no campo do direito penal econémico (!). E, pois, com estas raizes — recortadas a trago grosso mas em que, mesmo assim, se pode notar a intencionalidade de um pensar aut6nomo que se quis sem- pre partilhado pelo saber e experiéncia dos outros, nomeadamente, da dogmitica alema — que trazemos hoje, aqui, algumas despretensiosas reflexdes sobre um tema candente, julgamos, do direito penal econémico dos anos noventa, qual seja: a incri- minagdo das condutas desencadeadoras do chamado “branqueamento” ou “reci- clagem” do também conhecido “dinheiro sujo” 2). 2. Breve enquadramento do problema Em todas as sociedades os bens, independentemente da sua natureza, tiveram sempre mobilidade (*) e a sua circulag&o constituiu e constitui um dos indices (}) Os trabathos de reforma legislativa, no campo do direito penal econémico, em Portugal, foram, como seria de esperar, antecedidos por substancial produgo doutrinal e culminaram na apre- sentago de um anteprojecto, de iniciativa govemamental, que, através de autorizagao legislativa, se transformou no Dec.-Lei n.° 28/84, de 20 de Janeiro. Nao se julgue, todavia, que o ordenamento Juridico portugués estava, at€ entio, completamente desprotegido, de um ponto de vista penal, quanto 4 prossecuglo de actividades de natureza anti-econdmica. Efectivamente, desde 1957, por forga do Dec.-Lei n.° 41 204, de 24 de Jutho, se beneficiava de um corpo legislativo unitério, onde a matéria do direito penal econémico aparecia sistematicamente tratada. E claro que a partir dai até aos anos oitenta surgira muitissima legislagdo avulsa que necessitava de sistematizagao luz das mais recentes doutrinas do direito penal. Essa foi, por certo, uma das razdes primaciais para se proceder & reforma de 84. Outras, obviamente, se impuseram, mas ndo é na intencionalidade lateral de uma brevissima nota de rodapé que devem ser analisadas. Julgamos, porém, que fica transparente para todos que, mesmo 4 nivel legislative, Portugal, como alids todos os outros pafses pertencentes a0 mesmo caldo cultural, ‘nunca descurou a problemiética do direito penal econémico. Sobre os diversos sentidos desta questo e sobre o que ela representa, também em termos temblematicos de afirmagio ou negacdo da propria noclo de Estado, veja-se FLICK, Giovanni Maria, «l.a repressione del riciclaggio ed il controllo della intermediazione finanziaria, problemi attuali e prospet- >, Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, 33 (1990), p. 1255 ¢ s. Autor, aliés, que, perante a gravidade do fenémeno em aprego, chega a afirmar que se impde um «intervenio urgente, a qualsi- ‘asi costo, senza preoccuparsi di verificame il grado di efficacia e di operativitt» (p. 1257 — itélico nosso). ©) Mobilidade que, como é bom de ver, se ndo prende a natureza mével ou imbvel das coisas, ‘mas antes & transmissibilidade da propriedade ou posse que sobre a coisa, mesmo que imével, se exerce. O branqueamento de capitais 303 mais relevantes para a valoragio do dinamismo ou desenvolvimento de qualquer comunidade humana organizada. A imobilidade ou cristalizagao dos bens determina, quase sempre, uma equivalente imobilidade ao nivel politico-social e, consequen- temente, também dentro do espago do direito. Por outro lado, a forma mais ela- borada e conseguida de se alcangar aquela mobilidade ao nivel dos bens operou-se, como se sabe, através da criagfio de uma entidade abstracta — o dinheiro (*) — que, de certa maneira, pode quantificar valor de “uso” dos especificos € concretos bens materiais em questo. Por isso se diz, com razio, que o dinheiro é um “bien juri- dicamente cualificado, al poser una genericidad absoluta y una ultrafungibilidad especifica, al gastarse pero no consumirse, al implicar la di idad abstracta de las demés cosas, bienes y servicios, y, al poder desarollar su funcién de equivalencia respecto de todo otro bien o valor patrimonial” (5), assumindo-se, desse jeito, como um “bien por excelencia de las demis relaciones patrimoniales” (6). Nesta dptica, o dinheiro representa também a riqueza, a qual, quando olhada pelo direito penal, pode ser protegida nos momentos da sua formagdo, conserva- do e circulagao ("). O que nos faz de imediato perceber que o que é relevante, dentro do hori- zonte analitico deste breve estudo, se prende, sobremaneira, com a circulagio da riqueza que, por antonomésia, se pode resumir & prépria circulagio do dinheiro. Ninguém duvida, nos tempos de hoje, de que, por outro lado, as operagdes de tor- nar limpido e comunitariamente aceitével o dinheiro como riqueza, quando pro- veniente das zonas “escuras” (8) do tecido social, se tém de fazer através da cir- () O dinheiro é a palavra de uso que, na linguagem do quotidiano, traduz varios significados, nos quais cabe a nogio econdmica de moeda, Se o dinheiro (ou a moeda) representa qualquer coisa ‘que funciona geralmente como intermediéria de trocas, assumindo-se, desse jeito, com uma utiidade, que néo é obviamente uma utilidade intrinseca, #4 a verbalizagao da sua representago conereta se afirma, quanto a nés, através de um valor de uso préprio, Ou seja: em termos de linguagem do quotidiano (0 que circula so conceitos onde tem de se precisar 0 montante da moeda em questio (por exemplo, Joko deve a Makia 5000 escudos; MiGUEL recebeu uma heranga de 6000 contos). H4, por isso, que distinguir entre a “inutilidade intrinsece” da moeda (ou dinheiro), enquanto categoria econémica, valendo ai exclusivamente a utilidade que se distrai da sua capacidade intermediria de trocas, ¢ a “uli- lidade intrinseca” do valor de linguagem que a moeda transporta. Todavia, perguntar-se-&: qual a “utilidade” de uma tal distingo? Julgamos que ela se pode encontrar facilmente, néo s6 na necessi- dade que hé em definir correctamente os planos analiticos, mas também no facto de a verificagto da “utilidade intrinseca” do conceito de dinheiro ou especffica moeda ser a Gnica via que nos dé pos- sibilidade de consubstanciarmos 0 dinheiro (ou moeda) em um determinado bem juridico susceptivel de ser protegido pelo direito penal (sobre a nogio de moeda veja-se Stammari, Gaetano, voce «Moneta», in: Enciclopedia det Diritto, XXVI, Giuffte, em esp., p. 748-50; Papi, Giuseppe Ugo, voce «Moneta», in: Novissimo Digesto Italiano, X, em esp. p. 855-6). ©) Bower Correa, José, «Ei dinero como bien juridicom, in: Estudios de Derecho Civil en Honor del Prof. Castan Tobeftas, IV, Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 1969, p. 142-3. (©) Boner Corsa, José, ob. cit. (n. 5], p. 143. () Divisio que se deve — tendo obviamente o direito penal como pano de fundo — a Car- nelutti (cf. CaRNELUTTI, Francesco, «La tutela penale della ricchezza», Rivista Italiana di Diritto Penale, 9 (1931), p. 7-24). (© Ao falarmos aqui de zonas “escuras” queremo-nos referir, muito precisamente, aquele lado da sociedade onde, por auséncia de transparéncia ou por provocada opacidade, se realizam as mais diver- 304 José de Faria Costa culago, porquanto longe véo os tempos em que, sem mais, as fortunas podiam pas- sar de umas mos para outras & margem do ordenamento juridico vigente e ser legi- timadas pela propria conservacao ou formagao do poder (°). E quando deste jeito analisamos esté-se, indubitavelmente, a tocar um ponto essencial (!) das questdes que nos preocupam, mesmo que nos fixemos, exclusivamente, em uma observa- do que ndo abandone os limites internos da ordem juridica (#4). Porém, se nos afoitarmos a perceber a densidade do fenémeno através da dimensio internacio- nal, mais recortadas ficam as dificuldades que se congregam em redor dos pro- blemas que urge tratar jurfdico-penalmente. E, hoje, um dado adquirido da vida econémica de qualquer pais — cada vez mais intensamente potenciado pelo uso da informatica que permite a utiliza- G40 do tempo real para a realizagiio de transacgées comerciais em diferentes espa- G08 — que a mobilidade de capitais representa um contributo do qual se néo pode prescindir sob pena, entre outras coisas, de estagnagiio econémica. Contudo, também ninguém desconhece que uma das regras mais elementares da apreciagiio dos comportamentos humanos reside no total aproveitamento dos bens disponiveis sas actividades ilictas. Porm, 0 conceito (zonas “escuras”) nfo deixa de susctar algumas ambiguidades, ‘no momento em que o cotejamos com a ideia central da chamada “‘sociedade de risco” (Risikogesells- cchafi) que Ulrich Beck, desde hé alguns anos, introduziu no pensamento sociol6gico. Como se sabe, a tese central da chamada “sociedade de risco” consiste na afirmago e defesa de que 0 nosso tempo se caracteriza pelo facto de os “lados sombrios” do progresso determinarem, cada vez mais, a dindmica Social (MALIANDI, Ricardo, Didlogo Cientifico, | (1992), p. 52, em brevissima recensio a um dos tilti- mos livros de Ulrich Beck (Politik in der Risikogeselischaft, Frankfurt a. Main: Suhrkamp, 1991]). (©) Escusamo-nos, por evidente, a dar um exemplo que seja, tanto mais quanto é certo que a historia, em qualquer dos seus periodos, € fertlissima em mostré-los. ('9) Nao s6 essencial como um dos de mais dificil tratamento juridico-penal. E se mais de ses- senta anos passaram sobre 0 estudo de Camelutti jf citado, o facto € que algumas das suas andlises continuam vélidas. Por isso ainda hoje se pode escrever que «la nozione della tutela penale della cir- colazione della ricchezza & probabilmente quella che [...] fichiede una maggior somma di premesse teoriche estranee al campo del dititto penale. [...] Conviene in primo luogo tentare una definizione, sotto il profilo giuridico, della circolazione, il che impegna il docente intomno al delicato rapporto del concetto economico di circolazione con il concetto giuridico di successione; poi una classificazione, ‘al qual proposito importa soprattutto distinguere la circolazione necessaria, quale si verifica per estin. zione det soggetto (per le persone fisiche, successione mortis causa) dalla circolazione volonraria (Successione per atto tra vivi) e, un'altra parte la circolazione primaria dalla citcolazione secundaria, la quale distinzione [...] costituisce la base indispensabile per la spiegazione dei fenomeni giuridici pit complicati di questo ordine e, in particolare, def titolo di credito; infine mostrare quali siano gli stru- menti che il diritto appresta alla circolazione e come tali strumen ti si siano venuti elaborando e per- fezionando in ordine alle esigenze della sua velocita, della sua riconoscibilita e della sua sicurecza» (cf. CarneLutmy, Francesco, ob. cit. [n. 7], p. 19). ("!)_Nao existem em Portugal estudos ctiminoldgicos ou sequer dados oficialmente crediveis ue nos possam ajudar a perceber a dimenso da fenomenalidade em toda a sua extensdo. No entanto, algumas instincias formais de controlo sugerem através de inferéncias muito simples (nomeadamente, através das varidveis: a) do niimero estimado de toxicodependentes, b) do seu consumo médio e c) do preco da droga no mercado) que o dinheiro arrecadado, ao longo de um ano, rondaré, eventualmente, a meia centena de milhbes de contos. Estes dados, repete-se, tém uma fungio meramente indiciadora, Todavia, nfo deixam de se balizar em alguns pardmetros que nos parecem ser suficientemente adequados 4 percepeo do valor global do dinheiro “sujo” proveniente do tréfico da droga. O brangueamento de capitais 305 que todos os membros da comunidade so capazes de levar a cabo, de forma licita ou ilicita, por meio dos instrumentos que essa mesma comunidade Ihes ofe- rece, Ao operarem-se, por exemplo, transacgdes de capitais, estas tanto podem ser, ¢ em prinefpio sio, manifestagdes de vontades juridicas relevantes que tém como ponto de partida uma riqueza socialmente legitimada, como podem, de igual modo, ser a capa que permite que a riqueza apareca justificada. E tudo isto den- tro do espago de uma economia mundial onde, como se sabe, o significado das fron- teiras nacionais é diminuto. O que nos permite, por consequéncia, apreciar que a dimensio internacional do fenémeno — lugar onde se jogam diferentes sistemas juridicos, diversas leis cambiais, distintas normas de protecgao fiscal ou de faci- litagdo fiscal (“paraisos fiscais”) e até desencontrados incentivos ao investimento estrangeiro — é uma das caracteristicas que mais nos devem preocupar sem, no entanto, nos afastarmos, internamente, da tentativa de se perceber 0 que distingue e caracteriza este tipo de actuagao criminosa. : Com efeito — retomando, precisamente, a linha de preocupagdes por iltimo avangada —, sempre em qualquer ordenamento juridico se praticaram fartos e se cometeram burlas. E furtos ou burlas de montantes astronomicos (' . Ou seja: independentemente do sujeito activo da burla ou furto ter sido ou nfo punido — 0 que para este momento da andlise pouco monta —, 0 ordenamento admitia e admite transferéncias de riqueza cujo valor formal é inatacdvel, mas que de um ponto de vista substancial esto longe de gozar do mesmo estatuto de limpi- dez (13), O direito penal surge como elemento frenador da conduta a jusante, 0 que nao impede que a montante a transferéncia se tenha operado. Ora, o que se observou corresponde a actuagdes, ilegitimas certamente, mas que se processam dentro do sistema e que este, em principio, controla, Ha trans feréncias ilicitas de riqueza, mas tais transferéncias ilicitas de riqueza, por maior que seja 0 seu montante, no se apresentam como geradoras da destruigio do proprio ordenamento juridico (sistema jurfdico). A transferéncia ilegftima tem lugar entre particulares. O Estado limita-se a punir aquele que a efectivou, cum- prindo, assim, o exercicio do ius puniendi, nao lhe importando ('4) demasiado, em termos ideolégicos, onde ficou ou possa ter ficado a riqueza. ()_A opinito pica portuguesa fo, por exemplo, fortemente saeuida, nos finais da década de vinte, por uma burla de montantes incalculiveis, cuja maquinagio passava pelo proprio Banco Nacional emissor de moeda e ainda, no esrangeio, pela prestigiada Waterfow (casa inglesn que impr mia as nots de banco). Sobre os reflexos intemacionais de uma tal buna veje-se HAWIREY, R. G-» «The portuguese bank nots case», The Economic Journal, 42 (1932), p. 391 8; par uma comproens global do ctsoe seu enquadramento histrco-scil veja-se, por todos, Boos, Moray 7 A grande burla, 2. ed,, Lisboa: Acrépole, 1976. No entanto, frise-se, uma tal burla foi, no essencial, obra ‘do de uma organizacto. co oy Pens, per exemo, no devo de fndos ou até na ortica de buras em que o dnhero “desviado”€ paulatna e metodicamente “aplicado” na compra de bens iméveis em nome de tereeros (familiares do ator da intaego). Stag, pois, onde difcilmente se podem, mais tarde, FOS je sancionamento inerentes a0 di i cara br epee rie og at am ap cito de particular relevo quantitativo, mas perceber se o enriquecimento ¢ ov néo contro 0 306 José de Faria Costa De modo muito diferente se passam as coisas quando olhamos atentamente a fenomenologia daquilo que nos preocupa. Na verdade, as grandes organiza- g6es criminais, ligadas aos mais diferentes sectores da actividade ilicita, designa- damente 0 tréfico de drogas (!5), so detentoras de uma fal disponibilidade de bens e de dinheiro que o reinvestimento de tais somas, provenientes de activida- des criminosas e onde impera uma total liquidez, faz nascer desvios e condicio- namentos no mercado financeiro, na medida em que pode levar ao controlo de um inteiro sector ou segmento da economia (!6), Nao se esta, por conseguinte, perante um caso isolado de apropriago ilicita de capital; esté-se defronte de uma estru- tura poderosamente organizada que se infiltra aos mais diversos niveis da realidade social e que age, em qualquer circunstancia, dentro dos pressupostos de uma forte cadeia hierérquica cujo fito sempre o de conseguir uma maior acumulacio de capi- tal para, desse jeito, directa ou mediatamente, aumentar também o poder da orga- nizagio (7), Uma estrutura deste tipo, que se anicha dentro do proprio Estado, define-se, necessariamente, através de formas intersticiais, 0 que nio diminui, antes pelo contrario, a sua eficécia na prossecugao das finalidades ilicitas e tende a ser, devido as suas caracteristicas, algo que o Estado controla com dificuldade acrescida porque se nfo conhece, ou dificilmente se sabe, quem so as persona- gens de uma tal trama; e, ainda que se conhegam ou identifiquem, surgem, mesmo assim, os maiores obstdculos, se nio a impossibilidade, quanto a perceber que Papéis representam tais personagens no jogo da actuaciio criminosa. De certa maneira, e utilizando uma linguagem teatral, dir-se-4 que a pega existe, € real ¢ até nos toca ou fere sensitivamente. Contudo, quando olhamos para o palco, as personagens dificilmente se distinguem umas das outras — nfo tém individuali- dade — e se, por acaso ou interesse do “autor” da obra, nos surge, sob as luzes da boca de cena, uma personagem bem recortada que nos dé a satisfacdo de per- cebermos quem é, 0 que faz, ou, pelo menos, o que representa, rapidamente tam- tores do poder pblico, Aceitando ou talvez mesmo partindo da ideia de que, até ao momento, qual- quer vantagem patrimonial, iicitamente obtida, nao tinha relevo quantitativo suficiente para despertar uma nova problemiética, defendendo, desta maneira, um critério quantitativo como aquele que mais bem explica a passagem de uma a outra problemética, isto é, a passagem da problemética dos chamados crimes “cléssicos” contra o patriménio para a questo dos crimes atinentes a0 “branqueamento”, veja-se PECORELLA, Gaetano, «Circolazione del denaro ¢ riciclaggion, Rivista aliana di Diritto ¢ Procedura Penale, 34 (1991), p. 1221. (9) E-claro que o fenémeno do branqueamento de dinheiro esté conexionado, primacialmente, com 0 tréfico de droga, porquanto esta actividade ilicita € uma das que mais lucros proporcionam, como 6 aquela que, por razdes de desgaste perturbagdes sociais, mais impacto traz ou provoca na opiniio piiblica. Todavia, a necessidade de branqueamento liga-se também ao dinheiro proveniente de outras fontes igualmente rendosas, nomeadamente 0 que advém da prética organizada da prostituiggo, do Jogo clandestino, venda de armas ou até da extorsio, Fala-se mesmo que actividades criminosas organizadas jé entraram no complexo mundo da informatica e da fabricagdo de medicamentos (sobre este ponto veja-se KRAUSKOPr, Lutz, «Geldwsacherei und organisiertes Verbrechen als europtisches Herausforderung», Schweizerische Zeitschrift fr Strafrecht, 108 (1991), p. 386-7). (19) PECORELLA, Gaetano, ob. cit. (a. 14], p. 1221-2. () Cres, Alberto, «Aziende di credito ¢ repressione del riciclaggio dei proyenti illeciti (Appunti intomo a recenti disegni di leggi)», Rivista delle Societd, 35 (1990), p. 1403. O branqueamento de capitais 307 bém nos apercebemos do logro dessa amostragem cénica, jé que, de sibito, tal como Pigmaledo, o “autor” transforma aquela personagem em uma outra, num cons- tante jogo de mutagdes, em que nos perdemos, porque nada dominamos, nem sequer 0 final, o qual, alids, por abstracedo, desejo inconfessado do autor ¢ razio de ser da propria pega, nao existe, A imagem que se acabou de trazer a reflexdio pode pecar por ser demasiado cénica, mas nao é, com certeza, menos representativa e eloquente do que, em verdade, se passa no mundo em que vive ¢ prolifera este tipo de criminalidade. E preciso ter consciéncia, e consciéncia aguda e desperta, de que os fenémenos sociais — quaisquer que sejam — se desenvolvem em um espaco e um tempo cul- turalmente identificados. E olhando a nossa volta — falamos aqui exclusiva- mente dentro do quadro da realidade portuguesa, mas pensamos que realidades outras nao se afastarfio muito daquilo que se avanga como caracteristicas deter- minantes —, vemos, sem grande dificuldade, que o que se vangloria e se erege em regra de ouro so os éxitos faceis, as formas atrabilidrias de comportamentos, descosidas de quaisquer pontos referenciais, a légiga do lucro a qualquer custo. © que nada mais é, digamo-lo de forma sintética eprecisa, do que a exaltagao de uma vertente da chamada “cultura da corrupgao” ('8), ImpGe-se-nos, assim, enquanto simples inferéncia légica do que se disse em momento imediatamente anterior, que se tenha de aceitar que o fenémeno do branqueamento, mesmo em termos juridico-penais, no pode deixar de ser apreciado dentro daquele conjunto de valoragdes. Vé-lo ou analisé-lo de outro jeito é cometer o erro — alls, tan- tas vezes praticado e a que se ligam tantas e tdo nefastas consequéncias — de que- rer ver a 4rvore sem sequer olhar minimamente para a floresta. De sorte que o que distingue, em termos muito simples e sintéticos, este tipo de criminalidade se pode resumir no seguinte: a) perigosidade, gravidade ¢ extensio dos fenémenos que o sustentam; b) particular ressonancia ao nivel da opi- (19) Nao vamos, evidentemente, por descabido, tragar as linhas mais impressivas daquilo a que se pode chamar “cultura da corrupcao”. No entanto, gostarfamos de deixar aqui registado que, uanto a nés, um dos pontos que mais caracterizam aquela forma de pereeber 0 mundo ¢ de nele actuar reside na contiguidade. Contiguidade dos elementos sociais que vivem ¢ cultivam, precisamente, aquele tipo de cultura com toda a outra massa anénima de pessoas que constitui a comunidade vista em globo. Contiguidade de comportamentos sociais (0 pequeno favor social, obviamente retributvel, que nada tem de corrupto mas que, subindo um pequeno degrau na escala do “favor”, jé toca as raias da ilegalidade) e, por sobre tudo, contiguidade das valoragBes sociais que sobre os comportamentos Cor- ruptos fazem no s6 0s membros das organizagdes criminosas como 0 comum dos cidadios. Ou sejar 0 membro da organizagao criminosa racionaliza o comportamento justificando-o como um acto ‘que vem reforcar a propria organizagtio que, por definigao, s6 quer o bem de todos os seus membros, ‘enquanto 0 comum dos cidadéos racionaliza a conduta legitimando-a, de entre outras manciras, a luz, nifo s6 da generalizada corrup¢do — logo, & absurdo, quixotesco, aparecer-se como cumpridor —, mas também através de um sentimento de injustiga, que se compensa, justamente, pelo acto de corupgio, na medida em que, no mundo das ilegalidades — nomeadamente quando entra em, jogo 0 dinheiro —, sio sempre punidos unicamente os “pequenos”. Ora, esta contiguidade, repetimos, de valoragées, no que se refere a0 comportamento social, mostra-se, em nosso modo'de ver, como aquilo que mais dificil & de erradicar ou mesmo de modificar. Aqui, uma mudanga das coisas s6 ganha sentido se se levar a cabo a introdugo ou a potenciagao de um outro tipo de cultura, 308 José de Faria Costa nido piblica, determinando, simultaneamente, reptidio social, mas outrossim amo- ecimento da consciéncia ética quando se véem as insténcias do poder piblico ficar bloqueadas ou ser, de forma absoluta, inoperantes; c) racionalizagao e inser- Ho sociol6gica dentro dos pardmetros da chamada “cultura da corrupgio”; d) afir- magiio inequivoca de uma dimensio tipicamente internacional ('%); e) dificuldades, particularmente sensfveis, na determinago e consequente ataque a uma tal feno- menalidade através dos comuns meios juridico-penais. 3. Linhas de forga para uma actuacao politico-criminal Perante 0 quadro tragado no nimero anterior — onde se fizeram ressaltar os Pontos € as caracteristicas mais impressivos do branqueamento —, todos concor- dam que a dimensio internacional do fenémeno se apresenta como aquela que mais e maiores dificuldades e obsticulos levanta a um seu consequente e eficaz ataque. Daf que, em total coeréncia de intencionalidades, o grande esforgo se tenha con- centrado no afeigoamento de instrumentos juridicos intemacionais @°), de modo a poder dar-se uma resposta, por pequena que seja, A criminalidade que o bran- queamento representa. Tivemos jé oportunidade de chamar a atengHio para o facto de ser impres- cindivel nao nos esquecermos do horizonte de valorages que envolve esta pro- blemética. E se é indesmentivel que as margens da “cultura da corrupgdio” sfio 0 lugar privilegiado para proliferarem tais actividades, isso tem que ter como coro- lario a compreensdo de que a actividade de branqueamento € ela j4 uma crimi- nalidade derivada, de 2.° grau ou induzida, Em termos muito simples e inequi- vocos: s6 ha necessidade de “branquear” dinheiro se ele provier de actividades primitivamente ilicitas. O que nos levaria, se nos deixéssemos embrenhar em decorréncias inconsistentes ou desfasadas da realidade, a julgar que este ou é um falso problema ou tem a soluco das coisas evidentes. Isto é: se, efectivamente, © branqueamento é uma actividade ilfcita derivada ou induzida por outras activi- dades, também elas ilicitas, ataquemos, entio, as causas ¢ néo os efeitos. Porém, oo No que toca as caracteristicas anteriores veja-se FLICK, Giovanni Maria, ob. cit. [n. 2), p. 1255-9. ©) Os instrumentos juridicos interacionais ganham algumas das suas expresses mais carac- teristicas através das formas dos tratados, pactos ou acordos intemacionais. De sorte que, € no que respeita precisamente a esta matéria, a Convengao de Viena constitui um elemento de particular impor- ancia neste contexto, a que se pode juntar, certamente que ndo com 0 mesmo grau de relevo, a Declarago de Principios de Basileia, de 1988. Por outro lado, a0 nivel da Comunidade Europeia, a Directiva de 10 de Junho de 1991 (91/308/CEE), publicada no Jornal Oficial das Comunidades Euro- elas, em 28 de Junho de 1991 (n.° L 166/77), dé um vigoroso passo em frente e avanga com uma definigko de branqueamento, o que, alids, acrescente-se, j& acontecia com a Convengio de Todavia, a0 lado destes instnimentos internacionais, a que chamarfamos comuns ou tradicionai ‘mingua de melhor qualificagao, surge, neste campo, um grupo de trabalho denominado GAFI (sigla de Groupe d’action financitre sur le blanchiment de capitaux), com um ambito de acgaio muito mais informal e que pretende ser um ponto de convergénicia de miiltiplas informagdes provenientes dos paises que nele se fazem representar. branqueamento de capitais 309 porque a estratégia de ataque as primeiras actividades ilicitas — designadamente no que se refere ao trafico de droga — se tem mostrado inoperante, entende-se que se deve controlar ou entravar, ao menos, os fluxos financeiros provenientes daquela primitiva actuagdo ilicita ?"), B esta uma alteragdo — quanto aos objectivos politico-criminais precipuos — que nos deve merecer alguma ponderagao. Em termos de estratégia — qualquer estratégia — todos sfio undnimes em aceitar e defender que 0 que conta é 0 objectivo que se definiu como meta a alcangar, Se no desenvolvimento e expanso envolvente ha que sacrificar outras finalidades, deve isso corresponder a reacertos tactics que nfio obstam nem devem obnubilar a prossecugio da finalidade primacial. Todavia, € preciso ter cons- ciéncia dos custos que os sacrificios intermédios podem provocar na manutengao do objectivo primeiro. Assim, ao assumir-se que a luta contra 0 trafico de droga niio produz quaisquer resultados palpaveis ¢ ao atacar-se o problema através da asfi- xia dos lucros ilicitamente obtidos, esté-se, quanto a nés — pensando-se que se mantém a estratégia — mais do que a alterar uma tActica: esté-se a alterar a pré- pria estratégia, Por outras palavras: se o problema do tréfico de droga é insus- ceptivel de uma resolugio através de instrumentos juridico-penais, ou de resolu- io que passe, fundamentalmente, por meio de reacgdes penais, entio subalternize-se esse objectivo e eleve-se o branqueamento a meta final (?2). @)_ Isto mesmo se pode ler, sem equivocos, em recentissimo artigo: «Faute de pouvoir met- te un terme & offre et a la demande, les autorités de differents états se sont employées tenter de con- ‘toler et d'entraver les flux financiers provenant du trafic de la drogue, flux financiers aux termes des- ‘quels Vorigine criminelle des fonds n’apparaissait plus permettant a ceux-ci, par ce “blanchiment”, de se réinvestir»; cf. PARDON, J., «Le blanchiment de Vargent et la lutte contre la criminalité axée sur le profit», Revue de Droit Pénal et de Criminologie, 72 (1992), p. 740. (@) Particularmente elucidativo da imbricagio e da dificuldade em apontar 0 que 6 politico-legis- lativamente prioritério € a valoragtio que se estabelece entre 0 trafico da droga e © branqueamento, no quadro da “Exposigdo de Morivos” da Proposta de lei n.° 32/VI (aprovada em sesso de 16 de Julho de 1992), que autoriza 0 Govemo a rever.a legislagao de combate & droga, adaptando-a ao direito inter- nacional pacticio (ef. Didrio da Assembleia da Repiblica, VI Legislatura, Il Série-A, de 12 de Junho de 1992). ‘Comecando por se reconhecer que “o ponto de partida’” dos textos internacionais, relativos a0 branqueamento, “se situe no combate ao tréfico da droga”, aceita-se, de seguida, que tais ‘mativos “acabaram igualmente por ser ampliados a outras actividades criminosas, esperando-se que os Estados venham a aplicar o regime da directiva nomeadamente ao crime organizado ¢ ao terrorismo”. © que denota, através do conforto prestado por uma simbélica autoridade dos textos intemacionais, uma primeira tentativa de separar as éguas entre o branqueamento e 0 tréfico de droga. Por isso, dentro desta linha de raciocinio, tem sentido dizer-se, “no sc justificar a [...] absorgdo [do branqueamento] ‘no presente diploma. Com efeito” — continua-se — “matérias que afectardo um universo que vai desde 105 estabelecimentos de crédito ¢ outras instituigdes financeiras alé provavelmente & colaborago de pro- fissdes e empresas cujas actividades sejam especialmente susceptiveis de utilizagfo de branqueamento de capitais ou reciclagem do produto de actividades ilfcitas, relevam de um conjunto cocrente de questdes e medidas que ficaria quebrado se viesse a ingressar num diploma especifico como o emi tido 20 abrigo do pedido de autorizagéo legistativa formulado”. E depois de se acrescentarem algu- ‘mas consideragées abonat6rias em defesa de uma auténoma definigao legal de branqueamento, invoca-se ‘© exemplo da Franga (lei n.° 90-164, de 12 de Julho de 1990) para fechar 0 ciclo argumentativo da separagio legislativa entre as actividades criminosas em andlise. Dir-se-ia, pois, que a unidade coc- rente, hé pouco invocada na “Exposicao de Motivos”, levaria a que o branqueamento, neste contexto, 310 José de Faria Costa Fagamos, porém, um esforgo suplementar de andlise — compensado, em nosso entender, mais do que proporcionalmente, pelo, envolvimento compreen- sivo que nos proporcionaré — e, por um momento, aceitemos ver em globo a rea- lidade ¢ a projecedo das intencionalidades politico-criminais. Nao é dificil perceber que, de forma analégica (79), o chamado “branquea- mento” desenha-se como uma forma especifica e particular de receptagio, em que a circunsténcia mais notéria da diferenga ou, pelo menos, da dissemelhanga, reside no facto de — para além de outras possiveis diferencas que j4 nio tém tanto a ver com a substancia das coisas, mas antes com a intencionalidade politico-cri- minal que se quer imprimir a cada uma das infracedes — a coisa recebida ser, fun- damentalmente, dinheiro. E é, justamente, esse mesmo dinheiro que vai consti- tuir, na esséncia, o problema central do branqueamento de capitais, quando na receptacio perde significado ou, pelo menos, nfo adquire significado relevante. Por- que uma coisa é certa: podem conceber-se varias fases de branqueamento — e varia isso de caso para caso —; o que, todavia, é invaridvel, nomeadamente no caso do rio mais fosse suscitado, Todavia, quem assim raciocinasse cometeria um erro de andlise, jé que “isto ‘fo significa” — novamente o texto da “Exposi¢a0 de Motivos” — “que a realidade juridica e 0s tipos de crimes nfo devam arrancar de uma perspectiva comum e harménica e que, por isso, nfo se tome em conta, por exemplo, a definigdo e contetido do branqueamento de capitais, tal como consagrados esse projecto”. Isto & 0 branqueamento deve ter unidade de tratamento legislativo mas, mesmo assim, justifica-se que também se trate, no fmbito do futuro diploma, se bem que lateralmente, do pro- blema. Utiliza-se, a nivel legiferante, uma “‘jurisprudéncia das cautelas” para a qual se néo encontra ‘uma razfo plausivel. O legislador — aliés, entidade propensa a assumir a voragem de absolutizar 0 real-social —, sempre que actua, parece querer abarcar A tort et A travers toda a realidade normativa ue esté conexa com a questdo central de que se ocupa. Ora, como se sabe, tal técnica legislativa nao & obviamente, a melhor forma de legislar, é que isso potencia, no minimo ¢ entre outras coisas, 0 apa- recimento do concurso de normas. No entanto, neste caso, a razio de ser do empenhamento legisla- tivo global, que se estende ou expande, pois, até ao branqueamento, poderd ser dada pela inequivoca ligacio, pelo menos genética, entre os dois fenémenos que tém constituido, de certa maneira, o hori- zonte compreensivo deste trabalho. Pela ligacao entre 0 tréfico de droga e o branqueamento, ©) Exemplo paradigmético da existéncia de uma similitude material entre o branqueamento ‘a receptagdo podemos surpreendé-lo no Capitulo XVI (De la receptacién y del blanqueo de dinero) do ecentssimo Proyecto de Ley Organica del Codigo Penal (Secretaria General Tecnica, Centro de Publicaciones, 1992). ‘Todavia, uma tal parecenga em termos de pritica de condutas (modus ope- andi), no que toca aos passos que devem ser proibidos, ndo implica, quanto a nés, que se tenha de fazer um nico tipo legal, em ordem a abarcar as duas condutas (a inerente receptago © a que € conexa ao branqueamento). Julgamos que, apesar de tudo, 0 peso ¢ as densidades normativas, quer do desvalor de intengao, quer do desvalor de resultado que acompanham as duas préticas, apresentam-se de jeito tio diferenciado que tudo aponta para que também se verifique uma diferenciago ao nivel do tipo legal. Porque, convenhamos, em termos polftico-criminais, no € a mesma coisa ser receptador de rédios de automéveis ou ser branqueador de dinheiro proveniente do tréfico de droga ou da venda ilicita de armas, Este tratamento diferenciado impée, por conseguinte, em uma l6gica de densifica- ‘eo, que o branqueamento de capitais seja tratado em lei auténoma no Ambito do direito penal secun- dirio. O que, obviamente, no quer significar que, seja de um ponto de vista politico-criminal, seja de uma perspectiva de desvalor (de intengao ou de resultado), o branqueamento de capitais nfo merega aié maior censura que a prépria receptagio. Acontece que, dentro de um cauto ¢ ponderado desen- volvimento legislativo, 6 preferivel, por mor de uma certa circunstancialidade dos fenémenos, desen- volver as teméticas, mesmo quando incriminadoras, em circulos separados, se bem que ambos etica- ‘mente fundados. owen sone: O branqueamento de capitais 31 trafico de droga, é o facto de o primeiro branqueamento ter de partir, necessaria- mente, da maciga quantidade de dinheiro angariada com a venda da droga ao consumidor. E aquilo que constituia um ponto, repete-se, de pouca importincia politico-criminal ou mesmo dogmatica (4), transforma-se em elemento material @) Saber, dogmaticamente, se pode ou ndo haver uma verdadeira receptagdo quando a coisa receptada € dinheiro, perfila-se como questo complexa ¢ bastante controvertida. E claro que o dinheiro no precisa de ser trocado por nada, jé que ele é, precisamente, como se viu, a entidade pela qual tudo se troca, De sorte que a doutrina, em principio, entende que o recebimento de dinheiro & insusceptivel de integrar o tipo Tegal da receptagdo. ‘Todavia, casos havers onde o dinheiro se mos- tra como coisa nao absolutamente fungivel, podendo, desse jeito, necessitar de troca. Pense-se, por exemplo, em um assalto a um banco, donde so retiradas notas (novas) com uma numeracio perfei tamente conhecida das autoridades. Se se troca esse dinheito “novo” e “quente” por dinheiro “velho’ — on seja, aquele cuja numeragao das notas é j4 absolutamente incontrolfvel pelas autoridades — nfo temos dividas em assinalar que se esté perante um caso de receptagto (cf. Arzt, Gunther, «Geld- wiischerei — Eine neue Masche zwischen Hehlerei, Strafvereitelung und Beginstigung>, Newe Zeits- chrift fir Strafrecht, 15 (1990), p. 2). Esta correcta compreensio da questo néo tem sido seguida pela nossa jurisprudéncia que considera que 0 recebimento de didivas — sabendo, obviamente, o agente que a coisa provém de crimes contra o patriménio — preenche 0 crime de receptagao previsto no art, 329.", n.° 1 do Cédigo Penal (cf. Acérdao do Supremo Tribunal de Justiga, de 20 de Janeiro de 1988, Boletim do Ministério da Justiga, 373 (1988), p. 295 ¢ s.). Ora, esta situagao jurfdica Tevanta, na frea dogmética, dois problemas distintos: 1.°) o de saber se aquele que recebe, em doagio, inheiro (“velho"), mas conhecendo que ele advém de um crime contra 0 patriménio, comete ou no ‘um crime de receptag&o; 2.°) 0 de equacionar a complexa problemética referente’a cadeia de causali- dade (receptagio de receptago) que o agente deve conhecer para preencher o respectivo tipo legal. 'No que toca a primeira questi, o tipo exige, jf 0 vimos, “intengdo de obter para si ou para outrem ‘vantagem patrimonial”. De sorte que se, neste contexto, a “doacio” — conceito que.tem de ser rein- terpretado @ luz das finalidades juridico-penais — é a manifestagao jurfdica de um acto de vontade que leva ao desapossamento, por espfrito de liberalidade, de uma coisa para a dar a outrem, é manifesto ‘que esse desapossamento esté exclusivamente nas méos do delinquente que realizou 0 primeiro crime contra 0 patriménio. Assim, se tudo esté nas mfos do “doador” — no doador em sentido técnico, bem se vé, na medida em que 0 agente nao tem a propriedade da coisa — como se pode conceber a existéncia de uma intengo de vantagem patrimonial, por banda do “donatério/receptador"? Nao dize~ ‘mos que este nao possa ter essa intengo, s6 que ela ¢ inelevante para o dircito penal, porquanto a sua ‘manifestagdo de vontade (intengo) niio tem, pela propria natureza das coisas, qualquer efeito sobre 0 puro acto de liberalidade que o mero desapossamento jé representa. E, pois, quanto a nés, impens4- vel definir penalmente uma tal situagdo. O Ambito de protecgdo da norma tem de assentar no pres- suposto de que 0 desencadear do elemento intencional é dominado pelo agente da infracgo. Como vvimos, ndo se defende nem se argumenta que o agente no possa ter manifestado essa intengo, s6 que cla 6, a todas as luzes, perfeitamente irelevante quando a olhamos através de um Angulo juridico-penal. ‘© que pode acontecer — e aconteceu no caso que se analisa — € coincidirem no resultado as expec- tativas das duas vontades: de um lado, a intengao de dar, de outro, a intengio de receber uma vanta- gem patrimonial. ‘Todavia, essa coincidéncia nfo é, de modo algum, julgamos té-lo clarificado, sequer indicio de um efectivo poder intencional que estivesse na disponibilidade do agente. Bem pelo con- trério. Ele limita-se, passivamente, a receber, passando-se tudo, por conseguinte, fora da sua esfera de acgio, o que afasta um tal comportamento do ambito de proteccio da norma. Quanto @ 2." questio — a de tentar compreender até que ponto a receptacao da receplagio deve ser punida — afigura-se-nos bem mais complexa e & em elagdo a’ela que mais dividas assal- tam 0 nosso espirito, Perante o tipo legal definido no art. 329." do CP, parece indiscutivel que @ situagdo desenhada pela ideia de uma receptagto da receptacdo preenche 0 respectivo crime. Como 4 se viu, o que se exige é a intengfo de obter vantagem patrimonial relativamente a transmissio de coisas obtidas pela pritica de um crime contra o patriménio. Parece, assim, que se um segundo 312 José de Faria Costa essencialissimo no branqueamento. Contudo, olhando o problema de um Angulo que tenha em vista, estritamente, a realidade do mundo da patrimonialidade, os dados criminolégicos nao nos mostram, nem muito menos demonstram (25), que a existéncia dos crimes de receptagio ou de auxilio material ao criminoso (25) tenha uma forte influéncia frenadora na pratica dos crimes contra o patrimé- nio 27). Percebe-se, racionalmente, que so duas actividades que esto, por lagos receptador receber a coisa do primeiro receptador e se verificarem todos os outros elementos do tipo, no hé dividas em afirmar que o agente (0 segundo receptador) pratica um crime de receptagio. Porém, quanto a nés, tem de haver um limite para esta cadeia, sob pena de a norma perder consisténcia. ara ilustrar 0 que se acaba de dizer recorramos a um exemplo: imaginemos que A, passados dez anos de B ter praticado um furto de uma coisa que, entretanto, vendera a C e que este, por seu turmo, tor- nara a vender a D, compra, por um preco ligeiramente mais baixo que o prego normal do mercado, © objecto 2 D. Se sabe, para além disso, que tal objecto provém daquele primitivo crime, comete ov nio 0 crime de receptago? Julgamos que ndo. Em termos juridicos sabe-se que as coisas podem ser adquitidas pelo decurso do tempo: € a usucapido que, relativamente as coisas méveis, independente- mente da boa fé € de titulo, se dé passados seis anos (art. 1299° do Cédigo Civil). Ora, a partir daquele decurso de tempo a coisa pertence, juridicamente, aquele que beneficiou da usucapitio. Se assim é, seria absolutamente incongruente incompreensivel punir alguém que sabe que a coisa proveio de um acto ilfcito © que, para além disso, obtém uma vantagem patrimonial, quando a ordem juridica ja legitimou, através do direito civil, a posse € a propriedade do seu actual detentor. Dai que, no jogo dda receptagio da receplagtio, se deva ter sempre presente, entre outros pontos, a eficécia legitima- dora de institutos provenientes de outros ramos do direito. Mas, depois desta digressio sobre Areas cconexas, regressemos, rapidamente, a problemética especifica do branqueamento, Assim, se continuarmos a analisar o problema em uma perspectiva dogmética, dever-se-4 afir- ‘mar que 0 dinheiro recebido para branqueamento proveniente, por exemplo, do trafico de droga, em caso algum poderia, face a lei portuguesa (art. 329.° do Cédigo Penal [a partir daqui utilizaremos para Cédigo Penal a sigla CP), integrar o tipo legal de crime de receptagao (art. 329.° do CP). Com efeito, o tipo legal de crime de receptagao exige que a coisa obtida o tenha sido mediante um facto criminalmente ilicito contra patriménio. Ora, como de imediato ressalta a mais desatenta das ané- lises, 0 trafico de droga néo é, efectivamente, um crime contra o patriménio. O que no quer sig- nificar que certo tipo de condutas, eventualmente integréveis em uma visio lata dos elementos sus- ceptiveis de qualificarem 0 branqueamento, néo seja jé punido pela lei penal portuguesa, por consubstanciarem 0 chamado favorecimento pessoal (art. 410.” do CP). Com efeito, por fora do art. 410.° pune-se “quem, total ou parcialmente, frustrar ou iludir a actividade probat6ria ou preven- tiva das autoridades competentes com a inteng#o ou com a consciéncia de evitar que outrem, que Praticou um crime, seja submetido a reacgao criminal nos termos da lei". Definigio legal de elementos ‘que podem, em algumas circunstdncias, abarcar hipéteses de branqueamento, mas que, obviamente, no preenchem todas — nem, por certo, as mais graves que, por isso, urge combater penalmente — as situa- ‘e8es comportamentais que se querem abranger com o branqueamento, @5) Sem qualquer intuito de andlise estatisticamente fundada, mas antes com uma intencio que se circunscreve a apreciagio meramente indiciadora, vejamos alguns némeros, referentes aos crimes con- tra a propriedade (que inclui, por exemplo, o furto simples, 0 furto qualificado, 0 roubo e outros crimes de menos relevo) ¢ a receptagao propriamente dita: 1984 — Crimes contra a propriedade — 3985; Receptagtio — 41: 1985 — Crimes contra a propriedade — 4311; Receptagio — 61: 1986 — Crimes contra a propriedade — 4297; Receptagiio — 81: 1989 — Crimes contra a propriedade — 5840; Recep- ago — 124: 1990 — Crimes contra a propriedade — 6553; Receptagao ou auxilio material ao crimi- oso — 158 (Fonte: Esratisticas da Justica, Estatisticas Oficiais, Portugal, Ministério da Justica). 5) Também relativamente a0 auxilio material a0 criminoso (art. 330." do CP) existe a limi ago, ao nivel dos elementos do tipo, de a coisa ter de ser obtida “através de crime contra o patriménio”, ©) O que se diz vai ao arrepio de um velho adégio que a lingua francesa consagra: «le recé- leur fait le voleur» (cf. Gauriner, Pierre/Laurer, Bianca, Droit pénal des affaires, 4: ed., Patis: Eco- se sean ne mr secret © branqueamento de capitais 313 de pura necessidade material, ligadas, mas, no entanto, em uma perspectiva dina- mica do fenémeno, também se compreende que, apesar de tudo, so realidades que giram em esferas diferentes e, quantas vezes, desencontradas, onde se nfio pode des- cortinar uma linear cadeia de causa-efeito. Por isso, devemos ter como pontos de apoio A projecedo das intencionalidades politico-criminais, nao s6 a verificagdo da inexisténcia de uma imediata relagdo causal entre 0 branqueamento eo tréfico de droga, mas também o entendimento — como, aliés, jé salientamos — de que a fonte ilfcita de dinheiro para branqueamento nio se circunscreve, de forma redu- tora, ao trafico de droga. E evidente que as consideragdes anteriores nao tocam minimamente na legi- timidade e na oportunidade de se criar um tipo legal de crime que consubstancie as condutas que levam ao branqueamento, o permitem ou o facilitam. Porém, ja temos algumas diividas em aceitar como boa razio para a criagdo daquela incriminagio 0 facto de, dessa maneira, com base em uma simples noticia de crime, se poderem desencadear «numerosos actos de investigagao que possam conduzir, nao s6 indi- Vidualizagio de hipéteses de branqueamento, mas também a descoberta das fontes de proveniéncia do dinheiro ilicito, e assim também as organizagées criminais que © produzem e gerem» (8). Defndemos que a incriminagdo das condutas penalmente relevantes se fundamenta em uma ordem de razdes que se nao deve confundir com as razdes “fracas” que eventualmente advenham de motivos laterais de mera eficé- cia de um sistema. Criar-se um tipo legal de crime para, desse jeito, melhor ou mais facilmente desenvolver, legalmente, uma qualquer actividade persecut6ria ¢ atitude politico-legislativa pouco clara que, para além disso, pode ter efeitos perversos. ‘A posicao juridico-penal que se avangou tem a sustenté-la a ideia de que 0 direito penal s6 deve intervir como ultima ratio € que, quando tal acontece, se no deve nunca esquecer o envolvimento de instrumentos juridicos de outra natureza. Desta mancira, devem as autoridades, através de meios administrativos, controlar ‘0 mercado de capitais e mesmo os agentes que af operam (9). O direito penal € instrumento de controlo que nao pode nem deve ser subestimado na luta contra 0 branqueamento, mas a sua eficdcia tem sempre um cardcter limitado (®) que se nomica, p. 255) ou até mesmo daquilo que Eduardo Correia pensava, jd que, segundo 0 que ficou regis- tado em Acta da 1," Sessio da Comissdo Revisora do Projecto da Parte Especial do Cédigo Penal, para 0 Autor do Projecto do Cédigo Penal, os «receptadores sto os grandes fautores dos crimes con- tra o patriménio» (cf. Boletim do Ministério da Justiga, 287 (1979), p. 73). (@) Defendendo a posigo que criticamos, sem levantar qualquer problema ou pequena som- bra de divida, veja-se Pecoretia, Gaetano, ob. cit. (n. 14], p. 1223. @)_ Neste sentido, se bem que avangando para a penalizagao do nfo cumprimento do dever de revelar eventuais indicios quanto a ilegitimidade da proveniéncia do dinheiro — criminalizago que nos oferece reservas — veja-se PECoRsLLA, Gaetano, ob. cit. {n. 14], p. 1224, Saber em que moldes se deve realizar aquele controlo administrative de maneira a que se ndo atrofie o mercado — o qual deve, em principio, operar na base da confianga ¢ da boa fé — é coisa que ultrapassa 0 sentido das preo~ cupagées cientificas dos penalistas. (@) Na mesma linha de pensamento Arzt considera que as normas penais contra o branquea- ‘mento nfo podem ser vistas como a “arma magica ma luta contra 0 tréfico de droga” (ef. Arzr, Gun- ther, ob. cit. [n. 24], p. 6).

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