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A Inapetência
A Inapetência
Personagens:
SRA. PERROTTA
MARIDO
FUNCIONÁRIO
SARA
VIRGÍLIO
CIGANO
MAGALI
ROMITA
LEILA
CENA 1
Pausa.
Pausa.
Pausa
SRA. PERROTTA: Saí ontem à noite. É por isso que queria saber se já
tinha contado. Nunca pensou em adoção?
2
MARIDO: Pensei.
SRA. PERROTTA: Você quer falar disso? Além do mais, acho que sendo a
mãe tenho o direito de falar alguma coisa.
MARIDO: Não estou ligando pra o jeito de tê-lo. Pode até ser adotado.
Pausa.
Pausa.
SRA. PERROTTA: Isso já vai passar. Eu fiquei animada feito uma boba.
Mas, foi só por um momento. A ideia da adoção, a burocracia, tudo isso.
Veja bem, quando a gente faz uma adoção pode escolher o sexo do menino.
Podemos adotar uma menina, o que seria uma benção. Achei que
poderíamos falar disso.
MARIDO: Não é para tanto. Não seja exagerada. Todo casal é obrigado a
discutir certos assuntos. Isso é normal. Mesmo sendo doloroso, acho. Ao
final de contas, estamos falando da adoção de um filho, e não da guerra na
Bósnia. Certo?
3
MARIDO: Não. Falei que estava tudo bem. Inclusive, cheguei a admitir
várias vezes que tivesse pensado em adotar.
Pausa.
SRA. PERROTTA: É.
Pausa.
Pausa.
MARIDO: Podemos.
Pausa.
MARIDO: Eu também.
Pausa.
MARIDO: Mmm.
Pausa.
Pausa.
SRA. PERROTTA: Vou sair sim. Estou saindo. Muito bem. Fui.
CENA 2
FUNCIONÁRIO: É sim.
5
SRA. PERROTTA: Eu sabia que estava correta. Devolva pra mim, por
favor, não quero perde-la. (Guarda a fatura na sua bolsa.)
Pausa.
FUNCIONÁRIO: Então?
SRA. PERROTTA: Meu nome não tem importância. Neste caso prefiro o
anonimato.
SRA. PERROTA: Não complique as coisas, tá? Eu já sei quem são vocês,
então, você já deveria saber o que eu quero.
SRA. PERROTTA: Não falo mais nada. Se estivesse errada já teria sido
jogada na rua. Eu quero experimentar. Estou sabendo que estão aceitando
novos membros.
SRA. PERROTTA: Não, não falo mais nada. Tenho vergonha. Ficarei
esperando você falar o que devo fazer. Suponho que o lugar não é aqui, no
próprio escritório.
Pausa.
SARA: Olá.
Pausa.
SRA. PERROTTA: Não é nada fácil pra nenhum de nós três, falar disso. O
que me deixa um pouco aliviada. Cheguei bastante apavorada. Eu sou uma
mulher normal. Suponho que tão normal quanto vocês. Moro com meu
marido. Com minha família. Algumas vezes escapo de casa. Tenho minhas
amigas. Elas também são normais. Todas nós somos pudicas. Minhas
amigas também são casadas, mas às vezes traem os seus maridos. Nunca
fizemos sexo em grupo. O meu marido é um tanto quanto quadrado.
Desculpem, mas alguém tinha que começar a falar disso.
SRA. PERROTTA: É isso aí. A gente não pode falar: isso está certo, aquilo
está errado.
SRA. PERROTTA: É, tem dados que é melhor não... No caso de... Vocês
compreendem, não é? Se eu quiser, também posso pegar minha bolsa neste
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momento e sair por aquela porta do mesmo jeito que entrei. E a gente
nunca se conheceu. Eu mal sei o nome de vocês.
SRA. PERROTTA: Não fale meu nome, por favor. Não estrague tudo. Um
sobrenome é sempre um sobrenome. Se bem que alguns sobrenomes nem
são verdadeiros. São sobrenomes de casada, nomes de outros.
SARA: Sadomasoquismo?
Pausa.
SRA. PERROTTA: Eu preferia ter vindo com meu marido. Más ele não
topou. Provavelmente por vergonha. Ele fica envergonhado se eu estou
presente. Já faz um bom tempo que não temos relaciones normais. Mas,
alguém olhando de fora pode até achar que somos um casal muito feliz.
Hoje no almoço tivemos uma discussão horrível. Falamos de assuntos
dolorosos, de coisas muito antigas. Chegou a insinuar que eu estava
envelhecendo muito mais rápido do que ele. O que é verdade. Ele pratica
esportes, chego a acreditar que ele tem uma vida sexual muito ativa,
extraconjugal é claro. Eu, por minha vez, não faço nada. Só as reuniões
com minhas amigas.
SRA. PERROTTA: Que bom. Minha casa não é grande coisa, mas de
qualquer jeito, é o suficiente por enquanto.
Entra VIRGÍLIO.
CENA 3
CIGANO: Olá.
SRA. PERROTTA: Fale se vou ser feliz com minha filha Leila.
CIGANO: Sim, ela é lindíssima. Leila vai ser protestante. Abrirá uma
agencia de turismo. Vão ser muito felizes juntas.
CIGANO: Só pelo fato de ser sua filha, hoje ela balança feliz feita um
pêndulo acreditando que um único Deus a mantém unida aos seus pais. No
ginásio, numa terça feira 20, daqui a uns poucos anos, uma professora com
sobrenome espanhol falará sobre Martinho Lutero. Leila vai pesquisar
compulsivamente no seu livro de história. Encontrará dados soltos,
incompletos, um resumo estudantil sobre a reforma protestante. Um resumo
fraco. Porém, a febre começa nessa terça. Ela é arrastada por um impulso
por conhecê-lo tudo à procura de maiores informações. Estuda alemão com
uma bolsa de estudo arrumada por você e seu marido.
seu gosto musical, não ficam afetados em nada. Porém, abraça fortemente a
causa, encontrando a felicidade nisso.
SRA. PERROTTA: Já sabia que era mentira, mas o que eu não sabia era
que ia acabar percebendo tão rápido assim. Pode levar a Leila de presente.
CIGANO: A menininha?
CIGANO: É verdade?
SRA. PERROTA: É aquela, que está no balanço. Pode cria-la do seu jeito,
do jeito como os ciganos criam seus filhos. Eu não posso fazer tudo. Pegue
antes de ela perceber que estou indo embora e queira voltar comigo para
casa como um cachorrinho. Vai pegue ela. Só não mude o nome dela, por
favor. Ela se chama Leila. Se quiser, pode dar-lhe seu sobrenome. Teria
acontecido do mesmo jeito se ela casa-se, coitadinha. Mas, não deixe de
chama-la de Leila. A única coisa que ela tem é seu nome. Ela não é boba
não, ela já responde pelo seu nome quando é chamada. Adeus.
CENA 4
MAGALI: Perceberam que ela concorda toda vez que sabe que o assunto
não tem importância para ele? Desse jeito, o deixa permanentemente
irritado. Quando é importante para ele, ela discorda. Pior ainda, ela não
bate de frente. Ela diz: “sei lá, não sei”. Vira a cabeça ou olha para outro
lado. Finge que está pensando em outra coisa. Não fala nada. Ele fica na
mão dela. Ela está certa. Se ela deixar, ele faria a mesma coisa com ela.
MAGALI: É de lá embaixo.
MAGALI: Tem que desconsiderar o que ele fala. Você tem que encara-lo
do jeito que ele é.
MAGALI: Aquilo.
ROMITA: É.
Pausa.
Pausa.
SRA. PERROTTA: Estava numa praça, veio uma garota e pediu para que
eu desse uma olhada na sua filha que estava no balanço.
Pausa.
SRA. PERROTTA: Então, saí batendo a porta. Ele reclamava que eu não
sei criar meus filhos, que fico o dia todo em casa sem dar a mínima para
eles. Eu não quero invadir a vida deles, isso é diferente. Parece que somos
estranhos, não é? Na minha própria casa.
Pausa.
MAGALI: O cotoco.
ROMITA: Isso mesmo. Estava todo torto. Não era uma ausência sem
punição. Era desonesta, até. Tem outras perdas que são mais elegantes. Não
querem comer? Tem muitas coisas faltando, tem crianças com fome e tudo
mais, eu não estou negando isso. Mas, o que é feio mesmo é o cotoco.
Pausa.
MAGALI: Cada coisa que vocês pensam, hein? Eu fico toda atordoada.
ROMITA começa a rir, a SRA. PERROTTA ri, a seguir MAGALI ri. Depois
ficam em silêncio.
CENA 5
A SRA. PERROTTA está em casa. LEILA, uma garota de uns vinte anos,
está frente a ela.
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SRA. PERROTTA: Leila, pelo menos espera que chegue teu pai.
LEILA: Dá na mesma.
SRA. PERROTTA: Tive um dia de cão, não complica mais as coisas. Tudo
está prestes a ir por água abaixo.
LEILA: Comi.
Pausa.
SRA. PERROTTA: Escuta aqui, Leila. Eu vou sentar e ficar esperando teu
pai chegar.
LEILA: Faça do jeito que você quiser. Eu acabo de arrumar minhas coisas
e me mando.
SRA. PERROTTA: Tudo bem. Você está cansada de saber que eu nunca
me meti na tua vida. Nem na dos teus irmãos. Eu os eduquei do jeito que
deu. Quando você quis fazer a tatuagem, que foi o que eu falei? Não dei um
pio. É isso aí. Fez a tatuagem. Quanto tempo demorou em se arrepender?
LEILA: Você poderia ter salvado meu peito, o que acabei tendo que tirar.
SRA. PERROTTA: Você tem toda razão de reclamar, toda. Pode reclamar.
SRA. PERROTTA: Você é ruim. Foi você quem quis a tatuagem. Depois,
quis adiantar as matérias da faculdade, quis enfiar tudo de uma vez na sua
cabeça, não queria poupar-se de nada. E no final de contas, como se saiu?
SRA. PERROTTA: É lógico que não sabe. Porque fez o curso em dois
anos.
LEILA: E daí?
SRA. PERROTA: Mas, você é uma criança, porra. Uma criança meiga e
delicada.
SRA. PERROTTA: Sim, mas isso é lá. Na Bósnia. Aqui é diferente. Aqui
você tem o parque Lezama1. Tem a casa da tia Olga.
LEILA: Ok. (Pausa.) Tia Olga cheira mal. Suas festas cheiram mal.
Quando volta a luz, o MARIDO também está sentado ao lado delas. LEILA
está afundada no sofá. A SRA. PERROTTA tem aparência exaurida.
MARIDO: Peço que desculpem a minha falta de tato, mas não esperava
encontrar semelhante situação familiar. O que aconteceu comigo hoje foi
forte. Acredito que é bom vocês saberem. Fiz uma palestra sobre a remoção
de grãos e os riscos nas apólices de seguro que me deixou esgotado.
1
Parque Gregório Lezama, no sul do bairro de San Telmo em Buenos Aires.
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Pausa.
Pausa.
SRA. PERROTTA: Família padrão são duas pessoas com dois filhos. Um
homem e uma mulher. Um casal com dois filhos.
SRA. PERROTTA: Pedi para ela ficar, pelo menos, para falar contigo.
SRA. PERROTTA: Vai ficar aí olhando o mundo desabar sem fazer nada?
MARIDO: Liga.
MARIDO: Sim, eu falei que sim. Quantas vezes você quer que eu repita?
SRA. PERROTTA: Não escutei, está bom. Não, não é com você. É aqui, na
minha casa. São dois fainâs, sim. Para a família Klein, Klein com “E”. Dá
na mesma. Quanto vai demorar? Bom, que seja o mais rápido possível, por
favor. (Para o MARIDO.) Peço para eles cortarem? (O MARIDO faz um
claro gesto de infelicidade, parece querer falar, mas finalmente acaba
cruzando os braços, está aborrecido.) Ótimo, obrigado. (Desliga o
telefone. Pausa.) Tenho uma fome enorme. Olha que comi alguma coisa à
tarde na casa de Romita. Ela fez panquecas com doce de leite. Comimos
feito formigas. A Magali beijou a minha boca. Eu estava toda lambuzada
de doce de leite nos lábios, então ela beijou a minha boca.
Pausa.
LEILA: Não é hoje, é daqui a uma semana. Mas, eu queria deixar tudo
pronto.
SRA. PERROTTA: Pedi uma pizza. Por que você não fica, senta e a gente
come junto.
MARIDO: (Aborrecido.) Cala a boca, se tua mãe diz que dá, então dá.
Pausa.
SRA. PERROTTA: Ah, tava esquecendo, hoje fui pagar aquela bendita
fatura. Arme um barraco. Fiquei esperando por duas horas. Depois fui
atendida por uma Sara de tal. Você é obrigado a falar diretamente com ela.
Toca a campainha.
Ninguém se mexe.
LEILA: Não faço ideia, mamãe, não faço ideia. Agora chega!
compreende. Porque eu sou uma mãe. (A campainha toca por última vez.)
Tudo bem. Tenho uma fome enorme. (Pausa.) Quem vai abrir?
Black out.
Novembro de 1996