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Capitulo primeiro Génese; natureza e desenvolvimento da filosof a antiga I. Génese da filosofia entre os gregos * A filosofia foi criag3o do génio helénico: nao derivou aos gregos a partir de estimulos precisos tomados das civilizagdes orientais; do Oriente, porém, vie- ram alguns conhecimentos cientificos, astronémicos e matematico-geométricos, que o grego soube repensar e recriar em dimensao tedrica, enquanto os orientais os concebiam em sentido prevalente- mente pratico. Assim, se os egipcios desenvolveram e transmitiram a arte do cdlculo, os gregos, particularmente a partir dos Pitagdricos, Avocagao teorética do génio helénico 3513 elaboraram uma teoria sistematica do numero; e se os babilénios fizeram uso de ‘observagées astronémicas particulares para tracar as rotas para 0s navios, os gre- 0s as transformaram em teoria astronémica organica. whe > filosofia como criagéo do génio helénico A filosofia, como termo ou conceito, é considerada pela quase totalidade dos estu- diosos como criagao prépria do génio dos gregos. Efetivamente, enquanto todos 0s ou- tros componentes da civilizagao grega encon- tram correspondéncia junto aos demais po- vos do Oriente que alcangaram elevado nivel de civilizacao antes dos gregos (crencase cul- tos religiosos, manifestacdes artisticas de na- tureza diversa, conhecimentos e habilidades técnicas de varios tipos, instituigdes politi- cas, organizagées militares etc.), no que se refere a filosofia encontramo-nos, ao invé diante de um fendmeno tio novo que nao s6 nao encontra correspondéncia precisa junto a esses povos, mas tampouco nada tem de estreita e especificamente analogo. Dessa forma, a superioridade dos gre- gos em relac&o aos outros povos nesse pon- to especifico é de carater nado puramente quantitativo, mas qualitativo, pois 0 que cles criaram, instituindo a filosofia, constitui no- vidade absoluta. Quem nio levar isso em conta nao podera compreender por que, sob o impul- so dos gregos, a civilizacao ocidental tomou uma diregao completamente diferente da oriental, Em particular, nao poderé compreen- der por que motivo os orientais, quando qui- seram se beneficiar da ciéncia ocidental e de seus resultados, tiveram de adotar também algumas categorias da légica ocidental. Com feito, a cigncia nao é possivel em qualquer cultura. Ha idéias que tornam estrutural- mente impossivel 0 nascimento e o desen- volvimento de determinadas concepges, € até mesmo ideéias que impedem toda a cién- cia em seu conjunto, ao menos como hoje a conhecemos. Pois bem, por causa de suas categorias racionais, foi a filosofia que possibilitou 0 nascimento da ciéncia e, em certo sentido, a gerou. E reconhecer isso significa também reconhecer aos gregos o mérito de terem dado uma contribuigao verdadeiramente ex- cepcional a histéria da civilizacao. Primeira parte - As origens gregas do pensamento ocidental A impossibilidade de derivagao da filosofia do Oriente Naturalmente, sobretudo entre os orien- talistas, nao faltaram tentativas de situar no Oriente a origem da filosofia, especialmen- te com base na observagao de analogias ge- néricas constatdveis entre as concepgbes dos primeiros fildsofos gregos ¢ certas idéias proprias da sabedoria oriental. Todavia ne- nhuma dessas tentativas teve éxito, Ja a partir de fins do século dezenove, a critica rigoro- sa produziu uma série de provas verdadei- ramente esmagadoras contra a tese de que a filosofia dos gregos tivesse derivado do Oriente. a) Na época classica, nenhum dos fil sofos ou dos historiadores gregos acena mi- nimamente a pretensa origem oriental da filosofia. b) Esta historicamente demonstrado. que os povos orientais, com os quais os gre- g0s tiveram contato, possuiam de fato uma forma de “sabedoria” feita de convicgdes religiosas, mitos teolgicos ¢ “cosmogé- nicos”, mas nao uma cténcia filosofica ba- seada na razdo pura (no logos, como dizem 0s gregos). Ou seja, possuiam um tipo de sabedoria analoga a que os préprios gregos possufam antes de criar a filosofia. c) Em todo caso, nao temos conheci- mento da utilizagao, por parte dos gregos, de qualquer escrito oriental ou de tradugdes desses textos. Antes de Alexandre, nao re- sulta que tenham chegado Grécia doutri- nas dos hindus ou de outros povos da Asia, como também que, na época em que surgiu a filosofia na Grécia, houvesse gregos em condigdes de compreender 0 discurso de um sacerdote egipcio ou de traduzir livros egipcios. d) Admitindo que algumas idéias dos filésofos gregos possam ter antecedentes precisos na sabedoria oriental (mas isso ain- da precisa ser comprovado), podendo assim dela derivar, isso néo mudaria a substancia da questdo que estamos discutindo. Com efeito, a partir do momento em que nasceu na Grécia, a filosofia representou nova for- ma de expresso espiritual, de tal modo que, a0 acolher conteudos que eram fruto de O baixo-relevo, conservado em Atenas no Museu Arqueolégico Nacional, representa Hermes e Pa com as Ninfas. Capitulo primeiro - Ganese, natureza ¢ desenvolvimento da fllosefia antiga outras formas de vida espiritual, ela 0s trans- formava estruturalmente, dando-Lhes forma rigorosamente légica. Bag Os conhecimentos cienti egipcios e caldeus ea transformagao operada pelos gregos Osgregos, ao invés, adotaram dos orien- tais alguns conhecimentos cientificos. Com efeitoz a) dos egipcios derivaram alguns co- nhecimentos matematico-geométricos; b) dos babilénios, alguns conhecimen- tos de astronomia. Todavia, também em relagdo a esses conhecimentos precisamos fazer alguns ¢s- clarecimentos importantes, indispensaveis para compreender a mentalidade grega e a mentalidade ocidental que dela derivou. @) So que sabemos, a matematica egip- cia consistia de modo predominante no co- nhecimento de operagoes de célculo arit- mético com objetivos praticos, como, por exemplo, o modo de medir certa quantida- de de géneros alimenticios, ou entao de di- vidir determinado nimero de coisas entre um ntimero dado de pessoas. Assim, analo- gamente, a geometria também devia ter rater predominantemente pratico, respon- dendo, por exemplo, & necessidade de me- dir novamente os campos depois das inun: dagées periddicas do Nilo, ow a necessidade de projegao e construcao das pirdmides. E claro que, ao obterem tais conhecimentos matematico-geométricos, os egipcios de- senvolveram uma atividade da razio— ati- vidade, alias, bastante consideravel. Mas, reelaborados pelos gregos, tais conhecimen- tos se tornaram algo muito mais consisten- te, realizando verdadeiro salto qualitati- vo. Com efeito, sobretudo por intermédio de Pitagoras e dos Pitagéricos, os gregos transformaram aquelas nogdes em uma teoria geral e sistematica dos mimeros e das figuras geomeétricas, indo muito além dos objetivos predominantemente praticos a08 quais os egipcios parecem ter-se limi- tado. 'b) © mesmo vale para as nogdes astro- ndmicas. Os babilénios as elaboraram com objetivos predominantemente priticos, ou seja, para fazer hordscopos e previsoes. Mas 8 gregos as purificaram e cultivaram com fins predominantemente cognoscitivos, por causa do espirito “teorético” que visava a0 amor do conhecimento puro, 0 mesmo pirito que, como veremos, criou e nutriu a filosofia. No entanto, antes de definir em que consiste exatamente a filosofia e 0 espi- rito filosdfico dos gregos, devemos desen- volver ainda algumas observagies prelimi- nares essenciais. Uma Esfinge (Atenas, Museu da Cerdmica). Primeira parte - As origens g lo pensamento ocidental Il. As formas da vida grega su que prepararam o nascimento da filosofia * A filosofia surgiu na Grécia porque justamente na Grécia formou-se uma temperatura espiritual particular e um clima cultural e politico favoraveis. As fontes das quais derivou a filosofia helénica foram: 1) a poesia; 2) a reli- giao; 3) as condi¢6es sociopoliticas adequadas. 1) A poesia antecipou o gosto pela harmonia, pela pro- porco e pela justa medida (Homero, os Liricos) e um modo particular de fornecer explicacées remontando as causas, mes- mo que em nivel fantastico-poético (em particular com a Teogonia de Hesiodo). 2) A religiao grega se distinguiu em religiao publica (ins- pirada em Homero e Hesiodo) e em religiéo dos mistérios, em particular a 6rfica. A religido publica considera os deuses como forcas naturais ampliadas na dimensao do divino, ou como aspectos caracteristicos do homem sublimados. A religiéo orfica considera o homem de modo dualista: como alma imortal, concebida como deménio, que por uma culpa originaria foi condenada a viver em um corpo, entendido como tumba e priséo. Do Orfismo deriva a moral que pée limites precisos a algumas tendéncias irracionais do homem. O que agru- pa essas duas formas de religido é a auséncia de dogmas fixos e vinculantes em sentido absoluto, de textos sagrados revelados e de inérpretes e guardides desta revelaco (ou seja, sacerdotes preparados para essas tarefas precisas). Por tal mo- tivo, 0 pensamento filosofico gozou, desde o inicio, de ampla liberdade de ex- pressdo, com poucas excecées. 3) Também as condicdes socioecondmicas, conforme dissemos, favoreceram 0 nascimento da filosofia na Grécia, com suas caracteristicas peculiares. Com efeito, (0 gregos alcancaram certo bem-estar e notavel liberdade politica, a comecar das colénias do Oriente e do Ocidente. Além disso, desenvolveu-se forte senso de per- tenga @ Cidade, até o ponto de identificar o “individuo” com o “cidadao”, e de ligar estreitamente a ética com a politica. As premissas culturais e histéricas do nascimento da filosofia na Grécia 3513 3) Nao menos importantes (e hoje se insiste muito nesse ponto) so as condicdes socioeconémicas ¢ politicas, que freqiiente- mente condicionam o nascimento de deter- minadas idéias e que, de modo particular no mundo grego, ao ¢riar as primeiras for- thy Os poemas homéricos € 08 poetas gnémicos Os estudiosos estao de acordo ao afir- mar que, para poder compreender a filoso- fia de um povo e de uma civilizagao, é ne cessdrio fazer referéncia: 1) & arte; 2) a religiao; 3) 48 condigoes sociopoliticas do povo em questo. 1) Com efeito, a grande arte, de modo mitico e fantastico, ou seja, mediante a in- tuigdo e a imaginacao, tende a alcangar obje- tivos que também sio proprios da filosofia. 2) Analogamente, por meio da fé, a religido tende a alcancar certos objetivos que a filosofia procura atingir com os conceitos € com a razao, mas de liberdade institucionalizada e de de- mocracia, tornaram possivel precisamente 9 nascimento da filosofia, que se alimenta essencialmente da liberdade. Comecemos pelo primeiro ponto. Antes do nascimento da filosofia, os poetas tinham importancia extraordinaria na educagao e na formacao espiritual do homem grego, muito mais do que tiveram entre outros povos. O helenismo inicial bus- cou alimento espiritual de modo predomi- ante nos poemas homéricos, ou seja, na Miada e na Odisséia (que, conforme se sabe, Capitulo primeira - Génese, nature exérceram nos gregos influncia andloga a que a Biblia exerceu entre os hebreus, uma vez que nao havia textos sagrados na Gré- cia), em Hesiodo e nos poetas gnémicos dos séculos Vile Vi.a.C. Ora, os poemas homéricos apresentam algumas peculiaridades que os diferenciam de poemas que se encontram na origem da civilizagao de outros povos, pois ja contém algumas das caracteristicas do espirito gre~ g0 que resultarao essenciais para a criagio da filosofia 4a) Com efeito, Homero tem grande sen- so da harmonia, da proporcao, do limite ¢ da medida; b) nao se limita a narrar uma série de fatos, mas também pesquisa suas causas € ra- 26es (ainda que em nivel mitico-fantéstico)s ¢) procura de diversos modos apresen= tar a realidade em sua inteireza, ainda que de forma mitica (deuses e homens, céue ter- ra, guerra ¢ paz, bem e mal, alegria e dor, totalidade dos valores que regem a vida do homem), Para os gregos também foi muito im- portante Hesiodo com sua Teogonia, que relata o nascimento de todos os deuses. E, como muitos deuses coincidem com partes do universo ¢ com fendmenos do cosmo, a teogonia rorna-se também cosmogonia, ou seja, explicagdo mitico-poética ¢ fantastica da génese do universo e dos fendmenos c6s- micos, a partir do Caos originario, que foi © primeiro a se gerar. Esse poema abriu 0 caminho para a posterior cosmologia filo- séfica, que, ao invés de usar a fantasia, bus- cara com a razio 0 “principio primeiro” do qual tudo se gerou. O proprio Hesiodo, com seu outro poema As obras e os dias, mas sobretudo os poetas posteriores, imprimi- ram na mentalidade grega alguns principios que seriam de grande importancia para a constituigdo da ética filosofica e do pensa: mento filoséfico antigo em geral, A justica € exaltada como valor supremo em muitos poetas e se tornard até conceito ontoldgico (referente ao ser, isto é, fundamental), alm de moral e politico, em muitos fildsofos ¢ especialmente em Platao. Os poetas liricos fixaram de modo es tavel outro conceito: a nogao do limite, ou seja, a idéia de nem demasiadamente mui- to nem demasiadamente pouco, isto é 0 conceito da justa medida, que constitui a conotagdo mais peculiar do espirito grego eo centro do pensamento filosofico clas: sico. « desenvolvimento da filosofia antiga Busto utribuide a Homero (see. VIN A.C) que a tradicao julga como autor da Wiada la Odlisscia, camsidenadas a hase e-ent geral dla pensantento acidental Recordemos, finalmente, uma senten- ¢a, atribuida a um dos antigos sabios e gra- vada no frontispicio do templo de Delfos, consagradoa Apolo: “Conhece a ti mesmo. Essa sentenga, muito famosa entre os gre~ gos, tornar-se-ia inclusive nao apenas o mote do pensamento de Sécrates, mas também 0 principio basilar do saber filos6fico grego até os tiltimos Neoplaténicos. ade A religisio pil 2 os mistérios drficos BEBE As das formas da religida grega segundo componente ao qual é pre- ciso fazer referéncia para compreender a génese da filosofia grega, como ja dissemos, €a religido. Todavia, quando se fala de re- ligido grega, é necessério distinguir entre a Primeira parte - As o religiao priblica, que tem 0 seu modelo na representacéo dos deuses e do culto que nos foi dada por Homero, ¢ a religido dos mistérios. Ha intimeros elementos comuns entre essas duas formas de religiosidade (como, por exemplo, a concepcao de base politeista), mas também importantes dife- rengas que, em alguns pontos de destaque (como, por exemplo, na concepcao do ho- mem, do sentido de sua vida e de seu desti- no tiltimo), tornam-se até verdadeiras an- titeses. ‘Ambas as formas de religiao sao mui- to importantes para explicar 0 nascimento da filosofia, mas — a0 menos em alguns aspectos — sobretudo a segunda. Allguns tacos essenciais da veligido pablica Para Homero e para Hesiodo, que constituem 0 ponto de referencia das cren- cas proprias da religiao publica, pode-se di- zer que tudo é divino, pois tudo o que acon- tece 6 explicado em fungao de intervencdes dos deuses. Os fendmenos naturais sao pro- movidos por numes: raios e relampagos so arremessados por Zeus do alto do Olimpo, as ondas do mar séo provocadas pelo tr dente de Poseidon, o sol é levado pelo 4u- Euridice e Orfeu, séc. IV a.C. (Napoles, Museu Arqueologico Nacional) igens gregas do pensamento ocidental reo carro de Apolo, ¢ assim por diante. Mas também a vida social dos homens, a sorte das cidades, as guerras e a paz sio imagi- nadas como vinculadas aos deuses de modo nao acidental e, por vezes, até de modo es- sencial. Todavia, quem sao esses deuses? Como os estudiosos de hé muito reconheceram e evidenciaram, esses deuses sao forcas na- turais personificadas em formas humanas idealizadas, ou entao sao forcas e aspectos do homem sublimados e fixados em esplén- didas figuras antropomérficas. (Além dos exemplos ja apresentados, recordemos que Zeus é a personificacao da justica; Atena, da inteligéncia; Afrodite, do amor, e assim por diante.) Esses deuses so, pois, homens ampli- ficados e idealizados, e, portanto, diferen- tes do homem comum apenas por quanti- dade e nao por qualidade. E por isso que os estudiosos classificam a religiao publica dos gregos como uma forma de “naturalismo”, uma vez que ela pede a0 homem nao pro- priamente que ele mude sua natureza, ou seja, que se eleve acima de si mesmo; a0 contrario, pede que siga sua prépria natu- reza, Fazer em honra dos deuses 0 que est em conformidade com a propria natureza é tudo o que se pede ao homem. E, da mesma forma que a religiao publica grega foi “na- turalista”, também a primeira filosofia gre- ga foi “naturalista”. A referéncia a “natu- reza” continuou sendo uma constante do pensamento grego ao longo de todo o seu desenvolvimento histérico. © Orfismo © suas crengas e! Contudo, nem todos os gregos consi- deravam suficiente a religido publica e, por isso, em circulos restritos, desenvolveram- se os “mistérios”, com as proprias crengas especificas (embora inseridas no quadro ge- ral do politeismo) e com as préprias prati- cas. Entre 0s mistérios, porém, os que mais influiram na filosofia grega foram os misté rios drficos, e destes devemos dizer breve- mente algumas coisas. (© Orfismo e os Orficos derivam seu nome do poeta tracio Orfeu, seu suposto fundador, cujos tragos hist6ricos sao intei- ramente cobertos pela névoa do mito. O Orfismo € particularmente impor- tante porque, como 0s estudiosos modernos reconheceram, introduz na civilizagao gre- ga novo esquema de crencas e nova inter- pretacao da existéncia humana, Efetivamen- te, enquanto a concepgio grega tradicional, a partir de Homero, considerava 0 homem como mortal, pondo na morte o fim total de sua existéncia, o Orfismo proclama a imor- talidade da alma e concebe 0 homem con- forme o esquema dualista que contrapée 0 corpo 4 alma. O niicleo das creng resumido como segue: a) No homem hospeda-se um princi pio divino, um deménio (alma) que caiu em um corpo por causa de uma culpa ori- ginaria. b) Esse deménio nao apenas preexiste 0 corpo, mas também ndo morre com 0 corpo, pois est destinado a reencarnar-se em corpos sucessivos, a fim de expiar aque- la culpa originaria. ©) Com seus ritos e praticas, a “vida 6rfica” é a Gnica em grau de por fim ao ci- clo das reencarnagées e de, assim, libertar a alma do corpo. d) Para quem se purificou (os inicia~ dos nos mistérios drficos) ha um prémio no além (da mesma forma que ha punigdes para 0s nao iniciados).. Em algumas laminas érficas encontra- das nos sepulcros de seguidores dessa sei- ta, entre outras coisas, Iéem-se estas pala- vras, que resumem 0 niicleo central da doutrina: “Alegra-te, tu que sofreste a pai- xdo: antes, nao a havias sofrido. De ho- mem, nasceste Deus”; “Feliz ¢ bem-aven- turado, serés Deus ao invés de mortal”; “De homem nasceras Deus, pois derivas do di- vino”. Isso significa que o destino iltimo do homem € o de “voltar a estar junto aos deuses”. Com esse novo esquema de cren- ¢as, o homem via pela primeira ver a con- traposigdo em si de dois principios em con- traste ¢ luta: a alma (deménio) ¢ 0 corpo (como tumba ou lugar de expiagao da al- ma). Rompe-se assim a visio naturalista; homem compreende que algumas tendén- cias ligadas ao corpo devem ser reprimi: das, a0 passo que a purificagao do elemen- to divino em relagao ao elemento corpéreo torna-se 0 objetivo do viver. Uma coisa deve-se ter presente: sem 0 Orfismo nao se explicaria Pit4goras, nem Heraclito, nem Empédocles e, sobretudo, nao se explicaria uma parte essencial do pensamento de Platao e, depois, de toda a tradigdo que deriva de Platdo; ou seja, nao 6rficas pode ser Particular de esquerda da “Escola de Atenas” de Raffaello, representando um rito rfc. A base da coluna quer indicar que a revelacao brfica constitu’ a base sobre a qual se constr6i a filosofia. Pitdgoras, Heraclito, Empédocles, Plato £00 tardio Platonismo se inspiraram no Orfismo. se explicaria grande parte da filosofia anti- ga, como veremos melhor mais adiante. Falta de di seus guards na religido grega Uma iiltima observacao € necesséria. Os gregos nao tiveram livros sagrados ou considerados fruto de revelagao divina. Con- seqiientemente, nao tiveram uma dogmatica (isto é um niicleo doutrinal) fixa e imuta- vel. Como vimos, os poetas constituiram-se 0 veiculo de difusdo de suas crengas reli- giosas. Além disso (e esta € outra conseqiién- cia da falta de livros sagrados ¢ de uma dogmatica fixa), na Grécia também nao po- de subsistir uma casta sacerdotal guardia do dogma (os sacerdotes tiveram escassa rele- vancia e escassissimo poder, porque nao ti- vyeram a prerrogativa de conservar dogmas, 10 Primeira parte - As ovie ns grega nem a exclusividade de receber oferendas religiosas e oficiar sacrificios). Essa inexisténcia de dogmas e de guardides dos mesmos deixou ampla libe: dade para o pensamento filoséfico, que nao se daparou com obstaculos que teria encon- trado em paises orientais, onde a livre espe- culagdo enfrentaria resisténcia € restrigdes dificilmente superaveis. Por esse motivo, os estudiosos desta- cam com razao essa circunstancia favoravel a0 nascimento da filosofia que se verificou entre os gregos, a qual nao tem paralelos na antiguidade. wa As condicdes sociopolitico-econdmicas que favoreceram 2 surgimento da filosofia J4 no século pasado, mas sobretudo em nosso século, os estudiosos acentuaram igualmente a liberdade politica de que os gtegos se beneficiaram em relacao aos po- vos orientais. O homem oriental era obri- gado a uma cega obediéncia no s6 ao po- der religioso, mas também ao politico, enquanto 0 grego a este respeito gozou de uma situacao privilegiada, pois, pela primei- ra vez na historia, conseguiu construir ins- tituigdes politicas livres. ‘Nos séculos Vile Via.C., a Grécia sofreu uma transformagao socioeconémica conside- ravel. Deixou de ser pais predominantemen- te agricola, desenvolvendo de forma sempre crescente 6 artesanato e o comércio. Assim, tornou-se necessdrio fundar centros de dis- tribuigao comercial, que surgiram inicialmen- te nas col6nias jénicas, particularmente em Mileto, e depois também em outros lugares. As cidades tornaram-se florescentes centros comerciais, acarretando forte crescimento demografico. O novo segmento de come ciantes ¢ artesios alcancou pouco a pouco notavel forga econdmica e se opés a concen- tragio do poder politico, que estava nas maos da nobreza fundiaria. Coma luta que os gre- gos empreenderam para transformar as velhas do pensamento ocidental formas aristocraticas de governo em novas formas republicanas, nasceram as condigGes, ‘0 senso e 0 amor da liberdade. Ha, porém, um fato muito importante a destacar, confirmando de forma cabal tudo © que ja dissemos: a filosofia nasce primei- ro nas colénias e nao na mae-patria — precisamente, primeiro nas coldnias orien- tais da Asia Menor (em Mileto) e logo depois nas colénias ocidentais da Italia meridional — justamente porque as col6nias, com sua operosidade e comércio, aleangaram primei- ro a situagio de bem-estar e, por causa da distincia da mae-patria, puderam construir instituigdes livres antes mesmo que ela. Foram, portanto, as condigées so- ciopolitico-econdmicas mais favoraveis das colénias que, juntamente com os fatores apresentados anteriormente, permitiram 0 surgimento € o florescimento da filosofia, a qual, passando depois para a mae-patria, al- cangou seus cumes em Atenas, ou seja, na cidade em que floresceu a maior liberdade de que os gregos gozaram. Dessa forma, a capital da filosofia grega foi a capital da li- berdade grega. Resta ainda uma iltima observacio. Com a constituigéo e a consolidagao da Polis, isto é, da Cidade-Estado, o grego dei- xou de sentir qualquer antitese e qualquer vinculo a propria liberdade; ao contrario, descobriu-se essencialmente como cidadao. Para o grego, o homem passou a coincidir com 0 cidadao. Dessa forma, o Estado tor- nou-se o horizonte ético do homem grego assim permaneceu até a era helenistica. Os cidadaos sentiram os fins do Estado como seus prdprios fins, o bem do Estado como seu proprio bem, a grandeza do Estado como sua propria grandeza e a liberdade do Bsta- do como sua prépria liberdade. Sem levarmos isso em conta, nao po- deremos compreender grande parte da filo- sofia grega, particularmente a ética e toda a politica da era classica e, depois, também os complexos desdobramentos da era hele- nistica. Depois desses esclarecimentos prelim nares, estamos agora em condicdes de en- frentar a questio da definicio do conceito grego de filosofia. u Capitulo primeiro - Génese, natwrezo ¢ desenvalvimento da filosofia antiga III. Conceito e objetivo da filosofia antiga filosofia (= amor homem — é vista com: 7. a sabedoria) tem por objeto a totalidade das coisas (toda a realidade, o “todo”) e nisto confina com a religi r contatos com a ciéncia (com a qual por certo periodo se identifica); além. tem como escopo a pura “contemplacdo da verdade”, ou sole, 2 cophecimento da verdade enquanto tal, é nisto se dife- rencia das artes, que tém intuito prevalentemente pratico. ~ Acontemplacao da verdade - que é aspiracao naturaldo > 512 fundamento da mor: y; usa um método racional, Objeto e método da filosofia ¢ também da vida politica no seu mais alto sentido; e os fildsofos consideram-na o momento supre- mo da vida do gly As conctacdes essenciais da filosofia antiga an A losofies sabedoria” Conforme a tradigao, o criador do ter- mo “filo-sofia” foi Pitagoras, 0 que, embo- ra nao sendo historicamente seguro, é no entanto verossimil. O termo certamente foi cunhado por um espirito religioso, que pres- supunha ser possivel s6 aos deuses uma “sofia” (*“sabedoria”), ou seja, a posse cer ta e total do verdadeiro, enquanto reserva- va ao homem apenas uma tendéncia a sofia, uma continua aproximagao do verdadeiro, um amor ao saber nunca totalmente sac do — de onde, justamente, 0 nome “filo- sofia”, ou seja, “amor pela sabedoria” Todavia, 6 que entendiam os gregos por essa amada e buscada “sabedoria”? Desde seu nascimento, a filosofia apre- sentou trés conotagoes, referentes: a) ao seu conterido; b) ao seu método; ¢) a0 seu objetivo. BEB © contesido da filosofio No que se refere ao contetido, a filoso- fia quer explicar a totalidade das coisas, ou seja, toda a realidade, sem exclusao de par- tes ou momentos dela. A filosofia, portan to, se distingue das ciéncias particulares, que assim se chamam exatamente porque se li- ‘homem, fonte da verdadeira felicidade. mitam a explicar partes ou setores da reali- dade, grupos de coisas ou de fendmenos. E a pergunta daquele que foi e é considerado como 0 primeiro dos fildsofos — “Qual é 0 principio de todas as coisas?” — mostra a perfeita consciéncia desse ponto. A filoso- fia, portanto, propde-se como objeto a to- talidade da realidade e do ser. B, como vere- mos, alcanga-se a totalidade da realidade e do ser precisamente descobrindo a nature- za do primeiro “principio”, isto é, o primeiro “por que” das coisas. HEB © inétodo da filosofia No que se refere ao método, a filosofia procura ser “explicaco puramente racio- nal daquela totalidade” que tem por obje- to. O que vale em filosofia é 0 argumento da razo, a motivacio légica, o logos. Nao basta a filosofia constatar, determinar da- dos de fato ou reunir experiéncias: ela deve iralém do fato e além das experiéncias, para encontrar a causa ou as causas apenas com arazdo. FE justamente este o carater que con- fere “cientificidade” a filosofia. Pode-se di- zer que tal carter é comum também as ou- tras ciéncias, que, enquanto tais, nunca si0 mera constatacdo empirica, mas sio sem- pre pesquisa de causas e de razées. A dife~ renga, porém, est no fato de que, enquan- to as ciéncias particulares sao pesquisa racional de realidades e setores particula- res, a filosofia, conforme dissemos, € pes- quisa racional de toda a realidade (do prin- cipio ou dos principios de toda a realidade). 12 Primeira parte - As origens Com isso, fica esclarecida a diferenca entre filosofia, arte e religido. A grande arte € as grandes religiées também visam a cap- tar o sentido da fotalidade do real, mas clas 0 fazem, respectivamente, uma, com 0 mito ca fantasia, outra, com a crenca ¢ a fé, a0 passo que a filosofia procura a explicacao da totalidade do real precisamente em nivel de logos. O escopo da filosofia © escopo ou fim da filosofia esta no puro desejo de conhecer e contemplar a ver- dade. Em suma, a filosofia grega é desinte- ressado amor pela verdade. Conforme escreve Aristételes, os ho- mens, ao filosofar, “buscaram 0 conhecer a fim de saber e ndo para conseguir alguma utilidade prética”. Com efeito, a filosofia nasceu apenas depois que os homens resol- veram os problemas fundamentais da sub- sisténcia ¢ se libertaram das necessidades materiais mais urgentes. E Aristoteles conclui: “Portanto, ¢ evi dente que nés nao buscamos a filosofia por nenhuma vantagem a cla estranha. Ao con- trario, € evidente que, como consideramos homem livre aquele que é fim para si mes- mo, sem estar submetido a outros, da mes- ma forma, entre todas as outras ciéncias, s6 asta consideramos livre, pois s6 ela € fim a si mesma.” E fim a si mesma porque tem por obje- tivo a verdade, procurada, contemplada e desfrutada como tal. Compreendemos, portanto, a afirma- do de Aristételes: “Todas as outras cién- cias serao mais necessdrias do que esta, mas nenhuma sera superior.” Uma afirmacao que todo o helenismo tornou prépri HEB Conclusses sobre o conceito grego de filoso Impoe-se aqui uma reflexio. A “con- templacao”, peculiar a filosofia grega, nao € um ofium vazio. Embora nao se submeta a objetivos utilitaristas, ela possui relevan- cia moral e também politica de primeira ordem, Com efeito, é evidente que, a0 se contemplar o todo, mudam necessariamen- te todas as perspectivas usuais, muda a vi- sdo do significado da vida do homem, ¢ uma nova hierarquia de valores se impde. gregas do pensamento ocidental Em resumo, a verdade contemplada infunde enorme energia moral. E, como ve- remos, com base precisamente nessa ener- gia moral Plato quis construir seu Estado ideal. Todavia, 56 mais adiante poderemos desenvolver e esclarecer adequadamente es- ses conceitos. Entretanto, resultou evidente a abso- luta originalidade dessa criagio grega. Os povos orientais também tiveram uma “sa~ bedoria” que tentava interpretar o sentido de todas as coisas (0 sentido do todo), mas nao submetida a objetivos pragmaticos. Tal sabedoria, porém, estava permeada de re- presentagées fantasticas e miticas, 0 que a le- vava para a esfera da arte, da poesia ou da religiao. Ter tentado essa aproximagao com 0 todo fazendo uso apenas da razao (do logos) e do método racional, foi, podemos concluir, a grande descoberta da “filo-sofia” grega. Uma descoberta que, estruturalmen- tee de modo irreversivel, condicionou todo 0 Ocidente. tla 2 filosofia como necessidade primaria do espirito hamano Alguém podera perguntar: Por que 0 homem sentiu necessidade de filosofar? Os antigos respondiam que tal necessidade se enraiza estruturalmente na propria nature- za do homem. Escreve Aristételes: “Por na- tureza, todos os homens aspiram ao saber.” E ainda: “Exercitar a sabedoria e 0 conhe- cer sao por si mesmos desejaveis aos homens: com efeito, nao é possivel viver como ho- mens sem essas coisas.” E os homens tendem ao saber porque se sentem cheios de “estupor” ou de “ma- ravilhamento”. Diz Aristételes: “Os homens comecaram a filosofar, tanto agora como na origem, por causa do maravilhamento: no princfpio, ficavam maravilhados diante das dificuldades mais simples; em seguida, pro gredindo pouco a pouco, chegaram a se co- locar problemas sempre maiores, como os relativos aos fendmenos da lua, do sol e dos astros e, depois, os problemas relativos & origem de todo 0 universo.” Assim, a raiz da filosofia é precisamente esse “maravilhar-se”, surgido no homem que se defronta com 6 Todo (a totalidade), 13 Capitulo primeiro - Génese, notureza e desenvolvimento do filosefia antiga Este mosaico do inicio do séc. IV representa Orfeu que atrai os animais com 0 canto (Palermo, Museu Arqueoligico Nacional) perguntando-se qual a origem ¢ 0 fundamen- to do mesmo, bem como o lugar que ele proprio ocupa nesse universo. Sendo assim, a filosofia € indispensavel e irrenunciavel, justamente porque nao se pode extinguir 0 destumbramento diante do ser nem se pode renunciar a necessidade de satisfazé-lo. Por que existe tudo isso? De onde sur- giu? Qual é sua razao de ser? Esses sao pro- blemas que equivalem ao seguinte: Por que existe o ser e néo o nada? E um momento particular desse problema geral é 0 seguinte: Por que existe o homem? Por que eu existo? Trata-se, evidentemente, de problemas que o homem nao pode deixar de se propor ou, pelo menos, sio problemas que, a me- dida que sao rejeitados, diminuem aquele que 08 rejeita. E sao problemas que man- tem seu sentido preciso mesmo depois do triunfo das ciéncias particulares modernas, porque nenhuma delas consegue resolvé-los, uma vez que as ciéncias respondem apenas a perguntas sobre a parte e nao a perguntas sobre o sentido do “todo”. Por essas raz6es, portanto, podemos repetir, com Aristételes, que nao apenas na origem, mas também agora e sempre, a an- tiga pergunta sobre o todo tem sentido — tera sentido enquanto o homem se maravi- Ihar diante do ser das coisas e diante do seu proprio ser. As fases e os periodos da histéria da filosofia antiga A filosofia antiga grega e greco-roma- na tem uma histéria mais que milenar. Par- te do século VI a.C. e chega até o ano de $29 d.C., ano em que o imperador Jus- tiniano mandou fechar as escolas pagas e dispersar seus seguidores. Nesse espaco de tempo, podemos distinguir os seguintes pe- riodos: 1) O periodo naturalista, caracteriza- do pelo problema da physis (isto é, da natu- reza) e do cosmo, e que, entre os séculos VI e V a.C., viu sucederem-se os Jénios, os Pitagéricos, os Eleatas, os Pluralistas ¢ os Fisicos ecleticos. 2) O periodo chamado humanista, que, em parte, coincide com a tiltima fase da filo- sofia naturalista e com sua dissolugao, tendo como protagonistas os Sofistas e, sobretudo, Sécrates, que pela primeira vez procura de- terminar a essencia do homem. 3) O momento das grandes sinteses de Platdo ¢ Aristoteles, que coincide com 0 sé- culo IV a.C., caracterizando-se sobretudo pela descoberta do supra-sensivel e pela ex- plicitagao e formulacao organica de varios problemas da filosofia. 4) Segue-se o periodo caracterizado pelas Escolas Helenisticas, que vai da con- quista de Alexandre Magno até o fim da era pagiie que, além do florescimento do Cini mo, vé surgirem também os grandes movi- mentos do Epicurismo, do Estoicismo, do Ceticismo e a posterior difusio do Ecletismo. 5) O periodo religioso do pensamento véteropagio desenvolve-se quase inteira~ mente em época crista, caracterizando-se sobretudo por um grandioso rentascimento do Platonismo, que culminara com 0 movi- mento neoplaténico. O reflorescimento das outras escolas sera condicionado de varios modos pelo mesmo Platonismo. 14 Primeira parte - As origens gregas do pensamento ocidental 6) Nesse periodo nasce e se desenvolve © pensamento cristao, que tenta formular racionalmente o dogma da nova religiao e defini-lo & luz da raz4o, com categorias de- rivadas dos filosofos gregos. ‘A primeira tentativa de sintese entre o Antigo Testamento e 0 pensamento grego serd realizada por Filon, 0 Judeu, em Ale- xandria, mas sem prosseguimento. A vité- ria dos cristdos impord sobretudo um re- pensamento da mensagem evangélica 4 luz das categorias da razao. Este momento do pensamento antigo constitui, porém, um coroamento do pen- samento grego, mas assinala, antes, a entra- da em crise e a superagao de sua maneira de pensar e, assim, prepara a civilizaco me- dieval e as bases do que sera 0 pensamento cristo “europeu”. Esse momento do pensamento, portan- to, mesmo considerando os lagos que tem coma tiltima fase do pensamento pagao que se desenvolve contemporaneamente, deve ser estudado a parte, precisamente como pensamento véterocristao, e deve ser consi- derado atentamente, nas novas instancias que instaura, como premissa ¢ fundamento do pensamento e da filosofia medievais. A acrépole de Atenas, com o Partenon na parte mais alta, Este complexo arquiteténico constitui o shmbolo ¢ 0 santuirio de Atenas, ¢ como tal assume significado emblematice 1we 0s gregos consideraram como capital A FUNDACAO DO PENSAMENTO FILOSOFICO ®@ Os Naturalistas pré-socraticos “As coisas visiveis sao uma claridade sobre o invisivel.” Demécrito e Anaxagoras Capitulo segundo Os “Naturalistas” ou filésofos da “physis” ay Capitulo segundo Os “Naturalistas” ou filésofos da “physis” I. Os primeiros Jénios ea questao do “principio” de todas as coisas * Tales de Mileto (fim do Vil - primeira metade do séc. VI a.C.) é 0 criador, do ponto de vista conceitual (mesmo que nao ainda do ponto de vista lexical), do problema concernente ao “principio” (arché), ou seja, a origem de todas as coisas. © “principio” é, propriamente, aquilo de que derivam e em que se resolvem todas as coisas, e aquilo que permanece imutavel © principio de mesmo nas varias formas que pouco a pouco assume. Tales iden- todas as coisas tificou o principio com a agua, pois constatou que o elemento ¢249ua liquido esta presente em todo lugar em que ha vida, eondenao 5! existe Agua ndo existe vida. Esta realidade origindria foi denominada pelos primeiros filésofos de physis, ouseja, “natureza”, no sentido antigo e originério do termo, que indica a realida- de no seu fundamento. “Fisicos”, por conseguinte, foram chamados todos os pri- meiros filésofos que desenvolveram esta problematica iniciada por Tales. * Anaximandro de Mileto (fim do Vil - segunda metade do séc. VI) foi prova- velmente discipulo de Tales e continuou a pesquisa sobre 0 principio. Criticou a solugao do problema proposta pelo mestre, salientando sua incompletude pela falta de explicacao das razées edo modo pelo 9 principio qual do principio derivam as coisas. é indefinido- Se o principio deve poder tornar-se todas as coisas que s40__infinito diversas tanto por qualidade como por quantidade, deve em si (= 4peiron) ser privado de determinacées qualitativas e quantitativas, deve 52 ser infinito espacialmente e indefinido qualitativamente: con- ceitos, estes, que em grego se expressam com 0 tinico termo, dpeiron. O principio ~ que pela primeira vez Anaximandro designa com 0 termo técnico de arché - é, portanto, o dpeiron. Dele as coisas derivam por uma espécie de injustica origina- ria (0 nascimento das coisas est ligado com o nascimento dos "contrérios”, que tendem a subjugar um ao outro) e a ele retornam por uma espécie de expiacao (a morte leva a dissoluco e, portanto, a resoluco dos contrarios um no outro). * Anaximenes de Mileto (séc. VI a.C), discipulo de Anaximandro, continua a discusséo sobre o principio, mas critica a solucao proposta pelo mestre: 0 arché é 0 ar infinito, difuso por toda parte, em perene movimento. O ar sustenta e governa 0 universo, e gera todas as coisas, transfor- 0 principio mando-se mediante a condensacao em agua e terra, eem fogo ¢ ar infinito pela rarefacao. 2§3 18 Segunda parte ~ A fun A grande porta sul dad floresceram Tales, Anaximandro e Anaximenes, ales de Mileto O pensador ao qual a tradigao atribui © comeco da filosofia grega é Tales, que vi- em Mileto, na Jénia, provavelmente nas diltimas décadas do séc. VII e na primeira metade do séc. VI a.C, Além de filésofo, foi Cientista e politico sensato. Nao se tem conhe- cimento de que tenha escrito livros. $6 co- nhecemos seu pensamento através da tradi- ao oral indireta. Tales foi o iniciador da filosofia da physis, pois foi o primeiro a afirmar a exi téncia de um principio originario tinico, cau- sa de todas as coisas que existem, susten- tando que tal prinefpio é a agua. Essa proposicao € importantissima, como logo veremos, podendo com boa dose de razao ser qualificada como “a primeira proposta filos6fica daquilo que se costuma chamar de civilizagao ocidental”, A com- preensao exata dessa proposicao fara com- preender a grande revolucao operada por Tales, que levou a criagao da filosofia. lacdio de pensamento filosdfice ara de Mileto. Na cidade da Jénia, entre o fim do séc. VII eo fim do sée. VIa.C., “Principio” (arché) néio é termo de Tales (talvez tenha sido introduzido por seu disci pulo Anaximandro), mas é certamente o ter- mo que indica, melhor que qualquer outro, © conceito daquele quid do qual todas a coisas derivam, Como nota Aristételes em sua exposigo sobre o pensamento de Tales e dos primeiros fisicos, 0 “principio” é “aqui- Jo do qual derivam originariamente e no qual se resolver por tiltimo todos os seres”, “uma realidade que permanece idéntica no trans- mutar-se de suas alteragdes”, ou seja, uma realidade “que continua a existir de maneira imutada, mesmo através do processo gera~ dor de todas as coisas”. “principio” é, portanto: a) a fonte e a origem de todas as coisas; b) a foz ou termo iiltimo de todas as coisas; 0) o sustentaculo permanente de todas as coisas (a “substancia”, podemos dizer, usando um termo posterior). Em suma, 0 “principio” pode ser defini do como aquilo do qual provém, aquilo no qual se concluem e aquilo pelo qual exis- tem e subsistem todas as coisas. Capitulo segundo - O: Os primeiros filésofos (talvez 0 pré- prio Tales) denominaram esse principio com o termo physis, que indica natureza, nao no sentido moderno do termo, mas no sentido originario de realidade primeira e funda- mental. Assim, os filosofos que, a partir de Ta- les até o fim do séc. V a.C., indagaram a respeito da physis foram denominados “Fi- sicos” ou “Naturalistas”. Portanto, somen- te recuperando a acepco arcaica do termo ¢ captando adequadamente as peculiarida- des que a diferenciam da acepcao moderna sera possivel entender o horizonte espiritual desses primeiros pensadores. Todavia, resta ainda esclarecer o senti- do da identificago do “principio” com a “Agua” ¢ as suas implicagoes. ‘A tradigao indireta diz que Tales de- duziu sua conviceao “da constatacao de que a nutrigdo de todas as coisas é timida”, que as sementes e os germes de todas as coisas “tem natureza timida”, e de que, portanto, a secura total é a morte. Assim como a vida esta ligada a umidade e esta pressupde a gua, entao a égua é a fonte tltima da vida e de todas as coisas. Tudo vem da agua, tudo sustenta sua vida com Agua e tudo termina na agua. Tales, portanto, fundamenta suas assergdes sobre o raciocinio puro, sobre o Jogos; apresenta uma forma de conhecimen- to motivado com argumentagdes racionais precisas. De resto, a que nivel de racionalidade Tales ja se elevara, tanto em geral como em particular, pode ser demonstrado pelo fato de que ele havia pesquisado os fendmenos do céu a ponto de predizer (para estupefa- ao de seus concidadaos) um eclipse (talvez ode 585 a.C.). Ao seu nome esta ligado tam- bém um célebre teorema de geometria. Mas nao se deve acreditar que a dgua de Tales seja 0 elemento fisico-quimico que hoje bebemos. A agua de Tales deve ser pen- sada de modo totalizante, ou seja, como a physis liquida originaria da qual tudo deri- va'e da qual a 4gua que bebemos é apenas uma de suas tantas manifestagdes. Tales € um “naturalista” no sentido antigo do ter- mo e ndo um “materialista” no sentido moderno e contemporaneo. Com efeito, sua “Agua” coincidia com o divino. Desse modo, introduz-se nova concepgao de Deus: trata~ se de uma concepgdo na qual predomina a razao, ¢ destina-se, enquanto tal, a eliminar logo todos os deuses do politeismo fantasti- co-pottico dos gregos. 19 loturalistas on fildsofos da “physis” Ao afirmar posteriormente que “tudo esta cheio de deuses”, Tales queria dizer que tudo € permeado pelo principio originério. E como o principio originario é vida, tudo é vivo € tudo tem alma (panpsiquismo). O exemplo do ima que atrai o ferro era apre- sentado por ele como prova da animagao universal das coisas (a forga do ima é a ma- nifestagao de sua alma, ou seja, precisamen- te, de sua vida). Com Tales, 0 logos humano rumou com seguranga pelo caminho da conquista da realidade em seu todo (a questao do prin cipio de todas as coisas) e em algumas de suas partes (as que constituem 0 objeto das “ciéncias particulares”, como hoje as cha- mamos). (2547 [2) hg Araximandro de Mileto Provavelmente discipulo de Tales, Ana- ximandro nasceu por volta de fins do séc. VII a.C. e morreu no inicio da segunda me- tade do séc. VI. Elaborou um tratado Sobre @ natureza, do qual chegou um fragmento até nds. Trata-se do primeiro tratado filo- s6fico do Ocidente ¢ do primeiro escrito sgrego em prosa. A nova forma de composi- Gao literdria tornava-se necessaria pelo fato de que o logos devia estar livre do vinculo da métrica e do verso para corresponder plenamente as suas proprias instancias. Ana- ximandro foi ainda mais ativo que Tales na vida politica, Temos, de fato, conhecimento de que chegou até a “comandar a colénia que migrou de Mileto para Apol6nia”. Com Anaximandro, a problematica do principio se aprofundou. Ele sustenta que a gua ja é algo derivado e que, ao contra rio, 0 “principio” (arché) é 0 infinito, ou se~ ja, uma natureza (physis) in-finita e in-de- finida, da qual provém todas as coisas que existem. O termo usado por Anaximandro é 4é-peiron, que significa aquilo que est pri- vado de limites, tanto externos (ou seja, aquilo que é espacialmente ¢, portanto, quantitativamente infinito), como internos (ou seja, aquilo que é qualitativamente in- determinado). Precisamente por ser quan- titativa e qualitativamente i-limitado, o prin- cipio-dpeiron pode dar origem a todas as coisas, de-limitando-se de varios modos. Esse principio abarca e circunda, governa e sus- 20 tenta tudo, justamente porque, como de-li mitacdo e de-terminagao dele, todas as coi- sas geram-se a partir dele, nele con-sistem € nele existem. Em Anaximandro, como em Tales, portanto, Deus torna-se 0 Principio, ao pas- 30 que os deuses tornam-se os mundos, os universos que, como veremos, s40 numero- sos; todavia, enquanto 0 Principio divino nao nasce nem perece, os universos divi- nos, ao contrario, nascem e perecem ciclica mente. Tales nao se pusera a pergunta sobre 0 como € 0 por que do principio derivam to- das as coisas, ¢ por que todas as coisas se corrompem, Anaximandro, porém, poe a questo, e responde que a causa da origem das coisas é uma espécie de “injustiga”, en- quanto a causa da corrupgio ¢ da morte é uma espécie de “expiagao” de tal injustica. Provavelmente Anaximandro pensava no fato de que o mundo é constituido por uma série de contrarios, que tendem a predomti~ nar urn sobre o outro (calor e frio, seco e imi- Relevo com retrato de Anaximandro (nascido pelo fim do séc. VII ¢ falecido nos inicios da segunda metade do sé. Vac), © mais significative dos trés filsofos da Escola de Mileto. Fneontra-se em Roma, no Museu Nacional Romano. Segunda parte - A fundacéo do pensamento flo do etc.). A injustic¢a consistiria precisamen- te nessa predominancia. Nessa concepgao (como muitos estu- diosos notaram), parece inegavel ter havido uma infiltracao de concepgoes religiosas de sabor 6rfico. Como vimos, a idéia de uma culpa originaria ¢ de sua expiacio e, por- tanto, a idéia da justiga que equilibra, é¢en- tral no Orfismo. Assim como o princ{pio é infinito, tam- bém os mundos sao infinitos, conforme ja salientamos, tanto no sentido de que este nosso mundo nada mais é que um dos inu- meraveis mundos em tudo semelhantes aos que 0s precederam e aos que os seguirao (pois cada mundo tem nascimento, vida ¢ morte) como também no sentido de que es- te nosso mundo coexiste ao mesmo tempo com uma série infinita de outros mundos (e todos eles nascem e morrem de modo ané- logo). Eis como se explica a génese do cos- mo. De um movimento, que é eterno, gera- ram-se os primeiros dois contrérios funda- Capitulo segundo - Os "Noturalistas” ou fildsofos da “physic! mentais: o fro ¢ o calor. Originalmente de na- tureza liquida, o frio teria sido em parte trans- formado pelo fogo-calor, que formava a ¢s- fera periférica, no ar. A esfera do fogo ter-se-ia dividido em trés, originando a esfera do sol, a esfera da lua e a esfera dos astros. O ele- mento liquido ter-se-ia recolhido nas cavi- dades da terra, constituindo os mares. Imaginada como tendo forma cilindri- ca, a terra “permanece suspensa sem ser sustentada por nada, mas continua firme por causa da igual distancia de todas as partes”, ou seja, por uma espécie de equilibrio de forcas. Sob a aco do sol, devem ter nasci- do do elemento liquido os primeiros ani- mais, de estrutura elementar, dos quais, pouco a pouco, ter-se-iam desenvolvido os animais mais complexos. leitor superficial se enganaria caso sorrisse disso, considerando pueril tal visao, pois, como os estudiosos ja salientaram ha muito tempo, ela ¢ fortemente antecessora. Basta pensar, por exemplo, na arguta re~ presentagao da terra que nao necessita de sustentagao material (j4 para Tales ela “flu- tuava”, ou seja, apoiava-se na agua), susten- tando-se por um equilibrio de forcas. Além disso, note-se também a “modernidade” da idéia de que a origem da vida tenha ocor- rido com animais aquaticos e, em conse- qiiéncia, o brilhantismo da idéia de evolu- cio das espécies vivas (embora concebida de modo extremamente primitivo). Isso é su- ficiente para mostrar todo o caminho jé per- corrido pelo logos avangado para alem do mito. GESTS Bg Aroximenes de Mileto Também em Mileto floresceu Ana- ximenes, discipulo de Anaximandro, no séc. VI a.C., de cujo escrito Sobre a natu- reza, em sdbria prosa jénica, chegaram-nos trés fragmentos, além de testemunhos indi- retos. ‘Anaximenes pensa que o “principio” deva ser infinito, sim, mas que deva ser pen- sado como ar infinito, substancia aérea ili- mitada. Escreve ele: “Exatamente como a nossa alma (ou seja, o principio que da a vida), que é ar, se sustenta e se governa, as- sim também 0 sopro € o ar abarcam o cosmo inteiro.” E 0 motivo pelo qual Anaximenes concebe o ar como “o divino” é agora claro com base no que jé dissemos sobre os dois fil6sofos anteriores de Mileto. Resta a esclarecer, no entanto, a ra7i0 pela qual Anaximenes escolheu o ar como “principio”. E evidente que ele sentia neces sidade de introduzir uma realidade origind- ria que dela permitisse deduzir todas as coi- sas, de modo mais légico e mais racional do que fizera Anaximandro. Com efeito, por sua natureza de grande mobilidade, o ar se pres- ta muito bem (bem mais do que o infinito de Anaximandro) para ser concebido como em perene movimento, Além disso, o ar se presta melhor do que qualquer outro elemen- to as variagoes e transformacées necessdrias para fazer nascer as diversas coisas. Ao se condensar, resfria-se e se torna Agua e, de- pois, terras ao se distender (ou seja, rarefa- zendo-se) e dilatar, esquenta ¢ torna-se fogo. A variagao de tensio da realidade o gindria da, portanto, origem a todas as coi- sas. Em certo sentido, Anaximenes repre- senta a expresso mais rigorosa e mais légica do pensamento da Escola de Mileto, por- que, com 0 processo de “condensagio” € “rarefagao”, ele introduz a causa dinamica da qual Tales ainda no havia falado e que Anaximandro determinara apenas inspiran- do-se em concepgées érficas. Anaximenes fornece, portanto, uma causa em perfeita harmonia com o “principio”. Compreendemos, portanto, por que os pensadores posteriores se refiram a Anaxi- menes como a expresso paradigmiatica e © modelo do pensamento jénico. ESTAS 16 22 Segunda parte - - functe 50 do pensamente filossfice e Efeso IL. Herdclito * Herdclito de Efeso (sécs. VI-V a.C.) herda dos milésios 0 conceito de dinamismo universal, mas 0 aprofunda de modo conspicuo. “Tudo escorre” & ~a@ proposicao emblematica de Heraclito, e indica 6 fato de "Tudo escorre”, que o devir é uma caracteristica estrutural de toda a reali- o mundo dade. x é dirigido Nao se trata de devir cadtico, mas de passagem dinamica pela luta ordenada de um contrério ao outro: 6 uma guerra de opostos, dos contrarios que no conjunto se compée em harmonia de contrarios. O mun- openers. do &, portanto, guerra nos particulares, mas paz e harmonia O principio No conjunto, como a harmonia do arco e da lira que nasce da 6 fogollogos composigao equilibrada de forcas e tensdes opostas. ETS 0 principio para Heraclito se identifica com 0 fogo, que é perfeita expresso do movimento perene, ¢ justamente na dinamica da guerra dos contrarios (0 fogo vive da morte do combustivel, trans- formando-o continuamente em cinzas, mas se manifesta harmonicamente como chama de modo constante). O fogo esta estreitamente ligado com o conceito de racionalidade (= fogos), razao de ser da harmonia do cosmo. ~ Heraclito foi levado a salientar a alma em relacao ao corpo, e também a assu- mir algumas posicdes orficas. aclito lito viveu entre os séculos Vie V a.C., em Ffeso. Tinha carater desencontrado € temperamento esquivo ¢ desdenhoso. Nao quis de modo nenhum participar da vida iiblica: “Solicitado pelos concidadaos a ela- borar leis para a cidade — escreve uma fon- te antiga — recusou-se, porque ela ja caira em poder da ma constituigao.” Escreveu um livro intitulado Sobre a natureza, do qual chegaram até nés numerosos fragmentos, talvez constituido de uma série de aforismos eintencionalmente elaborado de modo obs- curo ¢ com estilo que recorda as sentengas oraculares, “para que dele se aproximassem apenas aqueles que conseguiam” ¢ 0 vulgo permanecesse longe Fez isso para evitar 0 desprezo ¢ a ca- goada daqueles que, lendo coisas aparente- mente faceis, acreditam estar entendendo aquilo que, ao contrario, nao entendem, Por esse motivo foi denominado “Heréclito, 0 obscuro”. Rosto atribuido a Heréclito ( ent uma herma de Ffeso. VV aC), Capitulo segundo - Os") why A doutrina do “tudo e Os fildsofos de Mileto haviam notado © dinamismo universal das coisas, que nas- cem, crescem e perecem, bem como do mun- do, ou melhor, dos mundos submetidos a0 mesmo processo. Além disso, haviam pensa- do 0 dinamismo como caracteristica essencial do proprio “principio” que gera, sustenta e reabsorve todas as coisas. Entretanto, nao haviam levado adequadamente tal aspecto da realidade ao nivel tematico. E é precisamen- te isso que Herdclito fez. “Tudo se move”, “tudo escorre” (panta rhei), nada permane ce imével e fixo, tudo muda e se transmuta, sem excecio, Em dois de seus mais famosos fragmentos podemos ler: “Nao se pode des- cer duas vezes no mesmo rio e nao se pode tocar duas vezes uma substancia mortal no mesmo estado, pois, por causa da impetuo- sidade ¢ da velocidade da mudanga, ela se dispersa e se retine, vem e vai. (...) Nos des- cemos e no descemos pelo mesmo rio, nbs préprios somos e nao somos.” E claro o sentido desses fragmentos: 0 rio € “aparentemente” sempre o mesmo, mas, “na realidade”, é constituido por aguas sem- pte novase diferentes, que sobrevam e se dis- persam. Por isso, nao se pode descer dias vezes na mesma agua do rio, precisamente porque ao se descer pela segunda vez ja se trata de outra agua que sobreveio. E tam- bém porque nés préprios mudamos: no mo- mento em que completamos uma imersao no rio, j4 nos tornamos diferentes de como éra- mos quando nos movemos para nele imergir. Dessa forma, Herdclito pode muito bem di- zer que nés entramos ¢ nao entramos no mesmo rio. E pode dizer também que nés somos e nao somos, porque, para ser aquilo que somos em determinado momento, deve- mos ndo-ser-mais aquilo que éramos no mo- mento anterior, do mesmo modo que, para continuarmos a ser, devemos continuamente nao-ser-mais aquilo que somos em cada mo- mento. E isso, segundo Hericlito, vale para toda realidade, sem excegio. (224718) By A doutrina da “harmonia dos contrérios” Todavia, para Heréclito, isso apenas a constatagéo de base, o ponto de partida para outras inferéncias, ainda mais pro- 23 aturalistas” ou filisofos da “physis” - fundas e argutas. O devir ao qual tudo esta destinado caracteriza-se por continua pa sagem de um contrario ao outro: as coisas frias se aquecem, as quentes se resfriam, as timidas secam, as secas tornam-se imidas, o jovem envelhece, o vivo morre, mas daqui- lo que esta morto renasce outra vida jovem, e assim por diante. Ha, portanto, guerra per- pétua entre os contrarios que se aproximam. Mas, como toda coisa s6 tem realidade pre- cisamente no devir, a guerra (entre 0s pos tos) se revela essencial: “A guerra é mae de todas as coisas e de todas as coisas é rainha.” Trata-se, porém, de uma guerra que, ao mesmo tempo, é paz, e de um contraste que 6 ao mesmo tempo, harmonia, O perene escorrer de todas as coisas ¢ o devi univer- sal revelam-se como harmonia de contra- rios, ou seja, como perene pacificacio de beligerantes, permanente conciliagao de con- tendores (e vice-versa): “Aquilo que é opo- sigdo se concilia, das coisas diferentes nasce a mais bela harmonia e tudo se gera por meio de contrastes”; “harmonia dos contrérios, como a harmonia do arco ¢ da lira.” So- mente em contenda entre si é que os contra rios dao sentido especifico um ao outro: “A doenga torna doce a satide, a fome torna do- cea saciedade e o cansago torna doce o re~ pouso”; “nio se conheceria sequer o nome da justica, se nao existisse a ofensa.” ssa “harmonia” e “unidade dos opos. tos” é 0 “principio” e, portanto, Deus ou 0 divino: “Deus é dia-noite, é inverno-verao, & guerra-paz, é saciedade-fome.” (52519 | why Tdentificagao do “principio” com o fogo e com a inteligéncia Heréclito indicou 0 fogo como “prin- cipio” fundamental, e considerou todas as coisas como transformagoes do fogo. Tam- bém é evidente por que Heraclito atribuiu ao fogo a “natureza” de todas as coisas: 0 fogo expressa de modo exemplar as carac: teristicas de mudanca continua, do con- traste e da harmonia. Com efeito, 0 fogo esta continuamente em movimento, é vida que vive da morte do combustivel, é conti- nua transformagao deste em cinzas, fuma- a e vapores, é perene “necessidade e sacie~ dade”, como diz. Heraclito a respeito de seu Deus. 24 Esse fogo é como “raio que governa todas as coisas”. E aquilo que governa todas as coisas é “inteligéncia”, ¢ “razdo”, & “lo- gos”, é “lei racional”. Assim, a idéia de inte- Tigéncia, que nos filsofos de Mileto estava apenas implicita, associa-se expressamente a0 “principio” de Heraclito. Um fragmento par- ticularmente significativo sela a nova posi- do de Heraclito: “O Uno, o tinico sabio, quer endo quer ser chamado Zeus.” Nao quer ser chamado Zeus se por Zeus se entende o deus de formas humanas prdprio dos gregos: quer ser chamado Zeus se por esse nome se enten- de o Deus e 0 ser supremo. Em Herdclito j4 emerge uma série de elementos relativos a verdade e ao conheci- mento. E preciso estar atento em relacdo aos sentidos, pois estes se detém na aparéncia das coisas. E também é preciso precaver-se quan- to 4s opinides dos homens, que estao basea- das nas aparéncias. A Verdade consiste em captar, para além dos sentidos, a inteligéncia que governa todas as coisas. E Herdclito sen- te-se como o profeta dessa inteligéncia — dai o carater oracular de suas sentengas e cara- ter hieratico de seu discurso. (210) Ba Natureza da alma e destino do homem Devemos ressaltar uma tiltima idéia. Apesar da disposicao geral de seu pensamen- to, gue o levava a interpretar a alma como fogo e, portanto, a interpretar a alma sabia como a mais seca, fazendo a insensatez co- incidir com a umidade, Herdclito escreveu, sobre a alma, uma das mais belas sentengas que chegaram até nés: “Jamais poderds en- contrar os limites da alma, por mais que per- corras seus caminhos, to profundo € 0 seu logos.” Mesmo no Ambito de um horizonte “fisico”, Heraclito, com a idéia da dimen- so infinita da alma, abre uma fresta em di- regio a algo ulterior e, portanto, nao fisico. Mas é apenas uma fresta, embora muito genial. Segunda parte - A fundacae do pensamento filossfice Parece que Heraclito acolheu algumas idéias dos Orficos, afirmando o seguinte so- bre os homens: “Imortais-mortais, mortais- imortais, vivendo a morte daqueles, morren- doa vida daqueles.” Essa afirmagao parece expressar, na linguagem de Herdclito, a idéia 6rfica de que a vida do corpo é mortifica- cao da alma e a morte do corpo € vida da alma. Ainda com os Orficos, Herdclito acreditava em castigos e prémios depois da morte: “Depois da morte, esperam pelos ho- ‘mens coisas que eles nao esperam nem ima- ginam.” Entretanto, nao podemos estabelecer de que modo Heréclito procurava conectar essas crencas drficas com sua filosofia da physis. SIH O filésofo Herdclito, retratado em atitude absorta. Considerado “obscura” pelos seus aforismos herméticos, deixou-nos mdximas de alta sabedoria, como as referentes & natureza e ao destino da alma humana. Capitulo segundo - Os “Naturalistas” ou filésofos da “physis" Ill. Os Pitagéricos 25 ; eee eo numero como “principio * Os Pitagéricos herdam dos predecessores a problematica do | a deslocam sobre um plano novo e mais elevado. © principio da re os Pitagéricos nao um elemento fisico, mas o “numero”. Explicam sua tese em base ao fato de que todos os fend- menos mais significativos (em particular as harmonias musicais, 0s fendmenos astronémicos, climaticos e bialégicos) acontecem segundo regularidade mensurdvel e exprimivel com numeros. O numero, portanto, é causa de cada coisa e determina sua es- séncia e a reciproca relagao com as outras. Para exatidao, segundo os Pitagoricos nao so os nimeros. enquanto tais o fundamento ultimo da realidade, mas os ele- mentos do numero, ou seja, 0 “limite” (principio determinado e determi © “ilimitado” (principio indeterminado). Cada numero é sintese dois ele- 10s nuimeros pares prevalece 0 ilimitado e nos impares olimite, Se tudo é numero, tudo é “ordem” e o universo inteiro aparece como um késmos (termo que significa justamente “or- dem”) que deriva dos ntiimeros, e enquanto tal é perfeitamente mento: cognoscivel também nas suas partes. Os Pitagoricos derivaram do Orfismo tanto o conceito de Srficas metempsicose quanto 0 conceito de vida como expiacao/purifi cagao para poder retornar junto aos deuses, mas atribuiram a . 2s virtude catartica nao a ritos e praticas, como queriam os Orficas, mas ao conhect mento e a ciéncia, isto é, “vida contemplativa” em grau supremo ~ chai “vida pitagérica” — a qual eleva o homem e o leva a contemplacao da verdade. gle Pitagoras e os “assim chamados Pitagéricos” Pitagoras nasceu em Samos. O apogeu de sua vida ocorre em torno de 530 a.C. e sua morte no inicio do séc. V a.C. Crotona foi a cidade em que Pitégoras mais operou. Mas as doutrinas pitagoricas tambem tiveram muita difusdo em intimeras outras cidades da Italia meridional e da Sicilia: de Sibari a Reggio, de Locri a Metaponto, de Agrigento a Catania. Além de filos6fica e religiosa, co- ‘mo vimos, a influéncia dos Pitagéricos tam- bem foi notavel no campo politico. O ideal politico pitagérico era uma forma de aristo- cracia baseada nas novas camadas dedicadas especialmente ao comércio, que, como ja dis- semos, haviam alcangado elevado nivel nas colénias, antes ainda do que na mae-patria, Conta-se que 0s crotonienses, temendo que Pitdgoras quisesse tornar-se tirano da cida- O principio das coisas e so 0 nimero eos elementos dos quais | _ ondmero deriva > §23 mundo como késmos eas influéncias 3545 de, incendiaram o prédio em que ele se reu- nira com seus discipulos. Segundo algumas fontes, Pitagoras teria morrido nessas circuns- tancias; segundo outros, porém, conseguit fugir, vindo a morrer em Metaponto. Muitos escritos sao atribuidos a Pitago- ras, mas os que chegaram até nds com seu nome sio falsificagoes de épocas posterio- res. E possivel que seu ensinamento tenha sido apenas (ou predominantemente) oral. Podemos dizer muito pouco, talvez pouquissimo, sobre o pensamento original desse pensador. As numerosas Vidas de Pitd- goras posteriores nao tém credibilidade his- rorica, porque logo depois de sua morte (e talvez ja nos tiltimos anos de sua vida), aos olhos de seus seguidores, nosso filésofo ja perdera os tracos humanos; era venerado quase como um nume e sua palavra tinha quase valor de ordculo. A expresso com que se referiam & sua doutrina tornou-se muito famosa: “ele o disse” (autos épha; ipse dixit). Ja Aristoteles nao tinha a disposi¢io elemen- 26 Pitdgoras, que viveu entre a segunda metade do séc. Vie 0s inicios do V a.C., foi o fundador da matematica grega © 0 criador da “vida contemplativa”, que foi chamada por seus seguidores, com simbolica consagracao do seu nome, também “vida pitagorica” (Roma, Museus Capitolinos) tos que Ihe permitissem distinguir Pitagoras de seus discipulos, ¢ falaya dos “assim cha- mados Pitagoricos”, ou seja, 0s filésofos “que eram chamados” ou “que se chamavam Pi- tagéricos”, filésofos que procuravam jun- tos a verdade e que, portanto, nao se dife- renciavam individualmente. Nao ¢ possivel, portanto, falar do pen- samento de Pitagoras, considerado indivi- dualmente, e sim do ‘pensamento dos Pi- tagéricos, considerados globalmente. wag O5 ndmeros como “principio” A pesquisa filos6fica refinou-se no- tavelmente, ao passar das colénias jénicas do Oriente para as colénias do Ocidente, para Segunda parte - A fundacao do pensamento filossfico onde emigraram as antigas tribos jénicas e onde se criara uma témpera cultural dife- rente, Com efeito, com clara mudanga de perspectiva, os Pitagdricos indicaram 0 nué- mero (e os Componentes do nimero) como © “principio”, ao invés da 4gua, do ar ou do fogo. O mais claro e famoso texto que resu- me o pensamento dos Pitagoricos é a seguin- te passagem de Aristételes, que se ocupou muito ea fundo desses filésofos: “Os Pi- tagéricos foram os primeiros que se dedica- ram as matematicas ¢ as fizeram progredir. ‘Nutridos pelas mesmas, acreditaram que os prinefpios delas fossem os principios de to- das as coisas que existem. E, uma vez que nas matematicas os niimeros s40, por sua na- tureza, os principios primeiros, precisamente nos nimeros eles acreditavam ver, mais que no fogo, na terra e na agua, muitas seme- Ihancas com as coisas que existem e se ge- ram (...); é, além disso, como viam que as notas € os acordes musicais consistiam em nimeros; e, por fim, como todas as outras coisas, em toda a realidade, pareciam-lhes serem feitas 4 imagem dos nimeros e que os niimeros fossem aquilo que é primeiro em toda a realidade, pensaram que os ele- mentos do niimero fossem elementos de to- das as coisas, ¢ que todo o universo fosse harmonia e niimero.” A primeira vista, essa teoria pode cau- sar estupefacio. Na realidade, a descoberta de que em todas as coisas existe regularida- de matematica, ou seja, numérica, deve ter produzido uma impressao tao extraordi- néria a ponto de levar 4 mudanga de pers- pectiva da qual falamos, e que marcou uma etapa fundamental no desenvolvimento es- piritual do Ocidente. No entanto, deve ter sido determinante para isso a descoberta de que os sons e a miisica, & qual os Pitagéricos dedicavam grande atengao como meio de purificacdo e catarse, sao traduziveis em de- terminages numéricas, ou seja, em nuime- ros: a diversidade dos sons produzidos pe- Jos martelos que batem na bigorna depende da diversidade de peso dos martelos (que € determinavel segundo um ntimero), a0 pas- so que a diversidade dos sons das cordas de um instrumento musical depende da diver- sidade de comprimento das cordas (que é analogamente determinavel segundo um né- mero). Além disso, os Pitagéricos descobri- ram as relagdes harménicas de oitava, de quinta e de quarta, bem como as leis numé- ricas que as governam (1:2, 2:3, 3:4). Capitulo segundo - Os "Noturalisias” ou fildsofos do “physis Nao menos importante deve ter sido a descoberta da incidéncia determinante do niimero nos fenémenos do universo: so leis numéricas que determinam os anos, as es- tages, os meses, os dias, e assim por dian- te. Mais uma vez, sao leis numéricas preci- sas que regulam os tempos da incubacao do feto nos animais, os ciclos do desenvol- vimento biolégico ¢ varios fenémenos da vida. £ compreensivel que, impelidos pela euforia dessas descobertas, os Pitagéricos tenham sido levados a encontrar também correspondéncias inexistentes entre 0 ni- mero e fenémenos de varios tipos. Para al- guns Pitagéricos, por exemplo, a justica, enquanto tem como caracteristica ser uma espécie de contrapartida ou de eqiiidade, devia coincidir com o numero 4 ou com 0 numero 9 (ou seja, 2 x 2 ou 3 x 3, 0 qua- drado do primeiro nimero par ou 0 qua- drado do primeiro ntimero impar); a inte- ligéncia e a ciéncia, enquanto tem o carater de persisténcia e imobilidade, deviam coin- cidir com 0 numero 1, ao passo que a opi- nigio mutavel, que oscila em direg6es opostas, devia coincidir com o nimero 2, e assim por diante. De qualquer modo, é muito claro o pro- cesso pelo qual os Pitagéricos chegaram a por 0 mimero como principio de todas as coisas. Entretanto, 0 homem contempo- raneo talvez tenha dificuldade para com- preender profundamente 0 sentido dessa doutrina, caso nao procure recuperar o sen- tido arcaico do “ntimero”. Para nds o nui- mero é uma abstragio mental e, portanto, ente da razo; para 0 antigo modo de pen- sar (até Aristoteles), porém, o numero era coisa real e até mesmo a mais real das coi- sas — e precisamente enquanto tal € que veio a ser considerado o “principio” cons- titutivo das coisas. Assim, para eles 0 ni- mero nao era um aspecto que nés mental- mente abstraimos das coisas, mas sim a propria realidade, a physis das proprias coisas. REIT) Ba Os clementos dos quais derivam os nimeros Todas as coisas derivam dos ntimeros. Entretanto, os ntimeros nao sao 0 primum absoluto, mas eles mesmos derivam de ou- tros “elementos”. Com efeito, os mimeros sio uma quantidade (indeterminada) que pouco a pouco se de-termina ou de-limita: 2, 3, 4, 5, 6... ao infinito. Assim, dois ele- mentos constituem o nimero: um, inde- terminado ou ilimitado; ¢ outro, determi- nante ou limitante. Desse modo, 0 ntimero nasce “do acordo entre elementos limitantes ¢ elementos ilimitados” e, por sua ver, gera todas as outras coisas. Todavia, justamente porque sdo gera- dos por um elemento indeterminado e um. clemento determinante, os ntimeros mani festam certa prevaléncia de um ou outro desses dois elementos: nos ntimeros pares predomina 0 indeterminado (e, portanto, os nuimeros pares s40 menos perfeitos para os Pitagoricos), a0 passo que nos fmpares pre- valece o elemento limitante (e, por isso, s40 mais perfeitos). Se nés, com efeito, representarmos um ntimero com pontos gcometricamente dispostos (basta pensar no uso arcaico de utilizar pequenos seixos para indicar 0 nii- mero e realizar operagdes, de onde deri- vou a expressdo “fazer calculos”, bem como 0 termo “calcular”, do latim “caleu- lus”, que quer dizer “pedrinha, pequeno seixo”), podemos notar que o numero par deixa um campo vazio para a flecha que passa pelo meio ¢ nao encontra um limi- te, 0 que mostra seu defeito (de ser ilimi- tado), a0 passo que os ntimeros impares, a0 contrario, apresentam sempre uma unidade a mais, que os de-limita e de-ter- mina: 28 ete, Além disso, os Pitagéricos considera- vam 0 ntimero impar como “masculino” e © par como “feminino”. Por fim, consideravam os niimeros pa- res como “retangulares” e os mimeros im- pares como “quadrados”. Com efeito, dis- pondo em torno do niimero 1 as unidades que constituem os niimeros impares, obte- mos quadrados, a0 passo que, dispondo de modo analogo as unidades que const tuem os nimeros pares, obtemos retangu- los, como demonstram as figuras seguintes, 28 a primeira exemplificando os mimeros 3, 5 7, a segunda os mimeros 2, 4, 6 ¢ 8. 4 O “um” dos Pitagéricos nao é par nem impar: é um “parimpar”. Tanto é verdade que dele procedem todos os nimeros, tanto pares como impares: agregado a um par, gera um impar; agregado a um impar, gera um par. O zero, porém, era desconhecido para os Pitag6ricos e para a matematica antiga. ‘0 niimero perfeito foi identificado com © 10, que visualmente era representado co- mo um tridngulo perfeito, formado pelos primeiros quatro ntimeros e tendo o nume- ro 4 em cada lado (a tetraktys): A representagio mostra que 0 10 é igual a 1 +2+ 344, Mas nao é s6 isso: na década “estao contidos igualmente os pares (quatro pares: 2, 4, 6 ¢ 8) e os impares (qua tro impares: 3, 5, 7, e 9), sem que predomi- ne uma parte”. Além disso, “resultam iguais 08 ntimeros primos e nao compostos (2, 3, 5 ¢ 7) ¢ os nuimeros segundos e compostos (4, 6, 8 9)”. Também “possui igualdade de miiltiplos e submiltiplos: com efeito, ha trés submiltiplos, até 0 5 (2, 3 e 5), e trés miiltiplos deles, de 6 a 10 (6, 8 e 9)”. Ade- mais, “no 10 esto todas as relagdes numé- ricas: a de igualdade, a de menos-mais, a de todos os tipos de mimeros, os lineares, os quadrados e os ciibicos. Com efeito, 0 1 equivale ao ponto, o 24 linha, o 3 ao trian- gulo, 0 4a piramide —e todos esses niime- ros so principios ¢ elementos primos das realidades a eles homogéneas”. Considere oleitor que esses computos s4o conjecturais e que os intérpretes se dividem muito sobre a questo, uma vez que nao é certo que mimero 1'seja excetuado nas diversas sé- ries. Na realidade, 0 1 é atipico pela razao que acima apontamos. Segunda parte - A fundacae do pensamente filos. Foi assim que nasceu a teorizagao do istema decimal” (basta pensar na tabua pitagérica), bem como a codificagao da cor cepgao da perfeigao do 10, que permanece- r4 operante por séculos: “O niimero 10 € perfeito e, segundo a natureza, é justo que todos — tanto nds, gregos, como os outros homens — nos defrontemos com ele em nos- so numerar, mesmo sem querer.” E213) why Passagem do nimero as coisas e fundamentagao do conceito de cosmo Tudo isso leva a uma ulterior conquis- ta fundamental. Se o nuimero é ordem (“acordo entre elementos ilimitados e li- mitados”) e se tudo é determinado pelo mi- mero, entao tudo é ordem. E como “ordem” se diz kdsmos em grego, os Pitagéricos chamaram o universo de “cosmo”, ou seja, “ordem”. Nossos testemunhos antigos di- zem: “Pitagoras foi o primeiro a chamar de cosmo 0 conjunto de todas as coisas, por causa da ordem que nele existe. (...) Os sé- bios (Pitag6ricos) dizem que céu, terra, deu- ses e homens sfio mantidos juntos pela or- dem (...) € € precisamente por tal razdo que eles chamam esse todo de ‘cosmo’, ou seja, ordem.” E dos Pitagoricos a idéia de que os céus, girando, precisamente segundo 0 némero e a harmonia, produzem “celeste mtisica de Capitulo segundo - Os “Naturalistas’ ou filésofos da “physis” esferas, belissimos concertos, que nossos ou- vidos nao percebem ou nao sabem mais dis- tinguir, por estarem habituados desde sem- pre a ouvi-los”. Com 0s Pitagéricos o pensamento hu- mano realizou um passo decisivo: o mundo deixou de ser dominado por obscuras ¢ inde- cifraveis forcas, tornando-se ntimero, que expressa ordem, racionalidade e verdade. Como afirma Filolau: “Todas as coisas que se conhecem tém ntimero: sem este, ndo se- possivel pensar nem conhecer nada. (...) Jamais a mentira sopra contra o ntimero. ‘Com 0s Pitagéricos 0 homem apren- deu a ver o mundo com outros olhos, ou seja, como a ordem perfeitamente penetrvel pela razao. ga Pitdgoras, 0 Orfismo ea “vida pitagdrica” Conforme dissemos, a ciéncia pita- gorica era cultivada como meio para alcan- gar um fim, O fim consistia na pratica de um tipo de vida apto a purificar e a libertar aalma do corpo. Pitagoras parece ter sido o primeiro fil6sofo a sustentar a doutrina da metem- psicose, ou seja, a doutrina segundo a qual a_alma, devido a uma culpa origindria, é obrigada a reencarnar-se em sucessivas exis- réncias corporeas (e ndo apenas em forma humana, mas também em formas animais) para expiar aquela culpa. Os testemunhos antigos registram, entre outras coisas, que lizia recordar-se de suas vidas anterio- res. Como sabemos, a doutrina provém dos Orficos. Mas os Pitagoricos modificaram 0 Orfismo, ao menos no ponto essencial que agora exemplificamos. O fim da vida é li- bertar a alma do corpo, e para alcancar tal fim é preciso purificar-se. E foi precisamen- 29 te na escolha dos instrumentos e meios de purificagio que os Pitagéricos se diferen- ciaram claramente dos Orficos. ‘Uma vez que o fim iiltimo era o de vol- tar a viver entre os deuses, os Pitagoricos introduziram o conceito do reto agir buma- no como tornar-se “seguidor de Deus”, como viver em comunhao com a divindade. Conforme registra um antigo testemunho: “Tudo o que os Pitagéricos definem sobre 0 fazer e o nao fazer tem em vista a comu- nhao com a divindade: esse é o principio e toda a vida deles se ordena a esse objetivo de deixar-se guiar pela divindade.” Desse modo, os Pitagéricos foram os iniciadores daquele tipo de vida que se cha- maria (ou que eles prdprios jd chamayam) de bios theoretikés, “vida contemplativa”, ou seja, uma vida dedicada & busca da ver- dade e do bem através do conhecimento, que 6a mais alta “purificagao” (comunhao com 0 divino). Platio daria a esse tipo de vida a sua mais perfeita expresso no Gorgias, no Fédon e no Teeteto. EEEESI1 30 A nova concep¢ao de Deus e do divino >§ 1-3 IV. Xenédfanes de Célofon Segunda parte - A fundacao do pensamento filossfico * Xendfanes de Célofon (nascido por volta de 570 a.) critica pela primeira vez de modo sistematico e radical toda forma de antropomorfismo. indica o elemento “terra” como principio, nao porém de todo o cosmo, e sim do nosso planeta. gk Xendfanes nao foi o fundador da Escola de Eléia Xenéfanes nasceu na cidade jénica de Célofon, em torno de $70 a.C. Por volta dos vinte e cinco anos de idade, emigrou para as coldnias itélicas, na Sicilia e na Italia meri- dional. Depois continuou viajando, sem mo: radia fixa, até idade bem avangada, cantan- do como aedo suas proprias composigdes poéticas, das quais alguns fragmentos che- garam até nds. Tradicionalmente Xendfanes foi consi- derado fundador da Escola de Eléia, mas isso com base em interpretagées incorretas de al- guns testemunhos antigos. No entanto, ele proprio nos diz. que ainda era andarilho sem morada fixa até a idade de noventa e dois anos. Ademais, sua problematica é de cardter teoldgico e cosmoldgico, ao passo que os eleatas, como veremos, fundaram a proble- mitica ontol6gica. Assim, justamente, Xen6fa- nes € hoje considerado pensador indepen- dente, tendo apenas algumas afinidades muito genéricas com os ¢leatas, mas certa mente sem ligagao com a fundagao da la de Eléia, why Critica 4 concepeao tradicional dos deuses tema central desenvolvido nos ver- sos de Xenéfanes é constituido sobretudo pela critica 4 concepgao dos deuses que Homero e Hesiodo haviam fixado de modo exemplar e que era propria da religido pu- blica e do homem grego em geral. Nosso fildsofo identifica de modo perfeito o erro de fundo do qual brotam todos os absurdos ligados a tal concepgao. E esse erro consiste no antropomorfismo, ou seja, em atribuir aos deuses formas exteriores, caracteristicas psicol6gicas e paixGes iguais ou andlogas as que sio préoprias dos homens, apenas quanti- tativamente mais notaveis, mas nao qual tativamente diferentes. Agudamente, Xen¢ fanes objeta que se os animais tivessem maos € pudessem fazer imagens de deuses, os fa- riam em forma de animal, assim como os Etfopes, que so negros e tém o nariz achata~ do, representam seus deuses negros e com 0 nariz achatado, ou os Tracios, que tém olhos azuis e cabelos ruivos, representam seus deu- ses com tais caracteristicas. Mas, o que ainda mais grave, os homens também ten- dem a atribuir aos deuses tudo aquilo que eles mesmos fazem, nao s6 0 bem, mas tam- bém o mal, e isso é inteiramente absurdo. Assim, de um s6 golpe sao contesta- dos, do modo mais radical, nao s6 a credibi lidade dos deuses tradicionais, mas também a de seus aclamados cantores. Os grandes poetas, sobre os quais os gregos tradicional- mente se haviam formado espiritualmente, agora declaram-se porta-vozes de mentiras. De modo andlogo, Xen6fanes também demitiza as varias explicagdes miticas dos fendmenos naturais que, como sabemos, atribuiam-se a deuses. Por exemplo, a deu- sa [ris (0 arco-iris) € demitizada ¢ identi cada racionalmente com “uma nuvem, pur- piirea, violdcea, verde de se ver”. A breve distancia de seu nascimento, a filosofia mostra a sua forte carga inovado- ra, desmontando crengas seculares que se consideravam muito solidas, mas somente porque se enraiza no modo de pensar e de sentir tipicamente helénico; contesta-lhes qualquer validade e revoluciona inteiramen- te o modo de ver Deus que fora préprio do homem antigo. Depois das criticas de Xend- fanes, o homem ocidental nao poder nun- ca mais conceber o divino segundo formas ¢ medidas humanas. Capitulo segundo - ©. ‘Mas as categorias de que Xenéfanes dispunha para criticar 0 antropomorfismo e denunciar a falacia da religido tradicional eram as categorias derivadas da filosofia da physis ¢ da cosmologia jénica. Por conse- guinte, é compreensivel que ele, depois de negar com argumentos muito adequados que Deus possa ser concebido com formas humanas, acaba afirmando que Deus é 0 cosmo, o qual “é uno, Deus, superior entre os deuses e os homens, nem por figura nem por pensamento semelhante aos homens”. Se o Deus de Xenéfanes € o Deus-cos- mo, entao podemos compreender claramen- te as outras afirmagées do fildsofo, ou seja, de que Deus “tudo vé, tudo pensa, tudo ouve”; mas “sem esforco, com a forca de sua mente, tudo faz vibrar”; e que, por fim, “permanece sempre no mesmo lugar sem se mover de modo algum, pois nao the € pro- prio andar ora em um lugar, ora em outro”. Em resumo: 0 ver, o ouvir, o pensar ¢ a onipotente forca que tudo faz vibrar junto 31 aturalistas” ou filésofos da “physi com sua estabilidade, sao atribuidos a Deus, nao em uma dimensao humana, ¢ sim em uma dimensao cosmoldgica. (E22517|18) oa Terra e Agua como principios Essa visio nao contrasta com as infor- mages dos antigos de que Xenfanes pds a terra como “principio”, nem com suas pre- cisas afirmagoes: “Tudo nasce da terra e na terra termina”; “Todas as coisas que nas- cem e crescem sao terra e agua”. Tais afirmagées, com efeito, nio se refe- rem ao cosmo inteiro, que nao nasce, nao morre e nao entra em devir, e sim & esfera da nossa terra, E Xen6fanes ainda apresenta pro- vas bastante inteligentes de suas afirmagées, comoa presenca de f6sscis marinhos nas mon- tanhas, sinal de que houve uma época em que além de terra, existiu agua nesses lugares. Xendfanes de Célofon é conhecido principalmente pela sua critica da concepgao antropomirfica dos deuses. Com ele o logos filoséfico mostra sua incisividade na critica construti da concepeao mitoligica do Divino, Na imagem reproduz-se a Asia Menor assim como é descrita em um cddice rego da Geografia de Ptolomen, do ic. XIV, conservado na Biblioteca Ambros ana de Milao. Na parte meridioal da costa ocidental encontra-se a regiao da Jonia onde nasceu Xendfanes. 32, Segunda parte - A fundacdo do pensamento filoséfico V. Os Eleatas ea descoberta do ser * Parménides de Eléia (sécs. VI-V a.C.), fundador da Escola eleatica, no seu poema Sobre a natureza, que se tornou célebre, descreve trés vias de pesquisa: 1) a da verdade absoluta; 2) a das opinides falazes; 3) a da opiniao plausivel. A primeira via afirma que “o ser existe e ndo pode nao exis- parménides: tit”, e que “o ndo-ser nao existe”, e disso tira toda uma série de oser consequéncias. Primeiramente, fora do ser nao existe nada e, nao pode portanto, também o pensamento é ser (ndo é possivel, para nao ser, Parménides, pensar o nada); em segundo lugar, o ser 6 ndo-gera- ondo-ser do (porque de outro modo deveria derivar do nao-ser, mas 0 no- ndo pode ser ser no existe); em terceiro lugar, € incorruptivel (porque de ou- eodevir tro modo deveria terminar no nao-ser). Além disso, nao tem passado nem futuro (de outro modo, uma vez passado, nao exis- tiria mais, ou, na espera de ser no futuro, ainda nao existiria), portanto existe em um eterno presente, é imével, é homogéneo (todo igual a si, porque nao pode existir mais ou menos ser), é perfeito (e portan- to pensavel como esferiforme), é limitado (enquanto no limite se via um elemen- to de perfeicdo) e uno. Portanto, aquilo que os sentidos atestam como em devir e miltiplo, e consequentemente tudo aquilo que eles testemunham, é falso. A segunda via é a do erro, a qual, confiando nos sentidos, admite que exista © devir, e cai, por conseguinte, no erro de admitir a existéncia do ndo-ser. A terceira via procura certa mediacao entre as duas primeiras, reconhecendo que também os opostos, como a “luz” e a “noite”, devam identificar-se no ser (a luz "6", a noite “é", e portanto ambas "sd0”, ou seja, coincidem no ser), Os teste- munhos dos sentidos devem, portanto, ser radicalmente repensados e redimen- sionados em nivel de razdo. 381 * Zeno de Eléia (sécs. VI-V a.C.), discipulo de Parménides, defendeu a teoria do mestre, e em particular a tese da nao existéncia do movimento e da mul- tiplicidade, mostrando a inconsisténcia e a contraditoriedade das eae posicées dos adversdrios (ou seja, daqueles que admitiam a plu- eeabsurdos _Falidade e o movimento das coisas). eer aue cl Criou 0 método da "refutacao dialética” da tese oposta quem admite _ tese que se quer sustentar, aquilo que depois se chamard de "de- multiplicidade —monstragdo pelo absurdo”. e movimento Muito famosos se tornaram alguns argumentos seus, em par- 352 ticular o chamado “de Aquiles” e 0 “da flecha”. * Melisso de Samos (sécs. VI-V a.C.) desenvolve e completa 0 pensamento de Parménides. Sustenta que o ser é infinito tanto espacialmente, enquanto nao existe nada que o possa delimitar, como numericamente, Melisso: enquanto é uno e tudo, e também cronologicamente, enquan- oseréuno, to “sempre era e sempre sera”. Por estes motivos é definido infinito, também "incorpéreo”, acentuando o fato de que ele é priva- incorpéreo__do das formas e dos limites que determinam os corpos (é priva- 783 do, isto 6, das conotagdes que caracterizam os corpos enquan- to tais). Parmanides he e seu poema sobre o ser Parménides nasceu em Eléia (hoje Velia, entre Punta Licosa e Cabo Palinuro) na se- gunda metade do séc. VI a.C. e morreu em meados do séc. V a.C. Em Eléia fundow a Escola chamada justamente Eleatica, desti- nada a ter grande influéncia sobre o pensa- mento grego. O pitagérico Aminias enca- minhou-o para a filosofia. Diz-se que foi politico ativo, dorando a cidade de boas leis. Do seu poema Sobre a natureza sobrevive- ram até nossos dias prélogo inteiro, qua- se toda a primeira parte e fragmentos da segunda. No Ambito da filosofia da physis, Par- ménides se apresenta como inovador ra- dical e, em certo sentido, como pensador revolucionario. Efetivamente, com ele, a cos- mologia recebe como que um profundo e be- Parménides, que viveu em Eléia entre a segunda metade do sée. VI a €4 primeira metade do séc. Va.C., 60 fundador da Escola eledtica € 0 pai da ontologia ocidental. ipitulo segundo - Ox “Noturelistas” ou fildsofos da “physis néfico abalo do ponto de vista conceitual, transformando-se em uma ontologia (teo- ria do ser) Parménides poe sua doutrina na boca de uma deusa que o acolhe benignamente. (Ele imagina ser levado a deusa por um car- ro puxado por velozes cavalos ¢ em comp: hia das filhas do Sol, que, alcangando pri- meiro 0 porto que leva as sendas da Noite e do Dia, convencem a Justiga, severa guardia, a abri-lo e depois, ultrapassando a soleira fatal, é guiado até a meta final.) A deusa (que, sem dtvida, simboliza a verdade que se revela) indica trés vias: 1) ada verdade absolutas 2) a das opinides falazes (a doxa fa- laz), ou seja, a da falsidade e do erros 3) finalmente, uma via que se poderia chamar da opiniao plausivel (a doxa plau- sivel) Percorreremos esses caminhos junto com Parménides, [ZEQ19) EEE A primeira via O grande principio de Parménides, que 0 proprio principio da verdade (0 “sélido coragao da verdade robusta”), € este: 0 ser 6 e nao pode nao ser; 0 nao-ser ndo é e nao pode ser de modo nenhuam. “Ser” e “ndo-ser”, portanto, sio toma- dos no significado integral e univoco: 0 ser é 0 positivo puro e o nio-ser 6 0 negativo puro, um € 0 absoluto contraditorio do outro. De que modo Parménides justifica esse seu grande principio? 'A argumentagao é muito simples: tudo aquilo que alguém pensa e diz, é. Nao se pode pensar (e, portanto, dizer) a nao ser pensan- do (e, portant, dizendo) aquilo que é. Pen- sar 0 nada significa nao pensar de fato, ¢ di- zer o nada significa nao dizer nada. Por isso, nada é impensavel e indizivel. Assim, pensar e ser coincidem: “...pensar e ser 0 mesmo”. Ha muito que os intérpretes aponta- ram nesse principio de Parmenides a primei- ra grande formulacao do principio da nao- contradigao, isto é, daquele principio que afirma a impossibilidade de que os contra ditérios coexistam a0 mesmo tempo. E os dois contraditérios supremos so precisa~ mente o “ser” e o “nao-ser”; se existe 0 ser, é necessario que nao exista 0 ndo-ser, Par- ménides descobriu esse principio sobretudo em sua valéncia ontoldgica; posteriormen- te, ele seria estudado também em suas valén- 33:5 a 34 34. Segunda parte - A fundacao do pensamento filos: cias légicas, gnosioldgicas ¢ lingitisticas, constituindo 0 pilar principal de toda a 16: gica do Ocidente. Tendo presente esse significado integral ¢ univoco com 0 qual Parménides entende ‘© ser € 0 Ndo-ser ¢, portant, o principio da nao-contradicao, pode-se compreender mui- to bem 0s “sinais” ou as “conotagées” es. senciais, ou seja, 0s atributos estruturais do ser que, no poema, so pouco a pouco de- duzidos com uma logica férrea e com uma lucidez absolutamente surpreendente, a pon- to de Platao ainda sentir seu fascinio, che- gando a denominar nosso filésofo de “ve- nerando e terrivel Em primeiro lugar, o ser é “ndo-gera do” “incorruptivel”. E nao-gerado visto que, se fosse gerado, deveria ter derivado de um nao-ser, o que seria absurdo, dado que o nao-ser nao existe, ou entao deveria ter derivado do ser, o que ¢ igualmente ab- surdo, porque entio ele ja existiria. E por essas mesmas raz6es também é impossivel que 0 ser se corrompa. O ser nao tem, conseqiientemente, um “pasado”, porque o passado é aquilo que nao existe mais, nem um “futuro”, que air da nao existe, mas é “presente” eterno, sem inicio nem fim. Por conseguinte, o ser é também imu- tavel e imével, porque tanto a mobilidade quanto a madanga pressupdem um nao-ser para o qual deveria se mover ou no qual deveria se transformar. Assim, o ser de Par- ménides é “todo igual”; “o ser se amalga- ma com o ser”, sendo impensavel um “mais de ser” ou um “menos de ser”, que pressu- poriam uma incidéncia do nao-ser. Alias, varias vezes Parménides proclama seu ser como limitado e finito, no sentido de que é “completo” e “perfeito”. E.a igualda- de absoluta, a finitude e a completude lhe sugerem a idéia de esfera, ou seja, a figura que id para os Pitagoricos indicava a perfeicao. Tal concepgio do ser postulava também o atributo da setidade, que Parménides men- ciona de passagem, mas que sera levado ao primeiro plano sobretudo por seus discipulos. Em Eléia, na atual Basilicata, nasce Parménides, ao redor do qual constituin-se a Escola eledtica, uma das mais significativas expressoes do pensamento antigo. Na imagem é reproduzida a Itélia como descrita em un cddice grego, do séc. XIV, da Geografia de Ptofomeu, conservado na Biblioteca Ambrosiana de Milao. Capitulo segundo - Os “Naturalistas” ou filisofos da “physis" A inica verdade, portanto, é 0 ser naio- gerado, incorruptivel, imutavel, imével, igual, esferiforme ¢ uno. Todas as outras coisas nao passam de nomes vio .por isso todos s6 nomes serao, postos pelos mortais, convictos de que eram verdadeiros: nascer e perecer, ser € nao-ser, trocar de lugar ¢ tornar-se luminosa cor”, Ro HEB A segunca via O camino da verdade é 0 caminho da razdo (a senda do dia), ao passo que 0 ca- minho do erro, substancialmente, é o cami- nho dos sentidos (a senda da noite). Com efeito, os sentidos pareceriam atestar 0 no ser, a medida que parecem atestar a existén- cia do nascer ¢ do morrer, do movimento do devir. Por isso, a deusa exorta Parménides a ndo se deixar enganar pelos sentidos e pelo habito que eles criam, contrapondo aos sen- tidos a razao e seu grande principio: “Afasta o pensamento desse caminho de busca ito nascido de muitas experiéncias humanas no te force, nesse caminho, a. usar o oho que nao vé, © ouvido que retumba ¢ a lingua: mas, com 0 pensamento, julga a prova que te foi fornecida com mihtiplas refuragoes. Um s6 caminho resta ao discurso: que 0 ser existe”. e que o hi E evidente que anda pelo caminho do erro nao s6 quem expressamente diz. que “o nGo-ser existe”, mas também quem cré po- der admitir juntos 0 ser e 0 nao-ser e quem cré que as coisas passem do ser ao ndo-ser € vice-versa. Com efeito, essa posigao (que é obviamente a mais difundida) inclui estru- turalmente a anterior. Em suma: 0 caminho do erro resume todas as posigbes daqueles que, de qualquer modo, admitem expressa- mente ou fazem raciocinios que impliquem © ndo-ser, que, como vimos, 70 existe, por- gue impensavel e indizivel. A terceira via Mas a deusa fala também de um ter- ceiro caminho, o das “aparéncias plausiveis”. Resumidamente, Parménides teve de reco- 35 nhecer a liceidade de certo tipo de discurso que procurasse dar conta dos fendmenos ¢ da aparéncia das coisas, com a condicao de que tal discurso nao se voltasse contra 0 grande principio e ndo admitisse, juntos, 0 ser € 0 ndo-ser. Assim, entende-se por que, na segunda parte do poema (infelizmente, perdida em grande parte), a deusa fizesse uma exposi¢ao completa do “ordenamento do mundo conforme ele aparece”. Mas como é possivel dar conta dos fe- nomenos de modo plausivel sem contrapor- se ao grande principio? As cosmogonias tradicionais foram construidas com base na dinamica dos opos- tos, dos quais um fora concebido como po- sitivo e como ser ¢ 0 outro como negativo € como nao-ser. Ora, segundo Parménides, 0 erro esté em nao se ter compreendido que 08 opostos se devem pensar como incluidos na unidade superior do ser: ambos os opos- tos so “ser”. Assim, Parménides tenta uma deducao dos fenémenos, partindo da dupla de opostos “luz” e “noite”, mas proclaman- do que “com nenhuma das duas est o na- da”, ou seja, que ambas sao “ser”. Os fragmentos que nos chegaram sao muito escassos para que possamios recons- do mundo dos fendmenos. Entretanto, estd claro que nela, assim como 0 nao-ser estava eliminado, tam~ bem estava climinada a morte, que é uma forma de nao-ser. Efetivamente, sabemos que Parménides atribuia sensibilidade ao cadaver, mais precisamente “sensibilidade para o frio, para o siléncio e para os ele- mentos contrarios”. O que significa que 0 cadaver, na realidade, nao ¢ tal. A obscura “noite” (o frio) em que o cadaver se encon- tra ndo € 0 ndo-ser, isto é, o nada; por isso, © cadaver permanece no ser e, de alguma forma, continua a sentir e, portanto, a viver. E evidente, porém, que essa tentativa destinava-se a chocar-se contra insuperaveis aporias (isto é, problemas). Uma vez re- conhecidas como “ser”, luz e noite (e os opostos em geral) deviam perder qualquer carater diferenciador e tornar-se idénticas, precisamente porque ambas so “ser” € 0 ser é “todo identico”. O ser de Parménides nao admite diferenciagdes quantitativas nem qualitativas. Assim, enquanto assumidos no ser, os fendmenos nao s6 se encontram igualizados, mas também imobilizados, co- mo que pettificados na fixidez do ser. Desse modo, o grande principio de Parménides, assim como foi por ele formu- 36 lado, salvava o ser, mas nao os fendmenos. E isso ficara ainda mais claro nas posterio- res deducées dos discipulos. ne Zenao eo nascimento da dialética Zendo e a defesa dialética de Parmanides As teorias de Parménides devem ter causado grande espanto e suscitado vivas polémicas. Mas como, partindo do princi- pio jd exposto, as conseqiiéncias se impoem necessariamente e, portanto, suas teorias se tornam irrefutaveis, os adversdrios preferem adotar outro caminho, isto é mostrar no con- creto, com exemplos bem evidentes, que o movimento ea multiplicidade sao inegaveis. Quem procurou responder a essas ten- tativas foi Zend, nascido em Eléia entre o fim do séc. VI e 0 principio do séc. V a.C. Zenao foi homem de natureza singular, tanto na doutrina como na vida. Lutando pela li- berdade contra um tirano, foi aprisionado. Submetido a tortura para confessar os no- mes dos companheiros com os quais trama- rao compl6, cortou a lingua com os proprios dentes ¢ a cuspiu na face do tirano. J4 uma variante da tradigao diz. que ele denunciou ‘05 mais figis partidérios do tirano e, desse modo, fez com que fossem eliminados pela propria mao do tirano que, assim, se auto- isolou ese autoderrotou. Essa narracao refle- te maravilhosamente o procedimento dialé- tico que Zenao seguiu na filosofia. De seu livro s6 nos chegaram alguns fragmentos e testemunhos. Zenao, portanto, enfrentou de peito aberto as refutagdes dos adversdrios e as tentativas de ridicularizar Parménides. O procedimento que adotou consistiu em fa- zer ver que as conseqiiéncias derivadas dos argumentos apresentados para refutar Par- ménides eram ainda mais contraditérias € ridiculas do que as teses que pretendiam re- fatar. Ou seja, Zenao descobriu a refutagio da refutacao, isto é, a demonstracao por ab- surdo. Mostrando 0 absurdo em que caiam. as teses opostas ao Eleatismo, estava defen- dendo o proprio Eleatismo. Desse modo, Zenao fundou o método da dialética, usan- do-o com tal habilidade que maravilhou os antigos. Segunda parte - A furdacéo do pensamento filoséfico Seus argumentos mais conhecidos sto os que refutam 0 movimento e a multipli- cidade. Comecemos pelos primeiros. Os avgumentos de Zeni contra e movimento Pretende-se (contra Parménides) que, movendo-se de um ponto de partida, um corpo possa aleangar a meta estabelecida. No entanto, isso nao é possivel. Com efei- to, antes de alcancar a meta, tal corpo deve- ria percorrer a metade do caminho que deve percorrer e, antes disso, a metade da meta- de e, antes, a metade da metade da metade, e assim por diante, ao infinito (a metade da metade da metade... nunca chega ao zero). Esse é o primeiro argumento, chama- do “da dicotomia”. Nao menos famoso é 0 “de Aquiles”, o qual demonstra que Aquiles, conhecido por ser “o pé veloz”, nunca po- dera alcangar a tartaruga, conhecida por ser muito lenta. Com efeito, caso se admitisse 0 oposto, se apresentariam as mesmas dificul- dades vistas no argumento anterior. Um terceiro argumento, chamado “da flecha”, demonstrava que uma flecha lan- gada do arco, que a opinido comum cré es- tar em movimento, na realidade esta para- da. Com efeito, em cada um dos instantes em que 0 tempo de vdo ¢ divisivel, a flecha ‘ocupa um espago idéntico; mas aquilo que ‘ocupa um espaco idéntico est4 em repouso; entao, se a flecha esta em repouso em cada um dos instantes, deve estar também na to- talidade (na soma) de todos os instantes. Um quarto argumento tendia a de- monstrar que a velocidade, considerada co- mo uma das propriedades essenciais do movimento, nao é algo objetivo, mas sim relativo, e que, portanto, o movimento do qual é propriedade essencial também é rela- tivo e nio objetivo. EEE Os argumentos de Zendo contra a multiplicidade Nao menos famosos foram seus argu- mentos contra a multiplicidade, que leva- ram ao primeiro plano a dupla de conceitos miltiplos, que em Parménides estava mais implicita do que explicita, Na maior parte dos casos, esses arguments procuravam de- monstrar que, para haver multiplicidade, deveria haver muitas unidades (dado que a

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