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Copyright 2010 Instituto de Psicologia Fenomenolégico-Existencial do Rio de Janeiro Coordenagéo editorial Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo Elaine Lopez Feijoo Maria Bernadete Medeiros Fernandes Lessa Myriam Moreira Protasio Conselho Editorial * Elida Sigelmann Universidade Federal do Rio de Joneiro-UFRJ Monique Augras Universidade Pontificia Catélica-PUC/RI Roberto Novaes de S4 Universidade Federal Fhuninense-UFF Thelma Donzelli Universidade do Estado do Rio de Janeivo-UERS Ued Maluf Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRI Projeto grafico e diagramagao Papel & Tinta / Sergio Laks Iustragdo da capa (linoleogravura) Valeria Brancaforte Revisdo e padronizagiio de texto Arnaldo Marques CIP-BRASIL, CATALOGAGAO NA FONTE. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RU F328 2.04 Feijoo, Ana Maria Lopez Calvo de, 1952- ‘Aescuta e a fala em psicoterapia: uma proposta fenomenolégico-existencial / Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo - 2.ed. - Rio de Janeiro : IFEN, 2010. Inclui bibliografia ISBN 978-85-63850-00-3 |, Psicoterapia existencial. 2, Existencialismo. 3. Fenomenologia existencial 3, Psicologia clinica. 4. Psicoterapeuta ¢ paciente I. Titulo, 10-4193. CDD: 616.8914 CDU: 615.851 23.08.10 25.08.10 021042 indices para cotélogo sistematic 1. Cliente-psicoterapeuta : Relagdo elinica : Psicologia 150.195 2. Posicoterapentarcliente : Relagao clinica : Psicologia 150.195 * Membros da Banca Examinadera do dowtoramento da autora, CAPITULO 3 Uma proposta de psicoterapia fenomenoldgico-existencial A proposta aqui desenvolvida consiste em pensar a psicote- rapia Ao se trata aqui de pensar o homem a partir de formulagdes tedricas, que postulam o existente em um sistema explicativo ¢ determinista ou como uma filosofia idealista ou realista. Neste percurso, substituiram-se os sistemas cientificos e a teorias que consideram o homem a partir de uma construgao em si mesmo pelos fundamentos da hermenéutica fe- nomenologica e pela filosofia da existéncia. O homem passa, entio, a ser tomado nao mais a partir de substancialidade do eu e de sua dicotomizacao. Assume-se a questao pela via dos modos de ser do homem, retornando assim a ligacao origindria do homem com 0 mundo, prescindindo de um aparato psiquico. Parece necessario abrir um espago de re- flexdo, para que possamos propor uma Psicologia c com bases fe- nomenoldgico-existenciais, em que capP{TULO 3. Uma proposta de psicoterapia fenomenoldgico-existencial mundo. Esse existir, implica-se com o real e com o imaginario, com os limites, mas também com as possibilidades; vive no imediato do presente, como no remoto do passado ¢ no vir-a-ser do futuro. Implica-se, enfim, consigo préprio e com o outro, com a razao ¢ com a paixdo e, ainda, com o desespero da propria ambiguidade frente ao fato de existir. Pode assumir posig6es psicoldgicas de li- berdade e de ndo-liberdade, considerando ainda aspectos como in- terioridade, ilusdo e transparéncia do eu (KIERKEGAARD, 1968). Fundamentar-se em Kierkegaard é uma tarefa para a qual ele mesmo abriu caminho, ao definir duas de. suas obras como des- tinadas a psicologia: O conceito de anguistia e O desespero hu- mano. Neste livro sio desenvolvidas, além de uma proposta de constituigdo do eu, consideragées sobre a perda do eu. Naquele, © Fundamentar uma proposta psicoterapéutica na fenomenolo- gia hermenéutica de Heidegger abre uma série de discuss6es acerca da possibilidade cujo caminho o préprio Heidegger apon- liberdade. A psicoterapia cabe acompanhar aquele que esqueceu do seu carater de poder-ser e, no desvelamento de sua situagdo, poder resgatar a possibilidade de sua liberdade. Articula-se uma psicoterapia, considerando o pensamento de Heidegger acerca da técnica, do método fenomenoldgico, da her- menéutica e da estrutura do ser-ai juntamente com as reflexdes de Kierkegaard sobre 0 modo de acolhimento quando se quer es- tabelecer uma relagtio que, pretendendo levar o homem a reco- nhecer-se a si proprio, desfaz a ilusdo de quem acredita ser aquilo que em ato nfo é. ' 102 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo Trata-se, entéo, de estruturar uma pratica clinica, fundamen- tada em uma ontologia do sentido, na abertura do ger-do-ente e nas reflexées de Kierkegaard, ao sustentar uma relagao singular de “ajuda”, em um sentido particular: psicoterapeuta ¢ cliente em uma situagdo concreta. O percurso psicoterapéutico, aqui desenvolvido, pauta-se no processo de escuta e fala articulados na psicoterapia em uma abordagem fenomenol6gico-existencial, em que escuta e fala nao se d&o na relac4o dicotémica sujeito-objeto. Ocorre pela herme- néutica, desvelando sentidos pela compreensao explicitada, ainda que ao modo do encobrimento, no discurso. Assim sendo, pode- se atuar de forma a nao cair em uma perspectiva sem fundamen- tos, parecendo, muitas vezes, uma psicologia do senso comum. Mas, ao mesmo tempo, nao se cai em um excesso de protecio da naturalidade das relagées, refugiando-se em normas rigidas acerca de como se deve dar a relacdo psicoterapéutica, pare- cendo, muitas vezes, tratar-se mais de um jogo de forgas do que de uma relagdo compreensiva. Trata-se, portanto, de fundamentar uma proposta psicoterapéutica ftexivel, com princ{pios filosdfi- cos orientadores — e nao limitadores de uma acao. 3.1 - As reflexdes de Kierkegaard e a psicoterapia A proposta de uma psicoterapia em uma perspectiva fenome- noldgico-existencial vai procurar, nas reflexdes de Kierkegaard, a possibilidade de se estabelecer uma é a qual se constitui como reto- mada do movimento do existir. A proposta deste pensador torna viavel uma psicoterapia que consiste em ajudar 0 ot : Vale ressaltar uma discussdo de Kierkegaard (1846) de grande relevancia para a psicologia, seja 103 CAPITULO 3. Uma proposta de psicoterapia fenomenoldgico-existencial no fmbito do social, seja do particular. Alias, a questo do indi- vi d r 3.1.1. 0 individuo e a multidao Kierkegaard em 4 época presente (2001), texto datado de 1846, mostrou sua preocupa¢do com o despontar da sociedade de massa € a dissolucdo da tradi¢ao europeia. Atualmente, pode-se assistir 4 sedimentagio da sociedade de massa. Testemunha-se, hoje, 0 inicio da sociedade globalizada e a dissolugao de qualquer tradigdo, seja europeia, asidtica ou americana. Tem-se, agora, uma sociedade de massa hegemdénica. Observa-se, pacificamente, o total desaparecimento da tradig4o: dos valores, da ética, das cren- ec critérios ¢ serem seguidos.As modificaces na cultura engendram mudan¢as exteriores que, pouco a pouco, vao transformando a interioridade do homem: 0 pensar sobre as coisas, os sentimentos, as atitudes. Kierkegaard (Op. cit.), a todo o momento, declarava a sua fé no homem, no sentido de resgatar sua individualidade, por dois moti- vos. Primeiro, j4 que a multidao é formada por individuos, ha 0 poder em cada homem de chegar a ser 0 que é: o individuo singular, exceto se esse homem nfo desejar assim e preferir escolher excluir- 3e a si mesmo, e continuar mantendo-se como multidao. Segundo, por acreditar que a interioridade é possibilidade para todo homem. O homem, como individuo fiel 4 singularidade, no precisa se ancaixar em nenhum enquadramento ou reduto. Nao precisa, para tanto, atacar nem criticar um determinado grupo, ¢ sim proceder a uma andlise sincera e poder assumir que nao se identifica. A sub- i i ' | | i 1 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo Manter-se no singular implica nao se perder no geral, porém sem abandond-lo. A singularidade se for- talece no geral, mantendo a verdade objetiva e assumindo as ne- cessidades, £ preciso, no entanto, nado confundir a necessidade com a moda ou com o universal. No entanto, quanto mais enfra- quecida a consciéncia, mais facil é perder-se na multiddo, Na atua- torma-se responsavel por sua agao, compromete-se com a sua obra, assina a sua autoria. Para este, os meios n4o justificam nenhum fim. O individuo massa é a multiddo, em que a verdade torna-se uma abstragao, portanto ninguém é responsavel, ninguém assume a autoria e, ainda, os meios justificam o fim. A exemplo da Iliada e da Odisséia, tem-se, no politico, o homem da massa, com a valoriza¢ao da asticia, da sofistica na qual importa a palavra, e néio a agdo. Nao precisa haver comprometi- mento, faz-se necessdrio 0 convencimento. Frente a asticia do po- litico, o individuo singular tem que estar muito preparado para posicionar-se frente aos argumentos do outro, deve poder contra- argumentar sem recorrer 4 irritagdo ou a uma resposta inflamada. No senso comum, costuma-se afirmar que o que diz a multi- dao é a verdade. Para Kierkegaard, a multiddo é a mentira, pois considera 0 numérico como critério que decide o que é verdade. A multidao atua como instancia decisiva segundo os aspectos temporal, terrestre « mundano. “ Ud., p. 97). A multidao é a verdade em relacao ao finito e ao sensivel. Em re- lagao ao eterno, um tinico atinge a meta. 105 ma CaPiTULO 3. Uma proposta de psicoterapia fenomenoldgico-existencial Com relagao ao eterno, tem-se uma discussao do filésofo di- namarqués em O desespero humano. Neste manuscrito, Kierke- cago da existéncia no temporal. Doenga muito peculiar, pois afeta o temporal e acontece quando o homem nio encontra mais sentido no temporal. Ento, 0 que constitui o homem? E o pré- prio desesperar, j4 que este se constitui no jogo do eterno e do temporal. Trata-se de uma energia viva, autodeterminante, que em abertura ambigua e indeterminada, em total auséncia de sin- teses, no ato de existir, constréi a verdade de sua Cabe, entiio, ao psicélogo acompanhar aquele que o procura no sentido de saber do que ele desespera. Seria a enfermidade psi- quica a doenga que o cristianismo anuncia? 3.1.2 - A constituigdéo do eu: movimento e queda Kierkegaard refere-se ao eu como se constituindo em movi- mento, movimento do existir. A escassez deste movimento con- siste na perda do eu, que seria o homem em estado de queda. O eu se perde quando se paralisa em uma tentativa de resolver o inevitavel, ou seja, a situagdo paradoxal da existéncia humana. O movimento dialético do existir humano, o “ir e vir”, 6 0 que constitui o en. O en é, portanto, atividade, eterno movimento. A proposta de psicoterapia consistira em mobilizar os para- doxos da existéncia, uma vez que aquele que estd em desespero ~ no sentido de lutar para resolver as ambiguidades da existéncia — encontra-se paralisado. Debate-se contra si mesmo. Cabe, Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo de movimento do ew. O cliente devera vir a reconhecer que a sua existéncia se estabelece na dialética do finito e infinito, do eterno e do temporal, do necessario e dos possiveis, e mais: da razio e da paixao, do singular e do universal, do acaso e do autodeter- minado. E que nem ele, nem nenhum homem se constituem como um eu fechado: existir sempre implica abertura, fechar-se implica deixar de existir — nas palavras de Kierkegaard, em perda do eu. Na dialética do finito e infinito, a estagnagao ocorre quando 0 » O euse perde no infinito e atua no ima- gindrio, que nao realiza. Restabelecer 0 movimento consistiria na fluidez finito e infinito que se constitui como realizacao, no mo- vimento em que 0 imaginado se faz real e, ent&o, o eu realiza. No movimento das necessidades e possibilidades, 0 homem atua em liberdade. c ica o nado-fazer no m ‘do externo. Por outro lado, qua que para ele tudo é possibilidade, esquece-se dos seus limites, nado preso aos possiveis, acredita pensando que nada no mundo o detém. Reconhecer seus limites € arriscar nos possiveis constitui-se no eu em liberdade, al, ‘aexisténcia se d4 em uma | utu: m que ¢ ediato se a fluidez do eterno ¢ do tempor: tes ire 0 resente e fi . O eu que se perde no eterno acredita-se imortal, portanto, é especial: 0 que ocorre ao outro, por certo nao the ocorreré. Aquele que se perde no temporal teme 0 tempo, se previne de todas as formas possiveis, por acreditar que, através de uma atitude de protecao extremada, poder evitar ou adiar a sua morte. Em movimento, 0 eu se constitui, justifi- cando no eterno o existir no temporal. S6 assim a existéncia torna-se totalmente justificavel 107 a justificagdo no temporal revela a auséncia de necessidade — 0 que também é desespero, doenga mortal. Em Migalhas filosofi- cas (1991), Kierkegaard diz que a transformagao se dé no ins- tante — logo, no 4mbito do eterno da existéncia temporal e do necessario da existéncia frente aos possiveis. 3.1.3 - A angtistia e as posicdes psicoldgicas de liberdade A angustia revela o carater de indeterminagio da existéncia que abre ao homem o pecado. Dai o homem, saindo do estado de ignorancia, poder reconhecer-se como pecador — ou seja, na pos- sibilidade para as possibilidades. Ai se encontra no seu poder es- colher-se: Kierkegaard vai descrever as posigées psicologicas da liberdade, dentre elas a da nao-liberdade. Na nao-liberdade, o homem nfo se reconhece como pecador, aquele que se escolhe. Revela-se, entéo, como determinado por condigées alheias a si mesmo, de varios modos. Seja pelas queixas psicossomaticas, pelas express6es de culpa e de isolamento. Justifica-se no acaso, no destino e, ainda, deixa que 0 tempo dé conta daquilo que tem de decidir. A presente proposta psicoterapéutica consiste também na apropriagao da condigéo de pecador, ou seja, da liberdade ine- rente ao homem. Al fala ea agtio do cliente serio nao sé a fonte reveladora do movimento do | seu existir como tambér a expres- libe srdade, Aangistia, que de- flagra a condigao de liberdade, nao deve ser amenizada: experimenta-la e nela SUMeEBH E éo 0 possivel ¢ datiberdade. — como mo liberdade, dai a angustia frente ao real e ao futuro, ém que se apresenta o mundo como possibilidades. 108 Ana riatia Lopez Lavo ge reyoo Muitas vezes, no entanto, o homem quer obscurecer a sua situa¢do de indeterminagao, sua liberdade. Para tanto, dissimula a angustia que lhe é constitutiva, assumindo-se, no mundo, como néo-liberdade. Desta forma, justifica-se nas determinagdes do somatico, do divino, do mundo, do acaso. Ha, nestes casos, uma falta de interioridade, ou seja, de obscurecimento da situag4o que lhe cabe. Apsicoterapia exis- tencial desenrola-se de modo a tentar que aquele que se justifica nas t determinag6es exteriores possam ganhar interioridade. Para que a es ee aquele que se diz nfo-livre possa assumir-se em sua liberdade. 3.1.4 - A psicoterapia e os princfpios de uma “relacdo de ajuda” Tanto Kierkegaard quanto o psicoterapeuta existencial pre- tendem facilitar ao homem o encarar sem temor 0 seu ser em abertura e aceitar a condi¢do paradoxal da existéncia humana. O psicélogo pode se valer dos principios da relagSo de ajuda, a fim de que o homem reconhega a si mesmo, assumindo a responsa- bilidade de suas escolhas e daquilo que continua a escolher ser, em cada momento de sua vida, sabendo-se, a0 mesmo tempo, lancado as contingéncias do mundo. Kierkegaard (1988) denomina “ajudante” aquele que pretende ajudar ao outro a se desembaragar dos lacos da ilusio, a alertar o homem do perigo de se perder nas determinagSes do impessoal, de modo a esquecer-se do caminho de retorno a si mesmo. Afirma que aquele que quer ajudar deve, antes de tudo, reconhecer que tem um diferencial em relagéo ao outro — 0 que, no minimo, im- plica reconhecer 0 risco de se perder nas orientagdes demarcadas pela multidao, E reconhecendo o perigo, pode tentar identificar o que ameaga o outro. Aquele que ajuda deve saber dialogar através da comunicagao indireta, que consiste em uma forma de se fazer 109 CAPITULO 3 Uma proposta de psicoterapia fenomenoldgico-existencial chegar ao outro, sem que este perceba que ha ai uma intengdo de confronta-lo, de questiond-lo ou intercepté-lo em suas a¢ées. A fim de organizar a sua estratégia de comunicaco indireta, Kierkegaard utiliza-se de pseud6nimos para assinar 0 contetdo de suas obras, elaboradas de acordo com critérios estéticos, éticos e religiosos da existéncia humana. Estabelece tais critérios de acordo com os referenciais pelos quais o homem estabelece suas escolhas. Dai, ele organiza suas obras, para poder atingir a todos 0s leitores. Com base nos escritos de Kierkegaard em Mi punto de vista, onde ele descreve de que forma se deve conduzir aquele que pre- tende levar o homem a reconhecer-se, propde-se uma descrig&o de como deve proceder 0 psicoterapeuta existencial ao estabele- cer uma relagdo libertadora com o seu cliente. Aponta para as di- ficuldades de destruir uma ilusao por via direta, devendo, entio, fazé-lo por meios indiretos, mas como? °), Organizando dialética e indiretamente aquilo que pre- tende dizer ao cliente para, em seguida, retirar-se; 2°) E, assim, nao testemunha o autorreconhecimento. Desta forma, aquele que ajuda nao assume para si 0 reco- nhecimento que o homem faz de si mesmo, por ter vivido uma ilusao; 3°) Mantendo-se préximo, permanecendo na situagao de acompanhar aquele que obscurece a sua condi¢4o de liber- dade para as suas ilusGes. Quando se pretende ajudar o outro, deve-se promover a aproximacio, acompanhando aquele que esta sob a ilus&o, mas jamais escolhendo por ele; f°) Sendo cuidadoso e paciente para chegar onde o cliente se encontra e comegar por ai. A fim de desfazer a ilusao, deve-se chegar até ele, para, ent&o, poderem caminhar jun- tos; mas, no momento da decisao, Q psicoterapeuta da um passo atras; 110 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (5) Entendendo o que o cliente entende c a forma como entende. Se assim nao for, a ajuda de nada lhe valera. Tudo comega quando se pode entender 0 que 0 outro entende, € a forma como entende; 6°) Assumindo uma atitude de humildade e colocando-sc, deste modo, na relagao. Se orgulhoso do conhecimento, antes de ajudar 0 outro, o que se deseja é ser admirado. O auténtico esforco para ajudar comega com uma atitude bu- milde. Aquele que ajuda deve colocar-se como desconhe- cendo mais do que aquele a quem ajuda; 7°) Assumindo a responsabilidade pela atuagao; 8°) Utilizando metdforas, quando estas se fizerem neces- sarias. Interpretagées poéticas, muitas vezes, ajudam aquele que fala do seu sofrimento, 9°) Deve-se scr um ouvinte que senta e escuta 0 que 0 outro encoutra mais prazer cm contar, sem assombro; 10°) Apresentando-se com o tipo de paixao do outro homem: alegre para os alegres, em tom menor para os melancélicos; 11°) Nio temendo fazer tudo isto, mesmo que na verdade nao se possa fazer sem medo e temor. Acredita-se que, pelo processo psicoterapéutico, possa 0 homem chegar a se reconhecer. Chegar 4 interioridade, através da reflexdo, significa desembaracar-se dos lagos da propria ilu- so, o que também é uma modificagao reflexiva. Estabelecida a relagado compreensiva, 0 psicoterapeuta ja pode arriscar mais no processo de comprometimento com sua propria existéncia. Eo momento de no tentar obscurecer a inquietagao propria da condigao de reconhecimento de sua indetermina¢ao existencial: a angustia. E, assim, tentar manter uma atmosfera para que o outro possa reconhecer 0 seu carater de pecador — logo, aberto para possibilidades E o momento de mobilizar 0 Ji CAPITULO 3. Uma proposta de psicorerapia fenomenorogico-existencial desfazer da ilusao de que se é determinado quando se é liberdade; de que as justificativas da existéncia se encontram no temporal esquecendo-se da justificagao no eterno; de que, no mundo, tudo é possibilidade obscurecendo 0 necessario; de que a verdade se encontra naquilo que se diz e que, na ag&o, ndo se faz. E tudo isto vai se dar no discurso psicoterapeuta-cliente. 3.2 - 0 pensamento de Heidegger e a psicoterapia Uma proposta psicoterapéutica em uma perspectiva fenome- nolégico-existencial articulou-se aqui, tomando em Heidegger os seus fundamentos, como bem esclarece SA (1995, p. 47): “Um didlogo criterioso com a obra de Heidegger muito tem a contri- buir para que a clinica alcance uma compreens4o mais profunda de seus préprios fiindamentos.” Uma Analitica do Dasein tal como designada por Heidegger abre, por sua vez, a possibilidade de wma clinica psicoldgica que trabalhe com as bases ontolégico-existenciais a partir da proposta de uma psicologia sem psiquismo ¢ e da tese fundamental presente na fenomenologia he heideggeriana de que os problemas psiquicos nao sao problemas da interioridade, nem do 01 organico, nem da se- méantica interna — enfim, nao sdo problemas do eu. S40 problemas do. projeto « existencial, da relagho ser-af € mundo. A propria da- seinsanalise, tal como assumida por Boss, consiste em uma ten- tativa de pensar todos os problemas ditos psiquicos como problemas da articula¢ao ser-ai/mundo. 3.2.1 - 0 desvelamento das possibilidades do ser-af e a psicoterapia Uma questao muito presente no ambito da psicologia versa sobre a real possibilidade de se articular uma clinica psicolégica a partir da fenomenologia hermenéutica de Heidegger. A davida 112 Alia Malia Lopes talvy ue Feyuu acerca de tal possibilidade ocorre uma vez que este filosofo nega totalmente a existéncia de um psiquismo. Ele questiona, também, a pretensdo de uma atuac4o modificadora do comportamento hu- mano a partir de um posicionamento que toma o homem como algo da ordem do natural, logo passivel de uma modificagao pela agao direta. E o proprio fildsofo da daseinsandlise, contudo, que aponta para a possibilidade de uma clinica psicolégica com bases na fenomenologia hermenéutica; ¢ isso em seus Semindrios de Zollikon (1987/2001). Heidegger, em Ser e tempo (1927; 1989), refere-se a analitica do Dasein como a anélise ontologica das es- truturas da existéncia humana. Os psiquiatras Ludwig Binswan- ger e Medard Boss, inspirados no fildsofo, vio denominar de daseinsandlise 0 exercicio desta analitica em uma perspectiva 6n- tica — ou seja, na relagdo com problemas materiais. 3.2.1.1 - 0 método fenomenolégico Husserl apresenta a atitude antinatural, propria 4 fenomenologia, como possibilidade de uma visada nao comprometida com a postura ingénua que se deixa levar pela opiniao ja marcada por um modo de ver presente no senso comum. Nessa atitude antinatural, ao invés de se imergir em atos superpostos uns aos outros e de pressupor os objetos como dotados em si mesmos de sentidos e determinagées essenciais acessiveis na pesquisa, o importante seria retornar ao ponto de génese dos atos e ao carater intencional de sua realizagiio, A atitude antinatural tal como assumida pela fenomenologia com seu lema fundamental — “rumo 4s coisas mesmas” — pode dar a impress&o de que o que esté em questio é 0 empirico, ou seja, é deixar-se tomar pelas coisas da maneira como elas apare- cem. No entanto, a questo ai implica a superagao de todas as tendéncias metafisicas que criam teorias acerca dos entes, esque- cendo-se do sentido originario do ser. A orientagiio fenomenold- 113 caPiTULO 3 Uma proposta de psicoterapia fenomenolégico-existencial gica exige que se saia do campo empirico, que posiciona os ob- jetos no espaco e no tempo, o que envolve a necessidade de se deixar o campo emergir num gesto nao-teorizante, Para tanto, é preciso que, uma vez diante do fendmeno, se dé um passo atras € se retorne ao seu correlato cooriginario. Husserl propGe o abandono da atitude natural por uma atitude antinatural: temos aqui a nogio de epoché — a suspensao desta atitude natural. O que ele nos ensina é que precisamos deixar de tomar a verdade com referenciais e categorias hipostasiantes, como se as coisas fossem estruturadas naturalmente, dando a idéia falsa de que se conhece a verdade. Heidegger, inspirado por Husserl, adota o método fenomeno- légico como atitude de investigagao do fendmeno. “Método”, aqui, é entendido no sentido grego, como a busca daquilo que vem depois do caminho. Na ciéncia moderna, entende-se como representagdo; na fenomenologia ¢ 0 sentido. A investigagio fe- nomenoldgica em Heidegger prop6e-se a buscar o fendmeno nos seus modos de explicitagao — seja na aparéncia, na manifestacao ou, ainda, noentulhamento, Este método também vai consistir no modo de investigacio que se dard na propria relac4o psicoterapéutica. Parte-se do prin- cipio de que nao é 0 método com seus pardmetros que conduz: aquele que se investiga ¢ que traga 0 caminho da investigagao. O psicoterapeuta, pautado na proposta da fenomenologia, vai proceder a investigacio do homem em relagaio deixando que 0 que se mostra, faga-o a seu modo proprio, ea partir de si mesmo. Este método, em psicoterapia, vai seguir os seguintes aspectos, propostos por Husserl e adotados por Heidegger: —“As coisas em si mesmas”: 0 psicoterapeuta vai se dire- cionar Aquilo que se mostra em si mesmo, que se deixa ver, a propria revelag4o do ser. As coisas que se deixam ver. 114 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo — Evidéncia, tal como tomada na acep¢do de Heidegger nos Semindrios de Zollikon: Evidente (Offenbar) significa, se tomarmos seu significado mais claro e 0 desdobrar- mos, algo como notério, evidente, que vem de evideri, deixar-se ver, em grego eva- pyns, iluminar brilhantemente, mostrar-se a si mesmo. (HEIDEGGER, 1987, p. 12) So fenémeno: 0 psicoterapeuta vai buscar o que se mos- tra, sem nenhuma perspectiva de demonstragao. \ Aas estruturas da experiéncia: explicitam-se ¢ sao com- preendidas, portanto nao se explicam, nem se comprovam. \A transparéncia: o psicoterapeuta facilitando que o ser transpare¢a e nado o deduzindo segundo uma perspectiva tedrica, vai deixar que o sentido se mostre. —A compreensio da existéncia: a existéncia, enquanto fe- némeno, é captada indiretamente, mas nao por um mundo interno desconhecido, porém pelo seu modo préprio de mostrar-se. O “ser em si” nao se esconde atras de aparén- cias, o fendmeno é apreendido através de perspectivas, na medida em que se desvela. Heidegger, atento ao modo de investigag4o, nao pretende ca~ racterizar 0 objeto, mas buscar o seu modo de expressao. Pre- tende, ainda, apreender o sentido via interrogagao e, ent&o, desvelar 0 ser-do-ente, que permaneceria oculto, quanto mais a preocupacao consistisse em aprisiond-lo para conhecé-lo A clinica psicolégica, nesta proposta, recorre a investigagdo do modo de ser do homem, ser-ai 0 considerando nao como uma unidade fechada, com algumas caracteristicas que a definam. A busca se dard na forma do se mostrar do ente, podendo até mos- trar-se como nfo é: aparéncia. Pode mostrar-se, ainda, através de 115 be AAD 2 AULD GRIPES Ges patioernnnemne neuocmemsamemmpinenmenmaneetenten indicagées de coisas que, em si mesmas, nado se mostram, apenas se anunciam: manifestagao. Pode, ainda, mostrar-se e ao mesmo tempo esconder-se — 0 que Heidegger denomina “entulhamento”. Heidegger propde que, na investigacao do ser, se parta da- quilo que é evidente rumo 4 fundamentagao. Assim procede o psicoterapeuta, quando tenta elucidar o dito do cliente. Este, em sua fala, traz evidéncias do seu sentido e, somente quando tais evidéncias sao aceitas por cle proprio, 0 psicoterapeuta pode pro- ceder as suposi¢des. Pode-se, porém, levantar a seguinte questao: como explicitar o sentido, para que ele possa ser aceito como evidente? Heidegger propde que se deixe transparecer 0 sentido do ser através de seus momentos constitutivos: 0 questionado, o perguntado e o interrogado. Em psicoterapia, busca-se 0 sentido daquele que se apresenta em estado de queda, tomando-se como algo que é determinado apenas pelo impessoal: o interrogado. Quanto ao questionado, ou seja, este homem que se perde de si mesmo, ai se da a procura. O analista desta orientagdo deve buscar 0 modo proprio de-acesso ——— ao ser questionado, pela fe forma tal qual ele se mostra e indica 0 caminho, Cabe ao analista reconhecer que ele e 0 analisando estado inseridos no horizonte histérico em que se encontram. Logo, partem de vis6es e posturas prévias, naquilo que consiste os seus modos de ser. Interroga-se 0 préprio ente em seu ser; aqui se daa estrutura escuta e fala, assegurando-se um modo propicio de acesso ao sentido articulado pelo analisando. Este modo de investigac4o jamais passa por um processo dedutivo, porém des- critivo. Ao partir da dedugao, considera-se 0 nao-evidente c o ser sera conhecido por caracteristicas escondidas. Ao se mostrar, sera conhecido apenas o que se mostra, sem nada existir por tras. 116 3.2.1.2 - A hermenéutica e 0 circulo hermenéutico A hermenéutica, em uma perspectiva metatedrica, tomada como processo de compreensio, constitui-se no circulo herme- néutico tal como proposto por Heidegger, em que o préprio su- jeito da compreensao esta inserido no circulo, por sua condigao originaria de pré-compreensiao. Heidegger (1990) concorda que a hermenéutica, convenien- temente ampliada, pode designar a teoria e metodologia de qual- quer género de interpretagdo. Afirma, ainda, que emprega o termo hermenéutica em Ser e tempo numa tentativa de determi- nar a sua interpretagdo a partir do que ¢ hermenéutico. Continua: [...] a denominagao ‘hermenéutica’ é empre- gada em Ser e tempo em um sentido mais amplo; porém, mais amplo nio significa pura € simplesmente ampliagao do mesmo significado a um ambito de validade ainda maior. ‘Mais amplo’ significa: procedente daquela amplitude que brota da esséncia ori- gindria. (HEIDEGGER, 1990, p. 89) No que se refere 4 hermenéutica, colocar-se-A em cena a nogao de circulo hermenéutico tal como discutido de forma radical por Heidegger. Essa nogio ¢ aqui introduzida como principio funda- mental de uma clinica psicoldégica. O circulo hermenéutico éaideia de que nunca ha a possibilidade interpretativa da existéncia que nio seja a partir de um horizonte fatico sedimentado, no qual sempre ha uma visdo prévia, uma | concep¢io prévia e uma posigao prévia. Na analise ‘existencial, o| © que esta em discusstio é 0 como romper ° circulo hermenéutico que aprisiona o ser-ai em comportamentos sedimentados no impessoal. Rompimento que consiste na possibi- lidade de, diante de uma experiéncia-limite, suspender 0 poder prescritivo do horizonte hermenéutico em que estamos inseridos. M7 CAPITULO 3. Uma proposta de psicolerapia fenomenolégico-existencial Desta forma, pode, ent&o, a hermenéutica ser utilizada em psi- coterapia, substituindo a interpretacao psicodinamica da psica- nalise ¢ a explicagao behaviorista. Nas palavras de Sa: No caso da clinica, apesar de muitos prin- c{pios da hermenéutica terem aplicagdo di- reta, isto nfo significa que ela deva constituir-se em uma nova teoria clinica ao lado de outras, Seu papel deve ser, antes de tudo, fornecer um apoio metatedrico para que © psicoterapeuta tenha uma relagdo mais livre, isto é, mais critica ¢ transdisci- plinar com seu campo propriamente ted- | rico. (SA, 1998, p. 31) Na propria afirmativa de Heidegger (1990, p. 113), “é a fala que dé voz a hermenéutica.” E ainda: “A fala é 0 trago fundamental da relagdo hermenéutica do homem com a duplicidade do ser-ai e do que € presente.” O processo de escuta e fala em psicoterapia vai tomar a hermenéutica como modalidade de compreensao. Compreensao como originariamente constitutiva da existéncia hu- mana ¢ que precede qualquer interpretacdo. “Interpretar é elaborar € tematizar o previamente compreendido.” (SA, 1998, p. 30) O psicoterapeuta, assim como Hermes na mitologia grega, atuard como mensageiro da palavra. Da mesma forma que Her- mes, 0 psicoterapeuta no vai ocupar a casa do outro, morada do Ser, mas vai habita-la para, entio, poder entender o que o outro entende. Acompanhara aquilo que o cliente revela na sua fala, mesmo quando silenciar. Direcionar-se-A de acordo com aquilo que lhe é dado, agindo em um espago de expressio livre. O psi- coterapeuta compreende 0 outro e isto consiste em captar a in- terpretagao de mundo que o outro é. Abre, entio, possibilidades para o proprio se questionar em seu ser mais proprio. O psicote- Tapeuta, ao se permilir pensar sobre 0 “modo do didlogo”, possi- 118 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo bilita o emergir do ser-do-ente, de forma que a fala se dé em li- berdade, como possibilidade do ente. 3.2.1.3 - A questao da técnica A psicoterapia, entendida em uma perspectiva pratica, na qual a$ pessoas que buscam esta modalidade de tratamento acredilam dele extrair resultados, nao poderia ser tomada como técnica, no sentido moderno? “Sim” e “nao”. “Sim”, quando a psicoterapia se pauta em uma perspectiva positivista, humanista, subjetivista, que consiste em técnicas, | cujos resultados visam a produtividade, 4 adequa¢do com a exi- \ géncia da “public-idade”, do impessoal. “Sim”, quando a psico- | terapia se pauta na extragao dos recursos de que o homem dispde para atingir 0 sucesso socialmente determinado como tal. E “sim” com a psicoterapia estruturada como utilidade pratica. “No”, quando se trata da técnica em uma perspectiva de apreensdo daquilo que se produz a si mesmo, deixando que 0 ser- ai venha a presenga tal como se constitui no seu modo de ser. Trata-se, aqui, da psicoterapia como um tornar manifesto o que é presente. Nao importam, nesta perspectiva, os resultados, em- bora se pense em consequéncias, pelo modo de articular o mundo em liberdade, assumindo suas proprias escolhas, seu cardter de poder-ser. O psicoterapeuta vai atuar como um facilitador, cuja produgio vai consistir em deixar aparecer o que se oculta, tal como um escultor — no mdrmore — deixa aparecer uma forma, constituindo a arte de desvelar 0 oculto. A psicologia clinica em uma perspectiva fenomenoldgico- existencial possibilita um pensamento meditante, abrindo a pos- sibilidade aquele que, em angustia, clama pelo seu poder-ser mais proprio, de reconhecer-se como ser-para-a-morte pois, ao 119 SEES MINN RAPS tas encontrar-se perdido no impréprio, obscurece a sua possibilidade mais prépria. Neste querer-ter-consciéncia, pode descobrir-se em sua liberdade, tanto no que se refere 4 utilizacao das coisas, como no seu proprio fazer-se no mundo, Pode, ainda, descobrir sua se- renidade no “inttil”, e ndo ansiar para se lornar um objeto de uti- lidade, para adequar-se as exigéncias do mundo do das Man Nesta perspectiva, a psicoterapia — como pensamento medi- tante e nfo-calculante — seria ela propria uma meditagdo, mesmo sendo apontada pela sociedade atual como um processo “inttil”, O psicoterapeuta, no lugar de artes&o, atuaria como tal na criagao de um discurso libertador, no qual residiria sua criagao, permitindo que aquele que deseje se reencontrar dé-se a conhecer. 3.2.2 - A ontologia de Heidegger e os fundamentos de uma proposta em psicoterapia Trata-se de uma psicoterapia como um remeter-se a uma and- lise do existir na dimensao da analitica da existéncia. A proposta consiste, ent&o, em trazer a ontologia de Heidegger para uma re- lagdo dialogal. Em Zollikonner Seminaire, que resultou de semi- narios coordenados por Medard Boss, Heidegger permite pensar na possibilidade de trazer sua filosofia para a psicoterapia: Empregamos a psicologia, a sociologia ec a psicoterapia para ajudar o homem a ganhar adaptagao ¢ liberdade em seu sentido mais amplo. Isso diz respeito a medicina e A so- ciologia, porque todo o distarbio sociold- gico € patolégico é um disturbio da adaptagao e da liberdade do homem singu- lar. (HEIDEGGER, 1987, p, 199) Em Ser e tempo, Heidegger refere-se ao ser-af como uma tota- lidade estrutural que se mostra na cotidianidade mediana, imprépria 120 © impessoal, porém sempre como abertura para possibilidades de outras formas de expressio, quais sejam pessoais, proprias e sin- gulares. Ser-ai constitui-se em um ente aberto as possibilidades — logo, em liberdade em seu modo de ser. Constitui-se, entio, no jogo do impréprio e do préprio. Na verdade, nada se estrutura como de- finitivo, pois € o préprio carater de abertura, que abre sempre as possibilidades — tanto em diego a autenticidade como a inauten- ticidade. Ao modo da impessoalidade e da inautenticidade, o ser-ai tende ao fechamento. Os limites de sua abertura para o mundo res- tringem suas possibilidades. Em fechamento, o homem esquece-se do seu poder-ser e reconhece-se como presenga a vista. Na duplicidade “ente e ser”, ser-af pode esquecer-se do ser e A tomar-se como ente. Perdido no ente, escolhe 0 modo como 0 im- pessoal determina que deva escolher. No mundo do das Man, | perde-se no impessoal, no impréprio e no inauténtico. Esquece- | se de sua liberdade de escolha das possibilidades ¢ passa a viver f no “E”,“B” apenas as propriedades que o mundo Ihe atribui. “E”, | apenas no conformismo da massa, mais uma “ovelha no rebanho.” | Ser-ai, no movimento do ser e ente, clama, tomado pela an-} gustia por ser si prdprio, pessoal e auténtico, que implica, em ul- | tima instincia, reconhecer-se como um poder-ser que ruma sempre para a finitude. Tal clamor ocorre, mesmo que na forma | de estorvo e inquietude, mesmo que silencioso ou disfargado nos \ afazeres cotidianos. Incomoda, mas abre a possibilidade de uma __ escolha singular. Muitas vezes, ainda esquecido de sua liberdade, o homem justifica-se pelas situagdes exteriores: o governo, os pais, o inconsciente, enfim. Outras vezes, no entanto, 0 inedimndo/ o mobiliza, ¢ ai vai em busca de sua possibilidade mais pedpria:\ seu poder-ser, Na busca de cuidado, pode-se procurar um médico, um feiti- ceiro ou um psicdlogo. O médico, normalmente, confere o mal 121 caPiTULO 3. Uma proposta de psicoterapia fenomenoldgico-existencial ao corpo, exime 0 que o procura da responsabilidade e dele se preocupa no modo substitutivo. O feiticeiro também vai se preo- cupar deste mesmo modo. O psicélogo, por sua vez, pode modi- ficar as contingéncias e 0 comportamento, ou ainda atrelar a questio trazida aos motivos inconscientes. Pode também, na an- gustia, buscar a questao gue ali se encontra. Nas duas primeiras modalidades de atuagao, ocorre sob a tutela do psicélogo, que substitui o cliente decidindo por ele; na ultima, a relagdo se es- tabelece de modo que o psicélogo dé um passo atras e devolva ao cliente 0 cuidado de si. 3.2.2.1 - 0 ser-em: a escuta e a fala em psicoterapia Nos Semindrios de Zollikon, Heidegger refere-se a psicologia como uma proposta para ajudar o homem a ganhar sua liberdade. Diz, ainda, que é a angustia que langa o ser-af frente a frente com sua liberdade e responsabilidade, tentando romper com 0 circulo hermenéutico em que este se encontra. Ao se tomar o eu como abertura, auséncia dinamica em jogo com o mundo, e ao se assumir a fenomenologia hermenéutica como atitude interpretativa frente ao fendmeno, passa-se a esta- belecer uma outra articulac4o para a psicologia a partir da feno- menologia e da hermenéutica. Inaugura-se, entdo, uma outra atuag4o clinica, ou seja, um novo comportamento clinico que, inspirado em Heidegger, recebe a denominagao de daseinsana- lise. Para se proceder a uma clinica fenomenoldgica, parte-se do pressuposto de que toda e qualquer teoria acerca da existéncia humana deve ser suspensa para que, assim, seja possivel se apro- ximar do fenédmeno — no caso, a quest&o trazida pelo paciente, atendo-se a todo o detalhamento de como se da o acontecimento em questao. 122 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo Em uma postura hermenéutica, consideramos os horizontes hermenéuticos que estardo sempre presentes na situagao clinica, ¢ 0 que de fato se interpreta so os encontros de horizontes, que consistem precisamente no que se fala e se escuta. Este choque de horizontes é 0 horizonte mesmo de apreciagao do que acon- tece no encontro clinico, ou seja, da aparigao da coisa. A tarefa de uma clinica “daseinsanalitica” consiste, primeira- | mente, no fato de que o analisando precisa ser 0 mais preciso | possivel em suas descrices ¢ o analista deve, incessantemente, | atentar para as interpretagdes do paciente, tentando, assim, al- cangar uma compreensdo daquilo que esta em jogo na descrigaéo \ do analisando. Em continuidade a esta tarefa, precisamos, tam- \ \ bém, quebrar ou destruir os comportamentos ontoldgicos presen- \tes nas descrigdes do analisando. Esta clinica consiste em abrir um espago para que 0 outro se conquiste em sua alteridade. Abrir , sem mapear um caminho que leve espago, sem conduzir; traduzi ‘a algo como uma conscientizagao. Em uma visada hermenéutico-fenomenoldgica, 0 problema consiste no aprisionamento em nossas hist6rias, nos modos como vamos sufocando nado o problema que temos, mas 0 problema que “nds” somos. A tarefa de uma clinica fenomenoldgica con- siste em quebrar 0 aglomerado de yivéncias que se dio na mis- tura de campos intencionais e que provocam a quebra do fluxo do tempo do eu. E, assim, possibilitar que o instante ¢ lugar do acontecimento se deem. Levamos 0 analisando a aperceber-se das suas vivéncias proprias ¢ a colocar-se diante do campo in- tencional em que 0 fendmeno se constituiu. O caminho da feno- menologia, como atitude de investigagao dos modos de ser do homem, na hermenéutica de Heidegger, busca 0 modo como este homem articula sentidos, que se mostram em sua fala. A escuta do psicoterapeuta vai se dar no desvelar desses sentidos, atuando 123 capiTuLo 3 Uma proposta de psicoterapia fenomenolégico-existencial de forma a captar a expresso do ser-em em seu falatério, curio- sidade ¢ ambiguidade. A investigagao de si por si mesmo pode ocorrer na relagao psicoterapéutica, em que o psicoterapeuta vai assumir o lugar de mensageiro do discurso do cliente, em um processo mituo de corresponder e “des-prender”, tal como entendidos por Heideg- ger (1990) em sua perspectiva ontoldgica. No corresponder, a fala se desprende quando escuta. No des-prender, a escuta se da simultaneamente com o responder. Compreende-se que é assim que se da o processo de “escutas e falas” do psicoterapeuta e do cliente. Em uma psicoterapia na perspectiva ora proposta, a articula- go se dé na busca do sentido do homem que se mostra em sua fala. Na escuta do psicoterapeuta, vai se dar a investigacdo desse sentido, atuando de forma a captar a expresso do ser-em em seu falatério, curiosidade e ambiguidade. Ao modo da disposicao, da compreensao e do discurso, ser-ai em sua impropriedade revela- se como ambiguidade, curiosidade e falatério, Através da articu- lagio do processo psicoterapéutico, o psicoterapeuta podera entao, através de sua fala, facilitar 0 reconhecimento do poder- ser. O processo psicoterapéutico consiste no tecer das palavras (CANCELLO, 1991), segundo wm corresponder, como entendido por Heidegger: um falar que se des-prende quando escuta, e em um des-prender ~ escuta, ao mesmo tempo em que responde (HEIDEGGER, 1990). Heidegger diz em Ser e tempo que a conex4o do discurso com a compreenséo € sua compreensibilidade torna-se clara a partir de uma possibilidade existencial iminente ao proprio discurso, qual seja, a escuta. Discurso e escuta se fundem na compreensao € o homem se mostra como ente que é no discurso. 124 Ana Maria Lopez Lalyo de Feijoo Convém lembrar que, na psicologia, a fala é considerada o instrumento fundamental na tarefa do psicélogo. Alguns teéricos desta area do saber enfatizam a importancia daquilo que € ver- balizado. Monique Augras afirma ser a linguagem 0 instrumento de que o homem dispée para explicitar sua situagao. Diz, ainda: A fala, pelo seu carater fisico e abstrato, in- terpretativo e manipulador, concentra em si todas as modalidades de formulagao e \ atuag&o do ser no mundo. Para atender ao \ objetivo inicialmente proposto, qual seja o de encontrar na situacdo existencial subsi- dios para estabelecer uma compreenséo in- | dividual, o questionamento da linguagem afirma-se como meio necessario 4 investi- gacdo. (AUGRAS, 1981, p. 146) 3.2.2.2 - Testemunho, débito, angustia e ser-para-a- morte Constitui-se como préprio do ser-ai o estar-em-débito, A de- ciso antecipadora reconhece o estar-em-débito como algo que a constitui, quando ser-ai se reconhece na transparéncia e na abertura do seu ser mais préprio. Ser-ai, na decis&o antecipadora, responde ao clamor da cons- ciéncia do seu “poder estar-em-débito” como mais proprio e irre- missivel. Na fuga desta situacfo, de si mesma, frente ao cardter ameacador daquilo de que'se foge, ser-ai cai no impessoal, no mundo das ocupagées. Foge da estranheza de si mesmo que, no entanto, nao se firma pois na estranheza, no modo de angistia, ser-ai singulariza-se, retirando-se da de-cadéncia, alerta para o impréprio e clama para o mais proprio. Ser-ai, no entanto, precisa do testemunho de um “poder-ser-si-mesma” que, enquanto pos- sibilidade, é sempre si mesma. A consciéncia pode tornar-se tes- temunho de si mesma, e assim se faz no seu clamor “voz da 125 \ \ CAPITULO 3. Uma proposta de psicoterapia fenomenoldgico-existencial consciéncia”, abrindo a possibilidade de escuta. Tem-se o querer- ter-consciéncia, onde transparece a totalidade estrutural: cuidado. © querer-ter-consciéncia, como modo de abertura, se constitu na disposigao, compreensio € discurso. A psicoterapia deve, no minimo, ndo atuar para dissipar esta tonalidade afetiva para que, uma vez 0 analisando se abrindo para sua estranheza, possa per- mitir o surgimento de uma escolha singular, retirando-se, nem que seja por um momento, da compreensio ditada pelo “impessoal” que, obscurecendo as possibilidades, ser-af dé-se a0 modo do es- pagamento, medianidade e nivelamento. Modos pelos quais ser- aj se encontra no inicio e na maioria das vezes, No espagamento, 0 ser-com se constitui com os outros; na medianidade, 0 ser-com desconhece a si € aos outros; no nivelamento, suas possibilidades nivelam-se com as de todos. Em uma narrativa fenomenoldgica, importa o modo como uma hermenéutica-fenomenoldgica vai se dando, em um horizonte fundido, abrindo espago para que o ana- lisando aparega para si mesmo. Ao se abrir para 0 ser-para-a- morte, suas possibilidades mais proprias sfo assumidas, Desta forma, nfo encobre nem foge da morte, porém compreende sua propria possibilidade, como certeza de seu ser-para-o-fim. A compreensio existencidria, que projeta o ser-ai para as pos- sibilidades cada vez mais préprias do “poder-ser-no-mundo”, constitui-se no humor da estranheza de sua singularidade. Eo querer-ter-consciéncia na disposigao da angustia, que se abre para _o discurso originatio, O siléncio, retirando a palayra do fa- latério, mostra o estar-em-débito, conduzindo o si-mesmo 4 com- preensio, afastando-o da curiosidade do impessoal. 3.2.2.3 - 0 cuidado: a relacdo psicoterapéutica O cuidado constitui-se como a totalidade da unidade estrutu- ral do ser-af, constitui-se no pér-se para fora, movimento do exis- 126 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo tir, O cuidado como processo de constituigdo do ser-ai se da no acontecer, isto 6, no tempo. Cuidar constitui-se no exercicio da pre-ocupac&o com o acontecer. Portanto, pode-se falar do ocu- par-se do acontecer no seu sentido mais préprio do “pre” — ou seja, do ser como cuidado. A psicoterapia aqui proposta se da no sentido do acompanhar esse acontecer. Trata-se de uma psicoterapia-em-que.o psicotera- _peuta participa do acontecer do cliente. O ser do ser-ai se constitui como um ser-com. Neste modo de ser, jd estd presente a condicao de compreensio dos outros. O modo originario de ser-com possibi- lita ao ser-ai o conhecimento e 0 reconhecimento do outro. E € este mundo compattilhado que abre espago para a psicoterapia. Encon- tra-se af o cfrculo hermenéutico — consiste na idéia de que nunca ba a possibilidade interpretativa da existéncia que nfo seja a partir de um horizonte fatico sedimentado, no qual sempre ha uma visao pré- via, uma concepgao previa e uma posigao prévia. Na daseinsanalise oO que est em discussio é 0 como romper o circulo hermenéutico que aprisiona o ser-af em comportamentos sedimentados no impes- $$$ soal. Rompimento que consiste na possibilidade de, diante de uma experiéncia-limite, suspender 0 poder prescritivo do horizonte her- menéutico em que estamos inseridos. A questo que se impée €: como se dé a relagiio psicoterapéutica na perspectiva fenomenold- gico-existencial? Toda e qualquer relagao é cuidado. E, a relagéo que o ser-ai estabelece com outros providos do mesmo carater de abertura, Heidegger denomina preocupa¢éo. A pre-ocupagao se apresenta também em duas possibilidades: pre-ocupagio substitu- tiva e anteposigao libertadora. Sd (1999) refere-se a essas duas for- mas de pre-ocupagiio como possiveis na atuagao psicoterapéutica Na pre-ocupag&o substitutiva ou substituigao dominadora, a psi- coterapia se daria através do dominio do outro. As técnicas, neste caso; visariam a resultados, e o cliente seria dominado e submisso 127 CAPITULO 3 Uma proposta de psicoterapia fenomenolégico-existencia! A técnica, no sentido moderno de recursos a serem explorados. Neste modo de preocupacdo, o psicoterapeuta assume a tutela do outra, onera-se do cuidado do outro e Ibe diz 0 que deve fazer, Na pre-ocu- pagao de anteposi¢4o ou antecipagfo libertadora, a relagiio psicote- fapéutica se funda na liberdade de escolha por parte daquele que clama pelo seu ser mais proprio, ov seja, pelo seu carater de poder- ser. Segundo Heidegger (1986, p. 174), “ajuda o outro a tornar-se cm sua cura, transparente em si mesmo e livre para ele.” Aqui, a re~ lacdo se constitui como técnica, no sentido origindrio de desvela- mento, ¢ o psicoterapenta desonera-se do cuidado que sempre é do outro ¢ da um passo alras, deixando o outro sob a sua propria tutela. © mundo préprio canstitui-se com suas préprias possibilida- des ¢ limites. A psicoterapia, nesta perspectiva, nao pensa em ter- mos de realidade, mas de possibilidades. O psicoterapeuta prossegue no cuidado com o cliente na abertura de caminhos, restabclecendo o movimento como acontecer. A clinica “daseinsanalitica” se estabelece muito mais em uma negatividade do que propriamente de uma identidade positiva. O ser-af que, marcado pela nadidade e pela fragilidade ontoldgica, busca a estabilidade do mundo — que se constitut em um apoio, suporte e tutela. Mas é exatamente esta busca que o coloca na ca- déncia do mundo: esquecendo-se do scu préprio ritmo, acaba obs- curecendo 0 seu carter de poder-ser. Sao as situacdes-limite que, ao entrarem na articulagao do ser-ai e mundo, rompem com os sentidos sedimentados no circulo hermenéutico e 0 vazio aparece, eno nada padece. A angustia emerge como um mobilizador exis- tencial que, imediatamente, abre duas possibilidades: na tentativa de livrar-se da angustia, o ser-ai ou bem retoma a tutela do mundo e volta aquilo que Ihe é familiar, ov bem concretiza-se no poder- ser, singulariza-se — 0 que consiste na perda, nem que seja por um instante, da tutela do mundo. 128 CAPITULO 4 Metodologia A investigago acerca da estrutura da escuta e fala em psico- terapia ocorreu em duas etapas. Na primeira, foi utilizada a fe- nomenologia como modalidade de investigagao, em que a coleta e andlise das informagées obtidas deram-se de forma qualitativa. A partir do estudo atento de diferentes sessdes psicoterapéuticas realizadas por quatro psicoterapeutast que atuam com base nos pressupostos fenomenoldgico-existenciais, averiguaram-se ag es- truturas fundamentais subjacentes na relago psicoterapéutica. A segunda etapa da investigac4o consistiu em uma investiga- géo fenomenoldgica de um didlogo clinico. Foram cuidadosa- mente estudadas cada “fala e escuta” do psicoterapeuta e do cliente. A partir de uma leitura detalhada, p6de-se acompanhar o modo como se dé uma psicoterapia pautada na fenomenologia hermenéutica como modalidade de compreensdo, esclarecendo as estraturas fundameniais obtidas na primeira etapa e articu- lando-as com a fundamentagao filoséfica. 4 Os psicoterapeutas colaboradores desta pesquisa foram: Myriam Protasio, Ber- nadete Medeiros Lessa, Luciana Oliveira e Rita Luzia Nielsen. 129 caPiTULO 4 Metodologia 4.1 - 0 método fenamenoldgico Utilizou-se o método fenomenolégico em um primeiro mo- mento, por considerd-lo um recurso apropriado para investigar o sentido da experiéncia — no caso, em psicologia olivica e, mais especificamente, no processo de escuta e fala que ocorre emi psi- coterapia, importando chegar 4 identificagao das estruturas sig- nificativas que compéem este processo. Como afirma Augras (1981, p. 23): “A investigagaio fenomenoldgica propde-se a iden- tificar estruturas significativas, a partir da observagao das ima- gens elaboradas pela vivéncia cotidiana.” As sessées psicoterapéuticas investigadas foram gravadas e transcritas, diferindo quanto 4 esséncia da problematica levada A terapia. Os psicoterapeutas participates deste estudo atuavam na perspectiva fenomenoldégico-existencial. Iniciou-se esta in- vestigagio com quatro psicoterapeutas. No entanto, no decorrer da pesquisa, outros psicoterapeutas® trouxeram suas sessdes, que acabaram por contribuir para a andlise realizada. Os dados referentes 4s sessdes foram analisados através de uma proposta fenomenoldgica da andlise com a apuragéo dos significados que estruturam o processo psicoterapéutico. Atra- vés das redugdes fenomenoldgicas, puderam-se destacar as uni- dades de significados implicadas no processo psicoterapéutico, uma vez que a redugdo consiste na busca do sentido, partindo do significado. 5 Sanitella Cappola Defelippe, Elaine Lopez Feijoo, Thays Baho, Cristine Mon- teiro, Valéria Barbosa, Patricia Rio, Elaine de Oliveira e Ana Margarida Chagas. 130 | Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 4.1.1 -A andlise fenomenoldgica A pesquisa seguiu as etapas propostas por Brice (1991), que tambéin as utilizou ao investigar a estrutura do luto materno. As fases, respectivamente, sao: 1°) dedugdo de unidades significativas, através do sentido da totalidade e da complexidade que aparecem nos discur- sos psicoterapéuticos; 2*) delineamento dos aspectos centrais expressos nas uni- dades de significado; 3°) descrigao das tematicas principais do processo psico- terapéntico; 4") descrigao estrutural situada do processo de escuta e de fala, bem como dos elementos constitutivos deste pro- cesso; 5°) caracterizagao estrutural geral. As falas constituem as unidades de significado, destacadas através das questdes que aparecem em algumas relagdes psico- terapéuticas, Os seus aspectos centrais foram devidamente deli- neados ¢ suas temAaticas descritas no modo em que apareceram a0 processo. O destaque foi dado as formas como aparecem tais questées ¢ As possibilidades de atuar do psicoterapeuta até a ca- racteriza¢Ao geral de um processo de escuta e fala, que possibilita conhecer mais do oficio do psicdiogo. 4.1.1.1 - A fala do cliente A investigacdo, em um primeiro momento, ateve-se 4 fala dos clientes. Delas foram extraidas algumas tematicas que ocorrem no contexto psicoterapéutico, a titulo de ilustragado. Algumas pos- siveis seriam: 131 caPfiuLo 4 Meiodologia a) Culpa existencial — 0 cliente mostra no seu discurso a culpa existencial de varias maneiras. Aparece, por exemplo, como lamentagao das possibilidades que nao foram escolhidas, da seguinte forma: Ah! Se eu tivesse... A queixa fica em torno da- uilo do qual ou abriu mao. A culpa existencial pode ser exemplificada pela fala de uma mulher de 44 anos que se queixava de depressdo da seguinte forma: Quando casei, meu marido me proibiu de estudar. Falou: ou estudo ou casamento. Eu casei e hoje fico muito triste porque ndio sou a advogada famosa que eu sempre quis ser. Ah! Que ar- rependimento. Ah! Se eu tivesse estudado, hoje ndo estaria aguentando marido e filhos. Na visio existencialista, aculpa existencial caracteriza-se pelo aprisionamento do existente aos acontecimentos passados. Assim, nao se langa para o futuro. A culpa, para Kierkegaard, se da pelo fato de a liberdade nao ter sido exercitada em suas possibilidades. Para Heidegger, trata-se do débito que, sob a forma de lamenta- odo, clama pelo devir como ser mais préprio. O psicoterapeuta traz 4 tona a expresso do cliente, mobilizando-o a assumir 0 ca- rater de Jiberdade de escolha e, também, clarifica para este que, 4 medida que se lamenta, permanece na mesma escolha, Um exem- plo da fala do psicoterapeuta: Parece que, no passado, vocé opiou pelo casamento e, hoje, vocé se lamenta pela escolha do passado. b) Medo existencial — expresso pelo cliente através da para- lisacdo no pre: ente, Acreditando-se nfio escolhendo, cré que nao corre risco, por imaginar que, desta forma, controla a imperma- néncia da existéncia, Um relato de uma mulher de 54 anos, em dtvida entre dois relacionamentos: Eu ndo vou me encontrar com ele, ndo sei o que pode acontecer. Tenho medo do que vou ouvir. Prefiro esperar que as coisas se resolvam por si mesmas. En- quanto isto, fico sozinha, mesmo temendo a soliddo. 132 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo c) Angustia existencial — sentimento de estranheza, da inquie- tude, onde se fala: “um ndo-sei-o-qué”, que traz o querer-ter- consciéncia. Nao querer ter consciéncia, trata-se de um engodo, fadado a vivenciar a angustia em plenitude, porque se sabe esco- lhendo, porém se justificando pelo medo, pelo panico, pelo outro que impede, Sente como se sua liberdade niio Ihe pertencesse, em- bora sabendo de sua pertenca. Relato de uma mulher de 30 anos: Eum mat-estar, sinto que ndo estou bem, mas ndo tenho do que reclamar, meu casamento, meus filhos, tudo esté bem. Mas eu me sinto estranha como se as coisas ndo estivessem bem na minha vida, O psicoterapeuta existencial atua mantendo a anglstia frente Aquilo que sustenta a questo, nao facilitando a fuga para o im- pessoal. Pode atuar da seguinte forma: Mesmo que tudo em iorno de vocé esteja bem, em vocé mesma as coisas vdo mal. d) Perda no impessoal ~ perde-se 0 proprio referencial, quer a tutela do mundo. O discurso compde-se pela incapacidade de tomar decisdes: pergunta sempre ao outro sobre como deve agir, inclusive ‘a0 psicoterapeuta. Sente-se perturbado pelas observagdes do outro a seu respeito, Como um barco a deriva, sente-se feliz frente ao elogio do outro e infeliz frente a critica, Sua acao é mediada pela insegu- Tanga € suas possibilidades, desconhecidas. A fasta-se de seu ser mais proprio, na medida em que se perde no impréprio, no impessoal. Uma cliente queixando-se de suas filhas: Elas ndo cuidam bem dos seus filhos e eu sofro por isto, afinal, sto meus netos. O que vocé me aconselha a fazer? Eu lina revista que a experiéncia da avé deve se fazer valer. Eu nao sei, mas vocé, que é psicdloga, deve saber. A perda do proprio referencial é revelada pelo pleno desconhe- cimento do seu sentido, do seu projeto, desconhecendo, também, os proprios referenciais. O existente fica A mercé do que lhe dizem, das normas que lhe s&o impostas. Perde-se no mundo, nao sabe 0 que € seu e o que é do outro. O psicoterapeuta, nestas situagdes, 133 CAPITULO 4 Metodologia pode atuar de forma a buscar — juntamente com o cliente — seus re- ferenciais. Deve cuidar para que as suas crencas nfo sejam jamais passadas ao cliente e também cuidar para que nao indique qualquer caminho ao cliente, mesmo que este insista que diregGes lhe sejam indicadas. Nesta situagdo, uma das possibilidades terapéuticas é clarificar a forma como abre mio de sua liberdade, deixando que o outro escolha por ele: A revista te diz que o que vale é a experiéncia } da avo. Agora, vocé quer que eu te diga o que vocé deve fazer. E assim, vocé vai vivendo, perguntando aos outros o que deve fazer. ce) Rigidez frente ao referencial préprio — Neste caso, 0 existente perde-se em si mesmo e desconsidera 0 mundo ao seu redor, O existente, na condigfo de compreensibilidade, percebe seus critérios como sendo o referencial do mundo. Vive tao au- tocentrado, que qualquer situago que esteja em oposigao ao que acredita constitui-se em um grande erro, e mais: tem a intengao de atingi-lo. Esquece-se de que o mundo do ser-ai ¢.o mundo compartilhado, 0 ser-com. Relaciona-se com o outro de modo a tutel4-lo e submeté-lo. As relagdes de convivéncia se dao na forma de desconfianga ¢ indiferenga. Liga-se apenas a si proprio. Fala uma cliente, referindo-se 4 sua mae: Ela atrapalha meu ca- samento. Esta sempre ali. Meu filho diz que nao tem nada de- mais. Eu fico magoada com ele, ele nao se coloca no meu lugar. Nao sabe o que é isto, acho que ele quer é me ver mal. No discurso, coloca-se sempre no centro, utiliza-se demasia- damente do pronome “eu”. Diz que todos est&o errados — ou que sfio contra ele ou nutrem por ele uma grande inveja. Os fatos sao relatados com tamanha légica, que ndo deixa possibilidade de discordancia, inclusive por parte do psicoterapeuta. Este modo de mostrar-se requer muito tato do psicoterapeuta, uma vez que este pode se tornar aos olhos do cliente um grande invejoso e, desta forma, romper-se a confianga. 134 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo A principio, e até mesmo em todo 0 processo, a postura do te- rapeuta ¢ de aceitagado © centrada no prdéprio relato do cliente, tentando astutamente descentrar o referencial do cliente na sua propria ago. Por exemplo: quando o cliente traz uma queixa de alguém (do chefe, de seu pai, enfim, de alguém que tenha alguma ascendéncia sobre ele, e o aborde de forma autocentrada), o psi- coterapeuta, a partir deste relato, pode mostrar-lhe, pouco a pouco, indiretamente, que o outro existe em uma relagado. A at- mosfera, o astral é frequentemente de raiva do outro, de vaidade e orgulho. As relagdes estabelecidas vém carregadas de conflito. f) Projeto de aceitacdo e aproyacao por parte do outro —o0 discurso do cliente, na maioria das vezes, revela-se de forma re- ticente, pois ele espera conhecer um pouco mais do outro, para poder mostrar-se de acordo com a expectativa daquele com quem. se relaciona. Nos primeiros contatos, a ansiedade é sua marca, re- gistrada, parecendo inseguro, fragil. Uma adolescente de 18 anos traz o seguinte relato: Eu até sei que ndo devo ceder ds vontades do meu namorado, nem da mde dele, Mas também ndo quero parecer inconveniente, entdo pre- Siro mostrar-me como uma moga muito fina como eles querem que eu seja, também ndo é tanto sacrificio A existéncia presenteia o existente, no seu surgimento no mundb, pela falta de sentido e pela soliddo. Na tentativa de es- capar a solidao, o outro pode se tornar uma necessidade, impres- cindivel para que sua vida tenha continuidade. Quando o outro se torna uma necessidade, o sujeito em questao abre mao de seus referenciais. Embora conhecendo os seus valores, enfim seu pr jeto, seu sentido maior é escapar a solidao O psicoterapeuta, nestes casos, deve atuar de forma atenta pois, se deixa transparecer suas expectativas, é segundo tais ex- pectativas que o cliente vai se revelar. Caminha passo a passo, a 135 CAPITULO 4 Metodologia fim de que o cliente entre em contato com a sua soliddéo e com seu medo g) Dificuldade de assumir o sofrimento como possibilidade — a minimizacao do sofrimento aparece no relato do cliente e ocorre muitas vezes de forma a nao contar a realidade tal como ela o afeta. Foge da situagao, evita-a ou distorce-a. Na linguagem vem: “nado é bem assim”, “ele nao é tao ruim”, Justifica “o nao observar bem” pela falta de tempo, pelo medo de ser injusto, enfim, nado ha tempo nem espago para ver o que realmente acontece: Ku digo ruim com ele, pior sem ele, Ele tem muitos citimes, chega a me empurrar, mas é bom para mim, faz isto porque gosta de mim. Muitas vezes minimizar a dor consiste em uma estratégia que permite o alivio. No entanto, nao falar deste sentimento, implica em nao deixar que este se desfaga. O psicoterapeuta existencial pode manter a angustia frente & estranheza do cliente de sua propria condigéo, Mesmo que o cliente insista em nao falar de si préprio, o terapeuta insiste, su- tilmente, nos indicios, a fim de que o cliente tenha a oportuni- dade de se confrontar com a sua situagao h) Maximizagao do sofrimento — Nesta situagdo, o-cliente tenta convencer 0 outro o quanto é digno de piedade. O relato é rico em lamentagao. Vé o mundo com uma desconfianga ex- trema, utiliza “os olhos da imaginag4o” para, assim, dar ampli- tude ao seu sofrimento. Relato do cliente, adulto jovem: Ninguém na minha casa me entende, ninguém liga para mim. Eu Jago tudo por eles, mas quando eu preciso, me abandonam, ninguém dei- xou de viajar porque eu estava sofrendo, ndo consegui o emprego e eles até gostam, estavam felizes porque iam viajar. O psicote- tapeuta pontua 0 exagero, rompendo com “os olhos da imagina- cao”, trazendo a tona as incoer€ncias. i) Nao-aceitagio dos préprios limites — muitos clientes mos- tram-se insatisfeitos com suas condig6es, sejam financeiras, in- 136 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo telectuais ou sociais, Queixam-se, até mesmo, da sua constituigaéo fisica ou motivacional. Lutam desesperadamente a fim de torna- rem-se aquilo que em sua ago nao se realiza Em O desespero humano, afirma Kierkegaard: [...] € certo que um eu tem sempre angulos, mas dai apenas se conclui que é preciso dar- lbes resisténcia, e nado lima-los e de modo algum significa que, por receio de outrem, ou eu deva renunciar a ser ele proprio ou nao ousar sé-lo em toda a sua originalidade, na qual somos plenamente nés para nds pré- prios, (KIERKEGAARD, s/d, p. 39) A nio-aceitagaio do seu ser com suas possibilidades e limita- ¢6es pode implicar uma tentativa de limar seus 4ngulos, ou ent&o criar 4ngulos nao-possiveis, uma vez que somos nés préprios e nenhum outro. Relato da cliente com quase 30 anos, que queixa-se da perda da juventude: Nao quero envelhecer, 30 anos ndo da, nao queria sair dos 29 anos. O psicoterapeuta existencial, nestes casos, mui- tas vezes em primeiro lugar, amplia, dé voz a vivéncia desespe- rada, em que o existente se debate contra si mesmo, luta contra amaré. Depois, mostra-lhe como sua luta torna-se vazia; por fim, procede de forma que o cliente se esmere no polimento de seus angulos e deixe de tentar lim4-los, na medida em que se aceite em sua originalidade. Enfim facilita 0 acesso ao seu modo de ser que se faz em ato, na vida. Jj) Medo da solidao — ao perceber-se como langado e esta con- digo como algo inevitavel, este existente agarra-se ao outro como se agarra a vida. Aceita qualquer imposi¢40, mesmo que, para tal, tenha que abrir mao daquilo que, em si mesmo, Ihe é mais préprio, seu cuidado. 137 CAPfTULO 4 Metodologia Uma cliente de 21 anos: Eu prefiro ndo terminar o namoro, pois ndo aguentaria ficar sozinha, mesmo ele sendo dependente quimico e até correndo o risco de um dia acabar sendo presa com ele. Ainda é melhor do que morrer. Sem ele, eu morro, Esta cliente cuida de si ao modo do descuido. Cabe ao psicoterapeuta lembrar a cliente que o seu cuidado lhe pertence. k) Desconhecimento das proprias possibilidades ~ suas rea- lizagdes sao ditadas pelas determinagSes do impessoal, por desco- nhecer aquilo que faz, assume a posi¢do que é mais bem-vista. Neste caso, 0 modo de ser temeroso obscurece as suas possibili- dades, Uma arquiteta, muito valorizada pelos projetos realizados, posiciona-se da seguinte forma: Fico pensando que tenho que agradar meus clientes de todas as formas. Fazer tudo que eles exi- jam que eu faca. Ser bastante boazinha. Refazer os projetos todas as vezes que assim quiserem. Cobrar pouco. Penso que se deixar de fazer assim, vou ficar sem trabalho. O psicoterapeuta pode ent%o questionar estas certezas. Desfazer este aglomerado, no qual percep¢ao, lembranga ¢ expectativas encontram-se emaranhados. L) Projeto idealizado de si mesmo — nao aceita cometer erros, equivocar-se. Est4 no mundo para realizar-se como perfeigéo, tendo de dar conta de todas as possibilidades. Acredita que assim nao ficara em débito, embora, com relag4o ao passado, sinta-se sempre em débito. Muitas vezes, aquele que assim se encontra chega ao psicdlogo com pretensdes de curar-se, tornando-se perfeito, inatingivel, infalivel, nao mais vulnervel as contingéncias do mundo. Idealiza uma situagio de vida perfeita. Quer tornar-se um ente pronto ¢ acabado. Segue-se um exemplo: Imaginei que, na minha vida, tudo daria certo: meu marido, meus filhos, minha vida profissional. No entanto, nao fui bem-sucedida profissionalmente. Assim como eu gostaria. Dediquei-me demais aos meus filhos e, hoje, néo sou a professora que gostaria de ser, sabe? Uma académica, com doutorado, livros publicados. 138 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo A psicoterapia vai acontecer de forma que 0 cliente, em tal situagdo, possa reconhecer a vulnerabilidade, a abertura, a morte ea imperfeigdo em que a existéncia sempre se encontra. m) Falta de didlogo consigo préprio — perde-se nos falato- rios. Fala de tudo ¢ de todos, mas nao se implica naquilo que esta falando. Vive na curiosidade. A fala pode dar-se da seguinte forma: Isso é coisa de mulher fresca. Deve ser igual ao que 0 povo fala que tem enjoo na gravidez. Isso é mulher doente que fica enjoada. Menopausa é uma coisa téo boa que acaba a mens- truagao. Ora diz uma coisa, logo fala tudo ao contrario. Ndo sabe dizer no que realmente acredita. O psicoterapeuta acompanha atentamente, ao mesmo tempo em que tenta trazer uma situagao por ela experienciada, para assim perguntar-lhe, por exemplo: F, na sua gravidez, como foi? n) Nao-liberdade ~ transfere toda a responsabilidade de sua vida ao outro, ao acaso, a Deus, & energia do mundo. Todos s&o responsaveis pelos rumos de sua vida, nao reconhece nenhuma de suas escolhas. Uma mulher de 40 anos que se queixa da pes- soa com quem se relaciona e que, ultimamente, vem até pensando na separacao: AA! Se eu ganhasse na loteria, eu nao vou te dizer que ndo teria problemas, mas esse problema ndo existiria, por- que obviamente eu gosto do cara, sendo eu nao estaria nessa ba- talha toda para ele mudar. O psicoterapeuta pode atuar, pouco a pouco, apontando suas escolhas, com muito cuidado, para que o cliente nao oponha re- sisténcia. Como, por exemplo, poderia dizer-lhe: Enido, parece que ganhar na loteria nao seria suficiente pra a sua decisto? 0) Espacgamento — neste modo, 0 ser mostra-se como que to- talmente determinado pelo impessoal, permanecendo sob a tutela dos outros. Seu valor esta na aprovacao do outro. Ao modo da medianidade, desconhece-se a si proprio, define-se no mundo 139 como todo mundo. Fala o cliente: No meu campo de atuagdo, tenho que me mostrar confiante. Se parego muito carente, elas ndo negociam comigo. Tenho que estar sempre bem-vestido, para parecer bem-sucedido. Tenho que ser admirado. O psicotera- peuta pode atuar pontuando, junto ao cliente, 0 seu modo de ser na aparéncia, da seguinte forma: Vocé tem que representar muito bem para que as pessoas te deem valor, ndo pelo que vocé faz, mas pelo que vocé aparenta fazer. 4.1.1.2 -A fala do psicoterapeuta Em um segundo momento da investigacao fenomenoldgica, serao descritas as unidades de significado referentes A fala da psicoterapeuta, que buscara mobilizar, no cliente, a possibilidade de sua liberdade, responsabilidade, agdo e aceitagio dos riscos. Algumas das falas possiveis para um psicoterapeuta serfo aqui descritas, sem se pretender esgotar todo um infinito de possibi- lidades. A investigagao destas falas pretende elucidar a forma com que 0 psicoterapeuta se conduz, como exerce a hermenéu- tica, pouco a pouco buscando o sentido daquele que se mostra, mesmo que de forma velada. O processo psicoterapico compée-se de momentos em que se torna importante conhecer 0 dia a dia do cliente, sendo necessd- rio, para tal, explorar seu cotidiano. O psicoterapeuta tenta, entio, colher mais informagées e organizar-se quanto ao con- teiido relatado. Afinal, é preciso, para se estabelecer a compreen- s&o psicoterapéutica, ir até o lugar onde 0 outro se encontra. Para tanto, é necess4rio saber 0 que o outro sabe de si mesmo. Nas sessdes psicoterapéuticas investigadas, encontraram-se nos psi- coterapeutas existenciais falas do tipo: 140 Ave vane Lopes Laive Ue reyOo. — Exemplificadora — O terapeuta pede ao cliente que exemplifique como o que esta relatando acontece em outras si- tuag6es ou, se for o caso, o proprio terapeuta exemplifica, através daquilo que ja sabe de relatos anteriores. O cliente relata: Parecia que ela nem tava ali, foiuma coisa rd- pida, eu néo sei o que me deu, que a gente tava conversando. E ela jd tinha me escrito uma carta, dizendo do desejo dela, E eu tinha até respondido pra ela, olha néio rola, eu amo muito a Ro- sana, e eu ndo me sinto bem, até imaginando isso. Ai, de repente ali na festa, ali eu nem sei o que me deu... Acabado de chegar, Jazendo planos de ficar ld, junto com ela, amando tanto ela... O que serd que aconteceu? Eu ndo entendi, parece que brinco com as situagées, brinco com os outros. Fala do psicoterapeuta: Vocé poderia me dar um exemplo em que vocé se percebe brincando com as situagées, brincando com os outros? — Exploradora do cotidiano —O terapeuta, a partir da ex- ploracdo do cotidiano do cliente, busca que ele identifique fatos que desencadearam um determinado modo de sentir as coisas, como os fatos o afetam. Fala 0 cliente: Acabei ficando com uma menina, eu ndo sei o qué que deu, tava tendo uma festa, e eu fiquei com uma menina 1d da clinica mesmo, eu ndo sei o que deu em mim, o que me deu. Psicoterapeuta: Relata pra mim o que aconteceu, — Inquisitiva — Quando o terapeuta faz perguntas sobre o fato, as intengdes ou os sentimentos implicados em um deter- minado relato. Cliente: Eu nao sei. Quando ela contou, eu neguei. Psicoterapeuta: Negow o qué? 141 CAPITULO 4 Metodologia Em outros momentos psicoterapicos, torna-se fundamental fa- cilitar o aprofundamento nas quest6es trazidas pelo cliente, porém de forma compreensiva e de modo que o cliente nao opo- nha resisténcia. Outras falas possiveis seriam: — Clarificadora da atmosfera afetiva — O cliente traz um relato e, junto ao relato, o afeto. O terapeuta clarifica para o cliente a emog&o que percebe no seu relato, Desta forma, escla- rece 0 sentir ¢ facilita o reconhecimento de seu sentimento frente 4 situagdo. Pode ser formulada como pergunta ou como afirma- tiva. Este tipo de fala foi amplamente utilizada por Rogers (1961), que a denominou de “clarificadora de vivéncia emocio- nal”, Uma situagao psicoterapéutica pode dar-se assim: Fala do cliente: Mais ou menos isso. Um exemplo, nado é 0 meu caso. Vamos supor que eu quero ser cantor, ai eu sonho com isso, e ai eu chego Id e ndo consigo, vou ficar muito decepcionado. Psicoterapeuta: E para ndo se decepcionar, vocé prefere nao querer, — Refletora de contetdo verbal — O cliente traz um re- lato extenso e o terapeuta sintetiza-o, apresentando-o novamente ao cliente. Reduz o contetido ao essencial. Ao sintetizar, 0 tera- peuta mostra que compreende o cliente, que esta atento e 0 con- vida ao aprofundamento do contetdo. Pode ser elaborada de forma inquisitiva ou afirmativa. Esta fala também foi elaborada por Rogers (1961), que a utilizava mais frequentemente sob a forma afirmativa. Virginia Axline (1989) utilizava-a predomi- nantemente sob forma interrogativa, como pode ser constatado em seu livro Dibs, em busca de si mesmo. Cliente: No, eu ndo penso nada, para qué? O que vai acontecer é 0 que tiver de ser. Psicoterapeuta: Vocé acha que tudo jd esta decidido, que nos néio podemos fazer nada? 142 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo Na impropriedade, o humor se dé de modo ambiguo. Muitas vezes, a fim de chegar mais préximo do astral que o envolve, faz-se necessario reconhecer tais ambiguidades. O psicoterapeuta pode clarificar tais situagées, mostrando-as aos clientes quando elas aparecem, porém, nestes momentos faz-se necessaria pacién- cia. Com impaciéncia, pode-se afastar 0 outro de uma possibili- dade mais prépria — Refletora de conteiido nao-verbal — Quando se mostra ao cliente sua postura fisionémica ou corporal, frente a uma de- terminada situagdo oposta ao que, por exemplo, é verbalizado por ele. Fala do cliente: O chefe me demiliu, vai ser péssimo. Como vou pagar minhas contas? (Ao mesmo tempo que relata, mostra-se de forma risonha). Fala do psicoterapeuta: Interessante, vocé lamenta a demissdao, mas ao-mesmo tempo mosira uma expressdo de felicidade. — Reveladora de situagdes conflitivas — Traz a tona a inautenticidade. O cliente, por vezes, diz uma coisa e sua apar€ncia parece nega-la. Ou tem dois pesos e duas medidas para a mesma situagfo — isto é, pensamento, sentimento e ago nao caminham juntos. O terapeuta revela a situagdo conflitiva que se mostra. Fala 0 cliente: Porque com meu filho eu coloco disciplina. Psicoterapeuta: De que forma vocé impoe a disciplina? Cliente: Por exemplo, as vezes ele almoga uma hora, as vezes ds duas. Responde o psicoterapeuta: Parece que por mais que, no teu pensamento, a imposigdo da disciplina seja a sua verdade, quem pée a ordem é o seu filho. — Adversativa ou paradoxal — O psicoterapeuta da ao cliente a idéia contraria daquilo que ele esta passando, a fim de 143 gue ele tome consciéncia de sua verbalizag&o e possa perceber mais claramente seu ponto de conflito ou de desordem. Em psi- codrama, diz-se que o terapeuta faz o duplo. Diz 0 cliente: Bem, nao quero irritar-me. Vou tentar falar sobre isto de forma mais tranquila. Psicoterapeuta: Hstou vendo o quanto vocé esta tranquilo fa- | lando do seu fracasso, Cliente: (Siléncio, reflete.) Néo, ndo, na verdade estou nervoso falando disto. Mas por alguma razéo, n&o queria mostrar assim, — Promotora de responsabilidade — A responsabilidade é uma questéo crucial a ser trabalhada na psicoterapia de base exis- tencial, considerando-se que o cliente é 0 tnico que pode decidir sobre si proprio, € nunca as situagdes ou pessoas envolvidas em sua vida decidirao por ele — mesmo quando atribui a terceiros ou ao impessoal a decisdo, ainda assim esta sendo responsdvel. Afirma a cliente: Se ndo fosse ela, a minha vida seria um mar de rosas. . O psicoterapeuta pode recorrer a palavra “vocé”, invertendo- se a dircc4o da agdo dada pelo cliente, que responsabiliza o mundo pelas suas escolhas — posigdo psicolégica de n4o-liber- dade. Juntamente com a fala de nicleo comum, torna possivel fazer a ponte entre o que se repete na histéria do cliente e qual a sua responsabilidade nesta repeticao. Diz o psicoterapeuta: E 0 que vocé faz para que sua vida seja um mar de rosas? Focalizadora do “aqui e agora” — O cliente vive com 0 terapeuta uma situagdo, que também é vivida com os demais. O terapeuta traz a situagéo no presente, a partir do que estd acon- tecendo ali. Tal situagdo pode facilitar 0 cliente a assumir sua responsabilidade pela sua escolha. 144 Ana Maria Lopez Lalvo de Feijoo Diz 0 cliente: Claro, as coisas sdo como séo e eu... Nao deve- riamos perder tempo com as coisas que nao tém remédio. Responde o psicoterapeuta: Vocé realmente ndo quer ver até que ponto é escravo do desejo de preservar essa imagem de homem confiante. Na verdade, esté tentando impingi-la a mim agora mesmo. — Esclarecedora do nucleo comum — O terapeuta levanta diferentes situagdes em que a forma de atuar do cliente se repete, buscando, com ele, a sua responsabilidade pelo seu acontecer. Cliente: Gostaria que meu sdécio saisse para que ela tivesse mais tranquilidade. Psicoterapeuta: Parece que em muitas situagdes de sua vida, vocé quer que os outros decidam por vocé. O psicoterapeuta néo tenta distra{-lo para que a angustia con- tinue se pronunciando; deste modo, acaba se colocando, nas se- guintes falas: — Provocativa — Quando o psicoterapeuta estrutura sua fala de forma a dar continuidade Aquilo que mobiliza o inquie- tante reconhecimento da indeterminagao do seu existir. Fala o cliente: Acho que eu estava meio irritado. E nao vejo van- tagem nenhuma de mostrar minha irritagdo. Psicoterapeuta: Parece que vocé insiste em querer se mostrar como na verdade ndo é. — Manutengao da atmosfera em que emergem as situa- gdes-limite da existéncia — Consiste em levar o cliente a man- ter-se na sua angustia, possibilitando a abertura a possibilidade de uma escolha singular. Fala do cliente: Nao sei se vocé vai acreditar, mas néo consigo lembrar do que estdvamos falando. Psicoterapeuta: Acredito sim, parece que isto costuma acontecer, 145

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