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A presenca feminina no mercado de trabalho no Brasil e no Espirito Santo: dos tempos coloniais aos dias atuais Mania Beatriz Nabe Universidade Federal do Espirito Santo PAKTICIPACAO FEMININA NO MERCADO DE TRARALHO brasileiro tem rafzes A xm ants mbes ame cde sua familia, esenvelvendo atividades de produgio doméstica para sua comercalizagio (bordados e doces) ou improvisavam trabalhos tidos como rasculinos para sobreviver (como o de tropeiras ¢ cocheitas). A sociedade brasileira, que se pautou no poder masculino, jamais prescindiu ‘da mao-de-obra feminina. Tanto as mulheres das camadas mais abastadas da sociedade quanto as mais pobres conviveram com o trabalho, desenvolvendo- ‘0 cada uma de acordo com a sua necessidade. Em fins do séeulo XVI, quando a descoberta das minas propiciou 0 deslocamento do eixo econémico da Colénia para o sul (antes basicamente assentada nas plantagies de cana de agicar do Nordeste), a vida urbana no Brasil intensificou-se ¢ deu oportunidade & populagio feminina para uma participagio mais intensa nas atividades do mercado de trabalho que se abria. A falta de escravos e os espacos deixados pelos homens que migravam ‘constantemente para outrasregides em busca de enriquecimento permitiram que as mulheres entrassem no mereado de pequenos negécios¢scrvigos ligados a0 abastecimento urbano, Pouco se sabe sobre as mulheres de Vitéria dessa época. A escassa hiscoriografia que faz alguma referéncia sobre a participagio feminina no 198 LUNIVERSIOADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO - Depamenve de Hina ‘mercado de trabalho na cidade informa apenas que as mulheres capixabas cram habilidosas teces e que viviam do artesanaco, da fiagio e da costura. Em Sio Paulo ¢ Minas Gerais, em fins do século XVII e inicio do XIX. as mulheres tinham presenga absoluca na circulagio de géneros de primeira necessidade e na oganizacio do mercado ambulante de alimentos ede produtos deconsumo. Especificamentena cidade de Sio Joo Del Rei, ainda na primeira metade do século XIX, a maioria das mulheres, livres escravas, desenvolvia atividades relacionadas & fiagio, tecelagem, agricultura e a0 servigo domeéstico. Somente uma pequena parcela dedicava-se & pecusia € & mineragao. Mas era na dea urbana que as mulheres se integravam ’s atividades de comércio ¢ de ‘Os quadeos de profissdes, que demonstravam a complexidade das atividades de base econdmica, e a presenga feminina no mercado informal de trabalho apontavam grande variedade de ocupacées em espagos regionais diversos. Para se ter uma idéia dessa diversidade, Samara (1992) observa que, nas Listas de Hebitantes de Minas Gerais, para os anos de 1831 e de 1838 foram arrolados 250 tipos de ocupagbesfemininas, eque em Fortaleza, em 1887, foram arrolados 218. A variedade de ocupagées femininas em Sio Paulo também nao se afastava desses ntimeros, mantendo niveis semelhantes. Deacordo com 0 Recenseamento da Populagio do Império do Brazil de 1872, alguns trabalhos desenvolvides pelas mulheres fugiam aos padres de servigos domésticos tadicionais. Eram atividades, entre outtas, de criadoras,jornaeiras, operirias de tecidos, comerciantes, artistas, manufitureiras e fabricantes, operitias em couro e peles, operdrias em calgados, professoras, capitalstas ¢ proprietirias, guarda-livtos e caixeras, operirias em vestustios, operitias em tinturaria, operirias em chapéus. DIMENSOES yl 17 = 2008 199 ‘Tabela 01 ~ Parmicinagto renanna NO MERCADO DE TRABALHO. Brastl — 1872 PROFISSOES ‘Advogado Asie (Canetolcleetciox/mincicoslcavougucires Capitalists propeictros Cirugises ‘Comerianerguatdalitodcsnciros Costutise Clindoes Crisdoujomalire Empregadospublicos Fatmscticos Joes Laveadotes Mancfisucireffbrcantes Maritimos Médicos Milcares Nottioa”eexcrivies Ofciss de juga (Operiros em chapéus Opetiros em couroepeles Operisos em tecides (Operisos em sina (Opericos em eaados (Operiros em edifiasser COperirios em madeira Operiros ex metis Operiros em version Psneios escadors Proceeds rofesore homens deletes | Religions (ule) | Religions (secular | Serge domesicos | Fore SNA D7 pagar 4297 o ans o 8556 506.450 58.689 135.455 133.029 7 848.831 2.188.061 ‘Sem profissio | 22,033 Tort ieee baer | Paniciposio Fomiaina | 0.022 0.002 ° 8.348 Toul Tore 41.203 4382 31.868 238 102.133 506.450 206.132 409.672 10710 13m 968 3.037.466 19.366 21.703 1729 26 1.495 1.619 1.930 3.627 139.342 549 20.001 20.960 39.492 19461 2a Lig? W782 1,204 3.525 393 2225 1.045.615, 4a7214 100; 200 LUNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRTO SANTO -Deperament de Hindi Enquanto, nas cidades, as mulheres encontravam maiores oportunidades denegécios ede trabalho, como de costureiras,jornaleirase operitias de tecidos, ‘nos campos, onde prevalecia a producio voltada a exportagio, 0 trabalho rural dava mais emprego aos homens. Um exemplo era plantio do café, no qual 0 investimento financeito era maior: em Sao Paulo e no Espirito Santo, nessa atividade ntimero de mulheres trabalhadoras era pequeno e sempre abaixo do niimero de homens. “Tabela 02 — Lavaavones ot cat bo Bratt, bo Esto Saxsro 1 DE S40 Pauto, 10R stx0 1872 TOCALIDADE | __BRAS ESPIRITO SANTO | SAO PAULO CONDIGAO | Homeas_| Mulhers | Homens | Malheres [Homens | Malhors Besos liver | 1.591412 | 36210 | 13.429 | 4700 _| 155.203 | 75.655 Enrangsivs fires | 38089 | 10.942 7 | 74 | 38c[ oss Escrvos 373.990 | 204125 | soo | 4823 | 36934 29.947 TOTAL 2003491 | 851277 | 21880 | 9797 | 213999100335 Compunham esse quadro mulheres livres ¢ escravas, significando uma pequena variagio de condigio e etnia e somando pouca flutuagio entre a mio- de-obra das mulheres livres pobres e das mulheres escravas, que integravam 0 cotidiano das atividades urbanas brasileiras. Sob o sistema escravocrata brasileiro, que durou até fins do século XIX, a ‘maioria das mulheres se incluia na clase trabalhadora rural, urbana e nos servigos doméstios. Tiabalhadoras escravas,cuidando dalavoura ou dasatividades cotidianas das propriedades agrérias urbana, ou senhoras, administrando a escravaria ou 03 ‘negscios da familia, as mulheres braileiras livres, pobres ou ni cquilibrio com os homens na forga de trabalho em todo o Brasil. No interior do Espirito Santo, especificamente no assentamento dos povos propiciaram o migrantes como pequenos proprietitios, desenvolveu-se o sistema de relagies de produgio familiar, cuja mio-de-obra envolvia todos os membros da familia, s dos pequenos proprietétios, as mulheres cxerciam atividadesiguais’s doshomens, participavam da derrubada de lorestas, sem distingao de sexo. Nas famil das phancagies e das colheitas, [A participagao ferninina na agricultura foi fundamental para a manutensio das fazendas capixabas, desde o inicio da colonizagio. No entanto, apesar de 2s DIMENSOES «a. 17-2005 201 mulheres terem fungées bem definidas dentro dessas pequenas propriedades ¢ atuarem lado a lado com os homens nos campos, a cultura de tradigio reigiosa efervescente manipulava sua formagio, voltada para a constituigéo de uma familia, cujo principal papel era 0 de esposa e mie. Em sua obra de pesquisa demo-biolégica, realizada no Espirito Santo, no inicio do século XX, com o fim de contribuir para o estudo do problema da aclimagio, numa populagao de origem ale radicada no interior capixaba, ‘Gustav Giemsa e Ernest Nauch (1950) descrever o universo da mulher capixaba rural no contexto das atividades sociais do trabalho, afirmando que as mulheres cozinham, cortam e costuram, remendam roupas, alimentam os animais, cotdenham as vacas, além de realizar, no campo, outros trabalhos variados ¢ leves, como a colheita do café, limpeza do past. ‘A mio-de-obra familiar nas pequenas propriedades era a tonica do sistema econdmico capixaba, e a estrutura dos grupos familiares que habitavam essas terras era a mesma que, durante os t8s séculos de colonizacio portuguesa na América, envolvew homens e mulheres em uma sociedade rigidamente hiericquica, estabelecida sobre papéis socais bem diferenciados entre os homens as mulheres. Para os homens, o destino piblico os induziu 3 escolha de um trabalho, da forma de participagio politica, dos meios de diversio: para as mulheres, 0 destino privado determinou o papel de esposa ¢ mic, além da responsabilidade pelo trabalho doméstico. ‘A dominagio masculina que aparece na sociedade brasileira traduziu-se na légica que rege o poder do homem sobre todos os membros da farnilia, principalmente sobre a mulher e seus filhos, como 0 que se constituiu nos ‘moldes da familia patriareal, que promoveu essa divisio manifesta de sexismo «catribuiu a cada pessoa papéis e modelos de comportamento predeterminados, dle acordo com o género: os homens, sujeitos que nunca fraquejam, afimmam- se em sua superioridade, tém naturalmente capacidade de getit seu préprio sustento e por isso tornam-se responsdver pelo sustento de suas mulheres ¢ de seus filhos. As mulheres, narurabmente dependentes, deve ser submis doceis. Esse imaginirio, fortalecido pela familia e pela Igreja Catia, que se apropriaram da educacioe e utilizaram da cultura eda dsciplina para convencer a mulher de que era esse o seu papel na sociedade, prevaleceu mesmo entre as mulheres que exerciam sua forga de trabalho junto com os homens nas lidas rurais coloniais e no mercado de trabalho urbano, apés a segunda metade do século XIX, quando foram instaladas as primeiras fibricas téxteis no pais. 202 LUNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO - Depsamenso de Hina “Mesmo presas ao idea! ferninino, as mulheres ocuparam espagos no mundo fabril ¢ tornaram-se operitias, competindo com os homens no mercado de trabalho, Em 1882, existiam, no Rio de Janciro, quarenta fabricas de fiagao de algodio ¢ em apenas uma delas foram registradas 60 mulheres como operitias. Fibricas de outros produtos também empregavam mulheres. Provavelmente, 2.000 eram empregadas em estabelecimentos fabris nessa época. Na cidade de Sio Paulo, as mulheres participavam ativamente do mercado piiblico de trabalho. Nos anos de 1869 ¢ 1890, a Repartigio Pablica de Estatistica apurou que a participagio das mulheres em diversas profiss6es, em relagio aos homens empregados, cresceu de 3,5% para 20% do total de mao- de-obra adulta empregada em estabelecimentos industrais da capital paulista No Espirito Santo, entretanto, tem-se conhecimento da presenga feminina em indistrias a partir da década de 1920, em duas fabricas: uma localizada em Cachociro de Itapemirim, que empregava 186 mulheres, ou seja, 64,80% de seu quadro de empregados, ¢ outra em Vitéria.' ‘Com os avangos tecnolégicos aliados ao processo da industrializagao ¢ 20 crescimento da cidade de Vit6ria, até final dos anos de 1950, 0 panorama de trabalho feminino nao sofreu grandes modificagées, pois as mulheres continuaram nio tendo acesso a0 profissionalismo, considerado masculino por exceléncia. Eram poucas, portanto, as oportunidades de trabalho assalariado para elas, Prevalecia © imaginério social que consistia em dererminar que 0 lugar da mulher era o espago geogrifico da casa e que o trabalho feminino fora dele era pernicioso ¢ desmoralizante: pernicioso, porque dava 8s mulheres a chance de perceber 0 quanto 6 mundo piiblico se cercava de irregularidades e, certamente, de leva consigo a moralidade que desenvolveram na vida privada, fo que transformaria as leis discriminat6rias em igualdade formal legal entre 0s géneros; desmoralizante, porque prevalecia o imagindrio de que era o homem «quem deveria sustentar sua familia Exam aceitos somente os empregos de professora, de funciondrias de algum estabelecimento comercial (em escritérios ¢ na burocracia), ou desenvolvimento de atividades consideradas como extensio de ocupagdes tradicionalmente femininas e subalternas (como cozinheira, arrumadeira, ama- seca, lavadcira, entre outras), mesmo sendo marginais ao processo vigente de produgio e mal remuneradas.” [Nas primeiras décadas do século XX, as mulheres eapixabas que queriam descnvolveratividades fora da érea do magistéio tinham condigées financeiras para isso tiveram que sair de Vitdria e realizar cursos superiores nos grandes DIMENSOES +o. 17-2008 203 centros do pais. Assim, algumas se formaram em Farmécia, Odontologia, Medicina, Nutricionismo, Dircito, Fisica e Quimica. Segundo Novaes (1999), muitas mulheres que se tornaram profissionais, ‘graduadas esbarraram em preconceitos,criticas e descrencas com relagio 20 seu potencial de trabalho. Mesmo assim, prestaram concursos puiblicos, disputaram empregos com os homens em laborat6rios de andlises de alimentos, 1no Banco do Brasil, em hospitais e eambém em escolas onde somente homens lecionavam. ‘A prpria Maria Stella de Novaes foi vitima desses preconceitos. Na obra A ‘Mulher na Histiria do Exptrito Santo ela conta que, em junho de 1923, inscreveu- se para o.concutso da Escola Normal do Estado, objetivando dar aulas de Fisica, Quimica e Histéria Natural. Segundo a autora, os promotores fzeram de tudo para que ela nfo participasse das provas. Eis uma parte de seu relato: Em junho de 1923, porém, a incapacidade mental da mulher sofrew a primera derrota, fa prdpria cidade de Vitdria, porque uma jovem profesora interina da escola Normal tivera a coragem suprema de inscrever-se no curso de Fisica, Quimica e Hiséria Natural a fim de consolidar sua posigi, como catedritica, portanto,vtalcia.Enftentou crficas, superou descrengas na sus cultura Venceu, porém, espresentou a primeira es impresa, para concursos, no referido estabelecimento de ensino, visto como, até entSo, as provas tram escitas, com os pontos soreados, ma véspera. A tese constou de duas partes: Os ‘Moluscas nas sua relagdes com a geologia cum Trago de unio entre a Fisica e« Quimiea (Eleicidade). E as provas duraram dois dias: um, para a defesa da tes; outro, para a prelegio € a pritica, no laboratéro, (Novaes, 1999:109) Em margo de 1925, depois de realizadas as provas eliminatéri classficada enomeada, tornando-se a primeira mulher catedritica do Gindsio, cem todo o Brasil ‘Anos depois, mais precisamente em abril de 1981, Maria Stella de Novaes foi entrevistada por pesquisadores do Instituco de Pesquisa Jones dos Santos il para ela lutar contra a prepoténcia masculina, que nao admitia fato de uma mulher ser candidata a ela foi Neves ¢, durante a entrevista, mostrou como foi uma cadeira na escola onde somente homens deveriam lecionar. (Leite, 2002) Essa experiencia vivida por Novaes prova o quanto a segregacio no trabalho refletia a idéia de que o género havia se tornado um fator determinante na cocupagio de determinados setores do mercado, O acesso i educagio, que jéera restrico a poucas mulheres, contribuia para manter leque de opgoes profissionais ainda muito estreito. © magistério é um clissico exemplo disso. 204 LUNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO - Departmen de Hii Nas primeiras décadas do século XX, por ser considerado uma profissio em que a mulher reproduz as atividades desenvolvidas dentro da unidade doméstica, © magistério para os primeiros anos escolares passou 2 ser designado como profisio naruralmente feminina, aceita pelos padres culturais elitistas que cdeterminavam o lugar da mulher dentro dos espagos domésticos.> No entanto, as mulheres tinham que lutar para conseguir uma vaga no magistério secundério ce superior, fosse para trabalhar, fosse para estudar ‘Contrariando tal imagindrio, muitas mulheres que conseguiram prosseguit «em seus estudos para além do primério fizeram cursos preparatirios, de modo que pudessem atuar em fung6es auxiliares na indiscria eno comércio. Aproveitando-se de todas as oportunidades que surgiam com a modernidade, elas ocupavam principalmente as FungBes que thes eram abertas no setor de servigo. Em Vitoria, até a década de 1950, 0 ramo de servigos ainda era pouco diversficado. Entretanto, muitas mulheres deram continuidade as atividades cexercidas dentro dos muros domésticos, como 0 cuidado com as criangas ¢ com os enfermos. Nessa década, foi criada a Escola de Auniliares de Enfermagem ¢, por forca de um convénio entre Governo do Estado ¢ o Instituto Social da Pontificia Universidade Catdlica do Rio de Janeiro, criow-se © curso de Assisténcia Social. Esse tiltimo, gradativamente, deu origem ao servigo social no Juizado de Menores, no Sanat6rio Gettlio Vargas, na Lavanderia Paiblica, nna Santa Casa de Misericérdia, assim como 3 criagio de centrose obras sociais ‘em bairros da cidade ¢ em municipios préximos As atividades femininas, sea nas empresas que se abriam, seja nos setores relacionados & cultura, as finangas, ou mesmo & administragéo piblica, foram se expandindo, embora exigissem um nivel educacional mais aprimorado. Somente depois que foi criada a Universidade Federal do Espirito Santo, em 1954, as mulheres puderam, enfim, ter oportunidades para ampliar seu leque de conhecimentos ¢ aumentar suas possibilidades de trabalho.* Contudo, 0 provincianismo que ainda se mantinha como caracteristica da dos anos de 1960, pois, apesar de a cidade impor um estilo de vida peculiar € diferente daquecle que ocorria no mundo agricio, exigindo mesmo papéis sexuais cada vex mais socializados e criando novos hibitos e valores, 2 sociedade cidade prolonger-se-ia com a chegada maciga dos migrantes rurais, a par vitoriense mantinha-se presa a tradigdes rurais de comportamento. Em sua anslise sobre a imigrasio rural para grandes centros urbanos do Brasil, Souza (1951) afirma que, a0 mudar-se para as cidades, a populagio camponesa tendiaa peeservaraspectos do velho sistema de organizagio, levando DIMENSOES oh 1 205 para a vida urbana comportamentos vividos nos campos. Para o autor, somente as mulheres que praticavam a dupla jomada de trabalho, ou seja, que mantinham cstreito contato entre 0 mundo piblico € © privado, eram os elementos, conciliatérios dos novos habitos citadinos com os adquiridos pela heranga rural Contudo, isso demandava tempo. Em Vitéria, muito lentamente as mulheres tiveram condigdes de interagir com as mudangas de comportamento necessirias para a convivéncia com a cidade que crescia a olho nu, Somente aps os anos de 1970 é que realmente elas comecaram a sobressair-se na educagio ‘¢em profissées rentéveis, mesmo assim em miimero bastante reduzido, pois, ‘emboraa populacio feminina reagisse aos esteretipos 8 segregagio profissional, muitos preconceitos insistiam em permanecer. ‘A grande massa populacional feminina, que precisava trabalhar para sustentar sozinha ou mesmo contribuir para o sustento de sua familia, nao estudou ou nio prolongou seus estudos para além dos primeiros anos de escola Anda assim, foi incorporada no mercado de trabalho, como assalariada ou ‘do, Milhares de mulheres sem a qualifcagio exigida pelas atividades industrais ce comerciais urbanas ligaram-se a atividades informais, tormando-se biscateiras vendedoras ambulantes 20 redor do centro urbano de Vitbria. Descontando as que desenvolviam atividades na drea de magistério, 0 ntimero absoluto delas rno mercado de trabalho era muito pequeno. Em 1970, da populagao total de 70.103 mulheres habitantes de Vitéria, somente 35,57% estavam no mercado de trabalho, Segundo 0 Censo Demografico do Estado do Espitito Santo, nesse ano elas desenvolviam atividades relacionadas & prestacio de servigos que se ligavam as tarefas domésticas remuneradas, tais como servigos de alimentagao (cozinheiras, garconetes) ehigiene pessoal (cabeleireras, manicures e pedicures, lavadeiras ¢ engomodelsa) [Nessa década, o setor industrial ainda nao possufa um significativo mercado para atender 4 mio-de-obra feminina e empregava somente 600 mulheres. Os empregadores do ramo contratavam preferencialmente pessoas do sexo masculino para desenvolveratividades caracterfstcas nio s6 da inddstria de transformagio (empresas que abrangiam as dreas de mecinica, couro, madeira, cletricidade, alimentagio, bebidas, industria gréfica ceramica e vidro), mas também da indkstria de construgio civil (cujos profissionais eram armadores de concreto, pedreiros, mestres de obras, serventes, pintores, caindotess estucadores, ladrilheitos, tanqueiros, encanadores, vidraceiros, calcetciros, asfaltadores, calafates e operadores de miquinas nas areas de obras). 206 UUNIVERSIDADE FEDERAL DO ESFIITO SANTO Departament de Hie Notmalmente, eram atividades que exigiam contato com méquinas nas éreas de obras ¢ com outros materiais com os quais somente os homens lidavam, ou scja, tratava-se de atividades consideradas masculinas por exceléncia, ‘A monografia nterpretagio ¢variagio de wma doce meméria: a Companhia Vale do Rio Doce apresentao relato de uma mulher que foi admitida na CVRD, ‘em 1972. Segundo a autora, Maria Angela Rosa Soares, naquele ano apenas 12 mulheres trabalhavam no Porto de Tubario, exercendo atividades burocraticas no prédia do eseritério central da empresa. No mantinham qualquer tipo de contato com as obras descnvolvidas no Porto, onde se concentrava a grande massa de empregados. Fugindo ao padrio classficatério das atividades de trabalho na empresa, esa mulher foi trabalhar no patio da usina do Porto, em tum barracio de madeira, onde fazia recrutamento de pessoal para trabalhar nas usinas que estavam sendo construfdas pela CVRD. Ela eraa tinica mulher {que trabalhava no patio da empresa, e seu contato maior era, portanto, com os pedes que trabalhavam no cais do Porto. Em sua monografia, Soares registra a racionalidade das fungbes de trabalho € feminino, quando mostra que a empresa dividia seu pessoal em Quadro Técnico © Quadro Geral. No primero, somente eram admitidos engenheiros para os cargos de chefia,eraramente uma mulher, mesmo estando apta is Fungdes do cargo. No segundo, que envolvia funciondtios abaixo do nivel séenico, empregavam-se mulheres. No entanto, sea mulher fosse técnica em eletrénica, ira trabalhar na drea de desenho: se fosse técnica em mecinica, inia para adrea de materias. Tal encaminhamento dava-se de forma aevitarque «as mulheres colocasiem as mios nes equipamentas. Blas precisavam conhecer © material utilizado nos setores para exercer as fuangées que ocupavam, mas néo trabalhavam diretamente com os materiais, pois iso era coisa de homem ‘Algumas mulheres foram encaminhadas para setores mais operacionais, como 0 Niicleo de Processamento de Dados, onde desenvolviam atividades mais delicadas e compativeis com a fiagilidade fominina, Somente er fins da década de 1980, as mulheres da area técnica puderam atuar com os equipamentos da empresa Ainda na década de 1970, outras grandes indsistrias localizadas ao redor da cidade abriram 21.000 oportunidades de empregos. absorvendo maior ntimero de mio-de-obra feminina. Especificamente no ramo industrial, 0 ntimero de mulheres empregadas durante essa década aumentou na ordem de 24%. Contudo, foi o comércio © 0 setor de servigos que abriram maiores ‘oportunidades de trabalho para as mulheres. Em 1980, osetortecidrio abrangia DIMENSOES vl 207 41,15% de todos os empregos disponiveis na cidade e dentro deles enquadravam-se 53,74% da populagao feminina economicamente ativa. Os cempregos nesse setor assumiram um papel relevante dentro do mercado empregaticio feminino, principalmente nas atividades da rea de servigos que, cem dez anos, teve um crescimento da ordem de 48,59%. Esse fendmeno explica-seprimeiro pelo crescimento populacional de Vitoria. No Censo Demogrifico de 1980, a PEA que vivia 20 redor da cidade, isto é na 4rea da Grande Vitoria, era composta de 532.079 pessoas, sendo 51,15% mulheres. Dessas, no entanto, somente 37,9% tinham rendimentos que variavam entre um quarto de salério minimo até mais de 20 saltios. “Tabela 03 — PorvLacAo reMINIA ECONOMICAMENTE ATIVA. GRaNDE ViTORIA, 1980 ‘Ghasses de Rendimento = Naas < Mens (slisio minima) ae 38.609 6107 oat ade sats 22.284 15.665 7029 sdewiat 53421 27.068 30,66 stat 38.609 193936 34.01 slia2 34408 4566 24.88 a3 41.39 9377 2268 was 38.269 7507 2256 210 24.988 4.826 1931 110220 10.528 Lae wa 20 4619 245 5.26 Sm rendimeotor 238.385 170417 7148 Sem declaagto 1.695 952 56,16 TOTAL 532.079 272.110 sia Fon SQUERA pT ‘Outra explicasio encontra-se na permanéncia das atvidades desenvolvidas pelas mulheres. Nessa época, os empregos que absorviam a mio-de-obra feminina multiplcaram-se em relagio 4 década anterior. Porém, as mulheres, cem geral, ainda desenvolviam atividades que Ihes proporcionavam uma baixa remuneragio. Sua presenga no mercado de trabalho era maciga, mas, de certa forma, ainda enfrentavam barreiras: ocupavam os lugares menos privilegiados e suas condigées de trabalho cram mais precirias do que as dos homens.* 208 UNIVERSIDAD FEDERAL DO ESPIRITO SANTO Deparment de Henin AAs trabalhadoras que no conseguiam emprego recortiam & estratégia de sobrevivéncia em um mercado que no mantinha ligagGes com o setor formal de trabalho, vinculando-se & prestagio de servigos nao especializados ou explorando pequenos negécios e criando um grande mereado informal. Em fins dos anos de 1980, 0 mercado de trabalho secundério fer surgit novas oportunidades de trabalho para as mulheres de Vitoria. Nessa época, a participagao feminina no mercado capixaba chegou aatingi acasa dos 53,23% do total da populagio ativa da cidade, Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domictlio(PNAD), no Brasil, urante o periodo de 1986 a 1996, o indice de contratagio Feminina atingiu tum patamar de 18,4296, enquanto em todo o mercado de Vitdria, no periodo compreendido entre 1980 ¢ 1991, esse indice foi de 66 %. “abela 04 — SeTOR De ATIVIDADES DA POFLLACAO FEMININA. ECONOMICANENTE ATIVA De ViTOntA ~ 1980-1991 ee Tonal de Maheres Empregedas va | iol Femme Tome] ase ied ase | ass ‘iva cis rao | ana rte te nats ao» | Gam nin pba | aa 38 es | @ 3809 Aemenlig icin crmivpaianeres | kf 299 as Aids 135 5746 Jom m36 | am (0 setor de indiistria abriu vagas para a mio-de-obra feminina, que ‘resceu 60,21% entre 0s anos de 1980 a 1991, Destacou-se a indiistria da construgio civil, que empregou 644 mulheres em atividades consideradas ‘eminentemente masculinas, tais como pedreiras, encarregadas de obras, pintoras, entre outras, ea indistria de transformagio, que, sozinha, abriu espago para 2.685 mulheres, aumentando suas vagas em torno de 48.64% durante esse periodo. 200s 209 Contudo, novamente foram os setores de servisos e comércio que mais absorveram a mio-de-obra feminina. As novas oportunidades que surgiram chegaram a absorver em torno de 3.153 mulheres.” Esse fato chama a atengio porque normalmente sio atividades que envolvem ocupagies habitualmente classificadas como de finalidade organizacional, de prestacio de servigos para ‘empresas e autOnomos que atuam na rea do comércio de mercadorias, de armazenagem, em ocupagées da drea de seguros, finangas ¢ valores, dreas de transportes rodovidrio © maritimo, todos empreendimentos considerados de exclusividade masculina. Outras teas resritas a0 gnero masculino durante séculos e que também absorveram significativo contingente feminino foram as de pesca, extragio vegetal, silvicultura transporte e comunicagio. Desde 1970, a presenga das mulheres nessasiltimas tividades teve um indice de crescimento em torno de 16 veres E importante mencionaro fato de que, no ambito das ofertas de trabalho explicitadas acima, em todo o periodo pesquisado ocorrcu significativa participagio feminina no mercado de trabalho, uma patticipagio que as estatisticas nfo conseguiram eaptar, pois as dificuldades para se registrar todas asatividades desenvolvidas por elas sio expressvas. Nao se leva em conta, até hoje, por exemplo, a realizagao das tarefasrealizadas dentro de casa, por no serem consideradas como trabalho produtivo, apesar de as mulheres seguirem sendo as principais responsiveis pelas atividades desenvolvidas no espaco doméstico e pelo cuidado com os fllos e demais familiares. Independente do fato de estarem ou no no mercado de trabalho, as mulheres que realizam carefas dentro de suas casas io depreciadas e suas atividades nao sio computadas nas estatistieas, que as classficam como “inativas” ou “domésticas” Se todas as mulheres que se casam ¢ trabalham dentro de seu domictlio fossem consideradas nao apenas como “esposas”, mas também como trabalhadoras economicamente ativas, as taxas globais de atividade feminina seriam consideradas superiores is existentes e, desse modo, atingiiam um indice aproximado de 99%. ‘Tal perspectiva torna evidente a desconsideracio pelo trabalho doméstico realizado pela mulher ¢ contribui para a manutengio da hierarquia entre os géneros, além de confirmar a preservagio da caracterttca feminina eviada pela sociedade, que ainda identifica a mulher como “esposa”. Na vera, compreensto dessefendmeno se di pela prépria interpretagio que a historiografiae a liveratura realizaram da tutela que o homem exercia sobre a mulher, tutela diretamente relacionada a ordem econdmicae ao controle, 210 UUNIVERSIDADE FEDERAL D0 ESPRITO SANTO Depa de Hise politico da sociedade:na primeira, pela dependéncia econémica feminina para como homem a rigida divisio social do trabalho; no segundo, pela manutencio da supremacia masculina na sociedade. ‘Com base nesses interesses, 0 longo dos séculosarelagio da vida feminina com 0 casamento estreitou-se, fazendo com que milhares de geragSes acteditassem que esse fosse 0 inico “sonho das mulheres” Essa crenga obteve éxito ea sociedade humana, durante séculos, tomoua como verdadeira, considerando-a pertencente i natureza feminina, principalmente nas sociedades nas quais as mulheres nao trocavam sua lida por salirios e dependiam economicamente dos homens. Referencias Bibliogrificar BRUSCHINI, Crisin. 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Mas somente dat mostam a presenga de mulheres tabalhando, Seu egitos no razem qual referencia a espeitadapresenga Fein a fibica, nem mesmo na époce das foto Em 1928, 0 Jornal Dirio da Manhtanuncavaofeas de emprog pare “Amma Secca” € “Cosineia® em casa de fais, Jornal Ditrio da Aenha Viti, 28 maio 1928, p. 4. Acervo do Arquivo Geral de Vesa * Mesmoassim, mulheres provindss de camadas soci empobreidasbuscaram osccoahacsio pofisionalzante, que a leava 10 magistria. “A Universidade Federal do Esptto Sanco fi cada em 1954, no Govern Esta de Jones dos Santos Neves. VALLE. Eurpedes Queivé de O etado do Epinite Sant eo eprite-sntewer thos, aos ecurosdades (Os 10 mais). 3. Viera [6m], 1971 * En 197 a Cofavi mantinha 1,600 empecgados.Em 1978, © Complexo Naval ea Compleno Paraguimico empregaram 6.500 pessoas. Sé na fase de consrugto das winas da CVRD foram empregidas 1400 pessoas. A CST, nas suas prices e segunda Fase, contrtou 4.574 © 7.500 Pesoas,tespectivamente * Sobre 2 precridade do trabalho feminine em todo o Brasil, ver BRUSCHINI, Cristina, ‘Maduncsepersinncis ne raat feminine (Bess, 1985 x 1995) In: SAMARA, Eni de Mesguita (Org) Taba feminino e cdadsnia. Sao Palo: Humanitas, 1999, p. 29.55 "Em 1995, as mlheresaleangaram o patmur de 50.15% da PEA de todo oetado do Espo Santo, IBGE ~ Banco de Dados Agrepados Sida, Pesguiss Nacional por Amosta de Domicile. Disponivel em: hus: fwwwbgegoubr Accso ern 16 out. 2002, Maus Beara Naven Doutora em Histéra Economica pela Universidade de Sto Plo Pesquisa em andamento:“Feminismo: movimento de libertgio masculina. Do poder paral 0 homer metrssa™ smarais@eerta.com br

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