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© Dragio e 0 Carneiro Tartaro Os dragoes sempre safram rastejando de suas covas no comego dos tempos para testar avirtude e a fé da humanidade. Nas lendas, aparecem nos portoes das cidades, devorando o sangue de inocentes, ¢ desafiando os guerreiros mais fortes ¢ mais piedosos a defenderem a ordem das coisas, brandindo espada contra hélito de fogo. Quando um “terrivel dragio” foi visto nos pantanos perto de Bolonha, em 1572, é provavel que tenha despertado esses medos antigos. Dessa vez, entretanto, o heréi do momento nao era um cavaleiro de armadura brilhan- te a caminho da canonizagio, mas um corpulento € calvo erudito, que s6 tinha de seu um nome herdico, Ulisse, para exibir como credencial bélica. © papa estava visitando a cidade, mas apesar disso a Igreja nao reivin« cou o que at? um século antes poderia ser visto como uma vit6ria do cristia- mo contra 0 diabo. Mas um cientista colecionador, 0 renomado Ulisse Aldrovandi (1522-1605), foi considerado capaz de lidar com criaturas estra- mhas. O tom sério com que relata a captura do animal é, em si mesmo, signi- ficativo: (© dragito foi visto pela primeira vex em 13 de maio de 1572, sibilando como uma cobra. Estivera escondido na pequena propriedade de Mestre Petronio, perto de Dosius, num jugar chamado Malonolta, As cinco da tarde, foi apanhado numa es- trada piblica por um pastor chamado Batista de Camaldulus, perto da sebe de uma fazenda particular, a uma mitha dos remotos arrabaldes de Bolonha. Batista condu- tin seu carro de boi para casa quando os bois pararam de repente. Batew-lhes, ber- rou, mas eles we recusaram a prosseguit, ¢cafram de jocthos, Nesse momento o pastor "TER EF MANTHR, ‘ouviu 0 som sbilante e ficou espantado de ver 0 estranho dragiozinho a sua frente, ‘Trémulo, golpeou-o na cabega com o bastBo e matou-o." Uma bastonada na cabega foi suficiente. Que criatura era aquela, ¢ imposst- vel saber. Talvez um lagarto grande e raro. Aldrovandi fez 0 que se esperava que fizesse qualquer um em seu lugar: preservou o dragio ¢ escreveu a Dracologia, uma hist6ria dos dragées em latim, em sete volumes. f um trata- do cientifico, que procura explicar fendmeno como fato natural, néo em termos metafisicos ou religiosos. O animal, escreveu ele, ainda no atingira a maturidade, como mostravam suas garras e seus dentes mal desenvolvidos. Movimentava-se, supunha ele, destizando como uma cobra, com a ajuda de duas pernas. O cadaver tinha um dorso volumoso ¢ uma longa cauda, de mais ‘ou menos sessenta centimetros. Partes do museu de Aldrovandi sobreviveram até nossos dias e esto no Museo di Storia Nationale, no Palazzo Poggia, em Bolonha. Poucos turis- tas o visitam, ¢ as salas com painéis de madeira e armérios brancos so relegadas 2o siléncio a maior parte do tempo. Dois crocodilos secos na parede observam os ovos de péssaros, os estranhos chifres, as pedras, as plantas € os volumes eruditos. Apenas a iluminagao fluorescente faz lem- brar que quatro séculos se passaram. O dragio, agora desaparecido, fez parte da exposigio. 30 (© DRAGAO HO CARNHKO TARTAKO. Estudiosos de toda a Ica visitavam a colegio para vé-lo com os préprios ohos. Em seus dias de gléria, a colegio atraia multidées de visitantes, tanto es tudiosos como simples curiosos, e Aldrovandi mantinha um rebuscado registro dle visitas, egularmente inventariado e atualizado, Entre os convidados a assinar © livro de registro contam-se 907 estudiosos, 118 nobres, 11 arcebispos, 25 “homens famosos” ¢ uma tinica mulher. Outras mulheres concederam ao gran= de homem a honra de uma visita, mas até mesmo Caterina Sforza, o que a Ilia tinha de mais parecido com uma rainha, e que apareceu com uma comitiva de “14 0015 coches e carruagens transportando 50 damas, a fina flor das familias ‘mais importantes da cidade, acompanhadas de mais de 150 cavalheiros”,? nio foi considerada com estatura intelectual suficiente para assinar. Aldrovandi ocupava a linha de frente de uma explosio de atividade cientifi- ca e colecionadora iniciada na Italia no século XVI. Julgava-se um novo Aristételes e tinha a intengio de concluir 0 que Arist6teles e Plinio comega- ram: urra enciclopédia da natureza. Para tanto precisava de dados, ¢ tama- mho de sua colegio tornow-se uma obsessio tio grande quanto a coleta ¢ a descrigao dos espécimes. © museu tinha 13 mil itens em 1577, 18 mil em 1595 ¢ cerca de 20 mil na virada do século. Nessa época, muitas cidades italianas tinham seus grandes colecionado- res: homens como Michele Mercati, em Roma; Francesco Calceolari, em ‘Verona; Carlo Ruzzini, em Veneza; Aldrovandi e mais tarde Ferdinando Cospi, em Bolonha; ¢ Athanasius Kircher, no Vaticano, formaram colegées que, clas- sificadas € catalogadas, eram instrumentos de erudigo € consolidagio de conhecimentos enciclopédicos. Os armérios dos colecionadores mais ricos ostentavam chifres de unicérnio, dragdes ressecados com formas bizarras ¢ assustadoras, crdnios de estranhos pissaros e mandibulas de peixes gigantes- cos, aves empalhadas das cores mais extraordindrias, e partes de outras cria- turas, ainda nfo identificadas, que pareciam pairar entre a realidade e 0 mito, entre a esperanga de uma explicagio racional € 0 medo do inferno. Essas colegdes nao eram uniformes em orientacio contetido. O veronés Mapheus Cusanus, por exemplo, era conhecido pela curiosa predilegio por “idolos egipcios tirados de mimias, conchas petrificadas, queijos petrificados, cane- la, esponja e cogumelos”.? 31 THC MANE Esse novo espirito de indagagio renascentista era estimulado por estudiosos e amadores, ¢ nao por padres ¢ fildsofos antigos, e pela primei ra vez aceitou-se a idéia de que o mercado de peixes era um lugar melhor para adquirir conhecimentos do que uma biblioteca, Era mais provavel que pescadores capturassem em suas redes espécimes raros e maravilhosos, soubessem discorrer sobre seus habitos e nomes, do que qualquer quanti dade de manuscritos latinos. [4 ndo bastava sentar-se 4 mesa de um mostei- ro. O préprio Aldrovandi percorria os mercados de peixes, em busca de descobertas, ¢ conversava com pescadores, assim como Descartes faria ‘observagées sobre anatomia animal em um agougue de Paris, um século mais tarde. Um século antes ida teria sido uma maldicao para os colecionadores pro- curar objetos em lugares como esses, pois até 0 século XVI colecionar fora privilégio de principes, cujos interesses se concentravam em objetos a0 mes- ‘mo tempo belos e preciosos, que aumentavam sua fortuna ¢ seu poder. Tu- tankamon colecionara cer4micas finas, ¢ 0 faraé Amenhotep Il era conhecido 32 © DRAGAO 11 CARNEIRO TARTARO: por sua paixio por est \nuitios, do Templo de Salomio a im como as cortes de nobres, sempre guardaram famosos te Acrépole, a souros.* A Roma antiga assistiu ao fugaz desabrochar de uma cultura de co- lecionador, sobretudo de obras de arte gregas, mas isso desapareceu com 0 império.’ Durante a Idade Média, principes da Igreja e governantes seculares acu- rmularam tesguros de reliquias, vasos de 1uxo, jdias ¢ objetos como chiftes de unicérnio (narval) ou outras criaturas lendarias.* Desses tesouros, surgiui uma forma mais privada de apreciagio, 0 studiolo, um estidio especialmente construido fara abrigar objetos antigos, pedras preciosas ¢ esculturas, popu lar na Italia entre homens de recursos ¢ conhecimentos, a partir do século XIV? Oliviero Forza, em Treviso, foi dono do primeiro studiolo de que ha registro, em 1335. C € metais presiosos tornou-se passatempo de principes, diversio que As vezes lecionar obras de arte ¢ objetos esculpidos em pedras beiraya a paixio avassaladora. Um dia tudo o que ele quer & passar os olhos por esses volumes [que comprara e copiara para si proprio], para passar 0 tempo e dar prazer aos olhos. Outro dia, assim me disseram, ele tira algumas efigies imagens de imperadores e pessoas im- portantes do passado, algumas de ouro, outras de prata, outras ainda de bronze, de pedras preciosas ou de marmore e ou tros materiais agradaveis de contemplar. E outro dia ele contemplava jéias e pedras preciosas, das quais possufa uma maravi algu ‘mas com gravagSes, outras nao. Sentia lhosa quantidade, de grande valor, grande prazer e alegria ao olhar essas coi sas e falar de suas virtudes, No dia seguin- te talvez inspecionasse seus vasos de ouro « prata ¢ outros materiais preciosos... No 3B TER # MANTH. fim das contas, trata-se de adquirir objetos valiosos ou estranhos — ele nio perguns tao prego.’ Esse colecionador tao absorvido em seus tesouros, Piero de’ Medici, conhe- cido como 0 Gotoso (1416-69), podia se dar ao luxo de nao perguntar 0 prego dos objetos que adquiria e encomendava onde quer que os encontras- se, Diversos descendentes seus, mais notoriamente Francesco ¢ Lorenzo 0 Magnifico, também foram dominados por essa paixdo. Francesco mandou construir e pintar um studiolo com painéis que representavam os doze meses € 08 doze tipos de livros existentes em sua biblioteca, Hi, entretanto, uma enorme diferenga entre esses “arsenais de coisas preciosas” e 0 musen de Ulisse Aldrovandi, cem anos mais tarde. Antonio Averlino Filarete, que observou Piero de” Medici em seu studiolo, examina 0 tipo de patriménio acumulado: objetos antigos, pedras preciosas e obras de arte, além de “objetos estranhos e dignos de nota”.” A distingao significativa entre os tesouros medievais e os novos studioli era a privacidade inerente & idéia de estiidio. Mas em seu programa e em sua estrutura, pouca coisa mu dara, Ainda ressoava nas paredes que isolavam € representavam 0 mundo exterior, com sua simbélica ordem de coisas, a meméria do canto gregoriano a vibragio de emblemas herildicos. 0 studiolo com suas eststuas, seus pai- néis pintados ¢ suas pedras preciosas da antigiiidade expressava o amor & arte € a beleza, € com a beleza veio a virtude, a fé, € 0 que Umberto Eco chamou de “uma espécie de humildade ontolégica diante da primazia da natureza”." A esmagadora curiosidade que induziu colecionadores a procu- rarem nao apenas o que era belo ¢ emblemitico, mas também estranho ¢ incompreenstvel, que os levou a enfrentar com sua inteligéncia e erudigio os autores da antigiiidade, ainda estava muito longe. O pastor huguenote francés ¢ viajante da Amé: a Jean de Léry se per- sguntava, em 1578, como era possivel pedir a scus leitores franceses que “acre~ ditassem no que s6 poderia ser visto a duas mil léguas de distancia do lugar onde viviam; em coisas que os antigos nao conheceram (e sobre as quais nao poderiam ter escrito)”?" Coisas que os antigos ndo conbeceram — esta frase ecoaria pela Europa até abalar seus alicerces intelectuais. Com a exploragio de novos continentes, do macrocosmo planetério e do microcosmo das me- 4 ‘© DRAGAO HO CARNEIRO TARTARO hnores coisas, a Europa safa da sombra da Antigiiidade e de seus autores, que tinham circunscrito a esfera do conhecimento por mais de mil anos. Durante i Mdade Média € 0 comeco do Renascimento, tinha-se como certo que nio ura, nem animal nem sensagio que ja nilo havia fenémeno natural, nem tivessem sido interpretados definitivamente por Aristételes ¢ Plinio, por Cicero ou Pitigoras. O resto, afirmavam os escolsticos, era apenas comen- tuirio ¢ reinterpretagio 3 luz dos evangelhos. ntretanto, um século depois da descoberta da América, novas desco- bertas na terra € no céu continuavam a chover praticamente todos os dias. O ‘conhecimento explodiu, enquanto os horizontes antigos eram ampliados para \ém de tudo aquilo que se julgara possivel. “Nem Aristételes, nem qualquer outro fildsofo e naturalista antigo ou moderno observou ou conheceu [essas coisas}"®, exclamou Francesco Stelluri, confiante, depois de observar uma Abelha ao microscépio; outro, Federico Cesi, imaginava em vor alta o que diria Plinio se pudesse ver “a abelha de juba de ledo, miiltiplas linguas ¢ olho peludo”.” Colecionadores na Itélia reagiram a essa mudanga insistindo no ‘estudo empirico da natureza. Além dos Alpes, outros acharam que esse paradigma nio Ihes ofereceria tudo que pretendiam conhecer ¢ seguiram um nho diferente, combinando conceitos cientificos ¢ aristorélicos com tra- digoes ocultas."* Junto com o erescente espirito cientifico do Renascimento na segun- da metade do século XVI, veio uma grande quantidade de colegdes que procuravam explorar e representar 0 mundo como ele parecia Aquela al- tura, O studiolo jé nao correspondia A necessidade de compreender a sim- ples exuberancia do novo em todas as suas formas estranhas. “Seria cam vergonhoso”, escreveu Francis Bacon em seu Novum Organum em 1620 «para a Humanidade se, depois que essas éreas do mundo material foram abertas, desconhecidas que eram em tempos anteriores — tantos mares navegados — tantos paises explorados — tantas estrelas descobertas — a filosofia, ou o mundo inteligivel, continuasse limitado pelas fronteiras de antigamente.""* (Os interessados em manter essas fronteiras tinham oferecido considera vel resisténcia. Ja Santo Agostinho ¢ Santo Tomas de Aquino ponderavam sobre aonde a curiosidade poderia levar os crentes. Bernard de Clairvaux 5 ‘THRE MANTER: ralhou veementemente com aqueles que se interessavam mais pelas coisas desconhecidas na terra do que no céi Por que os monges que deveriam se dedicar a seus estudos precisam enfrentar essas ‘idiculas monstruosidades? De que serve essa beleza deformada, essa elegante de- formidade? Esses nisticos macacos? Os ledes selvagens? Os monstruosos centauros? Esses semi-humanos? Os tigres pintados? Pode-se ver uma cabega com muitos cor- os ou um corpo com muitas cabecas. Aqui vemos um animal com cauda de serpen- £6, all1um peixe com cabega de animal. Mais além temos um quadripede cuja dianteica € um cavalo e a traseira uma cabra; eli adiante um animal de chifre com traseiro de cavalo... Em nome de Deus! Se ndo temos vergonha dessas bobagens, por que, pelo menos, néo nos indignamos com os custos?"* Conscientes do que a curiosidade pode si ‘ nificar para os gatos, os tedlogos rio tinham certeza de que a fé resolveria, A curiosidade, decidiram cles, era ind, € quem relurasse em ouvir sua mensagem poderia vé-la reforgada pela excomunhio e pela condenagio a fogueira.”” Nem mesmo Michel de Mon- taigne, cujas descobertas sobre a natureza nao sofriam as limitagdes dos ensinamentos da Igreja, era amigo do excesso de curiosidade. Conhecer um homem que tinha vivido no Novo Mundo nao o impressionou: “Receio que nnossos olhos sejam maiores do que nossas barrigas, ¢ que tenhamos mais curiosidade do que capacidade; pois buscamos tudo ¢ s6 capturamos o ven 0." Pessoas que passavam a vida investigando questées obscuras sem sc conhecerem adequadamente eram insensatas, pensava cle. A oposigao de Montaigne & iosidade como forma intelectual de escapismo tinha uma motivagio muito diferente da dos tedlogos, que temiam ue seu mundo fosse inteiramente virado de cabeca para baixo. Tinham ra- 240, € claro, na medida em que dali a 300 anos as colecdes de curiosidades se mostrariam um verdadeiro motor da secularizagio. Colecées de naturalia, de animais, plantas e minerais, multiplicaram-se pela Europa, cada uma constituindo uma enciclopédia da natureza, de conhecimentos que nio de- Pendiam da Igreja. Entre 1556 ¢ 1560, o colecionador holandés Hubert Goltzius relacionou 968 colecées que ele conheceu nos Paises Baixos, Ale- manha, Austria, Suiga, Franca ¢ Itdlia; e um século depois outro coleciona. 36 © DRAGAO # © CARNEIRO TARTARO. dor, Pierre Borel, orgulhava-se de ter visto 63 colegdes. $6 a Repiiblica Ve- neriana tinha mais de setenta colegdes notiveis dentro de suas fronteiras.”” ro surto de Por que terd sido no século XVI que a Europa viveu seu prim atividade colecionadora, na verdade a primeira atividade colecionadora que nao se restringia a um punhado de pessoas desde os tempos de Roma? A resposta, aparentemente, esté um pouco neste mundo e um pouco no outro. A explicagio mundana é que a expansio do conhecimento no século XVI exigia novas respostas, novas abordagens para os novos fendmenos, Estudiosos em toda a Europa exploraram © macrocosmo através do telescé= pio, eas pequenas coisas pelo microse6pio. Inovagées tecnolégicas, como a imprensa, € progressos na construgao naval e na navegagio facilitaram 0 ‘comércioem todo o mundo e trouxeram artigos mais baratos para a Europa. ‘tema bancario mais sofisticado acelerou a troca de bens. No contirente, um Com 0s impérios comerciais como as repiiblicas holandesa ¢ veneziana, sur- ggiu uma riqueza sem precedentes, outro fator crucial para uma florescente cultura de colecionador, Para tirar objetos de circulagao, ou para se dedicar A procura de coisas imiiteis, era preciso dispor de tempo e recursos. De fato, as colegdes progrediram em toda parte onde o comércio floresceu, Juntamente com essas revolugdes mundanas, entretanto, outra, menos palpavel, :stava ocorrendo, uma mudanga na maneira de perceber a morte € ‘o mundo material.” Cristaos medievais eram obrigados a escolher entre amar ‘0 mundo fisico e os seus prazeres, ¢ sofrer a eterna danagio, ou renunciar a tudo isso em nome dos céus — pois de pouco valia ganhar o mundo e perder aalma, cemo diz 0 evangelho. Do ponto de vista do crente, a morte era uma transic4o, um momento de ajuste de contas assinalado por espetaculo pibli- coe ritual comum, Mesmo para os poucos que tinham condigdes, acumular objetos € nao usé-los de imediato s6 era accitavel se estivesse de acordo com esta concep¢ao do mundo: reliquias ¢ belas obras que glorificavam a Deus. Nao temos noticia de qualquer colegio de plantas, pedras ou animais nessa época, apesar do fato de que pecas individuais aparentemente com proprie- dades estranhas, como “ossos de dragio”, geralmente fésseis, costumavam it parar nos tesouros da Igreja e da nobreza. No sécuilo XVI, cada vez mais secular e capitalista, as atitudes em relagio 37 , ‘TER B MANTER Uma conscigncia mais aguda do rente dominou a poesia ¢ as artes, como se pode ver pelas intimeras naturezas-mortas vanitas que faziam parte de qualquer casa rica. Em cada uma, a beleza sedutora do aqui ¢ do agora é contrastada com sua inerente decadéncia. Via-se em todo florescimento o germe da putrefagio, ¢ em to- dos os quadros a passagem do tempo era medida por ampulhetas, cranios ou elas acesas em meio a exibicao stntuosa de frutas, objetos preciosos e belas flores. Nao havia botio delicado sem um besouro rastejando nele, a espera de que murchasse ¢ morresse. © poeta elizabetano Robert Herrick (1591- 1674) resumin este sentimento de inutilidade em um apelo para que seus leitores aproveitassem o dia: Juntem botdes de rosas enquanto podem, ( tempo ainda esta passando: Ea flor que hoje sorti Amanha estaré morrendo.?! A morte 86 assusta se é realmente o fim, € a morte das flores de repente ja nao significa 0 eterno ciclo da criagio de Deus, mas uma perda irreparavel. Em um mundo em que a morte assomava, a aten= so volkava-se para os préprios botdes de Fosa, para 0 mundo material e para os que nele habitavam, A arte do retrato afirmou-se juntamente com a natureza- morta. Foi © novo conceito da vida que tornou possivel 0 ato de colecionar, transformando-o de fraqueza em avaritia, um dos sete pecados capitais, e da rejeigao da vida eterna na busca de Deus por intermédio de sua criagio, na teologia pritica. Para homens como Aldrovandi, a consciéncia da mortalida- de dos esplendores do mundo apenas os estimulava a fazerem de suas cole- ‘sOes testamentos para futuras geracdes. Anova estirpe de colecionadores deixara de apelar para a autoridade da 38 (© DRAGAO HO CARNEIRO TARTARO Igreja, Enquanto corriam para ver o dragio de Aldrovandi, ¢ outras maravi- Thas que ele juntara em sua casa, cardeais ¢ bispos reconheciam tacitamente 1 validade de sua abordagem mundana da natureza, ¢ uma das colegdes mais importantes desse tempo, a do jesuita Athanasius Kircher, tinha por sede o Vaticano. A natureza ¢ as artes se libertaram dos grilhées teol6gicos, ¢ os principes da Igreja estavam ansiosos para tomar parte na exaltagio, maravi= Thando-se com as complexidades da anatomia humana nas sessbes de disse~ mo ¢ as roupas belamente tecidas, feitas de cago, os mistérios do magneti asbesto, que nao se queimavam mesmo no fogo mais quente — fendmenos sobre 05 quais seus ensinamentos nada ensinavam. Ainda existiam, ¢ claro, as grandes colegdes principescas, imensos tesouros como os de Augusto, o eleitor da Saxdnia, de Ferdinando II no Castelo Ambras, perto de Innsbruck, ¢ das grandes casas reais. A partir da década de 1550, entretanto, uma rede de colegdes especializadas estendeu-se pela Ene ropa, como registrou 0 colecionador holandés Hubert Goltzius. Esses estu- diosos correspondiam-se regularmente ¢ apresentavam seus argumentos sobre 10 objetivo © a ordem de suas colegées em livros eruditos.* Ole Worm na Dinamarea, universidades como a de Leiden na Holanda, Oxford, a cidade muscu da Basiléia, na Suiga, e Pierre Borel em Paris participavam dessa troca de idéias ¢ dessa cagada de itens estranhos, preciosos ¢ desconhecidos, que inclufam de troncos de formagio bizarra a frutos exéticos, conchas de nautilos e fragmentos de dragdes ¢ sercias. Con a disseminagao da atividade de colecionador como assunto sério, outro fendmeno apareceu: cdlecionar tornou-se popular entre pessoas que nfo tinham grandes recursos nem grandes ambicdes intelectuais; pessoas comuns que tinham um pouco para gastar. A Holanda era um caso especial mente interessante, Nessa repiiblica, que vivia do seu acesso ao mundo mais vasto ¢ de suas relagdes comerciais que iam das Indias Ocidentais ao mar Baltico, os portos de Amsterda e Roterda encheram-se de coisas exéticas ¢ s de mercadores ¢ colecionadores maravilhosas. Capities recebiam instrugé para anotar e comprar tudo que julgassem digno de ser levado, e marinhei- ros geralmente aumentavam seus ganhos oferecendo animais empalhados, conchas ou artefatos estrangeiros.”» 38 ERB MANTER Em uma sociedade sem aristocraci s muita gente poderia compartilhar essa fartura © comprar objetos para guardar em seus armiérios e exibir para 08 amigos, prova das maravilhas além das ondas e do éxito avassalador que seu pais pequeno e pantanoso tinha alcangado por forga da necessidade, trans- formando 0 mar hostil em um grande mercado. Havia comerciantes espe- cializados em artigos exéticos, ¢ boticarios costumavam estocar coisas curiosas, como miimias egipcias e peixes estrangciros secos, deixando 0 aca- so decidir se deviam virar pé ¢ serem utilizados como remédio ou se deve- iam ser vendidos intactos, para fazer parte de uma colegio. Quando 0 boticério de Leiden, Christiaen Porret, morreu em 1628, o catilogo de lei- io de sua loja mencionava uma comucépia que nao estaria fora de lugar em qualquer armério da époc “curiosidades ou raridades e delicias seletas de hos indianos ou de outra procedéncia, conchas de terra firme e do mar, minerais ¢ estranhas criaturas, assim como objetos pre- parados artificialmente e pinturas”.#* estranhos cornos mari __ Muito antes de a famosa e febril especulagio com tulipas fazer ¢ destruir fortunas na bolsa de valores, a admi Jo por coisas exéticas coloridas jf esta- Ya estabelecida, ¢ o armario de curiosidades, inicialmente uma mobilia na qual se guardavam artigos, tornou-se moda entre os burgueses das cidades holan- desas, principalmente porque mesmo casas de boneca s6 er: n consideradas: completas quando inclujam armérios de colecionador em miniatura, com mints- culas conchas marinhas ¢ entalhes em gavetas do tamanho do polegar.”* $6 cm Amsterda, pouco menos de cem armérios particulares de curiosidade fo- ram registrados entre 1600 e 1740, tes- temunho do grande prestigio que as colegées tinham aleangado ¢ da disponi- bilidade de objetos para encher, de acor- do com as inclinagées e os recursos do dono, gavetas ou cmodos inteiros.2* 0 armério tornou-se parte integrante do 40 © DRAGAO EO CARNEIRO TARTARO. interior holandés, a comegar pelo guarda-louga de mogno coroado de porce- lana oriental que ainda pode ser encontrado nas casas holandesas, e culminaa do com os famosos museus particulares de amadores como Nicolaes Witsen, Bernadus Paludanus ou Frederik Ruysch. Esses armérios eram, com efeito, microcosmos a portas fechadas: enquanto, de acordo com 0 mau clima € os principios calvinistas a riqueza ndo deveria nem poderia ser ostentada nas ruas, fosse na fachada das casas ou nas roupas, essas restrigdes nao se aplicavam 3s, salas de visitas, onde objetos interessantes, méveis finos, tapetes¢, €claro, pin turas definiam o status ¢ 0 gosto de seus donos.” Quando um admirador escreveu dizendo que a famosa colegio de Bernadus Paludanus continha espécimes “Ut alle hoecken claer, des werelts” (“De todas as partes do mundo”), nao era sé modo de dizer.®* A variedade de objetos coletados jé no comego do século XVII é impressionante, ¢ refle- : de armas, porcelanas ¢ cal te a dimensio do império comercial holand. sgrafia japonesas, os artigos registrados em armarios holandeses tinham origem ‘em entrepostes de um mundo mercantil que inclufa China, india, Indonésia, Austrélia, regides africanas diversas como Nigétia, Etiépia ¢ Angola, as ilhas ‘Malaca, o Caribe, as Américas do Norte ¢ do Sul, Egito, Oriente Médio e até dia ¢ Sibéria. Esta abundancia de coisas exéticas, € 0 jeito mesmo Groen: de transporté-las, geralmente a cargo de marinheiros indiferentes as com- plexidades 4a preservacao, tiveram curiosos efeitos colaterais, como o longo debate sobre se aves do paraiso tinham ou nao pernas (inspirando a bela € tragica lenda de que eram condenadas a voar até morrer — pensava-se que 08 colibris enfiavam o bico nas arvores, onde ficavam pendurados para des- cansar), porque a grande maioria'dos espécimes que chegavam A Europa ti- nham apenas corpo, em geral faltando a cauda e a cabega. Conchas e moedas, por serem féccis de preservar e guardar, eram mais procuradas. Enquanto muitas dessas raridades eram usadas para diversio e para se- rem exibidas, outros colecionadores se empenhavam em estudar metodi mente € usavam suas colegdes como repositérios de conhecimento, comparagao e enciclopédias. Jan Jacobsz Swammerdam (1606-78) escreveu. uma monografia sobre “bloedelose dierkens” (“pequenos animais sem san- gue”, ou insetos), que apareceu cingiienta anos apés sua morte com o titulo de Bybel der natuure (Biblia da natureza), expressio ousada num pats piedo- 4 ‘THR HE MANTIN, 80, Além de cerea de trés mil insetos, sua colegio continha espécimes situados na fronteira do conhecimento existente, como “a pele de um carneiro tértaro que resce a partir da terra”, uma planta la- rosa, que segundo a crenca se transfor- mava num carneito noite para comer as plantas citcundantes e sangrava quan- do cortada.#” Aceitar pelo menos que tais criatu- ras cram possiveis, até prova conclusiva em contrario, era boa ciéncia, nao su- perstigao, sobretudo em uma cultura ali- ‘mentada desde a mais tenra fancia por historias e milagres biblicos, e por con ceitos de histéria natural apresentados Por Plinio, Platio e Aristételes, que ain- da exerciam considervel influéncia. A boa cigncia e o espitito do empirismo cram, entretanto, resposta a multiplicidade de coisas que européias. Enqu apenas uma inundavam a Europa ¢ as mentes ‘ estudiosos na Itdlia e na Holanda contavam besouros, outra colecio, infinitamente mais rica, crescia no coragio da Europa, na corte do principe Saturnino, o imperador dos Habsburgo Rodolfo Il. Disposigo para a Melancolia Vocé se admira de que esta matéria, misturada desordenadamente a0 capricho do Acaso, tenha resultado num homem, pois parece que muita iy ie de vezes esta maté- jumbo, ora.um coral, de que, a caminho da forma humana, cem milhd ria foi detida para formar ora uma pedra, ora um seumconl flor, ora um cometa; € tudo isso porque, para compor homer, mais e menos elementos eram ou nto eram necesirios, Nio admira que, da infinita quantidade de matéria que incessantemente muda ee agit, seam sts o& owson aims, veges ¢ minis aque vemos; no admira mais do que tirar um par real em cem lances de dacos. De fato, € igualmente impossivel que essa agitagio nfo con- duza « alguma coisa; ¢ ainda assim esta coisa sempre s espanto por algum cabega-dura que nunca percebera que uma peque: ina mudanga poderia té-lo transformado em algo diferente, Cyrano de Bergerac, Voyage dans la lune! Uma frota magnifica aportou em Génova, em 1571. A bandeira dos ars burgo tremulava em seus mastros, e a carga cuidadosamente tansportada para o ancoradouro do movimentado porto era composta por iste gem repletos de presentes, armas, livros e roupas Precoss oe a principes com sua comitiva de conselheiros, guardas sas los nitrios. captio dos navios, Don Juan da Austria, acabara de derrvs 2 frota otomana na célebre Batalha de Lepanto; agora supervisiona 4B

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