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Revolução 4.

0 e a lição de Marx
SANSON, Cesar. Revolução 4.0 e a lição de Marx. Unisinos.br. Disponível em:
<https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/571238-revolucao-4-0-e-a-licao-de-marx>. Acesso
em: 31 maio 2023.

A Quarta Revolução Industrial é a mais desconcertante revolução produtiva da


história da humanidade e desorganizará radicalmente a sociedade que conhecemos,
particularmente o mundo do trabalho. Os estudos de Marx do papel desempenhado
pela maquinaria na Revolução Industrial alerta para a importância de se estudar e
conhecer a natureza dessa revolução em curso escreve Cesar Sanson, professor na
área da sociologia do trabalho na Universidade Federal do Rio Grande do Norte –
UFRN.

Eis o artigo.

Um estudo recente divulgado pela Universidade de Oxford anunciou que 47%


dos empregos vão desaparecer nos próximos 25 anos na esteira da Quarta
Revolução Industrial. Outro relatório divulgado pela Foundation for Young
Australians (FYA) destaca que mais da metade dos estudantes estão atrás de
profissões que se tornarão obsoletas pelos avanços tecnológicos e automação. A
pesquisa mostra que 60% dos jovens entram no mercado de trabalho em profissões
que serão radicalmente afetados pela automação, e que pode ocorrer dentro dos
próximos 10 a 15 anos.
É fato incontestável. Os robôs eliminam postos de trabalho num ritmo
acelerado. Cada vez mais, os trabalhadores da manufatura serão substituídos pelas
impressoras 3D, os bancários pelos algoritmos e uma enormidade de serviços pela
Inteligência Artificial. Fábricas, bancos, supermercados, fazendas e serviços
públicos automatizados já são realidade. A robotização e a informatização são
irreversíveis.
As mudanças não serão apenas na base técnica, toda a estrutura ocupacional
será alterada. A tendência é de altos salários na ponta dos cargos cognitivos e de
baixos salários nas ocupações manuais. A flexibilidade será a regra nas relações de
trabalho. Empregadores utilizarão a ‘nuvem humana’ – trabalhadores que podem ser
localizados em qualquer lugar para resolução de problemas e projetos.
As inflexões não param por aí. O movimento operário tal qual o conhecemos
será varrido do mapa. O que virá pela frente não se sabe. Talvez os sindicatos
desapareçam e surja outra coisa no seu lugar.
A Quarta Revolução Industrial ou ainda a Revolução 4.0 é a mais
desconcertante revolução produtiva da história da humanidade. As revoluções
anteriores também foram radicais, mas o seu tempo de maturação foi mais
prolongado. Essa, entretanto, se faz num ritmo alucinante. O que sustenta essa
Revolução na opinião de Klaus Schawb - uma referência nos estudos da Revolução
4.0 – é sua velocidade, profundidade e impacto sistêmico e a sua capacidade de
fazer interagir diferentes áreas: física, digital e biológica.
Estamos diante de um grande desafio: estudar, compreender e interpretar o
significado e o impacto da Quarta Revolução Industrial para o conjunto dos
trabalhadores e da sociedade.
Marx já ensinava que o capital adquirindo novas forças produtivas altera o
modo de produção e as relações sociais. O autor de O Capital foi um dedicado
estudioso das máquinas-ferramentas do seu tempo. O objetivo principal de Marx ao
estudar a tecnologia tinha como horizonte compreender a mudança de base material
do capitalismo. O seu interesse no estudo das máquinas era decifrar a lógica das
forças produtivas na dinâmica da luta de classes.
Na sua obra A Miséria da Filosofia expressava essa linha de raciocínio ao
demonstrar as relações sociais atreladas às forças produtivas: “Adquirindo novas
forças produtivas, os homens mudam o seu modo de produção, e mudando o modo
de produção, a maneira geral de ganhar a vida, eles mudam todas as suas relações
sociais. O moinho dar-vos-á a sociedade com o suserano; a máquina a vapor, a
sociedade com o capitalista industrial” [1]
Marx revela que a evolução dos meios técnicos – a maquinaria – impacta o
modo produtivo, revoluciona a forma de produzir, radicaliza a divisão do trabalho
oriunda da manufatura e reorganiza o conjunto da sociedade capitalista. Para além
da consequência objetiva (produção de mercadorias), incorre uma alteração
subjetiva (produção de relações sociais). É celebre a citação sua e de Engels no
Manifesto Comunista: O capital “não pode existir sem revolucionar incessantemente
os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção, e com isso,
todas as relações sociais. (...) Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e
cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas
(...) Tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar (...) Os homens são
obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações
com outros homens” [2].
Partindo da compreensão de que a evolução das forças produtivas enseja
sempre mais a exploração dos trabalhadores, Marx chega à conclusão nos seus
estudos sobre a maquinaria que a mesma se “destina a baratear a mercadoria e a
encurtar a parte da jornada de trabalho que o trabalhador precisa para si mesmo, a
fim de encompridar a outra parte da sua jornada de trabalho que ele dá de graça
para o capitalista” [3]. Em sua interpretação, a maquinaria da grande indústria está
associada à produção da mais-valia, particularmente da mais-valia relativa. Marx faz
uma distinção entre mais-valia absoluta e mais-valia relativa, a primeira é produzida
pelo prolongamento físico da jornada de trabalho e a segunda se faz pelo
barateamento da força de trabalho, abreviando-se a parte da jornada destinada à
produção. Isso se faz, sobretudo através do desenvolvimento da maquinaria.
Ainda mais. Marx revela que a maquinaria sofistica a divisão social do
trabalho tributária do período artesanal e da manufatura. E essa não é uma
mudança qualquer. A maquinaria assume um significado revolucionário nas forças
produtivas e o núcleo central dessa transformação reside no fato de que, por meio
da intervenção da técnica e da ciência no processo de trabalho tem-se a completa
expropriação do saber do trabalhador no processo produtivo.
A maquinaria na opinião de Marx significa uma ruptura da base material e do
controle do trabalhador sobre o processo de trabalho. O trabalho que se realiza tem
a sua autonomia reduzida – considerando-se que já está prescrito. Na manufatura,
“a articulação do processo social de trabalho é puramente subjetiva, combinação de
trabalhadores parciais; no sistema de máquinas, a grande indústria tem um
organismo de produção inteiramente objetivo, que o operário já encontra pronto,
como condição de produção material”, destaca Marx [4]. Na expressão de Marx,
tem-se a subordinação do trabalhador à maquinaria que “confisca toda a livre
atividade corpórea e espiritual”.
Em que pese a possível e aparente demonização de Marx às máquinas-
ferramentas, é um equívoco considerar sua crítica descontextualizada do seu
método – o materialismo dialético. A partir desse método, percebe-se que o
desenvolvimento dos meios técnicos é condição necessária para o surgimento do
conceito de classe social. É o desenvolvimento das forças produtivas e o
amadurecimento do capitalismo que possibilitam a irrupção de um novo ator social
no cenário da sociedade industrial, como a propósito se lê nos Grundrisse: “Se a
sociedade, tal como é, não contivesse, ocultas, as condições materiais de produção
e circulação necessárias a uma sociedade sem classes, todas as tentativas de criá-
la seriam quixotescas” [5].
A breve digressão, valendo-se de Marx sobre o papel desempenhado pela
maquinaria no nascedouro da Revolução Industrial tem como objetivo destacar o
lugar transformador da Quarta Revolução Industrial. Estamos num processo similar
ao que Marx acompanhou. Assim como a Revolução Industrial deixou para trás o
mundo rural, a Revolução 4.0 em curso desorganizará radicalmente a sociedade que
conhecemos, particularmente no mundo do trabalho. Caminhamos celeremente para
o esgotamento da sociedade industrial/salarial. O que hoje é hegemônico será visto
amanhã apenas como vestígios.
Estudar, conhecer e interpretar o que é essa Revolução permitirá uma
intervenção ‘política’ mais adequada e correta. É isso que Marx nos ensina, é isso
que ele fez. Dissecou as entranhas e os mecanismos do nascedouro da Revolução
Industrial para indicar aos subordinados chaves de leitura que indicassem a
resistência e a luta por dignidade.

Notas:

1 - MARX, Karl. A Miséria da filosofia (1985). São Paulo, Coleção Bases:


Global Editora, p. 106.
2 - MARX, Karl; ENGELS, Friedrich (1988). Manifesto Comunista. São Paulo:
Boitempo, p. 43.
3- MARX, Karl. O Capital - vol. II, 3ª Ed (1985), São Paulo, Nova Cultura, p.
07.
4 - ________. O Capital - vol. II, 3ª Ed (1985), São Paulo, Nova Cultura, p. 17.
5 - ROSDOLSKI, Roman (2001). Gênese e estrutura de O capital de Karl
Marx. Rio de Janeiro: Contraponto, p. 353.

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