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impresões de minas
belo horizonte
2018
As substâncias chamadas “naturais” (testosterona,
estrógeno, progesterona), os órgãos (as partes
genitais macho e fêmea) e as reações físicas
(ereção, ejaculação, orgasmo etc) devem ser
consideradas como poderosas “metáforas políticas”
cuja definição e controle não podem ser deixadas
nem nas mãos do Estado nem das instituições
médicas e farmacêuticas heteronormativas.
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Sexta-feira, 18 de maio
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Domingo, 20 de maio
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Domingo, 20 de maio (+ tarde)
Escrever é aptidão?
Escrever é resistência?
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Terça-feira, 22 de maio
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Sem data
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tinha uma insônia fodida, não gostava de nada do
que escrevia, não gostava de preparar a própria
comida e também não gostava muito de tomar ba-
nho. Fiquei com pena. Não querer fazer a própria
comida, não querer tomar banho, tomar com-
primidos para dormir e não confiar nas próprias
palavras é muito familiar. Achei que se um dia eu
virasse alguém que pode escrever coisas, eu gos-
taria de escrever para aquelas pessoas que sentem
mais ou menos as mesmas coisas que eu e a Susan
Sontag, e que se a gente começar a observar com
atenção vai perceber que é um número bem consi-
derável de pessoas, minha multidão.
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Quarta-feira, 23 de maio
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Sem data
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Segunda-feira, 2 de junho
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Terça-feira, 3 de junho
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Sábado, 7 de junho
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Domingo, 8 de junho
+ leve
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Eu até fingi que não fiquei furiosa quando eles
esqueceram a data do meu aniversário. Eu pensei
eles me pagam. Depois me lembrei da promessa: ser
mais tranquila, cordial e desembaraçada. Se eles
convivem com as minhas contrações, com os meus
erros de português e com minha dislexia, algum
tipo de amor devem sentir por mim, mesmo que
esse sentimento não seja verbalizado diretamente,
mas expresso em sintomas físicos extremamente
desagradáveis como as dores de estômago e os
estados de ânimo.
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Segunda-feira, 9 de junho
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Quarta-feira, 10 de junho
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Terça-feira, 10 de junho
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Sem data
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Sábado, 14 de junho
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as coisas que eu não consigo falar com ele. Isso não
tem nada a ver com as minhas partes íntimas, odeio
esse nome partes íntimas. Tem gente que tem medo
de falar o que as coisas são de fato: boceta, cu, pau.
Com meus alunos eu não falo assim, tento ser poli-
ticamente correta e evito gírias, quer dizer, mais ou
menos, eu sempre falo que estou muito puta com
eles. Eles entendem e não ficam bravos porque são
fofos. Eu acho que intimamente, às vezes, eles tam-
bém pensam: filha da puta. Eu conheço pessoas
que não conseguem dizer determinadas palavras.
Minha mãe, por exemplo, chama axila de sovaco e
cocô de fezes. Fezes? Quando eu era criança, ela me
chamava no quarto, trancava a porta e dizia: estou
preocupada com as suas fezes. Eu conheço várias
pessoas que não conseguem falar a palavra ho-
mossexual. Enfim, na sala de aula, quando falamos
de sexo usamos as palavras indicadas pelo plano
nacional da educação: vagina, ânus e pênis.
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Domingo, 15 de junho
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Domingo, 15 de junho (+ tarde)
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Segunda-feira, 16 de junho
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Quarta-feira, 18 de junho
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Quinta-feira, 19 de junho
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Sexta-feira, 20 de junho
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Sábado, 21 de junho
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Domingo, 22 de junho
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Sem data
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+ tarde
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Quinta-feira, 27 de junho
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Domingo, 28 de junho
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Segunda-feira, 29 de junho
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Terça-feira, 30 de junho
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Sem data
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Sem data
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Terça-feira 30 de junho
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Quinta-feira, 3 de julho
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Sem data
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Domingo, 6 de julho
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que era viciado em dívidas e minha mãe disse que
uma amiga dela foi embora da cidade porque um
dia acordou, olhou para o céu e se cansou de ver o
céu sempre tão cinza. Minha mãe disse que um dia
vai fazer a mesma coisa (ir embora em direção ao
sol), mas antes, ela disse, eu juro que mato o seu pai.
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Sem data
Deixar arder.
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Segunda-feira, 7 de julho
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Terça-feira, 8 de julho
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Depois de um tempo fazer aniversário virou uma
coisa péssima, uma data no calendário que provoca
uma ansiedade parecida com a de ficar pelada na
frente de uma pessoa que você não conhece ou no
meio da sala de aula. No dia anterior ao meu aniver-
sário eu fico torcendo para ser logo o dia seguinte.
Eu quase sempre estou querendo que seja o dia se-
guinte. Nesses dias, que são meus dias normais, eu
não faço coisas muito sérias. Eu encontro com os
meus alunos, leio muitos livros e outros materiais
impressos, como o jornal do bairro e as bulas dos
remédios que uso para a coceira na perna, escrevo
este diário edificante e encontro com o médico.
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Quarta-feira, 9 de julho
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tricotilofagia, que é o impulso não só de arrancar o
fio, mas também de comê-lo. Em casos agudos de
tricotilofagia a pessoa precisa fazer uma cirurgia na
barriga para retirar o novelo de fios de cabelo que ela
colocou para dentro. Nas minhas pesquisas no goo-
gle descobri que a tricotilomania é um tipo de dis-
túrbio de controle impulsivo, ou seja, a incapacida-
de de resistir a um impulso que pode causar danos
para a própria pessoa. A cleptomania, a piromania e
o jogo patológico são outros exemplos de transtornos
de controle impulsivo. Quase todos esses distúrbios
possuem um ciclo: tensão, alívio da tensão (prazer)
e arrependimento. A tricotilomania atinge 4% da
população mundial. As mulheres são quatro vezes
mais propensas a desenvolver o distúrbio do que os
homens. Além disso, o google disse que pessoas que
sofrem de tricotilomania têm, geralmente, proble-
mas de tristeza, ansiedade, depressão e autoimagem
ruim. As crises são episódicas, é verdade, posso ficar
anos sem arrancar um fio de cabelo sequer. Descobri
também que as faixas etárias com maior incidência
do distúrbio são a pré-adolescência (onze aos qua-
torze anos) e infância (seis a dez anos). Ao longo dos
anos, fui aprendendo a lidar com o medo que as
pessoas sentem desses comportamentos e, para não
assustá-las, não arranco meus cabelos em público.
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Sábado, 12 de julho
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Sem data
Nós rimos.
Achei humano.
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Domingo, 11 de julho
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Segunda-feira, 12 de julho
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Sem data
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Sem data
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Quarta-feira, 14 de julho
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Apesar de estar bem acostumada com o ódio das
pessoas, eu finjo super bem. Então, quando ele
prescreveu este diário, eu acho que ele achava
que de certa forma algum material literário sairia
da minha fala repetitiva, circular e disléxica. Eu
também acreditei nisso e fiquei bastante empolga-
da com a possibilidade de o médico me amar um
pouquinho. Mas agora que estou aqui, escreven-
do, há dois meses, eu sinto que viver nesses dois
mundos é ainda mais bagunçado. Minha vida de
dia a dia virou um caos, comentam que eu tenho
cara de vilã e que falo sem pensar e que isso magoa
as pessoas. Eu não quero magoar ninguém. Tal-
vez a máscara de menina boazinha que aprendi a
usar desde criança tenha sido colada com cimento
odontológico no meu rosto, igual o cimento que o
dentista usou para colar o meu dente que quebrou.
Ele fez um dente de mentira e disse: vamos colar
com um bom cimento. Pode ficar tranquila que não
vai cair mais, mas você tem que me prometer que
vai parar de mastigar bala chita.
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Sem data
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Terça-feira, 13 de julho
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flauta no Sete de Setembro só para comer pão com
mortadela na hora da merenda, porque meu pai só
comprava presunto sadia e eu amava mortadela.
Eu achava o hino da bandeira tão bonito, princi-
palmente a parte que falava recebe o afeto que se
encerra em nosso peito juvenil. Eu também gos-
tava do Sete de Setembro porque minha mãe ficava
horas penteando meu cabelo, fazia um rabo de
cavalo bem alto e dava um laço com fita de cetim
branco que ela passava pra ficar lisinha e brilhando.
Minha mãe adorava o meu cabelo, cuidava dele
com se fosse um filhote. Nas minhas crises bravas
de piolho, ela chegou a contratar uma moça para
catar as lêndeas, matar os piolhos e passar pente
fino com água e vinagre para debelar a infestação.
Minha mãe é mesmo uma pessoa muito boa porque
ela viu todas as merdas que eu fiz com o meu ca-
belo depois que eu fiquei grande e nunca deu um
pio. Eu acho que minha mãe também confunde boa
ação com masoquismo.
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a menina do show de mágica, a menina neta da
minha avó, tão bonitinha. Grande parte do tempo
eu andava para baixo e para cima fantasiada des-
sas meninas todas. Era muito comum uma pessoa
ou várias pessoas me pararem na rua e pedirem
para tirar um retrato meu. E quando as pessoas
falavam para mim que eu era muito bonitinha, e
olhavam para mim com cara de curiosidade, como
se eu fosse uma boneca, um bibelô ou um anjinho
barroco, eu não entendia muito bem. Por dentro
eu já sentia um negócio estranho. Eu já sentia que
aquilo era uma fraude. Depois descobri que alguns
anjos são ocos por dentro.
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registrar aquele momento. Mas rapidamente eu
tive uma espécie de iluminação e entendi tudo.
Entendi por que os adultos apertavam a minha
bochecha e por que as pessoas falavam que eu
era muito bonitinha: eu me vi. Eu era uma meni-
na tipicamente ouropretana subindo e descendo
uma ladeira histórica, numa cidade histórica,
com o uniforme do colégio histórico e chupando
meu chupe-chupe de leite condensado com his-
tórico de água de torneira e pedaço de unha.
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Um sábado, voltando do escoteiro, parei para
comprar bombom de uva numa lanchonete que
existia na rua São José, ao lado do Hotel Toffolo.
Um homem que estava lá dentro me disse: que me-
nina bonitinha, eu vou comprar um bombom para
você. Eu não aceitei. Ele insistiu, eu não aceitei. A
dona da lanchonete que era conhecida da minha
mãe disse: pode aceitar, minha filha! Mas eu era
valente na minha obediência. Uma das primeiras
coisas que uma menina aprende na vida é que não
pode nunca aceitar nada de pessoas desconhe-
cidas. Comi o meu bombom, paguei e fui embora
um pouco confusa: deixar que uma pessoa faça
uma coisa para você, mesmo você não querendo,
é considerado uma boa ação? Será que eu tinha
desperdiçado a minha boa ação do dia? Um tem-
po depois, a dona da lanchonete comentou com
minha mãe que eu tinha sido muito mal educada
com um turista.
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Domingo, 20 de julho
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A professora de geografia foi a primeira mulher
inteligente que eu conheci na vida. Inteligente
mesmo, de carne e osso. Deu vontade de escrever
carne de pescoço, porque toda pessoa inteligente
é um pouco carne de pescoço, mas ela não. Ela era
diferente de todas as professoras que eu tinha
tido até então. Principalmente, ela era diferente
de todas as mulheres que eu conhecia até então.
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separa o universo temático das crianças do universo
temático dos adultos. A partir daquele momento,
com aquela professora, eu recebia a autorização
para entrar nesse outro mundo: eu podia falar e eu
falava muito.
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de verdade. Toda curiosidade e euforia do início
da manhã tinham desaparecido. Eu estava cansa-
da, puta comigo mesma por ter perdido de novo os
óculos (sem eles não consigo enxergar o número do
ônibus). Estava a ponto de me desesperar de verda-
de, encaminhando para me chafurdar em mais um
desastre imaginário, quando pensei: não vou me
desesperar, não vou ficar puta comigo mesma por-
que perdi os óculos. Sempre que eu perco alguma
coisa ou quando sou roubada, eu fico cinco minutos
chateada. Depois penso que não adianta chorar o
leite derramado e a sensação ruim passa. É incrível
como funciona. Além desses cinco minutinhos de
raiva e autopiedade, eu não fico remoendo o negó-
cio para sempre como acontece basicamente com
quase tudo na minha vida. Talvez isso seja a tal da
psicologia positiva funcionando numa única esfera
da minha vida. Basicamente, a psicologia positiva é
um método que quer colocar o ser humano a favor
da felicidade, eu acho isso muito utópico, mas não
custa tentar. Segundo o google, a psicologia posi-
tiva é um movimento recente dentro da psicologia
que visa fazer com que os psicólogos contemporâ-
neos adotem uma visão mais aberta e apreciativa
dos potenciais, das motivações e das capacidades
humanas. Pelo o que entendi é algo como cultivar
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bons pensamentos, ou melhor, afastar os maus
pensamentos e ser otimista. Acima de tudo, acredi-
tar que o mundo é bom e que as pessoas são boas e
que elas não estão querendo te foder o tempo todo.
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Terminou de escrever o diário alguns dias depois.
Guardou o caderno em uma gaveta e só se lem-
brou que deveria enviá-lo ao médico quase dois
meses mais tarde. Desde o último encontro, não
sentia necessidade de vê-lo ou de conversar com
ele. Agora, ela tinha um corpo que gritava, e o
grito é uma espécie de sentimento ou de verdade,
descobriu. Decidiu enviar o diário pelo correio.
Uma semana depois, recebeu o envelope com o
seguinte aviso: destinatário não encontrado.
Conferiu nome, sobrenome e endereço. Será que
o médico tinha se mudado? – pensou. Reenviou o
pacote mais duas vezes e, novamente, o envelope
retornou. Resolveu fazer a entrega pessoalmente.
Poderia deixar com o porteiro ou tentar colocá-
-lo embaixo da porta da sala. Chegou à portaria
do edifício comercial e pediu para um senhor que
estava sentado em uma mesa lendo jornal que
entregasse o envelope ao médico. Ele disse que
não conhecia aquela pessoa, que provavelmente ela
estava enganada, havia errado o endereço. Ela per-
guntou se ele era novato e o porteiro respondeu que
trabalhava no prédio havia mais de quatorze anos.
Pediu para ele conferir mais uma vez. Paciente-
mente, o homem mostrou uma lista com o nome de
todas as pessoas que trabalhavam no prédio. Leu
com cuidado a folha, tentando encontrar o nome
do médico no meio de tantos nomes e sobrenomes.
Depois de um tempo, o porteiro retirou a lista das
mãos dela e disse sinto muito.
Nota
flaviaperet@hotmail.com
Agradecimentos
Impressões de Minas
Rua Bueno Brandão 80 Floresta 31015-178
Belo Horizonte - MG
Tel. (31) 3492 2383
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Publicam-se poesia e prosa, gregos e troianos,
barrocos e modernos: o selo leme foi criado pela
impressões de minas e pelo ateliê de estratégias
narrativas com a ideia de incentivar a criação
literária e publicar novos autores.
Fui impresso em setembro de 2018 na gráfica da
Impressões de Minas, miolo em papel Pólen
Soft 80g e capa em Color Plus Majorca 180g,
na tipografia Silva Text Book.