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flávia péret – os patos

impresões de minas
belo horizonte
2018
As substâncias chamadas “naturais” (testosterona,
estrógeno, progesterona), os órgãos (as partes
genitais macho e fêmea) e as reações físicas
(ereção, ejaculação, orgasmo etc) devem ser
consideradas como poderosas “metáforas políticas”
cuja definição e controle não podem ser deixadas
nem nas mãos do Estado nem das instituições
médicas e farmacêuticas heteronormativas.

Paul B. Preciado, em Manifesto contrassexual.


Editora N-1, p. 40.
Quinta-feira, 17 de maio

O texto é da cabeça para o corpo


ou do corpo para a cabeça?

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Sexta-feira, 18 de maio

Se o médico tivesse uma secretária eu ligava e


avisava: esta semana não vou e pronto. Mas ele
não tem secretária e eu sou medrosa demais para
pegar o telefone, escutar a voz dele do outro lado
da linha e falar: não vou.

Por conta disso e de um monte de outras coisas, há


cinco anos, todas as semanas, exceto quando ele
viaja com a família para Buenos Aires ou para Punta
Cana, eu vou.

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Domingo, 20 de maio

Nos encontros com o médico eu falo sempre muito e


sempre muito rápido, e troco as palavras o tempo
todo. Não tem problema, o médico disse. Fala é
repetição. Como fico exausta... Só eu sei a com-
plicação social que é trocar tanto as palavras. As
pessoas pensam que eu sou burra, eu sei. Elas não
falam na minha cara, mas pensam. O médico contou
que o nome disso é dislexia. Você pode tomar esse
remédio aqui ó, de vez em quando funciona, mas o
que resolve mesmo é você se casar com um homem
bastante paciente e ter alunos bastante pacientes,
porque o mundo não precisa pagar nada a você só
porque você se casou com o homem errado. Na hora
eu fiquei puta e pensei que casar com o homem
errado é o menor problema que uma pessoa com
a cabeça péssima pode ter na vida. Por precaução,
aceitei a receita azul, e por medo ainda não comecei
a escrever o que ele de fato me pediu para escrever,
quer dizer, é um pouco por medo e um pouco porque
eu não sei como começar essa coisa.

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Domingo, 20 de maio (+ tarde)

Escrever é aptidão?

Escrever é resistência?

Escrever é renúncia? Renunciar ao bom senso,


à inteligência. Falar do que não se sabe.

Quando eu escrever, conseguirei renunciar à vergonha?

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Terça-feira, 22 de maio

Eu estou numa fase péssima e o médico me


prescreveu escrever este diário, relatar a História
do Meu Corpo. Grande bosta. Será que isso tem a
ver com o que as palavras escondem e com o que
as palavras revelam? Ou tem a ver com métodos
que eu não entendo muito bem, porque pato que é
pato não dá explicação. Ou é uma dessas coisas
psicológicas que as pessoas tentam resolver com
psicólogos? Mas o médico não é psicólogo, e mesmo
sem entender os métodos dele, aceitei a tarefa.

9
Sem data

O médico acha que essa fase péssima tem a ver com


minha relação conflituosa com o meu corpo. Que
corpo? Já minha acupunturista, que é mais brother,
assegura que a fase péssima vai passar. Segundo
ela, foi uma mistura de inferno astral com outras
conjunções energéticas a nível planetário. Parece
papo de professor de yoga, mas outro dia eu esta-
va na sala de aula e todos os meus alunos estavam
com uma cara péssima e eu perguntei o que estava
acontecendo e todos disseram em coro: estamos
péssimos. Todo mundo às vezes fica péssimo e
precisa de ajuda: eu, você, o motorista de táxi, os
meus alunos e até a Susan Sontag. Eu estava lendo
os diários dela e ela se sentia sempre tão péssima,

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tinha uma insônia fodida, não gostava de nada do
que escrevia, não gostava de preparar a própria
comida e também não gostava muito de tomar ba-
nho. Fiquei com pena. Não querer fazer a própria
comida, não querer tomar banho, tomar com-
primidos para dormir e não confiar nas próprias
palavras é muito familiar. Achei que se um dia eu
virasse alguém que pode escrever coisas, eu gos-
taria de escrever para aquelas pessoas que sentem
mais ou menos as mesmas coisas que eu e a Susan
Sontag, e que se a gente começar a observar com
atenção vai perceber que é um número bem consi-
derável de pessoas, minha multidão.

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Quarta-feira, 23 de maio

Meia-noite: pressentimento de insônia.

12
Sem data

Ainda não consegui ultrapassar a fase infantil que


divide o mundo em dois pólos: os bonzinhos e os
mauzinhos, verdade e mentira, certo e errado.
Deve ser por isso que o médico sempre fala que
eu não posso faltar duas semanas consecutivas e
que eu preciso me comprometer de verdade com
a escrita deste diário.

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Segunda-feira, 2 de junho

Como uma mulher consegue se levantar diariamente


da cama e atravessar a porta que separa sua casa
do mundo?

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Terça-feira, 3 de junho

Eu estou sempre em outro lugar. Será que quando


eu conseguir estar no mesmo lugar eu vou ficar
boa? O médico disse que enquanto eu acreditar que
existe um lugar eu vou continuar péssima.

15
Sábado, 7 de junho

Semana passada ele disse:

1) quase todos os seus pensamentos inteligentes são,


no fundo, sexistas.

2) o sentimento de culpa é uma opção e não um destino.

3) todas as instâncias da vida emocional de uma


pessoa passam pelo corpo.

16
Domingo, 8 de junho

Escrever para ficar boa da cabeça... foi mais ou


menos o que o médico disse. Escrever para não
ficar preguiçosa como as crianças que se entopem
de açúcar e conservantes e depois sentem dores de
estômago fortíssimas. Ainda não falei das dores,
elas não são um problema psicológico e muito me-
nos podem ser interpretadas como um resumo da
minha vida emocional, como o médico acha. As do-
res surgiram quando eu comecei a sentir as contra-
ções. As crianças ficavam me olhando estrebuchar
na frente da sala e acho que, por amor, começaram
a se contorcer também. Nós colocamos a mão na
boca do estômago e comprimimos o peito contra a
barriga. Eu pensei: preciso ajudá-los. E, por isso, na
última crise coletiva de dor decidi ser uma pessoa
mais tranquila, mais cordial e mais desembaraçada.

+ leve

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Eu até fingi que não fiquei furiosa quando eles
esqueceram a data do meu aniversário. Eu pensei
eles me pagam. Depois me lembrei da promessa: ser
mais tranquila, cordial e desembaraçada. Se eles
convivem com as minhas contrações, com os meus
erros de português e com minha dislexia, algum
tipo de amor devem sentir por mim, mesmo que
esse sentimento não seja verbalizado diretamente,
mas expresso em sintomas físicos extremamente
desagradáveis como as dores de estômago e os
estados de ânimo.

18
Segunda-feira, 9 de junho

Será que quando o médico me prescreveu a escrita


ele imaginou que eu iria produzir algo diferente dis-
so? Minha escrita é como meu umbigo – pequena,
retraída e para dentro. Este diário é pura estetiza-
ção da vida. No mundo real, as palavras prescindem
dessas notas de rodapé, no mundo real as palavras
são: exames, médicos, radiografias, próteses, im-
plantes, dentes, legumes, absorventes higiênicos,
mão, rosto, remelas, cotovelo, canela, maquiagem,
protetor solar, pão, documentos, relatórios, reu-
niões, aulas, pia, detergente, louça, lixo, banheiro,
casa, táxi, ônibus, palestras, condomínio, correios,
chuveiro, secador de cabelos, comida, refeições,
água, chá, macarrão, bolsa de água quente, ovo co-
zido, omelete, remédios, cólica, estômago, insônia,
ansiedade, sinusite, rinite, enxaqueca, alergia, co-
luna, cervical, farmácia, internet, televisão, música,
cantores, sexo, meias, calcinhas, cabelo, carro, mãe,
avó, médico, vizinhos, brigas, filas, supermercado,
sacolas, mochilas, livros, xerox, cortinas, inflação,
desemprego, orgasmo. No mundo real, as palavras
vivem o tempo todo imersas na ocupação de serem
somente palavras.

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Quarta-feira, 10 de junho

Desconexão entre ser e fazer. O médico diria


desconexão entre ser, fazer e sentir. Eu só estou
fazendo e pensando a mesma coisa (ao mesmo
tempo) quando escrevo e, mesmo assim, é difícil
porque eu ainda tenho que lidar com o constran-
gimento de avaliar se as minhas ideias são pensa-
mentos ou se são grande bosta. Eu sempre escondi
que queria ser escritora. Eu escondia outra coisa,
o médico disse. Um escritor pode criar dezenas
de subterfúgios e de tramas e de labirintos para
esconder quem ele realmente é, mas uma coisa ele
jamais conseguirá esconder: que é um exibicionista.

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Terça-feira, 10 de junho

Eu queria a linguagem bruta, eu queria escrever


obscenamente. Eu queria escrever sem enfeites ou
sem metáforas, eu queria conseguir dar um nome
para a insônia e não dizer que a insônia é meu inferno
particular. O que fazer com essa sexualidade sel-
vagem? Tem que existir outra forma de expressão.
Eu não consigo deixar de olhar para mim mesma e
pensar: você é uma farsa. Será que escrever é isto:
estar quase sempre muito longe das coisas como
elas realmente são? Será que escrever é uma farsa?

21
Sem data

Como construir um corpo?

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Sábado, 14 de junho

O médico insiste para que eu escreva sobre o meu


corpo, já que não consigo falar com ele sobre o
assunto. Eu podia tentar fazer aqueles exercícios de
descrição que os alunos fazem na faculdade de belas
artes. Olhar dez minutos para o próprio corpo e
descrevê-lo detalhadamente: cor, forma, tamanho,
peso, cheiro, texturas, profundidade, saliências,
reentrâncias, vincos, partes duras, partes moles,
partes mortas. Só de pensar em transformar meu
corpo em objeto de avaliação as contrações voltam.
Eu ainda não contei para o médico que o primeiro
homem que me viu pelada ficou com tanta dó de
mim que chorou. Eu tive que consolar o homem da
profunda dor que ele sentiu ao amar uma mulher
com um corpo todo marcado e estropiado. Eu tinha
dezesseis anos. Eu já era bem preparada para este
tipo de situação: perdoar as pessoas porque elas não
conseguem me amar ou perdoar as pessoas porque
elas sentem uma espécie de repulsa ou nojo ao me
tocar. Pelo menos, já consigo entender que tenho
vergonha do meu corpo e que isso tem a ver com

23
as coisas que eu não consigo falar com ele. Isso não
tem nada a ver com as minhas partes íntimas, odeio
esse nome partes íntimas. Tem gente que tem medo
de falar o que as coisas são de fato: boceta, cu, pau.
Com meus alunos eu não falo assim, tento ser poli-
ticamente correta e evito gírias, quer dizer, mais ou
menos, eu sempre falo que estou muito puta com
eles. Eles entendem e não ficam bravos porque são
fofos. Eu acho que intimamente, às vezes, eles tam-
bém pensam: filha da puta. Eu conheço pessoas
que não conseguem dizer determinadas palavras.
Minha mãe, por exemplo, chama axila de sovaco e
cocô de fezes. Fezes? Quando eu era criança, ela me
chamava no quarto, trancava a porta e dizia: estou
preocupada com as suas fezes. Eu conheço várias
pessoas que não conseguem falar a palavra ho-
mossexual. Enfim, na sala de aula, quando falamos
de sexo usamos as palavras indicadas pelo plano
nacional da educação: vagina, ânus e pênis.

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Domingo, 15 de junho

Escrever é criar esperas e preenchê-las com


expectativas não cumpridas.

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Domingo, 15 de junho (+ tarde)

Eu preciso entender racionalmente o que é o prazer.


Entender racionalmente como é que faz para se ter
um orgasmo. O bispo Edir Macedo disse que a fé é
um atributo da racionalidade, que só tem fé quem
pensa racionalmente. Esse bispo não é pato, todo
mundo está cansado de saber disso. Mas eu não en-
tendi direito. Vou perguntar para o médico se o
orgasmo é uma questão de fé.

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Segunda-feira, 16 de junho

Trecho do diário da Susan Sontag, 19/11/59

“O orgasmo põe em foco. Eu anseio por escrever. A


vinda do orgasmo não é a salvação (...). Não consigo
escrever antes de achar meu ego. O único tipo de
escritor [que eu] poderia ser é o tipo que se expõe...
escrever é consumir a si mesma, apostar a si mes-
ma. Mas até agora eu não consegui gostar nem do
meu próprio nome. Para escrever, tenho de amar
o meu nome. O escritor vive apaixonado por si
mesmo... e faz seus livros a partir desse encontro
e dessa violência.”

27
Quarta-feira, 18 de junho

Se eu conseguisse pelo menos inventar uma história


sobre a história do meu corpo. Mas eu me olho no
espelho e tenho vontade de desaparecer como
a espuma do sabonete. Meu corpo sem histó-
ria é uma ideia fixa. O médico disse que eu podia
inventar qualquer personagem, que eu podia ser
qualquer coisa, que a minha inversão invenção
mais falsa é talvez a mais verdadeira. Não consigo
escrever pensando nessa expectativa. Não consigo
escrever quando o tédio

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Quinta-feira, 19 de junho

Não escrevi nada hoje.

29
Sexta-feira, 20 de junho

Não escrevi nada hoje.

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Sábado, 21 de junho

Acho que deveria mudar esta frase e escrever:


não escreverei nada hoje. Não escrever é um
ato de resistência?

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Domingo, 22 de junho

Faz de conta que a história do meu corpo conta a


seguinte história: era uma vez um corpo que você
podia enfiar um pau grande e grosso dentro dele e
o corpo não sentia nada. Nem pedras quentes, nem
mãos de fada. A casca é feita de mogno vermelho.
O que chamam de pele é mais parecido com um
verniz, película de silicone que retém fluxos e inten-
ções. Cabeça, troncos, pernas, duas mãos e dois pés
voltados para fora. Manchas.

32
Sem data

A linguagem me puxa para dentro da linguagem.


Eu tinha que escrever a História do Meu Corpo,
o médico prescreveu. Mas eu só quero escrever
frases bonitinhas. E eu fico me orgulhando e me
envergonhando do meu texto. Quer dizer, eu te-
nho bastante vergonha do meu corpo sem história.
Mas enquanto eu não conseguir inventar a História
do Meu Corpo minha ambição muito justa se afoga
numa poça de lama do centro da cidade contamina-
da com xixi de rato.

33
+ tarde

Mas eu acho mesmo (depois de refletir um pouco)


que meu medo maior é dos ratos. Eu tenho medo
de pisar em caco de vidro, de cair da escada, de ser
estuprada, de fritar batata e o óleo quente queimar
minha mão, da panela de pressão explodir, de dor-
mir na casa dos outros, de morrer de acidente de
ônibus, de morrer de acidente de carro, de ser atro-
pelada por motorista bêbado, de nunca conseguir
falar para o médico sobre as coisas que eu sinto, de
não conseguir ter fé no orgasmo. Mas o maior medo
é saber que existem dezenas de ratos nesta cidade
e que neste exato momento eles estão lá na Praça
da Estação escutando o hino nacional, enquanto as
pessoas no andar de cima pulam carnaval.

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Quinta-feira, 27 de junho

Vou começar a explicar do começo a história do meu


corpo. Eu nasci: pequena, com os olhos esbuga-
lhados e muito cabeluda. Todas as fotos de família
atestam essa descrição. Depois do nascimento, tudo
que eu sei é que eu nunca mais estive no mesmo
lugar que o meu corpo está. Eu estou sempre em
outro lugar. Eu me lembro de pensar: ser criança
não é fácil. Eu acho que quando eu pensava isso eu
já estava nessa briga de estar aqui e lá ou lá e aqui.
Eu não lembro o que eu pensava quando eu estava
dentro do útero da minha mãe. Com certeza eu não
pensava em livros, aulas, sexo, banheiros públi-
cos, almoços, reuniões, aparelho urinário, minhas
emoções, água mineral, imposto de renda, conta
de telefone, internet, corpo, história, médico. Talvez
eu só pensasse na minha mãe, no sangue quenti-
nho que passava pelo cordão umbilical, naquela
água quentinha dentro da barriga dela. Depois, eu
fui para outro lugar e tenho certeza de uma coisa:
nunca mais eu e minha mãe estivemos juntas no
mesmo lugar. Minha mãe também está sempre em
outro lugar.

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Domingo, 28 de junho

Acordei de madrugada com uma coceira forte na


perna. Pensei que fosse picada de pernilongo, mas
não era.

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Segunda-feira, 29 de junho

Eu quase nunca consigo dizer as coisas que eu


sinto. Eu só consigo dizer as coisas que eu penso.
Conclusão do médico.

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Terça-feira, 30 de junho

Agora, escrevo quase diariamente, me impus esse


condicionamento físico. Continuo sem entender e,
principalmente, não consigo responder a pergunta
que o médico me faz toda semana. Ele diz: o que
você está sentindo? Eu não sei o nome disso e agora
eu juro que não estou falando metaforicamente. Eu
não tenho palavras porque eu não tenho os senti-
mentos (ainda). Por isso não encaixa. Eu até pode-
ria ser leviana e responder: o que eu sinto é medo,
mas nós dois sabemos que não é isso e eu preferi
não ser leviana com ele. E, apesar dessa antipa-
tia crônica, nós temos um trato: minha ambição é
muito justa para eu nadar, nadar, nadar e nada. Não
consigo sair do lugar.

OBS: A coceira piorou, agora além de pinicar,


apareceram manchas vermelhas em alto relevo.
Tenho medo de coçar. A região (dos tornozelos ao
joelho) fica em carne viva por cerca de vinte minu-
tos e depois volta ao estado normal, acontece sem-
pre à noite. Ontem, tirei umas fotos da coisa toda
e depois fiquei horas procurando um diagnóstico
no google.

38
Sem data

Será que a história não evolui porque não existe


história? Se não existe história por que eu tenho
que escrever a História do Meu Corpo, como o
médico prescreveu? Eu poderia resumir a história
do meu corpo com a seguinte frase: “Mulher nua
sai do corpo pela primeira vez e não gosta do que
vê.” Mas o médico disse que eu não posso usar as
palavras dos outros para dizer o que eu sinto. Ele
disse que eu tenho que criar minhas próprias pala-
vras, nem que para isso eu precise inventar. Então,
em tese, o resumo da história do meu corpo não
vale nada em termos de ajudar a ter uma cabeça
menos péssima, mas serve bastante para a gente
olhar para a frase e pensar: é uma boa síntese bio-
gráfica. Se o médico, pelo menos, acreditasse que
a psicologia positiva tem alguma qualidade... Mas
ele não acredita. Eu acho que o médico nunca fez
xixi na piscina.

39
Sem data

A história da garça, a história do pato, o ovo quem


bota é a galinha.

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Terça-feira 30 de junho

Fico pensando se a insônia não seria minha melhor


forma de histeria. Vou perguntar para o médico.

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Quinta-feira, 3 de julho

Eu não consigo dizer quem eu sou e essa escrita não


vai explicar nada. Até porque eu minto o tempo todo
para mim. Quem me obrigou a esse pacto com a
linguagem? Não contar histórias, não representar,
não inventar situações. Minha escrita está fadada
a esse esboço de pensamento circular, repetitivo
e pouco original. Eu não quero me matar de novo
tentando sair daqui de dentro. Eu acho que preciso
de um método.

42
Sem data

Será que eu vou ficar adulta antes de morrer?

43
Domingo, 6 de julho

Achei um método que pode funcionar, o meteoro


consiste em só escrever quando não tiver nada
para dizer. Exatamente isto: parar de falar. Eu calo
a boca e escuto, sentir eu não sinto, porque o mé-
dico já me explicou dezenas de vezes que pessoas
como eu têm muita dificuldade para entender que
sentem, então eu calo a boca e começo a repetir as
palavras dos outros, e eu não preciso ficar culpada,
porque toda pessoa deve ser responsável pelas pró-
prias palavras. Eu não falei nada, mas minha mãe
disse que um dia ainda mata meu pai. Eu não falei
nada, mas meu pai disse que um dia ainda mata mi-
nha mãe. Eu não falei nada, mas minha irmã disse
que não sabe como ninguém se matou naquela casa
ainda. Eu não falei nada, mas eles me mandaram
calar a boca. Depois, eu continuei não falando nada
e eles me disseram que eu podia comer de boca
aberta se quisesse e que eu não precisava fingir que
não pertencia àquela família nem fingir que errava
as palavras e esquecia algumas conjugações impor-
tantes. Depois, meu pai disse que tinha um amigo

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que era viciado em dívidas e minha mãe disse que
uma amiga dela foi embora da cidade porque um
dia acordou, olhou para o céu e se cansou de ver o
céu sempre tão cinza. Minha mãe disse que um dia
vai fazer a mesma coisa (ir embora em direção ao
sol), mas antes, ela disse, eu juro que mato o seu pai.

obs: Todas as noites, mais ou menos às quatro da


manhã, acordo para viver minhas pernas em cha-
mas; quando acaba, volto para a cama e durmo.

45
Sem data

Deixar arder.

46
Segunda-feira, 7 de julho

Eu começo a entender que este diário tem a ver


com o risco de crescer. O texto diz à mulher que
avance, que arrisque, mas tenho vontade de
abandonar a escrita. Li em algum lugar que é a
morte da escrita que anuncia seu começo. Mas
como fazer morrer o que não é vivo? Porque não
existe história, não existe texto, o que existe é uma
escrita circular que parece com o sexo: sempre um
pouco patético, sempre um pouco repetitivo. Não
tem a grande dor, não tem a grande catástrofe,
não tem a grande história.

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Terça-feira, 8 de julho

Sempre achei que merecia mais do meu dia de


aniversário. Isso tem a ver com as coisas que eu
pensava quando era criança e como achava (e ainda
acho) que posso reconstruir em torno de mim esse
lugar chamado infância. Na minha casa, no dia do
aniversário, você podia escolher a comida do al-
moço, matar aula, ver televisão até tarde, dormir
na hora que quisesse. Todo o conjunto de leis que
regulamentava a unidade e a obediência familiar
era temporariamente abolido. Enfim, naquele úni-
co dia, eu tinha o mundo aos meus pés e eu era o
centro do mundo. As duas pessoas mais ligadas
ao dia do meu aniversário, quem pariu e quem foi
parida, viviam numa harmonia idílica e perfeita.
Quando eu era criança minha mãe não me chamava
de puta nem puxava os meus cabelos. Eu também
podia, se pedisse com bastante jeitinho, mamar nos
peitos dela. Era normal e gostoso: peito sem lei-
te. Se eu pudesse, estaria agarrada aos peitos da
minha mãe até hoje. Um dia, muito tempo depois,
contei isso para um namorado e ele achou nojen-
to. Morri de vergonha. Não sabia que era errado.
Eu era criança e as coisas eram simples, quer dizer,
mais ou menos.

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Depois de um tempo fazer aniversário virou uma
coisa péssima, uma data no calendário que provoca
uma ansiedade parecida com a de ficar pelada na
frente de uma pessoa que você não conhece ou no
meio da sala de aula. No dia anterior ao meu aniver-
sário eu fico torcendo para ser logo o dia seguinte.
Eu quase sempre estou querendo que seja o dia se-
guinte. Nesses dias, que são meus dias normais, eu
não faço coisas muito sérias. Eu encontro com os
meus alunos, leio muitos livros e outros materiais
impressos, como o jornal do bairro e as bulas dos
remédios que uso para a coceira na perna, escrevo
este diário edificante e encontro com o médico.

49
Quarta-feira, 9 de julho

Muitas coisas mudaram depois que comecei a


escrever este diário, o diâmetro das falhas de cabelo
no meu couro cabeludo, o tamanho e o formato das
minhas unhas, a tonalidade e a profundidade das
olheiras, a intensidade e a frequência das coceiras
na perna. Meu corpo todo arde, estica, pesa e coça.
Enquanto escrevo arranco freneticamente os fios
do topo da minha cabeça e parece que a profecia do
meu pai está prestes a se cumprir: um dia você vai
ficar careca, menina.

Os primeiros sinais da tricotilomania apareceram


na pré-adolescência, antes do crescimento descon-
trolado dos peitos que depois foram cortados em
uma cirurgia plástica. A operação obviamente não
resolveu o problema, porque o problema também
está sempre em outro lugar. quá quá quá. Eu estu-
dava para as provas e só conseguia me concentrar
se arrancasse os cabelos. Às vezes eu não arranco,
apenas encontro um fio mais grosso e puxo aque-
le fio compulsivamente. Também posso arrancá-lo
e ficar olhando a ponta da raiz. Eu nunca comi
os cabelos que arranco, o que, segundo os espe-
cialistas, é um bom sinal. Pelo menos não sofro de

50
tricotilofagia, que é o impulso não só de arrancar o
fio, mas também de comê-lo. Em casos agudos de
tricotilofagia a pessoa precisa fazer uma cirurgia na
barriga para retirar o novelo de fios de cabelo que ela
colocou para dentro. Nas minhas pesquisas no goo-
gle descobri que a tricotilomania é um tipo de dis-
túrbio de controle impulsivo, ou seja, a incapacida-
de de resistir a um impulso que pode causar danos
para a própria pessoa. A cleptomania, a piromania e
o jogo patológico são outros exemplos de transtornos
de controle impulsivo. Quase todos esses distúrbios
possuem um ciclo: tensão, alívio da tensão (prazer)
e arrependimento. A tricotilomania atinge 4% da
população mundial. As mulheres são quatro vezes
mais propensas a desenvolver o distúrbio do que os
homens. Além disso, o google disse que pessoas que
sofrem de tricotilomania têm, geralmente, proble-
mas de tristeza, ansiedade, depressão e autoimagem
ruim. As crises são episódicas, é verdade, posso ficar
anos sem arrancar um fio de cabelo sequer. Descobri
também que as faixas etárias com maior incidência
do distúrbio são a pré-adolescência (onze aos qua-
torze anos) e infância (seis a dez anos). Ao longo dos
anos, fui aprendendo a lidar com o medo que as
pessoas sentem desses comportamentos e, para não
assustá-las, não arranco meus cabelos em público.

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Sábado, 12 de julho

Passo mais horas aqui, olhando para o meu umbigo,


do que lá fora tentando ter uma vida normal. O que
é uma vida normal? Alguém realmente acha que
tem uma vida normal? Minha mãe conhece um
homem que tinha um galo garnisé e todos os dias
ele levava o galo para o trabalho. Colocava o galo
debaixo do braço, saía de casa, pegava o ônibus,
trabalhava, pegava outro ônibus e voltava para a
casa, sempre com o galo a tiracolo. Eu fiquei ten-
tando imaginar o que o galo ficava fazendo lá, no
trabalho desse homem, oito horas por dia, dentro
de uma sala fechada. Um dia minha mãe encontrou
com o homem no ponto de ônibus e o galo não esta-
va com ele. Ela perguntou: cadê o galo? E o homem
respondeu: morreu.

52
Sem data

Agora que eu escrevo diariamente, eles começaram


a reclamar, dizem que não cuido mais deles. É ver-
dade. Antes eu rezava para eles todas as noites e
dava o peito quando era necessário, peito sem
leite. Eu contei para o médico e ele disse:

Ainda bem que você tem peitos.

Nós rimos.

Foi a primeira vez que o médico fez uma piada.

Achei humano.

53
Domingo, 11 de julho

Depois eu fiquei pensando, eu não tinha notado que


o médico tinha notado que eu tenho peitos. Ele não
faz xixi na piscina, mas nem sempre ele é o pato
da história.

54
Segunda-feira, 12 de julho

L. disse que eu estou com cara de vilã. Pelo menos as


vilãs não confundem boa ação com masoquismo.
O médico disse que é positivo quando as pessoas
começam a odiar a gente. Ele nunca tinha usado
esta palavra antes: positivo.

55
Sem data

Quase sempre tenho a impressão que este combate é


ambicioso demais: inventar a história para um cor-
po com tanta história mal contada, com tanta farsa.
Quase sempre prefiro não fazer. Mas escrever este
diário virou uma questão de honra. Eu preciso
provar para o médico que eu posso viver sem me
importar com o que as pessoas pensam de mim.

56
Sem data

Enquanto isso, de madrugada, minha perna arde,


arde, arde, chega a ser bonito. As pessoas sem-
pre ficam muito assustadas com esses fenômenos
corporais, e para não assustá-las decidi procurar
um médico. Outro. O diagnóstico foi instantâneo:
dermatite atópica, popularmente conhecida como
urticária. Doença crônica que causa inflamação na
pele, levando ao aparecimento de lesões averme-
lhadas e coceira. Cerca de 30% das pessoas com
dermatite também costumam ter crises de asma
ou rinite alérgica. A infecção pode ser causada
tanto por fatores externos (alergia a tecidos, ali-
mentos e produtos de higiene) quanto em função
de fatores emocionais, pessoas com dificuldade de
lidar com o mundo exterior. Sendo o maior de todos
os órgãos humanos, a pele é um ovo mole.

57
Sem data

Eu posso escutar o médico falando: a verdade é que


você até faz muitas concessões, mas ser amada por
bastante gente é uma ambição muito justa para
você desistir dela, não é mesmo? É só por isso que
você não escreve de verdade.

58
Quarta-feira, 14 de julho

Desde que comecei a escrever este diário, sinto que


tenho duas vidas. Uma vida já dá um trabalho da-
nado, os remédios, as pomadas, as aulas, os alu-
nos, os encontros com o médico. Agora tenho essa
segunda vida que tenho que inventar e tenho que
fazer bonito porque não quero decepcioná-lo. Um
dia, eu disse para ele que queria ser escritora, mas
que não conseguia escrever. Muito comum, ele
disse. Depois eu falei que tinha medo de escrever
porque tinha medo de perder o amor que as pesso-
as sentem por mim. Para mim, não escrever era o
jeito de manter as coisas sob controle, uma forma
de proteger as pessoas do amor, da raiva, da inveja
e do ciúme que eu sinto por elas, tudo misturado
num grande angu de caroço. Eu disse para o mé-
dico que podia esperar as pessoas morrerem e ele
me perguntou: todas?

Então, eu não escreverei nunca porque eu não


estou preparada para o ódio das pessoas, eu disse.
Ele riu e disse: você é bem acostumada com isso.

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Apesar de estar bem acostumada com o ódio das
pessoas, eu finjo super bem. Então, quando ele
prescreveu este diário, eu acho que ele achava
que de certa forma algum material literário sairia
da minha fala repetitiva, circular e disléxica. Eu
também acreditei nisso e fiquei bastante empolga-
da com a possibilidade de o médico me amar um
pouquinho. Mas agora que estou aqui, escreven-
do, há dois meses, eu sinto que viver nesses dois
mundos é ainda mais bagunçado. Minha vida de
dia a dia virou um caos, comentam que eu tenho
cara de vilã e que falo sem pensar e que isso magoa
as pessoas. Eu não quero magoar ninguém. Tal-
vez a máscara de menina boazinha que aprendi a
usar desde criança tenha sido colada com cimento
odontológico no meu rosto, igual o cimento que o
dentista usou para colar o meu dente que quebrou.
Ele fez um dente de mentira e disse: vamos colar
com um bom cimento. Pode ficar tranquila que não
vai cair mais, mas você tem que me prometer que
vai parar de mastigar bala chita.

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Sem data

O médico já me explicou que desejo é uma coisa e


desejo inconsciente é outra bem diferente. Eu não
durmo e não tenho uma cabeça boa por causa dos
desejos inconscientes. Escrever é consciente, ra-
cional, ambicioso e muito justo. Ele explicou. O
feio malvado do meu coração sabe muito bem
que eu tenho medo de escrever a História do meu
corpo por causa das pessoas. Ele é esperto. Se as
pessoas não existissem eu poderia escrever, juro.
Sem trapaças, sem entrelinhas. Mas as pessoas
existem e as pessoas são.

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Terça-feira, 13 de julho

Quando eu era criança eu tinha uma vida muito


ativa, eu já tinha uma leve tendência à melanco-
lia, mas nunca me deram o direito de desanimar.
Sempre alerta. Ser uma criança ativa, entre outras
coisas, significava estar sempre representando
algum papel, no meu caso isso pode ser entendi-
do bem ao pé da letra. Eu era o anjo do mês de
maio, com minha túnica de cetim rosa bebê e as
asas que minha mãe comprava na dona Concei-
ção. Dona Conceição ganhava a vida fazendo asa
de anjo, coroa de anjo, palma, ramalhete e todos
os artigos periféricos que envolvem a máfia da co-
roação numa cidade do interior de Minas Gerais.
Eu era a pastorinha, com o cestinho de flores. Eu
era a menina do coro da escola. Eu era a estudante
da escola pública, com calça de tergal azul mari-
nho, blusa branca, sapato preto de cadarço e rabo
de cavalo. Depois, eu era a estudante do colégio
particular com o conjunto adidas azul marinho,
mochila verde neon da company e tênis M2000.
Eu era a escoteira mirim com o uniforme de brim
azul escuro, saia reta na altura do joelho, camisa
de manga curta, boné e um lenço com as cores do
Movimento Internacional dos Escoteiros. Eu tocava

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flauta no Sete de Setembro só para comer pão com
mortadela na hora da merenda, porque meu pai só
comprava presunto sadia e eu amava mortadela.
Eu achava o hino da bandeira tão bonito, princi-
palmente a parte que falava recebe o afeto que se
encerra em nosso peito juvenil. Eu também gos-
tava do Sete de Setembro porque minha mãe ficava
horas penteando meu cabelo, fazia um rabo de
cavalo bem alto e dava um laço com fita de cetim
branco que ela passava pra ficar lisinha e brilhando.
Minha mãe adorava o meu cabelo, cuidava dele
com se fosse um filhote. Nas minhas crises bravas
de piolho, ela chegou a contratar uma moça para
catar as lêndeas, matar os piolhos e passar pente
fino com água e vinagre para debelar a infestação.
Minha mãe é mesmo uma pessoa muito boa porque
ela viu todas as merdas que eu fiz com o meu ca-
belo depois que eu fiquei grande e nunca deu um
pio. Eu acho que minha mãe também confunde boa
ação com masoquismo.

Eu era ainda a menina da natação que nadava mui-


to bem, a menina do jazz que dançava muito bem,
a menina que tocava violino mais ou menos bem,

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a menina do show de mágica, a menina neta da
minha avó, tão bonitinha. Grande parte do tempo
eu andava para baixo e para cima fantasiada des-
sas meninas todas. Era muito comum uma pessoa
ou várias pessoas me pararem na rua e pedirem
para tirar um retrato meu. E quando as pessoas
falavam para mim que eu era muito bonitinha, e
olhavam para mim com cara de curiosidade, como
se eu fosse uma boneca, um bibelô ou um anjinho
barroco, eu não entendia muito bem. Por dentro
eu já sentia um negócio estranho. Eu já sentia que
aquilo era uma fraude. Depois descobri que alguns
anjos são ocos por dentro.

Há alguns anos eu fiz uma longa viagem pela


América do Sul, sozinha, mochila nas costas,
atravessando de ônibus as fronteiras terrestres
entre Argentina, Bolívia e Peru. Sempre alerta!
Um dia, em Cuzco, enquanto descansava das lon-
gas caminhadas fumando um cigarro, eu vi duas
meninas tipicamente peruanas subindo o morro
em ziguezague. Elas usavam uniforme escolar azul
e branco, carregavam mochilas grandes e segura-
vam na mão, cada uma delas, um chupe-chupe.
Minha primeira reação, a reação da turista ba-
baca, foi tirar a câmara fotográfica da mochila e

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registrar aquele momento. Mas rapidamente eu
tive uma espécie de iluminação e entendi tudo.
Entendi por que os adultos apertavam a minha
bochecha e por que as pessoas falavam que eu
era muito bonitinha: eu me vi. Eu era uma meni-
na tipicamente ouropretana subindo e descendo
uma ladeira histórica, numa cidade histórica,
com o uniforme do colégio histórico e chupando
meu chupe-chupe de leite condensado com his-
tórico de água de torneira e pedaço de unha.

Eu morava em Ouro Preto, cidade patrimônio


histórico mundial, relíquia da arquitetura, berço
da inconfidência mineira, joia do barroco mundial,
terra de poetas ilustres, cidade da boemia de Vi-
nicius de Moraes, dos quadros de Guignard, dos
versos de Carlos Drummond de Andrade e de Ce-
cília Meireles. Que peso! Cidade de gente negra e
de gente branca, faixa de gaza total. De bosta de
cavalo e de doidos de jogar pedra. De becos e de
mofo. Eu não entendia nada disso e não entendia
que eu era apenas um pedaço pequeno nessa coisa
maior e muito babaca que é uma cidade turística,
porque toda cidade turística é sempre uma farsa.

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Um sábado, voltando do escoteiro, parei para
comprar bombom de uva numa lanchonete que
existia na rua São José, ao lado do Hotel Toffolo.
Um homem que estava lá dentro me disse: que me-
nina bonitinha, eu vou comprar um bombom para
você. Eu não aceitei. Ele insistiu, eu não aceitei. A
dona da lanchonete que era conhecida da minha
mãe disse: pode aceitar, minha filha! Mas eu era
valente na minha obediência. Uma das primeiras
coisas que uma menina aprende na vida é que não
pode nunca aceitar nada de pessoas desconhe-
cidas. Comi o meu bombom, paguei e fui embora
um pouco confusa: deixar que uma pessoa faça
uma coisa para você, mesmo você não querendo,
é considerado uma boa ação? Será que eu tinha
desperdiçado a minha boa ação do dia? Um tem-
po depois, a dona da lanchonete comentou com
minha mãe que eu tinha sido muito mal educada
com um turista.

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Sem data

Eu quero que este diário me leve a mim.

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Sem data

Tinha aquela musiquinha:

pinga, pinga, pinga pingo-d’água.

pinga, pinga, pinga, pingo-d’água.

pinga, pinga, pinga, pingo-d’água. pinga,


pingo-d’água lá na beira da lagoa.
pinga, pingo-d’água lá no beira da lagoa.

o amor quando é de gosto,


ai meu deus que coisa boa.

o amor quando é de gosto,


ai meu deus que coisa boa!

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Sem data

Outro dia sonhei que estava nua no meio da sala,


como se a sala fosse um anfiteatro e meus alunos,
como numa grande plateia, riam do meu corpo nu e
magro. Eu sentia vergonha e medo, e não conseguia
me cobrir. Não encontrava minhas roupas e não
conseguia sair dali, como se estivesse congelada
naquela cena. Eu contei o sonho para o médico e ele
disse: você tem obsessão por se exibir.

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Sem data

O inflexível permanece pato, jamais vira cisne.

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Domingo, 20 de julho

Depois de muitos meses trancada em casa, sentada


em frente ao computador ou escrevendo nas pági-
nas deste diário, resolvi sair para andar um pouco.
Eu tinha me esquecido de como gosto de caminhar
domingo de manhã, bem cedinho, quando o sol ain-
da está fraco e as ruas da cidade vazias. Faz de conta
que a cidade é assim para sempre, pensei. Caminhei
por toda a rua Sapucaí, atravessei o viaduto de San-
ta Tereza e quando percebi estava no meio da feira
hippie. Eu tinha me esquecido completamente que
aos domingos esse pedaço da cidade transforma-se
numa pequena floresta viva, cheia de animais, sons,
armadilhas escondidas entre as copas das árvores,
uma fauna diversa e, às vezes, assustadora. Sempre
alerta! Comecei a andar por entre as barraquinhas
e vi minha antiga professora de geografia. Ela me
deu aula da quinta à oitava série, quando eu ainda
morava em Ouro Preto. Eu estava na feira hippie,
centenas de pessoas disputando um pedaço minús-
culo de espaço, pessoas com pressa e com sacolas,
cheias de demandas e listas de compras. Ela não me
viu e eu não me aproximei.

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A professora de geografia foi a primeira mulher
inteligente que eu conheci na vida. Inteligente
mesmo, de carne e osso. Deu vontade de escrever
carne de pescoço, porque toda pessoa inteligente
é um pouco carne de pescoço, mas ela não. Ela era
diferente de todas as professoras que eu tinha
tido até então. Principalmente, ela era diferente
de todas as mulheres que eu conhecia até então.

Primeiro, ela era alta e tinha os cabelos curtos.


Segundo, ela tinha estudado muito para ser pro-
fessora de geografia e se orgulhava disso. Terceiro
e mais importante, ela tinha opinião sobre tudo e
falava do mundo e da política e da queda do Muro
de Berlim e do fim da União Soviética e da falta de
frango no supermercado e da Sunab com o mesmo
entusiasmo com que falava sobre o crescimento
populacional e o surgimento das megalópoles. Eu
adorava as aulas dela e achava que todas as au-
las deveriam ser assim: falar sobre as coisas que
aconteciam no mundo, sobre as coisas que meu
pai lia no jornal, sobre as coisas que os meus tios
conversavam na hora do almoço na casa da minha
avó, sobre todos aqueles assuntos que me interes-
savam tanto – o mundo! – mas eu quase nunca con-
seguia ter acesso a eles, filtrada pela barreira que

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separa o universo temático das crianças do universo
temático dos adultos. A partir daquele momento,
com aquela professora, eu recebia a autorização
para entrar nesse outro mundo: eu podia falar e eu
falava muito.

Eu continuei andado pela feira, pessoas, sacolas,


embrulhos, mais pessoas, crianças, senhoras, pais
com carrinhos de bebê, o sol começando a quei-
mar, o cheiro das frituras embrulhando meu es-
tômago. Quando estava indo embora, já cansada
do meu safári dominical, percebi que estava sem
meus óculos de grau. Procurei dentro da bolsa três
vezes, nada. Puta que o pariu, eu tinha perdido
os óculos de novo. Era a segunda vez em quatro
dias. Tentei refazer meu percurso original, mas a
organização das barracas não fazia mais nenhum
sentido. Eu não conseguia me lembrar se tinha en-
trado à direita ou à esquerda, se foi na segunda
fileira depois da seção de calçados ou na primeira
fileira da seção de roupas de bebê, me sentia presa
num labirinto e percebi que comecei a andar sem
rumo. A feira estava cheia de gente que jogava res-
tos de comida no chão e os papéis dos embrulhos
das compras, e eu levei várias cotoveladas sem
pedidos de desculpa e o dia tinha ficado quente

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de verdade. Toda curiosidade e euforia do início
da manhã tinham desaparecido. Eu estava cansa-
da, puta comigo mesma por ter perdido de novo os
óculos (sem eles não consigo enxergar o número do
ônibus). Estava a ponto de me desesperar de verda-
de, encaminhando para me chafurdar em mais um
desastre imaginário, quando pensei: não vou me
desesperar, não vou ficar puta comigo mesma por-
que perdi os óculos. Sempre que eu perco alguma
coisa ou quando sou roubada, eu fico cinco minutos
chateada. Depois penso que não adianta chorar o
leite derramado e a sensação ruim passa. É incrível
como funciona. Além desses cinco minutinhos de
raiva e autopiedade, eu não fico remoendo o negó-
cio para sempre como acontece basicamente com
quase tudo na minha vida. Talvez isso seja a tal da
psicologia positiva funcionando numa única esfera
da minha vida. Basicamente, a psicologia positiva é
um método que quer colocar o ser humano a favor
da felicidade, eu acho isso muito utópico, mas não
custa tentar. Segundo o google, a psicologia posi-
tiva é um movimento recente dentro da psicologia
que visa fazer com que os psicólogos contemporâ-
neos adotem uma visão mais aberta e apreciativa
dos potenciais, das motivações e das capacidades
humanas. Pelo o que entendi é algo como cultivar

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bons pensamentos, ou melhor, afastar os maus
pensamentos e ser otimista. Acima de tudo, acredi-
tar que o mundo é bom e que as pessoas são boas e
que elas não estão querendo te foder o tempo todo.

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Sem data

Eu fiquei pesquisando outros coisas no google


e sugeri ao médico que tentássemos uma nova
abordagem. Ele ficou calado um tempo, respirou
fundo e disse seriamente: você não está progre-
dindo. Talvez eu não querida progredir, pensei.
Depois desse dia, tivemos um último encontro
que foi bem estranho:

Eu e o médico estamos sentados, um de frente


para o outro, como sempre acontece. Os mesmos
objetos em cima da mesa. As mesmas caras de
pato. Tudo igual. Ele me olha em silêncio. É sem-
pre nesse momento que eu começo a falar. Mas,
nesse dia, fico calada. Ele me olha, silêncio. Ele me
olha, silêncio-silêncio-silêncio. Eu não falo nada.
Pela primeira vez em cinco anos, eu não quero
falar nada. Ele continua me olhando em silêncio.
Levanto do sofá, abro a porta e vou embora, em
segredo, em silêncio.

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Sem data

Naquele dia em que vi a professora de geografia na


feira hippie e perdi os óculos, eu quase paguei cinco
reais para um moço peruano (poderia ser colombia-
no ou boliviano ou paraguaio ou argentino) escrever
meu nome num grão de arroz. Eu só estava tentando
fazer alguma coisa a favor da felicidade. Eu disse
que meu nome era duplo e ele disse com uma voz
maliciosa, em tom de cantada: así es más caro, ma-
mita! Querer me matar de raiva é me chamar de
mamita. Mamita é o caralho. Eu não sou mamita
porra nenhuma e depois de uma manhã na qual,
por muito pouco, eu não me desesperei de verdade,
eu disse: vai se foder!

77
Sem data

Pequenos avanços em direção ao travesseiro.

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Terminou de escrever o diário alguns dias depois.
Guardou o caderno em uma gaveta e só se lem-
brou que deveria enviá-lo ao médico quase dois
meses mais tarde. Desde o último encontro, não
sentia necessidade de vê-lo ou de conversar com
ele. Agora, ela tinha um corpo que gritava, e o
grito é uma espécie de sentimento ou de verdade,
descobriu. Decidiu enviar o diário pelo correio.
Uma semana depois, recebeu o envelope com o
seguinte aviso: destinatário não encontrado.
Conferiu nome, sobrenome e endereço. Será que
o médico tinha se mudado? – pensou. Reenviou o
pacote mais duas vezes e, novamente, o envelope
retornou. Resolveu fazer a entrega pessoalmente.
Poderia deixar com o porteiro ou tentar colocá-
-lo embaixo da porta da sala. Chegou à portaria
do edifício comercial e pediu para um senhor que
estava sentado em uma mesa lendo jornal que
entregasse o envelope ao médico. Ele disse que
não conhecia aquela pessoa, que provavelmente ela
estava enganada, havia errado o endereço. Ela per-
guntou se ele era novato e o porteiro respondeu que
trabalhava no prédio havia mais de quatorze anos.
Pediu para ele conferir mais uma vez. Paciente-
mente, o homem mostrou uma lista com o nome de
todas as pessoas que trabalhavam no prédio. Leu
com cuidado a folha, tentando encontrar o nome
do médico no meio de tantos nomes e sobrenomes.
Depois de um tempo, o porteiro retirou a lista das
mãos dela e disse sinto muito.
Nota

Este livro contém citações, às vezes


ligeiramente modificadas, de:
Robert Bresson, Alejandra Pizarnik,
Lygia Clark, Tetine, Leonilson, Susan
Sontag e Boaventura Sousa Santos.
Sobre a autora

Flávia Péret publicou também Imprensa Gay no


Brasil, 10 Poemas de Amor e de Susto, A Outra Noite
e Uma Mulher. Vive e trabalha em Belo Horizonte.

flaviaperet@hotmail.com

Agradecimentos

À Laura Cohen (sempre!) porque sem ela este livro


nunca existiria! À Elza Silveira e ao Wallison Gontijo,
pela acolhida afetuosa e profissional da editora
Impressões de Minas. À Valquíria Rabelo e ao Daniel
Bilac, pelo desenho do livro enquanto livro e por se-
rem pessoas tão brilhantes! À Eliza Caetano, Lenise
Regina, Marina Maria e Constância Guimarães, ami-
gas queridas que leram e comentaram o texto ori-
ginal, acolhendo minha ansiedade e meu medo de
publicá-lo. A Frederico Pessoa, meu amor. À Paloma
Vidal, pela escrita da quarta capa.
texto © Flávia Péret

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido


por qualquer meio sem a autorização da editora.

Coordenação editorial: Elza Silveira


Preparação de originais: Laura Cohen Rabelo
Projeto gráfico: Daniel Bilac e Valquíria Rabelo – Estúdio Guayabo

Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico


da Língua Portuguesa.

P434p Péret, Flávia.


2018 Os patos / Flávia Péret.
- Belo Horizonte : Impressões de Minas, 2018.
88 p.
ISBN: 978-85-63612-34-2
1. Poesia brasileira. I. Título
CDD: 869-1
CDU: 869.0 (81) - 1

Ficha catalográfica elaborada por: Júlia Gonçalves da Silveira


Bibliotecária/Documentalista
CRB-6 720

Impressões de Minas
Rua Bueno Brandão 80 Floresta 31015-178
Belo Horizonte - MG
Tel. (31) 3492 2383
www.impressoesdeminas.com.br
Publicam-se poesia e prosa, gregos e troianos,
barrocos e modernos: o selo leme foi criado pela
impressões de minas e pelo ateliê de estratégias
narrativas com a ideia de incentivar a criação
literária e publicar novos autores.
Fui impresso em setembro de 2018 na gráfica da
Impressões de Minas, miolo em papel Pólen
Soft 80g e capa em Color Plus Majorca 180g,
na tipografia Silva Text Book.

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