Você está na página 1de 98

23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.

txt

Herbert Spencer – A Justiça

ÍNDICE
PREFACIO DO AUTOR
CAPÍTULO I. - Moral animal
II. - A Justiça infra-humana
III. - A Justiça humana
IV. - O Sentimento de Justiça
V. - A ideia de Justiça
VI. - A fórmula da Justiça
VII. - A autoridade da fórmula da Justiça
VIII. - Os corolários da fórmula da Justiça
IX. - O direito à integridade física
X. - O direito à liberdade de movimentos e de deslocação
XI. - Direitos ao uso dos agentes naturais
XII. - O direito de propriedade
XIII. - O direito à propriedade incorpórea
XIV. - O direito de dar e de legar
XV. - O direito de trocar e contratar livremente
XVI. - O direito à liberdade do trabalho
XVII. - O direito à liberdade de crenças e o direito à liberdade de cultos
CAPÍTULO XVIII. - O direito à liberdade da palavra e o direito à liberdade de publicação
XIX. - Exame retrospectivo e argumentação nova
XX. - Os direitos das mulheres
XXI. - Os direitos das crianças
XXII. - Os chamados direitos políticos
XXIII. - Da natureza do Estado
XXIV. - A constituição do Estado
XXV. - Os deveres do Estado
XXVI. - Os limites dos deveres do Estado
XXVII. - Os limites dos deveres do Estado (continuação)
XXVIII. - Os limites dos deveres do Estado (continuação)
XXIX. - Os limites dos deveres do Estado (fim)
APÊNDICE A - A concepção de Kant acerca do Direito
B - A questão da propriedade da terra
C - O Motivo Moral
D - A consciência nos animais

PREFACIO DO AUTOR

Alguns avisos, repetidos nestes últimos anos com intervalos mais breves e com mais clareza, dizia
eu no Prefacio das Bases da Moral Evolucionista (The Data of Ethics), publicadas no mês de junho
de 1879, demonstraram-me que eu poderia ficar privado das minhas forças - supondo mesmo que a
minha vida se prolongue - antes de ter acabado a tarefa que a mim próprio me impus. E acrescentava
que sendo «a última parte desta tarefa – a filiação da Moral na doutrina da Evolução – aquela para
a qual todas as partes precedentes não são mais, em meu entender, do que uma preparação, era-me
penível prever que não chegaria talvez a pô-la em prática. Eis o motivo por que me decidi a
escrever imediatamente e por antecipação a obra sobre a Moral evolucionista.
Uma doença, cujos caráteres se aproximavam da catástrofe prevista, abateu-se gradualmente sobre
mim. Durante anos a minha saúde e a minha potência para o trabalho declinaram: este declínio
chegou, em 1886, a um esmorecimento completo, parando todo o progresso na elaboração da Filosofia
Sintética até aos primeiros dias de 1890. A partir desta época pude novamente assegurar-me cada
dia duma parte de trabalho sério. Breve surgiu a pergunta: Por onde começar? Sem hesitar decidi-me
a completar primeiro os meus Princípios de Moral, pois que as grandes divisões dos Princípios de
Sociologia estavam já terminadas.
Mas uma nova questão se apresentava: «A que parte dos Principias de Moral dar a primazia?» Como o
resto da minha energia não me sustentará provavelmente até ao final da minha tarefa, conclui que
seria acertado começar pela parte mais importante da minha obra inacabada. Deixando
provisoriamente repousar a segunda parte - «As Induções da Moral» - e a terceira - «A Moral da
Vida Individual», consagrei-me a quarta: «A Moral e a vida Social: A Justiça», que neste momento
tenho a felicidade de acabar.
Se a continuação das melhoras da minha saúde persistirem, espero poder fazer aparecer, lá para o
fim do ano, a segunda e a terceira parte, que formarão o complemento do primeiro volume; se ainda
estiver em estado de prosseguir no meu trabalho, abordarei a quinta parte: «A Moral da Vida
Social: A Beneficência Negativa», e a sexta parte: - «A Moral da Vida Social: A Beneficência
Positiva».
A presente obra abrange um âmbito que coincide, em grande parte, com o da minha Estática Social,
publicada em 1850. Entretanto, estes dois livros diferem pela extensão, pela forma e, até certo
ponto, pelas ideias. Diferem principalmente nisto: tudo o que, no meu primeiro livro, era

filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 1/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
interpretado como sendo de ordem sobrenatural, desapareceu do segundo, em que tudo interpretei sem
sair da ordem natural, isto é, evolucionaria. Mais, a Estática Social não ia além da indicação da
origem biológica da Moral, ao passo que a exponho agora com precisão: a elaboração das
consequências desta origem imprime o seu caráter primacial ao meu presente livro. Também fiz
assentar cada vez mais a dedução sobre a indução. Para cada caso particular, provei que a corrente
do progresso humano tem, um a um, confirmado todos os corolários do primeiro princípio que
enunciei.
Creio dever acrescentar que os cinco primeiros capítulos deste livro já foram publicados na Nine-
teenth Century (n.05 de março e abril de 1890).
Londres, junho de 1891.
H.S.

A JUSTIÇA

CAPÍTULO I

Moral animal

§ 1. - A epígrafe deste capítulo surpreenderá, talvez, aqueles dos leitores que não conheçam a
primeira parte da minha obra: «As bases da moral evolucionista,» mas os que, tendo-a lido, se
lembrarem da matéria expendida nos capítulos intitulados «a conduta em geral» e a «evolução da
conduta» avaliarão imediatamente o que eu entendo pela expressão - Moral animal.
(Eis alguns extratos das passagens a que o autor se refere: ... A conduta, na acepção lata do
termo, deve ser considerada como abrangendo todas as adaptações dos atos aos fins, desde os mais
simples aos mais complexos, qualquer que seja a especial natureza destes e quer a consideremos em
conjunto, quer em separado. (As Bases da moral evolucionista, pag. 3). ... A definição de Conduta
a que somos levados é esta: ou o conjunto de vários atos concernentes a um mesmo fim, ou a
adaptação de diversos atos a diversos e respectivos fins... (id. Pag. 3). ... Do exposto se
infere, que a Moral tem por embrião a forma que reveste a conduta universal nas últimas fases da
sua evolução (id. Pag. 15) ... Abstraindo agora de outros dos seus fins, podemos desde já concluir
que é boa a conduta que damos da conservação dos indivíduos e má a conduta que tende para a
destruição deles (id. Pag. 20)).
ficou demonstrado nesses capítulos que a Conduta de que a ciência da Moral trata, não deve ser
separada da ciência da Conduta em geral, e que a mais perfeita conduta é aquela que assegure mais
duradoura, mais ampla e mais complexa vida.
Esclarecido ficou também que cada espécie de animais tem as suas regras privativas de conduta,
regras duma bondade relativa e que atuam nessa espécie da mesma maneira que atuam na espécie
humana as leis de conduta moral que lograram unânime assentimento.
Há muita gente que pensa que a Moral tem por objeto o estudo da Conduta sob o ponto de vista da
aprovação ou de censura que os atos determinam. Não é, porém, assim: o seu primordial objetivo é o
da conduta, qualquer que ela seja, e embora produza bons ou maus efeitos para quem a exerce, ou
para outrem, ou para quem a exerce e para outrem conjuntamente.
Com efeito, as próprias pessoas que assinalam à Moral como única missão: a de distribuir elogios
ou vitupérios, reconhecem tacitamente que existe uma moral aplicável aos animais, por que os atos
desses animais ocasionam nelas umas vezes simpatia e antipatia, outras. A ave que voa solícita à
busca de alimento para a sua companheira, enquanto esta fica retida no ninho a chocar os ovos com
o calor do seu corpo, merece-lhes louvores. Quando uma galinha come os ovos que pôs, ou não os
choca, é censurada; e, ao contrário, provoca admirativas frases o facto de defender com bravura de
inimigos ataques, os seus pintainhos.
Os atos egoístas ou altruístas dos animais são, pois, classificados como boas ou más ações.
Aplaude-se e acha-se natural que o escorialo faça durante o estio as suas provisões para o inverno
e consideram-se como justiceiramente castigados, pela sua imprevidência, aqueles destes roedores
que morrem de inanição em resultado da sua falta de previdência. É frequente apodarmos de covarde
o cão que abandona sem luta o osso que estava roendo e que outro cão lhe arranca.
É, portanto, certo que julgamos como bons ou como maus os atos dos animais, consoante estes são
úteis ou nocivos para conservação da espécie, ou do indivíduo.

§ 2. - Estes exemplos de atos egoístas e de atos altruístas conduzem-nos à descoberta dos dois
princípios cardiais e opostos da ética animal.
Durante a infância dos animais, o auxílio e o mimo é-lhes prestado na razão inversa da aptidão
para subsistirem por si próprios. O membro mais favorecido do grupo familiar é exatamente aquele
que menos mereceria sê-lo, se o seu merecimento fosse avaliado pelos serviços que presta. Dá-se o
contrário na idade adulta; então, as vantagens estão na razão direta do mérito, sendo este
determinado pela adaptação às condições da existência. Os mais fortes e os mais hábeis gozam os
resultados da sua adaptação perfeita; os que o são menos sofrem as consequências de uma adaptação
defeituosa.
Tais são as duas leis às quais uma espécie deve conformar-se para lograr duração. Nos tipos
animais inferiores, os pais não se ocupam da progénie senão para colocarem ao alcance dos germens
diminutas quantidades de alimentos. A grande fecundidade contrabalança neles a grande mortalidade.
Quanto, porém aos tipos animais superiores, é certo que a espécie teria pouca dura se as vantagens
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 2/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
obtidas pelos mais pequenos fossem proporcionais aos serviços por eles prestados; e, se, por outro
lado, as vantagens concedidas aos adultos estivessem na razão direta da sua fraqueza, a espécie
decresceria e extinguir-se-ia ao fim de poucas gerações.

§ 3. - Como devem ser apreciados estes princípios à luz da ética? Primeiro que tudo convêm dizer
que - excepção feita para as espécies mais ínfimas - estes princípios tem sido a salvaguarda da
vida animal.
Pondo de lado os protozoários, cuja vida é rudimentar e mal perceptível, vê-se que sem os
benefícios assegurados gratuitamente à juventude do grupo familiar e sem as vantagens alcançadas
aos esforços dos adultos, a vida animal teria deixado de existir.
Em segundo lugar, convêm salientar que foi em virtude ainda dos dois princípios exarados que a
vida evoluiu gradualmente até às suas mais elevadas formas. Pela solicitude de que tem sido
rodeada a progenitura - solicitude que vem gradualmente. engrandecendo com os progressos da
organização das mesmas espécies - pela sobrevivência dos adultos mais aptos para a concorrência, a
qual também se torna mais frequente em razão dos progressos da sua organização, tem sido
perpetuamente favorecido o aperfeiçoamento da vida animal e novos e sucessivos progressos
incessantemente lhes serão assegurados.
Por outra banda, é necessário salientar que a solicitude para a menoridade, que diante de nenhum
sacrifício recua, e a luta pela existência entre os adultos, tem espalhado a carnificina e a morte
desde os primórdios da evolução da vida, tornando-se uma das características dessa evolução. A
conservação e o desenvolvimento da vida de umas espécies realizam-se à custa da vida de outras e
pela vitória alcançada contra seres menos hábeis, ou mais fracos. Convêm frisar além disso que a
evolução progressiva devida à persistência e prevalecimento dos dois mencionados princípios é a
responsável pela gestação e multiplicação dos parasitas cruéis, cujo número excede enormemente o
dos outros seres conhecidos.
O conhecimento destes princípios há de irritar os pessimistas que se dediquem ao estudo da vida
animal. Todavia, quem encarar a vida pelo seu aspecto de conjunto e através do prisma otimista ou
melhorista e que aceite o postulado do hedonismo encontrará neles motivos para uma satisfação mais
ou menos completa e aplaudirá a sua execução.
A crença popular considera os princípios expostos como manifestação da vontade divina; para o
agnóstico revelam eles a ação do Poder Incognoscível que rege o Universo. Qualquer das duas
opiniões representa afinal uma justificação.

§ 4. - Não nos envolveremos, por agora, numa controvérsia a fundo entre o pessimismo e otimismo;
basta que tomemos para ponto de partida um postulado hipotético e que o limitemos a uma espécie
isolada. Da hipótese de que a conservação e a prosperidade dessa espécie são desejáveis, tirar-se-
á uma conclusão de caráter genérico. Por seu turno, dessa generalidade advirão três outras
conclusões de mais restrita extensão.
A conclusão de caráter genérico é a de que, na hierarquia das obrigações, a conservação da espécie
prefere à conservação do indivíduo. Verão que a espécie não é senão um agregado de indivíduos, o
bem-estar da espécie só constitui um fim pelo que ele constitui para o bem-estar dos indivíduos
que a formam. Mas a desaparição da espécie implica a de todos os indivíduos e a impossibilidade
absoluta de realizar esse fim, ao passo que a perda de indivíduos, embora em elevada quantidade,
pode permitir a existência de um número suficiente para que, graças à continuação da espécie, a
realização do fim básico dessa espécie se torne realizável. Em caso de conflito, a preservação do
indivíduo, deve, pois, subordinar-se à preservação da espécie, numa gradação variável com as
circunstâncias.
Os corolários são:
1 - Os adultos devem subordinar-se à lei que lhes assegura vantagens na direta proporção dos
méritos que possuam, avaliando-se estes pelo seu maior ou menor poder de auto sustentação. No caso
contrário, a espécie perigaria dos dois modos seguintes: arriscava-se num futuro próximo à perda
dos indivíduos superiores que seriam sacrificados aos inferiores e daí adviria um prejuízo para a
soma total de bem-estar; e sofreria num futuro mais longínquo a propagação de seres inferiores que
entravaria a dos superiores, determinando um enfraquecimento geral da espécie da qual adviria,
como consequência última, a extinção duma espécie.
2 - Durante a menoridade, em quanto o auto sustento não é possível, e mesmo depois quando ele se
realiza ainda imperfeitamente, o auxílio prestado deve ser tanto maior quanto menor for a aptidão
dos novos membros familiares. As vantagens devem, pois, ser na razão inversa das aptidões,
tornando-se para escala destas o poder de auto sustento. Sem a concessão gratuita de auxílio à
progenitura, gratuidade completa ao princípio e que depois vai sucessivamente afrouxando à medida
que o indivíduo se aproxima da idade adulta, a espécie extinguir-se-ia pela extinção da prole.
É quase inútil acrescentar, por obvio, que o que dito ficou implica, da parte dos adultos, uma
subordinação proporcional e voluntária.
3 - A esta subordinação do indivíduo imposta pelos liames do parentesco, junta-se, em vários
casos, uma subordinação do indivíduo ulterior. Quando a constituição da espécie e as suas
condições de existência são tais que o sacrifício total ou parcial de alguns dos seus membros
contribua para a prosperidade comum, assegurando à espécie um número maior de indivíduos, esse
sacrifício tornou-se justificado.
Ficam formuladas as leis às quais uma espécie se deve subordinar para lograr duração. Se a
conservação duma espécie, constitui um desideratum, resultará daí para ela uma obrigação de se
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 3/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
conformar com essas leis, obrigação que, conforme as circunstâncias, designaremos por ética ou
quase ética.

CAPÍTULO II

A Justiça infra-humana

§ 5. - Dos dois princípios, essenciais, mas opostos, cujo exercício persistente assegura a
conservação da espécie, ocupar-nos-emos aqui tão somente do segundo. Pondo de parte, a lei que
rege a família constituída por adultos e menores, vamos estudar exclusivamente a lei que se impõe
à espécie ou que se refere aos adultos.
Acentuámos já, que em conformidade com esta última lei, os indivíduos de mais perfeita adaptação
às condições da existência gozam de maiores proveitos, ao passo que os indivíduos inferiores obtêm
vantagens menores, sofrem males maiores, ou, são simultaneamente vítimas duma e doutra coisa. No
ponto de vista biológico, esta lei implica a sobrevivência dos mais aptos e pode, em linguagem
científica formular-se assim:
Todo o indivíduo tem que sujeitar-se aos efeitos da sua própria natureza e à linha de conduta que
essa natureza lhe impõe. O princípio que acabámos de expor impera sem restrição alguma em todos os
domínios da animalidade, por que não há forças que consigam modificar as relações entre a conduta
e as consequências que dela se derivam.
No intuito de melhor podermos apreciar o alcance deste princípio, deter-nos-emos por uns instantes
no estudo duma lei análoga, ou antes, da mesma lei, mas manifestando-se noutro campo.
Com efeito, o princípio da subordinação do indivíduo à linha de conduta que a natureza lhe dita
não a impõe unicamente aos indivíduos duma mesma espécie, - bem ou mal providos conforme a sua
atividade está bem ou mal adaptada, - efetua-se também nas relações recíprocas entre os órgãos e
sistemas dum mesmo indivíduo. Os músculos, as glândulas, as vísceras, recebem uma irrigação
sanguínea proporcional à função que exercem.
Se um órgão se torna preguiçoso, desocupado, o afluxo do sangue diminui e esse órgão atrofia-se;
se um órgão exercer a sua função com atividade, a sua alimentação sanguínea aumenta e esse órgão
desenvolve-se. Deste equilíbrio entre o desgaste pelo exercício e a nutrição sanguínea dum órgão
resulta um outro equilíbrio entre as funções relativas das diferentes partes dum organismo. No seu
conjunto, um organismo torna-se apto para a vida, em resultado das adaptações parciais de cada uma
das partes que o constituem para os serviços que lhes incumbe desempenhar. Salta aos olhos que
este princípio da auto adaptação, privativa de cada indivíduo, é paralela à lei de adaptação do
conjunto da espécie ao seu habitat. A mais abundante e melhor nutrição e a prolificidade maior dos
membros das espécies que gozem de atividades e faculdades mais perfeitamente adaptadas às suas
necessidades, coincidindo com a sustentação defeituosa e causante de detrimento para eles próprios
e para a sua progénie, dos indivíduos dotados de faculdades, atividades de menos perfeita
adaptação, determinam o predomínio de expansão da espécie melhor dotada, assegurando-lhe a
sobrevivência nas condições do meio que os cerca.
Tal é, pois, a lei da justiça infra-humana: cada indivíduo receberá os proventos e sofrerá os
prejuízos inerentes à sua própria natureza e derivados da conduta que essa natureza estabelece.

§ 6. - A justiça infra-humana é, tanto em conjunto como em pormenor, extremamente imperfeita.


É imperfeita em conjunto, porque existem inumeráveis espécies cuja subsistência se efetiva pela
destruição em globo doutras espécies e ainda porque estas últimas servindo em globo de presa às
primeiras, dão margem a que não persistam senão para um mínimo número de indivíduos as relações
entre eles e a sua conduta e entre essa conduta e as consequências que dela deveriam resultar.
Podemos, em verdade, considerar a perda prematura da vida da quase totalidade dos membros
exterminados pelos seus inimigos, como uma consequência da sua incapacidade para a luta contra as
forças destrutivas a que estão expostos. Todavia, não devemos deixar de reconhecer que esse
violento extermínio duma enorme maioria de indivíduos de certas espécies atesta que a justiça, tal
como a concebemos, poucas ocasiões têm para se afirmar.
A justiça infra-humana é imperfeita em pormenor por que as relações entre a conduta e as
consequências que dela derivam são perturbadas a cada passo, por catástrofes que os vitimam
indistintamente, seja qual for o grau da sua adaptação para a luta em circunstâncias normais. A
vida animal sofre inumeráveis mortandades causadas pelos rigores da temperatura e que tanto ferem
os indivíduos fracos dessa espécie como os mais resistentes. Outros morticínios inumeráveis têm a
fome por motivo e anulam em larga escala tanto os indivíduos de boa adaptação como os de má. Os
inimigos dos tipos menos elevados da série animal são também causa da destruição indistinta desses
tipos. Surgem contra eles invasões de parasitas, muitas vezes devastadoras, que a todos atacam sem
distinção das suas melhores ou piores qualidades de adaptação. A grandíssima prolificidade dos
animais inferiores, necessária para compensação da sua enorme mortalidade, mostra que para eles a
superioridade não assegura uma prolongada sobrevivência. Nestes estados da série animal, a justiça
infra-humana, constituída pela relação contínua entre a conduta e os resultados, só
excepcionalmente rege os casos individuais.

§ 7. - Chegámos enfim a uma proposição elevadamente significativa e é que: a justiça infra-humana


se acentua à medida que a organização animal se vai tornando superior.
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 4/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
Pouco importa que a andorinha abique no espaço tal ou tal inseto, que o ichneumon faça uma
devastação num ninho de lagartas, que um cetáceo engula este ou aquele arenque. Esses
acontecimentos dão-se independentemente das qualidades particulares das vítimas; quer tenham boas
quer más qualidades de adaptação orgânica estão expostas às mesmas contingências perante o
inimigo. Já não sucede o mesmo com os seres de mais elevado tipo. A acuidade dos sentidos, a
sagacidade, a agilidade etc. dão a certos carnívoros uma especial facilidade para se apoderar da
vítima; mas num rebanho de herbívoros, o animal dotado de mais fino ouvido, de mais penetrante
vista, de mais subtil olfato, ou de maior celeridade, é também o que terá mais probabilidades de
escapar ao duro ataque.
É evidente que à medida que as qualidades físicas e mentais duma espécie se aperfeiçoam e, com
elas, a sua aptidão para evitar os perigos que surjam, a continuação da existência de cada
indivíduo tornar-se-á, cada vez, mais independente dos acidentes de força maior. Quanto mais se
acentuarem os resultados desta superioridade geral, tanto mais relevo adquirirão também os
resultados das superioridades especiais. As diferenças entre as faculdades individuais terão uma
influência mais preponderante sobre a sorte deles. Assim, a falta ou a inferioridade duma
faculdade abreviar-lhes-á a vida; opostamente, possuindo essa faculdade com grande grau de
desenvolvimento, a sua vida tem condições superiores de duração. Quer isto dizer que à medida que
vão ascendendo na série animal os indivíduos se tornam, cada vez mais, vassalos da lei de relação
entre a sua natureza privativa e a conduta que essa natureza impõe. Noutros termos: a justiça
aparece na escala animal tanto mais nítida quanto mais alto é o grau dessa escala.

§ 8. - A natureza da justiça infra-humana ficou suficientemente explicada pelo que respeita aos
seres que passam vida solitária. Passando, porém, destes aos que vivem em agrupamentos, descobre-
se. um elemento novo.
Pelo simples facto dum agrupamento, tal como o dum rebanho de gamos, o indivíduo e a espécie só
adquirem vantagens pela salvaguarda mais eficaz que resulta da superioridade duma grande
quantidade de olhos, de ouvidos e de narizes sobre os olhos, os ouvidos e o nariz dum indivíduo
isolado. Sendo dado a tempo o aviso de alarme, todos põem em jogo para a defesa os seus mais
perspicazes sentidos. Por vezes, esta cooperação a que chamaremos passiva, transmuda-se numa
cooperação ativa, como, por exemplo: nos bandos de corvos em que um fica de vigia enquanto os
outros se alimentam; nos cimarrões (J. Oswald, Zoological Sketches, 61), variedade óvidea muito
perseguida, das regiões montanhosas da América central que distribuem também sentinelas pelos
pontos eminentes dos locais onde pousam; nos castores que organizam postos avançados de vigilância
em quanto realizam os seus admiráveis trabalhos de engenharia hidráulica; nos lobos (Animal
intelligence, de Romanes, Londres 1882, pag. 436) que preconcebem um plano de ataque em que se
distribui a cada um, ou a cada grupo, um objetivo especial a realizar e, conseguindo assim,
apossar-se de presas que lhes escapariam diferenciada cooperação. Estes fados demonstram que
estamos em presença de crescentes vantagens para os indivíduos e para a espécie, o que nos permite
fazer a afirmação genérica de que o estado de agregação, ou de cooperação mais ou menos ativa, tem
como única determinante as vantagens que desse estado ou dessa cooperação advém para os indivíduos
e para a espécie que organiza esses estados. Do contrário, o predomínio dos mais fortes opor-se-ia
a que tais estados se efetuassem.
Note-se que esta vantajosa associação só em determinadas condições se torna possível. A procura do
sustento de cada um é, por vezes, mais ou menos perturbada pela presença doutros indivíduos da
mesma espécie e com o mesmo intuito, o que dá lugar a lutas reciprocas e mais ou menos enérgicas.
Se estas incompatibilidades se multiplicarem, a associação deixa de tornar-se util. Para que ela
continue a sê-lo é necessário que essas dissenções fiquem restritas, de modo a subsistir um
excedente de vantagens. Caso contrário, o predomínio dos mais fortes extirpará na espécie a
variedade que na associação havia começado a formar-se.
E aqui nos aparece um fator novo da justiça infra-humana. Submetendo-se aos benefícios e
inconvenientes inerentes à sua natureza e a conduta que essa natureza lhes prescreve, cada
indivíduo só pode seguir essa conduta até ao limite em que ela não embarace, pelo excesso, a
conduta pela qual os outros indivíduos da associação colhem benefícios ou evitam contrariedades. A
conduta média não deve, pois, ser agressiva até ao ponto de anular as vantagens derivadas da
associação. Assim, ao elemento positivo da justiça infra-humana acresce para os agregados animais
um elemento negativo.

§ 9. - A necessária observância do preceito de que cada membro do grupo, obtida a alimentação para
si próprio e para sua prole, não deve entravar a ocupação dos associados, contribui para a
educação da espécie em que a associação se estabelece. Os inconvenientes experimentados a cada
violação destas restrições exercem uma ação disciplinadora e contínua e ensinam os associados por
modo que um respeito às regalias dos outros se transforma num lema genérico e dominante, um traço
caraterístico e natural da espécie. Com efeito, é obvio que a transgressão habitual de tais
restrições implicaria a dissolução do agrupamento. Só podem permanecer no estado agregativo as
variedades em que prevalece a tendência hereditária para respeitar a conduta média dos demais
associados. Desenvolve-se assim pouco a pouco, uma apreciação consciente e geral da necessidade de
manter esses limites e criam-se castigos para os membros que os transgridem, os quais são
infligidos não apenas pelos membros lesados, mas por todo o agrupamento.
O elefante «vagabundo» (isto é, o que se distingue pela sua maldade) sofre a expulsão do rebanho,
de certo pelo seu génio agressivo. Ha quem afirme que os castores preguiçosos (Dallas in Cassell's
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 5/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
Natural History, III, 99) são rechaçados pela colónia para que não logrem benefícios gratuitos do
trabalho alheio. É sabidíssimo que as abelhas operárias matam os zangãos que se tornaram inúteis.
Tem-se observado em diversos países que as gralhas (Romanes. - Animal Intelligence, 323-5) depois
de acalorada e longa discussão executam sumariamente o associado que se tornou culpado. Uma
testemunha ocular assegura que, quando um casal de corvos rouba aos outros os materiais para a
construção do ninho, estes lhe destroem violentamente para castigo da violação praticada.
A condição a priori da cooperação harmônica é, pois, tacitamente reconhecida como uma quase lei,
visto que se estabelecem penalidades para a sua transgressão.

§ 10 - Nos animais que passam vida solitária, o lema primordial da justiça infra-humana, que exige
que cada indivíduo se sujeite às consequências favoráveis ou prejudiciais da sua natureza
privativa e da linha de conduta que ela implica, princípio que conduz ao predomínio dos mais
fortes e mais hábeis, só implica obrigações para a prole. Os atos puramente egoístas, de auto
sustentação que prevalecem nestes animais são dominados durante o período da vida consagrado à
reprodução, pelas restrições que se tornam necessárias para a educação da progenitura. Além destas
restrições, nenhumas outras se dão neles.
No período do nascimento dos vitelos, os bisões (bois selvagens da América) formam um círculo à
volta do rebanho das vacas e dos vitelos afim de os proteger contra os ataques dos lobos e doutros
animais de presa. Esta tática defensiva pode ocasionar a perda dalguns machos adultos, mas
assegura a conservação da espécie. Antes que um bando de elefantes saia da floresta para se
dessedentar numa corrente de água, é enviado primeiramente um deles para proceder ao
reconhecimento do trajeto. Se este não descobre algum perigo, constitui-se uma guarda avançada que
forma na frente do bando e bastante distanciada dele. Só então o bando parte. Também neste caso,
um diminuto número de indivíduos se expõe a um perigo, para aumentar a segurança da comunidade.
Esta precaução evidencia-se nos macacos, com maior intensidade ainda. Não somente se associam para
livrar do ataque um dos seus, mas organizam habilmente a defesa coletiva organizando retiradas, em
que as fêmeas e os filhos novos abrem a marcha e em que os machos adultos fazem face ao perigo,
constituindo-se em guarda combatente da retaguarda.
Pode acontecer que nalguns casos de excepção estes processos defensivos não deem satisfatórios
resultados e que a mortandade da espécie seja grande: todavia, com o decorrer da experiência que o
tempo dá à execução de tais meios ir-se-á aperfeiçoando e tornará o ataque perigoso para os
assaltantes.
Esta conduta defensiva não pode deixar de ter uma certa sanção, porquanto, ao passo que numa certa
variedade da espécie associada os seus números se mantêm e aumentam, noutras variedades em que
esta subordinação é desconhecida, não se alcança igual resultado. Visto que a conservação da
espécie é o seu fim supremo, sempre que essa conservação se efetive de melhor maneira pela
mortandade dalguns associados vitimados na defesa geral do que pela preocupação individual de
procurar cada um as suas exclusivas vantagens, a justiça infra-humana deve submeter-se a esta
segunda restrição.

§ 11. - Falta-nos determinar a prioridade e a esfera de ação dos princípios expostos. A lei
primordial para todos os seres é a da relação entre a conduta e as consequências dela derivadas.
Esta lei assegura em toda a extensão do reino animal a prosperidade dos indivíduos que, pela sua
estrutura, estão melhor adaptados às condições da existência. No ponto de vista da moral, afirma-
se ela pelo princípio de que todo o indivíduo deve alcançar os benefícios e os inconvenientes
inerentes à sua natureza privativa. É aplicável aos seres de vida solitária sem outra restrição
que não seja, para os que ocupam na escala animal um grau elevado, a da educação da prole.
Para os seres que vivem em comum, esta lei primordial combina-se com a segunda, na ordem do tempo
e da autoridade, por um modo proporcional ao desenvolvimento do espírito de cooperação.
Dessa conjunção dos dois princípios resulta que cada indivíduo associado, procurando as suas
vantagens particulares e evitando os seus inconvenientes privativos deve levar estes atos somente
até ao limite em que não prejudique os atos análogos dos demais companheiros. O "invariável
respeito a esta lei é, na maioria dos casos, a condição indispensável para que a associação
perdure. Torna-se, portanto, uma lei imperativa para os seres que procuram os benefícios dela. É
evidente, todavia, que esta segunda lei não passa dum aspecto especial que a primeira toma quando
é posta em presença das especiais condições da vida em comum. Com efeito, afirmando que as ações e
as reações da conduta e das suas consequências devem, para cada indivíduo, restringir-se pela
maneira que indicámos, afirmado fica, implicitamente pelo menos, que essas ações e reações devem
submeter-se às mesmas restrições nos outros indivíduos, isto é, em todos os indivíduos da
coletividade, indistintamente.
A terceira, e última na data, das leis referidas, é dum alcance mais restrito. Sanciona ela o
sacrifício dalguns membros duma espécie quando esse sacrifício se torne favorável para o conjunto
da dita espécie. Como a segunda, constitui também uma restrição à primeira lei que exige de cada
indivíduo que só obtenha as vantagens e sofra os inconvenientes da sua natureza privativa.
Para remate, convém acentuar que a primeira lei é absoluta para os animais em geral, que a segunda
é absoluta para os animais que vivem em comunidade, e que a terceira somente é aplicável às
espécies que, nas lutas contra os seus inimigos, ganham mais do que perdem com o sacrifício
dalguns dos seus membros. A ausência de inimigos faz com que desapareça a restrição que ela impõe.

CAPÍTULO III
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 6/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt

A Justiça humana

§ 12. - O conteúdo deste capítulo continua-se embrionariamente no do capítulo anterior, pois que
no ponto de vista evolucionista a vida humana é um desenvolvimento ulterior da vida infra-humana e
a justiça humana é também um desenvolvimento ulterior da justiça infra-humana. Separam-se de
ordinário para maior facilidade de estudo, mas são essencialmente da mesma natureza e constituem
duas partes dum só todo.
A conservação da espécie é assegurada, tanto na humanidade como nos seres inferiores, pela lei em
virtude da qual os indivíduos adultos melhor adaptados às condições da existência que lhes é
própria são os que mais prosperam, em quanto que os piores adaptados são os que prosperam menos.
Quando não surjam obstáculos, esta lei assegura o predomínio dos mais aptos e a expansão das
espécies melhor adaptadas. Como precedentemente, esta lei entendida no seu sentido ético, implica
que cada indivíduo colherá os resultados favoráveis ou desfavoráveis da sua natureza privativa e
da conduta que dela deriva; que não será privado dos efeitos normalmente favoráveis dos seus atos
e que não poderá empurrar para outrem as consequências desses atos.
Não é preciso examinar por agora até que ponto pode convir voluntariamente uma parte das más
consequências de atos alheios. Mais tarde estudaremos os efeitos restritivos da piedade, da
clemência e da generosidade, ao tratarmos da «beneficência negativa» e da «beneficência positiva».
Aqui ocupar-nos-emos unicamente da «Justiça Pura».
A Justiça desta lei tem a confirmá-la, na sua origem e na sua expressão ética, a aceitação comum.
As apreciações e os comentários que diariamente ouvimos a respeito dos atos ocorrentes da vida
implicam a compreensão de que as consequências da conduta se não devem dissociar dessa conduta. Se
uma pessoa sofre um prejuízo e se diz que ela só de si própria e de ninguém mais tem a queixar-se,
esta frase implica a opinião de que o referido prejuízo foi uma lógica e natural consequência da
conduta do indivíduo prejudicado. Quando alguém se vê a braços com os maus resultados da sua falta
de juízo, da sua conduta irregular, acode naturalmente este comentário que se transformou em
ditado popular: «quem má cama faz nela tem que se deitar». A relacionação das causas da conduta
com os seus efeitos, mostra o povo também na expressão correntia: «cada um tem o pago que merece».
Uma análoga convicção se subentende quando se trata de consequências vantajosas dum ato e se ouve
dizer: «teve a recompensa devida» ou «não foi recompensado como merecia». Estas frases exprimem o
sentimento de que deve existir uma relação proporcional entre o esforço empregado e o benefício
colhido, e que a justiça reclama essa proporcional idade.

§ 13. - Vimos no capítulo anterior que a justiça vai sucessivamente acentuando-se com os
progressos da organização. Esta proposição, transferindo-a da justiça infra-humana para a justiça
humana esteia-se e confirma-se em novos exemplos. O grau de justiça e o grau de organização
caminham a par tanto na raça humana - tomada no seu conjunto - como nas suas variedades superiores
em oposição com as variedades inferiores.
Tivemos já ensejo de mostrar que uma espécie animal superior se distingue duma espécie animal
inferior pela característica de que, no seu conjunto, sofre uma menor mortalidade causada por
forças destrutivas e acidentais. Cada um dos membros duma espécie superior está, em média,
submetido durante um mais prolongado espaço de tempo a relação normal que existe entre a conduta e
as suas consequências. Vamos notar agora que a espécie humana, em globo, está sujeita a um menor
coeficiente de mortalidade que a da maioria das espécies animais e que os membros da espécie
humana permanecem durante mais tempo sujeitos a influência dos resultados bons ou maus, da sua
conduta bem ou mal adaptada.
Verificámos também já que nos animais superiores a maior longevidade média permite aos diferentes
indivíduos expandirem a sua ação e experimentar lhe os efeitos durante períodos mais longos; donde
resulta que os destinos diversos dos indivíduos são, num grau muito mais nítido, determinados pela
relação normal entre a conduta e as consequências que dela emanam, relação normal que constitui a
justiça.
Na agregação humana, a diversidade das faculdades contribui num grau mais reforçado ainda e
durante períodos ainda maiores, para favorecer os seres superiores e deprimir os inferiores, uns e
outros submetidos a influência contínua da relação entre a conduta e as suas consequências. O
mesmo sucede nas variedades civilizadas do gênero humano comparadas com as suas variedades
selvagens. O coeficiente de mortandade decrescente implica uma proporção crescente de indivíduos
que aproveitam as vantagens dos seus atos bem adaptados e sofrem as dos seus atos mal adaptados. É
também manifesto que dos períodos mais prolongados da longevidade individual e das diferenças de
situação social resulta para as sociedades civilizadas, postas em confronto com as selvagens, que
as diferenças de conduta produzem mais apropriadamente os seus resultados, bons ou maus.

§ 14. - A constituição dos agregados sociais na raça humana é muito mais claramente perceptiva do
que nas raças animais inferiores, por ser, para as variedades humanas mais vantajosa favorecendo-
lhes a segurança geral e facilitando-lhes, em parte, o trabalho da sustentação.
O grau de tendência para a agrupação é determinado pelo grau de utilidade que ela traz para os
interesses da variedade que a adopta. Assim, se os membros duma variedade se alimentam de
substâncias no estado natural, a associação constitui-se em grupos restritos, porque a caça e os
frutos espalhados por áreas extensas só asseguram a subsistência a grupos que, sejam pouco
numerosos. Pelo contrário, a agricultura, que permite a alimentação dum maior número de indivíduos
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 7/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
numa área mais restrita, e os progressos industriais concomitantes que originam cooperações
numerosas e variadas, impelem a humanidade para agrupamentos densos.
Ha a salientar ainda uma verdade entrevista apenas no estudo dos seres inferiores, mas
acentuadamente acusada nos seres humanos e é que: as vantagens da cooperação só se lhes tornam
acessíveis com a condição de se submeterem a certas condições que a associação impõe. É preciso
assinalar aos conflitos mútuos que surjam entre indivíduos agremiados, na persuasão dos seus fins
particulares, limites tais que fique subsistindo um saldo de vantagens para a coletividade. Alguns
raros tipos humanos, como os Abors (Dalton. journal of the Asiatic Society, Bengal, XIV, 426), por
exemplo, fazem vida solitária, porque o seu génio é por tal maneira feroz que se opõe à vida em
comunidade. Prova este caso excepcional que se nos agrupamentos primitivos surgem frequentes
conflitos, tais agrupamentos se mantêm a despeito disso porque os membros associados tiram da
agremiação um saldo de vantagens concretizado, principalmente, sob a forma dum aumento de
segurança. É evidente que o desenvolvimento das coletividades implica uma divisão de trabalho mais
complexa e um aumento de mutualidade de serviços e produtos. Para esses estádios sociais as
vantagens da cooperação só podem ser asseguradas pela manutenção, tanto mais firme, quanto mais
intensa e extensa for a atividade da agremiação, dos limites postos à atividade de cada homem em
especial pelas atividades simultâneas dos outros homens. O estado de decadência e de miséria das
comunidades em que os atentados recíprocos dos seus membros são tão frequentes e tão violentos que
os impedem de colher o resultado normal dos seus labores torna duma patente verdade o enunciado
desta proposição.
Vimos atrás que vários seres inferiores que vivem em comunidade reconhecem tão claramente a
necessidade da restrição mútua das atividades individuais que infligem castigos aqueles dentre os
membros da associação que se não restringem suficientemente. Nos agregados humanos, esta
necessidade, torna-se mais sensível e mais imperativa e origina o hábito de castigos aos
delinquentes. Nas comunidades primitivas, cabia frequentemente ao ofendido a incumbência de se
vingar do ofensor. Mesmo em períodos, relativamente mais adiantados da humanidade, como nas
sociedades feudais europeias, pertencia em muitos casos a cada indivíduo lesado a defesa e
manutenção dos seus direitos. Com o aumento da perfectibilidade social vai sucessivamente
crescendo a compreensão da necessidade de manter a ordem interior e com essa compreensão aumentam
também outros sentimentos correlativos, como o da justiça, passando os castigos a ser sentenciados
pelo conjunto social ou pelos seus ministros autorizados.
Da intensificação da vida social, resulta naturalmente um sistema de leis em que se preceituam as
restrições e conduta individual e as penalidades correspondentes à infração dessas restrições.
Este conceito das restrições da conduta individual generaliza-se e amplifica-se, e assim, acontece
que, em numerosas nações constituídas por homens pertencentes aos mais diversos tipos são
concordes em considerar os mesmos atos como atentados e em reprimi-los com uma igualou idêntica
interdição.
Desta série de fatos, depreende-se um princípio, senão reconhecido teoricamente, reconhecido, pelo
menos, na pratica: que todo o indivíduo que realiza os atos que asseguram a sua existência e colhe
os resultados normais, bons ou maus, derivados de tais atos deve, na pratica desses atos sujeitar-
se às restrições impostas pelo exercício dos atos da mesma índole, praticados pelos outros
indivíduos, os quais, como ele, devem colher também os respetivos resultados normais, bons ou
maus. É nisto que consiste de uma maneira vaga, senão definida, o que se chama justiça.

§ 15. - Como expusemos, a justiça na forma universal e simples que ela assume entre os seres
inferiores que vivem em agrupamentos é caracterizada, em primeiro lugar, pela subordinação do
indivíduo à educação da prole e em segundo lugar pela restrição da conduta privativa dos
associados às vantagens da comunidade. Ha, como também vimos, uma terceira restrição na vida
animal por agrupamento, que é a constituída pelo sacrifício parcial ou total de alguns indivíduos
à salvação da espécie agremiada. Esta última característica da justiça infra-humana adquire mais
vastas proporções nos agregados humanos. Com efeito, nos homens não é só necessário organizar a
defesa contra indivíduos de diferentes raças é preciso opô-la também aos inimigos de raça igual.
Tendo-se espalhado por todas as regiões do globo em que encontraram meios de sustento, os
agrupamentos humanos entrechocam-se em conflitos múltiplos e as vítimas causadas pelas guerras são
incomparavelmente maiores que dos seres agrupados inferiores, na defesa das suas respectivas
coletividades. Todavia, a destruição do grupo ou da variedade não implica a da espécie, nem nas
raças inferiores nem na raça humana; donde se deduz que a subordinação do indivíduo aos interesses
do grupo ou da variedade é uma obrigação inferior à de dispensar à prole educação e cuidados sem
os quais a espécie desapareceria e à de restringir cada um os seus atos privativos por modo a que
não lesem o interesse coletivo: o não cumprimento parcial ou total destas últimas obrigações
causaria a dissolução do grupo. Não obstante a obrigação da defesa da coletividade deve ser
considerada como uma obrigação na medida em que a existência de cada um dos grupos que a
constituem assegure a duração da espécie.
Esta obrigação assim justificada e tornada num certo sentido obrigatória não vai, porém além das
exigências da guerra defensiva. Porque a conservação do grupo, considerada no seu conjunto,
assegura a conservação da vida dos seus elementos componentes é lhes proporciona a realização do
seu objetivo de vida - é que existe uma razão que justifica o sacrifício de alguns indivíduos em
benefício da coletividade. Esta razão cessa se em vez de uma guerra defensiva se trata de uma
guerra ofensiva.
Poder-se-á objetar que as guerras ofensivas contribuem para o povoamento da terra e que favorecem
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 8/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
os interesses da raça, isto com o argumento de que tais guerras terminam pela destruição dos
grupos mais fracos. Dando mesmo de barato que os grupos vencidos se compõem sempre de homens
mentalmente ou fisicamente menos aptos para a guerra (o que não é verdadeiro, visto que o elemento
numérico tem no caso uma decisiva influência e visto também que os grupos menos numerosos podem
ser constituídos por mais valentes guerreiros) nem assim daríamos assentimento a essa objeção. O
desenvolvimento do vigor, da coragem e dos ardis guerreiros só tem capital importância nos
primeiros estados do progresso humano. Com a formação de sociedades numerosas e com o
desenvolvimento do espírito de subordinação necessário para a constituição e persistência delas,
as lutas violentas pela existência deixam de assegurar o predomínio dos mais aptos. Falhou aos
persas a conquista da Grécia e as hordas tártaras não conseguiram submergir a civilização
europeia. A guerra ofensiva só servirá, pois, os interesses de uma raça à qual faltem aptidões
para uma vida social elevada. Á medida que as sociedades se desenvolvem e aperfeiçoam, a guerra
ofensiva deixa de assegurar o progresso humano e não faz senão retardá-lo.
Pode, pois, afirmar-se seguramente que, chegados ao nível em que se tornam acessíveis a
considerações morais, os homens atingem o limite em que a guerra ofensiva deixa de ser
justificável, porque se torna incerto que ela assegure o predomínio das raças aptas para uma vida
social elevada e é certo que provoca reações morais nocivas, conjuntamente, para os vencedores e
para os vencidos. Fica somente a guerra defensiva com títulos de justificação quase moral.
A este propósito, observaremos ainda que as restrições do princípio abstrato da justiça que as
guerras defensivas implicam, pertencem ao período transitório em que o conflito físico das raças
se não pode evitar. Tais restrições deverão desaparecer quando a humanidade atingir o estado
pacífico, o que implica que todos os assuntos que se relacionam com a maior ou menor latitude
dessas restrições são do domínio do que dissemos constituir a moral relativa; estão fora do âmbito
da moral absoluta que apenas trata dos princípios da justa conduta de homens perfeitamente
adaptados à vida social.
Convêm insistir nesta distinção, porque nos capítulos seguintes, há de ela ajudar-nos a destrinçar
os complicados problemas da moral política.

CAPÍTULO IV

O Sentimento de Justiça

§ 16. - A adopção da doutrina da evolução orgânica implica certas concepções morais. Em razão do
seu incessante comércio com as necessidades da vida, os numerosos órgãos de cada uma das
inumeráveis espécies de animais têm-se adaptado direta ou indiretamente a essas necessidades da
existência. É por isso que os roedores, quando encerrados numa coelheira, fazem um uso incessante
dos seus músculos maxilares e dos seus dentes incisivos, dilacerando o que encontram mais a jeito.
É por isso também que animais que vivem em agrupamentos sofrem quando afastamos deles e os pomos
em sequestro o pesar de não poderem juntar-se aos companheiros. É por isso ainda que os castores
cativos manifestam a sua paixão pelas construções dos diques, em pilhando os ramos e as pedras que
encontram ao alcance.
Parou no homem primitivo este processo de adaptação mental? São os seres humanos incapazes de
adaptar progressivamente os seus sentimentos e as suas ideias às modalidades de existência que
lhes impõe o estado social que atingiram? Devemos considerar a sua natureza, que se adaptou às
exigências do estado selvagem, como insuscetível de mudança progressiva sob a influência das
exigências da vida civilizada? Ou devemos afirmar que o desenvolvimento de certos caráteres e a
supressão de outros aproximam cada vez mais a sua natureza aboriginal duma natureza que encontre o
seu ambiente apropriado numa sociedade desenvolvida e em que as atividades exigidas pelo ambiente
dela se transformem em atividades normais? Ha alguns adeptos da doutrina evolucionista que se
inclinam a negar a adaptabilidade contínua da espécie humana. Após um sumário e desatento exame
dos dados fornecidos pelas comparações feitas entre as diferentes raças humanas e entre os estados
sucessivos da mesma raça em diferentes épocas, rejeitam em globo a indução tirada dos fenómenos da
vida geral. Ora isto é um tão grande abuso do método indutivo como o feito do método dedutivo. O
que pensar dum homem que, desprezando as observações anteriores, se recusasse a acreditar que são
precisos catorze dias para que a lua nova se transforme em lua cheia e entrar em seguida no quarto
minguante e que desse como motivo da sua caturrice a circunstância de não ter podido observar
pessoalmente as sucessivas fases do nosso satélite de modo a formar uma opinião segura? Não seria
levar o amor da indução até à caturrice? Coisa parecida é de dizer a respeito das pessoas que,
pondo de lado a prova indutiva da adaptabilidade ilimitada, tanto física como mental, que nos é
revelada pelo conjunto do mundo infra-humano a não admitem para a natureza humana em relação à
vida social pelo motivo de que a essa adaptação só verificável depois de consumada e como se os
dados que atestam que tal adaptação continua a produzir-se em torno de nós, fossem de nenhuma
valia!
A nossa opinião -, considerando como uma inevitável dedução da doutrina da evolução orgânica que
os tipos mais elevados dos seres vivos se vão, como os tipos inferiores, adaptando sucessivamente
às necessidades impostas pelas circunstâncias, - é a de que as evoluções morais devem ser
incorporadas com as evoluções meramente orgânicas.

§ 17. - A indigestão causada por um prato predileto determina a aversão a esse prato. Tal fenómeno
mostra como, na região das sensações, a experiência cria associações que influem na conduta. A
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 9/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
casa em que nos morreu uma pessoa de família, a companheira dos nossos dias ou um filho
estremecido, ou em que sofremos uma doença grave fica por vezes, tão intimamente associada ao
estado mental doloroso que esse acontecimento nos desperta, que nos vemos obrigados a mudar de
residência. Estes exemplos esclarecem por suficiente modo como, na região sensorial, os atos são
suscetíveis de ser determinados por conexões mentais que se formam no decurso da vida. Quando as
circunstâncias ambientes acostumam uma espécie a determinadas relações e entre a sua conduta e as,
consequências dessa conduta derivadas, os sentimentos que com a conduta e as respectivas
consequências se relacionam podem transformar-se, pela persistência, em caraterísticas dessa
espécie. Quer pela transformação hereditária das modificações causadas pelo costume, quer pela
sobrevivência de maior número de indivíduos cuja estrutura nervosa se modificou num sentido mais
azado, formam-se gradualmente tendências diretrizes que determinam uma conduta mais apropriada
substituindo-se a outra que o era menos. Para exemplificação destas adaptações, citaremos o
contraste observado entre as aves que vivem nas ilhas despovoadas que não manifestam temor algum a
aproximação do homem, ao passo que as das nossas regiões fogem dele logo desde abandono do ninho.
É assim que, com a amplitude que lhes é própria, se produzem nos seres inferiores e continuam a
produzir-se nos seres humanos, os sentimentos de adaptação à vida social. Os atos agressivos,
habitualmente prejudiciais ao grupo no seio do qual surgem, são muitas vezes prejudiciais também
aos indivíduos que os cometem, por que o prazer que eles procuram alcançar com a prática desses
atos, não é raro ser anulado e excedido por desgostos e sofrimentos.
Pelo contrário, uma conduta que não ultrapasse os devidos limites e que não provoque nenhuma
paixão antagonista favorece a harmonia da cooperação, é vantajosa para o grupo e torna-se, por
igualdade de motivos, vantajosa para a maioria dos indivíduos que o constituem. Em condições de
igualdade, os grupos constituídos por membros dotados desta adaptação têm maior tendência para
sobreviverem e se expandirem.
Dentre os sentimentos sociais elaborados pela evolução, o sentimento de justiça é de capital
importância. Examinemo-lo:

§ 18. - Quando se tapam as ventas a um animal, esforça-se violentamente para desprender a cabeça e
respirar à vontade. Quando lhe comprimimos os membros, molestando-os, sacode-se com raiva para
recobrar a liberdade. Quando o prendemos com uma corda ou com uma corrente, pelo pescoço ou por
uma perna, estica-a e procura fugir até se convencer da inutilidade do seu esforço.
Se o enclausurarmos, entrará numa incessante agitação. A generalização destes exemplos permite-nos
reconhecer que quanto mais violentas são as restrições impostas aos atos que asseguram a vida,
tanto mais violenta se torna a reação que eles suscitam. Inversamente, o alvoroço com que a ave
engaiolada aproveita o ensejo para voar do seu cárcere e a alegria dum cão quando se vê solto,
provam o apreço que dão a liberdade dos seus movimentos.
O homem manifesta sentimentos análogos, por uma, forma mais extensa e mais variada. Ha invisíveis
contrariedades que o incomodam tanto como as contrariedades visíveis, e à medida que vai subindo
na escala da evolução é afetado cada vez mais por circunstâncias e atos que, provindos de
afastadas vias, favorecem ou dificultam a consecução dos seus fins. Um paralelo elucidará esta
verdade. O amor primitivo da propriedade contenta-se com a posse de alimentos, dum abrigo e, um
pouco posteriormente, de vestuário. Mais tarde, aprecia sucessivamente: a posse das armas e dos
instrumentos com a ajuda dos quais as obtêm; a dos materiais com que se fabricam essas armas e
esses instrumentos; a da moeda com que pode comprar os referidos e outros objetos; a dum
compromisso convertível em dinheiro; e, por fim, a dum cheque desligado dum livrete e pagável num
banco.
Um conceito de ordem cada vez mais abstrata e cada vez mais distanciada da posse material vem pois
pouco a pouco modificar os originários sentimentos da posse. O mesmo se dá com o sentimento da
justiça. Inicia-se pelo contentamento que o homem experimenta ao colher, mediante o emprego da sua
força física as vantagens que procurava; associando-se a irritação provocada por extorsões diretas
chega gradualmente a corresponder a mais extensas relacionações, e a insurgir-se contra a servidão
pessoal e contra a servidão política. Mais tarde expande a sua indignação contra os privilégios de
classes e manifesta o seu modo de sentir em face das mesmas alterações políticas.
Por fim, este sentimento, tão embrionário no negro, que censura o seu companheiro emancipado, por
ter perdido a proteção do seu senhor, desenvolve-se até aos mais altos graus. O cidadão inglês,
por exemplo, protesta com violência contra a mais leve infração das medidas e formalidades
parlamentares e contra qualquer medida coercitiva do direito de reunião: essas infrações, não o
atingem a maior parte dos casos, pessoalmente; mas combate-as pela possibilidade de que venham
afeta-lo diretamente, se der margem com o seu indiferentismo, a que uma autoridade se arrogue
poderes que não possui para lhe impor encargos e restrições imprevistas.
É, pois, evidente, que o sentimento egoísta da justiça é um atributo subjetivo e que esse
sentimento corresponde às exigências objetivas que constituem a justiça e que exigem que cada
adulto colha os resultados dos atos derivados da sua natureza privativa. Com efeito, se as
diversas faculdades de cada indivíduo não tiverem inteira expansão, não serão colhíeis nem
avaliáveis resultados plenos. A ausência do sentimento que exige a asseguração dessas faculdades
com toda a amplitude em que elas são exercíveis sem prejuízo da coletividade compromete a
liberdade de condutas e entrava a sua efetivação.

§ 19. - É de fácil traço o esquema do desenvolvimento do sentimento egoísta da justiça; mas o da


evolução do seu sentimento altruísta, esse, é mais difícil. Os fatos demonstram que, por um lado,
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 10/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
este último sentimento só pode aparecer no decurso da adaptação ávida social e que, por outro
lado, a vida social não pode efetivar-se senão pela manutenção de relações de equidade que
implicam a já existência do sentimento altruísta da justiça. Como foi que estas recíprocas
necessidades encontraram realização?
Responderemos que o sentimento altruísta da justiça não pôde começar a existir senão com a ajuda
de um sentimento que temporariamente o suprisse, reprimindo os atos instigados pelo egoísmo puro.
A esse sentimento suplente, chamar-lhe-emos o sentimento pró altruísta da justiça. Vamos passar
sucessivamente em revista os vários elementos em que ele se decompõe.
O temor das represálias, que nos animais atua já, é o primeiro móbil que dissuade da agressão. O
receio da vingança, que se seguiria a um ato de apoderação violenta, basta para desviar a maior
parte dos seres de uma mesma espécie de se apoderarem dos alimentos ou de um benefício já
apropriado por um deles. Nos homens, e em especial nos pertencentes a estados atrasados da vida
social, é principalmente esse temor que assegura um livre campo às atividades individuais e ao
gozo exclusivo dos bens que elas alcançam.
Um outro travão é o do receio da reprovação provável dos membros desinteressados do grupo. Ainda
que a expulsão da manada, do elefante, «vagabundo» e a execução de um membro culpado de um bando
de corvos ou de cegonhas nos tenham permitido verificar que, mesmo entre os animais, os indivíduos
têm de sujeitar-se a sentença da opinião pública, não é provável que a previsão da reprovação
coletiva baste para prevenir as extorsões. Mas no homem, que é um ser mais apto a fixar e a
prever, a ideia do desprezo social constitui um freio a mais nos atentados de indivíduo contra
indivíduo.
A estes sentimentos, que atuam anteriormente a toda a organização social, veem juntar-se os
sentimentos que nascem depois do estabelecimento da autoridade política. Quando um chefe vencedor
na guerra e tendo adquirido a soberania permanente, toma a peito a manutenção do seu poder, começa
a sentir o desejo de prevenir os atentados de uns contra os outros dos seus subordinados, pois que
as dissenções enfraquecerão a tribo. Daí a restrição do direito de vingança pessoal, e, na época
feudal, das guerras privadas - e da interdição dos atos que suscitavam essas vinganças
particulares e nas lutas de fações intestinas. O estabelecimento das penalidades que fazem tais
infrações vem constituir receio adicional.
Geralmente, o culto dos antepassados que o desenvolvimento das sociedades transforma em culto
propiciatório especial dos manes do chefe e, subsequentemente do rei morto, reforça o caráter
sagrado das injunções que formulou em vida. Quando o estabelecimento do culto o ergue à categoria
de um deus, as suas injunções adquirem o caráter de ordens divinas revestidas da sanção de
castigos temidos que adviriam da sua violação.
Estas quatro categorias de receios atuam cumulativamente. Combinados em proporções variáveis, o
temor das represálias, o temor da aversão social, o temor dos castigos legais e o temor da
vingança divina formam um corpo de sentimentos que põem em cheque a tendência para a apoderação de
objetos desejados sem entrar em linha de conta com os interesses alheios. Este sentimento pro-
altruísta da justiça, que não encerra parcela alguma da justiça altruísta serve temporariamente
para conservar em respeito aos direitos de outrem e torna assim possível a cooperação social.

§ 20. - Os seres em via de passarem ao estado de agrupamento tornam-se acessíveis à simpatia, em


razão do desenvolvimento da sua inteligência. Não quer isto dizer que a tendência para a simpatia
que desse desenvolvimento intelectual resulta seja excessivamente inclusive, ou mesmo numa parte
considerável, na categoria dos sentimentos que de ordinário a palavra simpatia implica: referimo-
nos apenas à simpatia pelo medo, de certos animais, e a simpatia pela ferocidade, de outros. É
provável nos seres agrupados, que o sentimento manifestado por um deles excite sentimentos
análogos nos seus companheiros e que essa excitação se dê precisamente em proporção do grau de
inteligência que lhes permite apreciar a manifestação de tal sentimento.
Nos dois capítulos: «A sociabilidade e a simpatia» e «Os sentimentos altruístas. dos Principias de
Psicologia, tentei mostrar como a simpatia se origina, em geral, e como se forma a simpatia
altruísta.
Concluiremos, pois, que se tendo mantido nos homens estado de sociedade, graças ao influxo do
sentimento pro-altruísta de justiça, as condições que permitem o desenvolvimento do sentimento
altruísta da justiça se mantiveram também. Em todo o grupo permanente se produzem de geração em
geração acontecimentos que determinam da parte dos seus membros a manifestação simultânea de
comoções análogas: por exemplo, explosões de alegria seguidamente a vitórias alcançadas, a
desgraças evitadas, a capturas feitas em comum, ao descobrimento de víveres no estado natural; e
lamentações a propósito da perda de uma batalha, de fomes, de flagelos meteorológicos, etc. A
estas grandes alegrias e a estas grandes dores sentidas em comum por todos e expressas de maneira
a que cada um reconhece nos outros os sinais reveladores de sentimentos análogos aos que os
agitam, veem juntar-se os gozos e dores secundários inseparáveis da vida quotidiana; as refeições
em comum, os divertimentos, os jogos, os acidentes desgraçados e frequentes que atingem e afetam
conjuntamente vários indivíduos da coletividade. Assim se engrandece a simpatia, que permite a
existência do sentimento altruísta da justiça.
Mas este sentimento só muito lentamente adquire uma forma elevada, isto, em parte, porque o
desenvolvimento acentuado do seu elemento primordial coincide com uma fase tardia do progresso, e
em parte, porque sendo relativamente complexo, implica um poder de imaginação que não está ao
alcance de inteligências inferiores. Examinemos cada uma destas causas de retardação.
Pressupõe todo o sentimento altruísta a experiência do sentimento egoísta correspondente. Assim
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 11/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
como para partilhar o prazer da música é preciso ter um ouvido musical, assim também para se
sentir simpatia pelas dores alheias é necessário tê-las sofrido. Da mesma maneira o sentimento
altruísta da justiça não pode nascer senão depois do seu sentimento egoísta. Resulta daqui que nos
casos em que este não haja adquirido um grau elevado de desenvolvimento, ou em que se encontre
comprimido por uma vida social de tendências opostas, o sentimento altruísta da justiça permanece
no estado rudimentar.
A complexidade do sentimento altruísta de justiça torna-se patente se considerarmos que não
abrange somente os gozos e sofrimentos concretos, mas que se estende também até às circunstâncias
que tornam aqueles acessíveis ou que permitem evitar estes. Como o sentimento egoísta de justiça
se regozija com o respeito das condições favoráveis a livre realização das nossas necessidades e
se irrita com a sua violação, resulta daqui que para despertar o sentimento altruísta da justiça
não basta a ideia dessa realização de necessidades. É necessário ajuntar-lhe a ideia das condições
respectivas que ora são violadas, ora respeitadas.
Por tal motivo, é evidente que a faculdade de representação mental deve estar relativamente
desenvolvida, para poder dar a este sentimento uma forma elevada.
Os animais agregados de ordem superior podem manifestar ocasionalmente simpatia se ela tiver por
determinante dores e prazeres simples: a espaços, sentem como os homens, piedade e generosidade.
Porém a concepção simultânea, não somente dos sentimentos produzidos em outro, mas também da
complicação de atos e de imagens concorrem para a produção desses sentimentos, pressupõe um
trabalho de concatenação mental de um número de elementos muito elevados para que um animal possa
abrangê-los em conjunto. Se remontarmos às formas mais abstratas do sentimento da justiça, as que
se relacionam com a ordem pública, compreenderemos sem dificuldade que só as variedades humanas
superiores são suficientemente capazes de compreenderem o modo por que as leis e as instituições,
boas ou más, afetarão definitivamente a sua esfera de ação e para se manifestarem defendendo-as ou
atacando-as.
O sentimento simpático de justiça, que impele os indivíduos a tomarem parte nos interesses
políticos dos seus concidadãos, é unicamente acessível às variedades superiores da raça humana.
Existe uma relação intima entre o sentimento de justiça e o tipo social.
O predomínio do regime militar implica uma forma coercitiva de organização, tanto para os
agrupamentos dos combatentes como para a sociedade que provê a sua subsistência.
O regime militarista não deixa o mínimo campo ao sentimento egoísta de justiça, calca-o
incessantemente aos pés, ao mesmo tempo que pelo contado das atividades guerreiras faz mirrar
inteiramente as simpatias geradas do sentimento de justiça.
Por outro lado, à medida que o regime do contrato se substitui ao regime do estatuto ou, noutros
termos, à medida que a cooperação voluntária que caracteriza o tipo social industrial se substitui
a cooperação imposta que caracteriza o tipo militar, as atividades individuais são sucessivamente
menos apertadas e o sentimento que se disfruta pelo alargamento do âmbito dessa atividade adquire
um encorajamento gradualmente maior. Simultaneamente, as circunstâncias em que é preciso
reprimirmos simpatias vão-se tornando cada vez mais frequentes. Daqui se depreende que o
sentimento de justiça recua durante os períodos guerreiros da vida social, ao passo que se
desenvolve nas suas fazes pacíficas e que só poderá expandir-se plenamente num estado de paz
perpétua (Existe nalgumas raras regiões o estado de paz perpétua; e onde ele existe, o sentimento
de justiça é intensamente vivaz e impressionável. Sinto-me feliz em poder afirmar novamente que
dentre os homens ditos não civilizados, alguns há que se distinguem pela inteira ausência de
propensões guerreiras e cujos costumes são uma vergonha para as nações que se jactam de
civilizadas. Citei nas minhas Instituições Políticas (§§ 437 e 574) oito espécimes pacifistas,
pertencentes a raças de tipos diferentes).

CAPÍTULO V

A Ideia de Justiça

§ 21. - O estudo do sentimento de justiça desbravou-nos o caminho para o estudo da ideia de


justiça. Vamos ver que é fácil distinguir a segunda do primeiro, a despeito da sua intima conexão.
Qualquer indivíduo, a quem a carteira caia do bolso, ficará indignado se a pessoa que lhe vir cair
e a apanhar, não quiser restituir-lhe. A má fé dum lojista que nos mande para casa artigos
diferentes daqueles que apartámos provoca os nossos protestos. Se num intervalo dum espetáculo
alguém vai ocupar o nosso lugar e se nega a erguer-se dele ao voltarmos, censuramos esse abuso e
queixamo-nos. Insurgimo-nos quando um ruído incómodo -da vizinhança nos acorda em sobressalto alta
manhã. Lamentamos um amigo que por enganosas informações se envolveu numa empresa que o arruinou,
ou, que por chicanices judiciais, perdeu uma demanda.
Em todos estes casos, o nosso sentimento de justiça sofre uma lesão; mas sucede que a maior parte
das vezes não conhecemos a modalidade específica dessa lesão, por possuirmos em toda a sua
plenitude o sentimento de justiça, não tendo, porém, da ideia de justiça mais do que uma vaga e
imprecisa compreensão.
A existência da relação que liga o sentimento a ideia de justiça é, todavia, incontestável. Os
modos porque os homens se lesam uns aos outros tornam-se mais numerosos e complicam-se de mais em
mais, à medida que a vida social se intensifica; torna-se preciso que sucessivas gerações as
sofram nas suas múltiplas formas para que a análise consiga estabelecer a demarcação que separa os
atos lícitos dos ilícitos. A ideia emerge e vai-se tornando nítida com o decurso de experiências
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 12/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
sucessivas que nos ensinam que a prática dum ato pode realizar-se, sem despertar cóleras alheias,
a dentro de certos limites, para além dos quais essa cólera surgirá. As experiências acumulam-se
e, ao lado da repugnância que as reações penosas determinam, engrandecendo gradualmente a
concepção dum limite para além do qual cada categoria de ações se pode expandir livremente. Mas
como essas categorias são muito numerosas e se diversificam à medida que a vida social se
desenvolve, abre-se um longo intervalo antes que se torne possível conceber a natureza geral do
limite com um de todos os atos possíveis (A gênesis da ideia de que os atos simples têm limites
igualmente simples é-nos dada pelos animais dotados de inteligência e serve para nos elucidar
acerca dos seus progressos relativamente a atos mais complexos e de limites menos evidentes.
Citarei, a propósito, os cães de Constantinopla que reconhecem a asserção tácita de certos
direitos e das penalidades infligidas pela sua violação, senão entre indivíduos pelo menos entre
grupos de indivíduos. No livro do major T. C. Johnson: On the Track of the Crescent, corrobora-se
dum modo impressionante este facto, aliás bem conhecido: "Uma tarde, conta ele (pag. 58 e 59) em
que passeava por Constantinopla com um inglês, oficial da polícia turca, aproximou-se de nós uma
cadela que lhe lambeu as mãos ... Seguiu-nos durante algum tempo e depois estacou de repente no
meio da rua ... Agitava a cauda e seguia-nos avidamente com o olhar, mas não avançava quando a
chamávamos. Dias passados, a cadela reconheceu-me ... e seguiu-me até ao limite do seu bairro”).
Existe um outro motivo da lentidão com que esta concepção se desenvolve. Tanto as ideias, como os
sentimentos devem, em geral, adaptar-se ao estado social.
Ora como a guerra tem constituído um estudo frequente ou habitual em quase todas as sociedades, as
necessidades contraditórias do estado de amizade no interior e de inimizade no exterior, mantêm
constantemente em confusão as ideias existentes de justiça.

§ 22. - Somos chegados a assinalar à ideia de justiça, ou, pelo menos, à ideia humana de justiça,
dois elementos: o elemento positivo que implica o reconhecimento do direito de cada homem a
atividades livres de toda apeia; e o elemento negativo, que implica o sentimento consciente dos
limites que impõe a presença de outros homens gozando de análogos direitos. Ha nestes elementos
dois caráteres opostos que devem deter a nossa atenção.
A primordial ideia sugerida é a da desigualdade, porquanto devendo, em princípio, colher cada um
as vantagens e desvantagens resultantes da sua natureza privativa e da conduta dela derivada, as
diferenças de faculdades que os diversos homens possuem, produzem correspondentes diferença? entre
os resultados das suas condutas. As somas de vantagens obtidas serão, pois, desiguais.
A delimitação mútua das ações humanas sugere-nos uma ideia oposta. O espetáculo dos conflitos que
surgem quando um procure realizar os seus fins sem se preocupar com os direitos do vizinho, dá
origem à consciência dos limites que é preciso estabelecer, para se evitarem colisões de
interesses, aos esforços de cada homem. Mostra a experiência que esses limites, em média, são os
mesmos para todos. O pensamento de que todas essas esferas de ação se limitam umas às outras
implica a concepção de igualdade.
Cada um destes dois fatores da justiça humana tem dado margem a divergentes teorias morais e
sociais de que vamos ocupar-nos.

§ 23. - As concepções de alguns selvagens não ultrapassam o nível que mostrámos terem os animais
inferiores que vivem em agrupamentos. Entre os dogribes, o mais forte apodera-se do que lhe
agrada, com detrimento do mais fraco, e sem que isso concite a reprovação geral; os fogueanos
praticam com a tácita aprovação coletiva o comunismo, ou coisa semelhante. Quando a organização
política tenha sido determinada pelo estado de guerra, a desigualdade não pode deixar de
predominar, senão nos vencidos, por passarem a escravos, pelo menos nos vencedores que,
naturalmente, por uma ideia de conveniência no que respeita aos seus interesses, desenvolvem, na
concepção de justiça, o elemento que implica que a toda a superioridade deve corresponder um
proporcional acréscimo de benefícios.
Os diálogos de Platão não nos dão, por completo, o modo de ver geral dos gregos sobre este
assunto. Podemos, porém, encontrar neles alguns indícios do que os gregos pensavam acerca da
justiça. Ouçamos a exposição feita por Glaucose da opinião corrente no seu tempo:
Eis o que constitui a origem e a natureza da justiça: existe um meio termo, ou compromisso, entre
o que se lhe prefere (isto é, a liberdade de praticar, mas não suportar a injustiça) e o que se
evita com ela (a obrigação de tudo suportar sem poder fazer uso da vingança). Meio termo entre
estes dois extremos, a justiça é tolerada, não a título de supremo bem, mas a título de menor mal.
E acrescenta a seguir: «Só pela força da lei, os homens enveredam pela senda da justiça».
É conveniente insistir nalguns pontos destas significativas passagens.
Em primeiro lugar, encontra-se nelas o reconhecimento do facto já enunciado de que nas épocas
primitivas a prática da justiça tem por única determinante o receio das represálias e a convicção,
baseada na experiência, de que é afinal mais razoável a abstenção de agressões e o respeito pela
delimitação que o princípio enunciado implica. Ninguém, nesses tempos, se preocupa com a
criminalidade intrínseca da agressão, mas somente com as consequências perigosas que da agressão
adviriam. Quando se afirma que «só a força da lei» fixa o limite imposto aos atos de cada homem,
os Diálogos consideram a lei como «um meio termo, ou compromisso» e acrescentam que só ela impõe o
respeito da justiça e impele os homens para o caminho pela justiça demarcado. A lei não é encarada
como sendo uma expressão da justiça, mas como sendo ela própria, a fonte da justiça. Daqui resulta
o sentido dado na preposição anterior de que é justo obedecer à lei. Além disto, a transcrição
feita implica que, se não fossem as represálias e as penalidades legais, o mais forte teria o
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 13/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
direito de oprimir o mais fraco. No primeiro termo formulado, nos períodos extraídos aos Diálogos,
aceita-se metade da opinião de que a superioridade deveria gozar de todas as vantagens ao seu
alcance. A ideia de desigualdade entra pois nalguma consideração; a da igualdade permanece
inteiramente apagada.
Também não é fácil descobrir qual seja a opinião de Platão, ou antes a de Sócrates. As ideias dos
gregos não adquirem em muitos assuntos, uma forma rigorosa e os pensamentos dos Diálogos são de
contornos pouco nítidos. A justiça ora tem neles por origem a probidade, ora é considerada como
«primeiramente, a ordem universal, ou o bem do Estado, e secundariamente, a do indivíduo». (Cito o
sumário de M. Jowet in Platon. Republic, Oxford 1881, pag. 229).
Esta última frase implica o predomínio de uma classe governante e a sujeição a ela das classes
restantes. A justiça consiste «em que cada uma das três classes cumpra a missão que a essa
respectiva classe incumbe; que o carpinteiro, o cordoeiro, etc., se entreguem exclusivamente ao
seu mister» e que todos obedeçam à classe que tem a missão de governar (Encontra-se numa outra
pagina, um exemplo típico do raciocínio socrático. Diz-se nela «que há um justo princípio que
exige que os indivíduos se não apoderem do bem alheio, nem se apoderem do seu». Deste princípio é,
depois, tirada a dedução de que a justiça consente «em que cada um possua e faça o que lhe
agrada»; mais adiante, infere-se que é injusto que um homem se apodere do mister de outro homem e
o «expulse, pela força» duma classe para outra. Uma igual conclusão é, pois, tirada do emprego de
uma só expressão para designar a relação que existe entre um homem e o seu bem ou o seu mister. Ha
nela dois erros: um é o de que se pode possuir um mister como quem possui a roupa que se traz no
corpo; outro o de que um homem não pode ser despojado do seu mister, pela mesma razão por que não
pode ser despojado das suas vestes. Erros deste género, causados pela confusão das ideias e das
coisas, entre a unidade de nome e a unidade da natureza, indicam a cada passo os Diálogos de
Platão). Desta maneira, a ideia de justiça alicerça-se na ideia da desigualdade. Embora se
entreveja uma tendência para o reconhecimento da igualdade de situações e de direitos entre os
membros da mesma classe, as leis, por exemplo, concernentes à comunidade das esposas na classe
governante, estabeleciam, maiores privilégios para os membros desta classe que desempenhavam
funções superiores.
Em geral entre os gregos a noção de justiça que acabamos de expor, pois que se encontra também em
Aristóteles, no capítulo quinto da sua Política, onde se defende como justo e útil o domínio dos
senhores sobre os escravos.
Conquanto a ideia da desigualdade predomine, nos gregos, sobre a ideia da igualdade que persiste
apagada, é de notar que esta desigualdade se não relaciona com a atribuição natural das maiores
recompensas para os maiores méritos, mas com a sua atribuição artificial. É uma desigualdade
estabelecida principalmente pela concepção do autoritarismo. Nas coletividades gregas, a
organização civil é de natureza igual à da organização militar: o espírito de arregimentação
penetra-as a ambas e a ideia da justiça conforma-se com elas, adquirindo caráter da estrutura
social de onde derivou.
Os fatos históricos posteriores da vida europeia veem demonstrar que é bem essa a ideia de justiça
própria do tipo militar em geral. Assim o atesta suficientemente o confronto entre as penas
pecuniárias pagas nas composições criminais e que são graduadas de harmonia com o grau hierárquico
da parte lesada e com os privilégios conferidos pela lei às diferentes classes sociais. Para se
ver até que ponto a noção das desigualdades de direitos influíram na noção de justiça, basta
dizer-se que os servos que se refugiavam nas cidades eram condenados por se terem subtraído
«injustamente» ao domínio dos seus senhores.
Como era de presumir que se tivesse dado, enquanto a luta pela existência entre as sociedades se
conserva em atividade intensa, o reconhecimento do fator secundário da justiça só muito
imperfeitamente restringe o reconhecimento do seu fator primário que é comum a toda a vida em
geral, tanto humana como infra-humana. O elemento humano atenua, mas de modo frouxíssimo o que nós
designaremos: o elemento animal desta concepção.

§ 24. - Todos os movimentos são rítmicos, inclusive os movimentos sociais e o das doutrinas que os
acompanham. Seguidamente à concepção de justiça baseada nas ideias de desigualdade excessiva,
surgiu uma concepção da justiça em que as ideias da igualdade predominam em excesso. A teoria
moral de Bentham proporciona-nos um exemplo dessa reação: No extrato seguinte do Utilitarismo
feito por M. Mill (pag. 121 da tradução francesa, edição de 1889) a ideia de desigualdade
desaparece de todo.
«O princípio da felicidade máxima tornar-se-á numa amalgama de palavras sem significação racional,
se a felicidade de uma pessoa suposta igual em intensidade (compartida pela qualidade) não for
avaliada em tanto Como a felicidade de uma outra pessoa. Nestas condições, a fórmula de Bentham:
«Cada um deve contar para um e ninguém deve contar para mais de um» poderia ser escrita sob o
princípio benthiano da utilidade, para lhe servir de comentário explicativo.
Embora Bentham combata a proposição de que é preciso tomar a justiça por guia quando diz que a
justiça constitui um fim por todos concebível, ao passo que a justiça não constitui senão um fim
relativamente ininteligível, - afirma implicitamente a justiça do seu princípio: «cada pessoa deve
contar para um e ninguém deve contar para mais de um», aliás seria forçado a confessar que esse
princípio é injusto e não é de supor que ele conviesse em tal. A doutrina do utilitarismo implica,
pois, que se deve entender por justiça uma igual repartição dos proventos materiais e imateriais
provenientes da atividade dos homens. Não é, portanto, aceitável que Bentham concordasse em que
pudesse haver nas comparticipações da felicidade humana desigualdades provenientes das
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 14/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
desigualdades das faculdades e dos caráteres.
É esta a doutrina que o Comunismo pretendia pôr em prática. Um dos amigos do príncipe Kropotkine
contou-me que ele invetiva os socialistas ingleses por não tomarem como lema a regra popular da
«divisão obrigatória e igual». Laveley, num artigo recente, define o comunismo como sendo um
princípio em virtude do qual «o indivíduo, trabalhando para o benefício do Estado lhe entrega o
produto da sua atividade para que este o divida igualmente por todos». Na utopia comunista
descrita por Bellarny no seu livro Looking Backward, diz-se «que todos serão obrigados a fazer
igual esforço» e que se em virtude desse igual esforço físico ou mental o produto da atividade de
um se tornar duplo do produto da atividade de outro, a diferença não será tomada em conta. Os que
forem física ou intelectualmente fracos, receberão tanto como os válidos e os fortes.
O atual regime, acrescenta Bellarny, «não provendo às necessidades dos incapazes assenta sobre a
violação do evidente direito deles».
Esta escola rejeita, pois, in limine o princípio da desigualdade e acha injusto que uma
superioridade natural determine resultados materiais superiores. Como parece não estabelecer
diferença alguma entre as qualidades físicas e as qualidades morais ou intelectuais, subentende-se
que não só o forte e o fraco devem ser equiparados, mas que também o doido e o sábio, o homem
honesto e o “escroc”, o homem de caráter vil e o homem de caráter nobre, devem ser tratados no
mesmo pé de igualdade. Assim leva a concluir a doutrina comunista, pois que, se em conformidade
com ela se não deve entrar em linha de conta com os defeitos naturais, físicos ou intelectuais, o
mesmo deve concluir para os defeitos morais, visto que todos tem por origem primária a
hereditariedade.
O comunismo aboliu, pois, com deliberado propósito a distinção cardeal entre a moral da família e
a moral do Estado, em que sempre temos insistido, abolição que conduzirá à decadência e à
desaparição da espécie ou da variedade no seio da qual se dê.

§ 25. - O anterior estudo das concepções divergentes da justiça, na qual as ideias de desigualdade
e de igualdade se excluem mutuamente, no todo ou em parte, facilitou-nos o meio de podermos
abordar a sua verdadeira concepção. Mostrei algures que a melhor forma de se chegar a atingir a
verdade é pela coordenação dos erros antagonistas. Assim, a teoria da associação aplicada aos
fenómenos da inteligência harmoniza-se com a teoria transcendental, desde o momento em que
apreendamos que as duas teorias formam afinal uma só e se ao produto das experiências individuais
ajuntarmos os resultados herdados da experiência dos nossos ancestrais. Da mesma maneira,
reconhecendo que uma natureza moral adaptada tem por causa a conformidade harmónica dos
sentimentos com as necessidades tidas de geração em geração, vimos a teoria empírica da moral
reconciliar-se com a sua teoria intuitiva. Agora aqui, presenciamos uma correção mútua,
inteiramente semelhante e que se produz sob a influência dum elemento especial da moral que está
sob nossos olhos.
Com efeito, se cada uma das concepções opostas da justiça é aceita como sendo duma verdade
parcial, mas que deve ser completada pela outra, a sua combinação produzirá a concepção da justiça
que resulta do exame das leis da vida, tal como ela se manifesta no estado de sociedade. A
igualdade deve reger as esferas de ação mutuamente limitadas e indispensáveis para que os homens
que vivem possam agir harmonicamente. A desigualdade aplica-se aos resultados que cada um consegue
livremente obter, respeitando os limites demarcados a sua liberdade. Nenhuma incompatibilidade
ficará existindo entre ambas, se uma (a primeira) se aplicar aos limites e a outra (a segunda) se
aplicar aos resultados obtidos. Bem ao contrário, ambas devem afirmar-se conjuntamente.
Não nos preocuparemos presentemente com outras imposições da moral. As necessidades e as
delimitações da conduta privada que cada um se impõe a si próprio entrarão na grande divisão da
ciência da moral de que trataremos na terceira parte. Atualmente, vamo-nos preocupar apenas com as
exigências e os limites que devem ser mantidos como condição duma harmoniosa cooperação e que a
sociedade pode impor em virtude da sua capacidade corporativa.

§ 26. - É conveniente entendermo-nos sobre a aceitação geral da ideia da justiça assim definida.
Não é ela apropriada senão a estados sociais de adiantada perfectibilidade e, consequentemente, os
nossos estados sociais transitórios só em parte podem aceita-la, visto que as ideias dominantes
devem ser compatíveis com as instituições e as atividades existentes.
Vemos que aos dois tipos essencialmente diferentes da organização social- o tipo militarista e o
tipo industrial- tendo por bases respectivas: o estatuto e o regime contratual, correspondem
sentimentos e crenças próprias que se ajustam a cada um deles em particular. As crenças e os
sentimentos mistos apropriados aos tipos intermediários modificam-se continuamente em razão do
predomínio dum destes tipos sobre o outro. Como em outros sítios mostrei durante os trinta ou
quarenta anos de paz de que o século XIX gozou e durante o período de enfraquecimento da
organização militar que dessa paz proveio, a ideia da justiça fortificou-se: as leis coercitivas
abrandaram permitindo que cada um tratasse mais livremente e à vontade dos seus interesses. O
despertar subsequente do espírito militarista modificou a direção em que se encaminhava a vida
social e, invocando sempre os princípios de liberdade e pugnando o seu desenvolvimento,
diminuíram-na com restrições e exações múltiplas. O espírito de rígida disciplina, própria do tipo
militar, invadiu a administração da vida civil. Consciente ou inconscientemente, prega a
organização dum exército de trabalhadores com uma tarefa imposta e uma com participação
regulamentar do produto do seu trabalho. É a introdução na vida civil do regime dum exército de
soldados que recebam rações fixas e que tenham uma ordem a executar. Toda a lei que se apodere do
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 15/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
dinheiro dum indivíduo com um fim e que o distribui transformado em vantagens coletivas, tende a
assimilar as duas organizações. É a Alemanha que nos oferece o quadro de mais carregadas cores
militaristas. O espírito de caserna é nessa nacionalidade acentuadíssimo e por isso também, o
socialismo tomou nela o desenvolvimento considerável, tão considerável que o chefe do sistema
militar alemão propôs a submissão de todas as classes operárias da Europa a regulamentos
regimentários.
Aqui há vinte anos a simpatia revestia o caráter de justiça. Presentemente retrogradou para a
forma de generosidade e essa generosidade manifesta-se pela prática da injustiça. A legislação
operária importa-se diminutamente com que cada um receba o que lhe pertence, preocupando-se ao
contrário, mais em lhe dar o que pertence a outrem. Não se manifesta o empenho enérgico de
reformar a nossa administração judiciária de modo a assegurar a cada homem a totalidade dos seus
ganhos legítimos, mas procurou com todo o afã prove-lo, a ela e aos outros, de vantagens para a
comutação das quais se não esforçaram. Ao lado do «deixa andar» mesquinho que vê impassível a
ruina de tantos homens que não conseguiram a promulgação de um corpo de leis que evitem as suas
fundadas queixas, desperdiça-se a atividade em lhes proporcionar grátis e á custa alheia, o prazer
da leitura de romances!

CAPÍTULO VI

A fórmula da Justiça

§ 27. - Temos acompanhado a evolução da justiça desde a sua forma simples, objetivamente
considerada como condição da conservação da vida. Vimos que um fator novo a modificou, com a
constituição de agrupamentos animais, modificação que se tornou mais acentuada nos agrupamentos
humanos. Depois de termos verificado os seus correspondentes produtos subjetivos: o sentimento de
justiça e a ideia de justiça, nascidos ao contado dessa condição nova, achamo-nos finalmente
habilitados a dar uma forma definida a conclusão a que somos chegados. falta-nos apenas, para
isso, encontrar a expressão precisa para a cooperação a que fizemos referência no capítulo
anterior.
A fórmula deverá conter um elemento positivo e um negativo. Ha de ser positiva pela afirmação da
liberdade de cada homem, pois que os homens devem colher os resultados, bons ou maus, das suas
ações, Ha de ser negativa pela afirmação de que essa liberdade de cada homem implica que eles não
possam agir a seu discricionário talante, mas com a restrição que lhes impõe a presença doutros
homens que tem direito a igual liberdade. O elemento positivo é, evidentemente, o que exprime a
condição realizável da vida em geral. O elemento negativo vem restringir esta condição realizável
quando, em vez duma vida isolada, há várias vidas em comum. Precisamos, pois, formular com
exatidão a maneira pela qual a liberdade de cada um tem de ser limitada pelas liberdades análogas
de todos os outros. Essa fórmula redigi-la-emos assim:
Tem todo o homem a liberdade de proceder como melhor entenda, com tanto que não infrinja a igual
liberdade de quem quer que seja.

§ 28. - Arredemos um erro possível. A fórmula precedente tem por objetivo presumido excluir certos
atos de agressão que parecem não estar excluídos dela. Podia-se bem argumentar: se A fere a B e se
B não ficando impossibilitado com a agressão de A, o fere por seu turno, o primeiro não usa duma
liberdade superior a do segundo. Dir-se-á ainda, talvez: se A invadiu a propriedade de B, o
preceito permanecerá integro desde que B invada também a propriedade de A. Semelhantes
interpretações afastam-se do sentido essencial da fórmula. Verifica-se isso remontando a sua
origem, por que a lei que procuram fixar é a de que os atos de cada homem constituindo a sua vida
no presente e assegurando-lhe a conservação no futuro, não devem ter outros limites senão os
exigidos pela prática de atos análogos que assegurem a vida dos outros homens. Essa lei não
permite pois que uma ingerência supérflua na vida doutrem seja desculpada com uma ingerência igual
a título de compensação. O interpretar-se assim a fórmula indicada, implicaria, para a vida de
todos e de cada um, deduções superiores aos que a vida em agrupamentos necessariamente impõe.
Interpretá-la assim, seria, em suma, perverter-lhe o sentido.
Não perdendo de vista que a maior soma de felicidade é, senão o nosso fim imediato, pelo menos o
fim longínquo, e claramente discerniremos que a esfera para além da qual é defeso a cada um
procurar a felicidade tem um limite confinante com as esferas de ação semelhantemente limitadas
dos seus vizinhos e que ninguém pode invadir a esfera de ação do seu vizinho que este pode usar de
igual faculdade invadindo a do invasor. A fórmula, portanto, não justifica a agressão acompanhada
de contra agressão; fixa um limite que ninguém deverá transpor nem para um lado, nem para o outro.

§ 29. - Os fenómenos do progresso social propiciam-nos comentários instrutivos acerca deste erro e
da sua retificação. Mostram-nos eles, com efeito, que ao ponto de vista especial da justiça, a
humanidade partiu duma interpretação errada para se aproximar da interpretação verdadeira.
Nos primitivos estados das sociedades, o hábito da agressão seguida de contra agressão, tanto
entre indivíduos como entre as coletividades, transforma-se em costume. As tribos vizinhas
disputam umas com as outras, à mão armada, os limites violados dos seus territórios primeiramente
por umas e em represália depois, pelas outras; a necessidade de vingar mortos duma banda, com
morticínios na outra em desforço das mortes causadas pelos do primeiro lado provocam guerras
novas. Vai, portanto, raiando através destas vinganças e represálias um vago reconhecimento da
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 16/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
igualdade e prepara-se o reconhecimento de limites fixos, tanto para o território como para a
efusão do sangue, de modo a manter, em certos casos a equinumeração entre os mortos dum lado e os
do outro. Foi o temor da represália quem primitivamente manteve um certo respeito pelas pessoas e
pelos bens alheios. A ideia da justiça era a duma compensação de injustiças: «olho por olho, dente
por dente.» Esta ideia persiste em todo o decurso dos primeiros períodos da civilização. Quando a
parte lesada deixou de exercer por suas mãos uma justiça assim compreendida, ficou persistindo
ainda na pretensão de a fazer cumprir pela autoridade constituída. Os gritos com que se invocam os
magistrados que aplicam a justiça são clamores com que reclamam o castigo e a inflição dum
prejuízo igual, pelo menos, ao prejuízo recebido, ou, na impossibilidade de ser assim, uma
compensação equivalente a esse prejuízo. O pedido de equiparação, na medida do possível, das
violações da igualdade não se apoia ainda noutro critério que não seja o da asserção tácita da
igualdade de direitos.
Falta-nos explicar unicamente como é que a concepção definitiva da justiça tende a desembaraçar-se
gradualmente desta grosseira concepção. A experiência dos males originados por uma ideia falsa dá
lugar ao aparecimento da ideia verdadeira. A compreensão dos justos limites da conduta torna-se
naturalmente mais clara, à medida que o respeito dessas restrições se impõe aos homens e que se
torna habitual e mais geral.
As incursões mutuas dos indivíduos nas esferas dos seus vizinhos realizam-se conforme uma espécie
de oscilação violenta, a princípio, e que vai gradualmente diminuindo de amplitude com o avanço
para um estado social relativamente pacifico. Tanto mais as oscilações decrescem, quanto mais nos
aproximamos do equilíbrio; quanto mais nos aproximamos do equilíbrio tanto mais nos acercamos duma
teoria exata do equilíbrio. E assim que a ideia primitiva da justiça segundo a qual uma agressão
se compensa com agressão, se apaga do pensamento a medida que a contra agressão desaparece da
prática, cedendo lugar a ideia de justiça que acabámos de formular e que reconhece delimitações de
conduta que absolutamente excluem qualquer agressão.
Nota - Relativamente a opinião de Kant sobre o princípio último do direito, veja-se o Apêndice A.

CAPÍTULO VII

A autoridade da fórmula da Justiça


§ 30. - Antes de prosseguirmos, detenhamo-nos um pouco a examinar a fórmula precedente sob todos
os seus aspectos, afim de avaliarmos o que poderá vir a dizer-se a favor dela, ou contra.
Os discípulos da atual escola política e moral desdenham toda e qualquer doutrina que ponha
travões às exigências da utilidade imediata, ou aparente. Tem, porém, uma ilimitada fé em tudo o
que dimane de mal amalgamadas assembleias votadas por fações eleitorais nas quais os eleitos são
meros fantoches cujos cordõezinhos ficam em mãos ignorantes e fanáticas. Tem nelas uma fé tamanha,
que acham intolerável - seja de que maneira for - a subordinação da obra dos legisladores assim
escolhidos às deduções tiradas das verdades morais.
É estranhável que no mundo da ciência reinem cumulativamente este entusiasmo pelo empirismo
político e esta incredulidade pelos que tentam encontrar outras expressões do princípio
fundamental da harmonia na vida social. Embora o espírito científico tenha por base o
reconhecimento da universalidade da causalidade e conquanto, implicitamente e conseguinte mente,
admita que a causalidade abrange as ações dos homens constituídos em sociedade, nem por isso estes
princípios basilares deixam de permanecer letra morta. É evidente, todavia, que se os negócios
públicos não estivessem sujeitos à causalidade, tanto valeria uma política como qualquer outra e
que, a não querer admitir-se este absurdo, ter-se-á que concordar em que existe uma causa
determinante da bondade ou dos perigos de tal ou tal política. A despeito disso, nenhum esforço
empregam para investigar as causalidades da política e apodam, pelo contrário, de ridículos os que
as procuram. Insiste-se mais nas diferenças que nos pontos de contado das opiniões políticas.
Naturalmente como os casuístas das crenças religiosas dominantes que só se preocupam com as
divergências que separam os diversos homens de ciência, em vez de atentarem nos pontos essenciais
em que estão de acordo.
Convêm, portanto, antes de mais nada, que destruamos as mais importantes objeções contra a fórmula
que enunciámos.

§ 31 - Caminha toda a evolução do indefinido para O definido; a concepção nítida da justiça só


pois lenta e gradualmente se pôde formar. Já mostrámos que o reconhecimento prático da justiça
implica o correspondente avanço para o seu reconhecimento teórico. Bom é que nos demoremos alguns
instantes neste ponto para observarmos mais de perto a expansão do sentimento consciente pelo qual
as atividades privadas que têm por objeto a conservação do indivíduo devem ser restringidas no
contado com as atividades análogas de todos.
Notemos primeiramente um fado que poderia ser enunciado no final do último capítulo e é que:
quando os homens estão somente sujeitos à disciplina social pacífica, sem intervenção da
disciplina proveniente do tipo militarista e das lutas violentas entre sociedades, não tardam a
ter a plena consciência da necessidade de restringirem as suas atividades no limite em que elas
lesam atividades análogas. Algumas tribos inteiramente pacíficas, ainda que não civilizadas no
sentido usual do termo, mostram possuir uma percepção muito mais nítida da equidade, do que os
povos civilizados em que os hábitos da vida militar restringem ainda mais ou menos os hábitos da
vida industrial. O consciencioso e meigo Lepcha (Campbell. Joumal of the Ethnological Society,
Londres, julho de 1869), que evita a morte, mas que recusa a ajudar a dá-la; o Hos (Dalton.
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 17/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
Descriptive Ethnology of Bengal, Calcutta, 1872. Pag. 206) tão rico de virtudes sociais que se
suicidaria se se visse objeto da desconfiança dum furto; o Veddah (J. C. Tennant. Ceylon, an
Aconnt of the Island, Londres, 1859, II, 444) das florestas que mal concebe que um homem possa
ferir outro ou apoderar-se do que lhe não pertença; todos estes e outros ainda, atestam que a
ausência de uma inteligência suficiente para a elaboração de uma concepção da lei social
fundamental, não impede a existência de um sentimento enraizado que condiz com esta lei e a
compreensão das suas aplicações práticas. Quando a vida da tribo decorre em condições tais que o
respeito mútuo dos direitos dos membros da tribo não seja acompanhado por violações frequentes aos
direitos dos estrangeiros, verifica-se que cada indivíduo vai adquirindo uma compreensão
simultânea sucessivamente mais nítida dos seus próprios direitos e dos direitos alheios. As
necessidades resultantes das mútuas restrições não trazem confusão de ideias referentes à conduta
senão quando a moral da amizade se mistura com a moral da inimizade. O hábito da agressão aos de
fora dá pouco azo ao hábito da não agressão aos de dentro e a que seja aceita e respeitada a lei
que implica a não agressão. Um povo que por eufemismo chama aos seus soldados “defensores da
pátria” e que só se serve deles para invadir os países estrangeiros - um povo que a dentro das
suas fronteiras aprecia o valor da vida humana até ao ponto de proibir as lutas dos jogadores de
boxe e que, para além dessas fronteiras frequentemente suprime centenas de vidas para vingar uma
só - um povo que no seu território repele a ideia de que a inferioridade deve suportar os males
que a inferioridade são inerentes, mas que não tem o menor escrúpulo em empregar a esmo as balas e
as baionetas para subjugar os povos não civilizados invocando o pretexto de que os seres
superiores devem tomar o lugar aos seres inferiores, um tal povo, repito, tem opiniões bem
incoerentes acerca do justo e do injusto. Guiando-se ora por princípios apropriados à sua política
interior ora pelos que lhe facilitam a sua política exterior, é incapaz de abraçar um conjunto
coerente de ideias morais. No decurso do conflito de raças que, assegurando o povoamento da terra
pelas raças mais vigorosas, constituiu o preliminar de uma civilização adiantada, vemos que a
persistência destas atividades incoerentes tornam necessária a existência de sistemas e crenças
incoerentes e fazem repelir todo o sistema coerente. Todavia, logo que as circunstâncias lhe
permitiram, a concepção da justiça evoluiu lentamente até um certo ponto, dando ensejo a que
chegassem a exprimi-la em fórmulas de uma verdade aproximada. Os mandamentos de decálogo hebraico
promulgam proibições que, sem reconhecerem abertamente o elemento positivo da justiça, afirmam
minuciosamente o seu elemento negativo, especificam limites às ações e, prescrevendo esses limites
a todos os hebreus, afirmam tacitamente que a vida, a propriedade e a reputação alheia devem ser
respeitadas. A máxima cristã «não façais a outrem o que não quereis que se vos faça», é uma forma
que não distingue entre a justiça e a generosidade, implica vagamente a igualdade de direitos
entre os homens. Implica-o mesmo de uma maneira excessiva, pois que não reconhece nenhuma razão
que possa justificar a desigualdade da partilha de benefícios respectivamente colhidos pelos
homens. Não reconhecendo diretamente o direito de cada homem aos frutos da sua atividade
privativa, não implica em reconhecimento senão nos outros homens pela prescrição dos limites a
observar. Sem nos determos nas fórmulas intermediarias da concepção da justiça, citaremos, entre
as modernas, a de Kant. É assim a regra de conduta que ele formulou: «Não procedais senão em
conformidade com uma regra tal que possais desejar que ela se transforme em lei universal». É,
afinal, o processo cristão, sob uma forma alotrópica. Ainda que Kant seja classificado como anti-
utilitarista, a sua regra presume indiretamente que o bem-estar de todo outro homem deve ser
considerado como de valor igual ao do sujeito da ação, hipótese que não só abrange as exigências
da justiça, mas que em muito as ultrapassa.
Deixemos, porém, as ideias dos pensadores que tem tratado este assunto sob o seu aspecto moral e
religioso para examinarmos as opiniões dos que o encararam sob o ponto de vista jurídico.

§ 32. - Inútil será dizer que quando os juristas enunciam ou invocam os primeiros princípios da
sua ciência, os consideram como a base da justiça, isto embora não digam; pois que os diferentes
sistemas de exercer a justiça em geral e em especial constituem a matéria das suas obras. Vejamos
as doutrinas sucessivamente aparecidas:
Fazendo alusão aos perigos que pareciam ameaçar o direito romano, escreveu Henry Mayne:
«Todavia, os romanos teriam encontrado lima proteção adequada na sua teoria do direito natural,
porque os jurisconsultos tinham uma perfeita compreensão do direito natural, como sendo um sistema
destinado a absorver gradualmente as leis civis, sem se substituir a elas enquanto estivessem em
vigor. O valor desta concepção e os serviços que prestou, resultavam de que ela constituía um tipo
de Direito perfeito e a esperança de que as leis civis se aproximariam indefinidamente desse tipo
(Ancient Law, pago 76-7, 3.a edição)».
Fiel à orientação da jurisprudência romana, um dos antigos juízes ingleses, o celebre Hobart
sustentou vigorosamente a afirmação seguinte:
«Um ato do Parlamento oposto a equidade natural como o que decidisse que alguém pudesse ser juiz
na sua própria causa, traria em si a origem da sua própria nulidade, por que jura naturae sunt
immuiabilia e constituem leges legum. (Hobart's Repports, Londres, 1641 pago 120).
Eis o que pensava uma autoridade menos antiga que os legistas romanos. Dominado pela crença de que
um poder sobrenatural rege as coisas naturais, Blakstone exprime-se nestes termos:
«A lei natural ditada pelo próprio Deus e tão antiga como a humanidade é evidentemente uma
obrigação superior a todas as outras. Nenhuma lei humana terá validade se a contradisser. As
únicas leis válidas são aquelas cuja força e cuja autoridade mediata ou imediata deriva toda desta
fonte primária. (Blakstone, ed. Chitly vol. 1, pag. 37-8).
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 18/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
A mesma doutrina foi enunciada por um autor que estudou a legislação sob o ponto de vista
filosófico, James Mackinstosh. Definiu ele assim a lei natural:
«É uma regra suprema e invariável de conduta que obriga a todos os homens. Chamasse-lhe e é «lei
natural» porque os seus preceitos gerais são essencialmente apropriados para fazerem a felicidade
dos homens..., porque a razão natural a descobriu e porque é a que mais convém à nossa
constituição natural. É também «lei natural» porque os seus benefícios e a sua sabedoria se fundam
na natureza geral dos seres humanos e não nas situações temporárias e acidentais desses mesmos
seres» (Mackintosh Works, Obras diversas vol. I, pag. 346).
O próprio Austin (John Austin. The province of jurisprudence deterrnined. Londres 1861, pag. 30) o
ídolo dos legistas ingleses contemporâneos que tão apaixonados se mostram pela teoria do poder
legislativo ilimitado elaborada pelo seu espírito propenso ao despotismo, vê-se obrigado a
confessar que a justificação capital do absolutismo governativo que ele defende é de natureza
moral. Em face, pois, de qualquer autoridade, monárquica, oligárquica ou parlamentar, promulgando
leis apresentadas como supremas, todos concordam em que essa autoridade está subordinada a uma
outra autoridade de que a primeira deriva e que é constituída senão da vontade divina, pelo menos
da própria natureza das coisas.
Não implica, portanto, credulidade ingênua e precisa de lógica o manifestar-se algum respeito por
essas opiniões, ás quais ajuntareis as dos juristas alemães sobre o Naturracth. Pode razoavelmente
presumir-se que a essência de tais opiniões é verdadeira, embora a sua forma se preste muitas
vezes a ser criticada.

§ 33. - Parece-me estar ouvindo já esta desdenhosa objeção: «Tudo isso se reduz, afinal, a
convicções a priori que são trazidas como reforço do vicioso método filosófico que pretende
extrair as verdades da profundeza da nossa consciência». É este o argumento que empregarão aqueles
a quem as verdades gerais só se tornam acessíveis depois de uma consciente indução. Por uma
curiosa confirmação da lei do movimento rítmico a fé absoluta que houve nos tempos idos pelos
raciocínios a priori transmudou-se numa incredulidade também absoluta aceitando-se unicamente os
produtos do raciocínio a posteriori. Para quem tenha observado a marcha ordinária do progresso
humano é quase certo que esta violenta reação será seguida de uma segunda reação e dessa lei pode-
se inferir que, não obstante o abuso que se tem feito de cada um deles, os dois métodos
antitéticos do raciocínio prestam um ao outro importante auxílio. Como se formaram e donde
procedem as convicções a priori? Não me refiro, está bem de ver, a convicções particulares de
certas pessoas e que podem ser o resultado de perversões intelectuais. Refiro-me às crenças
gerais, senão universais - às convicções que todos ou quase todos têm por seguras,
independentemente de indução. A origem dessas convicções é, ou natural ou sobrenatural. Se é
sobrenatural - a não ser, como poderá suceder aos crentes do diabo, que se considerem
demoniacamente sugeridas aos homens para os perder - é forçoso considerá-las como implantadas por
Deus nas nossas consciências para nos servirem de guia. Nesse caso têm todo o direito à nossa
confiança. Se por falta de crença nesta origem sobrenatural, procurarmos a origem natural, a nossa
conclusão será que foi a apreciação das relações das coisas que determinou essa maneira de pensar.
Os que concordam com as ideias correntias de que há agentes do bem e do mal não têm motivos
plausíveis para negar o valor das doutrinas a priori, mas o evolucionista que necessita ser
coerente com o seu processo filosófico só pode admitir as doutrinas a priori aceitas pela
generalidade dos homens e que tenha promanado senão da experiência de cada indivíduo em
particular, pelo menos das experiências comuns da raça. Tiremos um exemplo da geometria: afirma-se
nela que duas linhas não fecham um espaço. Como é fácil de compreender, esta verdade não se forma
a posteriori porque nunca houve nem lia modo de prolongar duas linhas retas até ao infinito afim
de observar o que sucederá ao espaço entre elas compreendido. É inevitavelmente necessário, pois,
admitir que a experiência que os homens têm feito com as linhas retas (ou melhor dito com os
objetos aproximadamente retilíneos para abrangermos nessas experiências os tempos primitivos e
ainda porque as linhas retas são uma idealidade dos geômetras) é tal que nos não permite a
concepção de um espaço fechado por duas linhas retas. Essas experiências anteriores obrigam-nos
imperativamente a acreditar que, a não ser que se curvem, as duas linhas não podem fechar o
espaço. No ponto de vista da doutrina do evolucionismo esta intuição fixou-se por motivo da
sequência de relações dos homens com as coisas exteriores, relações que durante um imenso lapso de
tempo direta ou indiretamente determinaram a organização do sistema nervoso e as necessidades
resultantes do pensamento. As convicções a priori determinadas por estas necessidades diferem
simplesmente das convicções a posteriori em serem o produto das experiências de uma inumerável
sucessão de indivíduos em vez de serem o de um indivíduo isolado. Se a doutrina do evolucionismo
aceita as cognições simples, assim formadas acerca do Espaço, do Tempo e dos Números, não é
inferir que também assim e em maior escala se formaram cognições mais complexas que têm por
objetivo as relações humanas? Em mais larga escala disse, não só porque neste caso as experiências
se efetuaram mais variada e mais confusamente e porque os seus efeitos na organização nervosa não
se exerçam tão nitidamente; mas também porque, em vez de serem realizadas por uma série
incomensurável de antepassados, remontam a épocas mais recentes da vida humana. Mal perceptíveis
nas primeiras épocas, essas experiências só se acentuaram e adquiriram coesão, quando uma
cooperação social mais perfeita se realizou na vida social. Tais cognições deverão ser, portanto
comparativamente indefinidas.
Segue-se daqui que as instituições morais precisam ser submetidas a processos críticos muito mais
metódicos que as cognições matemáticas. Se os conhecimentos baseados nas percepções imediatas de
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 19/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
linhas retas, linhas curvas, ângulos, etc., necessitavam ser fiscalizados por processos elaborados
pela razão consciente (nós vemos se uma linha é aproximadamente perpendicular à outra, mas só em
teorema geométrico pode demonstrar a perpendicularidade completa) é evidente que as percepções
internas e relativamente vagas que temos da justiça das relações humanas, não devem ser aceites
senão depois de refletidas comparações, de rigorosas contra investigações, de provas minuciosas e
variadas. Esta conclusão ratifica os numerosos desacordos, a respeito de pormenores, que
acompanham o acordo fundamental sobre o assunto.
Portanto, se as opiniões atrás reproduzidas e, com elas, a lei de igual liberdade que formulámos
tivessem unicamente uma origem a priori (o que não é assim) seria racional, em todo o caso,
considerá-las senão como verdades literalmente rigorosas, pelo menos como esboços da verdade.

§ 34. - Censurando um sistema por tomar para ponto de partida uma intuição a priori sujeitar-nos-
emos que essa censura nos venha ferir de ricochete.
Em filosofia, em política, em ciência, a escola indutiva está obcecada pela reação violenta contra
a escola dedutiva até ao ponto de afirmar que a indução consciente é para tudo suficiente e que
nunca é preciso aceitar a validade dum axioma. O processo de que se servem os adeptos do
exclusivismo do processo indutivo para demonstrar a verdade duma proposição consiste em provar que
ela está compreendida numa verdade mais extensa e já conhecida e se esta for contestada em repetir
e usar do mesmo processo para demonstrar que essa última verdade se filia, por seu turno, numa
verdade mais extensa. Subentende-se que esta maneira de raciocinar pode prolongar-se
indefinidamente sem nunca se chegar a verdade mais extensa, à que não pode filiar-se em nenhuma
outra e que é, por consequência impossível demonstrar. O resultado de tão irrefletida hipótese é o
de conduzir a teorias que por não terem por base as noções a priori ficam afinal sem base alguma.
Tal é o caso. dos sistemas utilitários de moral e de política (Ha pessoas que se recusam a
admitir, não somente a existência de verdades necessárias, mas a existência da própria
necessidade. Parecem não dar conta de que em qualquer raciocínio, cada passo que vai das premissas
de conclusão, não dispõe doutra garantia que não seja a percepção da necessidade da relação de
dependência. Negar a existência da necessidade equivale a negar a validade de toda a argumentação,
inclusive a de que se propõe demonstrar a não existência da necessidade. Ainda noutro dia li
várias considerações sobre o estranhável assunto duma teoria que o articulista dizia ter estado
morta durante muito tempo. A ser verdade, o facto é deveras notável. Mas mais o é ainda que um
sistema que se suicidou ressuscitasse dentro de espíritos cultivados).
O que vem a ser afinal o utilitarismo? Visto que se põe de parte todo e qualquer guia que não seja
o empirismo, para onde é que nos querem encaminhar? Se o caminho a seguir deve sempre ter por
balizas os méritos da espécie, qual o critério para apreciar esses méritos? Respondem-nos que pelo
critério do bem-estar social, ou da felicidade coletiva. Claro que não hão de dizer-nos que o fim
a atingir deveria ser o de aumentar a miséria ou de nos manter num estado estacionário de
indiferença sensacional. De maneira que não podem deixar de responder que é o acréscimo da soma de
felicidades. Afirmando isto, afirmam implicitamente que a maior soma de felicidade que é a maior
soma de felicidades que a ação individual e a ação pública devem no todo e simultaneamente
procurar obter. Mas qual é a origem deste postulado? Constitui ele uma verdade indutiva? Nesse
caso, donde veio essa indução e quais são os homens que a instituíram? É uma verdade de
experiência, fruto de observações rigorosas? Onde estão elas, essas observações? Quando foi que se
juntou esse vasto repositório de observações generalizadas nas quais deve alicerçar-se toda a
ciência da política e da moral? Não só essas experiências, essas observações e esta indução não
existem, mas nem sequer se pode mostrar um único vestígio delas. Ainda mesmo que a doutrina
utilitária fosse universal (que o não é, por que a rejeitam os ascetas de todos os tempos e de
todos os lugares e uma escola de moralistas contemporâneos se recusam igualmente a aceitá-la) não
teria ela outro fiador a dar-nos a não ser o de constituir uma afirmação imediata da consciência.
Não é tudo, porém: a doutrina utilitarista subentende uma outra convicção a priori. Citámos já a
regra de Bentham: «Conte cada um para um e ninguém conte para mais de um» e o comentário de Mill,
de que o princípio da máxima felicidade ficará vazio de sentido «se a felicidade de uma pessoa é
contada como devendo ser igual à felicidade de qualquer outra pessoa». A teoria moral e política
de Bentham assenta pois nesta proposição, como sendo uma verdade fundamental e evidente por si
mesma. Esta hipótese tácita de que à felicidade dum homem qualquer vale a dum outro qualquer
homem, foi apresentada sob uma mais concreta forma por Bellamy, ao escrever: «Será em breve
reconhecido que o mundo, assim como tudo o que ele encerra, é propriedade comum de todos,
destinada a ser explorada e administrada para benefício igual de todos» (Stuart Mill.
Utilitarisnism. Londres, 1864, pago 93, e Bellamy Contemporany Rewiev, julho, 1890).
Isto equivale a afirmar, - quer seja o próprio Bentham que o diga, quer o seu comentador Stuart
Mill, quer o seu discipulo comunista de que o escreveu - que todos os homens têm iguais direitos à
felicidade. Mas esta afirmação não tem, nem pode ter outro fundamento que não seja o de constituir
uma percepção intuitiva, o que o mesmo é que considerá-la como uma cognição a priori.
«Não constitui uma cognição propriamente dita», apressar-se-ão a coonestar os que, desejosos de
repelir a consequência comunista que ela implica, entendem, todavia, que devem rejeitar qualquer
raciocínio a priori. «Esta pretendida cognição é o produto duma imaginação desvairada. A
felicidade não pode repartir-se em partes iguais ou desiguais e a maior soma de felicidades não
pode obter-se pela repartição igual dos meios conducentes a felicidade, ou dos benefícios, como
modernamente se diz. Ter-se-á maiores probabilidades de realizar esse desideratum conferindo uma
larga parte desses meios aos homens que forem mais capazes de felicidade.» Sem nos preocuparmos
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 20/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
sobre se isso é ou não praticável, perguntaremos simplesmente qual é a sanção desta asserção? É
uma sanção indutiva? Fez alguém um certo número de comparações entre sociedades que adaptassem o
primeiro método da partilha de felicidade com os que adoptassem o segundo método? Tal hipótese não
tem, portanto, outro fundamento que não seja aquele que os seus defensores rejeitam. A falta duma
sanção a priori ficará sem sanção alguma.
Vejam em que situação se colocaram os nossos adversários. Rejeitando a hipótese que eles dizem não
possuir outra sanção além da intuição direta, os sectários do empirismo, emaranham-se através dum
maior número de hipóteses eivadas do mesmo vício que o do sistema que combatem. O empirismo
implica uma destas hipóteses na asserção de que a felicidade deve ser o fim a atingir e outra em
cada uma das duas asserções de que os homens têm ou não têm iguais direitos à felicidade. Note-se
ainda que nenhuma destas intuições pode invocar um consentimento tão extenso como o da intuição
que os utilitaristas rejeitam como indigno de aceitação. Henry Maine fez a este respeito a
seguinte observação:
«Nenhuma dúvida há de que tanto a literatura latina propriamente dita como a literatura jurídica
de Roma propuseram a felicidade dos homens para objeto de todas as reformas legislativas, mas é de
salientar quanto são fracos os depoimentos em favor desse princípio se os compararmos com as
homenagens continuamente prestadas às reivindicações triunfantes da lei natural». (Ancient Law,
pag. 79, 3ª edição).
Depois da época romana - quase escusado era dizê-lo - tem persistido a mesma oposição entre o
reconhecimento restrito da felicidade como fim e a ampla atribuição desta qualidade à equidade
natural.

§ 35. - Recordemos que o princípio da equidade natural prescrevendo, como dissemos no capítulo
anterior, que a liberdade de cada homem devia ter por único limite a liberdade de todos os outros
homens, não é exclusivamente uma noção à priori. Conquanto num certo ponto de vista seja o
veredito imediato da consciência humana disciplinada pela longa influência da vida social,
apresentar-se igualmente sob o aspecto de uma opinião que se pode deduzir das condições
necessárias primeiramente da conservação da vida em geral e em segundo lugar da duração da vida
social.
O exame dos fatos tem-nos demonstrado que a lei fundamental que prescreve a cada indivíduo adulto
a sujeição às consequências da sua natureza privativa e das suas ações, assegurou a sobrevivência
dos melhores adaptados e que a sua influência fez evoluir a vida das suas formas inferiores para
as suas formas superiores. Essa lei fundamental implica necessariamente a plena liberdade de ação
que constitui o elemento da nova fórmula da justiça, porque, se faltar a liberdade plena as
relações entre a conduta e as suas consequências não poderão subsistir. Confirmámos com variados
exemplos a conclusão, clara em teoria, de que nos seres que vivem em agrupamento essa liberdade
individual de agir tem que submeter-se a restrições cuja não existência produziria entre os atos
O facto de os animais inferiores que vivem agrupados infligirem penalidades aos infratores dessas
restrições, para eles relativamente incompreensíveis, mostra como o respeito por elas se
estabeleceu inconscientemente como condição de persistência e continuidade de vida social.
Destas duas leis, a primeira aplica-se a todos os seres sejam eles quais forem, a segunda a todos
os seres sociais, e avigorando-se de mais em mais à medida que a evolução ascende, encontrou no
seio das sociedades humanas a sua suprema e mais vasta esfera de manifestação. Acentuámos também
que o desenvolvimento da cooperação pacífica coincide com a submissão crescente a esta lei
compósita, tanto sob o seu aspecto positivo como sob o seu aspecto negativo e salientámos além
disso que o desenvolvimento simultâneo da sua percepção intelectual e da sua apreciação emocional.
Baseamo-nos, pois, noutras razões além das enunciadas nos §§ deste capítulo para concluir que esta
crença a priori tem a sua origem nas experiências da raça. É lícito além disso filiá-la nas
experiências do conjunto dos seres vivos e convencermo-nos de que constitui a correspondência
consciente às exigências de relações que a ordem natural torna necessárias.
Não se pode imaginar sanção mais alta. Acentuando, também, a lei de igual liberdade como princípio
moral último e possuindo uma autoridade superior a todas as outras, ficamos preparados para
retomar o curso deste nosso trabalho.

CAPÍTULO VIII

Os corolários da fórmula da Justiça

As atividades humanas dividem-se em numerosas categorias e produzem relações sociais complexas.


Para que a fórmula geral da justiça possa servir de permanente guia, é, pois, necessário que as
suas deduções sejam adaptáveis a cada categoria especial e distinta. A afirmação de que a
liberdade de cada um tem por limite as liberdades análogas de todos, ficaria letra morta não se
sabendo quais as restrições particulares próprias das diversas séries de circunstâncias.
Quem admite que todo o homem deve gozar duma certa soma de liberdade assim limitada, afirma,
consequentemente, que todo o homem tem o direito de gozar dessa soma de liberdade limitada.
Provado que o homem tem liberdade de ação até a um certo limite, mas não para além dele, essa
prova implica que é justo que o homem possua a liberdade assim limitada. É, pois, racional que se
deem às diversas liberdades particulares demonstradas na dedução o mesmo nome de direitos que têm
na linguagem usual.

filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 21/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
§ 37. - O abusivo emprego de certas palavras lança-as muitas vezes num grande descrédito. As
ideias exatas que elas exprimem, com o andar do tempo, associam-se intimamente a ideias falsas no
contado com as quais as primeiras perdem uma grande parte do seu caráter próprio. Aconteceu isso,
duma forma patente, com a palavra direitos.
Tem-se feito correr muitos rios de sangue-para a defesa dos direitos ao trono de fulano V ou de
beltrano VI. A antiga legislação inglesa relativa à pobreza apoiava habitualmente as
reivindicações dos sem pão invocando o seu direito à subsistência tirada da terra. Todos nós
estamos já familiarizados com a ideia do direito ao trabalho espalhada pelo operariado francês,
tomando-o já se vê, como o direito que o operariado se arroga de obter trabalho. Os comunistas
usam e abusam presentemente da palavra direito, perturbando lhe o sentido que se lhe havia dado. O
emprego dessa palavra divulgou-se e relaxou-se por tal modo que os jornalistas que fazem profissão
de devassar e mexericar a vida privada das personagens em evidência, defendem-se das arguições
feitas ao excesso de reportagem, objetando que o público tem o direito de ser informado. Tudo isto
produziu num grande número de espíritos uma reação que era inevitável e que obstinada e
levantadamente contestam desses pretensos direitos. «Não ha, dizem, outros direitos além dos
conferidos pela lei.» Seguindo na esteira de Bentham, afirmam que o estado é a única fonte de
direitos. Mas se a desmedida elasticidade dada ao sentido das palavras denota falta de senso,
falta de senso é também não discernir o verdadeiro sentido delas quando este está imiscuído com
acepções abusivas.

§ 38. - Resulta do exposto, que os direitos propriamente ditos são corolários da lei de igual
liberdade e que é impossível deduzir dela direitos falsos. Vamos agora estudar esses corolários,
acentuando em primeiro lugar que todos eles sem excepção coincidem com concepções morais
ordinárias e em segundo lugar que todos eles também correspondem a leis positivas. Veremos também
que longe de derivarem da lei escrita são os direitos propriamente ditos que lhe conferem
autoridade.

CAPÍTULO IX

O direito a integridade física

§ 39. - Peço vénia para esta epigrafe aparentemente pedantesca, mas não encontro outra que enuncie
de adequado modo tudo o que vai ficar compreendido neste capítulo. Usamo-la para podermos abranger
todos os prejuízos, desde a violência que lese os outros fisicamente até às simples desavenças de
vizinhança.
Pondo de parte agora outras das suas restrições, a lei de igual liberdade tem como corolário,
evidente por si mesmo, que os atos de todo e qualquer homem não devem ir senão até onde não causem
diretamente a outrem algum prejuízo físico, ligeiro ou grave. Os atos em que se ultrapasse este
limite implicam, salvo o caso de represálias, o exercício duma liberdade mais extensa dum lado do
que de outro e, como vimos, a lei que formulámos quando bem interpretada não autoriza a agressão
nem a contra agressão. Considerado como o enunciado duma condição indispensável para assegurar a
maior soma de felicidade, também essa lei introduz todo o ato em sofrimento ou perturbação física.

§ 40. - Por ser de primacial evidência, quase seria dispensável incluirmos na epigrafe adoptada o
direito à vida e a interdição do homicídio voluntário que esse direito implica. Este crime,
considerado pelas nações civilizadas como o mais negro dos atentados, não é inconscientemente, mas
conscientemente considerado assim por constituir a violação extrema da lei de geral liberdade,
visto que o homicida não se contenta com perturbá-la, mas vai o mais além possível anulando por
completo a liberdade de ação do indivíduo que assassinou. É inútil pois insistir na primeira
dedução da lei natural, atribuindo à vida um carácter sagrado. Será, todavia, de instrução e
vantagem o observarmos os progressos sucessivos pelos quais se efetuou o reconhecimento desse
carácter sagrado.
Registrando como mais excessivo, o exemplo dos Fidjens (Williams and Calvert. Figi and the
Fijians, 1858, I, pag. 112) que consideram ou consideravam o homicídio como uma ação honrosa,
iremos passando em revista vários outros exemplos colhidos em tribos selvagens que arrastam os
seus ascendentes quando atingem a velhice, os seus doentes e os seus inválidos. Assim procediam
diversos povos da Europa primitiva. Grimm conta que os Wendes (Grimm. Deutsche Rechtsalterthumer,
488) «matavam os pais, assim como os outros membros idosos da família e todos os que se tornassem
inaptos para a guerra ou para o trabalho e que os cosiam e comiam, ou os enterravam vivos ... Os
Hérulos matavam igualmente os seus velhos e doentes ... Na Germânia setentrional conservaram-se
traços desses costumes até épocas relativamente pouco afastadas de nós.»
Não se encontra a par desta destruição deliberada dos membros inválidos da tribo, destruição que
tivesse geralmente como desculpa a necessidade de conservação dos membros válidos, a opinião
habitual e pública de que o assassinato constituísse um crime. Diz Grote, (Grote. A History of
Grece, 4ª edição, II, pag. 33) que o homicídio nenhumas outras consequências traziam aos gregos
dos tempos homéricos «além da vingança pessoal dos parentes e dos amigos da vítima», podendo estes
aceitar uma indenização maior ou menor consoante o pagamento que se estipulasse: neste último caso
a missão dos chefes limitava-se a vigiarem o cumprimento rigoroso do trato.
Iguais ideias, iguais sentimentos e iguais práticas continuaram a prevalecer na Europa até época
mais próxima. Não era tanto a perda da vítima, como o prejuízo causado à família ou clã que
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 22/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
constituía o mal: o prejuízo é que era punido ou compensado.
Paga a indemnização, tornou-se quase indiferente matar, em represália, o assassino em pessoa ou
algum membro inocente da família deste. Sem dúvida foi este modo de ver que determinou, pelo menos
em parte, que a graduação da indemnização variasse consoante a qualidade da vítima, indemnização
que depois de ter sido nos tempos primitivos objeto de transações privadas passou mais tarde a ser
fixada e fiscalizada pela lei. A concepção do caráter sagrado da vida humana estava tão pouco
desenvolvida que se não estipulava preço de sangue para o escravo; o senhor dele podia matá-lo a
seu belo prazer e se outra pessoa lhe tirava a vida, só o valor mobiliário era exigido do
assassino. Num insensível progresso, o homicídio torna-se alguma coisa mais do que um atentado de
ordem privada, quando o rei passa a receber uma parte do preço do sangue.
Permanecia-se ainda, sob o quase inteiro domínio das ideias anteriores, pois que a destruição de
um dos vassalos do rei equivalia à destruição de uma parcela do seu poder sobre os súbditos,
eliminando-lhe o efetivo das suas forças guerreiras. A graduação das indenizações segundo a
categoria da vítima que ficou persistindo, mostra a pouca importância que se ligava à
criminalidade intrínseca do homicídio: a distinção estabelecida no chamado benefício de clérigo,
mostra bem que era esse o critério corrente. Na dinastia dos Plantage-netos um homicida que
soubesse ler tinha apenas um castigo leve. A República inglesa realizou um grande progresso
abolindo por completo o benefício de clérigo. Um ato especial do Parlamento aboliu o combate
judiciário e puniu severamente o duelo.
Esta legislação reconhecia enfim a criminalidade intrínseca do homicídio. Podemos agora abordar os
tempos modernos em que não é admissível nem a escusa proveniente da distinção de classes, nem
qualquer outra forma de imunidade.
Três fatos significativos convêm marcar no decurso desta evolução. Nos tempos primitivos a
conservação da vida é, como entre os animais, uma questão de ordem puramente privada e em nada se
relaciona com a ideia de culpabilidade o ato de matar. Á medida que a agregação e a organização
social se desenvolvem, vão sendo, de mais em mais, consideradas como um prejuízo que afeta
primeiramente só a família ou o clã e épocas depois, a sociedade. Pune-se o homicídio mais como
atentado à sociedade do que como atentado ao indivíduo. Pouco a pouco, sem apagar a concepção da
sua criminalidade como violação da lei de preservação da ordem social, a concepção da sua
criminalidade como incomensurável prejuízo causado à vítima, afirma-se e torna-se dominante. Este
sentimento da culpabilidade intrínseca implica um sentimento consciente do direito intrínseco à
vida, no indivíduo: o direito à vida toma desde então o lugar primacial no pensamento humano.

§ 41. - A relação entre o grau de prejuízo físico a que o homicídio dá causa e o grau maior ou
menor de prejuízo físico causado pela incapacidade variável de poder realizar as condições da
vida, tem sido bastante nítido para que não pudesse passar-nos desapercebido. A asserção tácita do
direito à integridade física que o castigo do homicídio implica tem sido acompanhada pela
afirmação tácita ulterior que as penalidades por mutilações, ferimentos, etc., implicam.
Estabeleceu-se naturalmente um certo paralelismo entre a evolução dos dois casos a partir da
máxima: «vida por vida, olho por olho, dente por dente» que foi o ponto de partida desse
paralelismo.
Quando à saída do primitivo período, em que as represálias são um assunto puramente particular, se
chega ao período imediato em que elas passam a constituir um assunto de família, ou de clã, vemos
que o clã vinga a morte de um dos seus membros com outra morte de um membro do clã agressor,
compensando assim a perda de uma vida com a eliminação de outra vida e se a lesão não foi mortal
exigir uma equivalente por substituição, em vez de um equivalente efetivo. Realiza-se assim a
adopção do sistema das reparações pecuniárias; a família ou a casa do ofensor passa a ser obrigada
a pagar não somente o preço de uma vida, mas o de uma mutilação à família ou à casa da parte
lesada.
Um fado ulterior implica a mesma concepção. Nas tribos germânicas (Stephen. A History of the
Criminal Law of England. 1883. H, pag. 204. 209) e entre os ingleses primitivos (Henry Maine.
Ancient Law, 1866, pag. 370) a indemnização por homicídio, graduada segundo a categoria da vítima,
completava-se por uma série de indenizações, calculadas de igual maneira, e aplicável a prejuízos
de menor importância. Segue-se daqui que a preocupação dominante em ambos os casos era o prejuízo
sofrido pela família ou pelo clã e não o prejuízo do próprio indivíduo lesado ou morto. Igual
concepção se encontra nos antigos russos (Vietmannsdorf. Handbuch des Deutschen Strafrechts.
Berlim, 1871, I, pag. 225-6).
Á medida que a vida social dos clãs, ou pequenos agrupamentos sociais, se funde na vida social de
agrupamentos mais extensos, ou nações, a ideia do prejuízo causado à nação suplanta a do prejuízo
causado ao clã. O Estado principiou por cobrar primeiro uma parte e depois a totalidade da
indemnização paga pelo agressor. Conquanto nos casos de violência pessoal a simpatia da
consciência pública se preocupe principalmente com a vítima e com a exprobração do culpado que
infligiu o sofrimento e causou o prejuízo, o Estado abandona essa vítima à sua desgraça e arrecada
a indemnização pecuniária.
As indemnizações da legislação contemporânea para reparação de prejuízos causados por negligência
revelam uma concepção mais elevada da justiça. Há já muitos séculos que o direito a uma
indemnização do cidadão lesado fisicamente e voluntariamente por um dos seus concidadãos alargou-
se até aos prejuízos físicos por imprudência ou incúria.
Nestes últimos anos a aplicação deste princípio tem-se estendido sucessivamente: as companhias dos
caminhos de ferro foram tornadas responsáveis pelos prejuízos causados em razão da falta de
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 23/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
vigilância e cuidado dos seus empregados e os patrões respondem pelos acidentes nos seus
operários, ocasionados por aparelhos defeituosos, faltas de precaução, ou perigo inerente ao seu
trabalho. Este progresso legal implica uma apreciação mais elevada do direito do indivíduo à sua
integridade física. A companhia ou o patrão responsável pelo prejuízo causado é obrigado a dar a
indenização não ao Estado, mas à parte lesada, o que prova que o direito do indivíduo à sua
integridade física prevalece na consciência coletiva aos detrimentos sociais que resultariam do
desconhecimento deste último direito.
Não omitamos uma outra prova da crescente estima em que vai sendo tido esse direito a que chamámos
sagrado. As leis modernas consideram como vias de fado, não só os atos de violência propriamente
ditos, mas toda e qualquer coerção física e até as ameaças que não chegam a traduzir-se em fados:
um beijo dado sem consentimento tornou-se um delito punível.

§ 42. - Um outro progresso que acerca do assunto se efetuou nos nossos dias é o de se considerar a
comunicação duma doença como um atentado contra a integridade física. Todavia esse delito, embora
grave e em parte considerado como tal pela lei, não ocupa ainda nos nossos códigos o lugar que lhe
deve ser marcado em motivo das consequências nocivas que produz. Umas vezes é um pai que foi
buscar um filho atingido por um mal contagioso, e que viaja com ele em caminho de ferro sem se
preocupar com o perigo da infeção provável a que ele expõe os passageiros do mesmo vagão. Outras
vezes é uma mãe que pretende contrariar as prescrições do médico, enviando os filhos à escola
quando eles não estão inteiramente restabelecidos da doença. fados desta natureza são na verdade
puníveis, mas passam-se geralmente duma forma tão pouco comprovável e compreende-se tão pouco o
mal que possam causar, que a opinião não os considera por ora como delitos. Devem considerar-se
pois senão como delitos atuais, pelo menos como delitos potenciais.
Com efeito, a lei e a consciência publica reconheceram enfim que se é culpado, não só mente
fazendo sofrer fisicamente o próximo como também o expondo a males físicos potenciais. Assim se
chegou ao estado que assimila a pessoa de cada homem a um território, considerando-se como delito
todo o ato que possa ocasionar a violação.

§ 43. - É incontestável que este primeiro corolário da fórmula da justiça se foi afirmando
gradualmente com o decurso da evolução social e da paralela evolução da natureza mental do homem.
Um prolongado comércio com as condições necessárias para a realização harmónica da vida social,
moldou lentamente os sentimentos, as ideias e as leis em conformidade com a verdade moral primária
que dimana dessas condições. (Um advogado que há muito tempo se dedica ao estudo da evolução do
direito, quis ter a paciência de anotar neste livro tudo o que se relaciona com as leis positivas
do passado e do presente. Eis a nota que juntou ao parágrafo acima: No processo que se seguiu ao
rapto de Clitera foi decidido que um esposo não tenha o direito de reter a sua mulher pela força.
Esta interessante decisão vem em apoio da doutrina deste parágrafo. Nesse processo o direito das
mulheres casadas à sua liberdade física foi pela primeira vez reconhecido num aresto dum tribunal
superior e isso contrariamente à opinião de dois magistrados distintos que, em primeira instância,
interpretaram a lei antiga em sentido oposto. As penalidades aplicadas pelos juízes aos
professores primários que castigam os seus alunos com palmadas e outros castigos corporais,
constituem uma outra manifestação de desenvolvimento que refaz as leis na convicção de que se
interpretam apenas).
Convém acentuar que o assassinato, o homicídio voluntário, as mutilações, as vias de fado e todos
os atentados contra a integridade física desde os mais graves até aos mais leves se tornaram
crimes e delitos não por que as leis ou os mandamentos que se tem atribuído origens sobrenaturais
interdigam, mas porque foram sendo consideradas como violações de certas restrições de origem
natural. falta-nos dizer que enquanto a moral absoluta deixa intacta a autoridade do corolário que
há pouco tirámos, este, num sistema de moral relativa permanece submetido às restrições impostas
pelas necessidades da auto conservação social. Como já tivemos ocasião de ver, a lei primária que
exija que cada indivíduo se sujeite às vantagens e aos inconvenientes derivados da sua natureza e
da sua conduta a dentro dos limites impostos pela sociedade, deve, em presença de grandes perigos,
ser modificada pela lei secundária que exige dum indivíduo o sacrifício necessário para assegurar
ao agrupamento social a possibilidade de agir e de colher os resultados dos seus atos. A guerra
defensiva justifica, pois, o sacrifício eventual da integridade física imposto pela defesa efetiva
da sociedade, caso, bem entendido essa defesa efetiva seja realizável, pois que esta lei
secundária parece implicar que o sacrifício dos indivíduos não se justifica se os invasores
dispuserem duma superioridade esmagadora.
Como nos capítulos precedentes também neste se vê que só um estado de paz permanente pode
assegurar a conformidade completa com as exigências da moral absoluta. Enquanto à superfície da
terra existirem povos que exerçam o bandoleirismo político e militar, só as exigências da moral
relativa poderão alcançar satisfação.

CAPÍTULO X

O direito à liberdade de movimentos e de deslocação

§ 44. - Seria quase dispensável a inclusão, nas deduções diretas da fórmula da justiça, do direito
que todo o homem tem a usar, sem peias, dos seus membros e a deslocar-se livremente. O pensamento
apreende num instantâneo relance (e mais facilmente de que todos os outros, portanto) que estes
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 24/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
dois direitos são corolários da fórmula mencionada. Salta aos olhos que quem amarra e amordaça
outro homem, quem o prende a um poste, quem o encerra num calabouço estreito, arroga-se uma
liberdade de ação superior à do seu cativo. Claro é também que, no caso de impedir com ameaças que
ele se desloque à vontade, infringe de idêntica maneira a lei de igual liberdade.
Se em vez de um homem isolado, um grupo de homens, destroem ou diminuem a liberdade de ação dum
outro homem, por qualquer dos modos enunciados, se as leis formuladas pelas classes superiores
despojam as classes inferiores duma parte do seu poder de moção e de locomoção, é manifesto que
cada um desses indivíduos violou o princípio último da equidade. O seu grau de culpabilidade é que
fica reduzido.

§ 45. - Tivemos já ocasião de verificar que o instinto que impele à fuga e à ruptura do cativeiro
denota, tanto nos seres infra-humanos, como nos seres humanos, a presença de uma impulsão que, com
o progresso social, acaba de concretizar-se sob a forma de reivindicações conscientes da liberdade
da moção e da locomoção. O elemento positivo do sentimento profundamente enraizado que corresponde
a esse direito cedo se manifesta, mas o elemento negativo que determina os limites impostos, só
pode adquirir um grande desenvolvimento depois de a disciplina social se ter constituído e
firmado.
Os seguintes exemplos mostram que a falta ou a excessiva fraqueza da fiscalização governamental
determina, a reivindicação tácita, mas resoluta, da inteira liberdade de moção, tanto nas raças de
génio afável como nas de natureza selvagem. Os Abores (Dalton. Joumal of the Asiatic Society,
Bengala, XIV, 426) são tão ciosos da sua independência que não podem viver em comum. Os Nagas
(Stewart. foumal of lhe Asiatic Society, Bengala, XXIV, 608) têm tal repugnância pela subordinação
que acolhem com sorrisos de desprezo a ideia da escolha de um chefe. Os Lepechas (Campbell.
Journal of the Ethnological Society, Londres, julho, 1869) atrás citados, embora afáveis como são,
preferem refugiar-se nos bosques e sustentar-se de raízes, a submeterem-se à autoridade de quem
quer que seja. Os Yakuns (E. Favre. Journal of the Indian Archipelago, vol. II. Singapura) são
ótimos criados, mas abandonam subitamente a casa e o amo se os submeterem a uma disciplina
excessiva.
Estes indivíduos que possuem um comum e intenso sentimento de liberdade pessoal, diferençam-se,
porém: os do tipo guerreiro veem nele o sentido egoísta, ao passo que os do tipo pacífico têm-no
também no sentido altruísta e conjugam-no com o respeito pela liberdade individual dos outros
homens. Foi pela guerra que se efetuou a passagem do estado de agrupamentos primitivos, com pouca
ou muita organização, ao estado de agrupamentos organizados e poderosos. Este processo implica
diminuto respeito pela vida e pela liberdade e dele resulta que, durante o período da formação das
nações, o reconhecimento do direito à liberdade e do direito à vida encontra-se numa situação de
subalternidade: como sentimento é constantemente violado e repelido; como ideia existe indecisa e
vagamente, apenas. Só com a realização de grandes progressos foi quando a organização social se
tornou largamente industrial e quando por ter a guerra deixado de ser um estado constante o tipo
militar enfraqueceu, o sentimento e a ideia de liberdade acusam e adquirem um caráter acentuado.
Examinemos rapidamente alguns dos períodos de evolução necessários para o gradual estabelecimento
do reconhecimento ético e legal do direito à liberdade de moção e de locomoção.

§ 46. - A escravatura, não há nega-lo, foi, no ponto de vista prático uma delimitação restritiva
do canibalismo. Assim encarada, representa um progresso. Permitindo ao cativo que viva e trabalhe,
em vez de o matar e comer, deixou de negar-se por completo ao cativo o princípio fundamental da
equidade, visto que a continuação da sua existência, não obstante as condições opressivas da
escravatura, tornava possível até um certo ponto a manutenção da lei de relação entre a conduta e
as suas consequências. Por vezes os prisioneiros escravos e as suas crianças alimentadas e
tratadas como animais de estábulo, estão - exemplo, entre os Figis (Erskine. Joumal of a Cruize) -
sujeitos a todo o instante a serem convertidos em alimento: neste caso o canibalismo pouca
atenuação tem. Mas vários povos não civilizados tratam o escravo, sob muitos pontos de vista, como
uma pessoa de família. Citaremos unicamente os fatos que melhor permitem avaliar o modo de
crescimento da concepção moral e jurídica da liberdade individual. No povo judaico, (Êxodo XXI;
Deuteronômio, XV; Levítico, XXV, 45, 46.) ao passo que os escravos de raça estrangeira podiam ser
comprados e os filhos deles transmitidos como herança, os homens da raça hebraica que se vendessem
quer a outros hebreus quer a estrangeiros residentes, ficavam submetidos apenas a uma servidão
temperada como rigor e limitada como duração: servos de Deus, não eram alienáveis a título
definitivo. Não existia porem reconhecimento algum da injustiça inerente à escravidão, nem do
direito correlativo à liberdade. Desta falta dos sentimentos e das ideias que tão grande império
adquiriram nos tempos modernos persistiu com o aparecimento do cristianismo, que, aliás, em nada o
modificou. Nem Cristo, nem os seus apóstolos, censuravam a escravatura e quando estes, falando da
liberdade, disseram: “Usai antes dela do que da escravização” (Primeira carta aos coríntios, VII,
21) este aviso não implica o pensamento manifesto de qualquer direito inerente ao indivíduo e de
molde a justificar a liberdade sem peias de moção e de locomoção. O mesmo se passou com os gregos
e com a maior parte dos povos durante os seus primitivos estados. Nos tempos homéricos (Grote,
History of Grece, 4ª edição II, pag. 37, 468-9) os cativos aprisionados na guerra ficavam
reduzidos à escravidão e podiam ser vendidos, ou resgatados a dinheiro. Durante todo o período da
civilização grega, que coincidiu com um estado de guerra crónica, a escravidão foi considerada
como fazendo parte normal da ordem social. Considerava-se uma infelicidade o cair na escravidão,
por captura numa batalha, por dívidas, ou por outra qualquer causa, mas em nenhuma censura se
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 25/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
incorria pelo facto de ser proprietário de escravos. A concepção da liberdade como direito
inalienável nenhum ou estreitíssimo lugar ocupava na moral ou na lei. De resto, era coerente que
se recusasse a liberdade aos escravos propriamente ditos, visto que os próprios homens que se
diziam livres não passavam, em realidade, de escravos do Estado: cada cidadão pertencia mais à
cidade do que a si próprio. Em Esparta, (Grote. History of Grece, 4ª edição, pag. 309) que foi o
estado grego mais guerreiro, a condição do ilota não somente era mais degradante que no resto da
Grécia, mas os próprios senhores deles tinham maiores restrições, que em geral por outra parte, de
entrarem e saírem à sua vontade da cidade.
Confirmado está, pois, que, em geral, nos estados cujas dimensões e estrutura se desenvolveram
consideravelmente, o seu crescimento implicando natural e invariavelmente a conquista e a agressão
exterior, manteve em compressão a individualidade, não permitindo que ela deixasse de si senão
diminutos vestígios nas leis e nos costumes.

§ 47. - Para explicar o aumento nos costumes e nas leis da concepção da liberdade humana, que hoje
está implantada no consenso das raças mais civilizadas, bastará passar em rápida revista alguns
dos principais progressos realizados no decurso da própria civilização inglesa.
As hordas sucessivas de invasores guerreiros que ora subjugando, ora rechaçando os possuidores
antecedentes, povoaram a Inglaterra nos tempos afastados (Green, Short History of the English.
People, 1880, pp. 56, 90, 91 e 247) deviam necessariamente ter escravos, classe que tinha a
captura por origem, e cujo número aumentava periodicamente pela adjunção dos devedores remissos e
dos criminosos. Com a expansão da população, e com o paralelo desenvolvimento da organização
política, os habitantes que haviam formado uma classe de homens livres, consoante o sistema
original da Mark perderam gradualmente uma parte da sua liberdade, umas vezes por efeito de
conflitos entre grupos, conflitos em que alguns dos membros adquiriram preponderância; e outras
vezes, a maior parte, em resultado de conflitos exteriores que originaram a conquista do
território e a subjugação dos habitantes pelos chefes da conquista que se transformaram em seus
senhores. Os camponeses foram subjugados pelos thanos e os thanos pelos nobres. No tempo de
Alfredo estatuiu-se que ninguém passasse de senhor, o que implicava a privação da liberdade não
somente para os membros da classe mais ínfima (os escravos que se vendiam e compravam), mas até
para os membros das classes superiores. Durante as modificações provenientes da conquista normanda
esta delimitação da liberdade continua, como se subentende do juramento de fé e de homenagem;
agravou-se mesmo mais, salvo no que respeita a abolição parcial da compra e venda dos escravos.
Uma das transições do estado de servidão para o estado de liberdade imperfeita resultou do
progresso das cidades no século XI pelo desenvolvimento concomitante das instituições industriais
e pela substituição que este desenvolvimento implicava das relações reguladas pelo estatuto por
outras relações que tinham por bases os contratos. Um século depois a Magna Carta pôs um travão ao
arbítrio governativo e às restrições de liberdade que dele resultavam para os cidadãos. A
influência crescente das classes mercantis traduzia-se na liberdade de circulação concedida aos
negociantes estrangeiros. E, quando um século mais tarde o laço que prendia o servo à terra se
afrouxou primeiro e se rompeu definitivamente depois, o trabalhador integrado na posse plena da
sua liberdade adquiriu o direito de locomoção sem peias.
Mas, em verdade, tornou a perder uma parte deste direito quando em razão do despovoamento e da
grande elevação dos salários causados pela peste grande se promulgou o estatuto que tarifava o
preço do trabalho e fixava coercitivamente o trabalhador ao âmbito da sua paróquia. Todavia com a
resistência violenta por eles efetuada, estas restrições determinaram uma intensa afirmação de
igualdade que se estendeu a outros direitos além do da liberdade de locomoção. No decurso desse
movimento insurrecional, excepção aberta para o rei que aconselhava a que se atendessem as suas
reclamações, viu-se quanto era diminuto nas classes dirigentes o direito dos camponeses a
liberdade. Afirmando que os seus servos eram os seus bens, os proprietários de terras declararam
que antes queriam morrer todos nesse mesmo dia do que consentirem na emancipação reclamada. Assim
como o aumento da atividade e da organização industrial produzira um acréscimo de liberdade, assim
também os vinte anos conhecidos sob o nome da guerra das duas rosas, fizeram perder uma grande
parte das liberdades já obtidas. Contudo o camponês não ficou anexado à terra e foi-lhe concedida
a faculdade de se deslocar. As perturbações sociais ocasionadas pela queda do feudalismo e a
participação que nela tiveram as classes obreiras, conduziram a uma desagregação industrial que se
procurou remediar por um novo regime de coerção parcial e por uma nova sujeição parcial do obreiro
ao lugar do domicílio, mas sem de nenhuma outra forma restringir a liberdade de deslocação. A
liberdade assim obtida faltavam todavia salvaguardas e nos fins do século XVII o ato do habeas
corpus, veio reforçar as precauções contra a detenção arbitrária que já haviam sido tomadas pela
Magna Carta mas que tinham sido violadas frequentes vezes. Em 1824 foram abolidas as últimas
restrições secundárias da liberdade de deslocação constituídas pelas leis que interdiziam aos
operários o viajarem à procura de trabalho. (H. Martineau. History of England during the Thirty
Years Peace, 849-50, I, p. 343) Desde então salvas perturbações pouco profundas devidas a pânicos
temporários a liberdade pessoal permanece intacta na Inglaterra.
Não esqueçamos que paralelamente ao estabelecimento legal da liberdade pessoal e tão lentamente
como ele engrandeceu o sentimento correspondente, e que a afirmação altruísta da liberdade se foi
pouco a pouco juntando à sua afirmação egoísta.
As mudanças que no decurso dos séculos modificaram a organização social transformando a escravidão
completa dos humildes e a escravidão atenuada das classes superiores num estado de liberdade
absoluta para todos produziram conjuntamente durante a época do seu desenvolvimento o sentimento e
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 26/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
a lei que afirmam esta liberdade não só em favar dos cidadãos ingleses, mas em benefício também
dos estrangeiros submetidos à lei inglesa.
Começou-se por emancipar os escravos vindos para Inglaterra e acabou-se por emancipar os que
habitavam as colónias inglesas, findando-se pelo empreendimento sem canseiras da abolição
universal da escravatura.

§ 48. - A não se considerar a civilização como um movimento retrógrado, torna-se preciso admitir
que a indução confirma a dedução tirada do princípio fundamental da equidade. Ha pessoas que
pensam que as sociedades antigas eram de um tipo superior ao nosso e que asseguravam melhor o bem-
estar humano. Para elas, a organização feudal com a sua vassalagem hierárquica sobreposta à
vilanagem produzia uma soma total de felicidade superior àquela que nós gozamos. Seguem a opinião
de Carlyle e evocam saudosamente os idos tempos do abade Sampson, desejando que voltassem de novo,
e aplaudindo a obediência dos russos ao Kzar.
Os que assim pensam podem sem se desmentirem contestar que o aumento do sentimento da liberdade e
implantação legal da liberdade pessoal confirmem a dedução abstrata que fizemos neste capítulo,
mas para quem prefira o nosso tempo àquele em que os nobres viviam entre os cintos de muralhas dos
seus castelos e usavam cotas de malha; para quem prefira a um estado social que teve por apanágio
os cárceres subterrâneos e os instrumentos de tortura àquele em que administração da justiça não
distingue entre um príncipe de um indigente; para quem prefira um regime "que ocasionou as
revoltas agrárias ao dos tempos atuais em que há inumeráveis associações cujo objetivo é o bem-
estar popular - é forçoso admitir que a lei geral extraída do conjunto das experiências humanas
concorda com o corolário que acabamos de tirar da fórmula da justiça.
Contudo, as afirmações da moral absoluta são modificadas pelas exigências da moral relativa. Desde
o começo deste trabalho temos vindo reconhecendo o princípio de que a preservação da espécie, ou
da variedade da espécie que se constituiu em sociedade, é um fim que deve prevalecer ao da
conservação do indivíduo. Resulta daqui que o direito à liberdade individual, assim como o direito
à vida individual tem de atender às modificações que originem medidas necessárias para a segurança
nacional. Toda a infração à liberdade exige que a preservação da liberdade se muna de uma sanção
quase ética. Submetida unicamente à condição de que todos os membros capazes, pertencentes a
comunidade, lhe ficarão igualmente sujeitos, a restrição dos direitos da liberdade de moção e de
locomoção torna-se legítima quando determinada pelas exigências da guerra defensiva. Mas já assim
não é se a guerra for ofensiva.

CAPÍTULO XI

Direitos ao uso dos agentes naturais

§ 49. - Um homem pode não ser lesado fisicamente por outros homens e ter a inteira liberdade de se
deslocar à vontade sem que, todavia, possua a livre atividade precisa para realizar os atos
necessários à conservação da vida, por motivo de obstáculos criados por eles às suas relações com
o «meio» físico ambiente. Destas relações depende, com efeito, a sua existência. Tem-se sustentado
que alguns dos agentes naturais não são suscetíveis de ser submetidos ao estado de posse comum.
«Certas coisas, são por natureza, incapazes de apropriação. De maneira que é impossível submetê-
las ao poder de um indivíduo. O direito romano chamava-lhes res communes e definia-as: coisas cuja
propriedade não é de ninguém, mas cujo uso pertence a todos. Assim a luz, o ar, a água corrente
etc., são de tal modo adotados ao uso comum da humanidade que ninguém pode adquirir a propriedade
delas, nem privar outrem do seu uso.» (An Instituie of the Law of Scotland, por John Erskine, ed.
Macallan I, 196).
Mas conquanto se não possa monopolizar nem o ar, nem a luz, é possível a um homem interceptar a
sua distribuição até ao ponto de privar de parte delas um outro homem, causando-lhe assim um sério
prejuízo. Nenhum ato desta natureza se pode exercer sem gravame da lei de igual liberdade. A
intercepção habitual da luz por uma pessoa de modo a privar habitualmente uma outra pessoa duma
parte igual de luz, implica o desconhecimento ou a violação do princípio de que a liberdade de
cada um é limitada pelas liberdades idênticas dos outros: o mesmo é de dizer a respeito do livre
acesso do ar.
Nesta categoria geral a que damos aqui uma amplitude muito maior que a costumada, incluiremos
também uma coisa que é suscetível de apropriação: a superfície da Terra. Considerada como fazendo
parte do habitat físico, esta deve ser necessariamente compreendida entre os «meios» de que todos
podem, em virtude da lei de igual liberdade, exigir o uso. É impossível privar alguém inteiramente
do uso da superfície da Terra, sem sustar as atividades necessárias à vida. Sem terreno em que se
firme, é impossível ao homem fazer o que quer que seja. Mesmo para voar indefinidamente,
precisaria dum ponto de apoio no solo para se alçar aos ares. Parecerá, pois, que a lei de igual
liberdade interpretada estritamente, deve ter por corolário que a superfície da Terra não pode, no
sentido absoluto do termo, ser apropriada pelos indivíduos e que só deve ser ocupada por eles com
o reconhecimento de que é também pertença dos demais homens: noutras palavras só a sociedade, em
conjunto, se pode apropriar da Terra.
Embora não tencionemos demorar-nos longamente no estudo do reconhecimento ético e legal do direito
ao uso dos agentes naturais e com quanto só o último exija mais refletida analise, vamos, todavia,
examiná-los sucessivamente.

filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 27/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
§ 50. - Nos primitivos estados, quando a vida urbana não tinha surgido ainda, tornava-se difícil
opor uma prejudicial obstrução à luz de outrem. Nos acampamentos selvagens e nas aldeias das
tribos agrícolas, o modo de construção e a posição relativa dos habitantes opunha-se à prática de
semelhantes agressões: todos podiam realizar os seus fins privativos sem obscurecerem a habitação
do vizinho.
Posteriormente, quando as cidades se foram formando, não é provável que os seus habitantes se
preocupassem grandemente com os direitos dos respectivos vizinhos a respeito do ar e de luz.
Nestes estados da evolução social, em que tão pouco direito havia pela liberdade e pela vida
alheias, não é de presumir que entrasse em linha de consideração, quer como transgressão moral,
quer como delito legal, o prejuízo relativamente mínimo resultante da construção duma casa que
afrontasse e obscurecesse a do vizinho. A existência de ruas estreitas e sombrias das velhas
cidades do continente, bem como as edificações e as guelhas e becos que caracterizam os antigos
bairros das cidades inglesas, indica bem que na época em que foram construídas, ninguém supunha
que houvesse mal em privar alguém da sua parte de ar e de sol. É até razoavelmente admissível a
impraticabilidade de se poder punir esses atos, pois que, nas cidades fortificadas, as habitações
à medida que a povoação se desenvolvia se iam apertando e encavalando cada vez mais a dentro do
cinto das muralhas.
Nos modernos tempos, os espíritos tornaram-se acessíveis à compreensão de que ninguém deve impedir
a distribuição natural da luz. As leis que proíbem a elevação de muros e de casas ou de outras
quaisquer construções a distâncias de casas fronteiras ou do lado que não sejam as prescritas, não
evita absolutamente a interdição da luz, mas opõe-se que essa interdição se realize num grau
prejudicial, procurando conciliar, quanto possível, os direitos das propriedades adjacentes.
Equivale isto a dizer que a lei não sanciona abertamente ainda o corolário da lei de igual
liberdade ao qual nos vimos referindo, mas que o reconhece tacitamente.

§ 51. - Todo o impedimento posto à propagação da luz importa um certo grau de impedimento posto à
circulação do ar. A interdição do primeiro impedimento implica até um certo ponto a interdição do
segundo.
A lei inglesa, porém, que reconhece o direito ao uso do ar no que respeita a moinhos de vento, não
a reconhece, todavia, no mais, duma tão positiva maneira decerto por causa dos inconvenientes
pouco notáveis causados por esta obstrução. Não obstante, reconhece nitidamente o direito à não
recepção do ar viciado. Ainda que os atos que diminuem a provisão do ar de outrem, não estejam
ainda patentemente classificados como delitos, o critério moderno inclui já os atos que viciam a
qualidade de ar na categoria das agressões. Tais atos tem umas vezes a reprovação moral apenas;
outras vezes, porém são puníveis por disposições legais. Claro é que, até um certo limite, não há
maneira de impedir que um homem vicie o ar que outros homens respiram. Basta seguir na rua um
fumador para verificar até que distância se espalham as exalações dos nossos órgãos respiratórios
e até que ponto, principalmente no interior das casas, as pessoas próximas são forçadas a respirar
o ar já respirado. Mutua porém como é, esta viciação não constitui uma agressão. Esta só se produz
quando a viciação causada por um ou por vários indivíduos atinge pessoas que para ela não
contribuem igualmente. É o que sucede nos caminhos de ferro quando pessoas que se prezam de bem-
educadas fumam em compartimentos que não são destinados a fumadores. Pode ter obtido dos seus
companheiros de viagem um consentimento mais ou menos forçado; mas, em todo o caso, não tem a
consideração que devia merecer-lhes por indivíduos que viajam com eles em vagões empestados pelo
cheiro do tabaco. Uma consciência delicada considera essa sem cerimónia como contrária a boa
civilidade. Com este fundamento, os regulamentos dos caminhos de ferro estabelecem multas para os
indivíduos que incomodarem com o fumo os demais passageiros.
Passando de exemplos deste gênero a casos mais graves, notaremos a interdição legal de outras
viciações da pureza do ar, como a dos odores mefíticos de certas indústrias, a dos vapores
perniciosos de vários produtos químicos e da fumarada que sai das chaminés das fábricas. Proibindo
estes atos, a legislação implica o direito de cada cidadão a respirar um ar contaminado. É
agrupavel na mesma categoria um outro gênero de abuso, ao qual o meio ambiente serve de
intermediário: a produção de ruídos incômodos, tão leves como intensos. Conquanto não haja lei
proibitiva que impeça que um indivíduo fale e gesticule acaloradamente à mesa dum hotel
interrompendo, abafando e prejudicando a conversação dos outros comensais, condena-se este ato
como contrário às boas maneiras, ou, o que o mesmo é dizer, aos bons costumes, porque as primeiras
fazem parte dos segundos. Quem num teatro, ou num concerto conversa alto, ou doutro qualquer modo,
incomoda os outros espectadores e incorrem também em censura. Quando incómodos desse gênero se
tornam públicos ou contínuos, como a música das ruas, sobretudo a música má, o ruído de certas
indústrias e o dos sinos das igrejas, que, tocando a horas impróprias, ou por tempo demasiado, a
lei reconhece então o seu caráter agressivo e fere-os com penalidades. Todavia a legislação
conveniente à salubridade e ao sossego público não considera ainda muitos casos como puníveis, e,
entre eles os silvos das locomotivas nas estações centrais que, sem necessidade alguma, perturbam
o sono de milhares de pessoas e agravam o sofrimento dos enfermos.
Para o uso da atmosfera chegou-se, pois, com o tempo, senão a impor, pelo menos a afirmar
tacitamente a limitação de liberdade de cada um perante as liberdades semelhantes dos outros. A
moral atual reconhece largamente este princípio e a lei vigia-o com atenção.

§ 52. - O estado de coisas produzido pela civilização não contraria a aceitação dos corolários que
deduzimos da lei da justiça. Bem ao contrário, abre-lhes um caminho cada vez mais amplo. No tempo
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 28/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
em que o canibalismo estava espalhado e em que frequentemente se sacrificavam vítimas aos deuses,
os povos pouco apreço e solicitude podiam mostrar pelo direito à vida; mas as ideias e as práticas
desse tempo desapareceram e em nada entrava já a inteira liberdade das nossas opiniões. Quando o
escravagismo e a servidão se haviam enraizado fundamente na organização social, a afirmação do
direito à liberdade teria suscitado uma violenta oposição. Hoje, nos povos de mais elevada
civilização pelo menos, nenhum uso contradiz o princípio de que todo o homem é livre de se servir
dos seus membros e de se deslocar à vontade. Os fatos pouco acentuados que impedem o
aprovisionamento do ar e da luz a cada um, fatos cujas consequências nós herdámos do sistema da
construção das cidades antigas, os incômodos ocasionados pela fumaceira das fábricas e os outros a
que fizemos referência, em nada contradizem a proposição de que os homens têm iguais títulos ao
uso dos agentes naturais em cujo seio se encontram. Ao contrário disso, há ideias e instituições
que o passado nos transmitiu que erguem uma barreira impedindo que os homens tivessem títulos
iguais ao uso da terra, desta parte do nosso habitat a que, em verdade, se não pode rigorosamente
chamar um «meio». Essas ideias e essas instituições nasceram numa época em que as considerações de
equidade não influíam no modo por que se efetuava a possessão da terra e que não influíram também
na possessão dos homens como escravos, ou como servos. Atualmente, ainda elas suscitam
dificuldades na aceitação da nossa proposição. Se os nossos contemporâneos possuidores dos
sentimentos éticos produzidos pela disciplina social, se encontrassem em presença dum território
ainda não repartido individualmente, não hesitariam em afirmar a igualdade dos seus direitos a
esse território, assim da mesma maneira como não hesitam em afirmar a igualdade dos seus direitos
ao ar e à luz. Mas uma apropriação que vem de longe, uma cultura contínua, as vendas e as compras
complicaram as coisas ao ponto- de que a afirmação da moral absoluta se tornou incompatível com o
estado produzido por essa múltipla série de fatos e a põem em risco de absoluta rejeição. Antes de
averiguarmos o que as circunstâncias nos determinam a decidir, vejamos algumas das provas da
expropriação da terra no passado.
Nas primeiras idades agrícolas, a ocupação dessa terra rapidamente esgotada deixava de ser útil, e
consoante o costume dos povos pouco civilizados, ou semicivilizados, os indivíduos abandonavam-na
para se transportarem a outras paragens antecipadamente escolhidas. Esta causa produziu somente
uma influência restrita sobre o facto de não haver nos primeiros tempos propriedade individual,
mas somente usufruto da terra. Quaisquer, porém que tenham sido as outras causas, o facto é que a
propriedade individual da terra não existia ainda. O solo era propriedade da tribo. Assim é ainda
hoje em Sumatra e noutros pontos. Os nossos antepassados eram proprietários, a título pessoal,
apenas do produto das parcelas de terreno por eles agricultadas. Os membros da mark também não
tinham a propriedade da área cultivada. Como os indivíduos que constituíam a tribo eram membros da
mesma família, da mesma gens ou do mesmo clã, poder-se-ia sustentar em rigor que a propriedade de
cada parcela ou propriedade privada, ao passo que a superfície total pertencia a um grupo
familiar; mas por isso que o mesmo regime cultural persistiu depois que a população da mark deixou
de ficar sujeita aos laços agrícolas determinados pelo parentesco, esse regime era bem o da
propriedade comum doado e não o da propriedade individual.
Compreenderemos melhor o que era um tal regime, estudando o que se passa na Rússia onde um
idêntico modo de propriedade territorial não desapareceu ainda inteiramente.
«As terras duma aldeia pertenciam em comum a todos os membros da associação (mir); o mujik só
possuía individualmente a colheita e o dvor e o quintal em volta da casa. Este estado inferior da
propriedade, que persistiu na Rússia até aos nossos dias, vigorou nos primitivos tempos de todos
os povos europeus. Rambaud, Histoire de Russie, pag. 35».
Extrairei também do livro de WalIace a respeito da Rússia algumas passagens em que se descreve o
estado original da propriedade territorial e o que depois se lhe seguiu. Notando o facto de que
enquanto os cossacos do Don foram inteiramente nômades «a agricultura era por eles castigada com a
pena de morte, decerto por que restringia a facilidade e a proliferação dos animais e a sua caça,
acrescenta:
«O cossaco, desejoso de obter colheitas fazia a sementeira e o amanho da terra onde mais azado lhe
parecia e conservava a terra de que se havia apropriado tanto tempo quanto lhe convinha; quando o
solo principiava a dar sinais de esgotamento abandonava o seu campo e ia semear noutro lugar. O
aumento do número de cultivadores ocasionou frequentes disputas. Outros e mais sérios
inconvenientes advieram também do estabelecimento de mercados nas propriedades. Nalgumas staitzas,
ou aldeias cossacas, as famílias ricas apropriaram-se de imensas superfícies de terra comum,
lavraram-na com emprego de juntas de bois e contrataram nas aldeias vizinhas camponeses para as
amanharem. Em vez de abandonarem os campos depois da segunda ou terceira colheita, retiveram-nos
na sua posse, foi assim que a totalidade da terra arável, ou pelo menos a melhor parte dela, se
tornou, de facto senão de direito, propriedade privada de algumas famílias.
E informa que em seguida a um movimento quase revolucionário a comunidade, fazendo valer os
direitos dos membros privados da terra agricultável, confiscou aquela de que se tinham apropriado
muitas famílias e organizou um sistema de partilhas periódicas em virtude do qual cada adulto
macho ficaria tendo uma parcela do solo para agricultar.
«Na estepe um mesmo lote de terreno não era geralmente cultivado senão três ou quatro anos
consecutivos. Passado esse tempo era abandonado por um tempo pelo menos duplo e os cultivadores
transportavam-se para uma outra parte do território comunal. Este regime impede que o princípio da
propriedade privada crie raízes; cada família tem mais a posse duma quantidade determinada do que
a dum lote determinado de terreno e contenta-se com um direito de usufruto; o direito de
propriedade fica nas mãos da comuna».
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 29/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
Posteriormente nas regiões centrais, que eram as que mais tinham progredido, abandonou-se este
costume antigo, mas sem lhe destruir inteiramente o carácter essencial.
«Em conformidade com este sistema (de cultura trienal) os cultivadores não emigram periodicamente
duma parte do território comunal para outra, mas amanham constantemente o mesmo campo e obrigam-se
a adubar os lotes que ocupam. Ainda que o regime da cultura trienal esteja em uso desde há muitas
gerações nas províncias centrais, o princípio comunal da lotação da terra permanece intacto».
Estes e outros fatos análogos e numerosos excluem toda a dúvida de que anteriormente às
modificações introduzidas pelo progresso da organização social nas relações entre o indivíduo e o
solo, estas relações baseavam-se na propriedade coletiva e não tinham o mínimo apoio na
propriedade individual.
Como foi que essa relação se modificou? Qual a única maneira por que pôde efetuar-se? Não foi,
certamente, em virtude dum consentimento livremente dado, porque é impossível admitir que todos ou
que mesmo alguns dos membros da comunidade abandonassem os seus respetivos direitos.
Pode ter acontecido, de tempos a tempos, que um criminoso perdesse a sua parte da propriedade
comum, mas esses fatos em nada modificaram a relação entre o solo e o resto dos membros agrários.
Uma dívida pode ter dado causa às mesmas perdas, se o facto de existir a dívida não implicasse o
de haver credores. Ora não é admissível que a comunidade em massa tivesse esse credor; a dívida de
um membro da comuna a outro membro dela não conferia, pois, ao devedor o poder de pagar, alienando
uma coisa que não possuía em próprio nome e que não era susceptível de ser adquirida a título
pessoal. É, portanto, provável que a mesma causa que vimos atuar no regime agrícola da Rússia
determinasse iguais modificações noutros pontos. Houve homens que cultivaram superfícies mais
vastas, acumularam a riqueza com o poder que ela confere e adquiriram possessões de extraordinária
extensão. Mas essa prosperidade excessiva e as consequências que dela advieram ocasionaram na
Rússia um movimento insurrecional e o regresso ao regime originário. De calcular é, portanto, que
nos outros pontos haja provocado a reação também. O exercício direto ou indireto da força, umas
vezes no interior, mas na maioria dos casos vinda do exterior, deve ser a causa principal da
mudança de regime. As disputas e as lutas que surgiam no seio da comunidade preparavam predomínios
(assegurados em certos casos pela possessão de locais fortificados) e facilitaram usurpações
parciais. Os Suanetas (Freshfield. Procedings of the Royal Geographical Society, junho, l888, pag.
335) dão-nos ainda hoje o exemplo de aldeias em que cada família possui uma torre fortificada. É
fácil de compreender que no seio das comunidades primitivas, as lutas intestinas deviam determinar
supremacias individuais e que estas acabassem por subordinar os direitos coletivos a direitos
especiais.
Mas a conquista vinda do exterior foi em toda a parte o instrumento principal da despossessão da
propriedade comunal. No tempo em que os prisioneiros de guerra eram reduzidos à escravidão e as
mulheres retidas como presa de guerra, não é de presumir que se professasse um grande respeito
pelos títulos preexistentes da propriedade do solo. Os anglos rapaces que nas suas incursões às
costas das ilhas que hoje constituem o reino inglês estrangulavam os padres junto dos altares,
incendiavam as igrejas e chacinavam as multidões que se refugiavam nelas seriam uns seres
incongruentes se tivessem quaisquer contemplações com os direitos territoriais dos habitantes que
escapavam às suas mortandades. Os piratas dinamarqueses que mais tarde subiram pelos cursos dos
rios, assolaram essas ilhas, incendiando as habitações, matando os habitantes, violando as
mulheres, pendurando as crianças nas lanças e vendendo-as no mercado de escravos, só por
miraculosa transformação, respeitariam os direitos territoriais dos proprietários da mark. O mesmo
deve ter sucedido quando os conquistadores normandos chegaram, depois de um intervalo de dois
séculos, durante o qual as guerras intestinas incessantes tinham já feito surgir os chefes
militares que impuseram os seus direitos quase feudais aos ocupantes do solo. O direito de
conquista alterou uma vez mais os direitos de posse que se tinham formado e apagou a propriedade
comunal em benefício do especial regime de propriedade individual próprio do feudalismo. A
afirmação da expropriação total - mais ou menos atenuada pelas conveniências políticas - segue,
adaptando-se à natureza da raça conquistadora e conquistada, no encalço da vitória que confere um
poder ilimitado sobre os vencidos e seus bens. Algumas vezes, como no Dahomey (Burton. Mission to
Gelete, King of Dahomey, I, 260) a vitória confere ao rei o monopólio absoluto, não somente da
terra, mas de quanto nela assenta e se desloca. Noutros casos, como na Inglaterra, concedia à
coroa o domínio supremo, ficando os nobres e os vassalos com direitos sobrepostos e possuindo a
terra uns dos outros sob a condição de prestarem serviços militares. O rei estava, pois,
implicitamente investido no direito de propriedade supremo; os nobres e os vassalos tinham
sucessivamente e decrescentemente a emfiteuse, ou propriedade imperfeita.
Este primitivo regime e as modificações subsequentes por que passou, deixaram acentuados vestígios
nas leis fundiárias atuais da Inglaterra e de outros países europeus. Vários dos direitos locais
da Grã-Bretanha e Irlanda remontam a uma época em que «a propriedade territorial a título privado,
tal como nós a entendemos presentemente, era uma novidade excessivamente combatida». (The Land
Laws, por fred. Pollock, pag. 2).
«Os aldeãos que tem direitos comunais, gozam-nos em virtude desse título que, se fosse possível
remontar à sua primitiva origem, veríamos ser mais antigo que o do lord. Os seus direitos são os
mesmos que pertenciam aos membros das antigas comunidades rurais e tem data muito anterior à da
menção dos direitos territoriais adstritos aos castelos e aos lords castelães.
Nos atos de vedamento de muro nas propriedades comunais testemunham ainda hoje pouco respeito
pelos direitos dos habitantes das com unas. Seria, pois, necessária uma ingénua credulidade para
se acreditar que nos rudes tempos da transformação dos direitos comunais nos direitos individuais
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 30/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
se efetuasse com equidade. O direito individual à propriedade ficou, todavia, quase sempre
incompleto e sujeito aos direitos do suserano imediato e aos do suserano supremo, implicando assim
a subordinação do direito de propriedade ao direito do chefe da coletividade.
«As nossas leis não reconheciam o direito absoluto de propriedade imobiliária senão na Coroa.
Todas as terras eram consideradas como possuídas, mediata ou imediatamente pela Coroa, embora lhe
não competisse receber dos proprietários delas quaisquer rendas ou serviços e independentemente de
haver ou não, nos arquivos do reino, algum título de concessão dimanada da Coroa.» (Land Laws,
pago 12).
Esta concepção da propriedade fundiária sobrevive tanto em teoria, como na prática, porque
frequentemente os Estados autorizam a expropriação de parcelas do solo para fins de utilidade
pública. Poder-se-á objetar que o direito de propriedade suprema do solo atribuído ao Estado está
compreendido no direito de propriedade geral e suprema pelo qual ele se atribui o direito de se
apoderar de quaisquer bens, mediante indemnização.
Mas o uso que o Estado faz do primeiro destes direitos é habitual e amiudado, ao passo que o
segundo está unicamente consignado no papel e não passa de letra morta, por que não faz uso dele.
Com efeito, nas compras de quadros, feitas pelas nações, os Estados entram em concorrência com os
compradores particulares e só os adquire quando o seu lanço é maior que o dos outros concorrentes.
Falta-nos demonstrar que as mudanças políticas que tem lentamente substituído o poder supremo do
monarca pelo poder supremo da nação, substituíram o direito supremo da propriedade fundiária da
nação. Assim como o corpo representativo herdou, de facto, os poderes governativos de que o
passado tinha investido o rei, assim também aquele herdou o direito de domínio iminente de que o
rei estava investido também. O poder representativo, sendo, como e, de delegação, é um mandatário
da coletividade e nela se concentra hoje o antigo direito supremo de propriedade de que os reis
antigos estavam investidos.
Os próprios proprietários territoriais não contestam isso; e, para prova, citarei o relatório
publicado em dezembro de 1889 pelo conselho da «Liga Inglesa da defesa da Liberdade e da
Propriedade», conselho de que fazem parte vários magistrados judiciais e pares do reino. Esse
documento, depois de declarar que a Associação tem por princípio essencial «baseado na experiência
do passado» a desconfiança do «funcionalismo do Estado e dos Municípios», prossegue nestes termos:
«Tal princípio aplicado a possessão do solo é favorável ao direito da propriedade individual,
submetido à suserania do Estado. É claro que a terra podia ser «retomada» mediante o pagamento
duma indemnização plena e administrada pelo «povo» se isso se tornasse vontade sua.
O Relatório não dá outras razões em apoio do sistema fundiário existente além dos defeitos do
sistema de administração de que aquele é substituto, e abertamente reconhece o direito pertencente
à comunidade do direito supremo da «terra». Assim, enquanto que nos primitivos estados, vemos a
coexistência da liberdade individual e a da propriedade comunal do solo, vê-se também durante os
dilatados períodos em que se efetuou a transformação das pequenas comunidades em grandes
agrupamentos, a atividade militar, que foi quem efetuou essa transformação e consolidação, tornar-
se a causa da perda simultânea da liberdade individual e da participação da propriedade da terra.
Paralelamente à declinação do poderio militar e ao desenvolvimento do industrialismo, dá-se nos
nossos dias uma dupla reaquisição: a da liberdade individual e a da participação da propriedade da
terra que se manifesta pela parte dela que o poder representativo expropria e torna pertença
coletiva. Este facto implica, em favor dos membros da comunidade, que exercem habitualmente pela
pessoa dos seus representantes o poder de alienar uma qualquer porção da terra e de usar dela, o
direito de se apropriar sem quebra de equidade, da totalidade dela e de a destinar aos usos que
julgue convenientes. Mas a equidade e o costume implicam igualmente que os atuais detentores da
terra não poderão ser desapossados dela sem receberem o preço em que foi avaliada. Daqui se infere
que a aquisição pelo Estado de todas as terras em globo, envolve a do pagamento do seu valor
total. Se a comunidade reouvesse sem esse pagamento, o exercício direto do seu direito de
propriedade, adquiriria como uma coisa que lhe pertence uma soma imensamente maior de coisas que
lhe não pertencem. Os direitos teóricos dos homens tiveram de século para século uma tão
inumerável série de complicações; mas, reduzindo mesmo o problema à sua mais simples expressão,
não poderemos deixar de admitir que a única coisa que a comunidade tem direito a reclamar, é a
superfície do território no primitivo estado inculto. A coletividade nenhum direito tem ao
acréscimo de valor dado ao solo pelo arroteamento, pela cultura prolongada, pelas vedações, pelas
drenagens, pela abertura dos caminhos, pela construção para os agricultores e para animais, etc.,
etc., acréscimo que constitui a quase totalidade do seu valor e que é um produto do trabalho
pessoal, do trabalho retribuído, do trabalho dos antepassados. Tudo isto representa dinheiro
legitimamente ganho para quem o embolsou. Os proprietários atuais estão investidos no acréscimo de
valor comunicado à tuna pelo trabalho e pela arte: despoja-los dele seria um ato de gigantesco
latrocínio. A violência e a fraude presidiram bastas vezes as operações que deram e dão origem aos
direitos existentes da propriedade territorial, mas muitíssimo maior seria a violência e a fraude
praticada pela comunidade se confiscasse o valor que o trabalho e a arte de milhares de anos deram
à terra.

53. - Regressando ao tema geral deste capítulo os direitos ao uso dos agentes naturais, convém
acentuar que estes direitos vêm gradualmente obtendo a sanção legislativa à medida que as
sociedades se aproximam do tipo superior.
No início do capítulo, vimos- que a asserção legal de igualdade dos direitos dos homens ao uso da
luz e do ar é dos tempos modernos. Nenhuma forma de organização social ou de interesses de classe
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 31/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
se opõe hoje ao reconhecimento desse coro lá rio da lei de igual liberdade. Acabamos de verificar
que atualmente se manifesta, embora por um modo talvez inconsciente e velado, o reconhecimento da
igualdade de direitos de todos os eleitores à propriedade suprema da ária habitada, direitos que,
conquanto latentes, se subentendem nos Atos do Parlamento que alienam a terra. Ainda que as
disposições em vigor entravam esse direito ao uso da terra inerente a todo o cidadão, torna-se,
todavia, impossível o negar a equidade dos seus títulos, sem que isso implicasse a afirmação de
que as expropriações efetuadas pelo Estado são contrárias à equidade. O Estado não pó de
equitativamente passar a outrem o direito do detentor atual senão por virtude de um direito
anterior, em benefício do direito da comunidade, direito que é igual à totalidade dos direitos
individuais dos seus membros.
Nota. - No apêndice B se encontrarão várias considerações concernentes ao discutidíssimo assunto
da propriedade do solo. Transferi-as para lá, afim de não dar a este capítulo uma extensão muito
maior que a dos demais.

CAPÍTULO XII

O direito de propriedade

§ 54. - Do facto de serem tirados da terra todos os objetos materiais suscetíveis de apropriação,
deduz-se que o direito de propriedade é, pela sua origem, dependente do direito ao uso da terra.
Esta inevitável conexão permaneceu incontestada em quanto não houve produtos artificiais e os
naturais foram os únicos de que o homem se apropriava. No atual e desenvolvido estadia social,
existem inumeráveis objetos suscetíveis de posse, tais como casas, móveis, vestuários, obras de
arte, notas de banco, ações de caminhos de ferro, títulos de hipoteca, fundo de Estado, etc., cuja
origem se não relaciona diretamente com o uso da terra. Não obstante, como são ou produtos de
trabalho ou sinais representativos de trabalho e como o trabalho seria impossível sem a
subsistência e como a subsistência é tirada da terra, é de reconhecer que a existência da conexão
acima referida continua a dar-se por mais afastada e deturpada que pareça. A justificação ética
completa do direito de propriedade eriça-se das mesmas dificuldades que vimos haver para a
justificação ética completa do direito ao uso da terra.
O ensaio da justificação de Locke (Locke. Two Treatises of Gouvernement, 5ª edição. Londres, 1728.
Tratado segundo, § 27) não é satisfatório. Diz ele que «embora a terra e todas as criaturas
inferiores sejam comuns a todos, todo o homem tem direito à propriedade da sua própria pessoa" e
daí infere «que o trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos» devem pertencer-lhe como coisas de
que se apropriou. «Incorporando o seu trabalho - continua Locke - em todas as coisas que tirou do
estado da natureza, o homem comunicou-lhe alguma coisa que é bem dele e que as torna propriedade
sua." Poder-se-á objetar-lhe que atentas as suas premissas de que «a terra e todos os seres
inferiores são pertença de todos os homens» é necessário o consentimento de todos os homens para
que um objeto possa equitativamente «ser subtraído ao estado de bem comum em que a natureza o
pôs.» O ponto a discutir é este: o trabalho destinado a fazer um objeto do seu estado natural dá
ao homem que efetuou esse trabalho um direito superior à soma dos direitos preexistentes de todos
os homens? A dificuldade que a pergunta contém não é irremovível. Consoante o homem que se
encontre em presença de condições selvagens, semisselvagens ou civilizadas, três maneiras
diferentes ha de demonstrar que os direitos pessoais de propriedade podem constituir-se sem
violação dos direitos iguais dos outros homens.
Os ocupantes duma região que recolhem ou captaram os seus produtos podem tacitamente, ou mesmo
declaradamente convir que em consideração das iguais probabilidades que todos têm de se apropriar
desses objetos, o assentimento passivo de todos os ocupantes sancionará a apropriação efetuada por
um deles. Este acordo geral é o que observam os membros das tribos caçadoras. Convêm, todavia,
notar que várias dentre elas afirmam a restrição prática, se não teórica, que acima enunciamos; o
costume reconhece a toda a tribo o direito de partilha da caça abatida por um dos membros da
coletividade, isto sem dúvida em resultado da convicção de que a presa antes de morta, pertencia
em parte a todos.
«Os Comanchos, informa Schoolcraft (Schoolcraft. Information respecting the Indian Tribes of the
United Estates, 5 vol., Londres, 1853-6, I, pag. 232) não aceitam a distinção do meu e do teu
senão para os bens mobiliários. Pretendem que o território por eles ocupado assim como a caça que
nesse território vive e que só pode ser apropriada por captura, são pertença de toda a tribo. O
Comancho que matou uma peça de caça guarda a pele, mas a carne divide-se proporcionalmente às
necessidades do grupo. Cada indivíduo tem obrigação de admitir, sem oposição, que os membros
restantes da tribo recebam a parte precisa para a sua subsistência.» Iguais usos e ideias reinam
entre os cipaios.
«Quando um grupo de caçadores mata a caça num recinto fechado, é dividida por todos os que tomaram
parte na caçada. Se a caça cai numa armadilha particular, consideram-na como propriedade privada.
É, todavia, permitido a todo o caçador que passe e a quem a fortuna não foi propícia apoderar-se
dum veado nestas condições, contanto que deixe a cabeça e a pele do animal ao proprietário da
armadilha.
Os colocatários dum direito de pesca, ou mesmo qualquer indivíduo que tenha tomado parte numa
pescaria podem testemunhar a quase completa equidade que há nos preceitos por que se regulam e que
têm vagamente, senão expressamente, força de lei. É ver-se a irritação que provoca um colocatário
ou um companheiro de pesca que infringe as praxes estabelecidas, irritação que se tornará maior se
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 32/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
em vez dum ataque descortês ao prazer dos outros pescadores, se tratar de uma abusiva apropriação
de alimento.
Passando da vida dos caçadores à vida semi-sedentária, encontram-se costumes que implicam as
mesmas ideias gerais. O território, em vez de estar à disposição de todos para que recolham e
capturem nele uma parte igual da subsistência, está à disposição dos ocupantes para o cultivarem e
colherem a sua subsistência. Neste segundo caso, como no anterior, os produtos do trabalho são
adquiridos pelos membros da coletividade que o efetuaram. A subsistência obtida por meio da
cultura duma parcela do solo por um membro da comunidade torna-se propriedade sua com o
assentimento da tribo, assentimento que implica o reconhecimento de análogos direitos analogamente
estabelecidos em benefício de todos os outros membros da tribo. Como vimos no capítulo precedente
quando estudámos os antigos regimes agrários da Rússia, o acordo indefinido do começo veio depois
a transformar-se num acordo definido, e prescreve a divisão da terra em lotes iguais, atribuição a
cada possuidor do direito de agricultar o lote que lhe foi designado e, o direito de propriedade
aos produtos da cultura.
Um acordo parecido vigorou na Irlanda durante o reinado de Henrique II e posteriormente. «Os
membros da tribo partilhavam entre si a terra, corrigindo-se a divisão de anos a anos» (Green. A
Short History of the Englistt People, 1880, pag. 431).
Em virtude deste acordo geral, o indivíduo gozava de um direito exclusivo de propriedade sobre
tudo quanto, nas condições estabelecidas, extraía da terra. Também neste caso como no anterior, o
direito de propriedade teve uma origem harmónica com o direito de igual liberdade.
O direito de propriedade originado assim não resultou, certamente, de um contrato explícito e
ultimado entre a comunidade de uma parte e cada um dos seus membros da outra. Ao estudá-lo,
achamo-nos, contudo, em presença de uma estipulação que se assemelha a um contrato virtual e que
teria podido transformar-se num contrato formal se uma parte da comunidade, entregando-se a outras
ocupações, deixasse à parte restante a continuação da cultura declarando com comum acordo, que uma
parte do produto da cultura dos lotes cedidos seria reservada para os membros que haviam deixado
de ser cultivadores. Nada prova, contudo, que semelhantes estipulações se hajam feito entre os
ocupantes e a comunidade e sancionado a propriedade do produto da ocupação, mediante a entrega de
uma parte equivalente à renda fundiária.
Surgem quase invariavelmente, agressores pertencentes à comunidade ou vindos do exterior que
usurpam o direito original de propriedade da comunidade e passaram a receber a renda em trabalho
ou em serviço militar e não em géneros: esse estado de coisas fez tábua rasa nos direitos de
propriedade fundados na equidade, assim como em todas as outras categorias de direitos da mesma
origem. Dessas usurpações derivou, contudo, o sistema de propriedade em virtude do qual o Estado
confere a retenção da terra, sistema suscetível de dar origem a um direito de propriedade
equitativo em teoria. Na China (S. W. Williams. The Middle Kingdom, 2 vols., Nova York, I, pag. 1-
2), «onde a posse total da terra deriva diretamente do Estado mediante o pagamento de uma taxa
anual e de uma estipulação para o resgate do serviço pessoal devido ao Governo», a hipótese de que
o imperador representa a comunidade é a única que pode invalidar a propriedade legítima do excesso
que fica disponível depois do pagamento da renda reservada à comunidade. Na Índia (Laveleye.
Primitive Property - Contemporary Review, Londres. 1878, pag. 310 e seguintes), o governo é o
proprietário supremo e até se instituírem os zemindarse, recebeu diretamente a renda. Só por uma
forçada interpretação se pode relacionar neste regime o direito de propriedade com um contrato
realizado entre a comunidade e o indivíduo. As exigências da moral não são, entre nós, mais
respeitadas, pois que a doutrina de que todo o proprietário de imobiliário o é por delegação
revogável da Coroa, tem um valor puramente teórico. Apenas nalguns raros países em que a
propriedade não é virtualmente do Estado, mas sim expressamente reconhecida, e em que as rendas
ordinárias são cobradas pela Coroa (que neste caso está identificada com a comunidade), foi que se
estabeleceu o sistema de exploração da terra que dá ao direito pessoal de propriedade uma base
teoricamente válida.
Encarado pelo prisma da ética, o estabelecimento de um direito completo de propriedade apresenta
as mesmas dificuldades que as que ha para o estabelecimento de um direito completo ao uso da
terra. Não obstante, o exame dos fados das primitivas sociedades nascentes, fados que se
reencontram na história dos estados remotos das sociedades atuais, basta para mostrar que o
direito de propriedade é, pela sua origem, relacionável com a lei de igual liberdade e que a
infração dos outros corolários desta lei foi que rompeu essa ligação.

§ 55. - Á medida que a sociedade se desenvolvia, esta dedução foi-se elaborando e foi sendo, de
mais em mais, posta em vigor; o costume cedo a reconheceu e, logo após, formulou-a o legislador.
Primitivamente, o direito de propriedade considerou-se como reivindicação válida pelo trabalho
executado sem lesão alguma dos direitos de outrem nem do próprio agente do trabalho. Os povos mais
broncos, aqueles em quem a concepção do direito de propriedade se desenvolveu menos, admitem a
propriedade das armas, dos utensílios, do vestuário, e dos enfeites; o trabalho confere a todos
estes objetos um valor proporcional notavelmente superior ao da matéria prima de que são feitos.
As palhotas são num menor grau o produto do trabalho individual, por serem geralmente construídas
com a intervenção de auxiliares, a título de reciprocidade. Com isto não enumerámos todos os
objetos possuidores de um valor que, nesta época, resulta muito mais do trabalho efetuado neles do
que do valor intrínseco da matéria prima, porque o valor intrínseco dos alimentos colhidos ou
capturados no estado natural é muito inferior ao do esforço feito para os obter. É por isso,
certamente, que nas sociedades menos civilizadas o direito de propriedade dos bens mobiliários se
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 33/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
encontra muito mais nitidamente definido que o dos outros objetos.
O reconhecimento do direito de propriedade foi, pois, na sua origem, o reconhecimento da relação
que deve existir entre o esforço empregado e o resultado obtido. Embora, como o afirma Henry Maine
(Henry Maine. Ancient Law, 3ª edição, Londres, 1866, pag. 184), o chefe do grupo tenha
primeiramente sido o senhor nominal de todos os bens, esse chefe não agia de fado, senão na
qualidade de mandatário, e cada um dos membros que contribuíam com a sua parte para o trabalho
comum, recebia a sua parte do produto. Este regime quase socialista para os membros da tribo, mas
que admitia a concorrência de indivíduos de fora dela, não nos dá a expressão nítida do direito de
propriedade individual; subentende, todavia, que o trabalho implica para o trabalhador um
aproximado equivalente de produtos. Esta asserção tácita transforma-se em asserção explícita
quando os membros do grupo adquirem a propriedade de bens em virtude de um trabalho efetuado fora
do trabalho dos outros membros.
Torna-se dispensável seguir o desenvolvimento do direito de propriedade, tal como os legisladores
o formularam e como os seus agentes o interpretaram e remontar até aos mandamentos dos Hebreus
para virmos depois pelos tempos fora até aos tempos modernos em que as leis formulam os mais
diversos direitos de propriedade com infinitos pormenores e com uma grande precisão. Por agora,
bastar-nos-á salientar que esta consequência do princípio da justiça pôde, desde os inícios do
progresso social mais claramente compreendido que as suas outras consequências, e que com o
decorrer dos tempos vem sendo aceita duma forma sucessivamente mais nítida, tomando paralelamente
um caráter cada vez mais peremptório. Atualmente a violação de um direito de propriedade pela
apropriação não autorizada duma folha de couve ou de uma acha de lenha constitui um crime, e o
direito de reprodução de um romance, dum modelo, ou duma marca de fábrica constitui uma
propriedade.

§ 56. - Ha muita gente que procura demolir este direito na suposição de que tem por si um
princípio moral que o justifica e os obriga a esse empreendimento. Os que assim pensam acham
injusto que todo o homem colha vantagens proporcionais ao seu esforço, negam a cada um que possa
honestamente guardar a totalidade do produto do seu trabalho e forçar os menos aptos a
contentarem-se com a soma menor de bens que o trabalho deles produza. Esta doutrina é assim
resumível: «Quantidades e qualidades diferentes de trabalho devem obter a mesma parte do produto.
Procedamos à partilha igual dos produtos desiguais».
É evidente que o comunismo implica a violação da justiça tal como foi definida nos capítulos
precedentes. Afirmando que a liberdade de cada um não tem outro limite que não seja o da igual
liberdade de todos sustentamos que cada um tem direito a todos os proventos e a todas as fontes de
proventos que procura e encontra sem violar a esfera de ação dos seus vizinhos. Se, pois, um vigor
maior, um espírito mais inventivo ou uma superior aplicação dão a um homem um acréscimo de
proventos ou de fontes de proventos. a lei de igual liberdade confere-lhe o exclusivo título desse
acréscimo com a condição de que não invada as esferas de ação de outrem.
As instituições do passado permitiam a alguns raros homens superiores enriqueceram à custa dos
seus inferiores. Atualmente há quem brade por instituições que enriqueceriam a grande multidão dos
inferiores à custa duma minoria de homens superiores e raros. Os defensores do antigo regime
social partiam da hipótese de que ele tinha um caráter equitativo; os defensores do projeto do
regime novo pretendem igualmente que ele se alicerça na equidade. Convencidos do fundamento do seu
direito julgam que a força, cujo emprego justificam sem o confessarem, poderá equitativamente
impor uma nova partilha de bens. Tal como a natureza humana se tem manifestado sempre no passado e
tal como ela se manifesta à volta de nós, nenhum homem abandonará de bom grado os seus ganhos que
ultrapassem os dos outros homens quando tenha adquirido esses ganhos pela superioridade das suas
qualidades físicas ou mentais ou por uma superior faculdade de trabalho; alguns raros indivíduos
consentirão nisso talvez mas o número deles estará longe de representar a média da humanidade. O
facto de que a média superior não abandonará voluntariamente acréscimo de proventos adquiridos
pela sua superioridade implica o emprego de meios coercivos e arrasta ao uso necessário da força.
Os dois partidos sabem-no; a multidão dos inferiores está na posse dum superior poder físico de
constrangimento e os comunistas pretendem que a equidade justificará a coerção necessária exercida
contra a minoria afortunada pelos que até agora tem estado colocados numa situação de vida menos
vantajosa. Depois do que dissemos nos primeiros capítulos, apenas se torna preciso recordar que um
sistema que se inspirasse nesta doutrina causaria a degenerescência dos cidadãos e decadência da
comunidade. A supressão da disciplina natural que mantem toda a criatura no estado de adaptação às
atividades que as condições da vida exigem, conduziria inevitavelmente á inaptidão para a vida e
ao desaparecimento lento ou rápido das raças que a ele se submetessem.

§ 57. - A moral absoluta afirma, pois, o direito de propriedade, e, por seu lado, a moral
relativa, que faz entrar em linha de conta as necessidades transitórias, não admite a violação que
os projetos comunistas implicam. Todavia, a moral relativa autoriza a delimitação do direito de
propriedade na medida necessária para se fazer face às despesas concernentes a proteção nacional
individual.
Enunciámos já o princípio de que a conservação da espécie ou da variedade organizada em nação
constitui um fim que prevalece sobre o da conservação individual. Vimos que este fim justifica a
subordinação do direito á vida que resulta do perigo de morte em caso de guerra defensiva.
Justifica esse princípio também a subordinação do direito à liberdade de que carecem o serviço e a
disciplina militares. A lei da conservação da espécie legitima, a apropriação da porção dos bens e
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 34/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
das receitas dos indivíduos necessária para se prover às necessidades duma resistência adequada em
face do inimigo. Toda a violação do direito de propriedade cujo motivo sejam as exigências da
guerra defensiva tem uma justificação quase ética; já o mesmo se não dá com as infrações cometidas
por motivo duma guerra ofensiva.
Falta-nos enumerar uma última restrição, também legítima, do direito de propriedade. A propriedade
deve contribuir para a manutenção das instituições públicas incumbidas de assegurarem o respeito
pela propriedade e pelos demais direitos em geral. Esta restrição parcial do direito de
propriedade tornar-se-ia supérflua numa sociedade inteiramente constituída por homens que
respeitassem os seus reciprocas direitos; com tudo, em sociedades tais como as que existem hoje e
tais como as que provavelmente existirão por muito tempo o melhor meio de nos aproximarmos do
cumprimento da lei de igual liberdade, é o de sacrificar aos direitos que até aqui deduzimos, a
parte menor necessária a conservação da parte maior. A moral relativa sanciona, pois, uma taxação
equitativamente repartida e precisa para a manutenção da segurança e da ordem.

CAPÍTULO XIII

O direito à propriedade incorpórea

§ 58. - O cão não morde apenas para defender o osso que encontrou, também arremete contra quem
pretenda apossar-se da capa, ou doutro qualquer objeto, que o dono tenha confiado à sua
vigilância. Basta um diminuto coeficiente de inteligência para a compreensão do direito à
propriedade material; mas para uma propriedade que não seja visível, nem tangível é necessária uma
inteligência de mais vasto alcance. A concepção da existência dum produto mental exige a
intervenção duma imaginação construtiva, e só uma imaginação construtiva de grau muito elevado
chega a conceber que o produto dum trabalho mental possa, tão legitimamente como o produto de
qualquer trabalho manual, constituir uma propriedade.
É, todavia, demonstrável que tanto sob o ponto de vista positivo do direito como sob o seu ponto
de vista negativo, estas duas propriedades assentam num e mesmo alicerce. Se nos recordarmos de
que a justiça encarada pelo seu aspecto positivo exige que cada indivíduo colha os benefícios e
desvantagens inerentes à sua natureza privativa e às consequências que derivam da conduta que essa
natureza privativa importa, torna-se logo claro que todo e qualquer indivíduo cujo trabalho mental
produza um resultado, tem direito a colher a totalidade de benefícios que desse trabalho
naturalmente dimane. Tal como a definimos, a justiça exige, neste caso particular e em todos os
demais em geral, que nada destrua a conexão que existe entre a conduta e as suas consequências: o
direito aos proventos dum trabalho é, pois, um direito cuja validade é incontestável.
O elemento negativo da justiça que nos seres associados restringe a atividade de cada um deles até
aos limites impostos pelas atividades de todos os restantes membros da organização, interdiz
igualmente a apropriação do produto mental doutrem, ou melhor, interdiz o seu uso sem o
consentimento do produtor, sempre que tal produto seja daqueles cujo uso possa conferir proventos
a outrem. Suponhamos que B, C e D usam em seu proveito e sem o consentimento de A dum produto
mental elaborado por este último. Todos três violam a lei de igual liberdade, pois que cada um, em
particular, aproveita da utilização do produto do trabalho mental de A, sem lhe oferecer a
compensação de se utilizar dos benefícios de qualquer produto equivalente, mental ou material,
fruto das suas próprias atividades. Aos que argumentem que A B e C, pelo facto de se aproveitarem
do produto mental de A o não despojam dele, replicarei que o uso que alguém faça de um produto
qualquer, material ou mental, do trabalho alheio, pode ser para esse alguém uma fonte de provento.
O construtor duma casa destinada a locação, duma carruagem destinada a transportar passageiros,
não seria lesado se os inquilinos e os passageiros se servissem duma ou doutra sem lhe pagarem?
Certamente. Esse construtor não efetuou o seu trabalho tendo em mira aproveitar-se diretamente
dele, mas realizou-o para o uso alheio; é, pois, justo que receba a retribuição que tinha em vista
e que o determinou a fazer a casa ou a carruagem. Ainda mesmo independentemente de se ter ou não
realizado um contrato de arrendamento do prédio ou do aluguer da carruagem, no qual se estipularam
expressamente as condições de pagamento, o consenso será o de que esse proprietário teve um
prejuízo injusto. Embora o autor dum produto mental não seja despojado pelos que desse produto se
aproveitam e a despeito de qualquer contrato, há uma lesão ao direito do produtor sempre que
outros utilizem o seu trabalho sem lhe proporcionarem o benefício que teve em mira ao realizá-lo.
Os produtores contam com os proventos resultantes do uso ou da utilização por outrem de duas
categorias de trabalhos de espírito: a dos produtos que são incorporados nos livros, nas
composições musicais, nas obras de arte plástica, etc., e a dos que são incorporados em invenções
mecânicas ou outras. Passemos a estudar separadamente cada uma destas categorias.

§ 59. - Um homem pode ler, ouvir e observar indefinidamente sem que isso atente a liberdade que os
outros tem de fazer o mesmo. PÓ de assimilar e reorganizar os conhecimentos assim adquiridos e
extrair deles novos conhecimentos sem lesar os direitos alheios. Ninguém ultrapassa os limites da
liberdade individual se guardar para si as conclusões e os pensamentos que elaborou, não obstante
essas conclusões poderem ter um valor, como meio de direção, e a beleza desses pensamentos poder
tê-lo igualmente. Se, porém, esse indivíduo, em vez de os guardar para si, se decidir a publicá-
los, deve ter a liberdade de impor condições; não atenta, por esse facto, contra os direitos
alheios. Os outros homens ficam, por seu turno, com a liberdade de aceitarem ou repelirem essas
condições. Os que as recusam permanecem na mesma situação em que estavam; mas os que as aceitam,
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 35/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
adquirindo exemplares de um livro seu, quer diretamente, quer por intermédio de um agente, sob o
império do acordo tácito de que em troca da soma recebida lhes cede, com o papel impresso, o
direito de lerem e emprestarem a obra - ficam impedidos de o reproduzir; se o fizerem violarão as
condições tacitamente aceitas e cometem um delito, pois que essa violação dar-lhes-ia um benefício
muito superior àquele que o autor ou o proprietário do livro tinha em mente ao receber o preço
pelo qual foi vendido.
É para admirar que haja espíritos inteligentes que sustentem que o facto da publicação de uma obra
torna essa obra propriedade pública e que, em virtude de um corolário da liberdade de trabalho,
qualquer tem o direito de reimprimir e de vender em seu proveito os exemplares dessa reimpressão.
Os que pensam deste modo afirmam que os direitos de autor constituem um monopólio e não uma forma
da propriedade privada. A ser porem assim, como é que a obra de que o contrafator se apodera pode
ter um valor, não sendo tal obra, como os nossos opoentes afirmam, pertença individual de ninguém?
Se a obra não tem valor o que se apodera dela nada perderia em ser impedido de o fazer. Se esse
impedimento lhe acarreta perda é porque tem valor a coisa de que se apodera. E como essa coisa de
algum valor não é um produto natural, torna-se óbvio que só pôde ser obtido à custa do esforço de
alguém que a produzisse. formulei há anos na Edinburgh Review (outubro de 1878, pago 329-330) a
seguinte argumentação sobre o assunto:
«Aqueles dos membros da comissão da propriedade literária e artística, bem como as pessoas por ela
ouvidas sobre a matéria, que pretendem se não abolir os direitos de autor, rodeá-los pelo menos de
restrições que quase equivaleriam à sua supressão, invocam, em favor da sua opinião, os interesses
da liberdade de comércio e pretendem desacreditar os direitos de autor, tais como atualmente são
reconhecidos, chamando-lhes um monopólio. No sentido económico, um monopólio é um privilégio pelo
qual a lei confere a uma pessoa ou a uma corporação o uso exclusivo de certos produtos, de certas
facilidades ou de certos agentes naturais, que a não existir tal lei estariam à disposição de
todos. O adversário do monopólio é o que, não reclamando do monopolizador assistência direta ou
indireta, só reivindica a faculdade de usar, em condições de igualdade, dos produtos, das
facilidades e dos agentes naturais monopolizados.
A natureza não colocou a indústria que o reclamante pretende exercer, sobre a dependência do
monopolizador e esse reclamante é capaz de a exercer também com resultados iguais ou superiores
aos do monopolizador independentemente do privilégio do monopólio, isto é, em livre concorrência.
Tomemos a indústria literária e confrontemos o pretendido partidário da liberdade comercial com o
pretendido monopolizador. O pretendido monopolizador (autor) acaso interdiz ao pretendido
partidário da liberdade de comércio (reprodutor) que use de algum dos processos ou de algum dos
meios para a produção de livros? não: esses processos ficam acessíveis a todos. Por seu lado, o
pretendido partidário da liberdade comercial desejará simplesmente e sem aproveitar nada que seja
de outrem, fazer uso dessas facilidades acessivas a todos tal qual como usaria delas se o
pretendido monopolizador e as suas obras não existissem? Ao contrário. O que ele deseja é
aproveitar-se do trabalho deste último e obter proventos que não colheria se o pretendido
monopolizador e as suas obras não existissem.
Em vez de se juntar aos verdadeiros partidários da liberdade comercial para se queixar dos
obstáculos com que o monopolizador entrava o caminho da boa produção, este pseudo partidário da
liberdade de comércio lastima-se por não poder utilizar de um esforço que teve por origem aquele a
quem apoda de monopolizador. O verdadeiro partidário da liberdade comercial só reclama as
facilidades naturais e só protesta contra os obstáculos artificiais.
Não se contentando com as facilidades naturais, os pseudo partidários da liberdade lastimam-se
pelo facto de se verem obrigados a pagar o preço de um auxílio devido às aptidões de outrem.
Vários dos adversários da propriedade literária manifestaram à Comissão os seus espantos por verem
os autores obcecados pelos seus interesses até ao ponto de não compreenderem que a defesa dos seus
atuais direitos implicava a defesa de um monopólio. Maior motivo de espanto teriam tido os autores
vendo esses opoentes invocarem princípios económicos, confundir o caso de um homem que, desejoso
de exercer uma indústria, reclama unicamente condições iguais às que existiriam se ele e a sua
obra não existissem, com o caso de um homem que pretende exercer uma indústria de um modo que só é
possível quando exista essa outra pessoa. A argumentação com que se combate a propriedade
literária baseia-se toda na confusão entre duas coisas perfeitamente distintas, radicalmente
opostas, e desaparece logo que sobre a matéria incida a luz dessa distinção.»
Parece-me, pois, que o direito à propriedade literária, considerado como dedução do princípio
fundamental da justiça, não pode ser posto em dúvida por um só instante que seja.

§ 60. - O costume primeiramente, e as leis depois, abriram o direito às reivindicações dos


produtores intelectuais. Nos tempos antigos, do auditório ou do patrocínio das pessoas ilustres a
quem os autores recitavam as suas obras, é que provinha a remuneração aos autores. Era incorreta,
ou mesmo talvez desonesta, a esquivança a essa obrigação. Em Roma (W. A. Copinger. The Law of
Copgright, 2ª edição, pag. 2), o direito de propriedade chegou já a adquirir valor mercantil.
Copinger cita diversos autores que venderam as suas obras, entre os quais Terêncio que vendeu o
Eunuco e o Hecyro e Stacio que vendeu o seu Agave. Os copistas adquiriram consuetudinariamente, se
não aos olhos da lei, o direito exclusivo da reprodução dos manuscritos. Na Inglaterra os direitos
de autor estão assegurados desde há dois séculos (Robertson. Artigo «Copyright», na Enciclopédia
Britânica, 9ª edição). Um Ato de Carlos II proíbe a impressão de qualquer obra sem o consentimento
do autor; sob o império desta lei os direitos de autor eram suscetíveis de compra e venda. Em 1774
decidiu-se que a Lei Comunal tinha conferido perpetuamente ao autor e aos seus auxiliares o
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 36/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
direito exclusivo de publicação, mas que um Estatuto o restringiu posteriormente a um período
determinado. Um artigo de Robertson mostra pormenorizada e cronologicamente como este princípio se
estendeu a outros produtos da inteligência: às obras de arte no reinado de Jorge II (Ato dos ano
8º, capítulo 13) e no reinado de Jorge III (Atos dos anos 7º e 38º, capítulos 38 e 71, este último
para os modelos e para as moldagens); no reinado de Guilherme IV, às produções dramáticas (3º e 4º
anos, capítulo 15) e aos cursos e conferências (5º e 6º anos, capítulo 65); no reinado de Vitória,
às obras musicais (5º e 6º anos, capítulo 45); às litografias (15º e 16º anos, capítulo 12), e,
finalmente, às obras picturais em 1862.
O legislador e os pensadores que se tem dedicado ao estudo deste assunto no seu ponto de vista
ético, preocuparam-se e preocupam-se com a duração que convêm marcar aos direitos de propriedade
literária e artística. O problema não é de fácil solução. Deve-se marcar para essa duração a vida
do autor e seus descendentes sem limite algum, ou a vida do autor e um certo número de anos
posteriores à sua morte, ou a vida do autor somente? Não há razão alguma que recomende para este
género de propriedade um regime legal de propriedade e de transmissão testamentária diferente
daquele que rege toda a outra propriedade. A língua, a ciência e os demais produtos da civilização
anterior de que o autor se serviu, pertencem, como se tem dito, à comunidade, mas esses produtos
intelectuais da civilização social são acessíveis a todos e, aproveitando-os, o autor ou artista
não diminuíram o poder que os outros tem de se utilizar deles também.
Sem diminuir no que quer que seja essa riqueza comum o autor apenas combinou algumas partes dessa
riqueza com os seus pensamentos, os seus princípios, os seus sentimentos e o seu talento técnico,
coisas todas estas que são exclusivamente dele e que lhe pertencem mais verdadeiramente do que os
objetos visíveis e tangíveis pertencem aos seus proprietários.
Um produto do trabalho mental é com maior plenitude uma propriedade do que o é um produto do
trabalho corpóreo, porque só o trabalhador criou o fator que torna esse produto mental
valorizável.
Porque há de ser pois neste caso a duração da propriedade menor do que nos casos restantes?
Deixemos o assunto neste pé, fazendo notar que nos tempos recentes e civilizados a lei sancionou o
direito de propriedade desta categoria de produtos intelectuais, direito que no decurso deste
capítulo deduzimos da formula da justiça, e que" essa sanção legal se tem distendido e
especificado à medida que o progresso social se desenvolve.

§ 61. - Bastará uma simples mudança de termo para que tenha aplicação às invenções o que acabamos
de dizer a respeito dos livros e das obras de arte.
Imaginando um aparelho mecânico novo ou parcialmente novo, dando-lhe um caráter de utilidade
prática ou, inventando algum processo diferente ou melhor do que os processos conhecidos, o
inventor faz das ideias, dos utensílios, dos materiais, dos processos conhecidos um uso que está
ao dispor de qualquer outra pessoa e não restringe, portanto, a liberdade de ação de ninguém.
Pode, pois, sem ofensa dos limites prescritos, exigir para si exclusivamente os proventos da sua
invenção; se divulga o seu segredo, não ofende a liberdade de ninguém pelo facto de estabelecer
condições para que os outros se possam utilizar do invento. Pelo contrário, uma pessoa que não
aceitando essas condições se aproveite do invento, comete uma violação da lei de igual liberdade,
pois que se apropriando de um produto do trabalho mental do inventor não permite que este se
aproprie de uma parte equivalente do trabalho do aproveitante ou de um outro equivalente qualquer.
Destoaria dos preceitos da consciência média dos homens o contestar-se o direito equitativo aos
benefícios resultantes de uma invenção àquele que consagrou anos sucessivos de reflexões e de
experiências para poder levá-la a efeito, tendo gasto também muitas vezes capitais que veem
juntar-se aos importantes fatores do seu trabalho manual e cerebral; esta recusa seria tanto mais
culposa quanto é certo que muitas pretensões que não implicam nem trabalho, nem sacrifício, são
não somente autorizadas mas escrupulosamente impostas. O mundo está cheio de deferências pelos
direitos convencionais dos especuladores felizes da Bolsa, pelos investidos em sinecuras que dão
largas remunerações e nenhum trabalho, e vai até ao ponto de respeitar uma pensão tirada do erário
público, para descendentes da amante de um rei. Obstina-se, porém, em negar um «direito adquirido»
ao obreiro que trabalhando noite e dia, sacrificando a saúde e a fortuna, chegou enfim a conseguir
aperfeiçoar uma máquina e a dar-lhe um. poder maravilhoso. Os seus concidadãos ridicularizam-no e
chamam-lhe visionário enquanto sacrifica o seu tempo, o seu dinheiro e os seus esforços; quando
com geral espanto de todos triunfou e os resultados benéficos dessa pacífica vitória se tornam
irrecusáveis, ouvimo-los exclamar: «É um monopólio que ele reclama. Não deve ser lhe concedido». O
governo toma medidas para o proteger e aos seus confrades e permite-lhe obter um privilégio de
invenção contanto que pague os respectivos emolumentos (Ainda não há muitos anos que os diplomas
deste género custavam em Inglaterra centenas de libras esterlinas); não procede assim por um
determinado sentimento de equidade, mas por cálculo político. «Um diploma de privilégio de
invenção não pode, com plena justiça, ser requerido e concedido. Deve apenas considerar-se «como
um estímulo ao talento e ao trabalho». Assim, ao mesmo tempo que a subtração do mais ínfimo objeto
material, por exemplo a de uma moeda de cobre que um marçano tira da gaveta, constitui um delito
punível, um capitalista poderá, aproveitando-se da falta de algumas formalidades legais,
apropriar-se, com imenso proveito e sem risco nem desonra, de um produto mental de valor
incomparável, qualquer que tenha sido o esforço que a sua elaboração haja custado.
Quando mesmo se dê a circunstância de que uma invenção só traga vantagens sociais quando todos
possam usar dela, nem assim se justifica que se ponham de parte os títulos do inventor; ninguém
contesta ao agricultor o direito de amanhar as suas terras e de recolher e vender em seu exclusivo
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 37/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
proveito produtos dela sem se preocupar com as conveniências coletivas. A sociedade ganha sempre
mais com qualquer invenção do que o inventor. Para que ele logre colher desembaraçadamente algum
benefício do seu processo novo ou do seu novo maquinismo, é preciso que ele confira aos outros
homens a vantagem duma mercadoria melhor pelos preços correntes, ou uma mercadoria igual a preços
inferiores. Se naufraga, a sua invenção torna-se nula; se triunfa, presenteia a humanidade com a
quase totalidade dum filão de riquezas por ele descoberto e posto à luz. Comparem-se os proventos
alcançados por Watt com os registos da sua invenção aos aperfeiçoamentos por ele introduzidos nas
suas máquinas de vapor e ver-se-á que os lucros do imortal mecânico foram uma parte infinitesimal
dos lucros materiais que o seu invento trouxe à Inglaterra e a todas as nações do mundo. Não
obstante quanta gente não desejaria ter-se apropriado dessa mínima parte de proventos que a Watt
couberam!
A falta de segurança desta categoria de propriedade mental origina tão desastrosos resultados como
a falta de segurança da propriedade material. Numa sociedade onde a economia não tenha garantias
da conservação das riquezas que acumula, os capitais tornam-se escassos e essa escassez origina a
miséria. Num país que não proteja, ou assegure os direitos do inventor, os aperfeiçoamentos
paralisam e a indústria estaciona porque, regra geral, os homens de engenho recusar-se-ão a
torturar o cérebro, visto não lograrem alcançar uma compensação para o seu fatigante e doloroso
esforço, faremos notar, todavia, que a lei vai pouco a pouco manifestando o seu reconhecimento dos
direitos do inventor, embora o não faça determinada por considerações de equidade, mas por
vantagens de natureza política. Em Inglaterra, as primeiras medidas protetoras de inventos,
constituíram verdadeiros favores que os aproximavam dos monopólios; quando porém um Ato do
parlamento declarou a ilegalidade destes em 1623, estabeleceu-se a distinção entre os monopólios e
os direitos particulares e exclusivos dos inventores (Haydn's. Dictionary of Dates, edição de
1866, pag. 489). Julgou-se útil encorajar os inventores e compreendeu-se, talvez vagamente, que no
caso dum monopólio propriamente dito as atividades alheias não contraem obrigação alguma com o
monopolizador e que seriam realizadas tão bem ou melhor do que se o monopólio não existisse, ao
passo que o pseudo-monopólio do inventor confere reais vantagens aos que se servem do seu invento.
Em todo o caso, o direito de inventor, legalmente sancionado desde há séculos, é na atualidade
rodeado de solicitudes cada vez maiores e uma crescente redução de emolumentos facilita
sucessivamente a obtenção de diplomas de privilégio de invento, diminuindo-se assim os obstáculos
que entravavam os efeitos do seu reconhecimento. As leis dos outros países e principalmente as da
América talham-lhe um lugar de lei para lei mais amplo, assegurando dessa maneira um constante
progresso nos processos que facilitam a diminuição do trabalho humano e o aumento da riqueza.
Resta-me enumerar uma restrição ao direito acabado de expor e de justificar. A experiência dos
tempos modernos demonstrou que os descobrimentos e as invenções são em parte o fruto do gênio
individual e em parte o das ideias e aplicações pré-existentes. Daqui resulta - e é isso
confirmado pela experiência da atualidade - que no momento em que um homem faz uma descoberta ou
inventa um maquinismo, um outro homem, possuidor dos mesmos conhecimentos "e impelido pela mesma
ideia, estava a termo de realizá-la também; é até quase certo, que uma descoberta feita num ponto,
se repetirá dentro de curto prazo, noutros pontos ao mesmo tempo. Um direito exclusivo para o uso
duma invenção poderia assim prejudicar outros direitos prováveis e equitativos e tornou-se
necessário delimitar o período durante o qual o inventor tem o direito de aproveitar os proventos
da sua descoberta. O problema só comporta uma solução empírica, porque é impossível fixar o número
de anos que a proteção deve abranger. Para se marcar uma duração razoável seria preciso entrar em
linha de conta com a média dos intervalos observados entre as invenções idênticas ou análogas
feitas por inventores diferentes. Convém, por outro lado, atender a que os perseverantes esforços
e a prolongada concentração que levaram uma invenção a termo e entrar em consideração com o
período, a avaliar por experiência, do intervalo que será provavelmente necessário para que o uso
exclusivo dum invento assegure uma remuneração adequada aos trabalhos do inventor e aos riscos em
que incorreu. A relação entre o inventor, por uma parte, e a sociedade, por outra, é tão complexa
e tão vaga que se torna impossível encontrar mais do que uma decisão de aproximada equidade.

§ 62. - Falta-nos tratar ainda duma outra categoria de propriedade que poderemos incluir no âmbito
da propriedade incorpórea. Esta categoria de propriedade difere das precedentes em que ela não
assegura nenhum benefício físico, mas assegura um gozo mental - o da sensação agradável que
despertam os aplausos alheios.
Esta forma da propriedade incorpórea é, na realidade, inseparável daquelas que tem por origem os
trabalhos intelectuais. O autor considera o renome que lhe traz a publicação dum poema, dum livro
de história, dum tratado científico, como uma parte e muitas vezes a parte mais preciosa da
recompensa do seu trabalho. Assim como a estima pública se manifesta pelos que revelam qualidades
de originalidade," ou de talento, ou de estudo, assim também censura o plagiário por se enfeitar
com penas de pavão e lesar os interesses e a reputação artística dos autores de que se aproveitou.
A lei não previu este gênero de roubo, para o qual a sociedade estabeleceu já uma penalidade
moral; o mesmo se dá com as descobertas e invenções. A opinião sanciona não só os benefícios
pecuniários colhidos pelo primitivo inventor, como também os elogios que são devidos ao seu
espírito criador e à sua previdência e censura os que tentam interceptar esses benefícios e
louvores fazendo-se passar indevidamente por inventores ou autores da descoberta. Um acordo
tácito, senão explicito, reconhece o direito ao gozo da estima geral e condena os desonestos que
tentem usurpa-lo. A reputação adquirida é, pois, considerada justamente por uma propriedade
incorpórea.
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 38/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
Ha, porém, uma propriedade incorpórea muito mais importante do que esta; é a que deriva, não dum
triunfo intelectual, mas da conduta moral. Se convém considerar como propriedade incorpórea a
reputação resultante das ações mentais reveladas sob a forma de produção, mais conveniente se
torna ainda considerar também como tais ações mentais que produzem a retidão, a sinceridade, a
temperança, numa palavra, o conjunto resultante duma conduta bem regrada que é a fonte do que se
chama uma boa reputação. Se é culposo destruir a primeira, mais culposa se torna a destruição da
segunda. Ha, por felicidade, pessoas para quem o prazer intimo que lhes recompensa uma boa ação
que praticaram vale infinitamente mais que a posse de muitos maços de títulos financeiros ou de
obrigações de caminho de ferro. Os homens que moirejando na vida tem sempre em mira a prática de
nobres-seções e que obtém, a título de paga, as homenagens e a cordial simpatia da sociedade,
devem gozar de tanto direito a essas recompensas como as que lhes competiriam por uma industriosa
invenção. É isto aplicável a todos os homens em geral e não somente aqueles que possuem
extraordinários méritos morais. Cada qual tem direito a este bem, (bem que sem repetir a banal
frase de Vago, ultrapassa todos os outros) na proporção em que houver adquirido legítimos títulos
a uma reputação dignificante.
O produto da boa conduta diferencia-se num ponto capital dos demais produtos do espírito: pode-se
fazer perdê-lo ou pode-se fazer diminuí-lo, mas o espoliador não poderá nunca se apropriar dele. É
esse talvez um dos motivos por que se costuma classificar a interdição de prejudicar outrem na sua
boa reputação entre as interdições que dimanam da beneficência negativa e não das que dimanam da
justiça, o que prova que não é sempre possível respeitar sem quebra a classificação da moral em
secções distintas.
Contudo, uma boa reputação adquire-se por atos exercidos a dentro dos limites prescritos e resulta
mesmo em parte do respeito desses limites, pois que um homem que destrua total ou parcialmente uma
boa reputação assim adquirida por outro, prejudica a vida do primeiro de uma forma que ele não
prejudica a sua: é, portanto, permissível concluir que o direito à reputação é um corolário da lei
de igual liberdade. O indivíduo lesado, exerce por vezes, como sucede entre gente vulgar, a
represália sob a forma de recriminações e de palavras grosseiras. Lembraremos, porém, que,
consoante ficou demonstrado no capítulo VI, a lei de igual liberdade, bem interpretada, não tolera
nenhuma retribuição de prejuízos: tanto reprova as represálias físicas como as represálias morais.
Deste modo, a destruição de uma boa reputação, muito embora o caluniador se não possa apropriar
dela, constitui uma violação da lei de igual liberdade, com título idêntico ao do incêndio de uma
casa alheia ou ao da destruição do vestuário de outrem.
Este raciocínio é unicamente aplicável à reputação legitimamente adquirida e deixa de o ser se ela
for resultante do charlatanismo ou da hipocrisia e viver apenas à custa da ignorância alheia. Não
se viola, portanto, a lei de igual liberdade deprimindo a reputação de outrem pela divulgação de
fatos mal conhecidos e que lhe não são favoráveis: essa divulgação tira apenas a um homem o que
ele não tinha direito a possuir. Como quer que seja encarada, essa divulgação não pode assemelhar-
se aos atos que privam outrem de uma reputação legitimamente adquirida. Em frequentes casos é até
útil a segurança dos outros e pode ser ditada pelo desejo de prevenir os atentados que poderiam
ameaçar as reputações legítimas e sólidas. Se a lei as considerar puníveis como o são os atos que
privam de uma reputação legítima, não me parece que a moral sancione as penalidades infligidas.
Resta-nos fazer referência aos atos reprováveis das pessoas que contribuem para propagar a calúnia
repetindo afirmações injuriosas sem se darem ao trabalho de lhes verificar a exatidão. Na
atualidade, a opinião pública não liga importância alguma aos que espalharam boatos, sem
informação segura, ou sem ao menos lhes medirem as probabilidades: tempos hão de vir em que se
acabará por se chegar ao convencimento de que é impossível desculpar um tal procedimento. De
resto, a lei não os desculpa e prescreve penalidades para eles quando envolvem ofensa ou prejuízo.
Como nos casos precedentemente observados, a lei tem progressivamente validado as exigências
éticas que acabámos de deduzir. Remonta a eras antigas a interdição do falso testemunho levantado
contra outrem.
A lei romana (J. Paterson. The Liberty of the Press, Londres, 1880, pag. 154-5) condenava a
calúnia mesmo a respeito de pessoas mortas. Nos graus inferiores da civilização, o castigo dos
caluniadores protegeu principalmente a reputação dos superiores: assim o código budista (J.
Paterson, The Liberty of the Press, Londres, 1880, pag. 181, nota) punia com severas penas as
injúrias dirigidas aos membros da casta mais elevada. Nos primitivos tempos da Europa deixava-se
às pessoas altamente colocadas o cuidado de defenderem pelas armas o seu renome e os seus bens.
Posteriormente, a lei protegeu os homens das classes inferiores, que não tinham o recurso ao
duelo, contra as calúnias que lhes fossem assacadas. Essa regalia jurídica foi-lhe concedida, pela
primeira vez na Inglaterra, no reinado de Eduardo I, tornando-se depois acentuada e ampla no
reinado de Ricardo II. Cessando de ser uma lei para benefício de uma classe privilegiada, a lei
contra a calúnia tornou-se numa lei posta à disposição de todos e, na atualidade, é constantemente
invocada com êxito, com um êxito até excessivo, talvez, por que não é raro os tribunais
equipararem uma crítica equitativa com uma calúnia.
Do que deixámos dito no presente capítulo se vê que mais uma vez foi incorporada na lei, uma
conclusão que dimana do princípio fundamental da equidade.

CAPÍTULO XIV

O direito de dar e de legar

filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 39/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
§ 63. - O direito completo de propriedade implica o direito de alienação; com efeito, a sua
interdição parcial ou total atribuiria implicitamente à autoridade de que essa interdição imanasse
um direito de propriedade parcial ou total que limitaria ou anularia o direito individual de
propriedade. O reconhecimento do direito de propriedade implica pois o do direito de doação. O
direito de doação tem raízes tão profundas como direito de propriedade de onde ele imediatamente
deriva. Quando estudamos as condições da sustentação do indivíduo e da espécie vimos, por um lado,
que a conservação do indivíduo depende da manutenção habitual das relações naturais entre o
esforço e os produtos do esforço e, por outro lado, que a conservação da espécie depende da
cedência que os pais fazem aos seus filhos menores de uma parte desses produtos, umas vezes sob a
forma bruta, outras depois de lhes terem dado uma adequada preparação. A vida das espécies,
incluída nelas, a espécie humana assenta sobre a faculdade de dar o que se adquiriu.
A razão que justifica a doação feita aos filhos menores, não é aplicável às doações a estranhos.
Com relação a estas, diremos que é, conjuntamente, um corolário do direito de propriedade e um
corolário do princípio fundamental da justiça. O duplo ato de dar e de receber só interessa ao
doador e ao donatário e não entrava em nada a liberdade de agir dos outros homens. Conquanto a
alienação em favor de B de um bem possuído por A possa afetar C, D, E, etc., sustando certas
atividades que eles pretendiam realizar, isso não implica que se possam confundir atividades
contingentes e dependentes de um acontecimento incerto com as atividades que se não podem violar
sem que haja agressão; as esferas de ação de C, D e E ficaram intactas e, por isso, a doação feita
a B não constitui uma lesão nas suas atividades.
Se apenas a expediência devesse decidir do direito de dar aos outros que não sejam os filhos,
poder-se-iam invocar ponderosos motivos que nos conduziriam à rejeição do direito ilimitado de
dar. Pesando cuidadosamente os argumentos e testemunhos apresentados pela Sociedade da Organização
da Caridade e analisando os resultados provenientes das armadilhas às pequenas esmolas, seriamos
levados a acreditar que a caridade, assim chamada indevidamente, causa maiores males do que todos
os crimes juntos. Mas a crença na legitimidade do direito de dar esmolas está tão universalmente
espalhada, que ninguém pensa em contestá-lo invocando motivos de expediência aparente.
A legislação sanciona nitidissimamente este corolário da liberdade de dar derivado da lei de igual
liberdade. É provável que não exista lei alguma que afirme expressamente o direito de dar; é,
porém, inútil o trabalho de investigar esse ponto, bastando-nos citar uma lei de Isabel (Leis do
13º ano de Isabel, cap. 5º, e lei do 29º ano, cap. 5º) que implica o reconhecimento desse direito.
Com efeito, declarando que um ato de doação pode ser oposto ao doador, mas não pode ser oposto às
reivindicações dos credores, implica que uma pessoa tem o direito de dar o que lhe pertence, mas
que não tem o direito de dar o que, equitativamente pertence a outrem.

§ 64. - O direito de dar envolve o direito de legar, pois que o legado não é senão uma dádiva
retardada. Quem pode legitimamente alienar os seus bens, pode legitimamente fixar a época em que a
tradição se há de efetuar. Quem aliena por testamento, efetua, em parte, a alienação, mas
estipulando que essa alienação não surtirá os seus efeitos completos se não quando expirar o prazo
em que o testador cessa de ter o poder de possuir. O seu direito de propriedade importa o direito
de subordinar uma doação a esta condição; aliás o seu direito de propriedade seria incompleto.
A equidade não permite, portanto que se submeta a restrições a decisão que um testador faz dos
seus bens, quer essas restrições digam respeito a designação dos legatários, quer à fixação das
partes que o testador lhes marca.
Se um grupo de homens, agindo em virtude da sua capacidade corporativa, decidem que o testador
deve dar ou não dar a B, ou que deverá dar a A e a B, etc., numa proporção determinada, esses
homens arvoram-se em coproprietários do testador; coagem-no às disposições que eles preferem e
desviam-no das disposições que tinha em vista como testador. Mesmo em vida, pois, os seus bens
seriam dessa maneira subtraídos à sua posse na medida em que o seu poder de testar fosse
circunscrito.
Está geralmente admitido que o homem civilizado goza de uma soma de liberdade superior à do homem
pouco civilizado; assim, relativamente ao direito de legar, vê-se que ele apenas aparece
indefinido e vago nos primeiros tempos, desenvolvendo-se depois gradualmente. Antes que a lei se
constitua, o costume, que não é menos peremptório do que ela, prescreve de ordinário os modos de
transmissão hereditária da propriedade.
Na maioria dos Polinésios, a herança vai para o primogénito. Em Sumatra, os bens são partilhados
pelos filhos varões. Os Hotentotes e os Damaras impõem a primogenitura na linha masculina. Na
Costa do Ouro e nalguns pontos do Congo, os parentes podem herdar na linha feminina. Nos Eghas e
povos vizinhos, a herança do filho mais velho compreende as mulheres de seu pai, com excepção da
mãe do herdeiro. No Tombutú, a parte de um filho é dupla da de uma filha; os Ashantis, e a maioria
dos fulahs, quase sempre, admitem à sucessão os filhos adotivos e os escravos: estas raças
africanas superiores gozam pois de uma certa liberdade de testar. Na Ásia, o costume dos Árabes,
dos Todas, dos Ohonds, dos Bodos e dos Dirnals é o da divisão da herança por todos os filhos. Os
filhos de uma irmã podem herdar os bens de um Kasia; pelo pouco que se sabe a respeito dos Karens
e dos Mishmis, o pai tem a liberdade de dispor dos seus bens como melhor entenda. As primitivas
raças europeias proporcionam-nos exemplos análogos. Segundo Tácito, os antigos Germanos
desconheciam o testamento. Belloguet chega à conclusão de que nem o costume céltico, nem o costume
germânico admitiam o direito de testar e o mesmo se dava, na opinião de Kcenigswarter com os
Frisões. Quando o regime da propriedade primitiva da comunidade aldeã se transformou em regime de
propriedade familiar, os filhos e os demais parentes do defunto adquiriam um direito aos bens
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 40/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
abandonados. No período Merovíngio, era permitido o dispor em testamento da propriedade
mobiliária; as terras, porém, só poderiam ser legadas quando não houvesse herdeiros forçados. O
feudalismo, herdando estes usos e impondo a cada vassalo a obrigação de contribuir com o seu
contingente de homens convenientemente armados e comandados, inspirou-se neste último modo de ver
para regular a transmissão da terra por morte do possuidor e repeliu o direito de testar com
correspondentes restrições. Graças às mais livres formas das relações sociais, o industrialismo,
desenvolvendo-se, proporcionou-nos maior liberdade na disposição dos nossos bens, principalmente
nos países onde o espírito militar menos se manifesta, que são a Inglaterra e a América. Na França
e em outros estados europeus, a lei restringe a liberdade do testador, preceituando a forma por
que há de ser feita, post mortem, a partilha dos seus bens entre os membros da família. Na
Inglaterra, a partilha testamentária dos bens mobiliários não é sujeita a restrição alguma; quanto
aos bens imobiliários é limitado e não é reconhecido senão sob certas condições. Manifesta-se,
contudo, uma certa tendência a libertá-lo deste entrave.

§ 65. - O direito de propriedade implica pois, conjuntamente, o direito de dar e o de legar, e


reconhece ao proprietário de quaisquer bens o direito de os deixar em proporções definidas a
legatários especificados. Mas de tal, por nenhum modo é licito concluir que a ética o autorize a
prescrever o uso que os legatários hajam de fazer quanto a esses bens.
Apresentada sem subterfúgios, a proposição de que um homem possua, seja o que for, depois tia sua
morte - é patentemente absurda; não obstante, sob um disfarce de forma, o direito de propriedade
póstuma foi largamente reconhecido e sancionado em épocas distantes e é-o ainda, e por um
considerável modo nos nossos dias, sempre que a lei respeita a vontade do testador na parte em que
ela estabelece restrições ao uso livre dos bens deixados. A imposição desses entraves implica a
continuação dum certo poder sobre os bens e um prolongamento do direito de propriedade que
absolve, no todo ou em parte, o direito dos herdeiros.
Raras pessoas haverão, que contestem a afirmativa de que a superfície da Terra e bem assim tudo o
que sobre a terra assenta devem ser propriedade plena da geração existente. A interpretação do
direito de propriedade, - quando permita a uma geração que prescreva às subsequentes os usos a que
tenham de consagrar a superfície da Terra, ou o que nela assenta, - deixa de ser equitativa. O
mesmo acontece quando as gerações presentes se submetem às restrições que lhes foram impostas
pelas anteriores.
Estas conclusões mais se vincam, remontando a afinidade que existe entre o direito de propriedade
e as leis que regem os fenómenos da vida. Como tivemos ocasião de mostrar, a condição fundamental
da conservação da espécie é a de que: cada indivíduo colha os benefícios e experimente as
contrariedades resultantes das boas ou más ações da sua conduta; a condição básica da continuidade
da sustentação e a de que, sempre que se realize um esforço, o produto desse esforço não seja
interceptado nem desviado. Visto que esta necessidade biológica nos faculta a justificação
fundamental do direito de propriedade, segue-se que tal condição de vida cessa quando a vida
cessa.
Estritamente interpretado, o direito de doação sob a forma de disposição testamentária, não se
estende, pois, a mais do que aos bens transmitidos e não abrange as restrições impostas ao uso
desses bens.

§ 66. - Este direito tem, não obstante, outras restrições que resultam do fado de existirem, ao
lado das relações entre cidadãos adultos, relações também de pais para filhos menores. A moral da
família e a moral do Estado são, como vimos, de natureza oposta: quando as duas morais entrem em
competência, verbi grátia por ocasião da morte dos pais, torna-se necessário encontrar as bases
duma compensação mutua.
Se a vida humana fosse normal, se não se dessem nela as anomalias próprias dos estados
transitórios, a dificuldade apontada raramente surgiria, por isso que a morte dos pais dar-se-ia
quando as crianças tivessem atingido já a idade adulta: os bens que lhes deixassem poderiam nesse
caso ser entregues à sua plena posse e sem restrição alguma. Todavia a morte dos pais nas
circunstâncias presentes, deixa frequentemente os filhos em idade de não poderem gerir por si
próprios as suas pessoas e bens; afim de assegurar o bem-estar da sua menoridade os pais, no
intuito de cumprirem as suas obrigações no grau que lhes é possível, veem-se forçados a
especificar o uso que será feito dos bens deixados. Sendo os produtos dos esforços humanos
possuídos não somente na mira do sustento do eu, mas também na do sustento da progênie, segue-se
que se o progenitor tiver um fim prematuro os produtos por ele adquiridos podem, com justo título,
ser deixados com o intuito de prover à prole. Como os pais ficam inibidos pela morte de
praticarem, no interesse dos filhos, a gestão dos bens, tem esta de ser confiada a terceira
pessoa: o prolongamento de propriedade que este mandato implica para quem o estabelece, deve
naturalmente acabar quando os filhos cheguem a maioridade.
As disposições testamentárias realizadas com o propósito de assegurar o futuro dos filhos menores
tornam precisa a fixação da idade em que eles se tornam capazes de gerir as suas pessoas e bens.
Para tal fixação, porém, de nenhum auxílio servem considerações morais, que apenas esclarecem este
ponto: que o prolongamento de propriedade resultante de restrições que os pais falecidos hajam em
vida marcado relativamente a administração, etc., dos bens transmitidos a filhos menores, não deve
ultrapassar a idade na qual, consoante as indicações usuais da experiência, estes últimos
ultrapassam o limite da menoridade. Esse limite varia conforme o tipo humano, entre os povos de
idêntico tipo, e até de indivíduo para indivíduo.
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 41/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt

§ 67. - Surge agora um assunto mais embaraçoso ainda. O princípio último da justiça infra-humana e
da justiça humana deriva das condições necessárias para a conservação do indivíduo e da espécie;
das condições dessa conservação derivam também o direito de possuir durante a vida e o
prolongamento desse direito para além da morte, que as disposições testamentárias em favor dos
filhos menores implicam. Fazer, porém, derivar das referidas condições o mais extenso direito de
prescrever o uso que será dado aos bens transmitidos, afigura-se impossível. O mais a que se
poderá chegar, será a uma transação de natureza puramente empírica. O princípio fundamental da
justiça não sanciona direito algum de propriedade póstuma, a não ser no caso precitado. Mas, por
outro lado, tratando-se de bens adquiridos á custa dum trabalho incessante e dum grande dispêndio
de talento do qual haja advindo não só proveito individual para quem o possuía mas também proveito
coletivo, graças a uma invenção que preste serviços permanentes à humanidade, - parece dureza
imerecida recusar inteiramente aos proprietários nestas condições o direito de estatuir certas
condições que produzam efeito post-mortem, principalmente se, por não ter filhos, estiver colocado
na alternativa de deixar os seus bens ab-intestato ou de os transmitir a estrangeiros.
Uma distinção se impõe. O detentor de terras sujeitas ao direito de propriedade suprema da
coletividade - direito que, conforme vimos, é justificado conjuntamente pela ética e pela lei
inglesa - não pode, equitativamente, prescrever disposições que envolvam a alienação permanente do
direito da coletividade. Porém quanto à sucessão mobiliária, o assunto muda de aspecto, por que
são numa diferente categoria os bens adquiridos pelo produto de esforços e pelo fruto da aplicação
desses esforços a matéria bruta adquirida a preços que equivalem e representam uma soma de
trabalho ou de economia feita nos salários: esses bens são possuídos em virtude da relação imposta
pela justiça entre os atos e as suas consequências e representam a porção não consumida do que a
sociedade pagou a um indivíduo como remuneração do seu trabalho. Se ele pois quiser transmitir
essa porção a sociedade por intermédio de um dos seus membros ou de uma agremiação é razoável
consentir-lhe que especifique as condições ás quais ele entenda dever subordinar a aceitação da
sua deixa. Procedendo assim, não aliena coisa alguma que pertença a outrem; pelo contrário, os
outros homens é que recebem uma coisa para a qual não tinham direito algum e colhem um benefício
ainda mesmo quando sejam obrigados a dar a essa coisa um emprego previamente estipulado. No caso
de se considerarem as restrições impostas como prejudiciais, tem o fácil recurso do repudio.
Todavia, os bens mobiliários deixados com especificações restritivas, podem num determinado
momento e por virtude de mudanças sociais, deixar de ter o uso útil para que foram transmitidos e
aceitos. Neste caso, uma nova transação empírica se impõe ao raciocínio: se é natural que se
conceda ao testador uma certa latitude na especificação no emprego a fazer dos bens que não deixa
aos filhos, é natural também circunscrever essa latitude aos limites que a experiência indique
como de mais eficazes resultados.

§ 68. - Visto que a conservação social prevalece sobre a conservação individual, é logico admitir
a legitimidade da restrição do direito de transmitir post-mortem, restrição que resulta da
necessidade em que o Estado se encontre de fazer face às despesas de proteção e defesa dos
cidadãos e das coletividades em que ele superintende. Nas atuais condições, é relativamente justo
que a comunidade, atuando por intermédio do seu governo, se aproprie da parte proporcional dos
bens de cada cidadão que seja reclamada pelos cuidados da defesa nacional e da ordem social. As
circunstâncias é que ditam a maneira pela qual essa necessária apropriação deverá ser efetuada.
Não há razão ética alguma que se oponha aos motivos de conveniência que exigem que uma parte das
receitas públicas provenha das quotas lançadas sobre as aquisições por transmissão.
Relativamente ainda a esta restrição, acentuaremos que as deduções da lei de igual liberdade atrás
formuladas, são corroboradas pelas atuais disposições legislativas e que a harmonia entre as leis
da ética e as leis escritas se acentua, neste particular, cada vez mais.
O direito de dar que nos tempos primitivos não era uniformemente admitido, obteve com o andar dos
tempos a sanção tácita das leis que o limitam aos bens legitimamente possuídos. Mal esboçado e
confusamente reconhecido nos antigos estados sociais, o direito de legar firmou-se e expandiu-se
com o desenvolvimento da liberdade individual. São as instituições inglesas, e as americanas das
inglesas procedentes, que mais larga sanção legislativa lhe tem dado. A lei autoriza a instituição
de restrições nos bens transmitidos a filhos menores, instituição que a ética sanciona. Outras
leis, como as de mão-morta, restringem essas especificações no que respeita aos bens transmitidos
a outrem que não sejam menores; e essa restrição é também sancionada pela ética.

CAPÍTULO XV

O Direito de Trocar e Contratar livremente

§ 69. - Uma simples substituição de termos permitir-nos-á repetir aqui, a respeito do direito de
troca, os mesmos raciocínios que fizemos no início do capítulo anterior acerca do direito de
doação, e isto porque, afinal, uma troca é a mútua compensação de duas doações.
Esta interpretação afigurar-se-á à maioria dos leitores como uma fantasia; não o é, porém, visto
que o exame dos fados a impõe. Embora os povos mais atrasados não compreendam unanimemente o que
seja uma troca, todos eles, sem excepção, admitem que se façam presentes, e com este costume vem a
desenvolver-se a concepção da conveniência de oferecer um equivalente àquele que se recebeu.
Encontram-se em numerosos livros de viagens bastos exemplos desta concepção. Da mutação de
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 42/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
presentes equivalentes deriva natural e facilmente a prática de constantes trocas nas quais, a
ideia dos presentes acaba por se apagar.
Porém, mesmo sem fazer do direito de troca um corolário do direito de doação, claro é que um e o
outro estão compreendidos no direito de propriedade, pois que a propriedade de uma coisa ficaria
incompleta, se essa coisa não pudesse ser alienada e substituída por outra coisa recebida.
O direito de troca pode também justificar-se a título de dedução direta da lei de igual liberdade.
Quando dois homens efetuam voluntariamente uma troca, nenhum deles assume uma liberdade de ação
superior à do outro, ambos respeitam os direitos de outrem e deixam ao resto dos homens a posse de
igual soma de liberdade de ação. Conquanto a realização de uma troca possa obstar a que vários
deles façam operações que lhes seriam vantajosas, a faculdade de as praticarem dependia do
consentimento de um outro homem e não faz parte da sua esfera de ação normal. Essa esfera de ação
permanece igual à que teriam se os dois contratantes não existissem.
Por mais evidente que seja a legitimidade do direito de troca, a lei só tardiamente veio a
reconhecê-la e está longe de um universal reconhecimento. Os chefes dos Polinésios intervêm nas
trocas de múltiplas maneiras: nuns tem o monopólio do comércio com os estrangeiros; noutros fixam
os preços, noutros marcam a duração do dia de trabalho. O mesmo acontece na África. Os chefes dos
Bechuanas e dos negros do interior gozam do direito de preempção em matéria comercial; nenhum
contrato é valido sem o assentimento real. Nos Ashantis, só à rei e os grandes tem o direito de
tráfico. Em Shoa, o rei tem o exclusivo da compra de certos artigos. Os Congoleses, os Dahomeanos
e os Fulahs têm chefes comerciais que regulam as compras e as vendas. Entre os Hebreus, os
Fenícios, os antigos Mexicanos e os habitantes da América Central notam-se também restrições
análogas. Os membros de algumas tribos americanas, como os Patagões e os Mundrucus, precisam de
consentimento dos chefes para se dedicarem ao comércio. É inútil relacionar os fados semelhantes
que na Europa restringiam a liberdade mercantil e que remontam à época em que Diocleciano fixou os
salários e os preços: a única circunstância a notar é a de que a regulamentação das trocas vai
sucessivamente afrouxando à medida que o progresso se desenvolve. Os obstáculos têm diminuído
sucessivamente e, nalguns casos desapareceram por completo para os membros que façam parte de uma
mesma sociedade; tem sido mesmo suprimido em parte entre membros de sociedades diferentes. As
ingerências tornaram-se cada vez mais reduzidas ao contato com o desenvolvimento do tipo
industrial e das instituições livres que na Inglaterra acompanham de ordinário esse
desenvolvimento.
Convêm, todavia, salientar que nos acontecimentos que em Inglaterra deram causa à implantação de
uma liberdade comercial quase incompleta se tem invocado de preferência razões políticas a motivos
de equidade. Na agitação contra a lei dos Cereais só muito vagamente se invocou o «direito» do
livre câmbio. Atualmente mesmo o que mais se censura aos protecionistas, tanto em Inglaterra como
no estrangeiro, não é a falta de equidade, mas o caráter ilusório da sua política. Não é, pois,
para admirar que as massas populares inglesas não reconheçam ainda a liberdade das trocas em
matéria de trabalho e de salários. Obcecados pelo que reputam o seu interesse, os operários
recusam tacitamente ao contratante e ao contratado o direito de discutirem a soma de numerário que
há de ser paga como retribuição do seu trabalho. A lei, neste particular, adiantou-se à opinião,
assegurando a cada cidadão a liberdade de pactuar à sua vontade nos contratos que tenham os seus
serviços por objeto. De modo que o direito escrito assegura já esta liberdade contra a qual
numerosos cidadãos protestam ainda.

§ 70. - O direito à liberdade dos contratos confunde-se com o direito à liberdade das trocas; a
transformação do direito de trocar em direito de contratar opera-se por um adiamento do
cumprimento duma troca, ora subentendido, ora expresso.
Para exemplo citaremos os contratos de serviços concluídos, em condições certas, os contratos de
uso da terra e das habitações, os contratos tendo por objeto a execução de trabalhos
especificados, os contratos de empréstimo de capitais, que são todos espécimes de contratos que os
homens podem livremente realizar sem praticarem nenhuma agressão, tendo, portanto, o direito de os
discutirem e ultimarem.
Nos tempos idos, as restrições ao direito de trocar tinham por naturais companheiros as restrições
ao direito de contratar como o atesta a inumerável multidão de leis a respeito de salários e de
preços que de século para século se foi acumulando na jurisprudência das nações civilizadas. Estas
intervenções, enfraquecendo pari-passa com o governo coercivo desapareceram nos tempos modernos,
quase de todo.
Uma dessas graduais modificações, a da lei sobre a usura, pode servir de tipo às restantes; o
pagamento de juros por um empréstimo de capital era interdito pela legislação de vários povos que
só realizaram frouxos progressos para a organização de instituições livres. Verifica-se isso nos
Hebreus e na velha Inglaterra, na França da época do predomínio do absolutismo monárquico. Com o
decorrer do tempo, nota-se a introdução de atenuações dessa restrição absoluta, sob a forma de
fixação do juro máximo: Cicero estabeleceu-o na sua província; na Inglaterra Henrique VIII
arbitrou-o em 10%; Tiago I, em 8 %, Carlos II e a rainha Ana em 6 %; em França, sob Luiz XV, foi
fixado em 4 %. Posteriormente, desapareceram todos esses diferentes entraves e os contratantes
adquiriram a liberdade de pactuarem à vontade.
A lei foi-se, portanto, aproximando gradualmente da equidade. Há, todavia, um caso excepcional em
que ambas se encontraram de acordo para pronunciarem uma interdição comum e que é a referente ao
caso em que um homem vendesse a sua própria pessoa, tornando-se escravo. Remontando à origem
biológica da justiça, verificamos, que a servidão quebra as relações que devem ser mantidas entre
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 43/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
os produtos dos esforços empregados com o fim de se assegurar a continuação da vida. O homem que
para colher um benefício imediato reduz a sua pessoa à escravidão, coloca-se assim em oposição com
o princípio fundamental de toda a moralidade social. No ponto de vista imediato da ética, um
contrato só se conforma com a lei de igual liberdade quando cada uma das partes entrega
equivalentes exatos ou aproximados. É, portanto, evidente que, no sentido rigoroso dos termos, não
pode existir um contrato cujas condições sejam incomensuráveis e é isso que se dá quando um homem
a troco duma imediata vantagem abandona a outra a sua existência. A lei, recusando-se a reconhecer
a validade dum tal contrato, e proibindo-o, estabelece para a liberdade dos contratos uma excepção
moral que a moral impõe. A lei e a ética harmonizam-se, por conseguinte, relativamente a este
assunto, mais uma vez.

§ 71. - Os direitos de trocar e de contratar devem, como os outros direitos, sujeitar-se às


restrições impostas pelos cuidados da conservação social, exposta aos ataques dos inimigos
exteriores. É legítima a suspensão da liberdade de trocas quando ponha em perigo a defesa
nacional.
Esta delimitação torna-se, claro é, muito maior nos períodos em que predomina o tipo militar. As
sociedades que vivem num estado de antagonismo crónico com as outras sociedades, têm de organizar
o seu sistema de trabalho de maneira a que ele lhes baste por si próprio. Em França, nos primeiros
tempos feudais, exerciam-se num mesmo domínio rural os mais diversos misteres e os castelos
fabricavam a quase totalidade dos produtos que neles se consumiam. As dificuldades de
comunicações, os riscos inseparáveis dos transportes e das viagens, os perigos provenientes de
incessantes guerras, tornavam indispensável que cada castelo, cada domínio rural, cada burgo,
soubesse manufaturar os objetos de primeira necessidade. Isto que se dava nos pequenos
agrupamentos, acontecia nos grandes agregados sociais também e por isso as trocas internacionais
sofriam grandes restrições. O lema conservemo-nos independentes» que tantas vezes se bradou
durante a agitação contra a Lei dos Cereais, não era inteiramente destituído de justificação. Só
num período de paz firmemente assegurada uma nação pode, sem risco, comprar fora uma grande parte
da sua subsistência, em vez de a produzir.
A ética sanciona unicamente esta restrição aos direitos de trocar e de contratar. Apenas a
considera válida a ela e classifica como um atentado qualquer outra ingerência no direito de
trocar e de contratar, sejam os seus autores quem forem. O qualificativo de “agressores” pertence
de direito aqueles que se intitulam protecionistas, porque a proibição feita a A de comprar a B
para o constranger a comprar a C, em condições geralmente onerosas, importa evidentemente um
atentado ao direito de livre troca, que vimos ser um corolário da lei de igual liberdade.
O facto primacial a notar é que, na Inglaterra, são invariavelmente razões políticas que, com
predomínio sobre os motivos morais, que têm dado sanção legal para esta dedução ética que a
indução justificava já.

Capítulo XVI

O Direito à Liberdade do Trabalho

§ 72. - Os direitos à liberdade de moção e locomoção implicam, sob um dos seus aspectos, a
liberdade do trabalho; os direitos de livre troca e dos contratos implicam-no também, sob outro
aspecto. Há, todavia, um terceiro aspecto da liberdade de trabalho, que não é incluível em nenhuma
das modalidades de liberdade mencionadas acima e que se torna conveniente especificar. A sua
existência atual está fora de qualquer dúvida; convêm, não obstante, mostrar até que ponto foi
desconhecida, até que nos modernos tempos obtivesse um reconhecimento pleno.
Entendo por direito de liberdade de trabalho o direito que todo o homem tem de se dedicar a
qualquer ocupação, pelo modo que julgue preferível, contanto que não lese a igual liberdade dos
outros homens e que aceite as vantagens ou os inconvenientes que dele resultarem. Tal direito
parece-nos incontestável e evidente, mas nem sempre assim foi considerado, e nem admira que o não
fosse, visto que outros direitos de evidencia maior, eram desconhecidos.
Notemos de passagem que nos tempos afastados, o trabalho estava sujeito a regras que tinham o
carácter religioso: assim, o Deuteronômio (XXII, 8 etc.), prescreve aos Hebreus regras de
construção e de agricultura. Na Europa, as restrições impostas à liberdade de indústria foram
grandes e persistiram enquanto predominou a organização militar que punha em ação todos os meios
para subordinar as vontades individuais. Na velha Inglaterra, o lorde maior verificava os produtos
industriais na Court, Leet e quando a realeza se implantou, promulgou desde logo regulamentos
sobre a época em que deviam ser tosquiados os carneiros e a respeito do amanho das terras e acerca
das colheitas. Depois da Conquista, foi regulamentada a tinturaria. De Eduardo III a Jacques I,
funcionaram comissões especiais incumbidas de fiscalizarem a boa qualidade dos produtos. fixava-se
o número de oficiais que cada patrão podia admitir e impunha-se a cultura de determinadas plantas.
Os curtidores eram obrigados a deixar as pules nas fossas durante um prazo de tempo pré-fixado.
Havia funcionários especiais incumbidos de fiscalizarem e arrecadarem o imposto do pão e da
cerveja. O número destas restrições foi diminuindo à medida que se desenvolveram as instituições
próprias do tipo industrial. Os cinco sextos foram extintos nos inicias do reinado de Jorge III.
Voltaram a vigorar durante o período de guerras suscitado pela revolução francesa, mas
desapareceram outra vez com o restabelecimento da paz e ao ponto de se acabar por suprimir a quase
totalidade das intervenções do estado em matéria de processos de produção.
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 44/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
Pouca importância tem a reação à regulamentação do trabalho, que coincidiu com o recente despertar
do espírito militarista, espírito esse que em Inglaterra é consequência do seu imenso
desenvolvimento no Continente. Este flagelo dos tempos modernos, foi segunda vez dignificado pela
família Bonaparte. De há trinta anos para cá, tem sido publicada numerosíssimas leis prescrevendo
as condições a que tem de sujeitar-se o exercício de certas profissões. Essas leis variam desde a
interdição de tomar refeições no interior das fabricas de fósforos, em sítios que não sejam os
especificados até à regulamentação da construção e limpeza das habitações operarias e à imposição
de serem caiados os fornos dos padeiros e às penalidades aplicáveis aos agricultores que ocupem
crianças que não recebam o ensino primário.
Na França, onde as atividades militares excitadas pelas circunstâncias geográficas e históricas
fizeram com que o desenvolvimento do tipo de estrutura militar se tornasse enorme, as restrições
do trabalho eram mais pormenorizadas e mais rigorosas ainda do que na Inglaterra. No final do
período monárquico atingiram um limite inacreditáveis. «Os funcionários incumbidos de aplicar as
ordenanças eram aos enxames. As ordenanças em vigor eram incessantemente modificadas ou anuladas
por ordenanças novas, no intuito de remediar a insuficiência das antigas. Prescreviam por exemplo,
«o comprimento que deviam ter as peças de tecidos, os modelos a adoptar para elas, o processo para
fabricá-las, defeitos a evitar, etc. A Revolução concedeu ao trabalho uma liberdade maior, mas as
ingerências oficiais voltaram com o tempo a multiplicar-se de novo de modo, que em 1806, segundo
diz Levasseur, regulamentou-se a duração do dia de trabalho, as horas do princípio desse dia, em
conformidade com as estações, as horas de refeição, de descanso, etc. É elucidativo notar que, a
liberdade do trabalho individual seguiu na França o mesmo rumo que as outras liberdades, não
chegando nunca a ser tão extensa como na Inglaterra, onde a conquista da glória não foi um fim tão
predominante e onde a organização militar se não tornou tão acentuada. A ideia de liberdade tem
sempre sido subordinada em França à ideia de igualdade. Os cidadãos, a despeito das exterioridades
duma forma de governo livre, conservaram-se invariavelmente em respeitoso silêncio perante um
funcionalismo administrativo e político que é tão despótico sob a forma republicana como o era sob
a monárquica; por isso a regressão ao tipo completo da estrutura militar tem chegado por vezes a
efetuar-se quase completamente.
Pondo de parte minuciosidades inúteis e fazendo apenas um exame geral dos fatos, verifica-se que
durante a marcha do progresso, e a partir dos estádios primitivos pouco respeitadores da vida, da
liberdade e da propriedade, até aos estados recentes que consideram estas liberdades como
sagradas, caminhou-se dum regime autoritário de regulamentação dos processos de produção para um
regime que deixa ao produtor a liberdade de os escolher como melhor lhe pareça,
As legislações mais respeitadoras da liberdade individual geral são as que mais amplo espaço tem
aberto à liberdade de trabalho no ponto de vista por que a encarámos.

CAPÍTULO XVII

O Direito à Liberdade de Crenças e o Direito à Liberdade de Cultos

§ 73 - Se nos adstringirmos ao sentido literal das palavras que constituem a epígrafe do presente
capítulo, ocioso se torna a afirmar a liberdade de crenças, por isso que autoridade alguma
exterior a poderá destruir. Sob esse aspecto, a sua afirmação implica até um duplo absurdo, porque
tanto a coerção interior como a coerção exterior são impotentes para restringir essa liberdade, ou
destruí-la.
O direito à liberdade de crenças é um evidente corolário do direito de igual liberdade. A
circunstância de uma pessoa qualquer professar uma crença não determina atentado algum a profissão
por outros de crenças diferentes dessa: sempre que outros indivíduos lhe imponham a profissão duma
das suas crenças, arrogam-se manifestamente uma liberdade de ação maior que a dessa pessoa.
A liberdade de crenças é indiscutível contanto que não atentem diretamente contra o normal
funcionamento das instituições existentes. Excepção aberta para algumas sociedades não
civilizadas, verifica-se que as únicas crenças que têm sido interditas são aquelas cuja profissão
parecia pôr em risco a ordem social. Nos tempos e nos lugares onde o tipo de organização militar
domina sem atenuações, estabelecem-se penalidades que ferem todo o indivíduo conhecido por
acreditar e defender que o sistema político ou a organização social em vigor carecem de reforma. É
natural que isto seja assim nas sociedades militaristas, visto que desconhecendo direitos de
fundamental importância, consequente é também que desconheçam outros que, como este, são de
importância, evidentemente menor. O fato de se contestar o direito de dissidência política em toda
a parte aonde a generalidade dos direitos é desconhecida é um seguro argumento para considerar
esse direito como uma dedução direta da lei de igual liberdade.
O direito de professar uma crença religiosa tem por direito concomitante o de manifestar essa
crença pelos atos do culto, quando eles possam exercer-se sem infração dos direitos análogos dos
outros homens e sem infração da conservação da vida. A equidade opõe-se a qualquer intervenção,
contanto que os crentes não incomodem os seus vizinhos como se dá com os toques de sinos
intempestivos e prolongados nalguns países católicos e com o alarido dos cortejos do Exército da
Salvação que, por vergonhosa fraqueza, são consentidos na Inglaterra. As pessoas que professam
crenças religiosas diferentes das da maioria e até os que não professam crença alguma, devem ter a
liberdade de praticar o culto que quiserem, ou de não praticarem culto algum.
A enunciação destes direitos faz-se atualmente na Inglaterra apenas para simetria de argumentação;
aliás seria quase supérflua. Mas a Inglaterra não é o mundo e algumas denegações deste direito
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 45/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
existem ainda em diversos países e mesmo na Inglaterra.

§ 74 - Os selvagens, longe de possuírem a liberdade que a sentimentalidade fantasista de outros


tempos lhes atribui tem crenças que o costume lhes impõe tão peremptoriamente como os outros atos
da sua vida. Na Guiné, estrangulam-se os doentes que se obstinam em não melhorarem a despeito das
predições favoráveis dos feitiços a respeito da cura. Essa penalidade é-lhes imposta como castigo
por contribuírem para que os feitiços mintam. Inútil será acrescentar que ninguém se atreve a
manifestar sobre tal matéria descabidos e perigosos ceticismos. Os Fidjens, adoradores dos deuses
canibais, tinham horror aos habitantes de Samoa por não praticarem o mesmo culto: irritados por
Jakson haver infringido uma das suas interdições religiosas, chamavam-lhe «o branco ímpio» e não
será para admirar que não tolerem no seio da sua gente, opiniões diferentes dos locais em matéria
religiosa. Porque também se não mostram tolerantes acerca de afirmações políticas que ofendam a
divina autoridade dos seus chefes. É esta, pelo menos, a conclusão a tirar dum livro em que
Williams conta que um Fidjen vindo da América pôs a sua vida em risco por lhe terem dito que a
América era maior que Fidji.
As civilizações antigas contestavam frequentes vezes direito à liberdade de crenças. Platão
considera punível a manifestação de crenças diversa da dos gregos. Sócrates morreu da cicuta por
ter atacado as opiniões correntes acerca da natureza dos deuses e Anaxágoras foi perseguido por
afirmar que o Sol não era o carro de Apoio. Passando da época em que era um crime professar o
cristianismo aos tempos em que se tornou um crime professar outra crença que não fosse aquela,
faremos uma única observação a respeito da judicatura dos inquisidores e dos martírios para que
mutuamente se empurravam os católicos e os protestantes - e é que a autoridade exigia unicamente a
submissão exterior, contentando-se com a aceitação nominal da crença e não exigindo provas da sua
aceitação real. Estas perseguições religiosas negavam tacitamente o direito à liberdade de
crenças. Depois do Ato de Tolerância de 1688 que impunha o reconhecimento de vários dogmas
fundamentais, fazendo, porém, uma redução nas penalidades que feriam outras dissidências, a
legislação inglesa foi sucessivamente abrandando em matéria de repressão religiosa. Já não é
defesa aos dissidentes exercerem cargos públicos. Os Católicos primeiramente e pouco mais tarde os
Judeus alcançaram o levantamento dessa interdição. Recentemente, a substituição duma afirmação
pelo juramento deixou de tornar a crença em Deus, expressa ou subentendida, uma condição legal
para o exercício de determinadas funções civis. Cada qual tem a liberdade de pertencer a esta, ou
aquela, ou aqueloutra ou a nenhuma religião. Está-se, por esses fatos, a salvo de qualquer
penalidade legal e a penalidade social em que se incorre é diminuta ou nula.
Paralelas modificações se deram gradualmente no estabelecimento das liberdades políticas. Já se
não pune, nem maltrata quem não aceita um dogma político, como por exemplo, o do direito divino
dos reis ou o do direito ao trono de tal ou tal personagem. Tanto os partidários do despotismo
como os anarquistas confessos gozam de igual liberdade de ideias.

§ 75 - A liberdade de crenças e de opiniões, ou melhor, o direito de as professar livremente não


deve ser submetido a restrições de espécie alguma? Não devemos inferir do postulado de que as
necessidades da conservação prevalecem sobre os direitos dos indivíduos e que convém, em certas
circunstancias, restringir esse direito?
Essa restrição só pode ser invocada com alguma aparência de razão contra opiniões ou crenças que,
quando proclamadas abertamente, tendessem a impedir a sociedade de se defender contra sociedades
hostis. O eficaz emprego das forças combinadas da coletividade pressupõe a subordinação ao governo
e aos agentes por ele designados para dirigirem a guerra; nesse caso é racional admitir que não
seja conveniente tolerar a manifestação pública de opiniões que, generalizando-se, paralisariam a
autoridade administrativa. O regime militarista por que suprime ou suspende tantos outros direitos
individuais, atenta, por vezes, também contra o direito de crer livremente.
Só na passagem gradual do sistema do Estatuto originado em hostilidades tornadas crónicas, para o
do Contrato, que o substitui à medida que o industrialismo adquire predominância, é que deixa de
ser própria e se torna possível os direitos gerais o afirmarem-se. No decurso dessa transformação
sobrevém e avigora-se o direito de cada qual, escolher por si próprio a sua crença, repelindo a
obrigação de aceitar crenças impostas pela autoridade.
A história do direito à liberdade de crenças, assim interpretado, seguiu um caminho paralelo ao
dos demais direitos. Ignorado ao começo, este corolário da lei da igual liberdade, foi sendo
gradualmente reconhecido e implantou-se finalmente nas leis escritas.

CAPÍTULO XVIII

O Direito à Liberdade da Palavra o Direito a Liberdade de Publicação

§ 76. - É difícil separar o assunto deste capítulo da matéria do capítulo antecedente. A crença
não é, em si mesma, suscetível de ser submetida à fiscalização desse poder exterior que só pode
atuar relativamente à sua profissão permitida ou interdita pela autoridade.
Deduz-se disto que a afirmação do direito à liberdade de crenças implica o da liberdade da palavra
e o de cada um se poder servir da palavra para a propagação da sua crença. Como cada uma das
proposições que abrangem um ou mais argumentos destinados à tolerância ou à imposição duma crença,
constitui por si própria uma crença, o direito de exteriorizar essa proposição faz parte do
direito de exprimir a crença que se pretende defender.
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 46/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
Claro é que tanto um como o outro destes direitos são corolários imediatos da lei de igual
liberdade. Ninguém, a não ser que recorra a obstinados clamores, impede outra pessoa de fazer
outro tanto, pelo facto de usar da palavra para explicar ou defender uma crença. Se esse
impedimento se der, não poderia haver equiparação no uso desse direito e, portanto, a lei
fundamental de igual liberdade ficaria violada.
Uma simples mudança de termos permitir-nos-á aplicar o que acabámos de dizer ao direito de
publicação ou, de outro modo que vale o mesmo, à «liberdade ilimitada da imprensa». No exclusivo
ponto de vista ético, nenhuma diferença essencial existe entre o ato de falar, o ato de reproduzir
a palavra pelos símbolos da escrita e o ato de multiplicar os exemplares do que se escreveu.
Os capítulos anteriores estabelecem, não obstante, uma restrição que convêm relembrar e aplicar
aqui. A liberdade da palavra, falada, escrita, ou impressa não abrange a liberdade de usar da
palavra para excitar a pratica de atentados contra outrem. Os limites da liberdade individual que
demarcámos no começo deste livro, excluem evidentemente o emprego da liberdade para tais fins.

§ 77. - Parecerá supérfluo talvez fazer a defesa destes dois direitos - o da liberdade de palavra
e da «liberdade ilimitada de imprensa» nos tempos que vão correndo e num país como a Inglaterra.
É, todavia, de vantagem conhecer os argumentos pelos quais eles eram de antes combatidos na
Inglaterra e são ainda hoje combatidos nalguns países estrangeiros.
Os governos - diz-se - devem velar por que os súditos possuam «segurança e o sentimento de
segurança: Daqui a conclusão de que às autoridades incumbe o dever de terem os ouvidos bem atentos
às declamações dos oradores populares e de fazer calar os que excitem o alarme das massas. Esta
conclusão tem, porém, uma dificuldade. Todas as vezes que uma considerável mudança política ou
religiosa é reclamada, a maioria assusta-se e é afetada por um sentimento de terror que diminui a
sua segurança. Os governos seriam, pois, obrigados a porem um dique à corrente de reivindicações
feitas. Durante a agitação que precedeu a Reforma Parlamentar, uma grande parte da Inglaterra
entrou num estado de alarme crónico e para acalmar esse estado teria sido necessário ordenar a
supressão da agitação. Uma parte do público, impressionada pelas terríveis predições do Standard e
pelos lamentos erguidos pelo Herald, teria de bom grado usado de medidas coercivas que esmagassem
a propaganda da doutrina livre-cambista. Ora deveria ser permitido deixá-los pôr em prática essas
medidas, se a obrigação do governo fosse a de proteger a segurança que essa parte do público havia
perdido. Igual procedimento se justificaria por ocasião das ruidosas discussões que precederam a
abolição de incapacidades que pesavam sobre os católicos para o acesso a cargos civis ingleses, e
doutras. fizeram-se então profecias em barda acerca duma próxima regressão às perseguições
exercidas pelos católicos e ao cortejo de horrores que no passado as acompanharam. Se o dever de
conservar o sentimento de segurança fosse uma obrigação estrita, deveria ter proibido os discursos
e os escritos que precederam essa reforma. A proposição de que é limitável a liberdade da palavra
em matéria política e religiosa só seria defensável se as crenças religiosas ou políticas em vigor
representassem a verdade absoluta. Como, porém, a história do passado demonstra que tal hipótese é
geralmente errônea, o respeito devido à experiência não permite admitir que as crenças correntes
sejam inteiramente verdadeiras. A história, pelo contrário, corrobora a afirmação de que a palavra
tem sido sempre o instrumento de dissipação dos erros. Só um Papa infalível poderia arrogar-se
poderes para introduzir o seu uso.
Outrora, era tido universalmente por necessário que se deviam pôr entraves á enunciação de crenças
religiosas e políticas diferentes das estabelecidas. Estribadas em idênticos motivos, muitas
pessoas consideram como indispensável a imposição de limites para as palavras que ultrapassem o
que se chama a decência ou que tendem a favorecer a imoralidade nas relações sexuais. Este
problema é delicado e não se nos afigura suscetível duma solução satisfatória. Torna-se por seu
lado, indubitável que a licença ilimitada poderia dar como resultado a destruição total ou parcial
de ideias, sentimentos e instituições cuja manutenção é útil para a sociedade: quaisquer que sejam
os defeitos do regime conjugal atual. Temos fortes motivos para acreditar nas suas vantagens
gerais. Vistas as coisas por este aspecto, a publicação de doutrinas que o desacreditassem seria
sem dúvida alguma nociva e deveria ser reprimida. Mas, por outro lado, é preciso não esquecer que
o passado estava convencido de que a propaganda de opiniões heréticas devia ser punida e impedida
de se transformar num instrumento da condenação eterna dos ouvintes. Este fado sugere-nos a dúvida
de que sejam demasiadamente absolutistas as opiniões dominantes acerca das relações sexuais. Neste
particular, sempre e em toda a parte os homens tiveram as suas intransigentes opiniões e os seus
intransigentes sentimentos por tão legítimos, como os que impunham em matéria religiosa e
política. Contudo, se somos nós homens de hoje que temos razão, foram eles os homens do passado
que se enganaram. Embora os ingleses estejam convencidos da iniquidade de casamentos com pessoas
de raças indianas, a maioria dos indígenas do Hindustão não partilha desse modo de pensar. Na
Inglaterra os casamentos de dinheiro são matéria corrente; há, porém, povos a quem repugna
efetuarem uniões com esse intuito. Em determinados sítios da África, não só a poligamia é adotada
pelos homens, mas as próprias mulheres condenam a monogamia. No Tibete, os habitantes adotaram a
poliandria e esta forma de relações sexuais não representa unicamente a opinião local: os
viajantes justificavam-na também como sendo a mais apropriada aquelas desoladas regiões. Em
presença de uma tamanha diversidade de critérios, diversidade existente no seio das próprias
nações civilizadas, convêm que não nos apressemos a considerar como seguras as opiniões e os usos
dominantes, porque não há modo de estabelecer provas suficientemente fortes para levarem ao
convencimento de que essas restrições à liberdade de palavra não constituam um obstáculo ao
progresso para costumes melhores que os atuais.
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 47/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
A este respeito, como a respeito de política e de religião, a liberdade da palavra importa
inconvenientes, mas as reflexões que no decurso dos §§ anteriores fizemos conduzem à conclusão de
que esses inconvenientes devem ser aceites na previsão de possíveis vantagens. De resto, a opinião
pública é até certo ponto um obstáculo a esses inconvenientes. O receio de dizer ou de escrever
coisas que determinem, para quem as propaga, o ostracismo social é muitas vezes um impedimento
mais eficaz que a repressão inscrita nas leis.

§ 78 - Os direitos à liberdade de palavra e de publicação te em uma linha de evolução paralela à


dos outros direitos. Quase desconhecidos, ou não obtendo nos tempos remotos e na maioria dos
países mais do que uma silenciosa adesão, conseguiram implantar-se gradualmente e triunfar por
fim. Eis alguns exemplos que confirmarão a veracidade de que assim aconteceu.
Havendo agora ensejo para salientar de novo alguns dos fados apontados no capítulo anterior, visto
que a supressão de uma crença implica a supressão da liberdade de palavra. São frequentes, na
antiguidade, os casos que significam recusas da liberdade de palavra. A cólera dos sacerdotes
judaicos contra as doutrinas de Jesus Cristo e contra os preceitos contrários à antiga fé que ele
pregava, levaram-no ao Calvário. São Paulo que primeiramente havia sido um perseguidor dos
cristãos, foi perseguido e martirizado por ter querido convencer os homens a converterem-se ao
cristianismo. Na história do império romano encontram-se muitos outros exemplos de pregadores
executados por fazerem proselitismo religioso contrário ao oficial. Implantado o cristianismo,
vemos aparecer a interdição de opiniões contrárias a essa religião que se tornara dominante:
perseguiram-se sucessivamente os que negavam a divindade de Jesus Cristo e os aderentes públicos
ao dogma da predestinação ou do maniqueísmo com os seus dois princípios do bem e do mal.
Posteriormente foram perseguidos Huns e Lutero. Na Inglaterra, a partir do reinado de Henrique IV
editaram-se penalidades severas contra os fautores de heresias. No século XVII o poder castigava o
clero não conformista que se afastara da doutrina da Igreja anglicana e encarcerou Bunyan pelo
facto de a haver pregado ao ar livre. Está ainda na memória de muitos a lembrança do último
processo movido nos tribunais ingleses com fundamento na propagação de ateísmo. Todavia, no
decurso dos últimos séculos, o direito à liberdade da palavra religiosa afirmou-se de mais em mais
e foi sendo gradualmente reconhecido. Hoje não existe em Inglaterra restrição alguma ao direito de
exprimir publicamente qualquer opinião religiosa, a não ser que seja insultante a forma de a
expor.
Um progresso paralelo se efetuou quanto à liberdade de opiniões políticas que os tempos primitivos
se recusavam a reconhecer. No tempo de Solon, vigorou em Athenas, a pena de morte para a oposição
à política deste legislador. Entre os romanos, a exteriorização de opiniões proscritas era
equiparada à traição. Não a muitos séculos ainda que uma crítica política, mesmo moderada que
fosse, era castigada com rigorosas penalidades. Em tempos já mais próximos de nós, verifica-se
alternadamente a expansão da liberdade de opiniões e a vigilância exercida pela lei contra as
doutrinas dominantes. Durante o período de guerras contra a Revolução francês a manifestou-se em
Inglaterra uma tendência retrograda tanto em relação a este como a outros direitos. Um juiz
proclamou em 1880 «que não era permitido tratar quaisquer assuntos a descontento do Governo». Os
primeiros anos do período pacífico que se seguiu, viram decrescer as restrições erguidas contra as
liberdades em geral, compreendida nelas a liberdade de discussão política. É certo que J. Burdett
foi condenado a cadeia por ter protestado contra as excessivas desumanidades cometidas pelas
tropas e que Leigh Hunt esteve preso também por haver apontado à execração pública o abuso das
varadas na armada, mas de então para cá desapareceram, de fato, todos os entraves à manifestação
de ideias políticas. Contanto que se abstenham de impelir ao crime, todos os cidadãos possuem a
liberdade de dizerem o que pensam a respeito das instituições inglesas, quer na generalidade quer
em pormenor. Reconhece-se mesmo a liberdade de propagandear uma forma de governo inteiramente
diversa da atual ou de condenar em globo todas as formas de governo.
A crescente aceitação do direito à liberdade de palavra, foi naturalmente acompanhada pelo
crescente reconhecimento do direito à liberdade de publicação. Platão considerava a censura como
precisa para sustar a difusão de doutrinas não autorizadas. Na idade média, o poder eclesiástico
suprimia os escritos que reputava heréticos. No reinado de Isabel a publicação dos livros dependia
de prévia autorização e o próprio Parlamento pôs em vigor o sistema de censura contra o qual
Milton dirigiu o seu protesto célebre. Há, porém, dois séculos, que a censura oficial desapareceu
e as numerosas disposições a que se recorreu para arrolhar a imprensa, foram ab-rogadas ou caíram
pouco a pouco em desuso.

§ 79. - Nestes dois direitos, como nos estudados precedentemente, a lei de que a conservação
social prevalece sobre a da conservação individual, autoriza a aplicação, às liberdades de palavra
e de publicação, de restrições que em tempo de guerra se tornam necessárias para tirar ao inimigo
as vantagens que dela poderia utilizar.
Como vimos, a ética justifica a subordinação dos direitos mais importantes dos cidadãos, às
exigências da defesa nacional; daí se segue que são igualmente permitidos estes direitos de
importância relativamente menor.
Mais uma vez ainda, salientaremos a conexão direta que existe entre hostilidades internacionais e
a repressão da liberdade individual. No decurso da civilização, nota-se a repressão da liberdade
de expressão e de publicação, tanto mais rigorosa quanto mais acentuado é o predomínio do regime
militar: hoje mesmo, é suficientemente elucidativo o contraste existente entre a Inglaterra e a
Rússia.
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 48/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
Reconhecendo as legitimas restrições dos dois direitos tratados, convêm notar que, conforme se deu
com os outros direitos da lei de igual liberdade, ambos eles principiaram a ser inscritos nas
leis, logo que a sociedade principiou a atingir uma forma superior de civilização.

CAPÍTULO XIX

Exame retrospectivo e argumentação nova

§ 80. - Em toda a parte e sempre que as instituições se colocam em contradição com a natureza,
surge uma força que determina modificações. Ora é a natureza que modifica as instituições, ora são
as instituições que modificam a natureza. A influência das duas é reciproca, por vezes, mas com o
decorrer do tempo, acaba-se por atingir um estado estável.
As ações e reações entre o carácter nacional inglês e as instituições sociais, conduziram a esse
resultado curioso. O espírito de transigência que ditou essas instituições, conquistou o favor do
carácter nacional a ponto de não gozar apenas de tolerância, mas de preferência. Mantemo-nos numa
perpétua desconfiança dos princípios e encaramos como suspeitos todos os sistemas. Assim, é
natural que os cidadãos que proclamam a doutrina da soberania nacional e se mostram concordes com
os homens de Estado que redigem com solicitude os discursos reais das aberturas das cortes em que
os «lords» e os «comuns» são tratados como serventuários do monarca e onde se chama ao povo: «os
meus súbditos», se irritem quando se lhes peça que façam uma política consequente e logica consigo
mesma. Os cidadãos reconhecem os direitos da razão individual em matéria religiosa, mas autorizam
tacitamente o parlamento a subvencionar um culto oficial. Não é por isso de espantar que se sintam
pouco à vontade quando se lhes pergunta como é que eles conseguem conciliar a sua teoria com a sua
pratica. forçados frequentemente a aceitarem doutrinas contraditórias, tomam inimizade a todo o
raciocínio exato em matéria política, revoltam sempre que se faz a tentativa de os firmar em
proposições rigorosas e recuam ante o aspecto desse princípio abstrato como o pavor duma criada
lorpa, que julgasse ver um fantasma.
Não há raciocínios que logrem prevalecer de todo contra estas inveteradas maneiras de ver e de
sentir, produto das condições sociais inglesas. As opiniões delas divergentes, raras, ou nenhumas
probabilidades tem de ser atendidas. Os leitores cujas opiniões se não tenham modificado com os
argumentos miudamente expostos nos capítulos anteriores, por certo não mudarão de ideias, ou
melhor, da falta delas, pelo facto de agruparmos esses argumentos e demonstrarmos que eles
convergem para uma e mesma conclusão. Não obstante, convêm, antes de prosseguirmos, insistir no
acordo que reina entre essas proposições. Restar-nos-á, depois, deduzir delas as naturais
consequências.

§ 81 - As ações inorgânicas escapam à nossa concepção da ética: nenhuma ideia ética formamos
acerca da condensação das nebulosas, do movimento sideral, ou da evolução planetária. Se dos
fenômenos inorgânicos passarmos a abordar o estudo dos seres organizados, também não vemos que a
ética se possa ocupar dos fenômenos da vida vegetal. É verdade que verificarmos que há plantas com
maiores qualidades de resistência, adaptação etc. do que outras, na luta pela sua existência.
Todavia não ligamos a essas qualidades, ideias de aprovação ou de desaprovação. Só quando começa a
aparecer a faculdade de sentir, isto é, no mundo animal é que encontramos campo apropriado para a
ética. Daqui se infere que, no ponto de vista da sua natureza última, a ética, pressupondo a
existência da vida animal, e não adquirindo sentido apreciável senão á medida que a vida toma
formas mais complexas, deve descrever-se em termos aplicáveis à vida animal. Estuda certos traços
na conduta da vida, considerando-os como bons ou como maus e não assenta num juízo definitivo
enquanto ignorar os fenômenos essenciais pelos quais a vida se regula.
O capítulo respeitante à «moral animal» desvendou-nos essa conexão sob a sua forma concreta. Como
vimos, fixando a nossa atenção numa espécie qualquer cuja duração seja desejável, os atos dos
indivíduos dessa espécie que servem para lhes manter a vida e assegurar a da raça, são
classificados por quem os observa como bons relativamente a essa espécie e considerados com uma
certa aprovação, merecendo-nos ao contrário reprovação os atos com diferente tendência. No
capítulo imediato que trata da Justiça infra-humana verificámos a condição previamente necessária
para a realização do fim presumidamente desejável que vem a ser: que cada indivíduo colha os
resultados bons ou maus da sua natureza privativa e das consequências delas derivadas. Vimos
também que não existe no mundo animal inferior, força alguma que ponha obstáculos a esta condição
prévia que determina a sobrevivência dos melhores adaptados. Tivemos, além disto, ocasião de
demonstrar que, sendo, como é, tida por justa essa conexão entre a conduta e as suas
consequências, a justiça no reino animal não é senão um aspecto ético sob o qual se apresenta a
lei biológica em virtude da qual a vida em geral se mantem e evolui para formas superiores, lei
que, portanto, é revestida da mais elevada autoridade possível.
Com a vida em agrupamentos surge uma lei secundaria. Se um certo número de indivíduos vivesse numa
intimidade e proximidade tal que haja facilidade de poderem entravar uns os atos dos outros,
impedir-se mutuamente de atingirem os resultados desejados, os seus atos deverão mutuamente
restringir-se de maneira a prevenirem o antagonismo e a dispersão do grupo que desse antagonismo
resultaria. A realização dos atos de cada indivíduo deve sujeitar-se a uma delimitação tal que não
impeça os atos dos outros indivíduos numa medida superior à do impedimento que cabe a cada um dos
membros do grupo. Como mostrámos, nos animais de agrupamento praticam-se em larga escala essas
restrições. finalmente, no capítulo intitulado «A justiça humana» vimos que esta lei secundaria,
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 49/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
esboçada apenas em contornos vagos nos seres inferiores que vivem em agrupamentos, chegava a
adquirir no homem, que é o primeiro dos seres de agrupamento, aplicações mais pronunciadas, mais
definidas e mais complexas. Submetido às condições que a vida social impõe e afirmando-se em cada
indivíduo, o princípio primário da justiça dá origem ao princípio secundário ou limitativo que se
estende a todos os indivíduos existentes: as restrições mutuas de que o estado de associação
carece para a realização dos atos simultâneos dos associados, constituem um elemento necessário da
justiça.

§ 82 - A adaptação efetuada diretamente, indiretamente, ou de ambas as maneiras cumulativamente,


regeu a estrutura cerebral do mesmo modo que regularizou a estrutura da parte restante do
organismo: as funções mentais tendem, como as físicas, a adaptar-se às circunstâncias ambientes. O
sentimento comum que impele todos os seres para a manutenção da sua liberdade de ação, acentua-se
nos seres de organização superior: estes seres sentem além disso, até certo ponto, a necessidade
que se impõe a cada um deles de agirem sem ultrapassarem os limites impostos pelas ações de
outrem.
Possuindo uma faculdade «de prever e de se lembrar» mais extensa que a dos outros seres superiores
de agrupamento, o homem vai dando mostras cada vez mais nítidas destes dois traços de caráter à
medida que progride a organização social de que faz parte, sendo quase nulas no estado em que o
espírito de luta predomina e acentuando-se nitidamente nos períodos de paz prolongada. Manifesta-
se em toda a parte onde os costumes se isentaram da herança dum conflito crónico entre a moral da
amizade e a moral da inimizade, uma consciência nítida da justiça tanto no que respeita aos
direitos pessoais como aos direitos alheios. Mas em todos os pontos onde os direitos dos homens, à
vida, à liberdade e à propriedade, estão em incessante subordinação, e em que as populações se
organizaram em exércitos para aumentarem o poder guerreiro nos pontos aonde, consequentemente, os
homens adquiriram o habito de calcar aos pés os direitos de outros homens que não habitem outro
território, o costume repele as sensações e as ideias que correspondem aos princípios, egoísta e
altruísta, da justiça.
Aparte, porém, esta restrição, a vida no estado associativo, desenvolve a influência predominante
da simpatia abrindo caminho, é certo, ao sentimento egoísta da justiça, mas proporcionando também
ocasião a que o sentimento altruísta da justiça se exerça e dê origem às ideias a esse sentimento
correlativas. Com o andar do tempo, e à medida que os homens adquirem uma certa consciência moral
dos seus direitos pessoais e dos direitos de outrem, a inteligência vai-se-lhes tornando mais apta
para os compreenderem. Aparecem enfim instituições sociais correspondentes a necessidades cuja
satisfação permite as atividades coletivas expandirem-se harmonicamente: essas instituições
caracterizam-se na sua mais abstrata forma pela asserção de que a liberdade de cada um só pode ser
restringida pelas liberdades análogas de todos.
Este princípio fundamental tem, pois, uma dupla origem dedutiva. Deduz-se, em primeiro lugar, das
condições anteriores à vida completa no estado de associação; e deduz-se, em segundo lugar, das
formas do sentimento consciente que a natureza criou sob influxo dessas condições.

§ 83 - Estas conclusões atingidas por via dedutiva concordam com aquelas a que a dedução nos
conduziu. Os homens, mediante a lição de acumuladas experiências foram levados a formularem leis
em harmonia com os diversos corolários derivados do princípio da igual liberdade.
A guerra não se preocupa com a vida humana, mas a paz atribui-lhe um caráter sagrado e os homens
foram com o tempo chegados a considerar, sem exceção, como atentados, todas as usurpações mesmo as
mais vulgares, dirigidas contra a integridade física. A escravidão esteve, nos tempos primitivos,
quase universalmente espalhada: os progressos da civilização mitigaram-na gradualmente e,
atualmente, já não há nas sociedades mais avançadas restrições para os direitos de moção e de
locomoção. Tendo sido desconhecidos nos primitivos tempos, os direitos ao gozo não interceptado do
ar e da luz são depois reconhecidos pelas leis. Embora durante o período de intenso predomínio da
vida militar, a propriedade coletiva da terra caísse nas mãos do chefe da tribo e dos reis,
tornando-se sua propriedade pessoal, o desenvolvimento do industrialismo conduziu ao
reconhecimento de que o direito à propriedade privada da terra deve, em princípio, subordinar-se
ao direito de propriedade suprema da comunidade e ao de que cada cidadão possui um título latente
a participar do seu uso. Violado sem escrúpulos nos primitivos tempos em que se não respeitavam
sequer os direitos à vida e à liberdade, o direito de propriedade veio sendo de mais em mais
salvaguardado à medida que as sociedades acentuam o seu movimento de avanço. As leis modernas
assegurando com um êxito crescente os direitos da propriedade material, reconhecem e mantem
também, de mais em mais, os direitos da propriedade incorpórea, avigorando progressivamente as
leis relativas aos inventos, à propriedade literária e ao impedimento da difamação e da calunia.
Nas sociedades não civilizadas e nos inícios das sociedades civilizadas, o indivíduo, abandonado
às suas próprias forças, não pó de contar senão consigo mesmo para defender a sua vida, a sua
liberdade e os seus bens; porém nos estados subsequentes, a comunidade encarrega-se gradual e
aumentativamente, de defender esses direitos do indivíduo, fazendo agir o governo instituído por
essa comunidade. A não ser que se julgue a primitiva desordem social superior à ordem relativa que
atualmente reina, torna-se forçoso admitir que a experiência dos resultados obtidos ratifica a
afirmação de todos estes direitos capitais e confirma os argumentos de que nos servimos para os
deduzir.

§ 84 - Á confirmação da experiência, vem juntar-se uma outra de natureza e de significação


filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 50/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
análogas. Ao passo que a comunidade, em virtude da sua capacidade coletiva, se incumbia
gradualmente de salvaguardar os direitos de cada homem das agressões de outrem, cessou, também
gradualmente, de violar ela própria esses direitos que no passado desconhecia.
Os povos não civilizados e os povos de civilização primitiva negavam o direito de legar, ora em
nome do costume ora em nome da lei, ou então, restringiam-no quase inteiramente, mas pelo contato
com industrialismo crescente e com as formas sociais que a este são próprias, as restrições do
direito de legar foram diminuindo até desaparecer quase inteiramente nas nações de mais adiantada
organização industrial. Os governantes das sociedades grosseiras isolam habitualmente o direito à
liberdade de troca pela imposição de monopólios, proibições e restrições; mas as sociedades
modernas têm muito menor ingerência nas trocas realizadas em mercados do interior e a Inglaterra
abstém-se quase inteiramente de intervir em mate ria de trocas com o estrangeiro. Os Estados
europeus regulamentaram a indústria durante séculos ditando os processos que deviam empregar e os
artigos que deviam fabricar: hoje, à parte as leis destinadas à proteção do operariado, todos tem
a liberdade de fabricar como melhor lhes agrade os artigos que mais lhes convenham produzir.
Originariamente, a autoridade regrava as crenças e os cultos; com o andar do tempo foi renunciando
a imiscuir-se nesse assunto e, atualmente as sociedades mais avançadas deixam a cada um a
liberdade de crê r ou de não crer e de praticar um culto ou de não praticar culto algum. O mesmo
aconteceu com os direitos de liberdade de palavra e de liberdade de publicação: desconhecidos no
início da civilização, os que se atreviam a exerce-los eram imediatamente condenados; pouco a
pouco, porém esses direitos obtiveram a sanção das leis escritas.
Os governos deixaram também de intrometer-se noutras categorias de atos privados. Antigamente
regravam o consumo e a quantidade dos alimentos e prescreviam até o número das refeições.
Interdizia-se às pessoas inferiores ás de certas categorias o uso de vestuário de certas cores e
de certos tecidos, as peles os bordados e as rendas; e na mesma ordem de ideias enumeravam as
armas que podiam trazer ou empregar. A lei designava as pessoas autorizadas a serem servidas em
baixela de prata e as que podiam usar cabeleira comprida. A autoridade imiscuía-se nos próprios
divertimentos: eram defesos certos jogos e condenados certos exercícios corporais. Os tempos
modernos repelem estas violações da liberdade individual e admitem implicitamente o direito de
cada um adoptar a maneira de viver que mais lhe quadra.
A não ser pois que se queiram restabelecer as leis sumptuárias e outras análogas e que se reclame
a abolição da liberdade de testar, da liberdade de troca, da liberdade de trabalho, da liberdade
de crenças e da liberdade de palavra, torna-se forçoso reconhecer, uma vez mais que as nossas
deduções da forma da justiça têm sido progressivamente justificadas pela verificação dos efeitos
maléficos da sua violação.

§ 85. - A economia política proporciona-nos toda uma série de verificações indutivas, a que até
agora não fizemos referência.
A economia política ensina que são nocivas as ingerências do Estado, sob a forma de proibições ou
de subvenções comerciais: a lei de igual liberdade condenava já em nome da justiça. A economia
política demonstra as vantagens da liberdade das especulações comerciais, mesmo relativamente a
géneros alimentícios; o princípio fundamental da equidade, justifica esta asserção. A economia
política prova que as penalidades contra a usura, tem funestas consequências. A lei de igual
liberdade havia-as condenado já, por implicarem usurpações dum direito. A economia política
demonstra que as maquinas, longe de serem nocivas para o conjunto da população, contribuem para o
seu bem-estar; a lei de igual liberdade, reprova de acordo com essa ciência, as medidas destinadas
a restringir-lhes o emprego. A economia política, estabelece como princípio que é impossível e
desvantajoso regular artificialmente as tabelas dos salários e as tarifas dos preços; a moral
interdiz também essa regulamentação, em nome da lei de igual liberdade. A economia política chega
noutros pontos ainda, a conclusões que a ética tinha já deduzido. Exemplo: o comercio dos bancos e
a inanidade de esforços para proteger uma indústria à custa das outras.
Que concordância de provas nos dão os casos apontados? provam-nos que a conformidade com a lei de
igual liberdade, assegura o melhor que é possível não só a harmonia, como também a eficácia da
cooperação social.

§ 86. - Convergem, pois, para uma mesma conclusão dois argumentos dedutivos e três argumentos
indutivos. O estudo da lei da vida, tal como ela se realiza nas condições sociais e a prova que
nos dá à expressão do sentimento consciente da moral, fruto da disciplina contínua que a vida
social impõe, conduzem-nos por caminho direito ao reconhecimento de que a lei de igual liberdade é
a suprema lei moral. As conclusões gerais baseadas na experiência comum do gênero humano e
registadas na sua legislação progressiva, levam-nos indiretamente ao mesmo reconhecimento,
porquanto estabelecem que o progresso da civilização teve e tem por efeito um acréscimo gradual da
proteção dos direitos do indivíduo pelos governos e um decrescimento simultâneo e gradual das
usurpações feitas pelos governos a esses direitos. O facto de a economia política recomendar o que
a nossa teoria declara equitativo, vem ainda confirmar mais este acordo.
Lisonjeia-me a esperança de ter facilitado este princípio da quíntupla raiz, provando que os
argumentos a posteriori, fornecidos pela história se harmonizam com os argumentos a priori tirados
da biologia e da psicologia. Se há pensadores a priori que se obstinam em rejeitar as conclusões
que estão em desacordo com as suas opiniões, há também pensadores a posteriori que negam com uma
obstinação igual à dos primeiros o valor das opiniões intuitivas. Tem fé nas cognições que
resultam da experiência acumuladas pelo indivíduo, mas não ligam nenhum credito às experiências
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 51/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
acumuladas pela raça. Evitemos esta dupla intolerância. O acordo da indução com a dedução,
proporciona-nos uma prova de inexpugnável solidez; fortificados pela concordância de numerosas
induções e deduções, foi que nós atingimos a mais sólida certeza que é possível haver.

CAPÍTULO XX

Os Direitos das mulheres

§ 87. - Pus até agora de parte um assunto que ocorria naturalmente ao espírito, nos capítulos em
que nos ocupámos do princípio fundamental da justiça. Vou tratá-lo agora, porque me parece
proporcionar-lhe uma apropriada introdução à matéria de que vamos versar.
Dir-se-á: «Porque é que os homens não hão-de ter direitos proporcionais? Porque é que a esfera de
ação do indivíduo superior, não há de ser mais vasta que a do indivíduo inferior?
Um homem de elevada estatura ocupa mais espaço do que outro de pequeno talhe e tem precisão de
consumir maiores quantidades das necessidades da vida e as suas energias carecem dum campo mais
vasto para se desenvolverem.
A razão não acha conformidade em que as atividades dos grandes e dos pequenos, dos fortes e dos
fracos, dos superiores e dos inferiores sejam confinadas por limites demasiado estreitos para uns
e demasiado amplos para outros.»
A isto responderei em primeiro lugar que nos expomos a perder-nos se interpretarmos à letra as
metáforas a que muitas vezes se é força do a recorrer. Embora tenhamos figurado as liberdades
iguais dos homens como espaços em que elas se desenvolvem e delimitam mutuamente, essas liberdades
não se manifestam na realidade de um modo tão simples. O homem inferior pelo facto de reclamar um
direito igual ao da integridade física do homem superior em nada atenta contra a integridade deste
último. Reclamando igual liberdade de se deslocar e de trabalhar, não impede também o outro de que
se desloque e de que trabalhe. Conservando para si somente os ganhos resultantes do emprego da sua
atividade, de maneira alguma impede o homem superior de se apropriar do produto das suas
atividades, produto que naturalmente ultrapassará o das diminutas atividades do inferior.
Responderei, em segundo lagar que o recusar-se à faculdade inferior uma esfera de ação igual à da
faculdade superior, equivaleria a sobrepor uma enfermidade a outra enfermidade. Um corpo raquítico
ou disforme, de sentidos imperfeitos, um temperamento fraco ou uma inteligência obtusa são somente
motivos fortes de piedade. Se fosse possível acusar a natureza de injusta, teríamos o direito de
dizer que é injusto terem uns faculdades inferiores ás de outros e estarem assim desarmados em
grande parte para o combate da vida. Que dizer, pois, da proposição que pretende que juntemos à
desvantagem de ser dotados de faculdades inferiores à de só dispor de mais restritas esferas para
exercer as suas menores faculdades? A simpatia impelir-nos-ia antes de compensar essas
incapacidades hereditárias com um campo de ação mais extenso. O menos que podemos fazer-lhe é,
evidentemente, conceder-lhe a mesma liberdade de se expandir na medida dos meios que lhe seja
possível empregar.
Ha ainda uma terceira resposta e é que embora fosse equitativo proporcionar as liberdades dos
homens às suas respectivas capacidades, seria impossível fazê-la porque não dispomos de meio algum
para medir nem umas nem outras. A aplicação do princípio de igualdade não oferece, pelo contrário,
na maioria dos casos dificuldade. Se A matar B sem que tenha havido agressão anterior, ou o calcar
aos pés ou o encarcerar, é claro que estes dois homens se atribuíram diferentes liberdades de
ação. Se A não pagar a D o preço convencionado de mercadorias que lhe comprou é obvio que os dois
usaram de graus diferentes de liberdade, por isso que o contrato foi executado somente por uma das
partes contratantes. A atribuição de liberdades proporcionadas às capacidades necessitaria a
determinação do quantum existente de cada faculdade física e mental e a repartição proporcional
das espécies particulares da liberdade que a cada faculdade competirem. Ora não há modo de
executar estas duas operações. Independentemente, pois, de qualquer outro motivo exigir-nos-ia a
prática que considerássemos como iguais as liberdades dos homens quaisquer que fossem as suas
faculdades.

§ 88. - Uma simples substituição de termos permite-nos aplicar estes argumentos à relação que
existe entre os direitos dos homens e os direitos das mulheres. Não vamos fazer pormenorizadamente
a comparação das capacidades duns com as das outras. Não é aqui o lugar próprio para isso e basta-
nos por agora notar o facto incontestável de que algumas mulheres gozam de uma força física
superior à de certos homens e de que outras mulheres gozam de faculdades mentais superiores às do
comum dos homens. Se o quantum de liberdade devesse, pois, regular-se pelas capacidades e se a
operação fosse possível não teríamos de entrar em consideração com o sexo para a partilha.
A dificuldade apresentar-se-ia sob um outro aspecto, se, pondo de parte os casos excepcionais,
tomassem os para base a proposição de que a média das forças mentais femininas é, como a média das
suas forças físicas, inferior à sua média nos homens. Ser-nos-ia impossível também regularmo-nos
por este princípio pois que não haveria modo de estabelecer à proporção que existe entre as duas
médias e de estabelecer exatamente as partes proporcionais das esferas de atividade atribuíveis a
cada uma.
Como já acentuámos, em face de diferenças a estabelecer, a generosidade, que é favorável à
igualdade, impelir-nos-ia de preferência a compensar faculdades menores com facilidades maiores.
Mas, pondo mesmo de parte a generosidade, exige a equidade que se não beneficiarmos
artificialmente as mulheres não devemos fazer nada que artificialmente as prejudique. Se
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 52/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
considerarmos isoladamente os homens e as mulheres como membros independentes de uma mesma
sociedade em que cada um e cada uma deve prover às suas necessidades o melhor que possa,
depreende-se que não é equitativo sujeitar as mulheres a restrições concernentes à ocupação, à
profissão ou à carreira que desejam seguir. É preciso que elas gozem da mesma liberdade que os
homens de se prepararem para os modos de vida que prefiram e de colherem os frutos dos
conhecimentos e das aptidões que adquirirem.

§ 89. - A equidade ordena que as mulheres conservem depois do casamento, de entre os direitos
iguais aos dos homens que antes do casamento devem ter, todos aqueles que não prejudiquem
necessariamente o estado conjugal; tais são, os direitos de integridade física, à propriedade dos
bens obtidos pelo trabalho ou pela sucessão, os direitos à liberdade de crenças e de manifestação
de opiniões, ele. Alguns destes direitos não podem sofrer outra restrição que não seja a
proveniente das cláusulas implícitas ou explicitas do contrato que voluntariamente subscrevam.
Como a condição das mulheres casadas varia conforme os lugares, estas restrições devem
naturalmente variar do mesmo modo. A falta de dados precisos, que só os casos particulares,
infinitamente variáveis podem fornecer, contentar-nos-emos com indicações aproximadas.
Para os bens, por exemplo, não é contrário à razão e à equidade assinar ao marido, todas as vezes
que ele tem a seu cargo o sustento e educação da família, o usufruto dos bens que noutras
circunstâncias pertenceriam à mulher; da carência desta atribuição poderia resultar que a mulher
reservasse para seu exclusivo proveito esses bens e que se recusasse a contribuir para os encargos
comuns do lar. Somente no caso em que ela suporte uma parte igual do encargo de sustentar a
família é que parece justo que conserve um direito de propriedade igual, ou inteiro. Não
pretendemos com tudo que os encargos devam ser absoluta e reciprocamente partilhados. Afigura-se à
primeira vista que no caso, sendo iguais os direitos de propriedade, a sustentação dos filhos e o
custeio das despesas restantes do casal tanto incumbem a um como ao outro dos esposos. Todavia, a
existência de funções onerosas, para uma das partes e das quais a outra está liberta, torna-a
incapaz de realizar uma vida ativa e opõe-se a regime matrimonial. A única coisa possível é um
compromisso variável com as circunstâncias; o cumprimento por parte da mulher dos deveres
maternais e domésticos constituirá de ordinário o equivalente justo dos esforços que o marido faz
para adquirir os recursos necessários ao casal.
Mais difícil é ainda precisar os direitos de fiscalização recíproca dos atos de cada cônjuge e dos
atos comuns do lar. Convêm entrar em linha de conta com as posições relativas de cada um deles no
ponto de vista dos seus serviços, dos bens com que entrou para o casal e da natureza de cada um
destes fatores, que variam infinitamente de caso menor para casamento. É impossível também que o
marido e mulher possam em cada caso particular conformar-se com a lei de igual liberdade, logo que
surjam entre as vontades dos dois conflitos que não possam resolver-se de comum acordo e em que um
só tenha de decidir sobre a conduta a seguir; só na média dos casos essa conformidade será
realizável e, por isso, as circunstâncias decidirão a quem deve conferir-se nos casos conflituosos
o direito de resolver por si só. Acrescentaremos, porém, que a balança da autoridade deverá pender
para o lado do homem, dotado geralmente dum juízo mais ponderado do que o da mulher e, tanto mais
que é ele quem, de ordinário, alcança os meios para realização das vontades comuns e particulares
dos cônjuges. Mas nestes casos o raciocínio tem um limitado império e são de ordinário os
caráteres das partes interessadas que os conseguem. A única influência que as considerações morais
podem exercer é a de temperar o exercício da supremacia que se estabeleceu.
Resta-nos abordar outro ponto que é tanto ou mais complicado que o anterior. Ha nos lares decisões
quase quotidianas a tomar a respeito da educação dos filhos e em caso de separação dos esposos é
forçoso decidir qual deles deve ficar encarregado de os educar e manter. Quais serão então os
títulos relativos do marido e da mulher? Os títulos físicos diretos parecem de igual valor,
conquanto a prolongada nutrição anterior e posterior ao nascimento aumente os títulos da mãe. Por
outro lado, o trabalho do pai é que normalmente, permite à mãe subsistir e alimentar a criança.
Sejam ou não julgados válidos estes todos contraditórios, não parece que o título da mãe possa ser
inferior ao do pai. Em- face do problema da educação, a justiça afigura-se favorável a uma
transação a respeito da qual o raciocínio nos permite dizer isto: convém que a autoridade materna
predomine nas primeiras idades dos filhos e que a do pai predomine depois. A natureza materna
adapta-se melhor do que a paterna às necessidades da primeira e da segunda infância, ao passo que
o pai é um guia mais seguro e mais experimentado para preparar os filhos, especialmente os do sexo
masculino, para a luta pela vida. Mas parece, por outro lado, contrário à equidade e à felicidade
dos filhos que num momento qualquer a autoridade dum dos pais exclua inteiramente a do outro. O
bem dos filhos dá outras indicações ainda para o caso de separação judicial e de conflito dos
titulas a posse deles; efetuar-se uma partilha igual, sempre que for possível, ficando os mais
novos com a mãe e os mais velhos com o pai. É evidentemente necessário procurar sempre uma
transação que só as circunstâncias especiais de cada caso podem ditar.
Acrescentarei que não é urgente nem na Inglaterra, nem na América conceder mais vastos direitos a
mulher no ponto de vista da sua associação domestica com o homem. Nalguns casos o que se faz
sentir é até uma necessidade oposta. Mas há outras sociedades civilizadas que reconhecem os
direitos das mulheres com excessiva parcimônia: entre estas citarei especialmente a Alemanha.
(Entre outras razões que me levaram a formular esta reflexão tenho a da lembrança duma conversa
que ouvi um dia a dois alemães residentes em Inglaterra. Contavam, rindo com desdém, que tinham
visto num domingo, ou num qualquer dia de festa, operários ingleses com os filhos ao colo para
pouparem as forças às mulheres. Às suas chutas senti asco, mas não pelos opera rios ingleses).
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 53/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt

§ 90. - Indiquemos, como precedentemente temos feito para os outros direitos, o largo caminho
seguido pelo costume e pela lei para chegar a conformidade com a ética.
O conjunto das tribos não civilizadas faz tanto caso do direito das mulheres como do dos animais.
Não há excepção senão para alguns povos primitivos que, sem pregarem as virtudes chamadas cristãs,
se contentam com praticá-las e para as raras tribos inteiramente pacificas que se encontram aqui e
além e que, de harmonia com a admirável conduta geral que seguem em tudo, tratam as mulheres com
tanta equidade como doçura. Mas mesmo nas mais degradadas tribos existe o respeito dos direitos da
mulher na medida que permite alimentar e educar os seus filhos: se não existisse esse direito, a
tribo extinguir-se-ia. Muitas vezes, porém o respeito dele reduz-se a um mínimo indispensável para
prevenir a extinção.
O primeiro dos direitos da vida era comumente recusado às suas mulheres pelos Fidjeanos que podiam
matá-las e come-las se lhes apetecesse fazerem-no, pelos Fogueanos e os Australianos mais
selvagens que sacrificavam as mulheres velhas às necessidades da alimentação e pelos numerosos
povos que enviam as viúvas a procurarem e a juntarem-se com os maridos no outro mundo. Nestes
estados inferiores nenhuma liberdade é reconhecida às mulheres que passam uma vida de escravas e
como tais podem ser vendidas: o casamento nesses estados tem o rapto por base. Aonde os costumes
consideram a mulher como um objeto possuído, o direito de propriedade distinto mal pode existir
para ela. Nos inicias da civilização só vagamente pois se reconhece nas mulheres este segundo
princípio fundamental. É verdade que em muitos casos a situação da mulher se modifica pela
influência do sistema de descendência na linha feminina; todavia é certo também que nas sociedades
grosseiras, onde o temor das represálias é a única restrição que existe às agressões entre os
homens, os direitos das mulheres são habitualmente desconhecidos.
Ocupar-nos-ia um largo espaço a pormenorizada filiação do estatuto da mulher. Sem nos determos nas
sociedades antigas em que, como no Egypto, a descendência em linha feminina conferia às mulheres
uma situação relativamente elevada, bastar-nos-á notar que nas sociedades que se formaram pela
agregação de grupos patriarcais, os direitos das mulheres, que nos primeiros tempos eram pouco
melhor reconhecidos que entre os selvagens, progrediram gradualmente no decurso dos dois mil
últimos anos. Os Aryas, que cobriram toda a Europa, mantinham às mulheres uma situação de absoluta
subordinação exceto, como refere Tácito, nos casos em que adquiriam uma situação melhor tomando
parte nos perigos da guerra. Os Germanos primitivos compravam as mulheres, e o marido tinha o
direito de vender ou de matar a sua. A sociedade teutónica primitiva e a primitiva sociedade
romana mantinham a mulher num estado de perpétua tutela e tornavam-na assim incapaz dum direito de
propriedade distinto. O mesmo acontecia na Inglaterra primitiva onde os homens compravam as noivas
sem as consultarem sobre o contrato de que eram objeto. Este sistema veio a adoçar-se com o andar
dos tempos pouco a pouco. Em Roma, deixou de ter observância a lei que ordenava que um cortejo
fosse buscar a noiva para a conduzir ao esposo. O direito de vida e de morte extingue-se, mas para
ressurgir depois, como quando Angevino o Negro fez queimar sua mulher. A observação geral dos
fatos mostra que a sujeição da mulher se torna menos radical à medida que a vida se torna menos
belicosa. Com o declinar do sistema do estatuto e com o descobrimento do sistema do contrato, que
caracteriza o industrialismo, melhora a condição das mulheres. As assinaturas femininas que se
encontram a subscreverem os documentos das guildas, esclarecem de curiosa maneira esta tendência,
embora a condição da mulher fora da guilda continuasse quase a mesma do passado. Na Inglaterra e
na América, em que o tipo industrial da organização social está muito desenvolvido, o estatuto
legal da mulher é superior ao do continente europeu, onde o militarismo conserva uma influência
maior. Principalmente na Inglaterra depois do desenvolvimento nos tempos modernos das instituições
livres que caracterizam o predomínio do industrialismo, a condição das mulheres tem-se aproximado
sucessiva e rapidamente da dos homens.
As deduções éticas harmonizam-se, pois, uma vez mais com as induções históricas. Nos capítulos
precedentes vimos cada um dos corolários da lei de igual liberdade afirmar-se de mais em mais à
medida que os homens vão atingindo uma vida social elevada. O mesmo aconteceu relativamente às
mulheres. Com o decurso da evolução adquiriram um conjunto de direitos que primitivamente lhe eram
inteiramente recusados.

§ 91 - Falta ainda comparar, no ponto de vista da ética, a posição política das mulheres com a dos
homens, mas é-nos impossível fazê-lo, por não termos tratado ainda a preceito dos direitos
políticos dos homens. Quando tivermos abordado o exame dos chamados direitos políticos, veremos
que há razão para que se modifiquem fundamentalmente as opiniões correntes. Pelo motivo apontado,
não podemos tratar ainda, por forma adequada, dos direitos políticos das mulheres. Contudo um dos
aspectos do problema é, desde já, suscetível de elucidação.
Os direitos políticos são os mesmos para a mulher e para o homem? Presentemente há uma corrente de
opinião que se inclina para a afirmativa. Sustenta-se que existe um paralelismo entre a identidade
dos direitos já expostos, que resultam da comunidade de natureza dos dois sexos e a identidade dos
seus direitos a intervenção nos negócios públicos. Esse paralelismo parece à primeira vista
justificado, mas a reflexão demonstra que o não é. A capacidade cívica não implica somente o
direito de votar e de exercer por intervalos certas funções representativas, implica também·
obrigações onerosas. E, pois, que assim é deve ela abranger não só a partilha de vantagens com a
participação dos encargos. É absurdo chamar igualdade a um estado de coisas que conferiria
gratuitamente a umas um certo poder, em troca do qual as outras se sujeitam a riscos. Qualquer que
seja a extensão dos direitos políticos, a defesa nacional submete cada homem em particular a perda
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 54/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
da sua liberdade, a privações e ao perigo eventual da morte; no dia em que as mulheres obtiverem
os mesmos direitos políticos, sem se sujeitarem às mesmas obrigações, a sua situação ficará sendo
de superioridade e não de igualdade. A não ser que forneçam ao exército e a marinha um contingente
proporcional ao masculino o problema da pseudo-igualdade dos «direitos políticos» das mulheres não
poderá ser discutido senão quando a humanidade tiver atingido o estado de paz permanente. Logo que
seja ou não desejável o estabelecimento dessa igualdade, só então poderão ser igualados os
direitos políticos dos dois sexos.
Esta objeção, porém, não é aplicável á com participação das mulheres no governo da administração
local. Para lhes recusar tal com participação seria preciso invocar outras razões.

CAPÍTULO XXI

Os Direitos das Crianças

§ 92 - O leitor recorda-se por certo de que desde o princípio reconhecemos a distinção fundamental
que existe entre a moral da família e a moral do Estado e de que o bem da espécie exige a
manutenção destes dois princípios antagónicos. Resulta daqui que os direitos das crianças são de
natureza inteiramente diferente da dos direitos dos adultos. Como as crianças se transformam
gradualmente em adultos, a relação entre estas duas categorias de direitos muda continuamente e
não pode estabelecer-se senão em resultado de transições, variáveis à medida que se opera a
transformação. A conservação da raça implica a auto sustentação dos seus membros e o sustento da
progenitura. Como supomos que a conservação da raça constitui um fim recomendável devemos concluir
que é justo que sejam realizadas estas duas sustentações. Se as condições fora das quais estas
condições se não podem realizar atingem o que nós chamamos direitos, resulta daí que as crianças
têm direitos - empregamos este termo para evitarmos a confusão que poderia haver com o emprego da
frase: títulos legítimos - às coisas materiais que as ajudam a viver e a crescer e que os pais têm
por dever procurar-lhes. Como para os adultos os direitos são as formas especiais e
correspondentes que a liberdade de ação geral necessária toma para procurarem a subsistência, o
vestuário, o abrigo, etc., a menoridade terá legítimos títulos a subsistência, ao vestuário ao
abrigo, mas não às formas da liberdade que tornam possível a sua aquisição. A criança por não ter
ainda as faculdades desenvolvidas é incapaz de ocupar vários dos sectores da esfera da atividade
preenchida pelo adulto.
Durante este período de incapacidade, torna-se absolutamente preciso proporcionar-lhe
gratuitamente vantagens que lhe são necessárias e que se não podem realizar senão em regiões de
atividade que lhe são inacessíveis.
Os seus títulos deduzem-se da mesma necessidade primária - a conservação da espécie - e tem a
mesma validade que os direitos que a lei de igual liberdade concede ao adulto.
Empreguei voluntariamente esta distinção verbal entre os direitos dos adultos e os títulos
legítimos das crianças: a consciência associa por tal maneira os direitos às atividades e aos
produtos das atividades que alguma confusão resultaria se as aplicássemos a crianças e a jovens
incapazes de se entregarem ao exercício dessas atividades e de recolher os produtos delas.

§ 93 - Sendo o fim último a conservação da espécie, as crianças têm, pois, numa larga medida
títulos legítimos aos produtos das atividades mais que às esferas de ação dessas atividades;
todavia tem títulos legítimos às partes das esferas da atividade de que elas possam usar com
vantagem. Se a conservação da espécie constitui um desideratum, os progenitores devem para que ela
se realize prover os menores de cada geração não somente da subsistência, do vestuário e do abrigo
necessário, mas proporcionar-lhes as ocasiões indispensáveis para que possam exercer e desenvolver
as suas faculdades e prepara-los assim para a adaptação ávida de adultos. Os próprios seres
inferiores cumprem até certo ponto esta necessidade, embora duma maneira inconsciente, excitando
os seus descendentes menores a servirem-se dos membros e dos sentidos.
Esta preparação já necessária à vida comparativamente simples das aves e dos quadrupedes é ainda
mais indispensável à vida complexa da espécie humana; a obrigação de a prestar e de a auxiliar
torna-se ainda mais imperativa.
Não é possível dar uma resposta cabal à pergunta que naturalmente ocorre, sobre qual deve ser o
limite até ao qual a vida dos adultos deve subordinar-se à das crianças. Ha inumeráveis espécies
de seres inferiores que sacrificam por completo cada geração a geração seguinte: Os pais morrem
depois de terem desovado. Essa subordinação não pode ser a mesma que para os animais superiores,
os quais, precisam rodeá-los de cuidados incessantes, que se prolongam durante o período do
crescimento ou que te em de educar gerações provindas de várias e sucessivas procriações. O bem da
espécie exige, nestes casos, que os pais continuem a viver cheios de vigor e a alimentar e educar
a sua progenitura enquanto dure a sua menoridade. Tal é o caso particular do homem, por causa da
duração prolongada do período durante o qual as crianças precisam ser assistidas. Resulta daqui
que na avaliação dos direitos relativos das crianças e dos pais, os sacrifícios destes últimos não
devem ser ampliados até ao ponto de se tornarem incapazes para o pleno cumprimento dos seus
deveres paternais. Os sacrifícios excessivos acabariam por prejudicar a prole e a espécie. O bem e
a felicidade dos pais constituem, por outro lado, um fim que concorre para o fim geral; existe,
pois, uma razão moral, que lhes prescreve a moderação das suas subordinações.

§ 94. - Passemos dos títulos legítimos das crianças em relação aos pais, aos seus deveres
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 55/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
correlativos para com estes últimos. Teremos, neste ponto, de nos contentar outra vez com uma
transação que gradualmente se modifica no decurso da evolução da infância para a maioridade.
A criança tem um título legítimo ao vestuário, ao abrigo e aos demais auxiliares do seu
desenvolvimento, mas não tem direito à direção do seu eu que se associa à auto sustentação. Duas
razões se opõem a isso: o exercício dessa direção seria maléfico para apropria criança e
implicaria o desconhecimento do direito dos pais sobre ela, reconhecimento que constitui a
recíproca do título da criança em face dos pais. A primeira dessas razões salta aos olhos e apenas
se torna necessário pormenorizar a segunda. Em verdade; não é possível proceder a avaliação destes
títulos pela forma que a lei de igual liberdade nos permite fazer para os adultos; todavia,
inspirando-nos nela, melhor ou pior, acha-se que em troca da subsistência e dos outros cuidados
prestados aos filhos, os pais recebem uma equivalência sob a forma de obediência e da pratica de
serviços miúdos.
Não obstante, no ponto de vista do fim último, o bem da espécie, estas relações reciprocas entre
maiores e menores, devem aproximar-se das relações entre adultos à medida que os últimos adquirem
e desenvolvem a faculdade de auto sustentação e da direção de si próprios. Só o exercício das
atividades independentes ou autónomas, pode tornar os homens capazes dessas relações: para a
realização do fim último, torna-se preciso um acréscimo gradual de liberdade. A equidade, implica,
por outro lado a mesma solução. A criança que antes da idade adulta consegue subsistir em grande
parte por si própria não adquire um título justo a uma soma de liberdade proporcional?
É claro que a discordância essencial que subsiste entre a moral da família e a do Estado, enche de
dificuldades a passagem da direção pela família para a direção pelo Estado. O que se deve
pretender é que em cada caso particular, não perdendo nunca de vista o bem da raça, a transigência
intervinda estabeleça uma compensação dos títulos das duas partes e não sacrifique sem motivo
nenhum dos dois direitos em presença.

§ 95. - A evolução dos tipos sociais inferiores para os tipos sociais superiores, acusa um
reconhecimento crescente dos seus títulos legítimos, que é mais patente a respeito das crianças do
que das mulheres: este progresso manifesta-se igualmente em relação à vida, à liberdade e aos bens
das crianças.
O costume e a lei autorizam ou autorizaram o infanticídio em todas as regiões do globo e em todas
as variedades humanas, indo por vezes essa autorização até ao sacrifício de metade dos recém-
nascidos. Essas eliminações são especialmente frequentes nos pontos onde, por falta normal de
subsistência, se teme um excesso de expansão numérica da tribo: nestes casos imolam-se de
preferência as filhas por serem inaptas para a guerra. Na Grécia e na Roma primitivas em que o pai
tinha o direito de vida e de morte sobre os filhos, a lei também não protegia os direitos dos
menores, embora o costume os tenha respeitado mais, talvez, do que a legislação. Aconteceu o mesmo
com os celtas e os primeiros teutões: o costume que tinham de exporem as crianças e de as matarem
assim indiretamente persistiu neles por muito tempo, a despeito de haver sido condenado pela
igreja cristã. A liberdade das crianças não era, provavelmente, mais respeitada que a sua vida.
Vendiam-nas frequentemente para serem adoptadas ou escravas. Na atualidade, efetuam-se trocas de
crianças entre os fogueanos, os naturais da Nova Guiné e da Nova-Zelândia, os Diaks, os Malayos e
muitos outros povos não civilizados, que neste particular como em tantos outros, seguem os
exemplos dos antepassados dos homens civilizados. Os costumes hebraicos permitiam a venda das
crianças e a sua retenção em pagamento de dívidas. Os romanos venderam-nas mesmo sob o regime
imperial e depois da implantação do cristianismo. Os celtas da Gália entregaram-se a esse tráfico
até à sua supressão pelos éditos dos imperadores romanos, e os Germanos até ao reinado de Carlos
Magno. As liberdades dos filhos não eram violadas unicamente no que essas liberdades tinham de
fundamental, mas como era natural que acontecesse, de outras maneiras secundárias. Um Romano,
tivesse a idade que tivesse, não podia casar sem consentimento paterno.
O desconhecimento dos direitos à vida e à liberdade era acompanhado pelo desconhecimento do
direito de propriedade. Coisa alguma podia pertencer ao filho que dele não fizesse parte e foi
necessário que os jurisconsultos inventassem sutilezas para permitirem aos filhos dos romanos a
aquisição de direitos pessoais sobre certas categorias de bens; tais como os despojos de guerra e
os emolumentos dos cargos civis.
Não nos demoraremos na descrição dos estados por que passaram os títulos legítimos dos filhos
antes de virem a adquirir o largo reconhecimento que tem nas sociedades civilizadas. Por
sucessivas modificações, foi-se concedendo gradualmente à juventude uma grande liberdade que, em
determinados países e em determinados casos, como nos Estados Unidos, ultrapassa os limites do
exigível e do justo. O que principalmente convêm salientar, é que o reconhecimento dos direitos da
infância caminhou mais depressa e foi até mais adiante, nos países em que o tipo industrial se
desembaraçou mais completamente do tipo militar. Em França, as crianças, até à Revolução francesa,
eram tratadas como se fossem escravas. Os filhos podiam ser encarcerados à requisição paterna,
mesmo quando tivessem atingido já a idade adulta; havia pais que usavam, por vezes, desse poder.
As filhas eram recolhidas em conventos, mesmo contra vontade. Só depois da Revolução, «os filhos
foram proclamados e se subtraiu a liberdade individual ao arbítrio das cartas de prego, obtidas
pelos pais injustos ou cruéis.» Na Inglaterra, embora nos séculos passados os pais fossem duros
para os filhos, não tinham o direito de os fazer prender sem motivo. Todavia ainda hoje os filhos,
mesmo quando maiores, transigem com a vontade paterna, quando ela se opõe ao casamento; esta
oposição é, porém, desprovida de qualquer sanção legal. Enquanto que no continente, os pais
desempenham um preponderante papel em matéria de casamento, é fácil em Inglaterra, casar contra as
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 56/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
indicações paternais. A reprovação que esse facto provoca, é insignificante.
Ha um enormíssimo contraste entre os estados primitivos, em que podia dar-se a morte a uma criança
tão impunemente como a um animal, e os tempos modernos em que o infanticídio é equiparado ao
assassinato, em que o aborto é classificado como um crime, em que se punem os pais por maus tratos
e insuficiência de alimentação dos filhos, em que se estatui a tutela para os menores e em que se
reconhecem capazes de propriedade.

§ 96. - Salientemos outra vez ainda a concordância da teoria com a prática - das injunções da
moral e dos progressos da lei escrita, - das deduções dos princípios fundamentais e das induções
baseadas na experiência. Sem perdermos conjuntamente de vista a moral da família e a moral do
Estado e a necessidade duma transação entre estas duas morais, transação que se vai modificando no
decurso da transição da infância para a idade adulta, sem desviarmos a atenção do bem do indivíduo
nem da conservação da raça, chegámos a conclusões duma aproximada precisão acerca dos títulos
legítimos das crianças. Os fatos históricos confirmam a posteriori as conclusões obtidas a priori
e mostram-nos que a evolução dos tipos inferiores para os tipos superiores das sociedades, é
acompanhada por uma adaptação crescente dos usos e das leis às exigências da moral.

CAPÍTULO XXII

Os chamados direitos políticos

§ 97 - É pecha vulgar dos homens preocuparem-se com as causas próximas e despreocuparem-se das
causas distantes. Atribui-se correntiamente a força duma locomotiva à ação do vapor, quando o
vapor é apenas um intermediário e não tem poder algum iniciador: o iniciador é o calórico da
fornalha. Não compreendem que a máquina a vapor é na realidade uma máquina de calor, que não
difere das outras máquinas movidas pelo calor, como por exemplo as máquinas a gás, senão no
sistema de peças de que se serve para transformar a moção molecular em moção molar.
Este incompleto conhecimento das relações diretas e esta ignorância das relações indiretas viciam
de ordinário os raciocínios relativos aos negócios sociais. Um indivíduo manda construir uma casa,
rasgar um caminho, enxugar um campo e a impressão primeira que se tem é a de que esse indivíduo
fornece trabalho. A ideia de trabalho não se liga a ideia da subsistência que ele proporciona e o
trabalho acaba por ser considerado como sendo, por si mesmo, uma vantagem. Imagina-se assim que o
aumento das quantidades de objetos ou dos meios que satisfazem as necessidades humanas não
constitui um bem, - e que este bem consiste na obtenção do trabalho que se procura. Daqui tantos
erros que são matéria corrente. Diz-se vulgarmente que o incêndio destruidor beneficia o comercio
e que as máquinas constituem um prejuízo para as classes populares. Tais erros evitar-se-iam se os
relacionássemos com a causa última: o produto, em vez de os relacionarmos com a causa próxima: o
trabalho. O mesmo se passa relativamente ao uso da moeda. O espírito humano associa a ideia de
valor às moedas por cuja troca obtemos os objetos que desejamos e despreocupa-se dos objetos
comprados com ela; todavia são os objetos que na verdade tem valor, pois que só eles nos
proporcionam a satisfação das nossas necessidades. A constante experiência do seu poder de
aquisição associa de tal maneira a ideia de valor às promessas de pagamento que a opinião
identifica a sua abundancia à riqueza, apesar de as promessas de pagamento não terem, por si
mesmas, valor algum. Supõe-se que basta emitir profusamente notas de banco para assegurar a
prosperidade nacional. Tudo isto se evitaria se o raciocínio se formulasse em termos de artigos
produzidos em lugar de se formular em sim bolos do seu valor.
Na educação da juventude, encontra-se um outro exemplo dessa usurpação do que é próximo e dessa
expulsão do que é remoto, do esquecimento dos fins e da preocupação absorvente com os meios que os
produzem. Houve tempo em que o conhecimento das línguas grega e latina nas quais uma grande parte
da ciência antiga havia sido expressa era o único meio de a adquirir: o estudo dessas línguas não
passava pois dum simples instrumento. Hoje, porém que a ciência antiga está transladada e
vulgarizada nos idiomas contemporâneos e acrescida de uma profusão de conhecimentos bem mais
importantes que os que a antiguidade nos legou, persiste-se ainda em ensinar o grego e o latino,
considerando-se, na prática, esse ensino como constituindo, por si mesmo, um fim e excluindo-se o
primitivo ponto de vista com que o estudo dessas línguas era feito. Pelo facto de um estudante se
familiarizar medianamente com essas línguas mortas, passa já por instruído embora não tenha
adquirido senão o mínimo das ideias que a antiguidade transmitiu e desconheça por completo a
quantidade imensamente maior e imensamente mais preciosa de ideias que das idades grega e latina
para cá se foram acumulando em investigações seculares.

§ 98 - A observação geral feita e apoiada em numerosos exemplos no parágrafo anterior aplana-nos o


caminho que vamos seguir. A confusão entre os meios e os fins, e a prossecução duns em detrimento
dos outros, vicia profundamente as correntes da opinião pública e dá origem a erros que em matéria
de direitos políticos passam a adquirir foros de cidade.
No rigoroso emprego do termo, não existem outros direitos além dos que anteriormente enunciámos.
Não sendo os direitos, como vimos, senão as partes respectivas e distintas da liberdade geral de
realizar o objetivo da vida individual sem que os homens possam ser submetidos a outra restrição
que não seja a que resulta da presença de outros homens que tem de realizar do mesmo modo o mesmo
objetivo, conclui-se que um homem está na posse de todos os seus direitos quando a sua liberdade
não é ferida por nenhuma restrição. Se ninguém lesa a integridade da sua pessoa física, se nenhum
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 57/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
obstáculo for posto à sua moção e à sua locomoção, se goza a propriedade plena de tudo o que
adquiriu ou ganhou, se tem o direito de dar e de legar a seu talante, se pode trabalhar como
melhor lhe convier, concluir uma troca ou um contrato com quem queira, ter as opiniões que julgue
preferíveis e exprimi-las pela palavra ou pela imprensa, nada lhe resta a exigir de verdadeiras
liberdades. As suas reivindicações ulteriores pertencem a lima categoria diferente e não
constituem direitos propriamente ditos. Tivemos já ocasião de verificar diversas vezes e por
vários métodos que os direitos propriamente ditos têm por origem as leis da vida no estado de
sociedade. As instituições sociais podem, ou reconhece-las em toda a sua extensão, ou ignora-los
parcial ou inteiramente: não os criam; conformam-se com eles, ou subtraem-se lhes. As engrenagens
sociais que constituem aquilo a que chamamos governo, são, mais ou menos, instrumentos da
manutenção desses direitos, mas qualquer que seja o grau em que os mantenham, não passam nunca de
serem instrumentos e quando dizemos que procedem em conformidade com o direito, devemos entender
por essa conformidade a defesa eficaz dos direitos propriamente ditos.
Todavia, pela tendência do espírito para se não preocupar senão com os meios, despreocupando-se
dos fins, acontece que a opinião considera como direitos as disposições governamentais destinadas
a mantê-las e marca-lhes um lugar privilegiado. Os cidadãos possuem nas nações mais adiantadas
parcelas do poder político e, como a experiência demonstrou que essa possessão proporciona
garantias para a defesa da vida, da liberdade e da propriedade confunde-se a sua reivindicação com
o próprio direito à vida, à liberdade e à propriedade. Não existe, com tudo, afinidade alguma
entre uma e outra coisa. A expressão desse voto não contribui, em si mesma, para a realização da
vida do eleitor, como acontece com o exercício das diversas liberdades a que chamámos direitos
propriamente ditos. O mais que se pode avançar é a que a franquia eleitoral de cada cidadão dá aos
cidadãos em geral o poder de reprimirem as investidas contra os seus direitos, poder esse de que
podem fazer bom ou mau uso. No assunto de que nos estamos ocupando, era quase inevitável a
confusão do fim com os meios. A observação dos contrastes entre os estados das diversas nações e
entre os estados sucessivos da mesma nação fizeram vincar no espírito dos homens a convicção de
que quando o poder está nas mãos dum só, ou duma oligarquia, esta e aquele usam desse poder em seu
benefício e em prejuízo da coletividade. Receia-se que os cidadãos que não conservem esse poder
sejam obrigados a sujeitarem-se a restrições demasiadas e a encargos excessivos, privados da
liberdade que a equidade reclama para cada um e que não deve ter outro limite que não seja o das
liberdades análogas de todos, a opinião teme, pois, uma violação mais ou menos extensa dos
direitos dos cidadãos. Ensinou a experiência que uma distribuição mais extensa do poder político
determina uma diminuição de violações e em resultado dessa lição da experiência, passou-se a
confundir a manutenção duma forma popular de governo com o respeito dos direitos: o poder de
votar, instrumento da defesa de direitos, acabou por ser considerado como constituindo um direito
e a opinião geral confunde-o com os direitos propriamente ditos. Ha motivo para que insistamos
nesta distinção. Pois não é certo que os direitos propriamente ditos são postergados sem escrúpulo
em países aonde os chamados direitos políticos são possuídos por todos indistintamente? O
despotismo do funcionalismo francês é tão acentuado no regime republicano como o era sob o
império. As exações e os enxames são atualmente tão numerosos naquele país como o foram sob o
domínio dos dois Napoleões. Um delegado das Trades-Unions inglesas declarou num congresso de Paris
que os atentados cometidos em França contra as liberdades dos cidadãos chegavam a um tal excesso
que «constituíam uma nódoa e uma anomalia numa nação republicana.» Acontece o mesmo nos Estados-
Unidos. O sufrágio universal não evita nesse país a corrupção das municipalidades que impõem
elevadas taxas locais e que a poucos melhoramentos as aplicam; não impede o desenvolvimento do
caciquismo eleitoral que força os eleitores a entregarem-se nas mãos dos galopins, não impede a
regulamentação da vida privada dos cidadãos, aos quais é imposta a abstenção de designadas bebidas
e que permite que se taxe pesadamente a generalidade dos consumidores por meio duma tarifa
protecionista estabelecida em benefício duma fraca minoria de industriais e de operários. O
sufrágio universal nem mesmo consegue salvaguardar a vida humana; em diversos Estados onde o
sistema representativo está implantado toleram-se assassinatos que os agentes da lei dificilmente
reprimem, expondo-se a tornarem-se alvos de balas se tentarem desempenhar-se da sua missão. A
recente extensão do sufrágio conduziu na Inglaterra a resultados parecidos com os que acabamos de
enumerar. Longe de assegurar uma mais enérgica manutenção dos direitos humanos propriamente ditos,
foi essa extensão seguida por frequentes desconhecimentos deles, por mais numerosas ingerências e
por mais consideráveis desfalques na bolsa dos cidadãos.
Tem-se, pois, seguido uma falsa rota, tanto na Inglaterra como no estrangeiro. Não há indício
algum da pretendida identidade a que aludimos e não vemos que ela exista nem mesmo nos casos
extremos em que os homens usam dos seus chamados direitos políticos para se despojarem dos seus
direitos propriamente ditos, como no caso do plebiscito que elegeu Napoleão III, e quando
consentem que lhes torturem o cérebro dos filhos com avalanches de regras e definições gramaticais
e com frivolidades das biografias dos reis, cuja aquisição é paga muitas vezes com o preço roubado
à alimentação necessária e provoca o enfraquecimento da compleição fraca das crianças. Os chamados
direitos políticos podem servir para a defesa das verdadeiras liberdades, mas podem servir também
para outros usos, até para a implantação da tirania.

§ 99. - Além da confusão dos meios com os fins, causa primária de tantos erros que passam em
julgado, há ainda uma outra causa de erro. A concepção desse direito é dupla; não obstante, o
espírito humano, em presença dos dois fatores dos direitos, vê quase sempre só um dos fatores.
Como repetidamente demonstrámos, a liberdade constitui o elemento positivo da nossa concepção, ao
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 58/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
passo que a delimitação que implicam as iguais liberdades de outrem constituem o elemento
negativo. Raramente estes dois elementos coexistem na proporção devida; em muitos casos, um deles
está ausente por completo. A liberdade pode exercer-se sem restrição alguma, determinando assim
agressões perpétuas e um estado de guerra geral. Inversamente, podem as restrições ser iguais na
prática, mas serem, ao mesmo tempo, tão apertadas, que destruam a liberdade. Se o governo coagisse
à escravidão todos os cidadãos, a restrição que eles sofreriam era igual. Se para um fim
filantrópico cada cidadão em particular se despoja duma parcela da liberdade que deve subsistir
depois para cada um deles, depois de ter tomado em conta as liberdades alheias, também essa
restrição fica sendo igual para todos. A confusão de ideias a qual nos vimos referindo e que faz
classificar os pretensos direitos políticos entre os direitos propriamente ditos provêm em parte
da predileção com que se encara a igualdade que é um carácter secundário, desprezando-se o seu
elemento primário: a liberdade. Os povos estão de tal maneira habituados a associar o
desenvolvimento de uma ao desenvolvimento da outra, que vieram a considerá-las como intimamente
unidas e a acreditar que a aquisição da igualdade assegura a da liberdade.
Já mais acima demonstrei que não é assim. Os homens podem usar da sua liberdade igual para se
reduzirem ao estado de escravidão. Não lograram compreender ainda que a identidade do grau de
opressão e a soma igual para cada um de pesados sofrimentos, basta para dar satisfação às suas
reivindicações de igualdade. Esquecem que a aquisição dos chamados direitos políticos não equivale
a aquisição dos direitos propriamente ditos. A aquisição dos direitos políticos não é senão um
instrumento que pode servir ou não para obter ou para defender os direitos propriamente ditos.
O ponto essencial é este: Como devemos usar dos chamados direitos políticos para conservar os
direitos propriamente ditos e defende-los contra os agressores estrangeiros ou nacionais?
Um sistema de governo é afinal um sistema de engrenagens. O governo representativo é um desses
sistemas e a escolha dos representantes confiada ao voto de todos os cidadãos, constitui um dos
numerosos processos da formação de um governo representativo. Não sendo a eleição senão um método
para chegar a criar uma engrenagem capaz de manter os direitos, convém averiguar se o sufrágio
universal assegura a formação da engrenagem que mais fortemente os assegura. Verificamos já que
não realiza eficazmente esse objetivo e teremos, mais adiante, ocasião de nos convencermos melhor
de que poucas probabilidades te em nas circunstâncias existentes, de poder vir a realiza-lo.
Deixaremos a discussão dessa matéria para depois de abordarmos um outro assunto mais geral: o da
«Natureza do Estado».

CAPÍTULO XXIII

Da natureza do Estado

§ 100 - O estudo da evolução geral familiarizou-nos com a proposição de que a natureza das coisas
está longe de ser imutável. A natureza transforma-se, sem mudar de identidade. O contraste entre a
nebulosa esferoide e o planeta sólido, definitivo produto da concentração da primeira, difere dos
outros contrastes que de todos os lados se apresentam aos nossos olhos e a nossa inteligência,
unicamente em ser mais acentuado.
Com efeito, as transformações da natureza reinam universalmente no mundo orgânico. Um pólipo,
depois de um período de vida sedentária, secciona-se em fragmentos que se desprendem um por um e
se transformam em medusas que nadam em liberdade. Ha pequenas larvas do tipo anelado, que depois
de um período de ativa circulação na água, se fixam a um peixe, perdem os seus órgãos motores e,
transformando-se em parasitas, ficam reduzidas unicamente às bolsas oriferas e ao estomago.
Outras, renunciam às deslocações da sua existência primitiva e pegam-se a um rochedo,
transformando-se no que vulgarmente se chama bolota do mar, nutrindo-se dos seres minúsculos que
passam ao seu alcance. Outras formas vermiculares depois de terem vida e de se terem alimentado
por muito tempo na água, deixam a sua concha de ninfas e voam sob a forma de insetos. É
conhecidíssima a transformação das larvas em moscas vulgares, moscas varejeiras, bichos da traça
etc., A mais extraordinária e a maior destas transformações é a metamorfose de algumas algas
aquáticas inferiores. Durante um período muito curto, movem-se com agilidade e apresentam todos os
caráteres de um animal; depois fixam-se e tornam-se vegetais.
São demasiadamente abundantes e de uma variedade maravilhosa para que os possamos enumerar aqui,
os fatos desta natureza. O conhecimento de uma parte deles basta, porém para nos pôr de sobreaviso
contra o erro que tende sempre a formar-se de que as coisas naturais foram, são e serão
invariavelmente as mesmas. Bem ao contrário, devemos ter sempre em mira a hipótese de mudanças que
podem ser fundamentais.

§ 101 - Ha uma imensa maioria de pessoas que estão convencidas de que há só uma concepção exata de
Estado. Quem, porém, repare em que as sociedades evoluem e retiver as lições que a evolução geral
nos ensina, será levado, em contrário, à conclusão de que o Estado tem provavelmente naturezas
essencialmente diferentes, segundo os lugares e os tempos. Vamos mostrar que existe um perfeito
acordo entre esta proposição e os fatos.
Não nos deteremos nalguns tipos sociais, dos mais primitivos, e caracterizados pela descendência
em linha feminina e ocupar-nos-emos, primeiramente, do grupo patriarcal, tipo dum carácter
intermediário entre a família e a sociedade.
É fácil de estudar na horda nômade e apresentar o espetáculo duma sociedade onde as relações dos
indivíduos entre si, as suas relações com o chefe comum e com os bens coletivos, conferem à
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 59/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
estrutura e às funções do corpo social, uma natureza que contrasta singularmente com a dos corpos
políticos da atualidade. Mesmo quando o grupo se desenvolve, transformando-se numa comunidade
aldeã, como há na Índia, «que possuem um estado maior completo destinado a olhar pelo governo
interior» a maioria, senão todas as relações entre os associados, comunicam-lhe uma natureza
corporativa que oferece notáveis diferenças se a confrontarmos com a duma sociedade, em que os
laços de sangue deixaram de ser o fator dominante.
Subamos agora até um Estado dessa composição já superior, como a das comunidades gregas, formadas
pela união de várias aglomerações de relações. Os membros das famílias, gentes e fratries
misturam-se nessas aglomerações sem perderem a identidade e os grupos respectivos conservam os
seus interesses distintos e, muitas vezes, antagônicos. É certo que a natureza dessas corporações,
encarada no seu conjunto, difere muito duma comunidade moderna, em que uma completa amalgama
destruiu as primitivas linhas de demarcação e em que o indivíduo, e não o grupo familiar, acabou
por constituir nela a unidade política.
Recordando o contraste que assinalámos entre o regime do estatuto e o regime do contrato,
acentuaremos outra vez ainda, a dessemelhança essencial entre as naturezas das duas categorias de
corpos políticos de que esses regimes derivaram. Em várias sociedades antigas «a sanção religiosa
e política, unida umas vezes e outras separada, marcava a cada indivíduo o seu modo de vida, a sua
crença, as suas obrigações e a sua categoria na sociedade e não deixava nenhum campo à vontade ou
à razão de cada um» Atualmente, nos países adiantados, a religião e a política não gozam de poder
algum aproximado e a nenhum indivíduo se prescreve qual a posição que há de ocupar, nem a carreira
que há de seguir.
A unificação destes fatos interdiz a razão a hipótese da unidade de natureza de todos os corpos
políticos. Longe de admitirmos que a concepção geral do Estado concebida por Aristóteles em
resultado das sociedades que ele conheceu, tenha conservado o valor primitivo e possa servir ainda
de guia para a hora atual, pensamos que ela é presentemente, e com toda a verossimilhança,
inaplicável, e que nos perderíamos se nos confiássemos à sua direção.

§ 102. - Esta convicção imprimir-se-á mais profundamente no nosso espírito, se em vez de


compararmos as naturezas das sociedades, confrontarmos as suas manifestações ativas. Observemos,
neste intuito, os diversos géneros de vida a que as sociedades se entregam.
Como a evolução implica transições graduais, segue-se que por mais dessemelhantes que possam
tornar-se as corporações humanas, é impossível descobrir entre essas transições uma demarcação
funda. Sem perder de vista esta restrição, é, todavia, lícito afirmar que três motivos impeliram
os homens, originariamente dispersos em famílias errantes, a associarem-se mais estreitamente: O
desejo de saírem do isolamento foi um desses motivos e, conquanto ele não fosse universal, a
sociabilidade é uma característica geral dos seres humanos que os impele para a agregação. O
segundo móbil, foi a necessidade da ação combinada contra os inimigos humanos ou animais e a
necessidade da cooperação para resistirem a agressões exteriores ou para as cometerem. O terceiro
objetivo da sociabilidade foi o da facilidade do sustento pela assistência mútua e pela cooperação
efetuada no propósito de satisfazerem mais facilmente e melhor as necessidades físicas e,
posteriormente, as necessidades intelectuais e morais. Na maioria dos casos, a associação presta
simultaneamente todas as três utilidades que determinaram os homens a estreitarem os laços da
sociabilidade; todavia, é sempre possível distingui-los. Há, porém, exemplos, em que cada um
desses três motivos nos aparece isoladamente.
Os esquimós constituem um dos grupos sociais que na sociabilidade procuram apenas satisfazer o
desejo de se subtraírem ao isolamento. Os membros de cada um dos seus grupos são, individualmente,
independentes. Não tem necessidade de se organizarem para a defesa ou para o ataque, e abstém-se,
por isso, de chefes guerreiros e de governo político: a única fiscalização a que estão sujeitos, é
a da opinião expressa pelos seus vizinhos. Não adotam a divisão do trabalho e a cooperação
industrial resume-se neles à do marido e da mulher no seio duma mesma família. Na sociedade dos
esquimós não existe outra operação de incorporação, que não seja a da justaposição das suas partes
que permanecem mutuamente e independentes.
A classe dos grupos que se associaram impelidos pelo segundo móbil é numerosa. Na sua forma pura,
é representada pelas tribos de caçadores, cujas atividades se alternam entre a caça e a guerra.
Encontramos outros exemplos dela, nas tribos de piratas ou naquelas que, como os Masais, vivem do
produto das razzias que fazem nas regiões vizinhas. Nestas comunidades não existe a divisão do
trabalho ou, quando existe, é rudimentaríssima. A cooperação só se pratica para o ataque ou para a
defesa e quase se não realiza na sustentação interior. É certo que nas sociedades que
engrandeceram pela conquista, nasceu e foi-se desenvolvendo uma certa cooperação industrial, mas
confiada aos escravos e aos sorvos que trabalham sob a direção dos seus senhores, era insuficiente
para modificar profundamente a característica social. Essa característica é a dum agregado
adaptado à ação comum contra outros agregados semelhantes. As vidas das unidades ficam
subordinadas às necessidades da conservação e, por vezes, à expansão da vida do conjunto. De
resto, em igualdade de circunstancias, as tribos ou as nações que não mantivessem esta
subordinação, seriam submetidas ou defraudadas pelas tribos ou nações que as mantivéssemos. A
crença dominante neste tipo social e que para ele é incontestável, é a de que a guerra constitui o
único modo de vida. Este critério associa-se ao de que todo o indivíduo deve ser vassalo duma
comunidade, o que os gregos exprimiam, dizendo que o indivíduo não pertence a si próprio, nem à
sua família, mas à cidade.
É natural que, em estados assim organizados, o indivíduo fosse absolvido nos seus direitos pelos
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 60/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
direitos do agregado e que este o coaja, em conformidade com o critério adotado, à disciplina, aos
exercícios e à direção tida como precisa para fazer dele um bom soldado e um bom servidor do
Estado.
É impossível citar exemplos suficientemente satisfatórios da terceira categoria de sociedades,
porque elas não existem ainda na sua forma plenamente desenvolvida. As desfavoráveis condições do
seu habitat impedem as raras tribos inteiramente pacíficas que se encontram nalgumas das ilhas
Papuá ou nas regiões doentias da Índia, em que a malária detém em respeito as raças belicosas
circunvizinhas, de se desenvolverem em grandes sociedades dedicadas ao trabalho. Os Bodos, os
Dimals, os Kocchs e outros povos aborígenes da Índia vivem da agricultura e juntam-se em aldeias
de dez a quarenta fogos, transportando-se para territórios novos quando esgotam os antigos. Só
praticam a divisão do trabalho entre os sexos e não conhecem outra cooperação que não seja a de se
ajudarem na construção das habitações e no amanho das terras. Em geral, é pelos resultados das
conquistas que as pequenas comunidades se consolidam e transformam em comunidades mais importantes
e que nascem as circunstâncias propícias ao desenvolvimento da dependência mútua que os homens
criam entregando-se a indústrias diferentes. Durante um largo espaço de tempo, a organização
industrial permanece como serventuária da organização militar e não se expande. Atualmente, porém
as nações de mais adiantada civilização, estão organizadas em conformidade com um princípio
fundamental diferente do da maior parte das grandes organizações do passado. Abstraindo das
tendências retrogradas que prevalecem na Europa e comparando as sociedades antigas e as da idade
média com as sociedades contemporâneas e especialmente com a Inglaterra e os Estados Unidos da
América descobrem-se entre as primeiras e as últimas diferenças fundamentais. Nas primeiras todos
os homens livres eram soldados e o trabalho reservava-se exclusivamente para os escravos e os
servos. Nas segundas poucos homens livres são soldados e a quase totalidade entrega-se ao trabalho
da Produção e da distribuição da riqueza. Numas os numerosos soldados eram-no quer quisessem, quer
não, nas outras os soldados, comparativamente raros, são-no em virtude dum contrato. É, pois,
evidente que o contraste essencial consiste em que, no primeiro caso, o agregado exercia uma
poderosa coerção nas unidades que o constituíam, ao passo que no segundo a coerção que ele exerce
é frouxa e tende a diminuir com o declinar do espírito militar.
Que significação se deve atribuir a esse contraste circunscrito nos seus termos inferiores? Nos
dois casos, o bem das unidades constitui o fim que a sociedade, na sua capacidade corporativa (o
Estado) deve procurar, pois que a sociedade não é como agregado dotada de sensibilidade e a sua
duração só é um desideratum enquanto presta utilidade às faculdades de sentir dos indivíduos. Como
lhes presta ela, porém? Em primeiro lugar, prevenindo os estorvos à conservação e desenvolvimento
das vidas individuais. Nos estados primitivos, a sociedade incorporada tem por objeto principal,
senão único, prevenir a morte e o prejuízo infligido aos seus membros pelos inimigos externos e a
ética sanciona a restrição que esta necessidade impõe aos seus membros. Nos estados superiores,
tem principalmente, senão exclusivamente, o objetivo de proteger os seus membros contra a morte e
os prejuízos resultantes das violações efetuadas no interior, e a sanção moral da restrição não
vai além do que é necessário para prevenir essas lesões.

§ 103. - Não é agora o momento apropriado para averiguarmos se outras funções podem vir a juntar-
se a esta função. O tema deste capítulo é somente a «natureza do Estado» e para acabarmos de
determina-la bastar-nos-á tão somente observar a diferença radical que separa os dois tipos
sociais. O princípio em que é de vantagem insistir, é este: um corpo político chamado a atuar
sobre outros corpos semelhantes e devendo, para este efeito dispor das forças combinadas das
unidades que o compõem é fundamentalmente diferente dum corpo político que não é destinado a agir
senão nas unidades de que se compõe. Qualquer raciocínio que tome para ponto de partida a hipótese
de que o Estado teve sempre e em toda a parte a mesma natureza, conduz a conclusões radicalmente
erróneas.
Resta-nos salientar um outro ponto. Produziram-se, produzem-se e hão de produzir-se no passado, no
presente e em determinados períodos futuros alterações ora retrogradas ora progressivas,
aproximando as sociedades umas vezes dum tipo e outras doutro: estes tipos entrelaçam-se pois e
não tem limites nítidos. Não admira, portanto, que continuem a espalhar-se opiniões vagas e
indefinidas acerca da natureza do Estado.

CAPÍTULO XXIV

A Constituição do Estado

§ 104. - As diferenças de fins implicam, de ordinário, diferenças de meios e não é provável que a
estrutura melhor apropriada para realizar um determinado fim, seja igualmente apropriada para um
fim diverso.
No intuito de conservar a vida das suas unidades e a liberdade de cada uma poder realizar os
desígnios que tem em geral as sociedades independentes, uma sociedade deve usar da sua ação
corporativa contra as sociedades que a rodeiam.
A sua organização deve, pois, ser tal que possa em lugar e tempo, dispor da força eficazmente
combinada das suas unidades. Se essa força não atuar concordem ente, as unidades serão vencidas e
anuladas ou subalternizadas; o exercício da sua ação, torna indispensável, para que se realize
harmonicamente a submissão das unidades a uma única autoridade. A coação deverá assegurar esta
submissão e, para que haja sequência nas ordens da autoridade coactora, as ordens deverão emanar
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 61/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
de uma só autoridade suprema. O estudo da génese do tipo militar (Vide Principias de Sociologia,
§§ 547-561) conduzem irresistivelmente à conclusão de que a centralização é necessária para o
êxito da ação exterior duma sociedade em luta com outras sociedades e à de que a centralização se
acentua na razão do carácter habitual da ação exterior. Devem ser submetidos ao poder despótico
que governa, não só o corpo dos combatentes, mas também a comunidade que o subvenciona e sustenta.
Atuando por intermédio do poder que governa e que é o produto da evolução do agregado, esse
agregado calca e anula as vontades dos membros individuais e apenas lhes consente por tolerância,
que usem de alguns direitos atenuados.
Quando o regime militarista predomina, a constituição do Estado submete os cidadãos ordinários ou
a um autocrata ou a uma oligarquia, da qual tende sempre a surgir um autocrata. Como temos
acentuado desde os primórdios deste livro, esse estado de sujeição assim como a perda da liberdade
e a perda contingente da vida, que a acompanham, goza duma sanção quase ética, quando é imposta
pela guerra defensiva: com efeito, a suspensão parcial dos direitos justifica-se quando se trate
de impedir obliteração ou a perda total que resultariam do morticínio das unidades e da conquista
da comunidade atacada. São, todavia, as guerras ofensivas e não as defensivas que desenvolvem o
tipo da sociedade militar; neste último caso a constituição do Estado não goza de sanção ética.
Por mais desejável que seja que as raças superiores desloquem e suplantem as raças inferiores e
com quanto nos estados primitivos as guerras ofensivas tenham sido prestimosas para os interesses
da humanidade, certo é que, como tivemos já ocasião de dizer, essa utilidade deve ser assemelhada
ao desenvolvimento geral da vida que resulta da luta pela existência nos seres inferiores: este
gênero de ação está fora da jurisdição da moral.
Vale notar: que quando as condições duma sociedade são tais que essa sociedade está fisicamente
posta em risco por outras, se lhe torna necessária uma constituição coercitiva, a qual embora
condenada pela justiça absoluta, será, todavia, relativamente justa ou a menos injusta que as
circunstâncias permitem.

§ 105. - Sem nos determos nas formas sociais intermediarias passemos do tipo militar para o tipo
industrial plenamente desenvolvido que necessita duma constituição ele Estado inteiramente
diversa. O fim desses dois tipos opostos é o mesmo: assegurar as condições que permitem a
manutenção da vida e o desenvolvimento das suas atividades. Porém, a sua ação contra os inimigos
exteriores e a sua ação contra os inimigos interiores constituem funções inteiramente
dessemelhantes e impõem, como vamos mostrar, processos inteiramente diferentes.
No primeiro caso, o perigo é direto para a comunidade considerada como formando um todo e indireto
para os indivíduos; no outro é direto para os indivíduos e indireto para a comunidade. No primeiro
caso, o perigo é grande, concentrado, e a sua primeira incidência será local; no segundo, os
perigos são múltiplos difusos e isoladamente, pouco graves.
Num caso todos os membros da comunidade estão ao mesmo tempo ameaçados de prejuízo; no outro ora é
tal membro, ora é tal outro que está ameaçado; o cidadão lesado hoje passará amanhã a ser
agressor. Enquanto que no primeiro caso o prejuízo considerável uma vez afastado deixa de causar
receios durante algum tempo, no segundo caso, os danos que é preciso evitar ainda que pouco
graves, renovam-se incessantemente. Um exército seria impotente contra estes malefícios
dissemináveis até ao infinito e inútil, portanto para prevenir assassinatos, roubos e burlas. A
força administrativa incumbida de os reprimir deve ser difusa como o são os crimes e os delitos a
evitar ou a castigar e não intermitente. O desarmamento das forças numerosas e combinadas que os
empreendimentos militares exigem, permite a substituição dum governo coercivo, que é o único capaz
de pôr em movimento essas forças combinadas, por um outro melhor adaptado a manter os direitos
recíprocos dos cidadãos e a respeitá-los.
Qual será, neste caso, a constituição de Estado apropriada? Como se parte da presunção que cada
cidadão não é um agressor e que está interessado na conservação da vida e da propriedade, no
cumprimento dos contratos e na manutenção de todos os direitos secundários, parece, à primeira
vista, que a constituição do Estado deverá dar a cada cidadão uma parte do poder igual a cada
outro -cidadão. Se a lei de igual liberdade exige que todos os homens tenham a posse de iguais
direitos, parece incontestável que devem intervir em partes iguais também, na escolha do
instrumento encarregado de manter esses direitos.
Ficou, todavia, demonstrado no penúltimo capítulo que esta reivindicação não é um corolário
legítimo da lei de igual liberdade; por variados exemplos, esclarecemos que essa reivindicação não
constitui o meio de atingir o fim desejado. Investiguemos as causas prováveis desta aparente
contradição.

§ 106 - De todas as proposições concernentes à conduta humana, nenhuma há tão segura como a que
afirma que os homens, se guiam em geral pelos seus interesses e principalmente pelos seus
interesses aparentes. Os governos atendem a isso, estipulando nas cláusulas que tem por objeto
arredar os efeitos prejudiciais da mencionada tendência geral. Os mínimos atos, como a compra dum
objeto num estabelecimento ou aquisição duma giga de fruta no mercado, atestam quanto tal
tendência é universal, atuante e reconhecida.
A tendência de cada um para os seus interesses positivos ou imaginários determina inevitavelmente
o modo de ação de todas as formas de governo. Os homens que fazem parte das engrenagens políticas
ou que direta ou indiretamente as designam, deixam-se guiar pelos seus interesses aparentes: as
leis de todos os países fornecem abundantes provas desta afirmação e a história mostra
concludentemente que os que assumem o poder usam dele para seu próprio e absorvente proveito. Daí
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 62/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
tiraram os povos a conclusão de que a única maneira de assegurar os benefícios de todos é o de
atribuir a todos o poder. Esse critério é errôneo que a opinião principia já a compreender,
vagamente embora.
Aqui há vinte anos, quando na Inglaterra se reclamou num enérgico movimento de propaganda, a
extensão dos direitos políticos, os jornalistas e os oradores invectivavam a toda a hora, a
«legislação de classe» da aristocracia. Nenhum previu que a deslocação do poder se tornando de
predominante benefício para uma nova classe veria criar uma outra «legislação de classe» em
substituição da antiga. Cada dia que passa, prova que assim tem sucedido. Se é facto averiguado
que os proprietários de terras e os capitalistas da geração precedente usavam dos poderes públicos
que lhes eram confiados de maneira a beneficiarem-se e a sobrecarregar indevidamente o resto da
nação, não é facto menos averiguado que atualmente os artífices e os operários, atuando por
intermédio dos representantes submetidos às suas ordens estão em via de rapidamente refundirem o
nosso sistema social segundo um modelo que lhes assegurará o triunfo dos seus interesses com
detrimento dos interesses dos outros cidadãos. O parlamento inglês e outros parlamentos
estrangeiros, criam de ano para ano, engrenagens publicas cada vez mais numerosas destinadas a
conferir vantagens, gratuitas na aparência, mas que na realidade pesam sobre o contribuinte geral
e local: gozando dessas vantagens e exemplando-se do seu costeio, a massa popular impõe a
multiplicação delas.
Não é, pois, exata a afirmação de que possuindo todos o poder político a todos fica assegurada a
justiça. A experiência demonstra pelo contrário - nos limites em que a previsão tem podido ser
feita - que a repartição universal do sufrágio confere a classe mais numerosa asseguradas
vantagens realizadas à custa da menos numerosa. Dentro em breve tirar- se-hão às superioridades
sociais os ganhos mais elevados que lhes traz a sua mais produtiva atividade para desviar deles
indiretamente uma parte destinada a suprir os ganhos inferiores dos menos diligentes e dos menos
capazes; daí uma violação inevitável e proporcional da lei de igual liberdade. Torna-se assim
evidente que a constituição de um Estado que for apropriado ao tipo social e industrial chamado a
realizar plenamente a equidade estabelecerá a representação dos interesses em vez da representação
dos indivíduos. Com efeito o equilíbrio das funções é necessário para a saúde do organismo social
e para o bem-estar dos seus membros, e é impossível mantê-lo dando a cada função um poder
proporcionado ao número dos funcionários que essa função contém. Como a importância relativa das
diferentes funções se não mede pelo número das unidades que as constituem, o bem geral não é
assegurado com a atribuição às diversas partes do corpo político, de poderes proporcionados ao
espaço que elas ocupam.

§ 107 - Constituir-se-á um dia uma forma de sociedade na qual se possam conferir poderes políticos
iguais a todos os indivíduos sem dar assim às diversas classes poderes de que elas façam mau uso?
É impossível responder a esta pergunta. Pode ser que sim graças ao desenvolvimento das
organizações cooperativas que até ao presente não apagam a distinção entre capitalistas e
operários senão teoricamente, o tipo industrial chegue a produzir modos de ser sociais em que os
antagonismos de interesses das classes cessem de existir ou sejam atenuados de maneira a não
causarem complicações sérias. Talvez chegue um tempo em que o respeito reciproco dos interesses
refreie nos homens a procura imoderada dos seus interesses pessoais a tal ponto que a divisão
igual do poder político não determine em grau apreciável uma legislação de classe. Mas o que é
inevitável e que no seio da humanidade tal como ela existe e como existirá por muito tempo ainda,
a igualdade dos direitos políticos não assegura a manutenção dos direitos propriamente ditos.
Demais, toda a constituição do Estado que sanciona somente a moral relativa deve por uma outra
razão afastar-se consideravelmente da que sanciona a moral absoluta. As formas de governo
apropriadas às sociedades civilizadas atuais são necessariamente formas transitórias. Como o
implica toda a nossa argumentação, a constituição dum Estado dedicado ao regime militarista é
inteiramente diversa da dum Estado apropriado ao industrialismo: durante as fases da evolução
escalonada entre estes dois regimes tem que se passar sucessivamente por formas de constituição
mistas variadas e adaptando-se por influência dos acontecimentos ora a uma destas séries de
necessidades ora a outra. Já demonstrei noutra parte (Princípios de Sociologia §§ 547-575) que
excluindo os tipos humanos não progressivos e cuja organização social se tornou instável e
voltando a nossa atenção para os tipos dotados duma plasticidade superior e ainda em via de
evolução individual e social, verificamos que o desenvolvimento dum ou doutro gênero de atividade
social não tardará a determinar uma correspondente modificação de estrutura. Estas constituições
mistas de Estado apropriadas a necessidades mistas são providas duma sanção quase moral. Sendo o
fim supremo a manutenção das condições que permitam a efetivação da vida individual e das suas
atividades, e estando esse fim em perigo, ora por efeito das massas de inimigos exteriores, ora
por inimigos interiores isolados, segue-se que existe uma justificação quase ética para as
constituições políticas mais aptas a desviarem em dados momentos estas duas categorias de perigos.
Torna-se necessário pois aceitar o grau de inaptidão para um dos fins da inaptidão, inaptidão que
é determinada pela adaptação a outro fim.

§ 108. - O título deste capítulo envolve um outro assunto que não podemos deixar em silêncio: a
dos direitos políticos das mulheres. Vimos já no capítulo XX que nas sociedades militares ou
parcialmente militares não é estritamente conforme com a equidade a atribuição do direito de
sufrágio às mulheres a não ser que elas suportem cargos iguais, condição única em que se tornará
justificável que tenham poderes iguais. Partindo da hipótese de que a supressão do regime militar
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 63/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
fará desaparecer um dia este obstáculo será então vantajoso dar-lhes o direito de sufrágio?
Emprego o termo vantajoso porque, como tivemos ocasião de verificar não se trata duma questão de
justiça pura e simples. Trata-se de investigar a influência que a atribuição do sufrágio às
mulheres virá a ter na defesa dos direitos propriamente ditos. Há razões que nos fazem propender
para a opinião de que a estabilidade destes direitos ficará enfraquecida. A facilidade relativa
com que as mulheres cedem a sua impulsividade, faria do acréscimo da sua influência um fator
perturbante do trabalho legislativo. Tais como são constituídos na época atual, os seres humanos
estão já demasiadamente subjugados pelo império das suas emoções especiais quando temporariamente
excitados e não reprimidos pela soma das suas emoções. Ora a impressão de momento atua muito e
predomina muito mais nas mulheres do que nos homens. Esse traço do seu carácter está em
contradição com a impassibilidade judiciária que deveria presidir à elaboração das leis. A
condição prévia e evidente para bem legislar é a de afastar as paixões excitadas por causas
temporárias ou interesses particulares. Presentemente esta condição prévia realiza-se por uma
forma imperfeita, que mais imperfeita se tornaria ainda se o direito de sufrágio se estendesse às
mulheres.
A esta diferença moral associa-se uma análoga diferença intelectual. Ha poucos homens e muito
menos mulheres ainda que formem opiniões em que o geral e o abstrato ocupem o lugar que lhes é
devido. As suas ideias limitam-se unicamente ao particular e ao concreto. Nove por dezena dos
legisladores e noventa e nove por cento dos eleitores preocupam-se unicamente com os resultados
imediatos da medida que discutem e nem por sombra pensam nos resultados indiretos, no precedente
que essa medida vai abrir ou na influência que ela vai ter no carácter humano. Se as mulheres
votassem, a preocupação com as causas próximas e pessoais e em consideração das causas afastadas e
impessoais acentuar-se-ia notavelmente e os imensos males produzidos pelas condições atuais
aumentariam muitíssimo por certo.
Demonstrámos noutra parte deste livro que, entre a ética da família e a ética do Estado há uma
oposição radical e que é nocivo intrometer uma na esfera da outra: o perigo pode mesmo tornar-se
mortal se essa intromissão se tornar extensa e duradoura. Ora o carácter é que, em definitivo,
determina a conduta. A inteligência é uma companheira do carácter que serve apenas de instrumento
para procurar satisfazer o conjunto de sentimentos pelos quais o carácter é constituído.
Atualmente os sentimentos dos homens e das mulheres impelem-nos já a viciar a moral do Estado e a
intrometer nela a moral da família. Mas as mulheres em virtude das suas funções maternais são mais
atreitas que os homens a conceder benefícios mais em razão da ausência de méritos do que em razão
dos méritos e a darem o mais à menor capacidade. O amor do ser sem defesa - é assim que se pode em
síntese qualificar o instinto da paternidade mais poderoso na mulher do que no homem e que
predomina na conduta dela tanto dentro como fora da família - arrastá-las-ia mais ainda do que aos
homens para uma ação pública cuidadosa em excesso dos seres inferiores que elas oporiam aos seres
superiores. A tendência atual dos dois sexos é para encarar os cidadãos como possuindo títulos que
lhes são conferidos pela pobreza, quando essa pobreza é habitualmente a consequência dos seus
deméritos. Se esta tendência mais acentuada na mulher que no homem aumentar no exercício da
política, determinará uma solicitude em favor dos incapazes e em detrimento dos mais capazes. Em
vez do respeito dos direitos que, como tivemos ocasião de ver, constitui a condição prática e
sistemática da realização do princípio que exige que cada um colha os resultados bons ou maus da
sua conduta pessoal ver-se-á esse princípio sofrer mais gerais e mais repetidas infrações. Os bens
adquiridos pelos superiores ser-lhes-ão tirados com menos escrúpulo ainda para os destinarem a
assistência dos inferiores, e os males que estes últimos só por si mesmo atraíram serão mais
frequentemente ainda postos a cargo dos superiores. Um outro traço distintivo das mulheres é não
já proveniente da relação maternal, mas da relação conjugal. Ao passo que os seus sentimentos se
adaptaram à função especial da criação e da educação das crianças, esses sentimentos adaptaram-se
também à escolha dum esposo, no pé em que as circunstâncias lhe permitam escolhê-lo, O traço do
carácter masculino que mais atrai as mulheres é o vigor físico ou mental ou a união duma e doutra
dessas qualidades: esta preferência tem de resto favorecido a multiplicação dos mais vigorosos
porque em igualdade de circunstâncias, as variedades em que esta preferência instintiva se tornou
menos acentuada foram suplantadas por outras variedades. Daí o culto da mulher pela força sobre
todas as suas formas; e daí também o seu relativo conservantismo. As mulheres são mais afetadas do
que os homens pelo ascendente da autoridade sob qualquer forma que ela se manifeste - política,
social ou eclesiástica. - Esta tendência atua nelas em todos os graus do desenvolvimento social.
Ainda mesmo nas circunstâncias em que os seus sentimentos instintivos pareceriam dever produzir um
efeito oposto, as mulheres permanecem mais fieis do que os homens aos costumes santificados pelas
injunções dos ancestrais; é assim que as mulheres dos Juangs continuam a andar nuas não obstante
os homens terem já adoptado o uso da tanga. A mulher foi sempre mais atreita do que o homem ao
fanatismo religioso que não é senão a expressão duma subordinação extrema a um poder tido por
sobrenatural. Os gregos notaram esta diferença entre os dois sexos; foi também observada no Japão;
e os índios proporcionam-nos exemplos dela; e em toda a Europa se manifesta. Se se conferisse o
sufrágio às mulheres este sentimento que o poder e o seu aparato sob todas as formas nela desperta
propenderia para a defesa de todas as autoridades políticas e eclesiásticas. Nas condições atuais
uma influência conservadora desta natureza seria talvez benéfica se não fosse o traço de carácter
a que primeiramente aludimos. Mas, vindo essa influência juntar-se à predileção da mulher pela
generosidade em detrimento da justiça, o culto da força que ela tem contribuiria, a ser-lhe
concedida uma maior liberdade de expressão, para aumentar a tendência que já sentem os poderes
públicos por desrespeitarem os direitos individuais sempre que se trata de fins reputados como
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 64/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
sendo de beneficência.
O problema mudará de aspecto depois da desaparição das complicações políticas atuais, que são
provenientes dum estado de transição. É muito possível que no futuro a obtenção do direito do voto
pelas mulheres dê benéficos resultados.
Os partidários das franquias eleitorais imediatas para sexo feminino, invocam a razão de que, sem
ele, as mulheres não poderão alcançar o reconhecimento legal dos seus direitos de igualdade. A
experiência não confirma este argumento. Nestes últimos trinta anos tem sido ab-rogadas muitas das
incapacidades femininas sem grandes resistências da parte dos homens. O sentimento da justiça, tem
aperfeiçoado nos tempos modernos a conduta dos homens para com as mulheres, consideradas no ponto
de vista do seu confronto político e jurídico, com o sexo masculino. As classes dos homens
oprimidos lutaram muito mais tempo do que elas para arrancarem às classes dominantes as concessões
que reclamavam; as mulheres obtiveram as diversas liberdades que exigiam, quase sem luta contra os
homens. Conquistaram-na já em grande parte, não obstante estarem privadas do poder político; e sem
dúvida alcançarão remédio para as injustiças de que ainda tem razão de queixar-se - principalmente
no ponto de vista da guarda dos seus filhos - sem exporem a sociedade às gigantescas perturbações
políticas que custaram algumas das reivindicações dos homens.
Pela mais simples das formas: as das suas esperanças, esta probabilidade torna-se pelos fatos uma
certeza. Reclamar abertamente que as mulheres têm necessidade do direito do sufrágio para obterem
os seus justos direitos, equivale a afirmar que os homens lhes concederão o sufrágio, sabendo que
esta concessão determinará a concessão dos justos direitos das mulheres, mas que, todavia, se
recusam a conceder-lhes estes últimos em especial. A (o sufrágio), implica a aquisição de B (os
direitos.) a preposição é, pois, esta; os homens estão em via de conceder A mais B, mas não querem
conceder somente B.

§ 109. - Falta-nos tratar ainda, a propósito da constituição do Estado da repartição dos cargos
dele. Há tantas razões para insistir na repartição equitativa do custo do governo, como sobre a
repartição equitativa da sua direção. O problema, no ponto de vista abstrato parece não oferecer
dificuldades embaraçosas. As cotizações individuais, deviam ser proporcionadas às vantagens
individualmente colhidas. Os cargos deviam ser análogos, em razão da analogia das vantagens, e
diversos, em razão da sua diversidade. Resulta daqui uma distinção entre as despesas políticas que
tem por objeto a proteção das pessoas e as que tem por objeto a proteção dos bens. Geralmente
falando, os homens ligam igual valor à sua vida e à sua segurança pessoal; os gastos públicos
feitos com este intuito, devem, pois, recair sobre todos igualmente. Por outro lado, como o valor
dos bens dum operário colocado numa das extremidades da escala social, difere enormemente do valor
dos bens de um milionário, a participação das despesas a fazer com a defesa da propriedade, deve
ser proporcionada ao valor dos bens possuídos e variar mais ou menos, consoante a natureza deles.
Estas considerações dão-nos os elementos aproximados duma justa repartição, no ponto de vista da
proteção no interior. Já é menos simples formular uma justa repartição no ponto de vista da
proteção exterior. A invasão coloca conjuntamente em perigo a pessoa e os bens: o cidadão fica
exposto a ser despojado destes últimos, a ser prejudicado na sua integridade física e a ver-se
privado, mais ou menos da sua liberdade. A justiça da distribuição depende, portanto, da
importância relativa que cada um ligue a estes prejuízos e, não parece possível exprimir o valor
geral ou especial dessa importância relativa.
Contentemo-nos com dizer que, enquanto persistir o regime militarista ou parcialmente militarista,
só será realizável a aproximação grosseira duma justa incidência dos cargos públicos.
Uma conclusão se impõe, todavia. Todos têm obrigação de suportar os encargos públicos, qualquer
que seja a maneira por que a divisão deles se efetue. Todo aquele que participa dos benefícios do
governo, deve dar-lhe direta e não indiretamente a sua parte para as despesas do Estado. Esta
última condição é de capital importância. Os homens políticos preferem os sistemas da arrecadação
de imposto, em que as cotas cobradas do cidadão, lhes passem despercebidas o mais possível.
Defendem frequentemente os direitos alfandegários e os impostos de consumo, com o argumento de que
este sistema de cobrança de receitas, permite à nação o obter quantias superiores às que obteria,
se cada cidadão entregasse a sua cota nas recebedorias.
Este sistema é de condenáveis resultados, porque se apodera furtivamente de somas que diretamente
não seriam obtidas. A resistência ao imposto é assim capciosamente evitada; essa resistência
seria, todavia, salutar, porque poria um travão aos exageros das despesas públicas.
Se cada cidadão tivesse sido obrigado a pagar a sua quota parte dos impostos, sob uma forma
visível e tangível, o montante dessa quota tornar-se-ia tão elevado que todos se uniriam para
impor economias na realização de funções necessárias e resistiriam à criação de funções inúteis.
Atualmente acontece o contrário disto; como se oferecem a cada cidadão vantagens que ele supõe não
lhe custarem dispêndio algum, sente-se naturalmente inclinado a aplaudir o desperdício e deixa-se
levar, com uma improbidade mais ou menos consciente pela tendência de colher benefícios à custa
alheia.
Quando foi da agitação que em Inglaterra se ergueu em favor do alargamento das franquias
eleitorais, repetia-se continuamente a máxima: «a taxação sem a representação, é um roubo. A
experiencia tem ensinado de então para cá, que a representação sem a taxação era a mãe da
espoliação.

CAPÍTULO XXV

filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 65/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
OS DEVERES DO ESTADO

§ 110 - A maior parte dos meus leitores quer aceite quer não os princípios éticos expostos nos
primeiros capítulos deste livro, por certo estará de acordo relativamente às aplicações práticas
que foram expostas nos capítulos seguintes. Ha pessoas por tal modo inimigas do método dedutivo
que rejeitariam essas aplicações práticas se pela indução não fossem verificáveis. Tivemos, porém,
ocasião de mostrar a respeito de todos os resultados a que chegámos pelas nossas deduções que o
conjunto dos homens civilizados os tem sucessiva e empiricamente adotado e que a experiência
acumulada os fez inscrever nas leis e os revestiu de uma autoridade que se tornou cada vez mais
acentuada. Na atualidade, mal se pode pensar em contestá-los.
Vamos abordar agora assuntos a respeito dos quais reinam as mais contraditórias opiniões. A fim de
prevenirmos as objeções que possam fazer às nossas conclusões em razão dum método que se não
julgue satisfatório, vamos proceder em conformidade com um método que ninguém condenará e que
todos por mais insuficiente que ele por si próprio pareça, admitirão até certo ponto como tendo
autoridade. Dito isto, entremos na investigação indutiva concernente aos deveres do Estado.
O tão gabado filósofo Hobbes ter-se-ia abstido de publicar a sua teoria do Estado se em vez de a
deduzir duma ficção pura se tivesse preparado para ela reunindo os dados obtidos pelo estudo dos
homens primitivos ou dos homens contemporâneos dos primeiros estados da vida social. Se Hobbes
tivesse visto o que os selvagens são na realidade, não lhes teria atribuído a respeito da ordem
social e dos benefícios dela, ideias que são o produto duma vida social desenvolvida e teria visto
também que a subordinação a um poder dirigente não foi, nos tempos primitivos, ditada pelo móbil
que julgou descobrir. Em vez de proceder como Hobbes a priori, procedamos à posteriori e
interroguemos os testemunhos de que podemos dispor.

§ 111 - O primeiro ponto verificável é o de que na ausência de guerra passada ou presente os


homens dispensam o governo. Já anteriormente dissemos que os Esquimós onde as guerras de tribo
para tribo são desconhecidas, não se dão entre os membros de uma mesma tribo os conflitos que na
opinião de Hobbes têm necessariamente de surgir entre homens privados de governo. Quando acontece
que um Esquimós tenha motivo de queixa contra outro Esquimó, apela para a opinião por meio duma
canção satírica. Os Fogueanos que vivem em tribos de vinte a quarenta pessoas não têm chefe:
"parecia, diz Weddell, não terem necessidade alguma de chefe para garantir a paz interior da sua
sociedade.» Os Vedas traçam nas suas florestas linhas de demarcação honrosamente mantidas e o
chefe, isto é, o homem mais considerado de cada acantonamento não exerce, afirma Tennant, outra
autoridade que não seja a de na estação própria vigiar a partilha do mel colhido pelos membros do
agrupamento.
O segundo ponto é o de que sempre que a guerra surge entre tribos pacíficas aparecem chefes
guerreiros que adquirem uma influência preponderante. Quando na guerra um homem se distingue dos
restantes, pela sua força, pela sua coragem, habilidade, ou pela sua sagacidade, a tribo obedece-
lhe e aceita-o como chefe. Como sucede nos Tasmanianos o homem que durante a guerra adquiriu
predomínio, perde-o com o restabelecimento da paz; esta marca o regresso a um estado de igualdade
e de ausência de governo. Todavia como as guerras entre as tribos tendem a tornar-se crónicas
acontece geralmente que aquele que exerceu a qualidade de chefe em várias guerras acaba por
adquirir uma autoridade permanente; a deferência que lhe testemunham estende-se não só aos
períodos da guerra, mas aos intervalos que a separam: assim começa a soberania. Estas relações de
estrutura social desenham-se nitidamente na tribo dos Shoshonos ou Serpents, da America do Norte,
tribo que se divide em três ramos. Os Serpents das Montanhas não têm governo algum: vivem em
bandos errantes e dispersos, e nunca se unem senão para resistirem aos ataques dos seus irmãos
hostis. Os War-are-aree-Kas ou Comedores de Peixe não tem organização social a não ser no período
da pesca do Salmão em que se juntam nas margens das ribeiras e se subordinam mais aos conselhos do
que à autoridade dum chefe temporário por eles adotado. A soberania é mais acentuada nos Shirry-
Dikas gente já melhor armada e que se ocupa na caça dos bisões; a autoridade é entre eles
facilmente transmissível e liga-se unicamente ao vigor pessoal do chefe. Nos Comanches, que são
relativamente guerreiros, os chefes têm um poder mais extenso, conquanto o seu oficio não seja
hereditário, mas resultante «de superior talento, de maior habilidade, ou de triunfos guerreiros».
A partir destes graus primitivos é fácil seguir o desenvolvimento crescente de chefe à medida que
a guerra entre as tribos se torna crónica. O terceiro ponto é que a supremacia do chefe se
consolida com a sequência das guerras em que pela sua valentia foram subjugadas as tribos
adjacentes e que por sucessivas conquistas se constituiu e avigorou uma sociedade mais extensa; o
aumento do seu poder permite-lhe impor a sua vontade para além da ação militar. Quando no decurso
desta evolução as nações se constituíram e os chefes se tornaram reis, o poder governamental
tornou-se absoluto e generalizou-se a toda a vida social.
Mas, note-se, o rei era antes de tudo o chefe de guerra. Os anais dos Egípcios e dos Assírios
harmonizam-se com os anais das nações europeias, na documentação de que o rei era em toda a parte
o chefe dos soldados.
Agrupando diferentes fatos secundários para extrair deles um quarto testemunho, verifica-se que
embora o chefe do Estado nas nações modernas já não comande sempre os seus exércitos no campo da
batalha, delega, contudo, esse comando. Os reis recebem uma educação militar ou naval e são
nominalmente soldados. As supremas magistraturas civis só se encontram nas republicas e nelas
mesmo têm tendência para readquirir o carácter militar. Basta uma guerra prolongada para que o
governo torne ao seu primeiro tipo de ditadura guerreira.
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 66/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
A indução coloca, pois, fora de toda a dúvida que as ações ofensivas e defensivas duma sociedade
contra outras sociedades dão origem aos governos e favorecem o seu desenvolvimento. A função
primária do Estado, ou do agente que centraliza os seus poderes é pois a de dirigir as atividades
combinadas dos indivíduos incorporados para a guerra. O primeiro dever do agente que governa é a
defesa nacional. As medidas tomadas para a manutenção da justiça de tribo para tribo têm um
carácter mais imperativo e são de origem anterior á das medidas que visam a manutenção da justiça
entre os indivíduos.

§ 112. - A subordinação dos súbditos ao soberano não teve nem a origem nem o intuito que Hobbes
imaginou. Decorreu um tempo bastante longo antes que se tentasse realizar o fim a que Hobbes
atribui a formação do governo. Tem existido mais de uma sociedade de estado elementar e mais duma
sociedade complexa tem vivido durante longos períodos, sem que o soberano tomasse qualquer medida
destinada a prevenir as agressões de indivíduo para indivíduo. A necessidade da ação combinada
contra inimigos da tribo é evidente e peremptória; convindo a obediência ao chefe, mas não existe
nenhuma necessidade evidente de defender um membro da tribo contra outro membro. A querela não é
considerada como pondo em perigo a prosperidade comum, ou pelo menos, este perigo era considerado
de importância demasiadamente mínima para determinar uma intervenção. Enquanto não houve soberania
e enquanto só houve soberania no tempo de guerra, cada membro da tribo mantinha os seus direitos
pessoais o melhor que podia: se um indivíduo era prejudicado, esforçava-se por lesar o agressor.
Esta grosseira administração da justiça, em vigor nos animais de agrupamento e nas primitivas
hordas humanas, passou ao estado de costume reconhecido muito anteriormente ao estabelecimento de
qualquer regra política e prolongou-se por muito tempo no estado de costume transmitido pelos
antepassados e consagrado pela tradição. A lei de Talião regeu todas as sociedades primitivas,
umas vezes fora da ação do soberano e outras sancionada por ele.
Na América do Norte, entre os Serpentes, os Creeks e os Dacotas, os indivíduos lesados ou as suas
famílias é que vingavam as ofensas e lesões privadas; os Comanches, conquanto as suas assembleias
dirimissem algumas vezes sem resultado, questões particulares entre os seus membros, praticavam de
ordinário este sistema de represálias. Os Iroquês, que possuíam um governo comparativamente
adiantado, autorizavam a solução privada dos prejuízos e agressões individuais. Na América do Sul
os Uaupes, os Patagões, e os Araucanios vivem num estado de sujeição política mais ou menos
acentuado e coexistente, com uma administração primitiva de justiça e que cada indivíduo atua por
sua conta e risco ou por conta e risco da sua família. A África com as suas populações de variados
níveis de civilização, oferece-nos o espetáculo da mistura destes sistemas. Um rei ou um chefe dos
Bechuanas não pune, apesar do seu poder, senão os crimes praticados contra a sua pessoa ou contra
os seus serviçais. Entre os Africanos de Leste, o indivíduo lesado, ora se vinga por si próprio,
ora se queixa ao chefe. Nalgumas tribos negras da Costa de Oiro, existem penalidades judiciarias,
ao passo que noutras, a vingança incumbe à família da vítima; igual diversidade se encontra na
Abissínia. Passando à Ásia, vemos prevalecer entre os Árabes, um ou outro modo de repressão,
conforme o grupo e nômade ou sedentário: nos nômades o uso prescreve as represálias privadas e
restituição forçada, ao passo que nas povoações, o direito de punir é geralmente confiado ao
chefe. Os Bheels estabelecem em a ação penal do chefe e a do indivíduo, uma proporção que varia
com a extensão do poder do chefe; os Khonds, pouco respeitadores da autoridade, deixam à ação
privada o cuidado de impor a justiça. O costume dos Kareens é o de que cada homem faça justiça
pessoal, tendo porém, de se conformar com o princípio da igualdade do dano sofrido e do dano
infligido.
Existia um análogo estado de coisas nas tribos arianas, que invadiram a Europa nos tempos
primitivos. A vingança privada e castigo público, associavam-se em proporções variáveis,
diminuindo uma e aumentando outro, à medida que as tribos se aproximavam dum estado de civilização
mais adiantado. A legislação teutónica Kemble, baseava-se inteiramente no direito de guerra
privada... tinha cada homem livre plena latitude de se vingar por si, pela família e pelos amigos,
das agressões ou prejuízos que sofressem. Todavia, em vez de continuar a ser como no começo, juiz
de si mesmo, quanto à extensão das represálias a exercer, o costume submeteu-o dentro em breve a
restrições e fixou uma tarifa de indenizações graduadas, conforme a categoria. Quando a autoridade
política se tornou maior, começou por impor as penas pecuniárias que o costume havia estabelecido;
em caso de não pagamento a autoridade permitia o regresso à represália privada: que a família seja
indenizada ou que mova guerra ao agressor. Durante o estado de transição, que algumas das tribos
germânicas atravessavam, na época em que foram descritas pela primeira vez, a indemnização era
entregue em parte à vítima ou à família lesada, e em parte ao soberano. Na época feudal, só quando
o governo central se fortificou, o sistema da reparação privada começou a ceder lentamente o lugar
ao sistema da retificação pública. O direito de guerra privada durou, para os nobres, na
Inglaterra até ao século XII e XIII. Na França prolongou-se muito mais tempo. Estava de tal modo
enraizado nos costumes, que os senhores feudais consideravam quase sempre como uma vergonha,
sustentar os seus direitos de outra maneira que não fosse com as armas na mão.
Assinalemos também a persistência prolongada dos duelos judiciários e dos duelos privados.
Convêm estudar estes fados sob dois outros aspectos. A função primária do governo é de combinar as
ações dos indivíduos incorporados para a guerra; a sua função secundária, consistindo em defender
uns contra os outros os membros da tribo, nasceu pela diferenciação da função primária e
organizou-se pouco a pouco. Nos mais afastados estados a reparação privada dos danos pessoais e
materiais pertencia em parte ao indivíduo lesado e em parte à sua família e aliados. A evolução
progressiva que produziu conjuntamente a organização familiar e a agregação social dos grupos de
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 67/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
família ou classe, deu origem à doutrina da responsabilidade familiar, o que equivale a dizer que
as guerras privadas entre grupos de famílias se tornaram da mesma natureza que a das guerras
publicas entre sociedades e que a da atividade que a justiça impõe de tribo para tribo. Daí esta
ideia que o espírito de hoje encara com estranheza: em caso de assassínio dum membro do grupo
tornava-se preciso matar um membro do grupo ao qual o assassino pertencia, fosse quem fosse, ou o
próprio assassino ou outro qualquer membro da tribo.
A exigência essencial ficava satisfeita sempre que o grupo causasse um prejuízo equivalente àquele
que tinha sofrido.
O segundo aspecto destes fados é este: a administração grosseira da justiça por meio de lutas
privadas transformou-se em administração pública da justiça não em razão da solicitude que o
soberano sentisse pela equidade das relações sociais, mas, muito antes para prevenir o
enfraquecimento social resultante das dissenções intestinas. Um chefe duma tribo primitiva ou um
capitão de bandidos são forçados a reprimir as rixas entre os seus homens; fazem em diminuta
proporção o que os reis feudais faziam em grande quando interdiziam em tempo de guerra com o
estrangeiro as guerras privadas entre os nobres do seu reino. O desejo que rei tinha de assegurar
a paz social interna que servia de base ao seu poder militar, estimulava-o a transformar-se em
arbitro dos conflitos que surgiam abaixo dele. Os apelos que lhe eram feitos pelos ofendidos, e
aos quais ele correspondia pela razão que acabamos de enunciar tendiam a consolidar cada vez mais
a sua autoridade de juiz e legislador.
Uma vez estabelecida, esta função secundária do Estado desenvolve-se continuamente e ocupa uma
importância imediata à da função de proteção contra os inimigos exteriores. É de notar que
enquanto os outros gêneros da ação governamental se vão atualmente restringindo cada vez mais,
este continua aumentando sempre. As atividades militares tendem a diminuir gradualmente o poder
político que tende a renunciar a diversas ações reguladoras que dantes exercia vigorosamente, e o
progresso da civilização foi alargando sucessivamente a esfera da administração da justiça e
tornando esta mais eficaz.

§ 113. - Vejamos se a dedução nos conduziu a conclusões harmônicas com as que nos forneceu a
indução e se deriva da natureza dos homens, tais como a sociedade os condicionou que estes deveres
do Estado constituam os seus essenciais deveres.
Vimos já que uma espécie, para prosperar deve conformar-se com dois princípios opostos
respetivamente apropriados aos seus membros adultos e aos seus menores: a atribuição dos
benefícios deve operar-se para os primeiros na razão inversa do seu mérito e para os segundos na
razão direta. Desenharmo-nos no segundo destes princípios que é o que para o assunto vem a apelo.
É claro que a manutenção numa sociedade das condições que asseguram a cada um a remuneração dos
seus esforços é suscetível de ser entravada por inimigos exteriores e por inimigos interiores.
Resulta daqui que para assegurar a prosperidade de uma espécie ou duma sociedade é preciso um
razoável exercício de força mantenedora destas condições; a ação corporativa da sociedade
indispensável para o exercício desta força, é reclamada imperativamente no primeiro caso e quase
imperativamente no segundo. O conjunto dos cidadãos, exceção aberta para os criminosos, tem boas
razões para aprovar este uso da força. Quais são as determinantes dessa aprovação?
Todos sentem que a perda contingente da vida e a perda parcial da liberdade às quais os soldados
são submetidos, assim como as contribuições lançadas aos cidadãos para custeio da força armada, se
justificam porque são o instrumento que permite a cada um reclamar o seu fim supremo, exercer as
suas atividades e colher os frutos delas; sacrificam uma parte para assegurarem a parte maior. É
com este fim que eles autorizam tacitamente a ação coerciva do Estado. A necessidade duma tutela
corporativa contra os inimigos interiores é menos vivamente sentida; contudo, o desejo de a ver
estabelecer-se resulta para cada indivíduo da prossecução dos seus fins. Os membros relativamente
poderosos são sempre e em todas as sociedades muito mais raros do que os membros relativamente
fracos; estes são numericamente muito superiores. Resulta daqui que a retificação puramente
privada dos danos materiais e ofensas corporais seria na maior parte dos casos impraticável.
Quando além da assistência muitas vezes ilusória da família e dos amigos o indivíduo pôde obter a
assistência dum membro poderoso, esta assistência representa um preço; o indivíduo compra-a
primeiro com um presente que posteriormente se transforma num tributo e com o decorrer do tempo,
chega o convencimento de que mais vale pagar o preço da segurança do que sofrer perigosas
agressões. As necessidades fundamentais a que os homens no estado de sociedade estão submetidos
implicam, pois, estes dois deveres, primário e secundário do Estado.

§ 114. - Visto que estes deveres incumbem ao Estado, segue-se que ele tem obrigação de tomar as
necessárias medidas para as poder cumprir com êxito. Ninguém contesta que o Estado deve prover-se
do aparelho defensivo necessário para vencer um perigo eminente. Ainda mesmo que não seja provável
um ataque estrangeiro, o Estado tem obrigação de manter forças suficientes para repelir uma
invasão: a falta de preparativos em tal sentido, atrairia os ataques. Ainda que na parte do mundo
que habitamos não estejamos atualmente sujeitos ao perigo de hordas que se dediquem a pilhagem e
aos latrocínios dos piratas, certo é, contudo, que a menor provocação é suficiente entre os povos
ditos civilizados para lançarem uns contra os outros inumeráveis exércitos: mesmo as nações mais
adiantadas vivem na desconfiança dos seus vizinhos! As circunstâncias determinam a soma de força
militar que esta salvaguarda exige; cada caso tem de ser apreciado isoladamente.
Ao passo que a opinião reconhece plenamente a necessidade de manter uma organização sem a qual o
Estado não poderia cumprir o primeiro destes deveres, não dá uma tão exata conta da necessidade
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 68/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
que há de determinar a organização indispensável a realização do segundo. Como vimos, a proteção
dos cidadãos contra as agressões doutros cidadãos não incumbia ao governo, nos primeiros tempos, e
este tomou a si essa incumbência a pouco e pouco. O Estado, mesmo nas nações mais adiantadas
cumpre esta missão imperfeitamente e é-lhe contestado que deva realizá-la em toda a sua extensão.
Não quero exprimir com isto que a opinião corrente conteste ao Estado a obrigação de defender os
cidadãos das agressões qualificadas como criminais, e não pretendo afirmar que ele não se
desempenha dessa missão. Pretendo dizer apenas que nem o Estado nem os cidadãos admitem que ele
tenha a obrigação de os defender contra os agressores em matéria civil.
Os agentes do Estado aceitam a queixa e a defesa duma pessoa que sofreu uma lesão física mais ou
menos violenta e punem o culpado, mas permanecem inertes se essa mesma pessoa foi despojada
dolorosamente dos bens que possuía. Nesse caso o prejudicado, ou há de aceitar resignadamente a.
sua ruina, ou há de correr o risco de a agravar mais, intentando um processo e expondo-se a
intermináveis formalidades e delongas. Este estado de coisas é aplaudido não só por alguns dos
homens de leis, mas pela quase totalidade deles. Acolhem com sorrisos a proposição de que o Estado
deveria administrar justiça gratuita, tanto em matéria criminal, como em matéria civil e esse
desdenhoso acolhimento manifesta-se também contra qualquer plano de reforma tendente à realização
dum progresso para a equidade: este critério geral só se modificará quando o êxito vier mostrar a
sua razão de ser.
Se o Estado - dizem - se incumbisse gratuitamente da arbitragem entre as partes litigantes, os
tribunais ficariam de tal forma atulhados de processos que as demoras provenientes da acumulação
do serviço judiciário anulariam o fim desejado, e, além disso o país ficaria sobrecarregado com
despesas esmagadoras. Estas objeções partem da pressuposição errônea de que uma mudança na atual
organização judiciária não influiria na marcha geral dos negócios judiciários. Tem-se por assente
que se a justiça fosse gratuita e certa, o número das violações seria o mesmo que é atualmente,
que é incerta e dispendiosa. A imensa maioria das infrações em matéria civil são, porém, a
consequência da defeituosa administração da justiça e deixariam de ser praticadas em grande parte
se a inflicção da pena estivesse sempre assegurada e fácil.
Tal objeção implica uma proposição verdadeiramente inacreditável. A massa dos cidadãos tem que
escolher entre o suportar em silencio os prejuízos sofridos e o arriscar-se á ruina para tentar
obter uma reparação, e isto, porque o Estado a que essa massa de cidadãos paga impostos enormes
não cuida deles e não quer fazer face a despesa que essa proteção acarreta. O cumprimento dessa
função seria aos olhos dos nossos adversários um mal público tamanho que preferem deixar que um
incalculável número de cidadãos fique nas garras da miséria e que outros sejam levados à
bancarrota. Ao mesmo tempo que acontecem coisas destas com inteira despreocupação do Estado, o
mesmo Estado recomenda às autoridades locais que vigiem cuidadosamente o esgoto das águas de
lavagem e dos demais despojos caseiros!

§ 115. - Falta-nos referir um dever do Estado que indiretamente faz parte do último, conquanto se
possa distinguir dela e sejam especificáveis as suas consequências; e esse dever o respeitante ao
solo ocupado pela nação. É necessária a autorização do Estado para a aplicação das superfícies
diferentes das que já enumerámos e que são beneficiadas para a autorização tácita da comunidade,
agindo por intermédio do governo.
Pertence ao governo, mandatário da nação, decidir se uma empresa projetada - estrada, canal,
caminho de ferro, doca, etc. - que alterará um terreno a ponto de o tornar impróprio para os usos
ordinários, apresenta garantias de utilidade pública tais, que justifiquem a sua alienação. O
Estado deve fixar as condições a que subordina a aprovação da em preza e essas condições devem ser
equitativas para os capitalistas que nessa empresa empregam os seus fundos, e proteger os direitos
da comunidade existente, tendo em conta os interesses das gerações futuras que hão de vir a ser os
supremos proprietários do território. Parece que nem a alienação permanente do território nem o
direito por parte do Estado de romper sem escrúpulos e a seu mero arbítrio o contrato concluído (o
que atualmente é vulgar) constituem meios equitativos de atingir os fins que devem ter-se em vista
para a realização de melhoramentos públicos. Esses fins seriam melhor assegurados por meio duma
alienação feita por um período especificado, reservando-se o Estado o direito de modificar ou
anular as condições da concessão no terminus desse período.
Ao governo incumbe também como mandatário da comunidade exercer uma fiscalização conexa com a
faculdade anteriormente especificada, mas diversa dela. Compete ao corpo governativo, por si ou
por intermédio dos seus delegados locais, a missão de autorizar ou proibir os trabalhos executados
nas ruas e outros espaços públicos para instalação ou reparação do material dos serviços de águas,
de gás, de telefones, e outros serviços análogos. Esta fiscalização é indispensável para a
proteção dos interesses particulares e coletivos contra as agressões de membros ou de grupos
isolados da comunidade.
Claro é que, pela mesma ordem de considerações, devem ser submetidos à vigilância do Estado os
rios, os lagos, e toda a mais superfície da água interior bem como o mar que banha o litoral. É
legítimo impor aos que dessas massas líquidas se aproveitam, restrições que salvaguardem a
comunidade que é quem tem o seu domínio eminente.

§ 116. - Quais são, pois, os deveres do Estado, encarados estes pelo seu aspecto mais geral? Como
deve atuar uma sociedade, usando da sua capacidade corporativa para que os membros dela atuem
usando das suas capacidades individuais? Estas perguntas têm várias respostas.
A prosperidade duma espécie está assegurada o melhor possível quando cada um dos seus membros
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 69/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
adultos colhe os bons e os maus resultados da sua natureza privativa e das consequências que dela
dimanam, A realização desta exigência implica, para as espécies que vivem em agrupamento que os
indivíduos se não imiscuam uns nas atividades particulares dos outros e que mutuamente se não
impeçam de colher os frutos naturais dos seus atos e que não possam descarregar sobre outrem as
más consequências desses atos. A obrigação que incumbe ao agregado social ou, melhor dito, à massa
incorporada dos cidadãos, é a de assegurar o funcionamento desta lei última da vida da espécie tal
como as condições sociais a restringem.
O dever de todos é, para benefício de cada um, o de vigiar pela manutenção desta necessidade
essencial porque nenhum indivíduo isolado bastaria para mantê-la efetivamente por si só. Nenhum
conseguiria repelir isolado uma invasão de estrangeiros; regra geral a resistência dum indivíduo
às invasões interiores, isolado ou com o concurso dos seus amigos seria ineficaz ou perigosa e
custar-lhe-ia grande dispêndio de tempo e de dinheiro, se é que não sofria todos estes
inconvenientes conjuntamente. De resto um estado universal da defesa do indivíduo implica um
estado de antagonismo crónico que deteria ou entravaria, pelo menos, a cooperação e as facilidades
que ela dá à vida. Relativamente à distinção a estabelecer entre as atribuições da ação
corporativa e as atribuições da ação individual é claro que a ação corporativa quer ela se
restrinja ao seu próprio domínio quer o ultrapasse pode em bom direito ser empregada para prevenir
as intervenções que viessem sobrepor-se na ação individual aquelas de que necessita estado social.
Todo o cidadão deseja viver, e viver uma vida tão plena quanto as circunstâncias lhe permitam.
Deste desejo de todos resulta que todos são interessados em que ninguém sofra na sua própria
pessoa uma ruptura da relação entre os atos e os fins e que ninguém viole essa relação na pessoa
de outrem. A intacta manutenção das condições que permitem a realização da vida é um fim que
difere fundamentalmente do que tem pôr fim a imiscuição na efetivação da própria vida quer se
trate de ajudar, quer de dirigir quer de deter o indivíduo. Vamos investigar primeiramente se a
equidade permite ao Estado desempenhar este papel e se há considerações políticas que venham
confirmar as considerações ditadas pela equidade.

CAPÍTULO XXVI

Os Limites dos Deveres do Estado

§ 117. - A teoria do governo paternal surgiu naturalmente na época primitiva, em que a família e o
Estado se não haviam diferenciado ainda, quando a obediência comum ao ascendente mais idoso, pai,
avô ou bisavô reunia sob a sua direção os membros do grupo. Pondo de parte, como Henry Maine os
mais antigos grupos sociais, subscreveremos a sua afirmação genérica, de que entre os povos
arianos e semíticos, o poder despótico dos pais sobre os filhos, se transmitia à medida que estes
últimos se transformavam em chefes de família, e que esse poder despótico imprimia um carácter
geral à fiscalização exercida em todos os membros do grupo. A ideia do sistema de governo que
daqui resultou, estendeu-se, como era inevitável, ao sistema que se constituiu quando os grupos de
famílias se juntaram em comunidades. Este sistema persistiu também com a fusão de comunidades
pouco numerosas em sociedades maiores, que não eram ligadas por qualquer afinidade de raça ou
cujas afinidades eram frouxas.
A teoria do governo paternal, que assim se formou, afirma tacitamente a legitimidade do governo
ilimitado. A autoridade despótica do pai estendia-se a todos os atos dos filhos e o governo
patriarcal que daí proveio, chegou naturalmente a exercer-se relativamente à vida inteira dos
súditos. Neste estado a autoridade despótica não conhecia nem distinções, nem delimitações; e
quando o grupo, tendo na sua totalidade uma origem comum, conservou alguma coisa da sua
constituição originária, enquanto reteve em comunidade absoluta ou parcial o território que
habitava e os seus produtos, a concepção dum governo com autoridade ilimitada ficou sendo o que
provavelmente se adaptava melhor às necessidades sociais.
Tal como sucede com as ideias religiosas antigas, esta velha ideia social tem sobrevivido e
reaparece continuamente, em meio de condições sociais inteiramente diferentes daquela a que foi
apropriado. Um vago sentimentalismo manifesta ainda a sua estima pelo governo paternal. Esse vago
sentimentalismo não procura compreender o sentido preciso do governo paternal e não avalia por
consequência a impossibilidade da sua aplicação a sociedades chegadas a um desenvolvimento
superior. Não existe nem pode existir atualmente nenhum dos caráteres originais do governo
paternal. Merece a pena observar esta oposição de condições.
A paternidade implica de ordinário a propriedade dos meios de subsistência dos filhos e dos
serviçais; um direito aproximado a este continua a subsistir sob a forma do governo patriarcal.
Nas nações adiantadas, porém, este carácter apaga-se e cede o lugar a um caráter inteiramente
oposto. O aparelho governamental já não fornece a subsistência submetida à sua autoridade; pelo
contrário são estes que provêm às necessidades do governo. No verdadeiro regime patriarcal era o
detentor do poder o detentor também de todos os bens existentes, o benfeitor e o senhor dos
filhos. Os governos modernos, pelo contrário, recebem a maior parte do seu poder daqueles que
ocupam a posição que no regime patriarcal ocupavam os filhos; não é, pois, possível que se
transforme em seu benfeitor, no sentido em que empregamos esta palavra, pois que recebe das mãos
deles os meios que lhe permitem agir em seu nome. Além disto os interesses dos governantes e dos
governados, são quase idênticos nos grupos familiares simples ou compostos e os laços de sangue
contribuem para assegurar uma ação reguladora, apropriada ao bem geral. Nenhuma das emoções que
determinam o sentimento de família e de parentesco, penetra as relações políticas das sociedades
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 70/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
adiantadas e não pode servir para pôr em cheque o egoísmo do poder, quer ele se apresente sob a
forma de um rei, duma oligarquia ou dum corpo democrático, como o dos Estados Unidos. Este
presumido paralelismo falha também relativamente aos conhecimentos e à sabedoria do governo.
No governo paternal primitivo e no governo patriarcal que dele derivou, a autoridade associava-se
em regra, a uma experiência mais vasta e a uma clarividência mais penetrante que a dos
descendentes que governava.
Nas sociedades desenvolvidas, não há nenhuma oposição deste género entre a superioridade mental
dos membros considerados como ocupando a posição do pai e a inferioridade mental dos considerados
como ocupando a posição de filhos. Pelo contrário, entre os qualificados metaforicamente de
filhos, alguns há com conhecimentos e inteligência superiores à do soberano único ou múltiplo. Nos
países de soberano múltiplo, quando os pretensos filhos têm de escolher os membros destinados a
fazer parte do governo, deixam geralmente de lado os mais capazes. Muitas vezes, é a tolice, e não
a sabedoria coletiva que governa, o que constitui um novo ensejo da relação paternal e filial. A
teoria das funções do Estado que se baseia neste pretendido paralelismo, é, pois, absolutamente
falsa. A analogia que ela imagina encontrar entre a relação de pai para filho e dos governantes
para os governados, não tem outra base que não seja a puerilidade de espírito dos seus defensores.

§ 118. - Há uma outra concepção dos deveres do Estado, nascida ao mermo tempo que a precedente,
mas que se foi diferenciando sucessivamente dela: criou-a a experiencia das ações governamentais,
necessárias à direção duma guerra e, mesmo em tempos recentes, é principalmente sob essa forma que
a ação governamental se manifesta.
Nos grupos sociais anteriores ao tipo patriarcal, o chefe dos guerreiros é, de ordinário, o chefe
de Estado. Esta identidade persiste nos estados seguintes e determina a natureza geral do governo.
Para fazer bons soldados não basta apenas subordinar os homens de posto em posto e adestrá-los por
meio de exercícios militares; é necessário também regrar a sua vida diária de modo a desenvolver a
sua capacidade guerreira. Mas isto não é tudo. O soldado-rei acostumado a ver na comunidade uma
reserva destinada a fornecer-lhe soldados e os recursos necessários, tende naturalmente a alargar
o seu império até à vida inteira dos seus súditos. Este regime militar tem predominado e predomina
ainda em várias nações da atualidade; daí a quase universalidade desta ideia de que o poder
governamental e da ideia concomitante relativamente aos deveres do Estado.
Esparta, o mais militar dos estados da Grécia, fazia da preparação para a guerra a grande ocupação
da vida, sendo a idade dos cidadãos regulamentada de princípio ao fim com a mira nessa preparação.
Embora Atenas não tenha feito esforços tão grandes para este objetivo, a guerra era nela
considerada, todavia como sendo o fim predominante. Na Republica Ideal de Platão a educação devia
adaptar os cidadãos às necessidades sociais, sendo a primeira delas a da defesa social: o poder do
corpo coletivo sobre as suas unidades era levado a tal extremo que se regrava a procriação pela
escolha dos pais e se estabeleciam preceitos relativamente às idades destes. Aristóteles, na sua
Política recomenda que se tire aos pais a educação dos filhos e que se eduquem diferentemente as
diversas classes de cidadãos a fim de adaptar cada uma delas às necessidades públicas: atribuía
também ao legislador o direito de regular os casamentos e a procriação. foi assim que a concepção
das funções governamentais, nascida do regime militar e apropriada a uma nação de combatentes, se
tornou numa concepção geralmente espalhada.
Temos nesta ocasião de verificar mais uma vez que sentimentos e usos apropriados aos estados
primitivos do desenvolvimento humano sobrevivem e permanecem nos estados superiores aos quais já
não são adaptáveis, fado este que não obsta a que a opinião e as atividades dominantes continuem a
ser pervertidas por elas. A concepção dos deveres do Estado que convinha às sociedades gregas,
convém ainda, na opinião de muita gente, às sociedades modernas. Sócrates imaginou uma organização
social reputada por ele como a mais perfeita e aprovada por Platão como tal, em que as classes
laboriosas ficavam sob a inteira sujeição das classes superiores.
Aristóteles, na sua Política considera a família como devendo normalmente ser constituída por
homens livres e escravos e ensina que num estado bem regulado nenhum trabalhador deve ser cidadão
e que todos os cultivadores do solo devem ser reduzidos à escravidão. Ha, todavia, quem tenha a
ousadia de afirmar que se faria bem em adotar a teoria helênica dos deveres do Estado. Aristóteles
esclarece-nos a sua concepção do justo e do injusto com a afirmação de que é impossível a um
operário ou a um serviçal assalariado praticar a virtude; e, contudo, há quem sustente que
procederiam os sabiamente inclinando-nos diante da sua concepção do justo e do injusto em matéria
social! As ideias apropriadas a uma sociedade unicamente baseada nas relações do Estatuto
apropriar-se-ia a uma sociedade organizada na base das relações contratuais! Uma moral política
pertencente a um sistema de cooperação obrigatória aplicar-se-ia a um sistema de cooperação
voluntária!

§ 119. - Os admiradores deste sistema poderiam, em verdade, invocar a desculpa de que a vida
militar goza ainda num certo grau em Inglaterra e em maior grau no continente um papel tão
considerável e por vezes tão extremo que estas doutrinas tradicionais seriam atualmente
apropriáveis ao estado social.
A prática força a teoria e as constantes transigências entre o que é novo e o que é velho; isto é,
a teoria é obrigada a conformar-se com a prática. Não é, por isso, possível que a opinião geral
viesse admitir que a ação governamental deve ser sujeita a restrições imperativas. A doutrina de
que o papel do Estado não pode exercer-se legitimamente senão a dentro duma esfera limitada só
pode ter cabimento numa sociedade de tipo pacifico e industrial plenamente desenvolvidos. Não é
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 71/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
apropriada nem ao tipo militar, nem aos tipos de transição entre o regime militar e o regime
industrial. A existência de relações entre as unidades e a coletividade, baseadas unicamente na
justiça é impossível enquanto a coletividade e as suas unidades se entregarem conjunta ou
separadamente, à perpetração da injustiça no interior. Homens que aluguem os seus serviços para
obedecerem ao comando e fazerem fogo sobre outros homens sem se preocuparem com a equidade da
causa que defendem são incapazes de estabelecer modalidades sociais equitativas. Enquanto as
nações europeias continuarem a dividir, com um indiferentismo cínico pelos direitos dos povos
inferiores, persistirem em partilhar as partes da terra que estes habitam, será insensato esperar
que o governo de cada uma dessas nações tenha tais deferências pelos direitos dos indivíduos que
se desvie duma ou doutra medida que a política pareça recomendar. Enquanto a força que efetua
conquistas no estrangeiro conferir direitos aos territórios conquistados, a opinião da mãe-pátria
persistirá na doutrina de que um ato do Parlamento é onipotente e de que a vontade do agregado tem
o direito de se impor, sem limite, às vontades individuais.
A razão permite por certo alegar que, nas condições atuais, é indispensável a fé na autoridade
absoluta do Estado. Pode defender-se a hipótese tácita de que a engrenagem dirigente, que uma
comunidade escolheu ou aceitou, não deve ser sujeita a restrição alguma, pois que, a não ser
assim, seria impossível assegurar a união combinada das ações individuais, união que os
acontecimentos por vezes tornam precisa. Na guerra, a falta de confiança no general em chefe pode
ser uma causa de derrota; semelhantemente, o ceticismo relativo à autoridade governamental pode
dar origem a hesitações e a dissenções fatais. A doutrina da autoridade ilimitada do Estado
prevalecerá, pois, enquanto a religião da inimizade influir poderosamente na religião da amizade.

§ 120. - Remontados à origem da concepção corrente dos deveres do Estado, vimos quais as causas
por que ela sobreviveu, embora só parcialmente seja adaptável às condições modernas. Isso
habilita-nos unicamente a prepararmo-nos melhor. Tendo nós reconhecido que é provável, se não
certo, que a teoria respeitante à esfera de ação do governo, que se adaptava às sociedades
organizadas sobre o princípio de cooperação obrigatória, não possa adaptar-se às sociedades
modernas organizadas sobre o alicerce da cooperação voluntaria, prosseguiremos nas nossas
investigações para procurarmos, para conseguirmos chegar a uma teoria apropriada às sociedades
modernas.
Cada nação constitui uma variedade da raça humana. O bem geral da humanidade realiza-se pela
prosperidade e expansão das suas variedades superiores. Ao libertar-se do estado evolutivo baseado
na depredação, quando atingir um outro estado em que a concorrência entre as sociedades se realize
sem violência, a humanidade assistirá ao crescente predomínio das sociedades em que haja maior
número de indivíduos superiores. A produção e a conservação desses indivíduos só pode realizar-se
pela conformidade com a lei que impõe a cada um as consequências, boas ou más, derivadas da
conduta que tiveram; no estado social, a conduta produtiva destes resultados deve, para cada
indivíduo, confinar com o limite criado pela presença de outros indivíduos que empregam iguais
atividades e colhem as consequências delas. Daqui resulta que, em igualdade de circunstâncias, o
máximo de prosperidade e de multiplicação de indivíduos eficientes, se produzirá quando cada um
deles possa cumprir as exigências da sua natureza, sem entravar nos outros o cumprimento das
mesmas exigências. Qual será então o dever da sociedade considerada como capacidade corporativa,
isto é, como Estado?
Não tendo que precaver-se contra os perigos exteriores, quais as obrigações que lhe ficam para
cumprir? Se o desideratum, tanto para os indivíduos como para a sociedade, como para a raça é o de
que os indivíduos possam, como tais, realizar .as suas finalidades particulares, isto é, as suas
vidas, submetendo-se às condições precitadas, a sociedade considerada como capacidade corporativa,
terá a missão de vigiar e manter o respeito dessas condições. Inútil será acrescentar que tal
missão implica a interdição de nada praticar que entrave a efetividade das referidas condições.
A delimitação dos deveres do Estado é um problema cujo enunciado se reduz a isto: Pode o Estado,
sem infringir os princípios do justo, arrogar-se qualquer outra missão que não seja a da
manutenção da Justiça?
Vamos mostrar que não pode.

§ 121. - Se o Estado ultrapassa o cumprimento do dever que lhe assinalámos, terá que adotar,
separada ou simultaneamente um dos seguintes métodos, qualquer dos quais se opõe ao cumprimento da
sua missão.
Das ações ulteriores que empreenda, uma parte delas ficará incursa na categoria das ações que
restringem a liberdade duns indivíduos além do que exige a manutenção da análoga liberdade dos
outros; o que equivale a dizer que, procedendo assim, o Estado viola a lei de igual liberdade. Por
isso que a justiça afirma que a liberdade de cada um tem somente por limites as liberdades
análogas de todos, é injusto impor-lhe um limite diferente, quer o poder que imponha essa
modificação restritiva seja um só homem ou milhares deles diretamente ou representados pelo
Estado. Temo-lo acentuado em dezenas de páginas deste livro: a lei de igual liberdade que
formulámos e os direitos especiais que dela deduzimos não existem por virtude da autoridade do
Estado: o Estado não é senão um órgão incumbido de os assegurar e manter. Se em lugar de proceder
assim, os entrava, pratica a injustiça em vez de a prevenir. A sociedade inglesa e, todas as
contemporâneas civilizadas, consideraria provavelmente como assassinatos o facto de se matarem as
crianças débeis por mandato da autoridade; a sua apreciação não se modificaria pela circunstância
de serem muitos em vez dum só, os promulgadores dessas mortes. Diferentemente do que sucedeu em
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 72/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
épocas passadas, quaisquer leis que hoje adstringissem os homens às terras em que nasceram e lhes
induzisse outras ocupações além de certas pré-estabelecidas, seriam repelidas presentemente como
um intolerável abuso de poder. É necessário, porém que os nossos espíritos e o dos estadistas se
não deixem impressionar somente por atentados tão patentes e extremos como os que apontámos. A par
desses, outros ha que importa pôr em foco. Um roubo é sempre um roubo, seja o objeto roubado uma
peça de ouro ou a ínfima das moedas de cobre; identicamente, uma agressão, desde a mais grave à
mais leve, é sempre uma agressão.
O segundo dos dois procedimentos a que aludimos no início deste parágrafo, a injustiça de direta e
especial que era no primeiro, passa a ser indefinida e indireta. Coagir o cidadão e entrar no
tesouro público com o seu dinheiro para pagamento, não das despesas concernentes à proteção da sua
pessoa, da sua liberdade e dos seus bens, mas para saldar gastos a que ele não deu o seu
assentimento - é praticar uma injustiça em vez de a prevenir.
O imposto, em razão das designações com que o crismam, das pseudojustificações com que o defendem,
e da máscara com que os costumes inveterados encobrem a natureza das coisas, não é considerado
como uma restrição da liberdade: todavia é-o. O dinheiro antecipadamente cobrado - e
principalmente o obtido pelo imposto indireto - representa uma certa soma de trabalho; a
arrecadação pelo Estado do produto dum trabalho ou deixa o indivíduo desprevenido das vantagens
que dele obtivera ou obrigá-lo-á a um acréscimo de esforço para readquirir a quantia desembolsada.
A servidão parcial que daqui resulta teve, nas épocas feudais a sua plenitude, quando, sob a
denominação corrogata proveniente do latim barbárico, as classes inferiores eram obrigadas a
efetuar ao respectivo senhor pagamentos especificados em trabalho e tempo; a comutação pecuniária
de tais serviços, modificou a forma do encargo, mas não lhe alterou a natureza. Uma corrogata do
Estado, corrogata fica sendo embora não seja imposta sob a forma de determinados gêneros de
trabalho, mas em quantias de dinheiro que trabalho representam; como a antiga corrogata sob a
forma originária e não dissimulada, a corrogata moderna é também uma privação de liberdade. De
facto, as autoridades dizem (ou é como se dissessem) aos cidadãos que administram: «empregaremos
uma parte do vosso trabalho a nosso belo prazer e não consoante estenderdes que deve ser
aplicado»; os cidadãos são, pois, escravos do governo e são-no tanto mais quanto maiores forem a
exigências daquele.
«Mas é para utilidade deles que se tornam escravos, objetar-se-á; o dinheiro que são coagidos a
entregar assegura de algum modo o seu bem-estar». A teoria é essa; porém aí está a contradita-la
os múltiplos malefícios emanados da enorme coleção das nossas leis. O ponto que nós discutimos é,
acima de tudo, um tema de justiça. Admitamos - o que não é exato - que as vantagens custeadas
pelos réditos públicos extraordinários estejam equitativamente distribuídas por todos os que
concorreram para o pagamento delas. Nem mesmo assim deixaria de existir uma contradição com o
princípio fundamental duma ordem social equitativa. Sempre que haja coação, a liberdade fica
violada, embora os coatores imaginem que o fazem para o bem dos coagidos. Quando os legisladores
impõem pela força as suas vontades às vontades dos cidadãos, violam, na pessoa destes a lei de
igual liberdade: o móbil que determinou tal violação importa pouco; o facto em si é que é tudo. O
número dos agressores não dignifica uma agressão que, ficará sendo tão criminosa como se um só
indivíduo a cometesse.
A maioria dos meus leitores á certa virá lendo com pasmo esta condenação de poderes ilimitados do
Estado e tê-la-á chocado a afirmativa de que os governos incorrem em culpa sempre que ultrapassem
os limites que demarcámos. Em toda a parte e em todos os tempos, os adeptos das ideias relativas
às instituições e aos costumes as consideraram como irrefutáveis. Em toda a parte, em que o
fanatismo imperou, o furor das perseguições religiosas procurou opiar-se no falso princípio de que
a dissidência das crenças recebidas implica premeditada maldade ou possessão demoníaca. Quando o
papa era o senhor dos reis, revestia o aspecto dum monstruoso pecado a negação da autoridade da
Igreja; e ainda hoje os indígenas de algumas regiões africanas acham que é uma monstruosidade a
adaptação de outras crenças religiosas que não sejam as locais. «Estes brancos são insensatos»
exclamam os pretos, comentando a incredulidade dos europeus pelos feitiços e crendices regionais.
Com as rudimentares ideias políticas dos povos não civilizados dá-se o mesmo.
Williams e Calvert contam no seu Tiji and the Fijians que viram um homem que estava resignadamente
à espera de que lhe aplicassem a pena de morte, não obstante a facilidade que teria em fugir por
isso que ninguém o vigiava e nada o amarrava ou lhe tolhia a inteira liberdade de movimentos. «A
vontade do soberano tem de cumprir-se» respondeu ele às observações dos dois europeus e nem por
sombras lhe passou pela cabeça que o direito dum soberano, fosse ele qual fosse, pudesse ser posto
em dúvida, ou desacatado. Na Europa, enquanto a teoria do direito divino dos reis teve a aceitação
geral considerava-se como o mais negro dos crimes negar que todos os homens devem obediência a um
só. Não há um século ainda que uma turba esteve prestes a assassinar, aos gritos de «Viva a
Igreja, viva o rei» um pregador que ousara desaprovar a forma da política eclesiástica do governo
vigente. As coisas estão ainda pouco mais ou menos no mesmo pé e a maioria dos homens alcunharão
de varrido de entendimento ou de fanático, o homem que rejeitar a doutrina da autoridade ilimitada
do Estado. A auréola divina que cinge a cabeça dos reis substituímo-la pela aureola divina que
cinge o policéfalo parlamentar. O mando dumas centenas de pessoas eleitas por uma ignorante
multidão, - mando sucessor do exercido por um homem só, que se imaginava designado pelo céu -
reclama e obtém os mesmos ilimitados poderes que aquele possuía. O direito «sagrado» da maioria,
geralmente estupida, constrangendo uma minoria muitas vezes inteligente e mais instruída, exerce-
se em quantas leis lhe apraza promulgar; não obstante há a considerar a organização parlamentar
como duma retidão e duma utilidade absoluta.
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 73/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
Assim como não é de esperar, por parte dos que consideram «como um dever sagrado a vingança
sanguinolenta», o cumprimento do preceito que ordena o perdão das injurias; assim também não é de
esperar que quem pesca votos com o engodo de inumeráveis subsídios do Estado, liguem algum apreço
a uma teoria dos deveres do Estado que poria em derrocada a quase totalidade dos seus favoritos
projetos. Mas a despeito das censuras e dos desdéns que pela teoria expendida possam manifestar,
não nos cansaremos de insistir nela e de reafirmar que os processos de tais estadistas estão em
flagrante contradição com o princípio fundamental duma vida social harmónica.

§ 122 - Esta parte dos «Principias da Ética» deveria, com rigor, findar aqui. Já enunciámos o
vereditum da moral absoluta relativo aos deveres do Estado e já tratámos das restrições admitidas
pela moral relativa ao entrar em linha de conta com as necessidades originadas pela prevenção
contra agressões de além-fronteiras. Vimos que durante a passagem da forma social militarista para
a forma social industrial, o Estado por uma exagerada concepção da sua autoridade (exagero natural
e em grande parte necessário) foi compelido à prática de inumeráveis ações injustas. Sobre o
assunto, a ética disse quanto havia a dizer. Todavia, afigurasse-nos que será vantajoso dar maior
desenvolvimento à demonstração do que, além de injustas em teoria, tais ações são, na prática,
impolíticas.
O assunto alargado assim, torna-se vastíssimo e não poderá ser cabalmente tratado no espaço de que
dispomos. O mais que atingiremos será, pois, o de escorçar as linhas principais da nossa
argumentação ajuntando-lhes alguns exemplos necessários para que melhor se lhe avalie o alcance.
Vamos tratar primeiramente do Estado em geral, considerado como um instrumento oposto a outros.
Examinaremos em seguida se a sua natureza o torna capaz de dar remédio a outros males que não
sejam os resultantes das agressões externas ou internas. Estudaremos depois o valor das razões que
se invocam para lhe assinar a obrigação e lhe atribuir o poder de realizar benefícios positivos.
finalmente, investigaremos se a extensão das suas atividades será favorável ou desfavorável do fim
último que se tem em vista, isto é, ao progressivo desenvolvimento da natureza humana.
Nota – É bom prevenir o leitor de que a realidade dos argumentos que vou passar a expor não deve
avaliar-se unicamente pela matéria dos capítulos que seguem. A quem pretenda uma defesa completa e
uma luta mais desenvolvida de fatos corroborativos, lembro os diversos ensaios que sobre este
mesmo assunto tenho intervaladamente publicado e que estão sendo reunidos numa reedição desses
mesmos ensaios que entrou no prelo. Eis os titulas deles: Do excesso de legislação. É bom o
governo representativo? Da ingerência do Estado em matéria de Bancos e de Moeda. O Feitiço
Político e a Administração especializada. Chamo também a atenção para os capítulos que constituem
a última parte da Estatística Social, obra que retirei da circulação. mas de que tenciono dar à
estampa vários trechos selecionados.

CAPÍTULO XXVII

Os limites dos Deveres do Estado

(Continuação)

§ 123 - Vimos no capítulo XXIII que uma sociedade chegada a um grau superior da sua evolução pode
adquirir uma natureza fundamental diferente da que tinha nos estados inferiores. Daí deduzimos o
corolário de que uma teoria dos deveres do Estado apropriada à primeira data dessas naturezas deve
deixar de ser apropriada a sua natureza posterior: vamos agora deduzir um segundo corolário e é
que a mudança de natureza sobrevinda alivia o Estado de várias funções de que ele havia começado
por ser o agente mais próprio e dá origem a novos agentes melhor adaptados a exercer as mesmas
funções.
Enquanto a guerra continuou a ser um dos grandes fitos da vida, enquanto a organização militar
continuou a impor-se, enquanto uma regra coerciva se tornar indispensável para disciplinar os
homens imprevidentes a domar as naturezas antissociais, foi impossível às forças não
governamentais o desenvolverem-se. Os cidadãos não tinham nem os meios, nem a experiencia, nem os
carácteres, nem as ideias que a corporação privada, quando organizada em vária escala, exige. As
incumbências de maior monta estavam todas a cargo do Estado. O único instrumento capaz de rasgar
canais, de abrir caminhos, de construir aquedutos era o poder governamental comandando legiões de
escravos. A declinação do regime militarista, ou do sistema do Estatuto e o aumento do
industrialismo, ou do sistema do contrato, foi tornando possível, pouco a pouco, e determinou a
formação gradual de múltiplas associações de cidadãos constituídas para realizarem funções
variadas e numerosas. Este resultado foi a consequência de modificações nos costumes, nas
tendências e nas maneiras de pensar produzidas, em cada geração sucessiva, pela troca diária de
serviços livremente contratados que acabaram por substituir os serviços que dantes eram
coercivamente impostos. A evolução que neste sentido se realizou permite realizar atualmente, sem
intervenção do poder governamental, diversos empreendimentos que em épocas passadas só ele podia
levar a cabo.
Devemos ter sempre em vista, na discussão da esfera própria da ação do Estado, não somente deste
facto, mas também da patente consequência que dele deriva: e é que as mudanças que se tem efetuado
estão longe do seu terminus e que é presumível concluir que novos progressos venham a justificar o
abandono, por parte do Estado, de funções que atualmente desempenha.

filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 74/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
§ 124 - Esse abandono por parte do Estado, de certas das suas funções e a sua transferência para
outros agentes constituem para o espírito de quem esteja ao corrente das leis de organização, um
incontestável progresso. Mas infelizmente, esta verdade parece passar incompreendida para aqueles
que principiaram por fazer versos ridículos nos bancos das escolas e que na idade madura se ocupam
na fatura de leis destinadas a captar a confiança das multidões. Está averiguado que o progresso
dum estado inferior para um estado superior, se caracteriza, tanto para os organismos individuais
como para os sociais, pela heterogeneidade crescente das estruturas e pela subdivisão crescente
das funções. A mutua dependência das partes aumenta em ambos os casos à medida que o tipo se eleva
e esse aumento implica, por um lado, a localização crescente de certa função na parte do organismo
que lhe corresponde e, por outro, uma aptidão crescente de função.
Milne Edwards deu há cinquenta anos a este princípio de desenvolvimento dos animais o
qualificativo de «divisão fisiológica do trabalho» e reconheceu o paralelismo que existe entre a
economia vital e a economia social. Ainda que esse paralelismo esteja sendo admitido cada vez
mais, certo é que mesmo a minoria culta não tem dele ainda senão uma vaga noção, não obstante a
extensão da divisão do trabalho que se expande aos olhos de todos nas partes industriais do
organismo social e a despeito dos benefícios que a Economia Política lhe assinala e demonstra.
Nada disto obsta a que se continue a não compreender, ou a compreender incompletamente, que esse
princípio se aplica igualmente à parte governante da sociedade e ás suas relações com as partes
restantes do corpo social. Independentemente porém dos múltiplos exemplos que o põem em foco,
poderíamos ficar certos de que a especialização e a delimitação que dele resulta se produzem
normalmente tanto nas estruturas reguladoras como em todas as outras estruturas sociais, de que
essa especialização e essa especialização são benéficas e ainda de que toda a modificação em
sentido contrário constitui um retrocesso.
A nova conclusão permanece pois no seu mesmo pé: Um estado de funções universais caracteriza um
tipo social atrasado; o abandono de funções por parte do Estado caracteriza um progresso para um
tipo social superior.

§ 125 - Provavelmente, a maioria dos meus leitores ficou ligando, a estas conclusões gerais uma
medíocre importância e crédito. Vou esforçar-me, pois, por avigora-las com argumentos de mais
fácil convencimento. No § 5.0 deste livro assinalei o fado de que todo o corpo vivo depende da
adaptação particular e conveniente de cada parte à sua função particular. Salientei também que a
compensação necessária entre as faculdades de cada parte se efetua por virtude da sua concorrência
constante em face da subsistência e do afluxo, para cada uma, da quantidade, de subsistência que
corresponde ao trabalho dispendido. É supérfluo demonstrar que a concorrência assegura, nas partes
industriais da sociedade, uma análoga compensação por análogos meios e que a manutenção constante,
nos limites do possível, da relação entre o esforço e a vantagem obtida serve com o máximo êxito o
conjunto das necessidades sociais.
Esta compensação opera-se espontaneamente em todas as corporações não governamentais que
constituem a maior parte da vida social moderna. Não insistirei na ação da lei da oferta e da
procura que rege toda a nossa organização industrial, bastando indicar de passagem que este
princípio regula todas as instituições não governamentais, tais como as associações voluntarias
que tem por fim o ensino religioso, as associações filantrópicas e as uniões operarias. A
atividade de todas elas aumenta, permanece estacionária, ou declina, conforme o grau de satisfação
que dão às necessidades existentes. Mas isto ainda não é tudo. Torna-se preciso acentuar
insistentemente que, cada uma destas organizações é forçada, pela pressão da concorrência, a
realizar em troca duma dada quantidade de subsistência, o máximo possível de função. A
concorrência impele-as para o aperfeiçoamento; para este intuito adotam não somente as engrenagens
mais perfeitas, mas apelam para os homens mais inteligentes e mais dedicados. A direta relação que
ligam o esforço à prosperidade obriga todas estas corporações voluntarias e um trabalho de alta
pressão.
Em vez do espetáculo da relação direta entre a função e a nutrição, as cooperações impostas
realizadas pela ação governamental dão-nos, opostamente o espetáculo de relações muito indiretas.
Neste último caso as funções públicas, por estarem todas arregimentadas militarmente, por serem
todas mantidas com impostos arrancados à força, por serem todas unicamente responsáveis perante o
chefe, nomeado na maior parte dos casos em razão de conveniências partidárias, não dependem
imediatamente dos homens a que são destinadas a prestar serviço, nem relativamente aos meios de
subsistência relativamente ao desenvolvimento. Nenhum temor de falência as excita ao cumprimento
completo e rápido do seu dever, nenhum concorrente trabalhando em mais econômicas condições as
ameaça de uma perda de clientela; nenhum aumento de benefício resulta para elas do estudo e da
adoção dos melhoramentos a introduzir. Os seus defeitos patenteiam-se, por isto a toda a luz.
Conversando eu ultimamente com um funcionário e aludindo à negligencia dum dos seus colegas
«respondeu: ora! pagam-lhe mal e não admira por isso que não esteja para massadas». A consequência
desta relação indireta entre os resultados realizados e os emolumentos recebidos é a de que as
administrações governamentais continuam a viver e a subsistir quando já não prestam serviço algum
durante anos e por vezes, durante gerações sucessivas. Para lhes corrigir a moleza, a lentidão, e
a negligencia o único remédio que há é o de as pôr em movimento, apesar da complicada máquina
governamental, por intermédio de reclamações enérgicas e repelidas com infatigável perseverança.

§ 126 - Todos os dias a imprensa nos proporciona exemplos que veem em apoio destas verdades, e que
são aplicáveis às próprias funções essenciais que na atualidade não podem deixar de ser reservadas
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 75/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
ao Estado. O funcionamento desordenado das engrenagens de proteção nacional e individual é uma
causa de intermináveis escândalos.
Vemos por exemplo, que na administração do exército inglês o comando em chefe é dado a um duque da
família real e que o vasto quadro do generalato tem por único objeto a satisfação de interesses de
classe e que as promoções raramente representam a recompensa do mérito. A administração oculta aos
nossos oficiais aperfeiçoamentos que patenteia aos oficiais estrangeiros, os segredos dos nossos
arsenais são divulgados pela inconfidência dos empregados. Citaremos ainda as espantosas
descobertas feitas relativamente aos nossos depósitos de material de guerra, onde se encontraram
vagonetas tortas, sabres que se quebram, cartuchos que não entram nos respectivos canhões, e
projetis de dimensões mal calculadas. A comissão de inquérito de 1887 relatou a este propósito: «o
nosso sistema atual não tem uma regulamentação nítida e é dirigido ao acaso; não se tomou ainda
medida alguma eficaz e publica para o aprovisionamento e fabrico das nossas reservas de guerra,
para a descriminação das responsabilidades dos funcionários culposos ou negligentes, e nem sequer
se tem procurado averiguar os abusos existentes».
Numerosas queixas, investigações e denúncias, têm vindo mostrar que o estado da marinha inglesa é
igual ao do seu exército. Toda a gente se lembra do acontecido nas manobras navais destinadas à
celebração do jubileu: mais de doze navios de grande e pequeno lote, sem que se tivessem sujeitado
às contingências dum combate naval ficaram danificados em resultado de colisões, explosões e de
acidentes nas máquinas. Pouco antes haviam-se dado nos vinte e quatro torpedeiros que faziam
serviço de cruzeiro na Mancha fatos menos graves, mas não menos significativos: desses vinte e
quatro barcos ficaram oito inutilizados. Ouve-se a todos os instantes falar de navios de guerra
que não governam, de canhões que rebentam, de vasos com rombos abertos. O Sultan, navio de guerra
de primeira classe, afundou-se depois de haver batido de encontro a um rochedo e o Almirantado
considerava-o como perdido quando - significativo contraste - apareceu uma companhia que o içou e
pôs a flutuar. O relatório acerca da administração do Almirantado publicado em março de 1887
declara que «a gestão dele aplicada a uma casa de comercio fá-la-ia falir em poucos meses.»
O mesmo acontece relativamente aos trabalhos legislativos e da administração das leis. É tão
patente a falta de tino que neles continuamente impera, que a opinião pública nem já se comove com
isso. O parlamentarismo dá-nos frequentemente, provas da maior precipitação e da maior incúria:
umas vezes as leis são votadas a galope e sem discussão após as leituras regimentais; outras vezes
depois de terem sido retardadas por meio de uma minuciosa discussão voltam na sessão imediata a
passar novamente por toda a fieira parlamentar. Querendo prever tudo, acumulam-se nos projetos de
lei alterações sobre alterações e uma vez votadas essas leis, vão perder-se no amontoado caótico
das leis anteriores, aumentando a confusão existente. De nada valem queixas nem reclamações.
Uma comissão de legistas e de homens de Estado publicou em 1867 um relatório que concluía pela
necessidade de um digesto como preliminar de um trabalho de codificação e declarando energicamente
que era um dever nacional proporcionar aos cidadãos os meios de conhecerem as leis a que são
obrigados a obedecer. Todavia o Estado nada fez ainda, apesar do assunto ter sido renovado por
várias vezes e a despeito do exemplo que é dado por indivíduos particulares: o Index dos Tribunais
de Equidade de Chitty e o Digesto da Lei Criminal de James Stephen vieram até certo ponto dar
ensinamento aos nossos legisladores a respeito da sua obra e da dos parlamentares que os
precederam. O hábito embotou-nos a tal ponto que nos tem impedido de discernir o carácter
monstruoso deste facto: enquanto os arrestos judiciais não estabelecem regras sobre a aplicação de
algumas leis novas, os próprios homens do foro ignoram como hão-de usar delas. Por seu lado os
juízes antipatizam com as leis novas pelo trabalho que elas lhe dão a interpretar. Um deles disse
no pretório a propósito de um artigo de lei, que não acreditava em que o sentido desse artigo não
tinha sido compreendido nem por quem o redigira nem pelo parlamento que o aprovara. «Um outro
declarou que não era possível ao engenho humano encontrar termos mais confusos e mais ambíguos»
que os duma determinada lei. A consequência natural de tudo, isto é, a multiplicação dos
incidentes e recursos judiciais, a protelação dos julgamentos e, como remate, o terem os
pleiteantes pobres de ceder lugar aos pleiteantes ricos que os arruínam arrastando-os de instancia
para instancia. A espantosa desproporção das condenações dá também motivo a um permanente
escândalo. Um jornaleiro, foi em Faversham, condenado a pena de cadeia por se ter aproveitado para
comer de uma porção de favas que subtraiu da propriedade em que andava trabalhando e que valeriam,
quando muito, um vintém: um homem rico que passe numa questão com outro homem a vias de facto
torna-se quite com a justiça pagando uma indenização de que a sua fornecida bolsa quase se não
ressente.
O tratamento dado aos inculpados anteriormente a qualquer condenação e aos acusados reconhecidos
como inocentes depois de sentença condenatória é mais revoltante ainda: os primeiros são metidos
na cadeia durante meses sucessivos até ao dia em que o julgamento venha mostrar a sua inocência;
os outros tendo já sofrido prolongado castigo obtém quando a sua inocência vem a ser reconhecida
um simples "perdão» desacompanhado de qualquer indenização pelos duros transes em que se viram e
pelo perigo que correram. Os mais pequenos incidentes da vida social - o pagamento a um cocheiro
ou a compra de uma gravata - patenteia-nos a toda a hora os defeitos governativos; mas onde eles
mais se salientam é no fabrico da moeda. Possuímos um sistema misto de moeda decimal, duodecimal e
doutra moeda indefinível. As peças de três e de quatro pences quase se não distinguiam, até há
pouco, uma das outras. Ha quatro anos, por ocasião do jubileu, introduziram-se na circulação peças
de seis pences que foi necessário retirar quase logo a seguir porque se assemelhavam de tal modo
aos meios soberanos que bastava doura-las para os fazer passar como tais. É preciso um minucioso
exame para diferençar as novas peças de quatro schilings das antigas moedas de cinco schilings. Na
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 76/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
maioria dos casos, a informação mais indispensável, que é a do valor oficial da moeda, brilha pela
sua ausência. Além de tudo isto, o Estado não procura ajustar a oferta com a procura, por isso que
em toda a Inglaterra se reclamam clamorosamente as moedas de menor valor, sem que a instituição
respectiva se dê ao trabalho de as cunhar e lançar na circulação.
A indução confirma, pois, com acumulados testemunhos a respeito de três ramos essenciais da
administração governamental e a respeito dum ramo secundário, a conclusão que tirámos das leis
gerais da organização.

§ 127. - Falta-nos fazer notar ainda duas deduções capitais da proposição geral que expusemos sob
uma forma abstrata e apoia-la em exemplos concretos. Se o público tolera a extravagancia, a
estupidez, a incúria, a obstrução que se manifestam diariamente na nossa administração militar,
naval e legal, mais indulgente se mostra ainda relativamente aos defeitos doutros ramos que não
tem tamanha importância e que não atraem tanto as atenções. Os vícios do funcionalismo são
inevitáveis em toda a espécie de organização oficial e pulularão em excesso naquelas em que a
necessidade de os reprimir seja menos urgente. A razão indica-nos que o Estado se incumbe de
funções não essenciais que vem, assim, juntar-se às suas funções essenciais, não se desempenhará
delas insuficientemente apenas, mas deploravelmente.
A segunda das deduções é a de que o Estado cuja atenção e energia deriva para funções não
essenciais, realizará mais ineficazmente que antes as suas funções essenciais. A faculdade de agir
num diminuto grupo de objetivos enfraquecerá quando se lhe acrescentem objetivos novos. A crítica
do público disseminando-se por uma grande variedade de assuntos será menos eficaz do que quando se
concentra num número restrito de pontos. Se o Parlamento, em vez de gastar a sua atenção com mil e
um assuntos diversos, e se ocupasse exclusivamente dos que tivessem por fito a proteção nacional
exterior e interior, ninguém se atreveria a duvidar de que esses dois ramos essenciais da ação
governativa ficassem melhor assegurados. Se a imprensa e as reuniões eleitorais tivessem por tema
dominante estas matérias e não perdessem tempo em questiúnculas de subalterno interesse, o público
passaria, certamente, a não tolerar a incúria que atualmente suporta.
Quer se procure evitar a multiplicação de funções mal exercidas pelo Estado, quer se procure
simplesmente assegurar um mais eficaz desempenho das suas funções essenciais, a delimitação torna-
se imprescindível. A especialização das funções assegura, diretamente, o exercício de cada função
pela adaptação do seu órgão respectivo e, indiretamente, o das outras funções permitindo a cada
uma adquirir o seu órgão apropriado.

§ 128. - A maioria das pessoas pouca importância ligará às razões que demonstram que na
administração dos negócios sociais, há um completo acordo entre a justiça e a utilidade política.
Nem mesmo os homens de ciência quando se trata de fenómenos vitais, manifestam muitas vezes, a
devida importância à lei natural e a universalidade da casualidade. A importância que o vulgo dá a
essa universalidade é mínima, quando não é nula. Só os argumentos que assentam sobre fados de
ocorrência diária conseguem alcançar êxito: e ainda mesmo sendo assim, as multidões anegam-lhes
muitas vezes o valor.
É, pois, conveniente reforçá-las com outros argumentos baseados em testemunhos diretos e
pertinentes. Vamos consagrar-lhes o capítulo imediato.

Capítulo XXVIII

Os Limites dos Deveres do Estado (Continuação)

§ 129 - «É conveniente desconfiar da percepção direta nos problemas simples. Para se chegar a
conclusões seguras é necessário adotar algum modo de exercer uma fiscalização apropriada para
corrigir o engano dos sentidos. A reflexão pura e simples basta, pelo contrário, nos problemas
complexos. Podemos então adicionar e compensar adequadamente as provas sem as referir a qualquer
verdade geral.»
Esta absurda proposição faz sorrir alguns dos meus leitores? Mas porquê? Ha dez probabilidades
contra uma de que, por uma forma melhor ou pior mascarada, faça parte das suas opiniões. Quando um
operário se ri dos termômetros e se supõe capaz de avaliar a temperatura dum líquido introduzindo
a mão dentro dele, o leitor, sabendo que a sensação do quente e do frio varia consideravelmente
conforme a temperatura da mão, discerne imediatamente o absurdo da presunção do operário, que é
filha da ignorância. Esse mesmo leitor não vê, talvez, nada de absurdo na tentativa de chegar,
dispensando a direção de qualquer princípio, a uma conclusão exata concernente às consequências de
um ato que afete de inúmeras maneiras milhões de seres humanos; neste caso, parece-lhe supérfluo
adotar um critério qualquer destinado a fiscalizar a correção das suas impressões diretas.
Suponhamos que se trata de recomendar o sistema da retribuição dos professores nas escolas do
Estado em razão dos resultados que obtiverem: ficará certamente convencido de que esse estimulante
oferecido aos mestres será benéfico para os alunos. Nem pela cabeça lhe passa perguntar a si
próprio se não será excessiva a pressão que daí resultaria. Não verá que, com grandes
probabilidades, favoreceria uma receptividade mecânica e que o excesso de matérias ensinadas
poderá determinar uma aversão intensa pela instrução. Não considerará que os alunos inteligentes
serão objeto duma atenção especial com detrimento dos alunos de menores dotes intelectuais; e em
que um sistema que não estima a instrução por si própria, mas como meio de ganhar dinheiro, não
produzirá provavelmente a saúde de inteligência e reduzirá a máquinas os próprios professores.
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 77/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
Supondo compreender claramente os resultados imediatos e não procurando investigar os resultados
afastados ou desprezando-os acharia excelente o projeto. Quando vinte anos mais tarde os efeitos
deste fossem julgados maus até ao ponto de se abandonar o sistema depois de comprometida a saúde
de milhares de crianças e infligido uma soma incalculável de sofrimento físico e mental, este
insucesso nada ensinaria ao nosso homem e no dia imediato tornaria a julgar qualquer projeto
seguindo exatamente o mesmo método, isto é, contentando-se com um exame superficial e com uma
compensação de probabilidades. Ora foi isto exatamente o que nós dissemos no começo deste
capítulo. O recurso aos princípios gerais é julgado indispensável para os problemas simples, mas
reputado dispensável para os assuntos complexos. Contudo, um instante de reflexão faria ver que é
provável que esses raciocínios desprovidos de direção devem ser errados, mas também que deve
existir uma direção capaz de assegurar a correção dos nossos juízos. Ha nada mais contrário ao bom
senso do que imaginar que os fenómenos sociais sejam subtraíveis à causalidade natural? E como
repelir a acusação de denuncia quando, admitindo-se a causalidade natural, se promulguem leis em
que essa causalidade não tenha entrado em linha de conta? Demonstrámos num dos precedentes
capítulos que se a causalidade não existisse todas as leis seriam iguais e o legislar seria uma
ocupação ridícula. Se, pois, as leis não têm igual valor é forçoso admitir que tal lei opera dum
modo mais salutar que tal outra nos homens agregados em sociedade; nesse caso esta operação mais
salutar implica um certo grau de adaptação à natureza dos homens e aos seus modos de cooperação.
Relativamente a estes existem, pois, princípios gerais, uniformidades muito profundas e o efeito
definitivo duma legislação deve depender do grau em que essas uniformidades entrem em linha de
conta para se subordinar a elas. Ha nada mais insensato do que deliberar antes de conhecer essas
uniformidades?

§ 130. - É uma insensatez, tanto por parte das sociedades como por parte dos indivíduos, o
procurarem a realização da felicidade sem atenderem às condições que a tornam possível. Mas o erro
das sociedades é pior ainda do que o dos indivíduos, porque o indivíduo consegue muitas vezes
iludir as consequências da sua imprevidência, ao passo que a sociedade, em razão da incidência
dessas consequências num grande número de indivíduos, não consegue subtrair-se a elas.
O método do criminoso é o de avaliar as consequências prováveis de cada um dos seus atos,
abstraindo de qualquer sanção geral que não seja a prossecução da felicidade. Decide-se a agir ou
não, conforme as probabilidades de obter o gozo e evitar o sofrimento. Desprezando as condições de
equidade que deviam detê-lo, dá primazia aos resultados próximos sobre os afastados, avaliando-os,
muitas vezes, com tanta exatidão que acontece chegar a colher largos gozos com dinheiros mal
adquiridos e subtrair-se ao castigo dessas más aquisições, Mas com o andar dos tempos as
desvantagens acabam por formar déficit no confronto sobre as vantagens, não só por que não
consegue eximir-se sempre das penalidades, mas também porque, em razão da natureza que as suas
ações desenvolvem nele, é incapaz de elevados gozos.
O político empírico segue com um desígnio altruísta a mesma linha de conduta, traçada com desígnio
egoísta, pelo violador das leis. Conquanto não tenha em mira o seu bem pessoal, mas o que julga
ser o bem dos outros - o político empírico calcula a probabilidade dos prazeres e dos sofrimentos
e, despreocupando-se dos preceitos da equidade pura, resolve-se pelo emprego dos métodos que, no
seu pensar, assegurarão os primeiros e afastarão os segundos. Tratando-se por exemplo, de dotar de
livros e de jornais as chamadas bibliotecas populares, visa resultados que considera como
benéficos e não pergunta a si próprio se na verdade é justo aplicar o dinheiro tirado por imposto
a A, B e C afim de proporcionar vantagens a D, E e F. Tomando medidas para reprimir a embriaguez e
os males que dela derivam, preocupa-se unicamente com o ponto restrito que visa e resolve impor
aos outros as suas próprias opiniões, restringindo a liberdade de compras e vendas, suprimindo
industrias capitais que se haviam constituído à sombra da lei e prejudicando os capitais que nelas
giravam. Como o agressor egoísta, o agressor altruísta guia-se unicamente pela apreciação dos fins
imediatos e a ideia de que os atos que pratica violam o princípio fundamental de uma vida social
harmoniosa não consegue detê-lo. Salta aos olhos que este utilitarismo empírico que faz da
felicidade o fim imediato, está em flagrante contradição com- o utilitarismo racional cujos pontos
de mira são as condições de realização definitiva.

§ 131. - Os partidários do empirismo político não poderão invocar razões de queixa pelo facto de
submetermos o método que empregam ao critério que lhe dita. Visto que, desdenhando os princípios
abstratos, nos convidam a tomar só em linha de conta os resultados, quer antecipadamente previstos
quer posteriormente verificados pela experiência, o melhor que temos a fazer é aplicar o método
que defendem a esse próprio método. Vamos tenta-lo.
Em 19 de maio de 1890, discutindo-se na câmara dos lords um projeto de lei com carácter
socialista, falou o chefe do governo nestes termos:
«Antes de adotar uma proposição, não inquirimos acerca da sua origem ou derivação filosófica senão
até ao ponto em que um homem sensato examina os atestados de um criado de que precisa, sem se
preocupar o que pudesse ter sido o avô desse serviçal».
O primeiro ministro meteu assim a ridículo a hipótese da existência de princípios gerais que regem
a vida social, princípios com os quais a legislação deve conformar-se. E continuando a discursar,
na mesma afinação, acrescentou:
«Cada caso tem uma regra especial que é a das circunstâncias».
O método que lord Salysburi assim abertamente preconizou, alcançou, de resto, universal
seguimento, por parte de todos os homens políticos que se jactam de práticos e que mofam dos
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 78/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
«princípios abstratos».
Desgraçadamente tem ele sido, desde há milhares de anos, o adotado pelos legisladores cujas
funestas leis elevaram as múltiplas formas da miséria humana até um grau insuscetível de exata
medição.
O lema: «cada caso tem uma regra especial que é a das circunstâncias» foi que inspirou a
Diocleciano a fixação do preço dos salários e das mercadorias. Esse mesmo lema foi também que
determinou os governos europeus a determinarem, pelos séculos afora, em inumeráveis casos, qual a
quantia que devia ser dada por tal ou qual volume ou peso de produtos.
Baseando-se em critério idêntico, foi que na Inglaterra, depois da peste negra, se promulgou o
Estatuto dos trabalhadores que deu origem à revolta dos camponeses. Norteando-se por ele, foi que
tanto no nosso país, como em muitos outros, as leis se intrometeram na vida industrial, rodeando
de entraves até ao extremo de prescreverem os processos de fabrico, a qualidade das matérias
primas a empregar, nomeando verdadeiras chusmas de fiscalizadores da observância desses preceitos
e criando pesadas penalidades para quem as infligisse. As leis que impunham aos proprietários a
divisão do solo que possuíam em terras aráveis e terras de pastagem, as referentes a tosquia do
gado lanígero, às trelas das charruas, à imposição de determinadas culturas e à proibição de
outras - tiveram igualmente por ditame o princípio de que: «há uma regra para caso especial que é
a das circunstâncias...» O mesmíssimo princípio foi que deu de si o estabelecimento de pagamentos
impostos sobre a saída de certos produtos e a proibição da entrada de outros. A ele se devem as
penalidades que equiparavam os usurários aos ladrões e as que reprimiam os açambarcadores de
géneros alimentícios. Cada uma destas inumeráveis leis era executada por uma nuvem de
funcionários, os quais em França quase chegaram a estrangular as indústrias. Esta superabundância
de leis restritivas feitas a esmo foi uma das causas da Revolução Francesa; e, não obstante
qualquer delas se afigurava a quem as ditou como justificadas pelas circunstâncias. Igual critério
e necessidade transitória foi que originou centenas de leis suntuárias que os reis e os seus
ministros impuseram a sucessivas gerações. Desde o Estatuto de Merton até 1872 foram ab-rogados na
Inglaterra para cima de quatorze mil atos do Parlamento, Parte deles vieram a fusionar-se nas leis
gerais; outra foi eliminada, por supérflua; outra ainda descaiu gradualmente em desuso. Quantos
deles, porém se revogaram por terem produzido maléficos resultados? Metade? A quarte parte? Menos
ainda? Demos de barato que se revogassem três mil atos, por motivo da confirmação, dada pela
experiência, dos perniciosos efeitos provindos deles. Que dizer a respeito dessas três mil leis
que entravaram a felicidade dos homens e que sobrecarregaram de miséria as gerações, durante anos
e séculos?
Visto que nos devemos guiar pela observação e pela experiência, qual é o veredito que a observação
e a experiência pronunciam sobre tal método de governo? Não provam uma e a outra que esse método
tem acumulado defeitos sobre defeitos? Mas, objetar-nos-ão talvez «esquecei-vos de que, se muitas
leis foram revogadas por prejudiciais, outras muitas deram satisfatórios resultados e são mantidas
ainda.» Certamente; mas, nem por isso, a objeção apresentada deixa de ser infeliz. Com efeito, o
que são leis benéficas? As que se conformam com os princípios fundamentais que os políticos
práticos costumam desdenhar. São as leis da filosofia social a respeito das quais lord Salisbury
falou com tamanho desdém, as que sancionam os corolários da fórmula da justiça, pois que, como
mostrámos em vários capítulos, a progressiva edição das leis ratificadas pela ética tem
acompanhado a evolução social. Os fatos sentenciam, pois, uma dupla condenação do utilitarismo
empírico e demonstram irrefutavelmente a derrota dele e a vitória do seu oposto.
Note-se que nem lord Salisbury, nem os demais aderentes da escola empírica, manifestam o chamado
espírito de sequência, conservando-se uniformemente fieis ao método que arvoram como bandeira. Ao
contrário, para cedas categorias de fatos importantes adotam o método que ridicularizam. Se
quiserdes ver a prova, é colocá-los em face de questões de solução clara e fácil e vereis que
repudiam energicamente o estribilho «das circunstâncias».
Investigando as causas da facilidade com que se escapam às malhas policiais os gatunos que
infestam as ruas de Londres, conta o autor dum comunicado a certo jornal o seguinte: Vendo há dias
passar por um indivíduo parado a uma esquina um ladrão que fugia, com o produto do seu roubo, do
encalço do roubado, perguntei ao indiferente observador da ocorrência.
- Porque o não deteve quando passou ao pé de si?
- Eu?! Que vantagem havia nisso? O pobre diabo pela certa tem maior precisão dos objetos roubados
que o dono deles.
O homem da esquina, era também dos que adotava preceito: «cada caso tem uma regra especial que é a
das circunstâncias». Comparou o grau relativo da felicidade do ladrão e do roubado e deduziu do
confronto a justificação do roubo.
«Mas o direito de propriedade deve ser defendido, retorquiria lord Salisbury. A sociedade aluiria
se cada um tivesse o direito de se apropriar do que é de outrem, acobertando-se na desculpa de que
está mais necessitado do que o legítimo possuidor.» Perfeitamente; falando, porém, assim, lord
Salisbury não apreciará o facto de harmonia com a doutrina que proclama, põe de lado as
circunstâncias especiais que diz deverem servir de lei a cada caso, e passa a regular-se por um
princípio geral. A diferença essencial entre os dois métodos fica bem salientada no episódio
reproduzido. As lições legadas por milhares de anos atestam que a sociedade progride em razão da
conformidade cada vez mais estrita com os corolários da fórmula da justiça e que será, pois, de
bom critério procurar para cada caso nova e idêntica conformação. Todavia lord Salisbury julga que
tal conformação se torna inútil quando haja uma maioria que afirme que as circunstâncias
aconselham "para certo caso particular» um desvio dessa conformidade.
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 79/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt

§ 132 - É deveras surpreendente que a despeito dos fatos quotidianamente narrados na imprensa
noticiosa, haja quem possa ainda imaginar que as consequências das medidas tomadas para cada caso
especial ficam circunscritas exclusivamente a esses fatos. A leitura das gazetas não torna os
homens mais avisados. A despeito do minucioso relato de todas as ocorrências nacionais e mundiais
que sob os seus olhos se desenrola a cada vinte e quatro horas, não veem que uma modificação
introduzi da numa parte da sociedade determina modificações em todas as outras partes dela e
persistem na convicção de que um Ato do Parlamento produzira unicamente os efeitos previstos pelos
que o votaram e nenhumas consequências imprevistas. Ora, não é assim, como tive ensejo de
demonstrar algures quando tratei da «causalidade frutificante.» É preciso ter sempre presente à
ideia de que em todo o agregado formado de partes mutuamente dependentes, os efeitos duma causa se
tornam, por si próprios, causas muitas vezes mais ativas que esses mesmos efeitos. Por seu turno,
os efeitos destas últimas causas transformam-se em causas novas. O que sucedeu há anos com a alta
do preço do carvão?
Exerceu uma pronunciada influência no orçamento de cada lar, originando enormes sofrimentos às
classes populares. Ressentiram-se as oficinas, sendo baixados os salários e aumentado o preço das
vendas. A exploração dos jazigos de ferro tornou-se mais dispendiosa e o preço de todos os artigos
em que esta substância entra em grande proporção aumentou consideravelmente. Daí a carestia que
atingiram as máquinas, a construção e conservação dos caminhos de ferro, etc., etc. A concorrência
entre a indústria inglesa e as indústrias estrangeiras fez perder aquela as suas anteriores
vantagens; o número de navios fretados para o transporte dos nossos produtos decresceu e,
conseguintemente, a indústria das construções navais sofreu um prejuízo reflexo, bem como todas as
demais indústrias com ela conexas. Igual reflexo atingiu também um sem número doutras
manifestações do trabalho nacional.
A este mesmo propósito, é de lembrar também o que aconteceu com a greve das docas londrinas e
quais os resultados da ininteligente simpatia dos que encarando «o caso especial» somente em si
mesmo, levaram o público e a polícia a tolerar as violências de que os grevistas deitaram mão para
conseguirem os seus fins. O emprego impune das agressões pessoais, das ameaças, das expulsões de
associações operárias deu causa a proclamação doutras greves, em que foram usados idênticos e
censuráveis processos, noutros pontos do país: Southampton, Tilbury, Glasgow e Nottingham. Os
pintores de construções, os surradores, os entalhadores, os fabricantes de balanças, os
manipuladores de pão, os carpinteiros, os tipógrafos, os afixadores de cartazes seguiram na
esteira. Da Inglaterra o movimento alastrou para a América e Austrália onde os elementos
agitadores do operariado procederam a instigações cuja falta de escrúpulo foi maior ainda do que
no reino unido. De tudo isto resultaram, como efeitos secundários, perturbações e paralisações
imediatas em várias indústrias que diretamente foram afetadas pela greve e prejuízos mediatos
noutras que com elas tinham relação. Como resultados terciários advindos desse movimento, poder-
se-á apontar o incentivo que desde então adquiriu a utopia de que basta aos operários coligarem-se
para alcançarem o bom êxito das suas reclamações e o impulso dado a pretensões que conduziriam o
trabalho à morte. Como resultados mais longínquos, citaremos o incremento duma legislação cheia de
impertinentes minúcias que entravam a livre expansão industrial; e o desenvolvimento das ideias
socialistas.
Multiplicando-se e reproduzindo-se, os efeitos indiretos dão muitas vezes causa, com o andar do
tempo, a um estado de coisas inteiramente oposto a que se pretendia e previa. Há no presente e no
passado bastos exemplos desses desvios. O Ato parlamentar do ano 8º do reinado de Isabel teve por
intuito o colocar os habitantes de Shrewsbury ao abrigo da concorrência, e interdizia a todos,
exceto aos burgueses, o comércio de tecidos de algodão estampado. Decorridos seis anos apenas, os
próprios habitantes de Shrewsbury suplicaram ao parlamento a revogação da citada medida
protecionista «por causa do empobrecimento e da miséria dos operários e dos demais interessados,
em suposto benefício dos quais o Ato parlamentar fora promulgado. Com os tecelões de Spitalfields
deu-se o mesmo. Quanto aos abundantes casos contemporâneos comprovativos da nossa afirmativa,
indicaremos as leis votadas nos estados de Oeste da América com o fim de favorecerem o extermínio
dos gaviões e dos lobos. Não obstante os benefícios que o Governador de Grant enaltecia na
mensagem dirigida à Câmara Legislativa do Colorado, em janeiro de 1885, e os que os membros desta
assembleia julgaram produzir com a votação das medidas reclamadas pelo referido funcionário, os
lobos e os gaviões continuaram a pulular independentemente dos prémios criados para quem os
matasse». É o que se infere da totalidade dos prémios pagos. Experiência semelhante e sem
resultado, se fez na índia para o extermínio dos tigres e das serpentes.
Desde os tempos em que a mendicidade formigava às portarias dos conventos até à época em que a
nossa antiga Lei dos Pobres inundou várias paróquias de pedintes, tem a experiência provado
uniformemente que as medidas ditadas pelas circunstâncias aparentes de cada «caso especial»
produziram resultados de todo contrários aqueles que as promulgaram: aumentaram as dificuldades
existentes, em vez de as diminuírem. Dos fados recentes ressalta igual comprovação. O presidente
da União de Bradfield, diz num artigo do Spectator, de 19 de abril de 1890, que a administração
daquele instituto de beneficência conseguiu no período de dezessete anos, com um critério baseado
em princípios e liberto de sentimentalismos, reduzir o número dos pobres dentro da Workhollse, de
259 a 100, e, fora, de 999 a 42.
O artigo finda por manifestar o convencimento de que «os socorros distribuídos nas ruas é que dão,
em grande parte, aso à indigência.
Arnold White, escrevendo de Tennyson Settlement, na colónia do Cabo, a propósito dos processos
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 80/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
colonizadores, insiste na urgência de se arredar de vez o velho hábito de pretender-se remediar
apenas as necessidades aparentes. «Um plano de colonização, diz ele numa carta de 10 de janeiro de
1891, publicada no Spectator, falhará inteiramente se não previr com rude, mas necessário
desassombro, a morte dos inúteis, dos que se recusem a trabalhar ... A experiência de longos e
amargurados anos gravou em mim, como se fosse um ferro candente, esta lição». Se em assuntos de
caridade nos deixarmos guiar pelas circunstâncias aparentes de «cada caso particular»
exacerbaremos o mal em lugar de o curarmos.
O critério do legislador que despreza a filosofia e não quer ver se não os fados que se
circunscrevem ao acanhado horizonte abrangido pelos seus olhos, merece o mesmo nenhum respeito que
o operário que se junta a outros para reclamar trabalho em obras públicas com o fito único de que
perante as suas exigências o trabalho lhe será dado, sejam ou não úteis as obras em que o
empreguem.
O operário que assim procede só atenta nas consequências imediatas e previstas do seu caso
particular sem que o preocupem os resultados mediatos ou imediatos que a ele não tenham relação.
Os efeitos da aplicação de capitais a uma obra que não dará um lucro financeiro ou um proveito
material ou moral compensadores, importa-lhe pouco. Não se dá á canseira de investigar quais as
obras mais remuneradoras e de maior vantagem a que os capitais deveriam ser aplicados; tão pouco
se preocupa com o rendimento que outros operários e industriais poderiam obter juntamente com ele.
Pois coisa parecida, mas em maior escala, se dá com os estadistas de acanhado empirismo. Talvez
que as suas previsões vão um tanto mais além do que as do figurado proletário que trouxemos para
exemplo; mas, na realidade, estão quase tão longe como ele de possuírem a concepção nítida das
vibrações que duma lei irradiam, retratando-se e repercutindo-se até ao infinito no ambiente
social.

§ 133. - O que é pior: a credulidade sem provas ou a negação contumaz em face de fados e
testemunhos convincentes?
A ingenuidade do que persiste em acreditar, a despeito de quaisquer circunstâncias em que firme a
sua persuasão, é contraria à integridade do raciocínio; não é, porém, defeito menor o daquele que
se obstina na negativa em frente de fatos acumulados que deveriam convencê-lo. Este último gênero
de ceticismo é tão perigoso como a excessiva credulidade.
Tal qual o vulgar dos cidadãos, o legislador vulgar não liga a mínima importância à ação benéfica
das forças sociais, apesar dos infinitos exemplos que dela existem. Obstina-se em considerar uma
sociedade como se fosse uma passiva máquina e não como o produto de progressivos desenvolvimentos;
os seus olhos permanecem cerrados ante o facto de que os vastos e complexos organismos sociais que
a vida de hoje efetiva, são o resultado das cooperações espontâneas dos homens na persuasão dos
seus fins particulares. Todavia se perguntarmos a um desses estadistas como foi que a terra se
desbravou e tornou fértil, como foi que se constituíram e engrandeceram as cidades, como foi que
as mais variadas industrias se desenvolveram, como foi que nasceram as artes, como foi que se
desenvolveu a ciência, como foi que se gerou a literatura, será forçado a reconhecer que nenhum
destes progressos é obra fundamental dos governos e que vários dentre eles têm, pelo contrário,
sofrido a ação entravante do Estado. Não obstante, esse estadista continuará no seu sistemático e
ignorante critério de governo, invocando o Parlamento sempre que se procure realizar um benefício
ou prevenir um mal. Persistirá na cegueira da sua fé a respeito de um agente cujos erros e
fraquezas são sem conto e não toma em consideração uma força que, tem no seu ativo, inumeráveis
triunfos.
Cada categoria de sentimentos diversos que impelem os homens para a ação desempenha um papel na
produtividade das estruturas e das funções sociais. Como tivemos ocasião de mostrar, o primeiro
efeito dos sentimentos egoístas - ativos sempre e sempre poderosos - foi o de desenvolver os
fenómenos concernentes à produção e distribuição das riquezas: toda a vez que se rasgava uma nova
área de atividade suscetível de lhes proporcionar vantagens, os homens mostraram-se logo prontos a
alagar-lhe os limites, expandindo-a. Quer se tratasse de romper o canal de Suez ou de lançar uma
ponte sobre o Forth, de segurar prédios, ou vidas, ou fazendas das lojas de comercio ou os vidros
que se emolduram nos mostruários dos estabelecimentos; quer se organizem excursões de recreio ou
explorações de terras desconhecidas; quer se intente um empreendimento de resultados amplos quer o
de uma instalação, de distribuidores automáticos de binóculos nos teatros ou nas estações, a
iniciativa privada tem o dom da ubiquidade e varia infinitamente nos seus aspectos: quando o
Estado a repele de um ponto, canaliza-se para outro. A energia das empresas particulares e o
espírito obstrucionista do funcionalismo patenteia-se em milhares de casos, dos tempos antigos até
aos nossos. Encontramo-los por exemplo, na supressão feita no reinado de Carlos II de uma em preza
postal em que cada carta era levada ao seu destino por um preço ínfimo e manifestam-se atualmente
em acontecimentos como o da recente tentativa da supressão da Boy Messengers Company.
Se mais é preciso dizer em abono da iniciativa privada, citaremos ainda as American Express
Companies, que dão um patentíssimo exemplo da superioridade das em prezas espontâneas. Uma delas
tem 7000 sucursais, organiza os seus comboios expressos, transporta anualmente 25 milhões de
fardos e outras formas de acondicionamento de mercadorias e mantêm um sistema postal, que é
aproveitado pelo próprio governo por ser de superior organização à do serviço oficial das Postas.
A enorme expansão de relações dessa companhia estende-se à Europa, Índia, África, América do Sul e
até a Polinésia.
A par dos sentimentos egoístas cujas forças combinadas tem desenvolvido o organismo que faz
subsistir as sociedades, manifestam-se também nos homens o sentimento ego-altruísta e o sentimento
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 81/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
altruísta - o amor do aplauso e a simpatia - que os incitam à prática de outras ações isoladas ou
combinadas e que dão origem às mais diversas instituições. É escusado remontar ao passado para
assinalar a ação desses sentimentos sob a forma de donativos para obras educativas e de caridade.
O presente oferece-nos bastos testemunhos de iniciativas dessa natureza. Na Inglaterra e
principalmente na América multiplicam-se os legados de grandes somas para a criação e manutenção
de institutos de ensino, para o custeio de novas cadeiras, de bolsas de estudo, para a construção
e desenvolvimento bibliográfico de bibliotecas públicas. Oferecem-se parques e jardins às
municipalidades e deixam-se ao Estado preciosas coleções particulares. O Standard de 11 de abril
de 1890, publica um mapa dos legados aos hospitais, asilos, missões e outras sociedades
caritativas, cujo total atingia 300:000 libras esterlinas. No Nineteentk Century de fevereiro de
1890, Huish mostra que no decurso dos últimos anos, os donativos particulares em favor das artes
atingiram 347:500 libras em edificações e 559:000 em quadros e em dinheiro; a isto poderíamos
juntar um recente donativo de 80:000 libras para a criação duma galeria de arte britânica.
Não esqueçamos a infatigável atividade duma multidão de filantropos que se dedicam à propaganda de
beneficência em favor dos seus concidadãos. Constituíram-se e constituem-se inúmeras associações
que dispõem de rendimentos consideráveis, e que se formaram para fins desinteressados: todas elas
têm por mira a beneficência, com quanto a sua organização seja frequentemente imperfeita. Longe de
enfraquecerem, os intentos se não exclusivamente pelo menos largamente altruístas, que determinam
a sua fundação e funcionamento, ganham terreno dia a dia. São forças que muitos e ótimos
resultados tem dado já e que manifestam uma crescente tendência de desenvolvimento. Devemos,
portanto, contar com a sua eficácia futura e é razoável prever que venham a produzir grandes
resultados cuja possibilidade mal agora podemos entrever.

§ 134. - Independente mesmo das restrições éticas e das deduções a tirar da especialização
progressiva que se manifesta nas sociedades, temos razões igualmente sólidas para continuarmos no
convencimento de que convém mais restringir do que ampliar as funções do Estado.
A sua extensão para a prossecução dum bem esperado, determina invariavelmente um insucesso.
A história das nações revela-nos igualmente os incalculáveis males produzidos por leis que se
guiaram apenas «pelas circunstâncias de cada espécie em particular»; é pelo contrário unanime em
proclamar o êxito das leis que unicamente se inspiraram em condições de equidade.
Todas as manhãs nos veem parar debaixo dos olhos os testemunhos da ação que exerce no corpo
político uma causalidade frutificante tão complexa que a mais vasta inteligência é incapaz de lhe
prever todos os resultados. A preconizada política pratica que imagina que a influência das suas
medidas não irá além dos limites do domínio que só teve em vista, é na realidade a mais quimérica
das teorias. A sua constante falta de êxito, na obtenção dos efeitos esperados e na correção dos
efeitos inesperados, deveria derruir a sua fé nos meios artificiais que incessantemente emprega,
e, contudo, permanece incrédula a respeito das forças naturais que tanto fizeram no passado, que
tão altivas são ainda presentemente e que nos prometem um resultado sucessivamente mais fecundo.

CAPÍTULO XXIX

Os Limites dos Deveres do Estado (Fim)

§ 135. - Resta-nos expor a mais imperiosa de todas as razões que exige a restrição da ação
governamental. A formação do carácter deveria ser o fim que, sobre todos os outros, deveria
prevalecer no espírito dos homens do Estado; era a concepção exata do que deve ser o carácter e
dos meios próprios que para o formar excluem as intervenções múltiplas do Estado.
«Como assim! - vão por certo exclamar. Pois a formação do carácter não é o fim para que tende toda
a legislação que nós preconizamos? Não sustentamos nós que a função capital do Estado é a de
formar bons cidadãos? Não foi para o aperfeiçoamento da natureza humana que se conceberam os
nossos sistemas de ensino, as nossas bibliotecas gratuitas, os nossos ginásios e as nossas
instituições sanitárias?» A esta réplica interrogativa, enunciada com tanto intono e com a
subentendida convicção de que nada mais nos resta senão remetermo-nos ao silêncio, responderemos
que o êxito depende da bondade do ideal que se alimenta e da escolha dos meios para o realizar.
Ambas essas coisas estão no caso presente inquinadas de erro radical. Os períodos precedentes
indicam suficientemente quais são as opiniões rivais que vamos analisar. Entremos sem mais
delongas na sua discussão sistemática.

§ 136. - Inumeráveis exemplos atestam tanto entre as hordas selvagens como nas nações civilizadas
que para produzir um bom guerreiro é necessário prepara-lo com esse fim. Deve exercitar-se no
manejo das armas desde o início da juventude; a ambição da sua mocidade deve ser a de se tornar um
bom atirador da flecha, de manejar a lança ou o boomerang com força e com certeza e de adquirir
aptidões para a defesa e para o ataque. Deve cultivar a rapidez e a destreza na carreira e
submeter o seu vigor a numerosos treinos. Tornasse-lhe preciso também para o fim que tem em vista
domar-se às duras exigências da disciplina e sujeitar-se por vezes à tortura. A educação de todo o
membro macho da tribo é dirigida segundo o ponto de vista da sua adaptação aos fins da comunidade
e ao concurso que deverá prestar ora para a defesa dessa comunidade ora para o ataque às tribos
vizinhas, ora para ambos estes empreendimentos combinados. Esta educação não constitui uma
educação dirigida pelo Estado no moderno sentido do termo, mas nem por isso deixa de ser uma
educação ditada pelo costume e imposta pela opinião pública, que, tácita, senão abertamente afirma
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 82/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
que pertence à sociedade moldar o indivíduo.
O progresso social, formando sociedades mais extensas e mais regularmente governadas, desenvolve
sucessivamente a educação pelo Estado. Não contentes em cultivarem com deliberado propósito o
vigor, a destreza e a força de resistência, os povos principiam a cultivar também a subordinação
indispensável para a execução das operações militares assim como a subordinação aos chefes e aos
governantes sem a qual o emprego das forças combinadas não poderia efetuar-se de maneira
satisfatória. A Grécia e em especial Esparta, constituem exemplos desta fase do progresso, à qual
se associou uma teoria apropriada. A crença de que o indivíduo não pertence nem a si mesmo nem à
sua família, mas à cidade, abriu natural caminho a doutrina de que a cidade tinha o direito de o
educar e adotar aos seus fins. Platão e Aristóteles deixaram-nos pormenorizados planos da
preparação das crianças e dos jovens para o cumprimento das obrigações de cidadão e afirmam sem
hesitações de qualquer espécie que num Estado bem regulado a educação é um assunto de interesse
público. Enquanto a guerra constitui a principal ocupação da vida, torna-se normal que a educação
dos indivíduos se efetue segundo o modelo próprio para assegurar a vitória, e que essa educação
seja confiada a um agente governamental. A experiência proporciona neste caso um ideal aproximado
e dirige a escolha dos métodos para o realizar. Procura-se transformar tanto quanto possível todos
os homens livres em máquinas militares automaticamente obedientes às ordens que recebem: para esta
transformação é indispensável uma disciplina unificadora. Por outro lado, como acontece no tipo
social militar o sistema da regulamentação coerciva que a regimentação implica alarga-se dos
combatentes até a comunidade que lhes fornece a subsistência e estabelece-se naturalmente a teoria
de que o governo deve adaptar a estas funções, não somente os soldados, mas todos os outros
membros da comunidade.

§ 137 - Ha muita gente que desconhecendo a fundamental distinção entre uma sociedade para a qual a
guerra é uma ocupação capital, tendo a sustentação por subordinada e, uma sociedade que faz da
sustentação a sua ocupação capital subordinando-lhe a atividade guerreira, pensa que uma
disciplina e uma política apropriadas a primeira o são também a segunda. Mas as relações entre o
indivíduo e o Estado diferem inteiramente nos dois casos. Ao contrário do grego que não se
pertencia a si próprio, mas à cidade, o inglês não pertence à nação de que faz parte, mas
pertence-se a si mesmo duma acentuadíssima maneira. É verdade que se tiver a idade própria o
governo pode, em caso de perigo eminente apoderar-se da sua pessoa e forçá-lo a participar na
defesa nacional; todavia esta eventualidade só muito ligeiramente restringe o seu direito da posse
da sua própria pessoa e da direção das suas ações.
Verificámos numa larga série de capítulos anteriores que de entre os direitos deduzidos da ética
que progressivamente se foram estabelecendo e que a lei escrita sancionou, foi sendo nesta
gradualmente incluído o uso livre pelo indivíduo da sua individualidade, não só em face de outros
indivíduos como também em face do próprio Estado: sem renunciar a defendê-lo contra as agressões
de outrem, o Estado, renunciou por seu lado a praticar agressões contra ele. Numa sociedade
permanentemente pacífica - o corolário é evidente - a quebra de relações seria completa. Que
influência exerce esta conclusão no assunto de que nos estamos ocupando? Implica que era de antes
a sociedade que amoldava os indivíduos ao seu desígnio e que atualmente é o indivíduo que procura
atuar sobre a sociedade e adaptá-la aos seus intuitos. A sociedade deixou de ser um corpo político
solidificado que impele para a ação a massa das suas unidades combinadas. Perdeu a sua organização
coerciva e não prendendo as unidades senão pelos liames da cooperação pacífica, deixou de ser «o
meio» em que as suas atividades se desenvolvem. Insisto neste ponto: como a sociedade
corporativamente considerada não tem a faculdade de sentir, e como esta faculdade reside
unicamente nas suas unidades, a única razão que justificaria as vidas sensíveis das unidades à
vida não sensível da sociedade, só pode ser invocada sob o regime militarista e unicamente porque
então esta subordinação oferece o melhor meio de proteger as vidas sensíveis das unidades. Esta
razão enfraquece com o declinar do regime militarista e desaparece no regime industrial ilimitado.
O direito da sociedade a disciplinar os cidadãos extinguiu-se de vez e não resta autoridade alguma
com poderes para prescrever a forma que deve tomar a direção individual.
«Mas dir-nos-ão, a sociedade agindo na sua capacidade corporativa e guiada pelas inteligências
combinadas da nata dos seus membros, não prestará um importante serviço elaborando a concepção da
natureza individual melhor adaptável a uma vida industrial harmoniosa, e a concepção da disciplina
mais apropriada para que tal fim se realize?» Esta alegação subentende o direito da comunidade a
impor os seus desígnios por intermédio dos seus agentes, pretenso direito que está em contradição
formal com as conclusões deduzidas nalguns dos capítulos anteriores. Mas, sem nos determos nesse
ponto, interroguemo-nos sobre se a sociedade é realmente apta para decidir qual o caráter que
convêm ao indivíduo e quais os meios apropriados para a formação desse caráter.

§ 138. - Quer sejam bons quer sejam maus o ideal e o processo escolhidos, o facto da escolha
implica três consequências inevitáveis cada uma das quais é bastante para condenar este sistema.
A escolha impele necessariamente a uniformidade. Se as medidas adotadas derem algum efeito, esse
efeito será de uma certa semelhança entre os indivíduos: nega-lo equivaleria a negar a ação das
medidas tomadas. Mas o progresso será retardado proporcionalmente ao grau de uniformidade obtido.
Quem tenha estudado a ordem da natureza sabe que sem variedade não há progresso possível e que só
a variedade permite a evolução da vida. Conclusão inevitável: a paragem da gênese da variedade
implica a sustação de todo o progresso. Este sistema tem também como consequência a produção de
uma receptibilidade completamente passiva que O Estado se comprazerá a imprimir ao indivíduo. Quer
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 83/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
o espírito de submissão faça ou deixe de fazer parte da natureza que a sociedade incorporada
pretenda dar às suas unidades, não conseguirá realizar os seus projetos senão encontrando ou
criando essa passividade. O caráter desejado deveria incluir, ou clara, ou dissimuladamente a
disposição de cada cidadão a submeter-se a disciplina que a outros cidadãos, mais ou menos
numerosos agrade impor-lhe.
Haverá gente que considere talvez como um traço de elevada humanidade entregar assim a formação da
natureza humana ao gosto de um agregado constituído em grande parte por unidades inferiores. A
esses não lhes daremos a honra de uma discussão. Este sistema implica também o dilema seguinte: ou
não existe processo algum natural em virtude do qual os cidadãos estão em via de adaptação, ou é
conveniente que esse processo natural seja suplantado por um processo artificial. Afirmar que não
existe adaptação algum natural, e afirmar que, contrariamente ao que se passa com os outros seres,
que tendem invariavelmente a adaptar-se às circunstâncias que os rodeiam, o ser humano não tende
nem a adaptar-se a essas circunstâncias nem a sofrer modificações que o tornem capaz de realizar a
vida que as circunstâncias lhe impõem. Isto equivaleria a dizer que as variedades do gênero humano
são efeito sem causa ou que têm por causa da ação governamental. Contrariamente a esta proposição
torna-se necessário admitir que os homens se adaptam natural e continuamente às exigências de um
estado social desenvolvido. Quem admitir este ponto hesitará na afirmativa de que uma adaptação
artificial seja preferível à sua adaptação natural.

§ 139. - Passemos destes aspectos abstratos a encarar O assunto nos seus aspectos concretos.
Suponhamos, que se tinha decidido criar cidadãos que tivessem a forma requerida para a existência
da sociedade de que eles fizessem parte. Donde devia derivar a concepção desta forma? Os homens
não recebem somente em herança as constituições físicas e mentais dos seus antepassados, herdam
deles também o conjunto das suas ideias e das suas crenças. A concepção correntia do que deva ser
um cidadão será, pois, um produto do passado ligeiramente modificada pelo presente; isto é, o
passado e o presente imporão a sua concepção ao futuro. Qualquer pessoa que encare a questão pelo
ponto de vista impessoal não poderá deixar de ver que esse desideratum traria para outra esfera,
os desvairamentos cometidos em todos os tempos e entre todos os povos, relativamente às crenças
religiosas. Sempre e em toda a parte ao homem ordinário se afigura que a fé em que foi educado é a
única verdadeira. Embora seja forçado a admitir que todas as crenças que tem sido professadas com
uma confiança igual à sua devem, com exceção duma só, ser falsas, permanece todavia convencido a
exemplo de cada um dos outros homens que é a sua crença que constitui essa excepção. Quem
pretendesse impor ao futuro o seu ideal de cidadão estaria imbuído duma presunção tão absurda como
a dos crentes. Não duvidaria de que o tipo que concebeu e que as necessidades do passado e do
presente criaram fosse um tipo apropriado ao porvir. Mas os caráteres que o passado julgava
convenientes, diferem daqueles que nós consideramos como tais; para nos convencermos de que é
assim basta remontar ao passado longínquo que desprezava o trabalho e em que a virtude era
sinónimo de ousadia, de valor e de bravura. Num tempo já menos recuado um homem de alto nascimento
era qualificado de nobre, ao passo que trabalhador e vilão constituíam designações equivalentes. O
primeiro dos deveres era o da submissão abjeta de cada classe a classe imediatamente superior, e o
bom cidadão de qualquer dessas classes era obrigado a aceitar humildemente a crença que o Estado
lhe impusesse. O que não impede que os representantes mediocremente sábios de eleitores ignorantes
quase todos, de se prepararem com uma arrogância verdadeiramente pontifical para promulgarem qual
é a forma de uma natureza humana desejável e para adaptarem a próxima geração a essa forma. São
tão afirmativos a respeito dos meios a empregar como a respeito do fim a conseguir, embora o
passado nos ateste o completo cheque dos métodos adotados de século em século. No seio duma
cristandade transbordante de igrejas e de padres, de livros piedosos, de observâncias destinadas a
inculcar uma religião de amor que louva a misericórdia e prega o perdão, pune-se o espírito de
agressão e de vingança que se encontra nos povos selvagens nas mesmas pessoas que diariamente leem
a sua Bíblia, assistem aos ofícios da manhã, consagram semanas à oração e enviam às raças
inferiores mensageiros de paz, e mandam logo atrás destas expedições de flibusteiros oficiais que
os despojam in continenti das suas terras; se os naturais resistem são tratados como «rebeldes» e
qualificam-se como «assassinatos» as mortes que eles infligem em represálias, e chama-se
«pacificação. a todo este sistema de conquista violenta. Há, pois, excelentes razões para rejeitar
como erróneo o método que pretende modificar artificialmente os homens. Ha também razões
igualmente convincentes para ter fé no método natural da sua adaptação espontânea à vida social.

§ 140 - O espetáculo do conjunto do mundo orgânico ensina-nos, por exemplos infinitos em variedade
e em número que as evoluções diretas ou indiretas adaptam as faculdades de todas as espécies às
necessidades da vida e que o exercício de toda a faculdade adotada se torna numa fonte de
benefícios. Na ordem normal não só existe um agente para cada função, mas o sentimento consciente
torna-se a resultante dos sentimentos mais ou menos agradáveis determinados pela atividade dos
agentes dessas funções. Esta organização implica também que em seguida a uma perturbação a
harmonia se restabelece por si própria. Quando uma mudança de circunstâncias estabelece
discordância entre as faculdades e as necessidades, opera-se lentamente um acordo quer pela
sobrevivência dos melhores adaptados, quer pela transmissão hereditária dos efeitos da adaptação e
do desuso quer pelo concurso simultâneo das duas operações. Esta lei que vigora também para os
seres humanos, implica que, se lhe não puserem obstáculos a natureza que nos transmitiu um passado
não civilizado, e que não se adapta ainda senão imperfeitamente à atualidade parcialmente
civilizada, se adaptaria por si própria e lentamente às necessidades de um futuro plenamente
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 84/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
civilizado. Esta lei implica também que as faculdades diversas, às capacidades, e aos gostos que
se forem gradualmente estabelecendo se associarão as satisfações procuradas no cumprimento das
diversas obrigações que a vida social impõe. As sociedades civilizadas adquirem já sobre as
sociedades selvagens a vantagem duma soma considerável de aptidão para o trabalho. Desenvolveu-se
a faculdade de cooperação bem ordenada em seguida a um acordo voluntário. Já os homens são capazes
de somas tais de restrição individual que a maioria deles exercem já as suas atividades sem
violentos conflitos recíprocos. Já o interesse altruísta que os cidadãos manifestam nos negócios
sociais em geral determina a combinação espontânea de esforços individuais, para a realização de
fins de interesse público, e já as simpatias dos homens se tornaram suficientemente ativas, para
criarem uma grande, e, talvez, excessiva quantidade de instituições filantrópicas.
Visto que a disciplina da vida social chegou a tão amplos resultados em alguns milhares de anos,
não é insensato considerá-la esgotada de forças e imaginar que não chegará com a ajuda do tempo
até ao fim da sua missão?
Resta-nos enunciar uma outra verdade. A adaptação artificial é impotente para alcançar o que obtém
a adaptação natural. Em virtude da própria essência da adaptação espontânea a aptidão de cada
faculdade à sua própria função cresce à medida que se vai realizando. Se a função se exerce por um
agente substituto dar-se-á uma desarmonia orgânica, porque a natureza se deformará para se adaptar
à modificação artificial pela qual substituiu o órgão natural e próprio. A natureza esgota-se ou
debilita-se, muitas vezes com a sustentação dos agentes substituídos. Resulta dessa substituição
não só uma natureza atrofiada, estiolada, e privada dos gozos resultantes da missão realizada,
mas, como a subsistência dos instrumentos dirigentes prevalece à sustentação dos seres dirigidos,
estes últimos definham e a sua adaptação sofre um novo entrave.
Insisto, uma vez mais, nesta distinção fundamental: enquanto a guerra constitui a única ocupação
da vida, a cooperação imposta que esse critério que desse regime social deriva implica que o
agregado adaptará as unidades aos seus desígnios; mas depois do nascimento e do predomínio da
cooperação voluntaria que caracteriza o industrialismo, é a adaptação espontânea do indivíduo à
vida de cooperação voluntaria que deve efetuar essa moldagem. Nenhum outro processo será capaz de
assegurar uma adaptação satisfatória.

§ 141. - Eis-nos chegados ao princípio geral que no começo enunciámos. Reconhecemos no decurso
deste livro a inanidade de todas as razões invocadas contra a lei primária da vida social: não há
salvação possível a não ser em conformidade com esta lei.
Se conseguíssemos levar um dos nossos políticos apaixonados da ingerência do Estado a refletir
sobre o alcance dos seus projetos, o sentimento da sua própria temeridade paralisá-lo-ia para
sempre. O que ele pretende é suspender de um modo e até um ponto qualquer a marcha segundo a qual
toda a vida evolui e pronuncia o divórcio entre a conduta e as suas consequências. Violando em
parte a lei da vida geral, dedica-se de preferência a viola-la sob a sua forma social. Opondo a
sua ingerência ao princípio de justiça comum a todas as coisas vivas, teima especialmente em
resistir ao princípio da natureza humana que exige que cada indivíduo goze das vantagens que colha
respeitando os limites necessários da ação, e intenta proceder a uma repartição nova das vantagens
obtidas. Põe de parte os resultados das experiências acumuladas por toda a sociedade civilizada
que registou nas suas leis, de idade em idade e com uma clareza sempre crescente, os direitos
humanos e pretende atentar contra eles. Ao passo que no decurso dos séculos os poderes reguladores
das sociedades têm, cada vez mais eficazmente, protegido os direitos recíprocos dos homens e
abstido, de mais em mais, de atentar contra eles, o nosso fazedor de projetos legislativos
pretende caminhar contra a corrente e comprimir a liberdade de ação que tem vindo a alargar-se
continuamente. Não entrando em linha de conta com o primeiro princípio da vida em geral e com o
segundo princípio da vida social em particular, a sua política esquece propositadamente as
generalizações tiradas da observação e da experiência de milhares de anos. E que títulos invoca
afinal? Nenhuns a não ser certas razões de utilidade aparente. Ora nós vimos já que nenhuma delas
é digna de inspirar confiança.
De resto, tornar-se-ia inútil refuta-lo pormenorizadamente. Que maior absurdo pó de haver do que o
de pretender melhorar a vida social principiando por violar a lei fundamental que a rege?

APÊNDICES

APÊNDICE A

A concepção de Kant acerca do Direito

Poucas ou nenhumas probabilidades ha de que possam surgir doutrinas inteiramente novas. Uma longa
série de inteligências têm, no decurso dos séculos, abordado os diferentes caminhos que se abrem
ao pensamento humano e quase todos eles têm sido percorridos e até explorados a fundo. Estas
observações são o resultado experimental de um facto acontecido comigo e foram-me sugeridas em
face de uma errónea suposição.
Na minha Estática Social ou Especificação das condições parciais da Felicidade humana e
desenvolvimento da primeira dessas condições, obra publicada pela primeira vez, em fins de 1850,
havia já exposto o princípio fundamental que no presente volume se encontra expresso no capítulo
epigrafado A formula da Justiça. Supunha eu, então, ter sido o primeiro a reconhecer que a
justiça, tal como ela deriva de múltiplos exemplos concretos e tal como deve ser sintetizada em
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 85/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
termos abstratos, se formula pela lei de igual liberdade. Estava, todavia, em erro, quanto à
pretensa originalidade dessa formula. No segundo dos dois artigos: A teoria da Sociedade de
Herbert Spencer que M. f. W. Maitland, atualmente professor de direito em Cambridge, publicou no
jornal Mind, vol. VIII, pago 508 (1883), consignava-se a circunstância de que Emanuel Kant havia
já enunciado, por outros termos, uma análoga doutrina. Como desconheço a língua alemã, não pude
avaliar, perante as citações feitas neste idioma, qual a importância da asserção do Sr. Maitland.
Ao ter de novo que abordar o assunto, procurei, quando escrevi o capítulo A Formula da Justiça,
averiguar as opiniões de Kant, Recorri, para esse fim, a recente tradução (1887) de W. Hastie: A
Filosofia do Direito, Exposição dos Principias fundamentais da jurisprudência considerada como
ciência do Direito. Encontrei lá as seguintes passagens:
«O direito é, pois, o conjunto das condições por meio das quais o arbítrio de um pode harmonizar-
se com o doutrem, segundo uma lei de igual liberdade». Imediatamente a seguir, deparou sê-me o que
vai ler-se: PRINCÍPIO UNIVERSAL DO DIREITO (P. 44)
«É conforme ao Direito ou justo toda a ação que permite, ou cuja máxima permite, ao livre arbítrio
de cada um harmonizar-se, em conformidade com uma lei geral, com a liberdade de todos.
Quando, pois, a minha ação, ou em geral o meu estado, pode harmonizar-se com a liberdade de cada
um, segundo uma lei geral, isso implica uma lesão do meu direito (thut mir Unrecht) e causa-me
entraves; porque esse entrave (essa oposição) não pode harmonizar-se com uma liberdade regrada por
leis gerais.
Daí se deduz que se não pode exigir de mim que esse princípio de todas as máximas, constitua ele
próprio a minha máxima, isto é, que eu faça dele uma máxima de conduta; porque quando mesmo a
liberdade dos outros me fosse de todo indiferente e quando mesmo não me sentisse disposto a
respeita-la com sinceridade, os outros não ficam sendo menos livres desde que eu não atente contra
eles, pelas minhas ações exteriores. É somente à ética que pertence exigir de mim que eu me
imponha a máxima de proceder em conformidade com o direito.
Assim, esta lei universal do direito: «Procede exteriormente, de maneira que o livre uso do teu
arbítrio possa harmonizar-se com a liberdade de cada um, segundo uma lei geral» impõe-me sem
dúvida uma obrigação, mas ela não contêm tudo, e não exige que em virtude de tal obrigação eu me
imponha o dever de submeter a minha liberdade a essa restrição; apenas a razão me dita que,
conforme a ideia que dessa restrição nos dá, a nossa liberdade está submetida a essa restrição e
que os outros podem também constranger a sua liberdade a submeter-se a ela. Eis o que a razão
proclama como um postulado que não é suscetível de nenhuma outra prova. Se, pois, se não tratar de
ensinar a virtude, mas somente de expor que conforme ao direito, pôde-se e deve-se mesmo deixar de
apresentar esta lei como um motivo de ação.»
Demonstram transcrições feitas que Emanuel Kant chegará a uma conclusão que se relaciona
estreitamente com a minha, se não é, por inteiro, a que eu formulei. Convém salientar, todavia,
que, embora da mesma natureza, as duas concepções do direito diferem pela sua origem e pela sua
forma.
Na página anterior aquela de que fizemos o transcrito apresentado informa-nos o filósofo de que
chegou a sua conclusão após «haver procurado a fonte desta espécie de juízos no domínio da Razão
pura»; e de que eles «fazem parte da Metafísica da Moral». Ao contrário, na primitiva edição da
Estatística Social a lei de igual liberdade primeiro esboçada e depois enunciada apresenta-se como
sendo a expressão da condição primária a que devem satisfazer os seres semelhantes que vivam
juntos para poderem realizar a maior soma de felicidade. Kant enuncia uma exigência a priori e
abstrai de todo o fim benéfico, ao passo que para mim, a conformidade com essa exigência a priori
é a única que pode assegurar a realização da finalidade dos seres.
As duas fórmulas diferençam-se nisto, pois.
Conquanto Kant reconheça o elemento positivo da concepção da Justiça quando declara que não existe
«senão um direito inato, a liberdade» certo é também que nas passagens reproduzidas, representa-
nos o direito à liberdade individual como implicitamente resultante do carácter injusto dos atos
que causam lesão a essa liberdade. Para Kant, o elemento negativo, ou noutros termos, a obrigação
de respeitar os limites, constitui a ideia dominante. Oportunamente, para mim, o elemento positivo
- o direito à liberdade de ação - é o elemento primário e o elemento negativo, resultante das
restrições que impõe a presença de outrem, é apenas o elemento secundário. Tal distinção tem
importância e para verificá-la basta atender a que num estado social de restrição política
rigorosa o que avulta é a obrigação, ao passo que num estado social em que o individualismo se
afirme com energia o que se salienta são os direitos.

APÊNDICE B

A questão da propriedade da terra

A «natureza de fauces vorazes e dentes ensanguentados» tem seguido no seu plano superior o mesmo
caminho que a civilização. A ferro e sangue foi que se consolidaram as primeiras e frouxas
aglomerações de homens, aglomerações que foram pouco a pouco aumentando de importância até que, de
aglomeração em aglomeração, se constituíram em nações. Esta operação histórica, efetuada em toda a
parte e sempre pela força brutal, acumulou iniquidades sobre iniquidades: as tribos selvagens
fundiram-se lentamente mediante a ação de bárbaros meios. Seria impossível reconstituir a cadeia
completa dos atos de desenfreada violência que desde há milhares de anos veem sendo praticados e
mesmo que tal reconstituição factível fosse, tornar-se-ia irrealizável a pretensão de modificar os
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 86/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
resultados de tamanhas violências.
O direito de propriedade da terra constituiu-se no decurso desta transformação e a sua génese é
transbordante de crimes cometidos não apenas pelos representantes de tal ou tal classe em especial
dos nossos contemporâneos, mas pelos antepassados de todos os homens que atualmente existem. Os
bisavós dos ingleses contemporâneos foram bandoleiros que esbulharam da terra outros bandoleiros
que a ocupavam e estes por seu turno tinham despojado dela outros bandoleiros que os haviam
precedido. A usurpação, ora parcial, ora completa, dos Normandos abrangeu as terras que no passado
haviam sido confiscadas em parte pelos piratas dinamarqueses ou noruegueses e em parte, numa época
ainda mais afastada, pelas hordas dos invasores anglos ou frisões. Quanto aos proprietários
celtas, expulsos ou reduzidos à escravidão por estes últimos, esses tinham também principiado por
expropriar os povos trogloditas da existência dos quais a ciência encontra, por vezes, vestígios.
Que aconteceria, se tentássemos restituir as terras outrora apropriadas contra todos os princípios
da equidade - se os Normandos tivessem de as entregar aos dinamarqueses, aos noruegueses, aos
frisões, estes por sua vez de as fazer voltar à posse dos Celtas e os Celtas de largar a retenção
delas para passar aos homens das cavernas e da idade de pedra?
A única maneira imaginável de levar a cabo uma tal operação, seria a de restituir todo o
território da Grã-Bretanha aos gauleses e aos montanheses da Escócia que não poderiam subtrair-se
a uma restituição análoga, senão invocando a desculpa de que havendo acumulado o confisco da terra
os aborígenes com a exterminação destes, haviam legitimado dessa forma os seus títulos de
propriedade!
É na verdade louvável o desejo, que frequentemente temos visto formulado, de que o direito de
propriedade da terra chegue a conformar-se com as exigências da equidade pura; nalguns esse desejo
é ditado pela consciência. Com tudo, bom seria também que se ouvisse e lesse a mesma coisa a
respeito das regiões coloniais. Não é lógico que enquanto se anseia por esse desideratum,
fronteiras a dentro, se pratiquem lá longe apropriações que são tão iniquas como as que
indignadamente censuramos aos nossos antepassados. Portanto, todo o povo inglês em massa, porque é
ele que apoia ou consente o predomínio político e fornece sem restrições os efetivos à força
armada, é responsável pelas empresas nefastas que pelo mundo fora confiscam novos territórios e
expropriam os habitantes deles. Flibusteiros de moderna data, os ingleses reproduzem, em mais
larga escala, as expedições dos seus ancestrais, invectivam as expedições antigas, mas conservam-
se prudentemente mudos acerca da iniquidade das expedições modernas. Assim, aprovam-nas,
tacitamente pelo menos, e ajudam a efetuá-las. O passivo silêncio relativamente á espoliação das
terras do universo, a qual com os seus votos poderiam sustar, e a sua prontidão em dar e pagar os
soldados que as executam, implica para todo o povo inglês uma pesada responsabilidade do que se
passa. Estão-se praticando, por delegação dele, injustiças bem mais clamorosas e bem superiores em
número aquelas de que os antepassados foram vítimas. É natural que as maiorias, privadas da terra,
pensem que a propriedade imobiliária individual tenha por fundamento a injustiça. Mas antes de
examinarmos qual o acolhimento que se deverá fazer a essa afirmativa chocamos logo com esta
pergunta: Quais os espoliadores e quais os espoliados? Pondo mesmo de parte o facto primário de
que em conjunto os antepassados dos ingleses atuais, proprietários ou não proprietários, se
apoderaram da terra pela violência expulsando dela os possuintes anteriores; e remontando
unicamente à fraude e à violência pelas quais alguns desses antepassados arrancaram a posse da
terra a outros que sem nada ficaram, surge de novo a interrogação preliminar: Quais são os
descendentes de uns e quais os descendentes dos outros? Os nossos democratas subentendem que os
proprietários atuais constituem a posteridade dos usurpadores e que os não proprietários a dos
usurpados. Não é, porém, assim, e muito longe disso. Só os títulos de alguns raros membros da
nobreza remontam à época da última usurpação e nenhum desses títulos está ligado com a época da
usurpação primeira; de mais, os nomes de muitos proprietários demonstram que eles descendem de
artífices e que não são, portanto, descendentes de espoliadores. Ao invés, um grande número de não
proprietários usam nomes que indicam que os seus ancestrais pertenciam às classes elevadas; e esse
número seria necessário duplica-lo para fazer entrar em linha de conta os casamentos com os
descendentes em linha feminina: o que leva a concluir que entre os que não possuem terras há mais
de um em cujas veias corre o sangue dos antigos usurpadores. O azedume concebido no estudo do
passado com que quantidade de não proprietários encara a classe proprietária é, pois, bastas
vezes, assente em falsos alicerces, por que eles próprios são, frequentemente, descendentes dos
culpados e aqueles a quem deitam olhos ameaçadores descendem, quanta vez, das vítimas antigas.
Mas demos de mão a tudo o que se relacione com as iniquidades do passado e atendamos somente aos
obstáculos vários que se opõem a uma reparadora distribuição baseada na equidade. Entre esses
obstáculos um ha que me parece andar esquecido. Concedamos - o que não é exato - que a raça
inglesa primitiva tenha legitimamente adquirido a posse das terras; concedamos que os
proprietários atuais constituam a posteridade dos espoliadores - o que só em parte é verdadeiro;
admitamos que os não proprietários atuais representam a descendência dos espoliados - o que só
também em parte é verdadeiro; restava ainda uma operação a efetuar que consideravelmente
entravaria a retificação das injustiças cometidas. Se é preciso considerar o passado, necessário
se torna considera-lo todo e meter em linha de conta não só que o conjunto das classes populares
foi prejudicado com a apropriação da terra a título privado, mas também que essas classes têm
recebido, sob uma forma especial, parte dos produtos dessas terras: é necessário, em suma, fazer
entrar em consideração a assistência que lhes tem sido ministrada em virtude da Lei dos Pobres. O
Sr. T. Mackay, autor de um livro relativo aos Indigentes na Inglaterra, teve a amabilidade de me
comunicar a seguinte nota que revela o aproximado total dos recursos distribuídos na Inglaterra e
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 87/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
no País de Gales a partir de 1661 (Ato da lei do 43.0 ano do reinado de Isabel):
Sir G. Nicholls, no apêndice do 2º volume da sua História da Lei dos Pobres não encontrou dados
seguros se não de 1688 para cá. Relativamente a esse ano, avalia ele o produto da Taxa dos Pobres
em cerca de 700:000 libras esterlinas. Até ao começo deste século, as totalidades abaixo
designadas são, pouco mais ou menos, exatas:
Este quadro dá o total das despesas em benefício dos indigentes. Mas sob a rubrica geral «Taxa dos
Pobres» lançaram-se sempre diferentes impostos «destinados a outras aplicações» - taxas
descontadas, dos burgos, de polícia etc. O quadro abaixo consigna as receitas anuais desses
impostos cobrados para as despesas de assistência:
Ha, pois, que juntar as somas que figuram no primeiro quadro às que no século XIX foram anualmente
elevadas de 1 e 1/4 a 7 e 1 /2 milhões de esterlinas e que foram desviadas para «outras
aplicações». Mulhall donde colhi os elementos referentes a 1853-1875 não faz menção de verbas
desviadas «para outras aplicações».
É, todavia, certo, que os 734:000:000 de libras esterlinas que de ha três séculos para cá foram
distribuídas em benefício dos não proprietários se cobraram, em parte, por taxações incidentes
sobre prédios urbanos; preciso se torna por isso deduzir do imposto lançado sobre as terras a taxa
que pesa sobre a locação. Um proprietário que é também uma das sumidades do foro inglês e muito
versado em assuntos tributários, informou-me de que computando em 500:000:000 de libras a
importância que é dispendida com os pobres e provinda de impostos lançados à propriedade
fundiária, essa quantia será muito inferior à realidade. Se a referida quantia, mesmo assim, fosse
posta a render, de alguma forma, à medida que ia sendo cobrada, teria certamente produzido uma
soma muito mais considerável ainda. De maneira que, em qualquer hipótese, os proprietários
poderiam opor as reivindicações dos não proprietários um pedido reconvencional excedente ao valor
não só aos 500:000:000 de libras, como ao valor das propriedades reivindicadas.
Note-se mais que os não-proprietários não tem nenhum fundamento atendível ao estado presente das
terras desbravadas, arroteadas, fertilizadas, drenadas, irrigadas por canalização, cobertas de
construções rurais, melhoradas enfim pelas mil e uma benfeitorias de que são suscetíveis. O único
direito que poderiam invocar seria o direito à terra no seu primitivo estado: encostas pedregosas,
florestas bravias, matos maninhos, charnecas, areais improdutivos, pântanos estéreis, etc., etc. A
comunidade quando a terra lhe pertenceu, possuía a terra assim. Qual a relação que existe entre o
valor da terra inculta como as campinas americanas e as somas que os mais pobres dos não
proprietários receberam de ha três séculos para cá? Decididamente os proprietários não regateariam
sustentando que 500:000:000 de libras são um belo preço para terras incultas e no seu estado
primitivo, onde apenas havia animais selvagens e frutos silvestres.
Na minha Estatística Social publicada em 1850, deduzi da lei de igual liberdade o corolário de que
a comunidade não podia equitativamente alienar a terra e sustentei a opinião de que depois de ter
indenizado os detentores atuais se poderia apoderar dela novamente: quando afirmei uma tal
doutrina não dera o devido peso aos argumentos que exponho agora. De mais, ignorava a esse tempo o
montante da indenização que os não proprietários teriam a pagar em troca do valor que um trabalho
poli secular deu à terra. Mantenho pois (vide capo XI) as conclusões a que cheguei: o agregado
humano coletivo é realmente o proprietário supremo do solo, conclusão que, de resto, se harmoniza
com a doutrina jurídica inglesa e que diariamente serve de lema a legislação: todavia, um mais
aprofundado exame conduziu-me à conclusão de que é igualmente necessário manter o direito
individual de propriedade da terra, mas sujeitando-a à suserania do Estado.
Dar remédio ás iniquas violências realizadas durante milhares de anos, tornar-se-ia utópico e uma
nova distribuição equitativa só pode realizar-se in abstrato tomando para base um sistema de
compensação dos títulos e das reivindicações tanto do presente como do passado: ora estou
persuadido de que de tal distribuição adviria um estado de coisas pior do que o existente.
Abstraindo de todas as objeções financeiras que se relacionam com os projetos de anexação do solo
- e mostram elas que tal anexação é impraticável pois que a ser feita equitativamente, daria perda
- bastará lembrar quanto a gerencia pública é inferior à gerencia privada, para nos capacitarmos
desde logo de que o Estado proprietário único seria um deplorável administrador. Com o atual
sistema, os que exploram a terra permanecem submetidos à relação direta entre o esforço e o
resultado obtido; com o sistema da propriedade do Estado, o trato do solo ficaria ao abrigo das
consequências dessa relação direta. Os vícios inerentes ao funcionarismo desentranhar-se-iam em
imensos e inevitáveis males.

APÊNDICE C

Poucos meses depois da publicação dos cinco primeiros capítulos do presente volume na Nineteenth
Century, inseriu o Reverendo Llewelyn Davies no Guardian de 16 de julho de 1890 uma crítica às
matérias abrangidas nesses capítulos. Porei de lado a parte da crítica do Reverendo Davies que
trata de outros assuntos e deter-me-ei apenas ante as considerações que faz acerca do sentimento
do dever e relativamente á sanção desse sentimento.
Diz ele assim:
«Embora tenha sido convidado bastas vezes a fazê-lo, Spencer, que saiba, nunca explicou de uma
forma satisfatória como é que a sua filosofia lhe permite servir-se da linguagem que usa e, ao
mesmo tempo, compartilhar o comum sentimento dos homens quando falam do dever ... Sobre esse
particular, repetirei uma observação que já fiz no meu precedente artigo: Spencer parece
subentender aquilo que não reconhece. Na sua elaboração da ideia e do sentimento da Justiça,
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 88/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
Spencer subentende a existência de uma lei que rege a razão humana e a conduta humana, quando
sustenta que o bem da espécie é desejável de per si e que o entendimento humano aceita esta lei e
corresponde a ela sem exigir outra justificação. Ora enquanto Spencer se contentar unicamente com
demarcar a marcha da evolução, não terá o direito de empregar a palavra: dever. Como poderia ele
modificar o vereditum de Kant e como lhe seria possível refuta-lo?
Para olhos que apenas se fixam nos fenómenos da natureza o termo dever torna-se vazio de sentido.
É tão absurdo inquirir o que a natureza deve ser como perguntar quais são as propriedades que deve
ter o círculo. A única interrogação possível é esta: O que se passa na natureza? Assim feita não
ultrapassará os limites que delimitam o evolucionismo e é equiparável a esta outra: Quais são as
propriedades atuais do círculo?
Quando Spencer se insurge com sincera veemência moral contra a agressão e as outras formas de
maleficio, quando protesta, por exemplo, contra o «deixa correr mesquinho que encara com
indiferença e impassibilidade a ruina dos que debalde procuram alcançar da lei a reparação dos
mais fundados e comprovados danos, utiliza-se do raio justiceiro das nossas crenças, pede
emprestado à Bíblia, sem dar por isso, o fogo celeste.»
O Reverendo Davies termina a sua carta e a sua argumentação convidando-me «a justificar o emprego
que faço de termos éticos ao mesmo tempo que adoto como norma não me afastar nunca de um processas
natural e necessário.
O artigo do Guardian foi-me enviado pelo próprio autor, e a minha resposta veio inserta, sob a
forma de carta, no referido periódico de 6 de agosto. Eis qual ela foi, com excepção dumas
passagens referentes a um outro assunto, as quais presentemente omito:

«Fairfield Pawsey, Wilts, 24 de julho de 1890.

Caro Snr. Davies,

Acabo de receber o Guardian e de ler com um vivo interesse o artigo que nele firmou. Quem dera que
a crítica fosse feita sempre dessa maneira!

Afirmando que faço ilegítimo uso das palavras «dever, justiça, obrigação» trouxe-me à lembrança as
objeções de Lilly, Não obstante as diferenças que o separam há entre o Reverendo Davies e Lilly
uma comunidade de opiniões que sobre este ponto os conduz tanto a si como a ele a sustentar que a
ideia do «dever» só pode filiar-se no sobrenatural.
Na sua hipótese, as ações dos homens são unicamente determinadas pelo reconhecimento das suas
consequências últimas e esse reconhecimento é impotente para os fazer agir em harmonia com a
justiça, pois que nenhum motivo ha para que eles conformem com a justiça as suas ações. Mas as
preferências dos homens, independentemente de qualquer previsão dos resultados afastados,
determinam diretamente a grande massa das ações desses homens e as ações assim determinadas
produzem muitas vezes o bem de outrem. Ainda que a reflexão nos mostre que essas ações se
harmonizam com os fins tidos como os mais elevados não é, todavia, essa previsão a determinante de
tais ações.
Um exemplo familiar fará realçar melhor a relação que existe entre os motivos diretos e os motivos
indiretos. Todos os pais de normais sentimentos consagram uma grande parte do seu tempo e das suas
reflexões ao futuro e bem-estar dos filhos. A sua afeição imediata impele-os para essa preocupação
que os absorve durante anos consecutivos, a todas as horas; mesmo que o quisessem, não poderiam
deixar de proceder assim. Contudo, dado o caso de que esse impulso afetivo não seja determinado
pela plena consciência do dever, se lhes perguntar porque é que se impõem esses sacrifícios,
responderão que lhes incumbe fazê-lo, que é uma obrigação que tem. Aprofundando mais o
interrogatório são naturalmente levados a declarar que se a generalidade dos homens assim não
procedesse, a raça humana acabaria por se extinguir. Embora pois a consciência do dever possa
servir-lhes para sancionar, - numa diminuta proporção para fortificar o laço natural que os prende
à descendência - esse impulso é, de per si, amplamente bastante.
O mesmo sucede relativamente à ideia da obrigação que regula o nosso procedimento com o próximo.
Como a sua experiência, meu caro Reverendo, lhe há de ter mostrado, essa conduta é suscetível de
ser fortemente incitada à realização de benefícios, sem outras preocupações, quanto às
consequências da sua prática, que não sejam as que resultam dos benefícios efetuados. Aos que
deste modo procedem, por um natural pendor do seu temperamento, se lhes perguntarmos porque
procedem daquela maneira, responderão que é do nosso dever contribuir para o bem-estar da
humanidade.
Pretende V. Reverência que a minha teoria da direção moral me não autoriza a indignar-me com o
espetáculo duma agressão ou dum malefício qualquer e acrescenta que, indignando-me, peço
emprestado a Deus o fogo celeste. Subentende-se, pois, daqui que somente os homens que aceitam as
crenças correntes tem direito a indignar-se ante a iniquidade. Por minha parte, não lhes confiro o
monopólio dessa indignação. Se V. Reverência me perguntar o que me impulsiona a censurar o injusto
procedimento dos civilizados ante as raças inferiores, responder-lhe-ei que sou a isso compelido
por um sentimento que acorda em mim sem a mínima intervenção da noção do dever, sem a influência
de qualquer preceito divino, sem consideração de nenhuma espécie acerca de castigo ou recompensa
neste ou noutro mundo. Tal sentimento resulta em parte de que se deu origem a um sofrimento,
tornando sê-me penoso o conhecimento que dele tive; e resulta também da irritação que em mim
desperta a infração duma lei de conduta ao serviço da qual estão os meus sentimentos, lei a que o
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 89/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
bem da humanidade exige, no meu entender, a obediência de todos. Se V. Reverência me objetar que a
minha teoria me não fornece razão alguma para me interessar por esse sentimento, observar-lhe-ei
que não depende da minha vontade o ser influenciado por ele; e se acrescentar que a minha teoria
não me dá motivo algum para me interessar pela lei da conduta, retorquir-lhe-ei que se me torna
impossível deixar de interessar-me por ela. Quando a análise vem posteriormente demonstrar-me que
o respeito desse sentimento e dessa lei assegura o progresso do gênero humano por modalidades
superiores e suscetíveis de maior felicidade, verifico que, conquanto o meu proceder não seja
imediatamente determinado pelo sentimento da obrigação, tal proceder se conforma, todavia, com a
minha ideia de obrigação.
Motivos assim originados atuam utilissimamente; e para provar isso basta recordar o movimento de
opinião em que tanto V. Reverência como eu nos envolvemos haverá uns oito anos, movimento em que
muitos homens impulsionados pelas ideias e sentimentos que acabo de descrever, e insensíveis aos
ditames das crenças religiosas, manifestaram uma solicitude bem superior à de muitos cristãos,
reclamando que as nossas relações com os povos estrangeiros fossem dirigi das segundo preceitos
que muita gente persiste em considerar exclusiva pertença do cristianismo. (No meu projeto de
carta havia duas frases que não reproduzi com receio de suscitar uma nova controvérsia. Eram
estas: «Um jornal religioso assinalou o estupendo contraste que se manifestava entre a energia dos
que não professam o cristianismo e a apatia dos que o seguem.» Recuando a uns anos atrás,
verifica-se, que um análogo contraste se notou na constituição do Comité da Jamaica)
Sou com estima, etc.
HERBERT SPENCER.

P. S.- Se quiser publicar esta carta como resposta ao seu artigo e ao convite que nele me faz,
desde já lhe dou, para isso e com agrado, o meu consentimento. O que não posso é levar mais longe
a discussão. Outras ocupações me impedem.
A minha carta foi efetivamente inserida no Guardian e o meu contraditor fê-la seguir duma réplica
que vou reproduzir, omitindo lhe vários trechos referentes a assuntos diversos do ponto
controvertidos.

«Kirkby, Lonsdale, 28 de julho de 1890).


Meu caro Snr. Spencer,
Agradeço-lhe a cativante benevolência com que respondeu ao apelo que me permiti dirigir-lhe. Por
certo não estranhará que, apesar do post-scriptum da sua resposta, dê a público algumas
considerações que foram sugeridas pela atenta leitura dela.
Presto a mais calorosa homenagem ao zelo generoso pelo bem da humanidade e à indignação contra
toda a casta de opressões manifestada pelo Snr. Spencer e por outros homens que não aceitam a
sanção sobrenatural por lei moral. O cristianismo contemporâneo contraiu uma dívida perante o
entusiasmo pela humanidade dos sectários do evolucionismo, assim como também perante os vigorosos
protestos dos discípulos de Comte contra as iniquidades sociais; e deve-lhes esse agradecimento
porque lucrou.
Um cristão deve obediência não ao modo de ver do mundo cristão, nem mesmo ao cristianismo, mas à
lei de Cristo e à vontade de Deus; nada se opõe a que ele confesse que bastantes agnósticos
sobrepujam muitos cristãos pelas suas ações e pelos seus cristãos sentimentos; é o caso do
Samaritano e do levita.
Nenhum constrangimento sinto em reconhecer que a simpatia e a satisfação intima de prestar
benefícios determina à prática deles. Não compreendo, porém, como é que «a hipótese de que a ideia
do dever tem uma origem sobrenatural» implicaria que as ações dos homens não são determinadas
senão pelo reconhecimento de consequências últimas e que, se não os conduz a atuar em conformidade
com a justiça, eles não podem ter motivo algum para se conformarem com essa justiça.» Nunca tive
dúvidas acerca do facto incontestável que o Snr. Spencer salienta: que os homens não regulam, em
grande parte, a sua conduta pelos motivos que eu defendo e que o meu antagonista nega. Desejava,
porém, saber porque é que, quando surge a ideia do dever, um homem se reputa obrigado, de livre ou
de má vontade, a realizar o que é de vantagem para a preservação da espécie.
Compreendo muito bem que o Snr. Spencer «não possa deixar de se interessar» pela lei de conduta
que talhou e que não possa também deixar de ser afetado pelos sentimentos tendentes a proteger os
outros homens; o que não chego a discernir claramente é como a sua filosofia o autoriza a dirigir
censuras aos que podem deixar de interessar-se. A natureza, dir-me-á, é que inspira a solicitude
dos pais e é que faz com que o homem generoso se sacrifique pelo próximo. Mas a natureza cria
também endurecidíssimos criminosos e pais egoístas inteiramente indiferentes aos interesses dos
filhos. Se não podem deixar de ser o que são que sentido ligar à frase: fazeis o que não deveis?
Parecer-lhes-á que o Snr. Spencer mostra os sentimentos do dever, quando lhes explica que, em
conformidade com as leis da natureza, tenderia a raça a desaparecer se os outros homens
procedessem como eles procedem? No ponto de vista filosófico de Huxley a propensão para a boa
conduta pertence à mesma categoria das qualidades dum ouvido sensível para a música - possui-se ou
não se tem. Permita-me, pois, que lhe pergunte Snr. Spencer, se é essa a última palavra da sua
moral. Não percebo como é que um homem a quem se tenha ensinado que não proceda senão em virtude
de impulsões naturais, pó de razoavelmente interrogar-se a si próprio se deve praticar um ato ou
abster-se dele; menos percebo ainda como, sabendo que não age senão com a mira da satisfação dos
seus desejos, poderá razoavelmente sacrificar-se em favor de outrem.
Não avaliando nitidamente o que seja a «crença corrente» tomo a liberdade de resumir a minha: «O
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 90/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
Poder invisível vai gradualmente criando o gênero humano por processos de desenvolvimento; a
consciência humana é produzida de modo a corresponder à autoridade desse Poder; a justiça e a
ordem progressiva que o Criador estabeleceu entre os seres humanos e obriga cada homem à medida
que vai adquirindo noções dela; o homem sente que a justiça o obriga, porque é a criatura do seu
Autor.
Sou com estima, etc.
J. LLEWELYN DAVIES.

Antes que prossiga a discussão do ponto especial de que nós estamos ocupando, tenho a salientar
que sobre o assunto mais geral a que alude o último parágrafo da carta do Rev.do Davies existe uma
afinidade curiosa e íntima entre a sua opinião e a que eu já exprimi por mais de uma vez.
Referindo-me às hesitações do filósofo, escrevi o seguinte, no § 34 dos meus Primeiros Princípios:
«É para alguma coisa que ele sente em si simpatia por certos princípios e repugnância por outros.
Com todas as suas faculdades, aspirações e crenças, o pensador não é um incidente, é o produto do
seu tempo. Que se lembre de que se é filho do passado, é pai do futuro e de que os seus
pensamentos são filhos seus e de que não deve deixá-los morrer ao abandono. Da mesma maneira que
qualquer outro homem pode com justo título considerar-se como uma das milhares de forças pelas
quais atua a Causa Desconhecida; e quando a Causa Desconhecida produz nele uma certa crença, não
precisará doutro título para a exprimir e a divulgar.»
E na Moral Contemporânea, § 62, a propósito dos diferentes tipos de doutrina ética pela qual cada
um representa este ou aquele aspecto da verdade, dizia assim:
«A teoria teológica contém uma outra parte da verdade. Se à verdade divina que se supõe revelada
de uma forma sobrenatural nós substituímos o fim, revelado por uma forma natural, para que tendem
as energias que se manifestam pela evolução, então, como a evolução tendeu e tende ainda para uma
vida mais elevada, segue-se que a conformação com os princípios pelos quais se realize essa vida
mais perfeita, auxilia a realização desse fim.»
Voltando ao caso especial, notarei antes de mais nada que o Rev.do Davies e os seus
correligionários estabelecem como princípio que a concepção do «dever» é universal e fixa. Ora tal
concepção é variável e está, em grande parte, dependente das necessidades sociais da época. Num
artigo sobre a «Ética de Kant», publicado em fascículos na Fortonightly Review (julho de 1888) e
inserto no terceiro volume dos meus Ensaios, apontei sete autoridades em abono da opinião de que é
lícito afirmar que as raças inferiores não possuem a ideia do direito»: tão pouco tem o sentimento
do dever que entre nós se generalizou, se esse sentimento se encontra nelas é sob um aspecto e
numa direção diferentes.
Vários povos selvagens pensam que o dever da vingança de sangue com sangue é o mais sagrado de
todos. Em Fiji, uma tribo de escravos declarou «que era dever deles tornarem-se os alimentos e as
vítimas dos sacrifícios oferecidos aos seus chefes. Jackson cita um chefe fijiano ao qual o
convencimento de que o seu Deus estava irritado por não haver um maior número de inimigos, causou
um verdadeiro acesso de furor religioso.
Mas não é só nas raças inferiores que se encontram concepções do «dever» inteiramente daquelas a
que, na opinião do Rev.do Davies, os homens ligam a máxima autoridade. O mais cruel ultraje que em
Marrocos se pode dirigir a um pirata rifenho é o de lhe dizer que o pai morreu na cama e que não
sucumbiu em combate numa qualquer expedição de pirataria: Esse insulto subentende que ele deveria
morrer assim. O mesmo se dá na Europa com os duelos. O insultado julga-se obrigado a desafiar o
insultante; este julga-se obrigado a aceitar o desafio; todos, insultado, insultante e testemunhas
se julgam obrigados a fazer o que a religião que seguem lhes condena. A recente aprovação do
imperador da Alemanha aos clubes de duelistas, clubes que, na opinião do Kaiser, dão à vida «a sua
verdadeira direção constitui uma sentença formal passada a favor desse uso que está em absoluta
contradição com os princípios de uma reta conduta, tais como esses princípios em teoria são
aceitos.
No meu pensar, a concepção do dever deriva por um lado dos sentimentos predominantes do indivíduo;
por outro, dos sentimentos e das crenças nele depositadas pela educação; e por outro lado ainda
pela corrente da opinião pública mais dominante: todos estes fatores se combinam em proporções
variáveis. A verdade é que qualquer desejo tem em mira uma satisfação e contêm em si a ideia de
que essa satisfação é conveniente, ou justa. Sempre que o desejo é violento e que satisfação que
procura lhe é recusada, surge a ideia de que essa recusa constitui uma injustiça. Esta afirmação é
por tal modo exata, que um sentimento capaz de inspirar uma ação má, mas que foi reprimido com
êxito, origina algumas vezes o pesar de a não ter cometido; inversamente, o remorso sobrevém
nalguns casos a uma boa ação isolada outras ações habitualmente más: assim sucede ao avarento,
quando pratica uma liberalidade. O sentimento do «dever» tal como ele existe nos homens
pertencentes a tipos superiores é um órgão de certos sentimentos dirigentes que as formas
superiores da vida social desenvolveram: as crenças herdadas e a opinião dominante fortificam-no
em cada indivíduo e dão-lhe uma sanção bem mais poderosa do que aquela que sentimentos inferiores
têm.
Na minha Moral Evolucionista, dei sob diferente e mais pormenorizada forma, uma completa réplica à
objeção do Reverendo Davies. O génese do sentimento da obrigação ocupa nessa obra todo o longo
capítulo intitulado: -O Ponto de vista Psicológico» e, em especial, os §§ 42 e 46.
O Reverendo Davies insistirá talvez em perguntar-me: Porque é que, um homem obedece, quando o
possui, ao sentimento da obrigação. Essa pergunta equivale a esta outras. Porque é que, quando um
homem sente apetite, se senta à mesa e come? Normalmente, uma pessoa come porque tem fome e sem a
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 91/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
consciência definida de outro fim diferente. Todavia, se inquerirmos dessa pessoa a justificação
desse ato, dir-nos-á que é necessário satisfazer o apetite, de manter a saúde, o vigor, a
faculdade de viver e de trabalhar. Semelhantemente, perguntando a um homem que acaba de praticar
um ato que lhe foi ditado pelo seu sentimento do dever, qual a razão por que a praticou,
responderá naturalmente que cedeu a esse sentimento sem investigar as suas consequências
afastadas, mas que sabe bem que na média dos casos, as consequências longínquas de atos praticados
em conformidade com tais sentimentos, são benéficos não só para o próximo mas também, tarde ou
cedo, para quem os realiza. Seja-me permitido repetir uma vez mais esta verdade a respeito da qual
tenho por vezes insistido. Deve comer-se somente para matar a fome; proceder de modo diverso,
implica um desarranjo físico. Da mesma maneira, um ato de Beneficência ou um ato obrigatório, só
se realizam perfeitamente com reta intenção a não ser quando ditados por um sentimento imediato;
praticando-o com a mira nas suas consequências últimas quer neste mundo quer no outro, implicam,
ao contrário, um estado moral imperfeito.

Nota. - Depois do aparecimento da primeira edição desta obra, recebi outra carta do Reverendo
Davies contendo, entre outras, a passagem seguinte:
«Consinta-me que proteste contra uma alegação do seu apêndice: «O Motivo moral». Não disse nem
penso que a concepção do «dever» seja «uma concepção fixa». Penso, ao contrário, que as noções
humanas do dever variam com as variações e avançam com o progresso social.»
Afigurasse-me, portanto, que, neste ponto ainda, as opiniões do Reverendo Davies se não afastam
das minhas tanto quanto ao princípio parecia.

APÊNDICE D

A consciência nos animais

Pouco depois da publicação no Guardian da correspondência reproduzi da no apêndice antecedente,


recebi do Devonshire a carta que segue:
«Tenho executado cuidadosamente várias experiências com animais que não fazem parte do género
humano. A compilação dos resultados obtidos interessá-lo-á provavelmente, por que reforça a sua
afirmativa de que as ideias de «obrigação» e de «dever» não são talvez de origem «sobrenatural».
Emprego este último termo no seu correntio significado, reservando a minha opinião pessoal sobre o
assunto.
Possuo um cão ao qual repugna maltratar um ser vivo e mesmo um objeto manufaturado. Torna-se
necessária uma intensa e extrema provocação para que morda um animal. Quando apoio no lombo a
ponta aguda de uma faca, volta o focinho e segura-me o punho entre os dentes; se apertasse as
fauces despedaçar-me-ia a carne e os ossos, mas seja qual for a duração e a pressão que eu exerça
nunca me aperta de modo que fique a mínima lesão ou sinal no pulso. Fiz indefinidas vezes esta
experiência e outras análogas.
Ignoro como é que a ideia do «dever» se incutiu nesse cão. Hereditária não é, porque o pai dele,
conquanto não fosse mau, tinha frequentes brigas com outros cães e a mãe era muitíssimo má. Devo
notar que não consenti nunca a essa cadela que se aproximasse do filho, senão quando ao anoitecer
recolhia cada um à sua casota, para evitar qualquer imitação ou educação inconsciente.
Até à idade de três anos nem uma só vez o «Punch» teve um latido de cólera. Um dia, porém,
calquei-lhe involuntariamente a cauda; sacudiu-a com violência e soltou um latido cujo timbre era
inteiramente diverso de quantos lhe tinha ouvido até então. O mais curioso do caso, foi que mal se
libertou do incómodo, o «Punch» me pediu perdão da sua inacostumada cólera por uma forma que me
não deixou a mínima dúvida acerca da sua intenção. Reconheceu, pois, evidentemente, que violara
uma «obrigação» da qual existia no seu espírito a ideia (manifestação da consciência).
Sucede que se eu lhe dou uma pontoada com a extremidade de um pau por talhar, o Punch atira-se a
ele e escavaca-o; se, porém, lhe faço o mesmo com a minha bengala ou com a minha muleta (estou
doente), limita-se a segurá-las com os dentes sem que deixe numa ou noutra a menor mossa.
Isto que acontece com a minha bengala e a minha muleta, dá-se quando me sirvo, para o molestar, de
um qualquer outro objeto trabalhado.
A noção do dever pôde estabelecer-se sob a forma da ideia de uma obrigação para com um espírito
superior, independentemente da excitação dos mais poderosos sentimentos dos animais.
Tive, há bastantes anos, uma cadela que se mostrava muito sensível ao cio dos cães. Nunca me servi
senão da voz para a obrigar a afastar-se das solicitações dos machos da sua espécie. A série de
repressões que, com esse fim, exerci nesse animal fixaram nele por tal forma a ideia de
«obrigação» que estou convencido de que morreu virgem com treze anos e meio de idade. Aos quatro
anos, as solicitações dos machos irritavam-na e aos sete havia-se tornado uma azeda solteirona; a
simples presença de um cão a irritava.
Os cães são suscetíveis de adquirir a noção de uma conveniente norma de procedimento e de
maneiras. A mencionada cadela nadava otimamente. Ora sucedeu termos como hóspede em casa um
cãozinho terrier de pelo espesso e luzente. O minúsculo hóspede e a cadela acamaradaram com
facilidade e corriam, caçavam e brincavam juntos por toda a propriedade. Uma vez fui com os dois
ao cais de Street-Prince's que serve de fundeadouro aos navios que fazem carreira para Bristol.
Como de costume, a cadela saltou à água; o cãozinho atirou-se também, mas esteve em riscos de
afogar-se. Vendo-o em perigo, a companheira fincou-o com os dentes na nuca e nadou com ele para o
cais. Acabou por esse fato a amizade que entre ambos reinava. Momentos depois do acontecimento
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 92/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
narrado, a cadela mordeu e sacudiu violentamente o terrier e de então por diante mordia-o e
repelia-o sempre que este tentava aproximar-se e brincar com ela. A razão desse desprezo foi, sem
dúvida, motivado pela circunstância de verificar que faltava ao cãozinho uma aptidão que ela
aparentemente considerava como normal.
A faculdade da indignação não é pertença exclusiva dos homens. Divertia-me muitas vezes diante da
cadela a fingir que batia numa irmãzinha minha e esta, por seu turno, afetava lamentos e choros. A
cadela arremetia iradamente contra mim, ao presenciar a fictícia agressão. Quando os papeis se
invertiam, então arremessava-se contra minha irmã, ladrando lhe e procurando morder-lhe. Sempre
que não influísse na cadela uma aversão anterior, manifestava-se invariavelmente contra o atacante
e a favor do ofendido. Como com o decorrer do tempo viesse a convencer-se de que tudo aquilo não
passava de mera brincadeira, principiou a tomar parte com grande alegria no divertimento. Foram-
lhe necessárias, porém repetidas observações para se convencer da simulação que praticávamos.
Se estas notas se lhe afigurarem banais, desculpe-me. Só parcialmente conheço as suas obras e pode
bem suceder que a extensão das experiências do Sr. Spencer seja superior às minhas.
Sou, com estima, etc.
T. MANN JONES.
Northam, Devon, 14 de agosto de 1890.

Respondi ao Sr. Jones agradecendo-lhe e manifestando-lhe o meu apreço pelo valor dos fatos que me
contou. Recebi dele uma segunda carta:
Faça dessa carta o uso que entender. Deixe-me, porém, preveni-lo de que comuniquei alguns dos
fatos aqui descritos ao professor Romanes. Quanto á exatidão das minhas observações,
peremptoriamente lhe asseguro. Aprendi a observar na escola dos naturalistas de Belfast, com os
Srs. Pattison, Thompson e outros, e acostumei minha mulher, antes do casamento, a não se deixar
influenciar por simples impressões.
A ideia do «dever» exerce sobre o «Punch» (o cão a que me referi na primeira carta) um anormal
poderio. Os seus gostos ultrapassam também as raias do habitual; prefere os doces à carne. Desde
os seis meses de idade que distingue o sim do não. Centenas de vezes tenho experimentado oferecer-
lhe um torrão de açúcar; quando ele vai a abocá-lo, digo-lhe: não! E o «Punch» recua. Se coloco à
volta dele numerosas pedras de açúcar e digo em voz baixa: não! o «Punch» quedar-se-á sem lhes
tocar até que eu pronuncie um sim. Mas como «Punch» difere do homem! Raramente se contenta com o
primeiro sim; não obstante, obedece sempre ao primeiro não. Não se apressa a subtrair-se a uma
obrigação, pelo facto de surgir um pretexto qualquer para se libertar dela. Quando deito ao chão
com uma tentadora e grossa pedra de açúcar, nem a cadela, nem o Punch se consideram no direito de
lhe tocar sequer. Se, porém, a pedra de açúcar for muito pequena, existam ambos e, caso eu deixe
de pronunciar o impeditivo: não! acabam por engoli-la.
Realizei sucessivas experiências, graduando o tamanho do torrão a fim de avaliar qual o volume
necessário para que a ideia do «dever» atuasse nos dois animais. Verifiquei que o cão possui uma
consciência mais delicada do que a cadela. Inútil será dizer-lhe que em todas as experiências
mencionadas me abstenho sistematicamente de gestos e de gritos. No! Oh! Só! Go! (Não! Oh!
Magnífico! Vá!) são termos equivalentes para o ouvido do cão, quando docemente pronunciados.
Igualmente acontece com Yes, Bess, Press; comtudo, tanto um como o outro reconhecem a equivalência
das diversas formas de expressão com que essas palavras podem ser pronunciadas. Para o «Punch» Yes
(sim) ou You may have it (podes apanhá-lo) tem igual valor. Possuo um pônei que está sempre pronto
a cumprir o seu dever com nervoso entusiasmo. Para ele Woh! Halt! Stop! são exclamações de
idêntico valor. O cão parece-me inferior ao pônei na compreensão do tom da voz e ser influenciado
de preferência pelas diferenças de som e de volume. Tanto os atos do «Punch» como os do pônei,
dão-me a impressão de «atos cultuais» de formas simples. Referirei, para exemplo, o acontecimento
que julgo ter-lhe contado já, do perdão pedido pelo meu cão, quando aos três anos teve o seu
primeiro latido de cólera. Até esse instante, nunca reconhecera que existisse nele a noção do
dever e nunca ainda, por isso, o castigara.»
O sr. Jones juntou a esta carta uma série de notas, que são todas instrutivas, interessantíssimas
e cujas conclusões merecem a máxima confiança pelo espírito de conscienciosa critica com que as
observações foram realizadas. Vou reproduzi-las, omitindo lhes, porém, para encurtar espaço,
alguns parágrafos de menos importância relativa:
Noção do dever numa cadela, que viola deliberadamente um princípio de que tem a exata noção; e que
simula indignar-se ante a violação do dever cometida por um gato.
Já em 1885, anteriormente às observações que citei, me capacitara de que os animais domésticos têm
a noção do dever. Quiz, todavia, exercer observações num animal manhoso e mau, a fim de verificar
os seguintes pontos:
1º Se a ideia do «dever» não procede de duas categorias de motivos inteiramente diversas e a que
eu dei as seguintes denominações: motivos reto-morais e motivos egoístas de moral-convencional.
2º Se é realmente exata a teoria de certos teólogos que afirma que os piores dos animais são
inocentes e se é verdade que só o homem, entre os seres, tem responsabilidade.
Por várias vezes havia visto na estação ferroviária de Mardock uma linda cadela que, ao sinal de
chegada dum comboio, espantava do cais um numeroso grupo de galinhas pertencentes ao chefe.
Informei-me a respeito do animal e disseram-me que tinha sido perdida, uns meses antes, por um
passageiro de primeira classe. Informaram-me também de que era glutona, irascível, conquanto
dissimulada e que a essas más qualidades juntava também as da lascívia e da negligencia e outros
defeitos. Soube também que não criava amizade a pessoa alguma. Pareceu-me pelo que ouvi que se
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 93/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
assemelhava ao mais aviltado espécimen da «humanidade degradada», a prostituta e fiz, acerca da
cadela, estas perguntas mais:
- É muito inteligente? Ensinaram-na a desviar as galinhas a horas fixas?
- É inteligente, mas é péssima. Quanto às galinhas ninguém lhe ensinou a desviá-las da linha.
Acostumou-se a aquilo e logo que vê o empregado dirigir-se para a alavanca dos sinais, obriga-as a
afastarem-se. Faz isso à chegada de todos os comboios, como se fosse uma obrigação que tivesse.
Apesar de comilona, deixa a comida para depois, se quando se lhe dá a refeição é a hora da vinda
de algum comboio. Vai afastar primeiro as aves, fica de atalaia para que não se aproximem e,
cumprida essa tarefa, come então até se fartar.
Este último informe decidiu-me. Pensei de mim para comigo que se a comprasse e a levasse dali a
cadela renunciaria à sua última e única «obrigação» não ditada pelo egoísmo e que se tornaria
inteiramente má.
Comprei-a efetivamente e conduzi-a para minha casa. Acompanhou-me sem medo e até sem estranheza e
mal chegada não deu a menor mostra de que se não sentisse tão à vontade, como se fosse nascida e
criada naquela casa.
Tive-a encerrada durante vinte e quatro horas numa das dependências da casa e mandei alimentá-la
abundantemente. Ao outro dia, reconduzi-a à estação, onde não manifestou a mínima alegria por
tornar a ver o antigo dono e pouca vontade de recomeçar o seu antigo serviço de vigilância das
galinhas. Duas semanas decorridas de sucessivas visitas à estação, mostrava uma absoluta
indiferença tanto pelo chefe como pelas aves.
Pouco tempo após, o meu criado Ben, veio avisar-me:
- Senhor, a Judy está danada, pela certa. Andava a arranjar a cavalariça e, ao passar próximo da
cadela baixei-me para a acariciar. Mordeu-me esta mão e aqui, na perna, (de ambas as feridas
corria sangue) e depois recuou e agachou-se a um canto. Desci à cavalariça, falei-lhe em tom
amistoso e curvei-me para afagá-la.
Tentou morder-me. Num movimento curto e seco dei-lhe uma pancada seca no focinho, acima dos olhos.
Quis outra vez morder-me. Tornei a castigá-la pela mesma forma. Esta luta prolongou-se durante
cinco minutos e saí da cavalariça, deixando o animal atordoado e extenuadíssimo. Duas horas depois
perguntei ao rapaz pela cadela.
- Não há dúvida de que está com a raiva. Lá se conserva encantonada como a deixou. Rosna logo que
me vê. Voltei segunda vez à cavalariça. Aproximou-se de mim para me lamber. Desde então não tornei
a castigá-la e quando está na minha presença mostra-se obediente, meiga, alegre, e procura sempre
agradar-me. Manifesta, pouco mais ou menos, a mesma docilidade junto de minha mulher e da
cozinheira que é uma mulher de modos desembaraçados e enérgicos. Continua, porém, a ser má, como
dantes, para Ben, para um outro criado, ainda rapazote e para várias pessoas mais. O carácter da
judy tornou-se dúplice; mas logo que pressentia os passos tornava-se mansa como um cordeiro.
Reconheci, porém, que o seu sentimento do «dever» e a sua docilidade não tinham valor moral, pois
que não eram mais do que efeitos do medo e, até certo ponto, ditados pela esperança de recompensa.
Nem uma, nem outra coisa faziam parte do seu carácter verdadeiro; eram ambas artificiais.
Ordenei que lhe dessem comida abundante, apetitosa e variada, afim de não se lhe tornar
justificável o ensejo de roubar.
Mas, quinze dias depois de a levar para casa, ouvi a criada a queixar-se para minha mulher:
- Oh! senhora, estão sempre a desaparecer-me coisas de cima da mesa da cozinha! Ou algum dos gatos
se habituou agora a roubar, ou então a ladra é a Judy.
O que não percebo é como ela pode chegar às coisas, pesada como é. Se nem para uma cadeira
consegue subir, como é que ela trepa à mesa?! ...
No intuito de tornar o caso mais claro, junto uma planta da cozinha.
Mandei colocar sobre a mesa da cozinha vários pratos com comida e afastar a cadeira para que a
Judy não pudesse subir. Depois disse à cozinheira que fosse para a sala de jantar e que se
conservasse ali até novo aviso. Na cozinha ficaram os dois gatos e Judy. Esta achava-se junto da
escudela onde costumava comer.
Saí para o jardim e embosquei-me por detrás da janela onde uma cortina de messalina me permitia
observar dissimuladamente o que se passava no interior da cozinha. Quando tudo recaiu em sossego,
Judy encaminhou-se para a porta escutou com atenção e meteu depois o focinho no corredor a ver se
alguém vinha por ele. Em seguida dirigiu-se para o canto alçou-se nas patas traseiras e avançou
assim, ereta, até próximo da mesa, para poder examinar o que os pratos continham. Findo o seu
exame, empurrou um dos gatos várias vezes para a cadeira. O bichano acabou por compreende-la e
saltou para a cadeira primeiramente, e para a mesa, depois, e apoderando-se dum osso arrastou-o na
boca para a escudela Judy repeliu-o, pôs-se a roer avidamente o osso assim obtido. Dei sinal e uma
das criadas entrou na cozinha quase sem fazer ruído, nos bicos dos pés. Logo, porém que Judy deu
por ela, isto é, quando a criada chegou ao limiar da porta, atirou-se contra o gato, a latir
furiosamente e a morde-lo, perseguindo-o até à distância duns quarenta metros. Presenciei esta
comedia, do começo ao fim, por duas vezes e tive, noutras, ensejo de assistir a parte dela. Além
de mim, houve mais pessoas que tiveram ocasião de presenciar o hipócrita estratagema. Tanto eu
como os outros observadores, verificámos que Judy tinha sempre a precaução de se assegurar de que
o corredor estava deserto e, que, ora com um gato ora com o outro, reproduzia invariavelmente a
mesma fingida indignação e a mesma tentativa de indicar um deles como autor do roubo.
Tudo isto me levou ao convencimento de que a Judy reconhecia o maleficio do gato que saltava a
mesa para furtar a comida, que o instigava a essa violação do seu dever e que se fingia indignada
para endossar uma responsabilidade da qual o seu espírito possuía a clara compreensão.
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 94/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
Lamento que não tenha tempo e espaço largo para lhe comunicar outros pormenores relativos ao
caráter desta cadela. Era um tipo nitidíssimo; mas tive outros animais que, como a Judy, conheciam
melhor ou pior o seu dever ou «a obrigação moral» a título de ação ou missão exigida por um
superior e que, todavia, a cumpriam só pelo receio de castigo ou com a esperança de uma recompensa
não em consequência de uma forma de predileção (que não é filha da simpatia), mas que provêm do
gozo ou do proveito que o ato praticado traz «para o superior a quem o animal testemunha a sua
predileção. Nestes casos, a ideia do «dever», da justiça, da «obrigação» é nos animais um produto
de egoísmo. Por isso os classifico, na categoria dos deveres da «moral-egoísta» ou da «moral
convencional», de uma moral acomodatícia e variável, ou, para sintetizar - de «Judysmo».
Passo agora a fazer uma sucinta análise do senso do dever ou do sentimento de «obrigação» num cão
a que já me referi noutras passagens destas cartas: o «Punch». Nos sumários informes que a
respeito dele lhe comuniquei, disse que é incapaz de fazer mal a qualquer ser vivo ou a qualquer
objeto trabalhado por indústria do homem. Aí vai um exemplo característico: Não consegui nunca o
resolver a morder-me, ou sequer a ameaçar-me, quando, para experiência, o fazia sofrer intensa e
duradouramente comprimindo lhe e até picando-lhe os nervos subcutâneos. Quando agredido por outros
cães, embora com violência, não os morde. Em tal procedimento parece-me existir um sentimento do
«dever» ou de «obrigação» que especialmente difere de todas as variedades desta noção que atrás
classifiquei de «Judysmo».
Mas porque é que o «Punch não morde?
No pé de relações que entre ambos nós se mantem, não é certamente porque tenha medo de mim.
Aprecio muito o mérito dele como ótimo tema de experiências que é, para que pratique a asneira de
lhe incutir contra mim o sentimento do medo. Penso tão pouco em maltratá-lo, como um eletricista
em manejar com rudeza e falta de jeito um eletroscópio de delicada construção. As nossas relações
têm um tal carácter de amistosa intimidade que quando o «Punch« quer a porta aberta, ou livrar-se
dum inseto impertinente, ou de um espinho incómodo, é de mim que se socorre. Acerca-se da minha
secretária, alça, bate-me com a pata direita no ombro a chamar-me a atenção e repete o aviso
tantas vezes quantas as necessárias para que me ocupe dele. Quando volto a cabeça a atendê-lo,
indica-me o que deseja; quando quer que lhe arranque um espinho ou que o liberte de uma carraça,
aponta-me o sitio exato em que ele está sem que o erro, quando o há, exceda a grossura dum dedo
mínimo.
Objetar-me-ão talvez que me não faz mal porque tem fé e confiança em mim e porque pensa que o não
faço sofrer propositadamente. A primeira impressão, parece admissível essa hipótese e tanto mais
verosímil quanto é certo que desde a idade de um ano um guarda de caça lhe alojou na cabeça e no
corpo uns trinta grãos de chumbo que eu lhe extraí pacientemente. A recordação desse tratamento
faz, sem dúvida, com que ele considere a pressão da navalha como uma operação nova.
Mas que tem isso com o procedimento de «Punch», quando o molesto com a muleta ou com a bengala?
Como já expliquei, deixa-as ficar intactas, ao passo que despedaça qualquer outro objeto não
trabalhado que o moleste. Também não é por covardia que não exerce represálias contra outros cães
que o mordam. Quando atacado, emite um latido de censura, mas não foge. Não consegui dele que se
afastasse nestas circunstâncias e daí resulta ficar bastas vezes muito malferido. Um incidente
acontecido há anos projeta uma intensa luz sobre a ideia de «Justiça» tal como ela existe no
espírito do «Punch» ou do «Monkei» dois nomes aos quais igualmente acode. Seguia eu pela estreita
rua de West-Appledose quando um cão possante e de grande marca se lançou sobre ele e o mordeu na
cabeça tão violentamente que lhe fez correr sangue em profusão. Pela primeira vez na sua vida, que
eu saiba, o «Punch» resistiu empregando, porém, a sábia resistência dum quaker. Segurou fortemente
o contendor pelas patas, acima do calcâneo, e obrigou-o a tomar uma posição de equilíbrio
instável. O outro cão ficou mudo e queda, certamente com o receio de cair de costas e de ficar
assim à mercê do «Punch». Nenhum sofrimento este, porém, lhe infligiu, pois que o não mordeu,
contentando-se em segurá-lo vigorosamente. Por fim, o assaltante voltou a cabeça para o morder;
«Punch» defendeu-se desse novo ataque erguendo lhe mais a pata e torneando sobre si mesmo de
maneira a mantê-la na linha, mas em sentido oposto ao da cabeça do adversário e de modo a guardar
sempre a mesma distância. Passados uns dois minutos tive de intervir por causa duma carroça que
avançava para cima de ambos. O agressor afastou-se, de rabo entre as pernas e «Punch» desatou aos
pulos, juntando a essa manifestação de contentamento, entusiásticos latidos.
Centenas doutros fados me convenceram de que esse animal possui um sentimento de «dever» dum
gênero absolutamente diferente do que expus e classifiquei com o nome de Judysmo. É, na verdade, a
pratica do preceito: faze aos outros o que queres que te façam a ti. Observei não só no Punch como
também noutros animais domésticos, esta espécie de sentimento do dever, da obrigação, da
moralidade, que classifiquei como «sentimento reto do dever» e que é oposta à moralidade egoísta,
enganadora e de conveniência, a que chamei «Judysmo».
Nunca encontrei dois tipos tão nítidos, dum e doutro sentimento, como em «Punch» e «judy». A
maioria dos animais são impulsionados conjuntamente, mas em graus variáveis, pelas duas espécies
de sentimentos do «dever»; outros são-no apenas pelo sentimento de moral «egoísta ou de
conveniência»; outros ainda, raros, porém, parecem quase refratários tanto a um como ao outro e
constituem o grupo dos totalmente «imorais». O que as minhas observações me levam a induzir é que
a divisão do «sentimento do dever» em «sentimento-reto. e «sentimento convencional» abrange todos
os casos. Quaisquer atos que impliquem o reconhecimento dessa obrigação entram ou numa ou na outra
destas duas categorias.
Os animais diferem notavelmente uns dos outros, consoante o sentimento de dever que neles
predomina e a espécie de moralidade que lhes serve de norma de vida. Se é o sentimento-reto
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 95/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
poderemos confiar neles; se for o «sentimento-convencional» procedamos com reserva, porque são
versáteis e dúplices. Quanto ao que se refere à conduta exterior, acrescentarei que, no meu modo
de ver, a moral convencional atua como dissolvente do espírito ou do senso moral.
Tenho feito, nessa mira, algumas observações em animais, mas não me tem sido possível levá-las tão
longe como era meu desejo.
(Assunto: Presumo que a firmeza de carácter tem por base o senso-reto do dever; o senso
«convencional» é um hábito mental adquirido).
O sentimento reto do dever é, nos animais, uma força atuante que engrandece com o tempo. Alguns
teólogos poderiam chamar-lhe uma força de «regeneração» ou de salvação. (Os que pensam que a
profissão dum credo é a única força santificante não lhe atribuiriam, talvez, o valor de
«obrigação» convencional; talvez até que, em certos casos, lhe atribuíssem um valor subalterno).
Quanto à origem do senso-reto do dever, tudo quanto as minhas observações me permitem afirmar é
que ela não é eivada de egoísmo algum. Este senso parece-me aproximar-se infinitamente da simpatia
oposta ao género de «sentimento» que defini. Os animais superiores, aqueles que possuem o senso-
reto são, segundo as minhas observações, notáveis pela sua aptidão «para se substituírem a
outrem», faculdade que é a base da verdadeira simpatia. A sua uniforme tendência é para fazerem o
que desejam que se lhes faça». Na maioria dos casos, esta tendência parece inata, mas desenvolve-
se com a idade.
Não vi ainda formulada em parte alguma a distinção da ideia do dever em moralidade-reta e
moralidade convencional e, conseguintemente, de toda a moralidade que centenas de observações
sobre indivíduos de espécies diferentes me permitiram estabelecer. É, contudo, provável que outras
pessoas tenham notado essa distinção.
A maioria dos mais antigos escritos que eu conheço, reconheciam-na tacitamente. Com efeito, o
reconhecimento da moralidade-reta atravessa, como um veio de ouro no quartzo, quase todos os
livros da Bíblia, assim como os livros apócrifos do Antigo e do Novo Testamento; constitui ela o
elemento protagonista ou «substância central nervosa» de quase toda a doutrina de Cristo. Várias
obras de teologia admitem tacitamente esta distinção, ainda que eu me julgue no direito de afirmar
- salvo erro - que não reconhecem suficientemente o facto de que a principal, senão única
utilidade do senso do dever «convencional» ou da obrigação «egoísta», é o de prevenir conflitos no
decurso da vida humana.
Certos animais (dos que não fazem parte da espécie humana) seguem não só a noção de obrigação que
se formou no seu espírito, mas, mais ainda: os atos dos de inteligência superior testemunham o
pressuposto de que ela exista também no espírito de certos homens.
No mês de agosto de 1886, saí a passear com a minha mulher, numa carruagem tirada por um pônei de
nome «Prince», que eu próprio ia guiando. Geralmente servia-me apenas da voz para o dirigir, mas
como me envolvesse com a minha esposa, numa discussão científica interessante, sucedeu que
principiei distraidamente a corroborar os meus argumentos com chicotadas no flanco do cavalo. O
chicote tinha uma pita nova e entrançada aos nós. A terceira chicotada, o pônei estacou e,
voltando a cabeça, olhou para mim. Minha mulher deu pelo caso e observou-me: O «Prince» está a
olhar por o magoares com o chicote. Na sequência do passeio, por outras vezes sucedeu tornar a
chicoteá-lo sem querer, reforçando com esse ato inconsciente a energia das afirmativas que a
discussão me provocava. Ao voltarmos a casa e quando o desatrelaram, estava eu fora da linha reta
que ele tinha a percorrer para chegar à porta da cavalariça. Em vez de seguir a direito, conforme
era seu costume, encaminhou-se para mim e depois de procurar várias vezes chamar a minha atenção
tocou-me com o focinho e levou-o em seguida tão perto quanto pôde das marcas que o chicote lhe
havia causado. Repetiu estas indicações até que eu o mandei friccionar. Dois meses passados,
procedeu, em análogas circunstancias, de igual modo.
No corrente outono de 1886 fui à Ware numa carruagem tirada pelo meu pônei. Quando à porta duma
loja ia a subir para a almofada notei que o «Prince seguia com os olhos os meus movimentos. De
ordinário o cocheiro só subia quando a carruagem ia já em marcha. Eu disse a minha mulher que
fizesse avançar o cavalo e ela tentou, mas infrutiferamente que se pusesse em marcha. Só
principiou a caminhar quando viu que eu estava sentado. Esta experiência foi por várias vezes
repetida e é para salientar o complicado raciocínio que determinava uma obrigação diferente
conforme se tratasse dum coxo (como eu) ou duma pessoa vigorosa e sã, como o cocheiro.
No referido outono, íamos de Wearside para Hadam e encontrámos no caminho um grupo de crianças,
duas das quais em velocípedes. O encontro tornou-se, para nós, embaraçoso: várias das crianças
acumularam-se junto a uma paliçada que marginava o lado esquerdo da estrada, outras e um dos
velocipedistas achavam-se um pouco mais longe à esquerda; o outro velocipedista ainda mais para a
direita.
As distâncias entre c, pl e p2 e a paliçada da esquerda eram pouco mais ou menos iguais. Havia
largo espaço para passar entre p1 e p2, mas as crianças tinham formado um agrupamento confuso e
fugiam em todas as direções. «Vamos a ver, disse minha mulher, se o Prince consegue sair-se da
dificuldade». Abandonei as rédeas. O Prince continuou no rápido trote em que vinha até 7 ou 8
yards das crianças, meteu depois a passo, desviou para a direita e passou rente da paliçada desse
lado, voltando a cabeça durante essa curva para se assegurar de que a carruagem não chocava com o
velocípede da esquerda. Logo que este ficou uns três yards atrás tomou bruscamente o lado esquerdo
da estrada (Em Inglaterra as carruagens tomam a esquerda dos caminhos e não a direita, como por
exemplo é uso em França) e, sem intervenção alguma da minha parte, recomeçou a trotar pelo caminho
fora.
Em novembro de 1887, depois da morte de minha mulher, veio fazer-me companhia uma parenta. Gostava
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 96/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
de guiar o Prince; era, porém, muito surda e como não ouvisse o ruído das carruagens que pudessem
vir atrás de nós, tinha o cuidado de me sentar sempre ao lado dela para a avisar de que desviasse
para a esquerda, afim de dar a passagem a qualquer veículo que quisesse tomar-nos a dianteira.
Ora uma vez em que a minha parenta conduzia a carruagem e em que subíamos uma íngreme ladeira da
estrada de Ware e em que o «Prince» caminhava à vontade, com as rédeas bambas, ouvi uma pesada
carroça que seguia no nosso encalço. O condutor vinha embriagado e, conquanto tivesse largo
espaço, tomando pela direita; para nos passar adiante, deixou-se ficar atrás e de modo que o
cavalo que tirava a carroça levava o focinho dentro da nossa carruagem aberta.
No intuito de verificar o procedimento do Prince não dei à minha parenta o costumado aviso. O
pônei parecia nervoso e agitado; voltava a cabeça o mais que podia para observar à direita e
atrás; mas como a carroça vinha colada à traseira da nossa carruagem, o Prince não conseguia vê-
la. Após três ou quatro minutos de angustias (sirvo-me deste termo, porque os movimentos das
orelhas e a tensão dos músculos do pônei justificam o seu emprego), como não recebesse indicação
alguma, parou, encostando a carruagem à berma esquerda. Logo que a carroça parou adiante de nós, o
«Prince» prosseguiu no seu trote acelerado e habitual.
Várias experiências que efetuei em dias intervalados levaram-me a verificar o seguinte: quando eu
o guiava atendia sempre ao sinal que lhe fizesse com a rédea esquerda. Quando, porém, o guiava a
minha parenta, atendia ou a esse mesmo sinal conforme a direção do ruído e o tempo que tivesse
para se desviar. Insistindo nas mesmas experiências, conclui que, ao ser guiado pela minha
parenta, se regulava pelas indicações que o ouvido lhe oferecia e não pelo manejo das rédeas. A
surda senhora saiu, bastantes vezes, a passear sozinha na carruagem e o pônei compreendeu que uma
nova espécie de obrigações lhe cumpria praticar quando quem o guiava era a minha parenta.
Exemplos de animais (que não jazem parte de espécie humana) e que tomam iniciativas de cooperação
moral. As circunstâncias determinam a formação simultânea da ideia do dever.
Neste outono que vai correndo (1886) saíra de Baker's End para transportar na carruagem um grupo
de amigos. Ao chegarmos a uma descida, envolveu-nos um nevoeiro; a luz das lanternas não irradiava
até mais de seis passos e a nevoa refletia como se a claridade incidisse numa parede. Um pouco
adiante da estação de Mardock a estrada faz uma curva apertada para a direita. Nem eu nem os meus
amigos demos por essa brusca mudança de direção e o pônei vendo-se de encontro ao talude, ergueu-
se nas patas traseiras e tombou para a beira da estrada. Apeámo-nos todos e os meus companheiros
seguiram a pé para o seu destino. Eu voltei o cavalo para o lado oposto em que tínhamos vindo e
subi de novo para a carruagem. O «Prince» avançou lentamente, mas puxando-me pelas rédeas a ponto
quase de as fazer largar das mãos. Como estávamos habituados a conduzi-lo com a rédea frouxa, nas
descidas, e como o caminho era a descer, imaginei que esta se tivesse prendido ao varal.
Verifiquei, porém, que não e tirando uma das lanternas desci novamente e aproximando-me da cabeça
do pônei vi que a tinha o mais baixo que lhe era possível. As suas ventas quase tocavam no dorso
de «jack» (o pai do «Punch») e o cão por seu turno estava também de focinho colado à terra,
farejando. Trepei outra vez para a boleia e ao dar o sinal de avanço, abandonei as rédeas.
Caminhávamos a passo e por diversas vezes em pontos diferentes, fui verificando com a ajuda do
chicote a distância a que seguíamos das duas bermas da estrada.
O cão e o pônei seguiram sempre pela parte central do caminho, á exceção de um sitio em que existe
uma profunda ravina apenas vedada por um leve parapeito: aí desviaram-se um pouco para a berma
oposta à da ravina. A noite estava frigidíssima e a nossa marcha tinha o triste aspecto de um
enterro; mas o pônei e o cão conseguiram conduzir-me a casa, a salvo de qualquer perigo, apesar do
péssimo traçado do caminho que tem seis apertadíssimas curvas, duas das quais são tanto que duas
delas nem sequer têm dez comprimentos somados do cavalo e da carruagem.
Ao apear-me, o cavalo estava a escorrer em suor e o cão tinha a respiração apressada que denotava
grande cansaço.
Um episódio que presenciei, a seguir, na cavalariça revelou-me a analogia entre os sentimentos dos
animais e os dos homens colocados em identidade de circunstâncias; o cavalo acariciava com o
focinho a cabeça e lombo do Jack; este cheirava e lambia a cabeça do cavalo. Ambos se felicitavam
mutuamente, e duma forma bem significativa, por terem levado a bom termo o dever que se haviam
imposto,»
É notável o paralelismo entre as conclusões que o sr. Jones tira das suas observações acerca dos
motivos que fazem agir os animais e as respeitantes aos motivos humanos que enumerei no capítulo
IV: "O Sentimento da Justiça».
A distinção que estabelece entre a moral-reta e a "moral convencional» corresponde evidentemente á
que eu estabeleci nesse capítulo para demarcar o sentimento altruísta do sentimento egoísta.
Importa ainda acentuar que a indicada correspondência entre o modo de ver do sr. Jones e o meu,
tende em ambos os casos, para justificar a convicção numa génese natural dum sentimento moral,
mesmo desenvolvido que seja.
Se a disciplina da vida é capaz de produzir a consciência plena do dever em certos animais
inferiores, é ela também, à fortiori capaz de a produzir no homem.
Por certo alguns dos meus leitores hão de ter notado que as anedotas do Sr. Jones fazem lembrar o
ditado: O homem é o deus do cão» e que demonstram que o sentimento do dever nasce da relação
pessoal entre o cão e o seu dono, pelo mesmo modo que o mesmo sentimento se origina na relação
entre o homem e o seu criador. Esta interpretação estriba-se nas ações dos cães que o Snr. Jones
classifica na categoria de «convencionais-morais», mas não naquelas a que chama reto-morais.
É mais que certo que as relações entre o cão e o seu dono, não obrigariam o Punch a deixar de
exercer represálias no animal que o mordera, contentando-se unicamente em colocar o adversário na
filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 97/98
23/07/2020 filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt
impossibilidade de o agredir novamente: procedendo assim, o Punch revelava um sentimento cristão e
que, entre cristãos, se encontrará em um por mil. Este caso excepcional reforça a dedução já
estabelecida de que no «Punch», o sentimento do dever é independente do sentimento de
subordinação.
Mas, ainda quando exato fosse que um tal sentimento do dever, quando ele exista no espírito pouco
desenvolvido dos animais superiores, tem como exclusiva origem as relações pessoais entre eles e
os seus donos, - nem mesmo assim poderia daí concluir-se que no espírito mais desenvolvido dos
homens o sentimento do dever se não possa manifestar a despeito de quaisquer relações pessoais de
idêntica natureza. Mostra-nos a experiência que na inteligência mais extensa do ser humano, a par
do motivo que o determina a agradar a Deus, o desejo de beneficiar os outros homens pode também
intervir como causal que o sentimento do dever é suscetível de associar-se tanto a este último
motivo como ao primeiro. Nenhuma dúvida pode haver de que muitos indivíduos, por natural pendor da
sua boa índole se entregam com o mais louvável ardor à prática de atos filantrópicos, sem
preocupação alguma de interesse pessoal. Há-os que se ofenderiam caso lhes dissessem que procedem
desse modo para captarem a recompensa de Deus.

FIM

filosofia.com.br/figuras/livros_inteiros/265.txt 98/98

Você também pode gostar