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‘2105/2022 05:21 “Voc, Quaresma, é um visiondrio" alma nacional loucura em Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto OpenEdition g Tornals Nuevo Mundo Mundos Nuevos ‘Nouveaux mondes mondes nouveaux - Novo Mundo Mundos Novos - New world New worlds Débats 2006 Histéria cultural do Brasil "Vocé, Quaresma, é um visionario": alma nacional e loucura em Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto NApIA MARIA WEBER SANTOS hitpsffdoi.org/10.4000/nuevomundo.1813, ravés da temiética im de Policarpo autor e do personagem 1s sobre a relagio e! , & partir de uma ar , escrito em 1911, cotejando as vida Entrées d’index Mots clés : Lima Barreto (Afonso Henriques de) Palabras claves: nacionalisino Palavras Chaves: historia e literatura, loucura, pré-modernismo brasileiro, historia cultural e Texte intégral hitps:fournals. openedition.orginuevomundol1513 ane ‘2105/2022 05:21 + “Voce, Quaresma, é um visionétrio. “Veet, Quaresma, é um visionério alma nacional eloucura em Trials fim de Polcarpa Quaresma de Lima Barreto € uma frase antologica do romance Triste fim de Policarpo Quaresma *, de Afonso Henriques de Lima Barreto, a qual representa le tournant da narrativa deste romance. Ela serviu de pista para pensar e identificar algumas possiveis relagdes entre as vidas de criador e criatura, Lima Barreto & Policarpo (major) Quaresma, sugerindo a discussiéo de questées muito pertinentes & época da eserita do texto: nacionalismo, loueura e obra literdria, 2 Batravés desta relacdo da histéria com a literatura que se tenta chegar mais proximo a sensibilidades, idéias e sentimentos de um outro tempo, de um Brasil ainda jovem em termos de Repiblica, conturbado socialmente neste momento ¢ tendo cada vez mais jovens escritores que se debrugavam sobre determinadas probleméticas da nagio. 3 Conforme nos diz Edgar De Decca *, a literatura muitas vezes realizou, desde o final do século XIX, o projeto da historia social e cultural no Brasil "procurando resgatar do siléncio da histéria os personagens andnimos", Quaresma seria a incluso, na cena histériea, dos pequenos personagens, "que com seus dramas, ideais e sonhos aproxima a vida cotidiana do homem comum & dos heréis e dos grandes acontecimentos.” (Os homens comun: ni fazem historia a partir de seu cotidiano, apenas a transgressio dé a cles visibilidade. F por esta raziio que, ainda hoje, pode-se conhecer melhor a historia das classes subalternas vasculhando arquivos policiais. Neles, os personagens andnimos ganham destaque e tomnam-se sujeitos historicos. 0 homem comum, na falta de uma narrativa literdria que o engrandega, s6 entra na historia a partir de registros policiais. Lima Barreto salvou Quaresma do anonimato, deu-Ihe personalidade e um lugar de destaque no cenério da hist6ria da Repiblica.s 4 Mas ainda hé mais: também este romance apresenta uma estreita ligagdo entre a personalidade de seu autor e a do personagem, levando a afirmar, como De Deca, que somente a loucura, pode, muitas vezes, permitir o acesso historia dos pequenos personagens.* E, , acrescenta-se, daqueles homens que tiveram a coragem de pensar € riticar 0 seu tempo sem medo, e expor suas idéias, fossem quais fossem as conseqiiéncias ou resultados - como Lima o fez. 5 Os escritos de Lima Barreto, tra1 isitando por sdtiras, tragédias, erénicas, criti depoimentos, mostram o quanto sua obra fiecional é viva e mescla-se com sua vida real. Mas, também, o conjunto de sua obra transcende sta pessoalidade, porque é simbélica. Ver-se-4, adiante, o quanto ela fala do espirito de uma época, o quanto ela testemunha um tempo que ainda vird... A loucura, advinda ou nfo de seu aleoolismo (hé controversas...), teve uma dimensfo tragica em sua vida, mas transformou-se em matéria prima de alguns de seus romances, contos e crdnicas, sendo um dos mais contundentes, que aborda esta tematic: Triste fim de Policarpo Quaresma. 5 As internagdes, a0 todo cinco, duas no Hospicio Nacional, duas no Hospital Central do exéreito e uma sinica vez na Santa Casa de Ouro Fino, acentuou-Ihe mais ainda sua "imagem de cadaver social’S Sua histéria pessoal, tanto a seus préoprios olhos como na visdo de muitos de seus contempordneos, levou-o a uma vida quase trégica, nfo fosse a obra literéria absolutamente original que legou & humanidade. Porém, a loucura de Lima Barreto, que acompanha como uma sombra sua obra, nao a reduz a um campo estéril de imagens desconexas e delirios desordenados, sobremaneira despojados de sentido social e estético. Ao contrario, sua enfermidade, "que para a frustragio dos conformistas limitou-se em toda sua vida a uma lucidez desconcertante, nao 0 coloca na galeria dos auténticos loucos. Afinal, perguntava Artaud com os olhos voltados a Van Gogh. ‘Eo que éum auténtico louco?” © 7 Triste fim de Policarpo Quaresma foi escrito vertiginosamente, em menos de trés meses ~ de janeiro a margo de 1911 — e publicado inicialmente em folhetins do Jornal do Comércio (edigao da tarde), no Rio de Janeiro, de 11 de agosto a 19 de outubro de 1911. Sua edigio integral, como romance, apareceu somente em 25 de fevereiro de 1916, pela Tipografia “Revista dos Tribunais” e foi bancada financeiramente por ele mesmo, ou melhor, pelos empréstimos que fer. Rendeu-lhe elogios, eriticas até positivas e uma ‘entrevista ao folhetim fipoca, no mesmo més, onde ele declarou: e 6 fim dle mina vida sdoas letras Pv no peso dels sen agile que elas me pode dar dint cou afd de Nota Senhora laa nfo qu se deptado, oo quer sr hitps:fournals. openedition.orginuevomundol1513 ane ‘2105/2022 05:21 0 senador, nfo quero ser mais nada senfoliterato, Nao peco as letras conquistas fics, nfo Thes pego glorfolas, peco-Ihes coisa sélida e duradoura. E posso falar de earreira, porque se eu quisesse ter estas historias, as teria de sobra. Eu abandonei tudo por elas; e a minha esperanca 6 que elas ‘me vio dar muita coisa, & 0 que me faz-viver mergulhado nos meus desgostos, nas minhas ‘mgoas, nos meus arrependimentos. © romance, cujo tempo narrativo evoca os primeiros anos da Repéblica, apresenta um Brasil em tempos nada tranqiiilos, quando a idéia de que 0 novo regime representava melhores condigées de vida estava Tonge de ser unanime. Lima poe a descoberto as estruturas sociais e politicas da nagao, na Primeira Repéblica, e também de um Rio de Janeiro provinciano, por volta de 1890. Mesclam-se, no romance, imagens urbanas, com valores adquiridos na cidade, por ele mesmo e por outros personagens, bem como situagdes e andlises "reais", relativas a questdes de saiide e higiene piblicas ¢ governamentais da Reptiblica, tio jovem da época, E, muito significative para a presente contextualizacdo analitica, questdes sobre a loucura, sempre to presente na vida e obra deste autor. No final do romance, o diseurso do narrador cola-se ao de Policarpo, numa mesma expresso de diivida: "A Patria que quisera ter era um mito; era um fantasma eriado por ele no siléneio de seu gabinete. Nem a fisica, nem a intelectual, nem a politica que julgava existir, existia’.® Lima e Policarpo tinham muitas coisas em comum. Por exemplo, a descri¢io do major Quaresma, "um funcionério bem considerado no Arsenal da Guerra’, onde trabalhava, evoca a vida de funciondrio piblico de Barreto no Ministério da Guerra e as caractel isticas de sua personalidade: ilustrado, modesto e honesto. 9 Idealistas e cultos, criador e criatura, cada um a seu modo, pensavam sua Patria, refletiam sobre a alma nacional de sua querida Pétria, o que Lima bem soube expressar em seus escritos, como evidencia a seguinte passagem, ainda no infeio do romanee - referindo-se a perda da “meméria” das tradi is, as "modinhas", que para Quaresma signifi genuina alma nacional: Os dois safram tristes. Quaresma vinha desanimado. Como 6 que o povo no guardava as, tradigdes de trinta anos passados? Com que rapide morriam assim na sua lembranga os seus folgares eas suas cangGes? Era bem sinal de fraqueza, uma demonstragao de inferioridade diante daqueles povos tenazes que os guardam durante séeulo! Tornava-se preciso reagir, desenvolver 0 caulto das tradigdes, manté-las sempre vivazes nas memérias e nos costumes... © Major Quaresma € um personagem quase caricatural, um homem ingénuo, bem intencionado, que possui ideais nobres para uma Patria melhor e mais digna a todos seus cidadios. Interessava-se por resgatar manifestagdes culturais verdadeiramente brasileiras. E também, seu “entusiasmo nacionalista” procura assegurar o auténtico conhecimento dos valores de seu pais, especialmente os da terra ¢ da agricultura, universo este, muito familiar a Lima, desde sua infancia, na relagéo com seu pai. Afonso Henriques de Lima Barreto, desde muito cedo, ainda pequeno e adolescente, ao mesmo tempo que teve contato com a loucura, teve também com os prazeres da terra. Seu pai, Jodo Henriques de Lima Barreto, funcionério piblico, tornou-se almoxarife das Colénias de Alienados da Ilha do Governador, em 1891. 0 pequeno jé havia perdido sua mie com 7 anos e, agora, na transferéneia do pai para a Ilha, ficou estudando em colégio interno, indo se juntar A familia, pai e irméos, todos os sibados. Eram duas as Coldnias de Alienados para as quais fora nomeado Joao Henriques: a de Sio Bento ¢ a Conde de Mesquita. A primeira ficava num antigo convento de padres beneditinos, edificagdo quase secular, no alto de um morro, de onde se avistavam os recortes das montanhas de Rio de Janeiro e grande parte da ilha, A cerca de trés quilémetros, na extremidade da Ponta do Galedo, erguia-se a Coldnia Conde de Mesquita, num velho casardo, construido, nos comegos do século XIX, para residéncia de verdo do Principe Regente, fronteiro a um renque de lindas e colossais mangueiras." Nesta época, na virada para o século XX, a Ilha do Governador era ainda uma “roca”, © estava entregue a moradores pobres, que apanhavam suas frutas silvestres, lenha e peixe para sobreviver ~ além, claro, de hospedar dois asilos para alienados mentais. A asa de Jodo Henriques era simples, mas era “uma velha habitagdo roceira, vasta hitps:fournals. openedition.orginuevomundol1513 *Vecé, Quaresma, é um visiondrio alma nacional eloucura em Trials fim de Polcarpa Quaresma de Lima Barreto ana ‘2105/2022 05:21 @ comoda, com grandes salas ¢ amplos quartos”, edificada num enorme sitio, com um bambuzal cerrado, muitos formigueiros (as sativas tomavam conta da ha) ¢ algumas arvores frutiferas, cujos cajueiros eram o orgulho de Afonso Henriques."* Esta descrigao, feita por ele para um artigo de revista (Lugar Citado), é quase a mesma que anos mais tarde vai fazer para a morada de Policarpo Quaresma, no Sitio do Sossego. Seu pai, que passara a beber depois da morte da esposa e vivia taciturno nos primeiros anos das Colénias, retoma a vontade de viver e de relacionar-se socialmente quando, neste sitio, descobre a agricultura. Mas nao era somente a agricultura que ele cultivava. “Cultivava também as belas letras’, tendo deixado, por exemplo, para seu filho primogénito — Afonso Henriques — a edigdo brasileira da Divina Comédia, editada pela Imprensa Nacional, quando lé trabalhou como tipografo. Anatureza e as letras deixavam, assim, profundas marcas positivas no jovem menino, enquanto a loucura jé espreitava pelos cantos de sua alma. Hé um episédio mareante, relatado por seu bidgrafo, acontecido em 1893, quando Lima morava em Niterdi e lé estudava no internato, vendo a “guerra” acontecer nas ruas. Refere-se & revolugio antiflorianista deste ano, conhecida como a Revolta da Armada, quando marinheiros tomaram a Iha do Governador e nela fizeram um grande estrago, Afonso, numa precocidade de seus 12 anos, escreve cartas desesperadas a seu pai, até que este vai buseé-lo no colégio e o traz. para junto de si. Tendo passado por intimeros sustos, Joao Henriques resolve ir morar no litoral da Penha com os filhos, mas nao abandonando a ha por completo, pois ia nela todos os dias — arriscando sua pele —levar comida aos duzentos doentes que 14 ficaram. O menino acompanhava o pai nestas “longas excursdes”. Numa destas, um soldado se aproximou de seu pai e depois de fazer muitas perguntas, Joao Henriques comentou ao filho que aquele queria saber por que Florian Peixoto e Custédio de Melo estavam brigando. A ignorancia do soldado impressionou sobremaneira o menino, que ndo entendia como alguém arriscava a vida sem saber por que ou para que ... Tinha apenas 12 anos. Estava “naquele instante da vida em que se gravam bem fundo as dolorosas impressdes”, se assemelhava-se a um cataclisma, com 0 seu cortejo de execucdes, fuzilamentos, encarceramentos, hhomictdios legais, que o horrorizavam. Vivendo num asilo de loucos desde eedo, o menino hipersensivel comegou a sentir as injusticas do mundo. Os acontecimentos de 93 deram-Ihe depois uma nova imagem da vida. Estariam os soldados tomados de loucura coletiva? Assim reagia o pequeno Afonso, a procura de uma explicagio para a invasio da TIha do Governador, para o saque criminoso, para a violéncia cruel e sem motivo. Os lagos, as arapucas, os banhos de ‘mar ¢ os cajis devorados com volipia ndo conseguiriam fazé-lo esquecer o sacrificio dos hhumildes e a indiferenga dos poderosos, com aquela maravilhosa perplexidade infantil diante das ineoeréncias da vida."8 undo as proprias palavras do escritor. Para ele, a ditadura florianista Porém, Jodo Henriques, “seu grande e infeliz pai”, de volta as Col6nias ja hé alguns anos, enlouqueceu repentinamente em 1902: “dormiu so € acordou louco”, como mostra depoimento de seus filhos; “a doenga chegou de repente, sem avisar, como os raios em céu de abril, perturbando a paz familiar que parecia tio firmemente consolidada’. “A partir dai, Afonso Henriques também nunea mais seria o mesmo... Com o tempo, prisio na bebida, prisdo na loueura, prisio no hospfcio... ¢ liberdade na escrita... Voltando ao romance analisa do, muitas das agdes do protagonista, na segunda parte do enredo, tém como espaco um sitio que se chama "Sossego”, no interior, para onde Quaresma vai apés a alta de sua internagao psiquidtrica. "O discurso patriético ¢ ufanista do personagem evidencia um conjunto de tabus e chavées sobre o potencial da terra brasileira como a terra abencoada’, a garantia de uma vida ‘feliz, farta e alegre’ "5, Policarpo havia sido rotulado de louco e internado em um manicémio — na primeira parte do livro — exatamente por ter estas idéias nacionalistas "fora da razao sensata”, que culminaram quando Quaresma escreveu um requerimento em tupi e enviou a Camara dos deputados, por engano, solicitando (e justificando) que a lingua nacional - ‘a mais alta manifestagio da inteligéncia de um povo" - fosse trocada do portugués (pois esta, para cle, cra uma lingua "emprestada” ao Brasil) para o tupi-guarani. & o hitps:fournals. openedition.orginuevomundol1513 *Vecé, Quaresma, é um visionério alma nacional eloucura em Trials fim de Polcarpa Quaresma de Lima Barreto ana ‘2105/2022 05:21 narrador que nos fala, péginas depois, quando Quaresma jé esta instalado em seu sitio Sossego: ‘As conseqiiéncias desastrosas do seu requerimento em nada tinham abalado as suas conviegSes patriéticas. Continuavam as suas idéias profundamente arraigadas, tio-somente ele as escondia, para nio sofrer a ineompreensio e maldade dos homens.%8 Aqui, Lima aproxima 0 tratamento dispensado a loucura das nogdes de incompreensio e maldade humanas - de certa forma antevendo aquilo pelo qual passaré posteriormente em sua vida, nas duas internagdes psiquidtrieas que teve, em. 1914 e em 1919. Se, numa certa medida, a loucura de Policarpo pode ter a ver com a loucura de seu pai, estas passagens no deixam de ser uma antecipagio de sua propria "loucura’, pois Lima também comegou, em dado momento de sua vida, a delirar tal qual seu pai. No romance, a frase colocada no inicio deste texto & dita pelo Marechal Floriano Peixoto, presidente do Brasil, na época da Revolta da Armada (tempo histérico, em que se passa o romance), referindo-se a algumas idéias nacionalistas em que 0 personagem principal (Quaresma) se vé envolvido. Quaresma, ao versse frustrado com, a vocagao agricola de seu pafs, com a derrota que obteve no plantio de seu sitio Sossego - as sativas e outras pragas dizimaram suas plantagdes ¢ animais - , resolve ento atuar junto aos centros de decisio politica. Voltando ao Rio de Janeiro, onde entrega um memorial a Floriano Peixoto, expondo suas idéias de salvagio nacional, engaja-se na revolta da Armada, para defender a ordem republicana. Policarpo encheu-se de esperancas nacionalistas quando foi detonada esta Revolta, colocando quase todas suas expectativas no comando do Marechal, que o decepciona logo em seguida, na historia. A unidade nacional, tao idealizada por Policarpo a sua maneira de pensar, nao tem vez.de acontecer: Assistimos, ent, & revolta pelos bastidores: soldados sem consciéncia de causa, oficiais interessados apenas em suas promogées, uma populagio que, sem entender muito o que acontecia, encara a situagio como diversi. *7 Marechal Floriano é apresentado, no texto, pelo narrador, no momento em que encontra 0 major Quaresma em seu posto, como um homem que “vestia chapéu de feltro mole, abas largas, e uma curta sobrecasaca surrada. Tinha um ar de malfeitor ou de exemplar chefe de familia em aventuras extraconjugais". '* Retratado como um politico sem pulso, sem energia e sem interesse verdadeiro pelo pais, ele ridiculariza 0 major e suas idéias. Um pouco mais adiante, estando ambos caminhando lado a lado numa noite liricamente enluarada, Floriano profere aquelas palavras, ao sentir-se entediado & aborrecido com Quaresma e suas idéias nacionalistas estapafirdias: "Vocé, Quaresma, 6 um visionério". 9 Esta exclamagao tem um efeito letal sobre Policarpo, cujos entusiasmo e eonviegies ficam expostos ao ridiculo. ‘A narrativa vai tomando um rumo de tonalidade cada vez. mais amarga, mostrando as decepgées de Policarpo Quaresma com seus compatriotas, mas sempre fiel a seus pensamentos e conviegSes nacionalistas: Na verdade o major tinha um espinho n’alma. Aquela recepcio de Floriano as suas lembrangas de reformas nio esperavam nem o entusiasmo e sinceridade nem tampouco a idéia que ele fazia do ditador. Saira ao eneontro de Henrique IV e de Sully e vinha esbarrar com um presidente que 0 chamava de visionario, que nio avaliava o alcance dos seus projetos, que os nfo examinava sequer, desinteressado daquelas altas coisas de governo como se nio o fossel...Bra pois para sustentar tal homem que deixara o sossego de sua easa e se arriseava nas trincheiras? Era, pois, por este homem que tanta gente morria? Que direito tinha ele de vida e de morte sobre seus coneidadiios, se no se interessava pela sorte deles, pela sua vida feliz e abundante, pelo enriquecimento do pais, o progresso de sua lavoura e o bem-estar de sua populagao rural? 20 Lima Barreto nao era um nacionalista, mas ele tinha ideais para um pais melhor e mais justo, os quais demonstrou, em seu personagem Policarpo Quaresma, na frustragdo por ndo ver realizadas, em sua terra natal, préticas que, para ele, hitps:fournals. openedition.orginuevomundol1513 “Veet, Quaresma, é um visionério alma nacional eloucura em Trials fim de Polcarpa Quaresma de Lima Barreto sna ‘2105/2022 05:21 2 2 25 26 @ valorizariam a Pétria no que ela tem de mais "nacional" e puro. Como mostra a anélise de Pesavento, o leitor Lima Barreto, na leitura que faz de sua terra, apresenta uma critica profunda no somente as tendéncias européias em curso na sociedade, mas também ao nacionalismo visionario, ingénuo ¢ exaltado.”" Porém, seria talvez proprio dizer que, embora Lima Barreto nao levantasse uma bandeira como nacionalista, ele esperasse que sua terra natal fosse, em metéfora, como Policarpo imaginava, pois 0 criador colocou em sua criatura sentimentos subjetivos € idéias objetivas de pertencimento a uma nagio historica, mais digna e auto-suficiente. Quaresma morreu mutilado em sua alma, como um traidor de sua amada Patria. Foi carcereiro dos presos politicos ¢ testemunhou a atrocidade que era cometida contra estes prisioneiros. Sempre com o seu senso agudo de justiga, e: Marechal denunciando o que via. Além de louco, ele era agora também um traidor. Foi preso e condenado a morte, como um eriminoso, sem que nenhuma ajuda sua afilhada Olga pudesse conseguir para salvar o to patriétieo padrinho. Logo ele, que tanto de si tinha empenhado pela patria, desde sua juventude. Ao terminar a Revolta da Armada, 0 at6nito e amargurado Policarpo questiona a causa a qual se dedicara toda sua vida: creveu uma carta 20 Tria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? F que tinha ele feito de sua vida? Nada, Levara toda ela atrés da miragem de estudar a pétria, por amé-la e queré-la no intuito de contribuir para sua felieidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua vrilidade também; e agora que estava na velhice, como ela o recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava? Matando-o ! Eo que ndo deixara de ver, de gozar, de fruir, na sua vida? Tudo. Nao brincava, nao pandegara, ndo amara - todo esse lado da existéneia que parece fugir um pouco a sua tristeza necessdria, ele nfo vira ele nfo provara, ele nao experimentara. Desde os lezoito anos que o tal patriotismo Ihe absorvia e por ele fizera a tolice de estudar inutilidades. 22 Aos olhos de seus contempordneos Quaresma era, além de tudo, um louco visiondtio. E nao seria esta metifora, também, cabivel ao seu criador, se atentdssemos &s criticas que recebeu em seu proprio momento histérico? Visionario, no sentido amplo, é aquele que tem visdes ou acredita ver fantasmas; num sentido figurado, € aquele que tem idéias excéntricas, extravagantes; também podemos chamar de visionéria aquela pessoa que devaneia ou que é utopista; e, por Ailtimo, e nfio menos importante, visiondrio é aquele que, nestas visdes, também prevé Gintui) o futuro. Quaresma podia ser tudo isto, Barreto também! Se o fenémeno “loucura” comegou a ser presenciado de perto na Iha das Colénias de Alienados, ele iniciou a ser pensado, mais efetivamente, quando do enlouquecimento repentino de seu pai, em 1902. A partir daf, Lima sofreu em sua vida imimeros desgostos de toda ordem. ‘A loucura paterna, como fonte inspiradora para Barreto na caracterizagio de Quaresma, aparece no seu jeito “seco e desconfiado”, o que coincide com o depoimento de seu irmdo sobre seu pai, relatadas a Franciseo de Assis Barbosa: "Olhava desconfiado para todos, como envergonhado, sem dirigir palavra nem aos filhos, nem a Prisciliana (..) Depois de lamuriar-se, ficava quieto cogando as mios, sem falar nem ouvir ninguém, com os olhos perdidos num ponto qualquer" *. Dai, que na construc literdria do personagem Major Quaresma, haja uma duplicidade de discursos, que ora expressa a personalidade do pai, ora a propria individualidade do escritor.2+ Um eseritor, euja grandeza consistisse em abstrair fortemente das circunstincias da realidade ambiente, nfo poderia ser, ereio eu, um grande autor. Fabricaria fantoches e nfo almas, personagens vivos. Os nossos sentimentos pessoais, com o serem nossos, so também reagdes sociais e a sociedade se apdia na terra. 25 Mas tem-se que admitir que, embora vivenciada em varios planos de sua existéncia, a loucura, para Lima Barreto, apresenta-se como uma fonte criadora, “uma comunicacio com os préprios tormentos da alma, algo ‘palpavel'e visivel", que, de certa forma, opde~ se A visdo organicista da psiquiatria do periodo republicano inicial. Ele transformou a experiéncia com a loucura de seu pai, e aquela com seus delirios, em obras de ficcio, verdadeiramente criticas e eriativas. A loucura, desta forma, mostra-se, j4 em Policarpo, como tema e experiéncia ~ neste primeiro momento, experiéneia paterna. Lima transpée tudo isto em narrativa, hitps:fournals. openedition.orginuevomundol1513 *Vecé, Quaresma, é um visiondrio alma nacional eloucura em Trials fim de Polcarpa Quaresma de Lima Barreto ane ‘2105/2022 05:21 2% 20 x @ diluindo, assim, o real na fiego, apagando possiveis fronteiras. Ao expressar de forma sensivel sua reflexio sobre a loucura, ele faz a estetizagdo do fato-loueura em fiegio- loucura. Ao mesmo tempo, a narrativa de Triste Fim de Policarpo Quaresma insere-se num periodo de problematizagéo da loucura, que jé vinha em discussio desde o século XIX. Discussio esta que culminou na construgéo de hospicios em todo o pafs, desde 0 primeiro, 0 Hospicio Pedro II do Rio de Janeiro, em 1852 —o qual, com 0 advento da Repiiblica, passou a chamar-se Hospicio Nacional de Alienados, onde Barreto foi internado. Na literatura, esta temética havia aparecido, por exemplo, em "O Alienista’, de Machado de Assis, escrito em 1882 e em "No Hospicio", de Rocha Pombo, publicado em 1905 — embora, sob prismas diferentes. Mas a abrangente abordagem de problemas sociais demonstrada no romance, tendo como fio condutor 0 nacionalismo e a loucura do personagem — que se mesclam a vida real do autor, revela contundentemente a inovagdo da obra de Lima Barreto, fazendo-nos erer que uma situagao ficeional pode capacitar-nos a um estudo efetivo sobre um dado momento histérico. Em outras palavras, encontra-se no romance situagdes simbélicas — ficcionais — que representam as questdes nacionais, mas também as preocupagGes ¢ reflexdes do autor, que tomaram corpo em seu "desajuste” na sociedade em que vivia. Aqui, novamente, ele antecipa, em termos simbélicos, como um "visionério", o “horror” pelo qual passaré em sua vida e nas internagdes psiquistricas, que sero bem descritas e analisadas por Lima em seus escritos posteriores, Didrio de Hospicio e Cemitério dos Vivos, de 1920. 6 Sua "loucura” formatou o conjunto de sua obra, mas também sua obra superou sua “loucura’, pois como nos diz C. G. Jung, “a arte representa um proceso de auto- regulagio espiritual na vida das épocas e das nagées".*” A literatura de Lima Barreto jé 6 riguissima, por si s6, criativa, revoluciondria, Mas ao conhecer sua vida, os pormenores de seus sofrimentos e tragédias pessoais, as erftieas que fazia a sociedade e a seus "poderes", observa-se que tudo isto foi transformado em obra de arte. Dito de outra forma, 0 processo criativo ao qual se entregava como escritor, com o olhar firme pousado sobre as questdes cruciais de sua época, seu entorno e sua existéncia, suplantou a destruigao insidiosa do cool e da "loucura’, e impés-se em seus textos. Contrariamente psiquiatria que exclufa 0 louco em hospicios rotulando-o como um perigo social e uma ameaca piblica, a Psicologia Analitica de Jung vé, nas 'manifestagdes da loucura”, um sentido. Nao se trata de negar uma doenga, mas buscar seu sentido através dos contetidos das fantasias dos doentes, que, num plano simbélico, traduzem a problematica vivida e que precisa ser solucionada. Pois bem, em Lima Barreto, além de sua doenga, “social” (alcoolismo}, tem-se o fato dele ser um escritor criativo. Toda obra de arte, antecipa, de certa forma, desenvolvimentos ulteriores de uma época, de uma nagao, ete. A andlise pritiea de artistas mostra sempre e de novo quio forte € 0 impulso eriativo que brota do inconsciente, e também qudo caprichoso e arbitrério. Quantas biografias de grandes artistas j4 demonstraram que o seu impeto criativo era tfo grande que se apodierava de tudo que era hhumano, colocando-o a servigo da obra, mesmo & custa de satide ou simples felicidade humana 28 simbolo é aquilo que est presente na obra criativa. E este é sempre um desafio & nossa reflexdo e compreensio. Daf o fato da obra simbélica sensibilizar mais, mexer mais com 0 nosso intimo ¢ raramente permitir que cheguemos a um deleite estético puro; "ao paso que a obra notoriamente nao simbélica fala mais genuinamente sensibilidade estética porque nos permite a contemplacdo harménica da sua realizagio perfeita."29 Arrisca-se dizer que os eritieos de Lima Barreto, aqucles scus contemporancos, Dusearam o prazer estético, ao criticarem sua literatura como "confessional, tendo sua obra perdido muito do valor literério"; no compreenderam, naquele momento, 0 quanto ela vinha a mostrar e a renovar. De certa forma, Lima, estudo, colocou, em imagem simbélica - através da intuigéo criadora- 0 que aconteceria ao longo dos anos no Brasil: o desaparecimento, por repressao, do Major Quaresma, través do romance em hitps:fournals. openedition.orginuevomundol1513 *Vecé, Quaresma, é um visionério alma nacional eloucura em Trials fim de Polcarpa Quaresma de Lima Barreto mma ‘2105/2022 05:21 “Veet, Quaresma, é um visionério alma nacional eloucura em Trials fim de Polcarpa Quaresma de Lima Barreto significa mais do que o "fim do sonho republicano”, mostra a faléncia de uma patria fntegra, ¢ antecipa aqueles inimeros massacres que ainda viriam, como nos fala De Decea. A morte de Quaresma, uma morte "simbélica", traduz algo sobre a na¢lo que nao era conhecido naquele momento ainda; o simbolo traz esta prerrogativa em si, de mostrar aquilo que ainda se desconhece na consciéncia - no caso, a faléncia dos sonhos de uma patria autdnoma, vivendo de suas proprias riquezas, adulta e independente. 38 No século XX, no Brasil, vieram as ditaduras, as "punigdes” em massa, a "eugenia” que esterilizou doentes mentais, massacres de toda espécie; os hospfcios ¢ penitenciarias "superlotaram”; contrafram-se dividaseconémicas de cifras astronémicas a um fundo internacional - isto 6, agravou-se a questdo da falta de autonomia da nagdo, do bem-estar do povo, da realizagio interna de potenciais proprios. Quase cem anos se passaram e a obra de Lima continua viva, continua tendo sentido, Seria esta a sua “loucura"? Como escreveu Leenhardt, a ficgao, sinalizando para mundos possiveis, abrindo um horizonte para além do real, torna-se visionéria, “na medida em que autoriza a organizar 0 mundo das ages e dos fins de outra forma para além daquela que existe” #° ~ qual Quaresma para Lima ¢ Lima para o Brasil. 3 Lima Barreto, sem diividas, também como intelectual, ndo deixou de manifestar seu. descontentamento pela "frustragdo do sonho republicano", nos limites em que podia atuar: suas crdnicas em jornais e em seus textos de ficgdo. "Criticou intensamente a aceitagio, pela classe média, dos valores dos grandes proprietérios de terra e, consequentemente, pelo continuismo em todos os setores da sociedade. Nao perdeu, porém, a consciéncia dos limites da presenea politica do intelectual na sociedade."** Um problema dele, um problema de Policarpo, um problema do intelectual brasileiro naquele momento. E tinha uma opiniéo bem definida: s6 os habeis ¢ os espertos conseguiriam vencer. "O prestigio intelectual nao seria nunca conquistado pelo proprio valor, mas a golpes de astécia e até de charlatanismo."? 35, seguindo o préprio Lima, Nao obedego a teorias de higiene mental, social, moral, estética, de espécie alguma. O que tenho so implicineias parvas; e€ 6 isso. Implico com trés ou quatro sujeitos das letras, com a Camara, com os diplomatas, com Botafogo e Petropolis; e néo é em nome de teoria alguma, porque no sou republicano, ndo sou socialista, nao sou anarquista, ndo sou nada: tenho implicdncias. uma raaiio muito fraca e subalterna; mas como é a ‘nies, nfo fica bem & minha honestidade de eseriba escondé-la, 33 36 Vale ressaltar, que o ano de 1911 - Barreto tinha neste momento 3o anos -, 0 ano em que esereveu Policarpo Quaresma, foi um marco decisivo em sua vida. & a fronteira que delimita o periodo mais fecundo de sua atividade de romancista com os primeiros destegramentos boémios, saturado que estava, desde entao, pelo "aborrecimento” ¢ 0 "desgosto de viver", 37 A bebida, que era o seu lenitivo, hé de maté-lo lentamente. De freqiientador de cafés ¢ livrarias, onde reuniam-se os intelectuais, tornou-se um boémio de botequins; pela falta de dinheiro, passou do chope, da cerveja, do uisque, a cachaga - sua parati !! Embriagava-se todos os dias, muitas vezes afastando-se dos amigos para beber sozinho, indo cair — literalmente — na sarjeta e ali deixar-se ficar por horas a fio, “dormindo a sono solto, como um pobre ~ diabo das ruas” % 88 Lima, ele mesmo, percebia que estava mudando, ¢ répido. Mas em que? Em seu Didirio intimo, em 13 de julho de 1914, esereveu: “Noto que estou mudando de génio, Hoje tive um pavor burro, Estarei indo para a loucura?” %5 Ele reclamava, eserevendo em seu didrio, da vida doméstica, do seu cotidiano, da vida na repartigao piblica, tendo desabafado, poucos meses antes: Hoje pus-me a ler velhos niimeros do Mercure de France. Lembro-me bem que os lia antes de escrever o meu primeirolivro. Publiquei-o em 1909. Até hoje, nada adiantei. N (tenho editor, no tenho jornais, nfo tenho nada, O maior desalento me invade. Tenho sinistros pensamentos. onho-me a beber; paro. Voltam eles e também o tédio da minha vida doméstica, do mew ‘stimal Despego-me de um por um de meus sonhos! ..J4 preseindo da gloria, mas no queria é cotidiano e bebo. Uma bebedeira puxa a outra e la vem a melancolia. Que circulo vicioso! Que hitps:fournals. openedition.orginuevomundol1513 ana ‘2105/2022 05:21 38 0 “ ‘morrer sem uma viagem a Europa, bem sentimental e intelectual, bem vagabunda e saborosa, como a titima refeigdo de um condenado a morte. ‘Aminha casa me aborrece. O meu pai delira constantemente e o seu delirio tem a ironia dos loucos de Shakespeare, Meus irmios, egoistas como eles, queriam que eu hes desse tudo 0 que ganho e me curvasse a Secretaria da Guerra (0 que me aborrece mais na vida é esta Secretaria. Nao é pelos compankeiros, nao é pelos diretores. £ pela sua ambiéneia militar, onde me sinto deslocado e em contradigéo com a minha conseiéneia, Nio posso suporté-a. fi meu pesadelo, 6a minha angistia, Tenho por ela um édio, ‘um nojo, uma repugnéincia, que me acabrunha. Demais, meu fetio 6 oposto aquela atmosfera de violéneia, de opressao, de bajulagéo, que me enche de revolta ara os jornais daqui estou incompativel. Podia tentar aventura fora, mas nao tenbo liberdade; cera preciso que estivesse 86, fim, minba situaglo 6 absolutamente desesperada, mas nio me mato, Quando estiver bem certo de que nio encontrarei soluglo, embarco para Lisboa e vou morrerlé, de miséria, de fome, de qualquer modo. Desgragado naseimento tive eu! Cheio de aptidaes, de boas qualidades, de grandes ¢ poderosos defeitos, vou morrer sem nada ter feito. Seria uma grande vida, se tivesse feito grandes obras, mas nem isto fiz. 9 Nesta atmosfera de desespero, nesta sensibilidade derrotista, abusando do alcool cada vex mais, Afonso Henriques delira, alucina e em plena crise é conduzido ao Hospicio Nacional pela primeira vez. Foi no 18 de agosto de 1914. Ele apresentava delirios de perseguigo, assim como o pais fugia de casa para beber, gritava e brigava com as pessoas ao redor. O médico da famflia teria diagnosticado “alucinagées alcoélicas’, Seu irmao, funcionério da polfeia na época, conseguiu que esta conduzisse Lima ao hospicio. Desta vez, ld permaneceu dois meses. *” Esta internagZo rendeu um conto, sem muita repercussio na época, chamado Como 0 “homem” chegou, datado de 18 de outubro de 1914, Conta a historia de um homem ~ “um louco inofensivo, que tinha a mania da Astronomia e abandonara, nao de todo, mas quase totalmente, a terra pelo céu inacessivel” — que foi levado de Manaus a um hospicio do Rio de Janeiro num carro-forte. Foram os parentes que quiseram esta internagéo, uma critica aberta a seu irmao, na vida real, o qual nunca seria perdoado por té-lo recolhido ao hospfeio pela mao da policia. A viagem durou uma “eternidade”, quatro anos que fazem o homem chegar morto ao seu destino, sendo examinado, entao, por médicos legistas, e nao alienistas.%* Em 1919 repetiu-se o episédio, tendo sido achado, na noite de Natal, "errando pelos subirbios, em pleno delirio". E desta internagio surgiram, como jé vimos, suas "memérias de hospfcio", que originaram as obras péstumas Didrio do Hospicio e 0 romance inacabado Cemitério dos Vivos. Ter sido encontrado vagueando na rua, no dia de Natal, delirando, e ter sido levado pela policia e pela familia ao Hospicio, tornou-se para ele uma experiéneia definitiva. A partir daf, sua vida foi num crescendo de excessos, quando nfo estava eserevendo, que por mais que Lima tentasse dominar seus impulsos destrutivos com a bebida, nao o conseguia. E o esforgo que fez para continuar escrevendo, foi, provavelmente, o que o manteve vivo por mais tempo, até 1922. Amaciado um poueo, tirando dele a brutalidade do acorrentamento, das surras, a superstiglo das rezas, exorcismos, bruxarias, etc... 0 nosso sistema de tratamento da loucura ainda ¢ 0 da Idade Média: o seqiiestro, (..) Aqui no hospicio, com as suas divisies de classes, de vestudrio, ete, eu 86 vejo um cemitério: uns estio de carneira e outros de cova rasa, Mas, assim e assado, a Loucura zomba de todas as vaidades e mergulha todos no insondavel mar de seus caprichos incompreensiveis. 9 E nesta mesma internagio disse: "estou seguro que nao voltarei a ele (HINA) pela terceira ver; sendo saio dele para o Sao Joao Batista [cemitério], que é préximo."4° E, e assim aconteeeu, Afonso Henriques morreu em 1922, em sua casa, num subirbio do Rio de Janeiro. Nos trés Gltimos anos de sua vida, apés sair do hospieio, entregou-se hitps:fournals. openedition.orginuevomundol1513 “Veet, Quaresma, é um visionério alma nacional eloucura em Trials fim de Polcarpa Quaresma de Lima Barreto sna ‘2105/2022 05:21 4° @ por inteiro a seus escritos, reescrevendo alguns, escrevendo outros. Na intuigéo da proximidade da morte, recolhido a Vila Quilombo, nome que deu & sua casa, trancava- se na sala da frente a escrever, sala esta que servia ao mesmo tempo de dormitério e biblioteca. Trabalhava semanas a fio, sem interrupgao, escrevendo contra os “donos do mundo”. “Ficava em casa sem sair, abstémio, voluntariamente recluso em seu gabinete, qual numa cela fradesca, eserevendo sem cessar, dia ¢ noite, naquela letra hieroglifiea que era o desespero de linotipistas e revisores”. 4 O bidgrafo compara Lima Barreto, neste momento de sua vida, ao bicho da seda, pois metia-se no casulo e produzia. Morreu jovem, pode-se dizer. Com 41 anos completos, Lima deixou mais do que uma obra literdria; deixou um amplo testemunho de sua época, nos mais diversos aspectos e questées. Assim como Policarpo Quaresma, seu autor teve um final de vida um tanto inesperado, conturbado e trégico. Seus ideais foram cortados pela loucura, pelo alcoolismo, Mas mais do que isto, foram levados embora pela ineapacidade de seus contempordneos de compreenderem um sonho legitimo, realidade da alma de cada um, projetada na alma nacional da Pétria que tanto amavam. Um lutava por uma patria melhor. Outro, pela literatura melhor. Ambos sucumbiram em vida, eriatura e criador. Porém, suas obras ficaram para sempre: a de Policarpo, no coragdo de sua amada afilhada Olga, que no final do romance deixa uma luz de esperanga, ao se lembrar que a Historia existe e transforma todas as coisas; a de Lima, no “eterno” espfrito cultural da humanidade, indestrutivel com 0 tempo, que abarcou sua obra literdria e o consagrou como um grande escritor. Notes 1 Barreto, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. Sio Paulo: Moderna, 1993. 2 De Decca, Hégar Salvadori. Quaresma: um relato de massacre republicano, In: Anos 90, revista do PPG Histéria da UFRGS. Porto Alege: editora da Universidade UFRGS, n.8, dezembro 1997, 45-61. 3 idem, p54 ‘idem, p49 5 Arantes, Marco Antonio, Loucura em Lima Barreto. Dissertagio de Mestrado ~ Ciéncias Sociais, PUCSP, 1999, po 6 idem, pas. 7 Barreto, Lima, Didrio fntimo. Sao Paulo: Brasiliense, 1956. 8 Barreto, Lima, Triste fim de Policarpo Quaresma, Sio Paulo: Moderna, 1993, p62, 9idem., p23. so idem, p39, 11 Esta descrigdo faz parte de trés artigos do “Suburbano”, periddico earioca, assinados por Nemo, um pseudénimo que Francisco de Assis Barbosa supde poder ter sido de Lima Barreto, para escrever estes “Apontamentos para a histéria das ealonias de alienados”. Respectivamente, 08 artigos apareceram em 15 de outubro, 1 de novembro e quinze de novembro de 1900. Fonte: Barbosa, Franciseo de Assis. vida de Lima Barreto (1881-1922). Rio de Janeiro: José Olympio, 1952. p55 €58. 12 Barbosa, Francisco de Assis, Op. Cit, ps6. 43 idem, p66, 14 idem, p. 109. Com o enlouquecimenta do pai - loucura diagnosticada como “doenga incapacitante’, levando-o a uma aposentadoria compulséria — Afonso Henriques, sendo o filho rais velho, recebeu um grande fardo: cuidar dos irméos menores, da mulher do pai e seus fihos de um velho amigo que morava com cles. JA residindo num subirbio do Rio de Janeiro, tinha que sustentar a todos. Para isto, abandonou a Escola Politécnica, onde estudava Engenharia, prestou coneurso para amanuense ~ nome dado ao eseriturdrio, na época - ¢ comegou a trabalhar, entio, em outubro de 1903, no Ministério de Guerra. Este emprogo iria aviltélo, na sua sensibilidade, na sua inteligéneia e ~ como tudo — foi para o cesto das matérias-primas.. Seu pai morreu dois digs apds @ morte de Afonso Henriques em 1922. Fle restou, assim, vinte anos em sua casa, dependente dos outros, e principalmente de seu filho querido, parecendo até que ele esperou... Sem Afonso H., Joao H. também nao quis mais viver... Seria apenas uma coincidéneia? Quando Afonso foi encontrado morto em sua cadeira de balango por sua irma Evangelina, est, imediatamente, ouviu um grto de seu pai chamando-a pelo nome ¢, indo a seu enconteo, este Ihe perguniou: “Minha filha, Afonso morreu?”. Este episodio de rara lucidez em Jodo, uma lucidez vinda, sem divida, do fundo de sua alma, foi relatado pela irmé de Lima ao bidgrafo. Francisco de Assis Barbosa faz, também, uma descrigio da situagio da loucura do pai, na época em que Lima Barreto toma posse do cargo de funciondrio piblico: “Foi por este tempo que se mudou com «familia para Todos os Santos, indo morar em casa alugada, na rua Boa Vista, no alto de wm hitps:fournals. openedition.orginuevomundol1513 *Vecé, Quaresma, é um visionério alma nacional eloucura em Trials fim de Polcarpa Quaresma de Lima Barreto sone ‘2105/2022 05:21 “Veet, Quaresma, é um visionério alma nacional eloucura em Trials fim de Polcarpa Quaresma de Lima Barreto morro. No siléncio da habitagio suburbana, Jodo Henriques passaria a curtir, desde enti, sua neurastenia, longe dos olhos e ouvidos indiseretos. Permaneceria sentado numa cadeira, dias inteiros, sem falar e sem comer. Mas, de quando em quando, o delirio se apossava dele, e o pobre homem clamava pelo filho, aos gritos, como se Lima Barreto fosse a tiniea pessoa eapaz de protegé-lo, em meio ao pavor que tinha de ser preso: - Afonso! Afonso Barreto! Querem-me ‘matar {Querem-me matar! Os gritos reboavam morro abaixo, sacudindo a quietude suburbana. E por isso o povo da redondeza deu a chamar “a easa do loueo” & pequena morada no alto da rua Boa Vista, em Todos os Santos”. Barbosa, op. Cit., p.120. E, anos mais tarde, seu filho Afonso sofveria do mesmo tipo de alueinagao e delirios, 15 Figueiredo, Carmem Licia Negreiros de, Lima Barreto e o fim do sonho republicano, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995, P.93. 16 Barreto, op. cit. p.89. 17 Barreto, op. cit. nota introdutéria, p.10, 18 Barreto, op. cit, pags. 19 idem, p.139. 20 idem, p.2ag. 21 Pesavento, Sandra. Da cidade maravilhosa ao pais das maravilhas: nacional". In: Anos 90, revista PPG Histéria UFRGS. Porto Alegre: editora da Universidade- Lima Barreto ¢ 0 "eardter UFRGS, n.8, dezembro de 1997, p. 30-44. 22 Barreto, op. cit, pai62. 23 Barbosa, ‘ranciseo de Assis. Op. ci, p. 206. 24 Arantes, M.A, op. cil, pt 25 Barreto, Lima, apud Barbosa, op. cit. pags. 26 0 Didrio do Hospicio de Lima Barrel inserido na edigio de sua obra (romance) inacabada Cemitério dos Vivos, relata suas memérias e reflexes durante sua iltima internagzo em hospicio, no Hospicio Nacional de Alienados do Rio de Janeiro (FINA), em janeiro ¢ fevereiro de 1920. Esta obra consta da edigao das obras completas de Lima Barreto, publicada pela Brasiliense (Sao Paulo), em 1956, organizada por Francisco de Assis Barbosa, seu primeiro e mais famoso Dibgrafo, As notas redigidas no hospital deram origem ao romance inacabado, O Cemitério dos vivos, que, na referida edigao, tem preficio de Eugénio Gomes, e inclui como primeira parte este Diério de Hospicio (paginas 30 a 118). Numa segunda parte deste volume existe, entio, 0 romance propriamente dito, inacabado, O Cemitério dos vivos (pginas 119 2 225). Uma tereeira parte do volume compreende o Inventério da biblioteca particular de Lima Barreto, feito por ele mesmo e denominado “Colegio Limana’ (péginas 227 a 253). Uma quarta parte foi ainda acrescentada neste volume por seu organizador, chamada Documentos, onde foram colocadas, uma entrevista ao jornal A Fotha Rio de Janeiro, durante esta internagio de LB, com data de 31 de janeiro de i920; e uma cépia dos trés registros médicos (“Caso Cifnico”) de suas duas internagies no HINA. Os manuscritos do Didrio de Hospfeio eneontram-se na Colegio Lima Barreto, na Seco de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Os apontamentos do diério foram eseritos em folhas de papel de formato oficio, de baixa qualidade, a lipis, papel provavelmente obtide no hos io. Conforme Assis Barbosa, estes eseritos apresentam as caracteristicas das anotagbes de Lima Barreto vazadas em primeira redagdo, isto ¢, rapidez, de onde dificuldades para aleitura, omissiio quase geral de pontuago, letras e palavras apenas esbogadas, quando nfo smidas, sobretudo fins de palavras. Dai o trabalho imenso do organizador para dar uma forma editivel” deste material. Sobre o romanee, "O primeiro eapitulo a! O Cemitério dos Vivos foi publieado ainda em vida do autor na Revista Souza Cruz (niimeto 49, janeiro de 1921), com 0 titulo ds origens. Mas Lima Barreto nao pide coneluir o romance, que seria talvex a sua obra prima, eujos fragmentos incorporamos ao Didrio de Hospicio, série de apontamentos tomados por ocasiio da segunda estada do eseritor no sombrio casaréo da Praia Vermelha, ou seja, de 25 de dezembro de 1919 a 2 de fevereiro de 1920. Os dois manuseritos se completam, pode-se ‘mesmo dizer que se confundem.” Excerto da nota introdut6ria (Nota prévia") do organizador da obra, Franciseo de Assis Barbosa, na edigio de 1956 de O Cemitério dos vivos, p.25. Para maiores deiaihes sobre estas obras, ver sua andlise na minha tese de doutorado em Historia, pelo PPG em Histéria da UFRGS/Brasil,inttulada "Hist6rias de sensibilidades: espagos © narrativas da Joucura em trés tempos - Brasil, 905/1920,1937" (Tese de doutorado, IFCH, PPG Historia, Porto Alegre: UFRGS, 2005). 27 Jung, CG. 0 espirito na arte ena eiéncia. Petropolis: Vozes, 1985, p.7 28.Jang, CG. op. cit, p.63, 29 idem, pp.65/66. 30 Leenhardt, J. e Pesavento, S. Discurso histérico e narrativa literéria. Campinas, SP: ed Unicamp, 2000, p47 31 Figueiredo, C., op it, p.102. 32 Barbosa, op. Cit. p.203. 39 apud Barbosa, op. Cit, p.207. Parte de artigo publicado por Lima, em 15. 07.1911, em A Estagéo Teatral, Rio de Janeiro, 34 Barbosa, op. Cit. 213, 35 Barreto, Didrio Intimo, p72. 36 Didrio intimo, 20 de abril de 1914, p. 171-2 447 Barbose, op. cit, p-220 8224, 38 Idem, p.223, 39 Barreto, Lima. Diério de Hospfcio. In: Barreto, Lima. 0 Cemitério dos vivos. S30 Paulo: Brasiliense, 1956, p.76. hitps:fournals. openedition.orginuevomundol1513 wna ‘2105/2022 05:21 “Voc, Quaresma, é um visiondro": alma nacional loucura em Triste fim de Palicarpo Quaresma de Lima Barreto @ 40 Idem, p34. 41 Barbosa, Francisco de Assis, idem, p.301. Pour citer cet article Référence électronique Nadia Maria Weber Santos, « "Voc8, Quaresma, 6 um visionério": alma nacional e loucura em Tite fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto », Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Débats, mis en ligne le 28 janvier 2008, consulté le 21 juin 2022. URL hitp:/journals.openedition.org/nuevomundo/1613 ; OO! https:lidoi.org/10.4000/nuevornundo. 1813 Auteur Nadia Maria Weber Santos Doutora em Histéria pela UFRGS/Brasil, médica e psiquiatra, Professora convidada da FEEVALEIRS. Articles du méme auteur Nas asas do anjo da ausencia: um ensaio sobre ficccao, sensibilidades e roprosentacao... Quando psiquiatria ¢ historia cultural se encontram... (Texte intéral] Uma homenagem a inesquecivel professora e historiadora Sandra Jatahy Pesavento aru dane Nueva Mundo Mundos Nuevos, Débats Eseritos de si como roveladores de sensibilidades sobre a loucura (Brasil, inicio do sséculo xx) Texte intggral] L’écriture du soi comme révélatrice de sensibiltés sur la folie (Brésil - début du xxe sicle) PParu dans Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Colloques Droits d'auteur Nuevo mundo mundos nuevos est mis & disposition selon les termes de la licence Creative ‘Commons Attribution - Pas d'Uilisation Commerciale - Pas de Modification 4.0 International hitps:fournals. openedition.orginuevomundol1513 rane

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