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798-Texto Artigo-3152-1-10-20160706
798-Texto Artigo-3152-1-10-20160706
O Método das Histórias de Vida na Investigação Qualitativa em Psicologia
2 2 2
Patrícia
Araújo1,
Emília
Martins ,
Rosina
Fernandes ,
Francisco
Mendes2,
Cátia
Magalhães
Universidade
Católica
Portuguesa,
Porto,
Portugal.
pattaraujo@gmail.com
1
2
Escola
Superior
de
Educação
de
Viseu
e
CI&DETS,
Portugal.
emiliamartins@esev.ipv.pt;
rosina@esev.ipv.pt;
fmendes@esev.ipv.pt;
cmagalhaes@esev.ipv.pt
Resumo.
Durante
muitos
anos,
as
abordagens
qualitativas
na
investigação
em
Psicologia
foram
relegadas
para
segundo
plano,
sendo
enaltecidos
os
métodos
positivistas,
marcados
pelas
abordagens
quantitativas
da
realidade.
Pretende-‐se,
neste
trabalho,
realizar
uma
reflexão
sobre
o
método
das
histórias
de
vida
na
investigação
em
psicologia,
perpassando
a
história
dos
métodos
qualitativos,
suas
taxonomias
e
marcos
de
relevo,
efetuando
ainda
uma
análise
da
evolução
do
número
de
trabalhos
que
utilizam
histórias
de
vida
na
investigação
em
Psicologia,
publicados
numa
base
bibliográfica
de
referência.
Verificou-‐se
um
aumento
substancial
do
número
de
publicações
(558)
nos
últimos
anos,
de
2000
a
2016,
quando
comparamos
com
a
quantidade
de
trabalhos
publicados
(122)
durante
todo
o
século
XX
(de
1900
a
2000).
O
interesse
crescente
pelo
método
traduz
a
valorização
do
recurso
a
várias
metodologias
no
estudo
dos
fenómenos
psicológicos,
na
medida
em
que
há
espaço
para
todos
os
tipos
de
investigação
na
compreensão
do
comportamento
humano.
Palavras-‐chave:
histórias
de
vida;
investigação
qualitativa;
psicologia.
1 Introdução
Durante
muitas
décadas,
a
Psicologia
(bem
como
outras
ciências
sociais
e
humanas)
centrou-‐se
nos
métodos
de
investigação
das
ciências
ditas
“naturais
ou
exatas”,
nomeadamente
os
decorrentes
do
paradigma
positivista,
assumindo
um
carácter
quantitativo
no
estudo
da
realidade.
O
positivismo
de
Augusto
Comte
(1798-‐1857)
“defendia
a
unidade
de
todas
as
ciências
e
a
aplicação
da
abordagem
científica
na
realidade
social
humana”
(Goldenberg,
2004,
p.
17).
A
psicologia,
inicialmente,
necessitou
de
recorrer
aos
métodos
experimentais
de
carácter
hipotético-‐dedutivo
decorrentes
deste
paradigma,
para
se
afirmar
no
seio
das
restantes
áreas
do
saber.
Durante
décadas,
a
comunidade
científica
da
ciência
psicológica
menosprezou
e
relegou
para
segundo
plano
as
abordagens
qualitativas
de
investigação
(Tinoco,
2004),
valorizando
o
modelo
médico
e
a
estatística
na
compreensão
do
ser
humano.
Com
a
emergência
do
construcionismo
social
e
das
terapias
narrativas,
que
centraram
a
intervenção
na
vivência,
interpretação,
significado
e
resignificação
dos
seres
humanos
sobre
as
suas
próprias
588
>>Atas
CIAIQ2016
>>Investigação
Qualitativa
em
Saúde//Investigación
Cualitativa
en
Salud//Volume
2
experiências,
a
mudança
de
foco
começou
a
verificar-‐se
também
no
âmbito
da
investigação.
Depois
de
mais
de
um
século
de
história,
assistiu-‐se
à
valorização,
de
igual
modo,
das
metodologias
qualitativas
para
investigar
o
ser
humano
e
as
suas
crenças,
as
suas
formas
mais
íntimas
de
pensar,
de
sentir,
de
construir
realidades
e,
indiretamente,
de
produzir
o
social
em
seu
redor.
Enquadra-‐se
aqui
o
método
das
histórias
de
vida,
cuja
abordagem
diacrónica
(de
1900
até
ao
presente)
da
sua
utilização,
a
partir
do
número
de
publicações
na
ISI
Web
of
Knowledge,
nos
propomos
realizar.
É
comummente
aceite
que
se
date
o
nascimento
da
psicologia
como
ciência,
com
a
criação
do
laboratório
de
psicologia
no
Instituto
Experimental
de
Psicologia
da
Universidade
de
Leipzig
(Alemanha),
em
1879,
pelo
médico,
filósofo
e
psicólogo
Wilhelm
Maximilian
Wundt
(1832
-‐1920).
Anteriormente,
em
1873,
já
o
autor
assumia
no
“Principles
of
Physiological
Psychology”
o
propósito
de
afirmar
um
novo
domínio
da
ciência.
Defensor
dos
estados
e
conteúdos
da
consciência
como
objeto
de
estudo
da
psicologia,
foca
o
seu
método
na
observação,
dando
início
a
um
dos
paradoxos
desta
ciência,
que
vigoraria
durante
muitas
décadas:
estudar
o
“interior”
com
técnicas
“externalizadas”.
Em
pleno
século
do
positivismo
científico
(séc.
XIX),
a
psicologia
enceta
sucessivas
tentativas
de
cientificação
pela
“dessubjectivação
do
psiquismo
ou
do
comportamento”
(Abreu,
1990,
p.16),
iniciadas
por
Fechner
(1860),
Wundt
(1874),
ou
Ebbinghaus
(1885)
–
“dessubjectivação
do
psiquismo”
e
continuadas
pelo
behaviorismo
de
Watson
(1913)
-‐
“dessubjectivação
do
comportamento”,
ao
radicalizar
pela
exclusão
de
qualquer
intervenção
do
sujeito
na
determinação
do
seu
comportamento,
da
responsabilidade
única
de
estímulos
externos.
Ainda
de
acordo
com
Abreu
(1982,
1990),
esta
lacuna
foi
superada
pelo
reconhecimento
progressivo
do
papel
desempenhado
pelo
sujeito,
a
partir
do
contributo
do
movimento
da
“Psicologia
da
forma”
(ou
Gestaltheorie),
com
origem
na
Alemanha,
entre
1910
e
1912,
sob
a
marca
de
autores
como
Marx
Wertheimer,
Kurt
Koffka
e
Wolfgang
Köhler.
Assistiu-‐se
ao
destaque,
a
propósito
dos
fenómenos
da
perceção,
do
papel
construtor
do
sujeito
na
leitura
da
realidade,
a
partir
do
significado
que
lhe
atribui,
dando
origem
à
“categoria
epistemológica
da
interação
que
permitiu
a
substituição
da
análise
elementarista
associacionista
–
que
dominou
os
dois
primeiros
‘momentos’
de
constituição
da
psicologia
como
ciência
–
pela
análise
estrutural,
relacional
ou
interacionista,
na
descrição
e
explicação
dos
processos
psicológicos
e
do
comportamento”
(Abreu,
1990,
p.
22).
Um
dos
filósofos
e
epistemólogos
de
referência
do
século
XX,
Karl
Popper,
apresenta
o
racional
do
conhecimento
científico
no
confronto
e
escolha
entre
conceções
teóricas
concorrentes
ou
alternativas
para
a
explicação
dos
fenómenos
observados,
onde
a
ciência
não
é
fotografia,
mas
aproximação
contínua
da
realidade,
à
custa
da
intensificação
e
aperfeiçoamento
da
investigação,
bem
como
da
eliminação
progressiva
de
erros
cometidos.
Criou-‐se,
novamente,
espaço,
para
um
sujeito
subjetivado
que
“não
se
deixa
influenciar
passivamente
e
que
se
desenvolve
numa
relação
de
regulação
com
o
meio,
perspetivando
o
seu
próprio
comportamento,
em
função
dos
seus
objetivos,
das
suas
finalidades
mas
também
das
exigências,
dos
recursos
e
das
restrições
encontradas”
(Almeida,
2002,
p.
8).
Há
condições
agora
para
um
“regresso
à
pessoa”
ou
“Homem
integral”
(Fraisse,
1976),
isto
é,
o
“retorno
ao
sujeito”
como
entidade
integradora,
subjetiva
e
que
deve
ser
concebida
como
realidade
objetiva
(Abreu,
1982).
Constituindo-‐se
a
psicologia
enquanto
ciência
do
pensamento
e
comportamento
humano,
poderia
antever-‐se
como
o
campo
científico
de
excelência
das
abordagens
qualitativas,
nomeadamente
do
589
>>Atas
CIAIQ2016
>>Investigação
Qualitativa
em
Saúde//Investigación
Cualitativa
en
Salud//Volume
2
método
das
histórias
de
vida,
centrado
na
perspetiva
própria
de
vida
do
ser
humano.
Não
obstante,
num
contexto
de
exigências
inerentes
àquele
processo
de
cientificação,
as
metodologias
quantitativas
conquistaram
um
espaço
privilegiado
durante
muitos
anos,
relegando
para
segundo
plano
as
abordagens
qualitativas,
inclusive
o
método
das
histórias
de
vida,
que
subsistiu
quase
exclusivamente,
e
de
forma
limitada
e
específica,
na
recolha
da
anamnese
em
contexto
de
intervenção
clínica.
Apenas
com
a
revalorização
do
sujeito,
e
da
subjetividade
inerente,
renasce
o
espaço
para
as
metodologias
qualitativas
e,
após
mais
de
100
anos
de
história
da
psicologia
científica,
paulatinamente,
este
método
de
natureza
qualitativa
–
histórias
de
vida
-‐
parece
consolidar-‐se
de
forma
mais
reflexiva,
consciente
e
intencional
na
investigação
psicológica.
2.2 O lugar particular das histórias de vida na investigação qualitativa
Enquanto
a
metodologia
quantitativa,
decorrente
do
paradigma
positivista,
tem
como
“característica
principal
a
quantificação
tanto
na
recolha
dos
dados
como
na
interpretação
através
da
utilização
de
ferramentas
estatísticas”
(Silva,
Barros,
Nogueira,
&
Barros,
2007,
p.
27),
a
investigação
qualitativa,
de
raiz
fenomenológica,
explora
“valores,
crenças,
hábitos,
atitudes,
representações,
opiniões
e
adequa-‐se
a
aprofundar
a
complexidade
de
factos
e
processos
particulares
e
específicos
de
indivíduos
e
grupos”
(Paulilo,
1999,
p.
135).
Contudo,
estas
metodologias
não
necessitam
ser
encaradas
opositoras,
antes
como
diferenciadas
e
potencialmente
complementares,
na
medida
em
que
a
opção
por
uma
ou
outra
dependerá
sempre
das
perguntas
que
conduzem
o
investigador
à
sua
pesquisa.
Apesar
de
durante
muito
tempo
os
investigadores
em
Psicologia
optarem
por
pesquisar
o
‘quanto’,
cada
vez
mais
parecem
também
querer
saber
mais
do
‘como’
e
‘porquê’.
Martinelli
(1999,
cit.
por
Gonçalves
&
Lisboa,
2007,
p.85)
realça
três
pontos
que
conferem
relevância
à
investigação
qualitativa:
(a)
o
seu
caráter
inovador,
como
pesquisa
que
se
insere
na
busca
de
significados
atribuídos
pelos
sujeitos
às
suas
experiências
sociais;
(b)
a
sua
dimensão
política
que,
como
construção
coletiva,
parte
da
realidade
dos
sujeitos
e
a
eles
retorna
de
forma
crítica
e
criativa;
e,
(c)
por
ser
um
exercício
político,
uma
construção
coletiva,
a
sua
realização
pela
via
da
complementaridade,
não
da
exclusão.
A
utilidade
destas
metodologias
no
estudo
do
comportamento
humano
é
hoje
consensualmente
aceite
e
são
várias
as
abordagens
que
podem
ser
utilizadas
neste
âmbito.
Todavia,
foi
de
forma
lenta
e
cuidadosa
que
alguns
autores
começam
a
sugerir
métodos
qualitativos
na
construção
de
conhecimento
científico
nesta
área,
destacando-‐se
Allport
que,
em
1942,
aconselha
os
investigadores
à
utilização
de
documentos
biográficos
para
o
estudo
e
compreensão
profundos
da
personalidade
humana
(Tinoco,
2004).
No
âmbito
das
abordagens
qualitativas
encontrámos
as
abordagens
biográficas
que,
de
acordo
Denzin
(1989),
se
referem
à
colheita
e
uso
sistemático
de
documentos
que
descrevem
momentos
e
pontos
de
inflexão
na
vida
dos
indivíduos
e
incluem
autobiografias,
biografias,
diários,
cartas,
histórias
de
vida,
estórias
de
vida,
histórias
orais
e
histórias
pessoais,
tendo
por
objeto
as
experiências
de
vida.
Para
Silva
et
al.
(2007),
o
método
biográfico
divide-‐se
em
quatro
grandes
categorias:
história
oral,
biografia,
autobiografia
e
história
de
vida.
A
história
oral,
usada
essencialmente
por
historiadores,
não
visa
compreender
e
explorar
as
vivências
do
sujeito,
mas
sim
recolher
depoimentos
da
história
quotidiana.
A
biografia
e
a
autobiografia
visam
documentar
a
história
de
alguém,
contada
na
3ª
ou
1ª
pessoa,
prospectivamente,
consultando
todo
o
tipo
de
materiais
até
conseguir
reconstituir
o
percurso
de
vida.
O
método
da
história
de
vida,
por
sua
vez,
“tem
como
principal
característica
a
preocupação
com
o
vínculo
entre
o
investigador
e
o
sujeito”
590
>>Atas
CIAIQ2016
>>Investigação
Qualitativa
em
Saúde//Investigación
Cualitativa
en
Salud//Volume
2
(Silva
et
al.,
2007,
p.
29).
Uma
outra
tipologia
dos
estudos
qualitativos,
semelhante,
mas
mais
aprofundada,
refere
essencialmente
cinco
abordagens
distintas
(McCaslin
&
Scott,
2003):
biografia,
fenomenologia,
grounded
theory
(teoria
fundamentada
nos
dados),
etnografia
e
estudo
de
caso.
A
biografia,
onde
se
incluem
autobiografias,
histórias
de
vida
e
histórias
orais,
refere-‐se
ao
estudo
de
um
único
indivíduo
e
das
suas
experiências
contadas
ou
constantes
de
outros
documentos
e/ou
materiais.
A
fenomenologia
é
definida
pelos
mesmos
autores
como
o
estudo
do
significado
da
vivência
de
um
fenómeno
partilhado
por
vários
indivíduos.
Quanto
à
grounded
theory,
neste
âmbito
o
investigador
procura
gerar
“um
esquema
abstrato
de
análise
de
um
fenómeno,
uma
teoria
que
explica
um
pouco
da
ação,
da
interação
ou
do
processo”
(McCaslin
&
Scott,
2003,
p.
449)
e
concretiza-‐se,
sobretudo,
através
da
recolha
de
dados
por
entrevista,
com
desenvolvimento
e
inter-‐
relação
das
categorias
de
informação.
Termina
com
uma
teoria
substantiva
ou
sobre
um
contexto
particular.
Por
sua
vez,
a
etnografia
pode
ser
compreendida
como
o
“estudo
de
uma
cultura
intacta
ou
de
um
grupo
social
(também
de
um
indivíduo
ou
indivíduos
dentro
de
um
grupo),
baseado
principalmente
em
“observações
e
num
período
prolongado
de
tempo
gasto
no
campo”
(McCaslin
&
Scott,
2003,
p.
449).
Por
último,
para
os
autores,
o
estudo
de
caso
é
a
investigação
de
um
determinado
e
bem
limitado
sistema
(no
original,
‘bounded
systems’),
com
foco
no
caso
ou
num
problema
ilustrado
pelo
caso,
no
qual
a
recolha
de
dados
pode
ser
feita
através
de
inúmeras
técnicas.
Igualmente,
Souza
(2015)
alude
a
que
as
Ciências
Sociais
têm
utilizado
terminologias
diferentes
para
as
pesquisas
com
histórias
de
vida
e,
embora
considerando
aspetos
metodológicos
e
teóricos
que
as
distinguem,
enquadram-‐nas
na
abordagem
biográfica
que
utiliza
fontes
orais
(autobiografia,
biografia,
relato
oral,
depoimento
oral,
história
de
vida,
história
oral
de
vida,
história
oral
temática,
relato
oral
de
vida
e
as
narrativas
de
formação),
sob
a
polissemia
de
História
Oral.
Não
obstante
as
tipologias
apresentadas
neste
âmbito,
é
relativamente
unanime
a
inclusão
do
método
das
histórias
de
vida
nas
taxonomias
apresentadas
na
literatura.
A
ampla
categoria
das
designações
associadas
a
histórias
de
vida
é
frequentemente
atribuída
à
diversidade
de
utilizações
em
disciplinas
como
antropologia,
sociologia,
psicologia,
história,
medicina,
ciência
política,
literatura,
entre
outras
(Closs
&
Antonello,
2012).
As
abordagens
qualitativas,
entre
as
quais
o
método
das
histórias
de
vida,
foram,
como
já
referimos,
relativamente
marginais
e
pontuais
na
investigação
em
Psicologia
durante
muito
tempo.
Apesar
dos
psicólogos,
desde
sempre,
se
socorrerem
das
histórias
de
vida
dos
seres
humanos,
faziam-‐no
essencialmente
no
sentido
da
anamnese,
influenciada
pelo
modelo
médico.
Para
Tinoco
(2004),
é
a
partir
da
publicação
da
obra
‘The
Children
of
Sanchez’,
de
Oscar
Lewis,
em
1963,
que
as
investigações
qualitativas
começam
a
relançar-‐se
no
panorama
investigativo.
Ademais,
parece
ser
consensual
para
muitos
autores
e
pensadores
desta
temática,
que
é
através
da
psicologia
social
e
da
necessidade
de
compreender
problemas
sociais
emergentes,
que
a
abordagem
de
recolha
de
histórias
de
vida,
gerais
ou
temáticas,
começa
a
ganhar
força.
O
autor
defende
ainda
que
a
biografia
de
uma
pessoa
ou
grupo
de
pessoas
obteve
grande
atenção,
inicialmente,
pelo
jornalismo,
num
extremo,
quando
se
tratava
de
contar
a
vida
de
pessoas
célebres
e,
noutro
extremo,
quando
se
procurou
retratar
“biografias
das
classes
ou
grupos
sociais
minoritários
ou
marginalizados
no
todo
social”
(Tinoco,
2004,
p.
2).
Progressivamente,
durante
o
século
XX,
diversas
ciências
sociais
e
humanas
propuseram
uma
miríade
de
possibilidades
metodológicas
sobre
estes
métodos.
Historicamente,
os
métodos
biográficos
viriam
a
ser
impulsionados
pela
Escola
de
Chicago
que
advogou
a
aplicação
de
certas
técnicas
antropológicas
para
o
estudo
das
dinâmicas
urbanas
e
de
diversas
comunidades
minoritárias
nas
cidades
modernas,
nomeadamente
o
estudo
de
imigrantes
591
>>Atas
CIAIQ2016
>>Investigação
Qualitativa
em
Saúde//Investigación
Cualitativa
en
Salud//Volume
2
vítimas
de
exclusão
social
na
cidade
de
Chicago,
no
início
do
século
XX
(Tinoco,
2004).
A
obra
pioneira
a
utilizar
o
método
da
história
de
vida
foi
a
dos
sociólogos
Thomas
e
Znaniecki,
intitulada
de
“The
Polish
Peasant
in
Europe
and
América”,
datada
de
1918
(Silva
et
al.,
2007).
Clifford
Shaw
dedicou
toda
a
sua
vida
a
este
método,
tendo
recolhido
diversas
histórias
de
delinquência
juvenil
e
publicado
uma
obra,
em
1930,
que
se
tornaria
célebre,
“The
Jack
Roller-‐
Delinquent
Boy’s
own
story”,
onde
conta
a
história
de
vida
de
“Stanley”,
desde
as
dificuldades
familiares
iniciais
até
à
sua
vida
como
criminoso
de
rua
(Tinoco,
2004).
Meneghel
(2007),
tal
como
muitos
autores,
defende
que,
atualmente,
as
histórias
de
vida
retomaram
sua
importância,
talvez
porque
a
crise
dos
modelos
societários
numa
era
em
que
os
meios
de
comunicação
parecem
homogeneizar
todas
as
formas
de
comunicação
social,
devolve
às
pessoas
a
difícil
tarefa
de
construir
a
sua
história
única.
O
método
das
histórias
de
vida
é
um
processo
privilegiado
para
cumprir
esta
intenção,
que
requer
uma
compreensão
íntima
da
vida
de
outros,
permitindo
que
os
temas
abordados
sejam
estudados
do
ponto
de
vista
de
quem
os
vivencia,
isto
é,
possibilita
o
apreender
da
cultura
‘do
lado
de
dentro’.
Constitui-‐se
como
um
valioso
instrumento,
uma
vez
que
se
coloca,
justamente,
no
ponto
de
interseção
das
relações
entre
o
que
é
exterior
ao
indivíduo
e
aquilo
que
ele
traz
dentro
de
si
(Paulilo,
1999).
Visa
captar,
através
do
relato/narrativa,
a
interpretação
que
uma
pessoa
faz
do
seu
percurso
de
vida,
com
a
respetiva
diversidade
de
experiências
e
sentimentos,
ao
longo
do
tempo,
nas
mais
diversas
circunstâncias
ou
contextos
e
em
ligação
com
diferentes
sujeitos
e
instituições
(Amado,
2009)
.
De
acordo
com
o
autor,
os
estudos
(auto)biográficos
constituem-‐se
como
uma
construção
interpretativa
que
é
partilhada
entre
investigador
e
investigado.
Adotar
esta
visão
construcionista
implica
valorizar
o
discurso
pessoal
que
o
sujeito
estrutura
de
forma
a
organizar
a
sua
história
de
vida
através
de
uma
racionalidade
própria
(Guerra,
2006)
.
Estes
estudos
assentam
assim
no
pressuposto
de
que
narrar
é
reescrever
e
não
descrever
(Amado,
2009).
Segundo
o
autor,
interpretar
a
narrativa
experiencial
não
é
descrever
objetivamente
o
presente
como
um
encadeamento
causal
de
um
passado,
é
subjetivá-‐lo
para
o
projetar
no
futuro.
A
história
de
vida
é
assim
um
instrumento
privilegiado
para
análise
e
interpretação,
na
medida
em
que
incorpora
experiências
subjetivas
mescladas
com
contextos
sociais
fornecendo,
por
um
lado,
uma
base
consistente
para
a
compreensão
da
componente
histórica
dos
fenómenos
individuais
e,
por
outro,
para
a
compreensão
da
componente
individual
dos
fenómenos
históricos
(Paulilo,
1999,
p.
142).
No
campo
da
ciência
psicológica,
a
tradição
psicanalítica
foi
a
única
que
sempre
se
manteve
muito
próxima
das
histórias
de
vida
como
método
complementar
de
investigação.
As
histórias
de
vida,
como
método
de
investigação,
por
muitos
também
classificado
como
investigação-‐ação
pela
inevitabilidade
de
intervenção
junto
do
sujeito,
têm
vindo
a
ser
referidas
por
diversos
autores
como
uma
forma
de
intervenção
psicológica.
É
o
caso
de
Legrand
(1993)
ao
afirmar
que
a
reflexão
sobre
a
história
de
vida
é
um
trabalho
específico
sobre
o
passado
que
poderá
desencadear
mudanças
no
indivíduo.
Também
Vassilef
(1995),
no
âmbito
das
áreas
ligadas
aos
percursos
profissionais
e
formativos,
refere
que
através
da
construção
exaustiva
das
trajetórias
profissionais
de
cada
um,
e
da
reflexão
sobre
as
mesmas,
poder-‐se-‐á
efetuar
uma
intervenção
de
aconselhamento.
Estes
argumentos
advogariam
a
utilização
das
histórias
de
vida
na
investigação
em
psicologia,
porém
talvez
devido
à
questão
da
subjetividade
inerente
ao
processo
de
recolha
e
análise
dos
dados,
o
método
acabou
muitas
vezes
como
residual
nas
investigações
nesta
área.
A
respeito
da
subjetividade,
Esteves
(1998,
p.
43)
refere
que
o
investigador
em
ciências
sociais
se
depara
com
uma
“dupla
subjetividade”
já
que
se
trata
da
vida
construída
de
uma
pessoa
e
depois
interpretada
num
determinado
momento
desta
vida,
numa
situação
precisa,
pela
mesma
pessoa.
Contudo,
face
a
isto,
d’Epinay
(1985,
cit.
por
Esteves,
1998,
p.43)
acrescenta
que
a
pergunta
mais
interessante
em
ciências
humanas,
acerca
da
história
de
vida,
não
é
“o
que
podemos
fazer
da
história
de
vida
apesar
da
sua
subjetividade”,
mas
sim,
“qual
o
contributo
da
história
de
vida
graças
à
sua
subjetividade”.
592
>>Atas
CIAIQ2016
>>Investigação
Qualitativa
em
Saúde//Investigación
Cualitativa
en
Salud//Volume
2
Por
outro
lado,
as
histórias
de
vida
são
caracterizadas
por
uma
relação
muito
especial
entre
investigador
e
investigado,
o
que
poderá
também,
de
alguma
forma,
ter
contribuído
para
o
afastamento
dos
psicólogos
relativamente
à
técnica.
Sabemos
que
estes
profissionais
têm
o
dever,
na
prática
psicológica,
de
manter
o
necessário
afastamento,
para
obter
a
clareza
e
objetividade
necessárias
à
intervenção
psicológica,
essenciais
ainda
no
cumprimento
de
aspetos
deontológicos
e
até
para
o
bem-‐estar
psicológico
do
próprio
psicólogo.
Para
compreender
melhor
a
profundidade
do
método
das
histórias
de
vida,
vejamos
uma
afirmação
de
Meneghel
(2007,
p.
119):
Há
um
consenso
entre
os
pesquisadores
que
trabalham
com
histórias
de
vida,
que
uma
boa
história
“desborda”
deixando
vir
à
tona
elementos
sequer
imaginados
e
surpreendendo
o
próprio
narrador.
A
história
de
vida
devolve
a
palavra
aos
silenciosos
e
aos
esquecidos
da
história
e
projeta
uma
iluminação
particular
ao
social;
elas
tiram
a
palavra
dos
lugares
de
silêncio
e
rechaçam
um
ponto
de
vista
enquadrado
em
sistemas
de
pensamento
exclusivos,
redutores
e
totalitários.
No
método
das
histórias
de
vida
há
algumas
qualidades
essenciais
que
o
investigador
precisa
apresentar:
interesse
e
respeito
pelos
outros,
flexibilidade
em
relação
os
mesmos,
capacidade
em
demonstrar
compreensão
e
empatia
e,
acima
de
tudo,
disposição
para
escutar
(Meneghel,
2007).
Em
síntese,
a
investigação
científica
em
psicologia
tem
recorrido,
gradualmente,
e
de
forma
mais
expressiva,
a
métodos
de
natureza
qualitativa,
como
as
histórias
de
vida
que
temos
vindo
a
explorar,
bem
como
as
etnografias,
análises
documentais,
investigação-‐ação,
grupos
focais,
pesquisas
participantes
e
outras
formas
de
investigação
que
têm
contribuído
consideravelmente
para
o
avanço
dos
estudos
psicológicos
numa
perspetiva
complementar
aos
de
âmbito
quantitativo
(Barbosa
&
Souza,
2009).
2.4 A utilização das histórias de vida em estudos de psicologia em números
A
constatação
da
progressiva
relevância
que
a
literatura
atribui
ao
método
das
histórias
de
vida
em
psicologia
foi
o
ponto
de
partida
para
uma
análise
sobre
a
sua
evidência
na
literatura,
a
partir
da
utilização
“em
números”
nas
publicações
disponíveis
na
base
bibliográfica
ISI
Web
of
Knowledge,
a
partir
de
1900
e
até
ao
presente.
Assim,
numa
pesquisa
efetuada
no
dia
26
de
fevereiro
de
2016,
utilizando
como
termos
de
pesquisa
“Life-‐Story”
AND
“Psychology”
encontraram-‐se
os
resultados
que
se
apresentam
na
Tabela
1.
Tabela 1. Evolução do número de publicações sobre Histórias de Vida em Psicologia na ISI Web of Knowledge.
593
>>Atas
CIAIQ2016
>>Investigação
Qualitativa
em
Saúde//Investigación
Cualitativa
en
Salud//Volume
2
evolução
nos
últimos
6
anos,
pondo
em
evidência
o
interesse
progressivo
dos
investigadores
nesta
área
por
este
método
privilegiado
de
estudo
do
ser
humano
na
perspetiva
psicológica.
3 Conclusões
As
explicações
subjacentes
ao
interesse
crescente
pelo
método
das
histórias
de
vida
em
psicologia
podem
ser
de
vários
âmbitos.
Por
um
lado,
a
psicologia
é
hoje
um
campo
do
saber
com
espaço
reconhecido
nas
ciências
sociais
e
humanas,
pelo
que
o
recurso
a
estratégias
afastadas
do
positivismo
revela-‐se
atualmente
uma
possibilidade
que
durante
muito
tempo
foi,
compreensivelmente,
relegada
para
segundo
plano.
Esta
longa
hesitação
da
comunidade
científica,
na
área
da
psicologia,
em
se
apropriar
do
método
das
histórias
de
vida,
em
particular,
e
das
abordagens
qualitativas,
no
geral,
decorrerá
da
subjetividade
inerente
a
estes
métodos
e
das
características
a
assumir
pelo
investigador.
Estamos,
hoje,
no
tempo
epistemológico
de
um
sujeito
(objeto
de
estudo
da
psicologia)
que
não
sofre
influências
de
modo
passivo,
pelo
contrário
desenvolve
uma
relação
com
o
meio,
em
que
o
comportamento
próprio
é
perspetivado
e
regulado
em
função
de
objetivos,
finalidades,
exigências,
recursos
e
limitações.
É
um
tempo
em
que
o
reconhecimento
progressivo
do
papel
desempenhado
pelo
sujeito
na
determinação
do
comportamento
assinala
a
superação
da
dessubjectivação
do
psiquismo,
comum
aos
primeiros
períodos
da
cientificação
da
Psicologia
e
referida
por
Abreu
(1989,
1990).
Podemos
ainda
acrescentar
motivos
que
advêm
também
da
análise
de
dados,
na
medida
em
que
são
muito
recentes
as
técnicas
mais
sistematizadas
de
análise
de
dados
qualitativos
e
até
software
de
análise
de
conteúdo.
É
verdade
que
a
tecnologia
tem
o
poder
de
fazer
o
mundo
avançar,
contudo,
mesmo
com
apoio
de
programas
informáticos,
o
investigador
continua
a
ser
o
centro
de
toda
a
investigação
qualitativa
pois,
como
afirma
Azevedo
(1998)
o
computador
não
pode
interpretar
os
dados,
somente
ajudar
a
analisar.
Numa
sociedade
global,
onde
a
quantificação
tem,
sem
qualquer
dúvida,
o
seu
valor,
a
construção
narrativa
dos
seres
humanos,
ou
determinados
grupos
de
seres
humanos,
em
determinado
momento
histórico
ou
temporal,
acerca
dos
fenómenos
sociais,
irá
ter,
provavelmente,
cada
vez
maior
relevância.
Na
psicologia,
em
particular,
a
compreensão
do
pensar
específico
de
um
ser
humano
a
viver
determinado
life
event,
beneficia
sem
dúvida
destas
abordagens
qualitativas
e,
neste
caso,
do
método
das
histórias
de
vida
que,
certamente,
continuará
a
proliferar
na
investigação
em
psicologia
nas
próximas
décadas.
Com
efeito,
pedir
a
uma
pessoa
a
sua
versão
da
sua
história,
constitui,
talvez,
uma
das
formas
mais
profundas
de
conhecer
o
funcionamento
humano.
O
trabalho
exploratório
aqui
realizado
constitui-‐se,
em
nosso
entender,
um
ponto
de
partida
para
o
muito
que
ainda
falta
e
que,
obrigatoriamente,
terá
de
se
direcionar
para
uma
revisão
sistemática
do
conteúdo
das
publicações
ora
tratadas
como
números.
Referências
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594
>>Atas
CIAIQ2016
>>Investigação
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