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3. PANDITA RAMABAI SARASVATI (Kanara, [Np1A, 1858-1922) — Oque é cruel? — O coragao de uma vibora. — O que é mais cruel do que isso? — Ocoragao de uma mulher. — O que é mais cruel do que tudo? — O coragao de uma vittva sem um filho homem e sem dinheiro. (Sermio religioso, citado por Pandita Ramabai Sarasvati, A mulher hindu de casta alta) Uma indiana pobre, jovem, vitiva e mae de uma filha mulher: de acordo com o provérbio do século XIX indicado na epigrafe, Pandita Ramabai Sarasvati reunia todos os predicados para ser considerada a pior e mais cruel das criaturas. Mas foi precisamente contra esse estigma que vi- nha sendo projetado sobre ela, sobre as mulheres e, sobretudo, sobre as vitivas, que Ramabai lutou a vida inteira. No processo, ela conquistou Tespeito e notoriedade, tornou-se responsavel por resgatar da opressao € da pobreza centenas de meninas, adolescentes e mulheres vitvas na India da virada do século XIX e redigiu o que é hoje considerado um dos primeiros manifestos politicos feministas escritos por uma indiana. O fragmento citado foi retirado de um sermao religioso proferido por um estudioso hindu do século XIX e aparece em um pequeno e notavel livro publicado por Ramabai em 1887, intitulado A mulher hindu de casta alta [The High Caste Hindu Woman]. O trecho figura em meio a textos 83 CLASSICAS DO PENSAMENTO SOCIAL sagrados, sermdes e provérbios populares da época, compilados por ela com um unico objetivo: demonstrar quéo baixo era 0 lugar que estava sendo atribuido a mulher na cultura bramanica. “Viboras”, “crucis", “desleais”, “ardilosas”, “sedutoras”, “falsas”, “impuras”, “indignas de confianca” — esses foram alguns dos adjetivos atribuidos as mulheres inventariados por Ramabai nesses textos. Em um tempo em que 0 acesso ao sanscrito e as escrituras estava veementemente proibido as mulheres, publicar esse livro era uma dupla transgressio: nao s6 demonstrava dominar contetidos interditos, como também usava o seu conhecimento para contestar as representa¢des negativas da mulher e contradizer, com estudo e propriedade, inter- pretacées de religiosos e eruditos bramanes a respeito das escrituras. Pensadora perspicaz e heterodoxa, Ramabai enxergava a religido na sua dimensio social e apontava as apropriacées seletivas, as falsificacoes maliciosas, as pequenas distorgées dos escritos sagrados que eram feitas pelos homens bramanes com o objetivo de conferir justificativa religiosa as praticas de opresséo das mulheres. De fato, Ramabai teve uma vida marcada por transgressées, tor- nando-se uma figura altamente controversa na India. Estimulada por seu pai e sua mie a aprender o sAnscrito, ela se tornou uma erudita, sustentando-se por longos anos com sua memoria extraordinaria, sua oratéria afiada e sua capacidade de recitar de cor em exibicdes publicas os Puranas — a literatura sobre mitos, lendas e cosmologia indiana. Depois que seus pais morreram em uma das ondas de fome que assolou a India por obra do colonialismo britanico, Ramabai se viu praticamente sozinha no mundo, tendo como tinica companhia seu irmao, que tam- bém veio a falecer dois anos depois, Ramabai era de origem bramane, isto é, nasceu na casta de status mais elevado na ordem estamental hindu. Na India pré-colonial, parte significativa da populacao nao se organizava em castas, Contudo, a época do seu nascimento, as castas haviam se disseminado e se estabelecido como categorias fundamentais de diferencia ; 1-40 social em praticamente todo o territério. 84 PANDITA RAMABAI SARASVATI Para 0 senso comum, as castas sio uma caracteristica essencial da civilizagao indiana, remontando a tradi¢6es ancestrais e imemoriais. Ahistoria € mais complicada do que isso. Por um lado, a intervengdo colonial britanica introduziu no subcontinente indiano praticas de sis- tematizagao de informagées e administracao de populagées que contri- puiram paraa criacao e enrijecimento das formas de classificagao social que hoje conhecemos como castas. O olhar eurocéntrico sobre a India, a introducao dos censos demograficos — que registraram e catalogaram identidades — e as praticas administrativas do Estado — que se referia diretamente aos individuos como membros de “castas” — contribui- ram sobremaneira para a formagao desse sistema. Por outro lado, os britanicos nao simplesmente inventaram as castas, mas transformaram econtribuiram para disseminar antigas formas de dominagio preexis- tentes. As proprias elites locais indianas se empenharam em inventar uma tradigao cultural local, que justificasse sua Pposi¢4o social superior diante dos demais colonizados, que delimitasse fronteiras entre grupos e que organizasse as formas de incluso e exclusio em uma sociedade em rapida mudanga (Veer, 2001). Conforme essa leitura de mundo propalada, sobretudo, pela elite bramane — e legitimada pelas praticas administrativas dos coloniza- dores britanicos —, a sociedade indiana dividia-se em castas, quatro categorias ligadas a diferentes partes do corpo de Brahma, o criador, e a diferentes atividades: os bramanes (sacerdotes, filésofos e estudiosos) teriam vindo de sua cabega; os xatrias (governantes e guerreiros) de seus bragos; os vaixds (mercadores) de suas coxas; e os sudras (trabalhadores &camponeses) de seus pés. Fora e abaixo desse sistema de castas estavam ainda os intocdveis,* categoria de pessoas cujo toque ou sombra eram Considerados ritualmente poluidores e cujas ocupacées eram tidas como impuras e degradantes (Sharma, 2005). Dadas a sua elevada posi¢ao social e condicao de sacerdotes, os bra- Manes possuiam os habitos e rituais de pureza religiosa mais estritos e ot Hoje na India o termo “intocavel” [untouchable] é considerado pejorativo e foi substituido 4° discurso puiblico por “dalit”, que significa “oprimido” na lingua marathi. 85 CLASSICAS DO PENSAMENTO SOCIAL rigorosamente observados entre todas as castas. No entanto, Ramabaj recebeu uma criagdo marcadamente heterodoxa. Para o escandalo de todos, isso a levou a ignorar completamente o fato de que o homem com quem veio a se casar pertencia a uma casta inferior. Com a morte do marido apenas dois anos depois do casamento, ja vitiva, Ramabaj tornou-se uma figura ainda mais perigosa aos olhos dessa elite. Para os bramanes, a viuvez feminina deveria significar uma vida de reclusdo e peniténcia. Como ela descreve em seu livro, sobreviver ao marido era encarado como uma puni¢ao por um crime terrivel come- tido em uma vida passada e, por esse motivo, a vitiva era castigada até © fim da vida. Tamanhas eram as restrigées que eram impostas a essas mulheres, diz Ramabai, que elas sofriam uma verdadeira mortificagao do corpo e da alma. Ao recusar-se a seguir esse roteiro e insistir na manutengao de uma vida publica, a autora rompeu definitivamente seus laos com a cultura bramanica. Depois de uma breve permanéncia junto a um grupo de reformadores na India Ocidental, Ramabai desapontou-se com 0 conservadorismo dos seus compatriotas em relagao as mulheres. Por esse motivo, resolveu buscar aliados de fora. Através de contatos com uma missao religiosa inglesa em Poona, ela viajou para a Inglaterra com a filha de 3 anos. Uma vez l4, conheceu as casas de acolhimento para mulheres dirigidas por freiras e converteu-se ao cristianismo. Da Inglaterra seguiu para os Estados Unidos, onde aproximou-se do movimento sufragista e viajou pelo pais palestrando sobre a condi- g4o das mulheres na India, a fim de recolher apoio e fundos para seu projeto de criar Sharada Sadans, casas de acolhimento para meninas e mulheres vitivas. Foi nesse contexto que Ramabai escreveu em inglés A mulher hindu de casta alta [The High-Caste Hindu Woman] dirigido a leitores americanos. Seu apelo foi bem-sucedido, e Pandita Ramabai abriu a primeira casa em 1889, em Bombaim, com o dinheiro obtido das doacées. Nos anos seguintes, muitas outras casas semelhantes fo- ram criadas. Além do éxito de sua empreitada, sua viagem aos Estados 86 PANDITA RAMABAI SARASVATI Unidos também resultou em um dos raros registros do século XIX de uma pessoa do Oriente falando sobre o Ocidente: Os povos dos Estados Unidos [Pandita Ramabai’s American Encounter: The Peoples of the United States] (1899), originalmente escrito em marathi. Presa entre o colonialismo do Raj britanico e 0 nacionalismo reli- gioso patriarcal, Pandita Ramabai foi difamada por lideres politicos, como Bal Gangadhar Tilak (1856-1920), como “traidora” e ainda hoje ha certo desconforto em torno de sua figura. O principal motivo para o incémodo é sua conversao da religiao hindu paraa crista — a religiao do dominador colonial. No entanto, Uma Chakravarti (1996), feminista e historiadora indiana, afirma que a vida e as escolhas de Ramabai devem ser contextualizadas e interpretadas segundo a circunstancia da dispu- ta pela formacao do projeto de nacao da [ndia, no qual o patriarcado bramane se encontrava alinhado ao nacionalismo hindu. Chakravarti demonstra como género e casta se ligaram de maneira profunda e insepardvel na India. Isso porque as regras de casamento se tornaram absolutamente centrais para a construgo e o controle de fronteiras entre os grupos, cujos membros deveriam casar-se entre si para manter sua posi¢ao social e de casta. O matriménio envolvia tran- sa¢des econdmicas entre as familias por meio da pratica do dote* e das aliangas politicas criadas e sustentadas por lacos de consanguinidade. As mulheres, portanto, se tornaram um fator fundamental na construcéo €na manutengao do sistema de castas. Ainda, a época de Ramabai foi também um momento critico para a afirma¢4o dos bramanes como lideres do nascente movimento de na- Cionalismo indiano e como guardides do hinduismo. Para se consolidar Como os legitimos detentores do poder econémico e politico daquela Sociedade, eles precisaram justificar seu status ritual e moral superior €M relacdo as outras castas — especialmente aos xatrias, com quem *D iis posed um valor pago em dinheiro, propriedades, presentes ou outros bens pela familia da ‘4.80 noivo por ocasido do casamento. 87 CLASSICAS DO PENSAMENTO SOCIAL disputavam o poder. Nesse jogo de legitimacao, as mulheres desempe. nharam um papel fundamental. Os homens bramanes reivindicaram sua superioridade sob a alegacdo de que “suas” mulheres eram maig virtuosas, puras e honradas que as demais. E, por seguirem rituais estritos de autoflagelacao e reclusdo, as vitivas bramanes, por sua vez, forneciam demonstra¢ées frequentes do quanto esse grupo era devoto e seguidor dos preceitos de pureza ritual da religiao hindu. Foi com essa manobra que o género veio a ocupar uma posi¢o central na [ndia: primeiro como forma de definir a identidade das castas e de operar transacées econdmicas e politicas entre familias e, em seguida, como elemento fundador da identidade nacional. Com a domina¢io dos bramanes, seu cédigo de conduta passou a ser imposto ao conjunto das castas mais baixas e foram instauradas formas de vigilancia estrita sobre os nao bramanes, principalmente sobre suas mulheres. Na visdo de homens como Bal Gangadhar Tilak, o patriotismo de uma mulher indiana deveria residir na sua quieta sujeicdo ao poder masculino (Chakravarti, 1996). Desse modo, nao bastava que Ramabai fosse critica a0 dominio colonial britanico, como fica claro em varios dos seus textos. Em um momento em que o nacionalismo era igualado ao hinduismo bramane — algo que no século XX levaria a dolorosa Particdo da India pela expulsio dos muculmanos —, sua conversao 4 religido crista era encarada como um ato antipatridtico. Diante dos ata- ques que sofria, Ramabai chegou a declarar: “E preciso grande coragem para dizer a verdade quando se sabe que toda a nacao se voltar4 contra vocé, como um sé homem, para derrubé-la. Portanto, ninguém deve se surpreender com a relutancia das mulheres da {ndia” (Ramabai, 1900). Apresentamos neste capitulo trechos selecionados de A mulher hindu de casta alta. Esse pequeno livro, de linguagem direta e contetido apa- rentemente simples, é considerado hoje um dos primeiros estudos sobre familia e parentesco na {ndia (Sinha, 2017) e trata de forma complexa € nuangada questées de religiao, género, casta, nacionalismo e colonia- lismo. Organizado em capitulos curtos, o livro avanga pelas diferentes 88 PANDITA RAMABAI SARASVATI fasesde vida de uma mulher hindu de casta alta, mostrando como, desde nascimento, seu cotidiano era marcado por preconceitos e injusticas. pamabai argumenta ainda que a unido de preceitos da comunidade hindu ortodoxa com a estrutura politico-econémica e o sistema legal instituidos pelos colonizadores britanicos foi prejudicial, sujeitando, por fim, as mulheres indianas a uma dupla jurisdicao patriarcal. Longe de constituir mero registro histérico do passado, hd no texto de Ramabai insights importantes para a compreensao da sociedade in- diana de hoje, como destaca a socidloga contempordnea Vineeta Sinha: O status das mulheres indianas continua a ser um tema poderoso no dominio publico da {ndia hoje — e os problemas do infanticidio feminino, a valorizagao dos filhos sobre as filhas, a negacao de opor- tunidades educacionais para as meninas, os desafios de uma familia patriarcal estendida para as mulheres continuam sendo relevantes. Isso atesta a habilidade de Ramabai de identificar uma problematica central no contexto indiano — o status das mulheres — e [...] rea- firma que suas ideias ttm uma permanéncia e aplicabilidade além do contexto em que ela estava escrevendo. Para cientistas sociais, seu texto proporciona um relato importante contra visGes estaticas das relagées sociais e de género na India e outras Sociedades nao ocidentais. TRECHOS DE A MULHER HINDU DE CASTA ALTA, 1887* Na Introducao ao livro A mulher hindu de casta alta, Ramabai se dirige a W ian. . : tae. Ma audiéncia estrangeira, explicando a religiao e os costumes hindus e * RAMADALE hae aan Pandita. The High-Caste Hindu Woman. Filadélfia: Press ot The Jas. B. Roclgers '8Co., 1888, Disponivel em:

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