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A Fundação Waldemar Alcântara (FWA) tem

+ como atividade constante o desenvolvimento

PROJETO | DIÁRIO DE VIAGEM


de projetos que incidem no campo da
pesquisa histórica e da catalogação de

OBRAS | DE FRANCISCO.|
documentos.

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RARAS | FREIRE ALEMÃO


disponibilizando aos pesquisadores,
professores, estudantes e aos interessados
na história de nossa região títulos incomuns,
ampliando o acervo que contempla o resgate
de registros marcantes do processo de
formação de nossa cultura.

N Isto só foi possível graças à parceria firmada,


através do Convênio Obras Raras, com o
Banco do Nordeste /Escritório Técnico de
Estudos Econômicos do Nordeste (ETENE).
São três títulos que ora publicizamos e
que passam a integrar a Coleção Biblioteca
Básica Cearense, iniciada, em 1997, pela
Fundação: O Ceará, de autoria de Raimundo
Girão e Martins Filho, (editado em 1939),
o Boletim de Antropologia, organizado pelo
Dr. Thomaz Pompeu Sobrinho, ambos em
formato fac-similar, e o Diário de Viagem
de Francisco Freire Alemão, transcrito dos
originais do autor, cujo título leva seu nome.
Vale ressaltar, nestas iniciativas, a
participação de segmentos comprometidos
com o nosso desenvolvimento cultural, o
que tem possibilitado à FWA, dentro dos
limites próprios de uma organização não-
governamental, contribuir para preservação
da memória bibliográfica do Ceará. Não
podíamos, portanto, deixar de mencionar
nossos agradecimentos à Academia Cearense
de Letras, à Universidade Federal do Ceará,
ressaltando a colaboração do Professor
Régis Lopes e do Professor Ismael Pordeus
Júnior, à Família Girão representada pelo
Dr. Eurípedes Chaves Júnior, e ao Dr. Murilo
Martins. Ainda, em particular, à Madalena
Figueiredo pela disponibilidade, à Professora
Valdelice Carneiro Girão e ao Professor Almir
Leal de Oliveira pelo empréstimo de obras
originais.

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PROJETO | DIÁRIO DE VIAGEM
OBRAS | DE FRANCISCO,
RARAS | FREIRE ALEMÃO
(1859-1861)

Organização e Apresentação
Antonio Luiz Macêdo e Silva Filho
Francisco Régis Lopes Ramos
Kênia Sousa Rios

4 ,
BIBLIOTECA BÁSICA CEARENSE
FUNDAÇÃO
WALDEMAR ALCANTARA

Fortaleza, 2011
O Fundação Waldemar Alcântara, 2011

COLEÇÃO BIBLIOTECA BÁSICA CEARENSE


Projeto Obras Raras

Comitê de Coordenação
Lúcio Gonçalo de Alcântara
Maria Auxiliadora Lemos Benevides
Silvia Maria Aragão de Andrade Furtado
Capa
La Barca Editora

Revisão de Textos
Natália Rocha

Transcrição paleográfica
Liduína Queiroz de Vasconcelos
Atualização ortográfica e revisão técnica de texto
Antonio Luiz Macêdo e Silva Filho
Rodrigo de Souza Oliveira
Karoline Viana Teixeira
Revisão dos originais e da edição
Paula Virgínia Pinheiro Batista
Antonio Luiz Macêdo e Silva Filho
Karoline Viana Teixeira
Paulo César dos Santos
Francisco Régis Lopes Ramos
Realização
Fundação Waldemar Alcântara
Parceria
Banco do Nordeste do Brasil S. A.
Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste (ETENE)

Alemão, Francisco Freire


Diário de viagem de Francisco Freire Alemão (1859-1861) /
Francisco Freire Alemão; organização e apresentação, Antônio Luiz
Macêdo e Silva Filho, Francisco Régis Lopes Ramos, Kênia Sousa
Rios. - Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2011.
596p. - (Coleção Biblioteca Básica Cearense).

ISBN 978-85-61865-13-9

1 Relatório de Viagem. 2. Recursos Naturais. 3. Geografia - pesquisa.


4. Ceará - história. 1. Título. E. Série.

Fundação Waldemar Alcântara


Rua Júlia Vasconcelos, 100, Pjo XI
Cep 60120-320, Fortaleza, Ceará
Tel: (85) 3257 6927 - Fax: (85) 32412433
fwamfwa.org.br - www.fwa.org.br
SUMÁRIO

Apresentação ..........seeeeereereereerreererereeenesaneareeraeeneraseesacenerareesaasaasantos

Viagem de Fortaleza a Aracati


16 a 24 de agosto de 1859... cicerereeerernerereracereserererenernernenreranea

Notas sobre a vila de Aracati


29 de agosto a 14 de setembro de 1859... sessirreeereerereeeeremmaeneanas

Viagem do Aracati ao Icó


15 de setembro a 6 de outubro de 1859.........ciiceseeererreereneeeserererareaneceeera

Viagem de Icó ao Crato


4 de novembro a 8 de dezembro de 1859.......eeeeeeeeerererecereaeereranaa

Estada no Crato
8 de dezembro de 1859 a 29 de janeiro de 1860..............siic essere

Viagem ao Exu, Jardim e Barbalha pela chapada do Araripe


30 de janeiro a 8 de fevereiro de 1860 ............ceemeerereseereesereeeeeserenerento

Estada no Crato
9 de fevereiro a 8 de março de 1860...........ccseeseseererseeerecreeseeeananeenaana

Viagem do Crato a Pacatuba


8 de março a 20 de abril de 1860.................2si
sis ssrsseeererererereeererancenama
Estada em Fortaleza
23 de maio a 27 de junho de 1860...................
ni eeeremerererarees

Viagem do Ceará ao Rio de Janeiro no vapor Cruzeiro do Sul


27 de junho a 7 de julho de 1860.................
erre

Volta do Rio para o Ceará


24 de agosto - 9 de setembro de 1860 .................c
e eeeerereeeereem

Viagem de Fortaleza até a serra Grande


9 de outubro de 1860 - 2 de março de 1861...

Viagem do Ceará para o Rio de Janeiro


13 - 24 de julho de 1861... eeereereeererererereeeerentaanos
APRESENTAÇÃO

Antonio Luiz Macêdo e Silva Filho


Francisco Régis Lopes Ramos
Kênia Sousa Rios
Não sei o nome do arbusto, nem mesmo se já foi batizado pela
ciência. É natural que não tenha escapado às pesquisas dos
dois ilustres freires da flora brasileira, o Veloso e o Alemão;
mas apesar de tanto dinheiro desperdiçado pelo governo,
as letras andam entre nós abandonadas à indiferença e ao
charlatanismo que são a medusa e o minotauro do talento,
não me pude socorrer à ciência dos dois célebres botânicos
(Alencar, 1953, p. 42).

Nesse trecho de Sonhos d'Ouro, publicado em 1872, José de Alencar


marca posição, não somente diante dos debates sobre história natural,
mas também a respeito das formas de financiá-la. Os dois “freires” eram,
respectivamente, José Velloso Xavier (1742-1811) e Francisco Freire
Alemão (1797-1874). Pioneiros e mestres da botânica no Brasil, eram
conhecidos e reconhecidos por qualquer leitor de romances da época
em que Sonhos d'ouro foi publicado. Tanto é que Alencar não colocou
em prática seu método de dar informações complementares em nota de
rodapé. Na época, Freire Alemão ainda vivia e a memória de José Velloso
era razoavelmente reverenciada.!
O “dinheiro desperdiçado” também não era um assunto
desconhecido no mundo dos letrados. Referia-se, entre outras coisas, ao
dispêndio do imperador com a Comissão Científica de Exploração, que
havia percorrido a província do Ceará no intuito de fundar uma ciência
de brasileiros a serviço do conhecimento das potencialidades naturais
do país. Alencar seguiu o tom de altercação que cercava não somente
o empreendimento dos “viajantes”, mas tudo aquilo que, de alguma
maneira, fazia parte do campo intelectual que se desenvolvia na corte.
É verdade que a formação de instituições como o Museu Nacional ou o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro seguia rituais de autoelogio,

1. Além de ficar conhecido pelos 11 volumes da sua Flora Fluminensis, Velloso foi homenageado por Freire
Alemão com a fundação, em 1850, da Sociedade Vellosiana, encarregada de promover e publicar estudos
de história natural. Sobre a atribulada existência dessa sociedade, ver Paiva (2005).

9
mas a própria atividade científica com a qual lidavam se fazia na disputa
por descobertas e primazias.
Sendo assim, a ironia de Alencar não era nada excêntrica. Pelo
contrário, porque era assim que o intelectual se fazia atuante. E o espaço
literário no século XIX havia assumido a condição de arena privilegiada,
adequada para todo e qualquer tipo de crítica. Não é de se estranhar,
portanto, que outro escritor, o médico Joaquim Manoel de Macedo,
também tenha inserido no seu livro Um passeio pela cidade do Rio de
Janeiro, de 1862, um comentário sobre o insucesso da comissão:

Dizem, e eu creio, que a nossa comissão científica, ao tempo em que


suspenderam a subvenção, já se achava quase ao ponto de desorganizar-se por
si mesma, e sustentavam que os seus trabalhos não corresponderam às despesas
feitas; parece-me, porém, que em tal caso o mais acertado seria procurar
remover os embaraços que a amesquinhavam, dar-lhe mais seguras condições
de harmonia e de vigor, e fazê-la continuar em zeloso labor, mesmo porque as
mais avultadas despesas estavam feitas, e a verdadeira economia aconselhava
aproveitar o dinheiro empregado e a experiência do noviciado dos exploradores
(Macedo, 2004, p. 21).

Seria uma tarefa sem fim inventariar as referências ao assunto,


produzidas ou não nesse tom de avaliação lamentosa. Mas, apenas para
destacar mais uma peça dessas engrenagens escriturárias, vale a pela citar,
ainda no campo literário, a menção jocosa que Domingos Olímpio fez à
comissão no romance Luzia-Homem, publicado em 1902:

Raulino, que estava à parte, examinando o animal enfermo, com olhares


magistrais de conhecedor, aproveitou o ensejo para encartar uma das suas
anedotas sobre as astúcias e manhas de burros.
— Era por volta da era de sessenta. Não me lembro bem o ano; só sei que
eu era rapazote, pelo tope dos doze. Andava por estes sertões uma comissão

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de doutores, observando o céu com óculos de alcance, muito complicados,
tomando medida das cidades e povoações e apanhando amostras de pedras, de
barro, ervas e matos, que servem para mezinhas, borboletas, besouros e outros
bichos.
Os maiorais dessa comissão eram homens de saber, Capanema, Gonçalves Dias,
Gabaglia, um tal de Freire Alemão e um doutó médico chamado Lagos e outros.
Andavam encourados como nós vaqueiros; davam muita esmola e tiravam, de
graça, o retrato da gente, com uma geringonça, que parecia arte do demônio.
Apontavam para a gente um óculo de uma caixinha parecida gaita de foles e
a cara da gente, o corpo e a vestimenta saíam pintados, escarrados e cuspidos,
num vidro esbranquiçado como coalhada. Uma tarde, chegaram, ao pôr-do-
sol, à fazenda do velho. Iam no rumo da gruta do Ubajara. Aboletaram-se no
copiar, derrubando o comboio, que era um estandarte de malas, instrumentos,
espingardas, na casa dos passageiros. Depois de jantarem um bom traçalho de
carne de vaca gorda que parecia um leitão, assada no espeto, algumas linguiças
e um chibarro aferventado com um pirão escaldado, armaram as tendas nos
esteios. Veio a noite, clara como dia, sem uma nuvem no céu, liso como

espelho. Convidava mesmo a gente a dormir na fresca do alpendre. Ali pelas


sete horas, disse a eles o velho: “Achava melhor vossas senhorias passarem cá
para dentro, porque vem aí um pé d'água de alagar”. Ora, os doutores, que
sabiam tudo e adivinhavam pelas estrelas as mudanças de tempo, zombaram
do aviso; saítam para o terreiro e zombaram e olharam para o céu, sempre
limpo e claro, para verem o que diziam as estrelas. O mais sabido deles, o
doutô Capanema, disse que o velho estava sonhando com chuva, mania de
sertanejos, que não pensam noutra coisa. Teimaram em ficar no alpendre,
embora o velho continuasse a assegurar que se arrependeriam. Quando estavam
ferrados no sono, ali pelas onze horas, acordaram debaixo d'água e correram
com rede nas costas, em procura de abrigo dentro da casa, todos admirados uns
dos outros, como haviam mangado do velho. De manhã, antes de deixarem
o rancho, foram agradecer a hospedagem, e um deles perguntou ao velho:
“Como é que vossa senhoria percebeu sinais de chuva, que escaparam a nós
outros científicos, envergonhados do quinau de mestre que nos deu?”. O velho
sorriu, e respondeu: “É muito simples. Tenho ali, no cercado, um burro velho

1
que, quando se está formando chuva, rincha de certo modo: é aquela certeza.
A chuva vem sem demora. Foi por isso que avisei a vossa senhoria”. O tal
de Gonçalves Dias, pequenino, muito ladino e esperto, começou a bulir com
os outros, dizendo a eles: “Estamos numa terra, onde burros sabem mais que
astrônomos” (Olímpio, 1973, p. 238-239).

Em meados do século XX, Gustavo Barroso escreveria uma crônica


tentando explicar a desventura da comissão. Como era de se esperar, ele
recorreu a elogios ao currículo de cada cientista e repetiu o argumento
que já vinha sendo usado no rol das defesas:

Dos seus copiosos relatórios se verifica que ela procedeu a estudos sérios. No
entanto, como talvez se esperasse da mesma, não um material informativo para
base dos estudos relativos às Ciências Naturais e sim a resolução concreta de
problemas seculares, o que absolutamente não podia ser o seu escopo, nenhuma
outra no Brasil foi tão combatida e desmoralizada no parlamento e na imprensa.
Tudo servia de pretexto para metê-la a ridículo e as maiores calúnias choveram-
lhe em cima. Puseram-lhe um apelido que logo pegou devido à sua coleta de
insetos para o Museu: Comissão das Borboletas... [...]
[Um barco à vela], armado em iate, fez o comércio de cabotagem dos pequenos
portos costeiros, até que a Comissão Científica o alugou para trazer do Camocim
a Fortaleza o material geológico, mineralógico, zoológico e etnográfico colhido
pelos chefes das diversas secções no interior da província. Na travessia da foz do
Acaraú para Fortaleza, o “Palpite” foi a pique, perdendo-se toda essa preciosa
coleta. Logo se começou a boquejar que o naufrágio fora proposital, a fim de
que se perdesse a papelada da Comissão das Borboletas e jamais se pudessem
apurar as comidelas dos seus membros. Ora, isso não entra na cabeça de
ninguém. [...] O que de fato se perdeu foi o resultado de pesquisas e colheitas
interessantes, que, como vimos, produziram trabalhos escritos ou publicados
de real valor para o estudo do homem e da natureza nordestina. Mas a atoarda
foi de tal monta que essa lastimável perda não chegou a ser compreendida, de
tal modo os gases deletérios da maldade a envolveram. Sem dúvida, já é tempo

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dum historiador consciencioso fazer ressurgir do olvido a verdadeira atuação da
esquecida Comissão Científica. Com o naufrágio do “Palpite” naufragou de vez
a sua boa fama. E, além disso, não foi mais possível publicar o resultado integral
das explorações feitas (Barroso, 1962, p. 257).

Entre o lamento e a ironia, ou entre o explicável e o indesculpável,


foi se constituindo uma longa tessitura de memórias a respeito desse
“noviciado dos exploradores”. Mas um dos principais resultados da
exploração acabou ficando guardado e, por isso, não entrará na berlinda
que seria geradora de motivos e motes para o que hoje pode ser chamada
de história da ciência no Brasil. Trata-se do longo manuscrito de Freire
Alemão, aqui intitulado Diário de viagem. Em forma de livro, se tivesse
vindo a público, teria sido usado como peça de defesa do trabalho
realizado? Talvez. Mas, ainda no campo hipotético, não é descabido
imaginar que isso acirraria ainda mais as tensões. Enfim, especulações,
no limite do anacronismo, já que as atualizações costumam violar a
própria historicidade.
O certo é que, hoje, o documento pode ser usado de uma maneira
completamente diferenciada, na medida em que os instrumentos de
interpretação são outros e buscam outras perguntas. Nosso esforço
para editar o manuscrito vincula-se ao intuito de fazê-lo circular e,
por conseguinte, contribuir com a abertura dessas novas possibilidades
de tratamento interpretativo. Isso por um lado. Por outro, sentimo-
nos tentados a reconhecer que não estamos fazendo nada além do
que Capistrano Abreu já havia proposto há mais de um século, em
suas considerações sobre a imperiosa necessidade de publicação dos
documentos, admitindo que, sem fontes, não haveria escrita da história.”

2. Juntamente com outros pesquisadores, nosso trabalho teve início em 2003, quando o Museu do Ceará,
subordinado à Secretaria da Cultura do Estado, abrigou o projeto “Comissão Científica de Exploração”. Foram
publicados quatro livros contendo documentos históricos. Os volumes 3 e 4 davam início à publicação do Diário
de viagem de Francisco Freire Alemão. Como o projeto foi interrompido em 2007, metade do manuscrito não
foi editada. O presente livro, que contém o diário completo, representa, portanto, o fechamento deste trabalho.

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Quando em 1856 se criou, por iniciativa do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB) e com beneplácito do imperador Pedro
II, uma expedição científica composta exclusivamente por naturalistas
e pesquisadores brasileiros, tencionava-se assinalar uma preocupação
crescentemente transformada em necessidade estratégica: conhecer em
detalhe a geografia, os recursos naturais e as populações espargidas nas fímbrias
do território brasileiro. Nesse sentido, procurava-se, também, instituir um
discurso de saber, de caráter nacional e devidamente autorizado (posto que
assentado nos princípios da observação direta e do rigor metódico) para
inserir o país no prestigioso âmbito da comunidade científica internacional.
Se até então o Brasil figurava como fornecedor de numerosas
espécies dos reinos vegetal, animal e mineral que iam guarnecer coleções
e instituições estrangeiras, doravante se pretendia assegurar-lhe nova
posição: a de produtor do conhecimento, para tanto mobilizando
algumas das personalidades mais conhecidas e respeitadas no universo
intelectual da época. E tão notório quanto o interesse do Estado
brasileiro em formação por melhor registrar as potencialidades e riquezas
de seus vastos domínios, era a tentativa de, ao favorecer tal empreitada,
sancionar a competência de suas elites cultivadas e lastrear a constituição
de um saber científico nacional.
Na consulta feita ao IHGB quanto aos intelectuais que deveriam
ser designados para a chefia das cinco seções em que foi estruturada a
sobredita missão científica, o médico e naturalista fluminense Francisco
Freire Alemão (1797-1874) foi incumbido dos trabalhos botânicos; a
ele foi também confiada a presidência da comissão, conforme nomeação
imperial de março de 1857. Filiado ao IHGB desde 1839 (ano seguinte


à sua fundação), ele se notabilizaria por extensa produção escrita, em
especial aquela dedicada ao exame, descrição e classificação de novos
gêneros e espécies da flora brasileira.
Escolhido como ponto inicial para os trabalhos da Comissão
Científica de Exploração, o Ceará recebeu, desde fevereiro de 1859,
alguns dos seus principais membros, que por aqui permaneceriam, entre
idas e vindas, durante quase dois anos e meio. Para chefiar as demais
partes da comitiva imperial, foram também indicadas figuras de destaque
nos quadros do pensamento científico brasileiro.
A Seção de Mineralogia e Geologia ficou aos cuidados do
engenheiro Guilherme Schiich de Capanema, notabilizado pela extensão
no conhecimento das ciências físico-naturais. Manuel Ferreira Lagos, que
ocupava cargos no Museu Nacional e na Secretaria de Estado dos Negócios
Estrangeiros, assumiu a condução dos trabalhos da Seção de Zoologia.
O engenheiro militar Giacomo Raja Gabaglia foi incumbido da Seção
Astronômica e Geográfica. Por sua vez, a Seção Etnográfica tinha à frente
o escritor e poeta Gonçalves Dias, já à época bastante respeitado por seus
trabalhos no campo da literatura e da língua portuguesa, sendo professor
de História e Latim no Colégio Pedro II. Finalmente, o registro pictórico
da expedição esteve a cargo do pintor José dos Reis Carvalho, que era
professor de Desenho na Escola de Marinha (Braga, 1962, p. 23-34).
Entre vasta documentação acerca dessa estada na província, Freire
Alemão redigiu um diário, iniciado em 30 de março daquele ano e concluído
em 24 de julho de 1861, quando do retorno definitivo ao Rio de Janeiro.
Com efeito, na passagem da Comissão Científica pelos mais
diversos rincões do território cearense, seu presidente e chefe da seção
botânica não se furtaria a registrar por escrito uma série de impressões,
observações, comentários e narrativas concernentes ao clima, relevo,
hábitos alimentares, topônimos, condições econômicas, traçado urbano,

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aspectos da arquitetura vernácula, episódios remotos e recentes que se
deram nas respectivas localidades visitadas, ou em suas cercanias. Seu
empenho em anotar, descrever, cotejar, ponderar, assumiu modalidades
heterogêneas, uma das quais sob a forma de diário de viagem.
Minudente, suas páginas dão conta das inumeráveis movimentações
havidas no transcurso das cidades e ermos, vilas e povoados, serras e vales.
Atento, estende-se em considerações que abordam tanto a variedade
das espécies vegetais quanto a índole das gentes do sertão. Prosaico,
dedica-se a enumerar e discorrer sobre o ambiente dos saraus, a sageza
dos pobres, a graça e desenvoltura das moças, a presença cotidiana dos
escravos, conversas crepusculares embaladas pela fresca nas calçadas,
o desembaraço das crianças, a sonora propriedade da fala popular, a
prestimosidade oblíqua e interessada de certos anfitriões.
A sucessão das semanas e dos meses vem acompanhada de
chegadas e partidas, descortinando sítios e paragens outrora ignorados
dos intelectuais da Corte. Para ir ao encontro de um Brasil até então
impermeável ao saber oficial, foi imperioso aderir à experiência do
deslocamento. Na escrita de Freire Alemão, figuram imagens que por
vezes induzem a formação de contrastes: a precariedade das estradas, a
natureza agreste, a desolação dos povoados, a indigência e indolência
das populações, o sol abrasador do meio-dia, a brutalidade dos crimes
de sangue; mas também passagens pontilhadas de vazantes propícias ao
cultivo, matas copadas e guarnecidas de madeiras valiosas, o frescor do
aracati soprando à noitinha, o gracejo com as moças de família, o alento
dos cânticos religiosos e a alegria dos folguedos populares.
Entre outras forças da natureza, emerge a presença soberana do
rio Jaguaribe, “que se ostentava a nossa vista, com grande largura” (f.
73). O extenso périplo parecia encontrar lenitivo na água. Há, inclusive,
informações sobre equipamentos e objetos no trato com o precioso

16
líquido: cacimbas, poços, tanques, cuias, potes, barris, cabaças.
Muitos sertanejos presumiam que se tratava de europeus
excursionando pelo Brasil. Parecia difícil esclarecer qual o sentido de
tamanhas despesas e esforços voltados à recolha de plantas, pedras e
bichos que, presentes na vida cotidiana daquelas comunidades, só a
custo despertariam excepcional interesse.
Em visita a Aquiraz, Freire Alemão adentrou o inacabado hospício
dos jesuítas e, examinando a igreja, reparou que seu chão se encontrava
bastante revirado, indicando a busca por preciosidades supostamente
enterradas pelos sacerdotes quando de sua expulsão do Brasil, em 1759.
Percorrendo o vale do Jaguaribe, ele observou: “todos julgam ter em seus
domínios minas e tesouros escondidos” (f. 79). Esse afã de localizar jazidas
de minerais valiosos não se resumia ao campo do anedotário popular
e das lendas indígenas. Nas Instruções gerais redigidas para orientar os
diversos trabalhos da Comissão Científica, o item VI discriminava: “É
muito recomendada na província do Ceará a exploração minuciosa de
suas principais serras, e sobretudo das extensas serranias da Ibiapaba e do
Araripe, onde a tradição coloca ricas minas de metais, e são fecundíssimas
nos reinos vegetal e animal” (Trabalhos, 1962, p. 211).
Boa parte da desconfiança frente às incursões da missão exploratória
foi mobilizada, nos interiores mais isolados, pelo temor de que esta viria
promover saque das riquezas: “uma mulher com duas filhas e uma nora
se mostraram medrosas dos nossos trabalhos: Andamos, diziam elas,
medindo o Brasil (Ceará) e procurando as suas minas para o entregar
aos ingleses, que vêm escravizar a todo o povo do Ceará” (f. 330). Ideias
extravagantes, diria o naturalista em outro trecho do diário, mas que
perpassavam as mentes de quantos traziam as marcas de desmandos
perpetrados por representantes do poder central.
Esses traços de antirregalismo foram, em diversas províncias

17
do Norte, exacerbados pelas lutas contra a monarquia portuguesa e a
centralização administrativa. Nas disputas travadas entre partidários
da ordem instituída e sequazes da República germinariam filigranas de
um patriotismo cearense, matizado pela rivalidade com outras províncias
e certo desapreço à sede do poder político. Freire Alemão captou essa
atitude nativista que dava ao Ceará virtudes sem conta, em contraste com
maranhenses, pernambucanos e piauienses. A equivalência, presente na
fala corriqueira, entre o local e o nacional seria testemunho relevante
dessa tendência:

É notável como o povo do Ceará entende a sua nacionalidade: para eles o Brasil
é o Ceará, os mais provincianos são estrangeiros. Ontem o irmão do Franklin,
conversando com Manoel, disse: “Vieram os senhores a este nosso Brasil”. [...]
A gente do Ceará que tem uma certa cultura mostram-se invejosos e prevenidos
contra o Rio de Janeiro; todas as desgraças de sua província são causadas ou
ao menos não remediadas pelo governo, que só trata do Rio de Janeiro. [...]
Estar a declamar contra o provinciano é muito geral aqui no Ceará. O sonho
dourado desta gente é a sua independência, é o Ceará formando um Estado.
Eles fazem uma ideia tão exagerada da sua província, que no seu entender é em
tudo superior a todas as outras; e o seu estribilho é sempre “Deem-nos chuvas,
dois meses só, todos os anos, que o Ceará não precisa de nada e pode fartar a
todo o Império” (f. 34-35).

A vinda da Comissão Científica decretava a definitiva integração


da província do Ceará ao projeto de constituição da nação brasileira.
Afinal, o Ceará, entre outras províncias do Norte, fazia parte do Império
desconhecido e, por isso mesmo, arriscamos dizer, mais temido. A
partir de então, o acervo do Museu Nacional abrigaria em suas estufas,
estantes, livros e caixotes, os elementos naturais e culturais daquela

18
distante província. Ocuparíamos os mais diferentes verbetes daquela
enciclopédica instituição. Caberíamos em todas as letras do alfabeto,
afinal a província do Ceará no ano de 1859 já poderia ocupar a letra S
em verbetes como Seca e Subversão.
Desde o final do Primeiro Reinado e sobretudo no Período
Regencial, as províncias do Norte eram notícia na sede imperial. A
Cabanagem no Pará (1835), a Sabinada na Bahia (1837), a Balaiada
no Maranhão (1838) davam sinais de um Norte problemático aos
objetivos do poder político imperial. E o Ceará, alguns anos antes,
envolvera-se em um dos principais movimentos de enfrentamento ao
poder central. Algumas vilas cearenses declararam o fim da dinastia
bragantina e proclamaram desde já um governo republicano. “Entre
as apreensões e receios dos brasileiros, suscitados ante a ameaça
centralizadora de D. Pedro, ressurgiu, cresceu e avigorou-se, em franca
oposição ao governo imperial, esse movimento de forte cunho nativista
que refletia o temor e ódio, próprios dessa época, dos nacionais contra
os portugueses” (Oliveira, 2004, p. 16). O ano de 1824 anunciava
as duas principais matérias que acompanhariam a presença do Ceará
junto ao poder central: a força política daquele território ainda
desconhecido aos olhos do Império e uma terrível seca que assolaria
estas terras no ano de 1825.
O primeiro tema era assunto de grande repercussão em todo o
território brasileiro. Era assídua pauta na sede do poder administrativo.
Em 26 de agosto de 1824 Tristão Gonçalves de Alencar Araripe
proclamou a República no Ceará. O governo imperial anunciou, em
decreto de 5 de outubro, a urgente entrada das Comissões Militares
no território cearense. Vale, portanto, lembrar que, antes da chegada
de Comissões Científicas, a província já conhecia o termo com outros
significados, de maneira que o ano de 1859 não inaugura a presença de

19
comissões imperiais nestas bandas.
Quanto ao segundo tema, ganhava uma repercussão cada vez
maior. As secas no Ceará começavam lentamente a ganhar fôlego nas
importantes rodas da capital do Império. A província cearense era
assunto considerado e a seca ganharia relevo como problema nacional.
Em seu estudo sobre o clima e as secas do Ceará, Tomás Pompeu de
Sousa Brasil ressalta com ares de novidade que, naquela estiagem de
1825, “a mortandade de povo nos centros e nos povoados, mesmo na
capital, foi horrível. Todavia nos maiores povoados as vítimas de fome
foram raras, porque a alimentação veio de fora da província” (Brasil,
1877, p. 24).
É o mesmo Tomás Pompeu quem considera que a seca de 1825 não
foi absoluta. Pondera que em algumas ribeiras brotou pasto suficiente
para alimentar parte do gado. Não obstante, “dessa vez o governo foi
solicitado” [grifo meu]. Contudo, acrescenta o autor em outra página
de seu documento, “o governo geral só em fins de 1826, ou já em 1827,
quando o mal passava, mandou alguma farinha para o Ceará, que não
aproveitou” (Brasil, 1877, p. 22).
Vê-se que a seca, apesar de ganhar maior destaque nacional, ainda
não mobilizava grandes esforços do governo central, não se constituía
como problema de um poder plenamente convencido em instituir uma
política de consolidação da nação. O próprio documento de Tomás
Pompeu, citado anteriormente, foi escrito e ganhou publicação na
Tipografia Nacional no mesmo ano de 1877, quando, ao que tudo indica,
as tentativas de consolidação de um Estado-nação brasileiro passam a
incorporar o Ceará, principalmente a partir de suas tragédias climáticas,
e nesse momento todos faziam revisões dos seus escritos sobre as secas no
Ceará.
O tema da seca passa a ser o principal elo entre a província do

20
Ceará e o governo central. Com a supremacia dos estudos científicos de
caráter pragmático, o Ceará passa a ser entendido como um problema
a ser resolvido pelo saber da mineralogia, geologia, botânica, zoologia
e astronomia.? Afinal, os estudos políticos e filosóficos apresentavam
maiores perigos à ordem estabelecida.
O progresso que impulsionava a ideia de uma nação forte e pronta
para a indústria encontrava no Ceará o problema da instabilidade
climática. Porém, como propõe Raja Gabaglia, presidente da sessão de
astronomia da Comissão Científica, todos esses problemas físicos da
província do Ceará poderiam ser diminuídos e quase eliminados “talvez
que em menos de quinze anos [...] e tornar pouco prováveis as repetições
dos desastres passados” (Gabaglia, 1877, p. 19). Não obstante o fato
de a comissão ter estado aqui entre os anos de 1859 e 1861, o relatório
de Raja Gabaglia sobre a seca no Ceará só foi publicado em 1877, ano
da famosa intempérie do último quarto do século XIX, quando a seca
passava a ser um importante tema para a formação de uma consciência
nacional e o problema de uma província se tornava, assim, uma questão
de todos os brasileiros.
Esta seca atrai a compaixão dos filhos deste solo. Para os famintos
do Ceará chegavam, todos os dias, donativos, socorros públicos e
comida provenientes das mais longínquas províncias. Como ressalta o
Barão de Studart (1909, p. 46), “porque nas crises como essa [1877-79]
[...] ficaram e ficarão gravados na alma cearense os nomes de tantos
beneméritos, de tantos filhos de outras Províncias, que nos deram a

3. Como sugere Frederico de Castro Neves, “atingir o desenvolvimento regional, e o progresso social
que aparecia como sua decorrência, significava controlar as intempéries climáticas e, principalmente, a
explicitação pública das mazelas sociais” (Neves, 1994, p. 31).
4 Conforme Durval Muniz, a seca de 1877-79 foi “a primeira a ter grande repercussão nacional pela
imprensa e a atingir setores médios dos proprietários de terra, trouxe um volume considerável de recursos
para as vítimas do flagelo e fez que as bancadas nortistas no Parlamento descobrissem a poderosa arma que
tinham nas mãos, para reclamar tratamento igual ao dado ao Sul. A seca torna-se a partir daí o problema
de todas as províncias e, depois, dos estados do Norte” (Albuquerque Jr., 1999, p. 70).

21
esmola de seus favores e sua compaixão”.
A seca do Ceará fortalecia, naquele momento político, o
sentimento de pátria em nome da caridade, Todos os brasileiros eram
convocados a ajudar seus irmãos do Norte. Uma parte do país estava
doente, mas era todo o corpo da pátria que deveria reclamar e combater
a enfermidade. A ideia de uma compaixão nacional ganha a simpatia do
seu principal monarca que, numa frase, cunha a preocupação do governo
imperial com qualquer pedaço do Brasil, mesmo o mais desconhecido e
menos lucrativo. Circulou por todo o território brasileiro a compaixão
do imperador durante aquela tragédia, pois consta que haveria dito:
“vendam-se as jóias da coroa mas não morra de fome um cearense”
(apud Studart, 1909, p. 46).
A seca de 1877 circulava nas páginas dos periódicos do Rio
de Janeiro e as más notícias já atravessavam o Atlântico. O Barão de
Studart, que também compôs uma memória sobre esses anos, observa
que a “notícia do nosso miserando estado ecoou e impressionou o
mundo inteiro. O New York Herald enviou um representante a estudar
de visu o teatro de tantos horrores, e o Governo Inglês pediu-me um
Relatório sobre a peste negra que devorava o Ceará” (Studart, 1909, p.
43). A “desconhecida” província do Norte era, naqueles anos, um dos
retratos do Brasil para o mundo.
O tom de desgraça e terror acaba mexendo com os brios de José
de Alencar, que aproveita para espalhar fagulhas de sua oposição ao
imperador D. Pedro II. José de Alencar revolta-se com os alardes em
torno da seca e profere na tribuna as seguintes palavras: “leio hoje em
uma das folhas da corte sobre uma seca em minha província que faz recear
uma calamidade igual à de 1825 ou 1845. Há incontestavelmente muita
exageração” (Teófilo, 1922, p. 86). Completava que ainda não era tempo
para tamanho alarde, pois no Ceará o inverno só iniciava em maio ou

22
junho. A oposição de José de Alencar não fez grandes aliados. O governo
geral enviou ao Ceará comissões de médicos e sanitaristas, enquanto as
más notícias continuavam a circular em cores cada vez mais vibrantes.
De algum modo, muita gente se interessava em participar
diretamente do sentimento de unidade nacional em face da miséria
cearense. Um dos mais significativos movimentos políticos daquele
momento era promovido pelos abolicionistas de todo o país. À
campanha abolicionista transformou-se no primeiro movimento de
caráter reconhecidamente nacional e um de seus principais porta-vozes
também esteve nestas terras durante a grande seca. José do Patrocínio
chegou a Fortaleza em 25 de maio de 1878. O ilustre abolicionista viera
ao Ceará para “colher apontamentos sobre os diversos fenômenos da seca
que assola esta província” (Câmara, 1970, p. 112).
Os mais variados discursos se encontravam no intuito de tornar
a seca de 1877 uma bandeira nacional. O próprio José de Alencar, em
atitude de reconsideração ao que havia dito, doou à Câmara de Fortaleza
450 mil-réis para as vítimas da seca no Ceará e seu último discurso no
Parlamento teve como tema a seca (Villa, 2000, p. 43).
Quanto às implicações climáticas, alguns estudiosos tinham dúvida
sobre a maior seca do século XIX. Nem todos estavam convencidos de
que a calamidade de 1877 teria sido maior do que a de 1825 ou 1845.
O que nos parece evidente é o tratamento que a conjuntura política do
final do século XIX deu à crise climatérica no território cearense.
Na órbita dessa responsabilidade compartilhada entre brasileiros,
nos anos de 1877-79 alguns membros da Comissão Científica de 1859 se
sentiram impelidos a reordenar algumas de suas principais observações sobre
a seca e as possibilidades de “prosperidade” do território cearense. Naquele
período, todos os que podiam colaborar com a nação deveriam fazê-lo.

23
A proposta de uma Comissão Científica de Exploração formada
por brasileiros reafirmou o preparo e o lugar da ilustração nacional. Os
jovens que tinham deixado o Brasil para estudar na Europa, sobretudo
em Lisboa, já davam sinais de maturidade e podiam assumir a missão de
desvendar os mistérios da natureza pátria. Desmentir as histórias tantas
vezes elaboradas por viajantes descomprometidos com a ciência e entrar
“sem auxílio estranho, no exame e na investigação deste solo virgem, onde
tudo é maravilhoso” (apud Braga, 1962, p. 17).
Com esse sentimento, em sessão do dia 30 de maio de 1856,
Manuel Ferreira Lagos — mais tarde chefe da seção astronômica e
geográfica — tentava convencer o Império a patrocinar tal empreitada.
Dizia, portanto, que o governo imperial deveria “nomear uma comissão
de engenheiros e de naturalistas nacionais para explorar algumas das
províncias menos conhecidas do Brasil [...]” (apud Braga, 1962, p. 17).
No critério do desconhecido, o Ceará era convocado para abrir
os trabalhos, afinal, entre as histórias nebulosas que chegavam à corte
sobre a província, estava aquela da existência de ouro ou outros minerais
importantes em suas fronteiras.
O projeto de nacionalização da ciência, bem como de um
controle maior sobre os diferentes cantos do país, coloca em marcha
a Comissão Científica de Exploração rumo ao Ceará. Aparelhada
com os mais sofisticados equipamentos técnicos, as várias seções
deveriam fazer estudos visando à prosperidade e progresso do país,
além de ampliar a recolha de produtos e vestígios da mais variada
procedência com o fim de guarnecer as coleções destinadas ao Museu
Nacional.
Dentre as muitas instruções definidas para cada seção, a seca

24
aparecia como elemento coadjuvante e somente em seu artigo IX é que
a seção geológica e mineralógica cita algum empenho dos responsáveis
para resolver os problemas da seca, sugerindo medidas de combate e
prevenção às estiagens. Bem anterior, ou melhor, em seus artigos II e III,
a referida seção define orientações que se referem à procura de fontes de
minério e metal, o que era certamente mais importante.
No lugar do ouro lendário, os cientistas encontraram um território
abundante e miserável que, não obstante, em 1824 tinha proclamado, por
força de suas elites políticas, a República no Brasil. Por tudo isso, não havia
dúvida para o Império: a província do Ceará deveria ser mais bem conhecida.
O burburinho das agitadas províncias do Norte pôs na estrada
cientistas e administradores da corte imperial. No mesmo ano da
chegada da Comissão Científica ao Ceará, o imperador D. Pedro II
partia em viagem para algumas províncias setentrionais, atendendo à
orientação de seus conselheiros sobre a urgente presença do soberano
nestas paragens inusitadas (Pedro II, 2003). Afinal, um monarca deveria
conhecer todo o seu reino.
O potencial industrial, bem como os tipos e a natureza, deveriam
ser traduzidos e inseridos na lógica de prosperidade de todo o Império.
Contudo, nada de muito grandioso foi sugerido ou realizado nestas
terras. Não havia um Estado-nação forte para tal investimento. O
próprio Capanema lembra, em texto de 1878, que algumas orientações
dadas para conduzir os trabalhos da comissão em 1859 sofriam de um
patriotismo precário e, portanto, impediram muitas ações importantes,
como, por exemplo, a possibilidade de uma seção poder coletar materiais
de outra. Capanema infere que esta medida “tornava a inteligência
escrava de um decreto, e desprezava-se a sua liberdade, e os seus esforços”
(Capanema, 1878, p. 5).
Às considerações de Capanema neste documento não são

25
anotações de um estudioso que, a mando do Império, realizou trabalhos
científicos nesta província. As propostas de Capanema não se resumem
a uma ou outra província, as soluções devem atravessar todo o território
brasileiro. Desse modo, afirma o conceituado geólogo: “não desespero
de poder criar algumas estações meteorológicas desde o Rio Grande
do Sul até a Fortaleza sobre uma extensão superior a mil léguas. Talvez
que mais tarde se destinem a elas alguns recursos” (Capanema, 1878, p.
9). Critica o pouco aproveitamento das sugestões dadas pela comissão
em tempo de prevenir aquela calamidade, pois, como salienta, “as
melhores propostas que então se fizeram [1859-62] tendiam a obter
uma compensação desses sacrifícios, deviam ter sido aceitas desde logo”
(Capanema, 1878, p. 1). E ainda acrescenta que já não dispunham de
dados sobre a climatologia do Ceará, pois “nas largas discussões havidas
não vieram à luz as preciosas séries de observações meteorológicas do
falecido Dr. Gabaglia. São elas propriedades do Estado, mas não sei que
destino tiveram, e no entanto deviam ter sido publicadas” (Capanema,
1878, p. 8).
Capanema, ao mesmo tempo em que justifica a rasa circulação
do material produzido pela comissão, aproveita para fazer críticas ao
poder do imperador que, ao fim e ao cabo, não demonstrou grande
interesse em prevenir os males da nação. Em fins da década de 1870
interessava ao governo central a consolidação de um projeto que
garantisse o progresso industrial e a prosperidade econômica. E a seca
do Ceará, ao contrário de ser um problema para a implementação do
desenvolvimento da província, transformou-se em um dos principais
distribuidores da mão de obra livre que edificaria boa parte do Brasil
moderno. Afinal, as políticas migratórias espalhavam os cearenses de
norte a sul do país.
Nesses anos em que a comissão passou por aqui o Ceará ainda não

26
apresentava traços firmes de progresso urbano. Não havia consideráveis
equipamentos técnicos produzindo ou sendo produzidos. Fortaleza
começa a expandir ares de desenvolvimento justamente na década de
1870. Os membros da comissão que escreveram sobre a seca a partir de
1877 pouco sabiam sobre (e não presenciaram) os benefícios advindos
da calamidade. Se Capanema tivesse maiores informações sobre os usos
da seca para o melhoramento da capital, talvez acrescentasse ao seu texto
considerações sobre alguns motivos para o retardamento da resolução
dos problemas oriundos da seca.
Quando a Comissão Científica de Exploração chegou por aqui em
1859, muitos de nossos intelectuais já tinham escrito documentos sobre a
província. Por isso mesmo, os membros da comissão enfrentaram cobranças,
pois tiveram bastante trabalho para enunciar alguma novidade. As tentativas
de provar a presença necessária dos estudos de cientistas da corte no Ceará
gestaram polêmicas diversas sobre os temas tratados pelas várias seções.
Mal aportaram na capital, já tomaram conhecimento sobre os
estudos do Senador Pompeu, que naquele mesmo ano tinha concluído
sua Memória sobre a conservação das matas, e arboricultura como meio
de melhorar o clima da província do Ceará. Tudo indica que o cenário
encontrado pela comissão sugeria desafios entre o “saber local” e
aquele que se apresentava como representante do “saber nacional”.

Entre vasta documentação acerca da estada da Comissão Científica


na província do Ceará, Freire Alemão redigiu um diário, iniciado em 30
de março daquele ano e concluído em 24 de julho de 1861, quando do
retorno definitivo ao Rio de Janeiro.
A coleção de manuscritos do botânico, atualmente pertencente à

27
Biblioteca Nacional, foi adquirida em momentos distintos, e somente
em 1913 se obteve, junto a sua viúva, o material relativo à expedição
imperial. Este seria o primeiro passo com vistas a garantir o caráter
público de tais escritos. Um segundo e importante movimento na mesma
direção viria com a edição do catálogo dos respectivos documentos,
elaborado por Darcy Damasceno e Waldir da Cunha (1961). Conforme
Melquíades Pinto Paiva, os papéis relativos à expedição obedecem
à seguinte classificação: “1 — diários, 2 — notas e informações, 3 —
notas documentais e 4 — desenhos”. E em seguida acrescenta: “Causa
espécie que os estudiosos do Ceará, nos mais diferentes campos do
conhecimento, ainda não tenham dado melhor atenção a este acervo
documental? (Paiva, 2002, p. 88).
Tem-se agora um incremento ponderável na divulgação desse
material, que vem unir-se aos esforços anteriormente encetados: trata-
se da edição integral do mencionado diário, que corresponde aos dois
longos périplos do naturalista pelo interior da província. Tal iniciativa
procura reiterar o sentido público, de acesso ampliado e indistinto, que
cumpre assegurar a este manuscrito — confeccionado a partir de um
projeto oficial do Império brasileiro e durante tantas décadas restrito
a bem poucos consulentes. Sua publicação é, portanto, imbuída do
espírito de destituir, na melhor acepção, a miragem de relíquia que
ainda porventura inspirasse. Recusando seu valor de culto e acolhendo
um valor de exposição (para retomar o contraponto formulado pelo
filósofo Walter Benjamin), aposta-se na possibilidade de que este
documento fertilize diversas e novas reflexões, todas informadas pela
criticidade assentada no debate público das ideias e dos argumentos.

28
É de bom alvitre expor ainda, em breves linhas, o modo pelo
qual se procedeu à edição do documento aqui publicado. Conquanto
todo o trabalho de atualização ortográfica recebesse a melhor atenção
dos revisores, houve um especial cuidado no que tange à pontuação, de
molde a salvaguardar o significado pretendido por seu autor. Guiada pela
observância de uma certa economia formal, a interferência metódica no
texto que Freire Alemão escreveu de próprio punho tratou de elidir (ou
simplesmente não aduzir) sinais cuja presença não fosse indispensável
à clara compreensão dos enunciados. Assim, por exemplo, orações
subordinadas — notadamente aquelas distinguidas por preposições
temporais: quando, logo, no momento em que — vêm desprovidas
de vírgula, salvo quando sua maior extensão recomenda tal emprego.
Uma feliz contingência permitiu que, nesses casos, parte razoável das
orientações aqui seguidas coincidisse com a pontuação praticada pelo
autor, mitigando o risco de alterações em excesso.
Manteve-se sempre que possível a concordância aplicada pelo
autor, mesmo quando parecesse algo estranha, embora sem equívoco. A
exemplo, veja-se na f. 35 uma forma de silepse — “A gente do Ceará que
tem uma certa cultura mostram-se invejosos e prevenidos contra o Rio de
Janeiro” — que, como tal, permite a concordância lógica, portanto, com
a ideia, às expensas da sujeição gramatical em acepção estrita.
De qualquer maneira, as mudanças demandadas para fins de
publicação foram substanciais, não obstante pautadas em critérios
que buscaram evitar variações arbitrárias. É muito frequente, no
diário manuscrito, o emprego do sinal =, que exerce nitidamente
uma função de pausa, embora de intensidade variável, segundo o
contexto, o referente e as descrições efetuadas por seu autor. Manter
tal sinal nesta edição, que foi submetida a um trabalho de revisão
e atualização ortográfica, implicaria o risco de ambivalências ou

29
incompreensões perfeitamente evitáveis, daí porque se optou pela
substituição do = por notações de pontuação familiares à língua
escrita, como sejam o ponto final, a vírgula, o ponto-e-vírgula e,
em casos menos correntes, os dois pontos. À escolha do sucedâneo
obedeceu à especificidade de cada construção sintática, ora a
demandar uma pausa breve (vírgula), ora a sugerir intervalos mais
extensos (ponto final), ou mesmo adotando uma suspensão relativa
ainda plenamente articulada ao enunciado anterior (ponto-e-vírgula).
Quando o supramencionado sinal tencionava a simples enumeração
de elementos subordinados a uma determinada assertiva, concluiu-se
pelo uso de dois pontos. Essa intervenção ponderável — resultando
na supressão de um traço da escrita do diário cujo principal objetivo
se prendia à necessidade de ganhar tempo no registro de episódios,
observações e relatos colhidos por Freire Alemão, amiúde em tom
de fragmentos — foi aqui assumida como tentativa de imprimir
ao texto uma fluidez de leitura e facilidade de entendimento que
eventualmente se encontram ausentes ou parcimoniosas na versão
manuscrita. Houve ainda modificação da pontuação empregada
no documento original quando se considerou apropriado adequá-
la a um ritmo mais homogêneo, procurando todavia resguardar
as peculiaridades estilísticas do autor. Espera-se que as alterações
implementadas tenham atingido o fim que se propuseram.
As referências basilares para a averiguação e correção
ortográfica foram os dicionários de língua portuguesa Aurélio e
Houaiss. O emprego de iniciais maiúsculas se restringiu a nomes
próprios, expressões de tratamento e aos começos de período. Houve
ainda troca do sublinhado pelo itálico — preservando o cuidado
de assegurar o destaque tencionado pelo autor —, empregado para
termos estrangeiros, nomenclatura científica (nomeadamente a

30
taxonômica), palavras correntes no linguajar popular e quaisquer
outras marcas enfáticas mantidas por Freire Alemão em sua escrita.
Tratou-se de inserir aspas nos trechos cuja função consistia em
reproduzir — sem o emprego do discurso indireto — a fala de outrem, para
assim melhor caracterizar, no bojo do diário, remissões de seu autor a
comentários ou narrativas, mais ou menos literais, de procedência alheia.
As horas, que figuravam registradas quer por inteiro quer
abreviadas, foram uniformizadas por extenso (de um a doze), tal como
os dias da semana e os meses. Medidas fracionárias, inclusive as que
reportavam a fragmentos de horas, foram todas, igualmente, postas por
extenso.
Padronizou-se o uso de dois pontos em seguida à indicação da data
(dia do mês e/ou da semana) que delineia fatos, observações e episódios
então coligidos, pois no manuscrito predominava a heterogeneidade de
sinais (ora vírgula, ora ponto final ou mesmo travessão).
Em ocasiões específicas fez-se uso de palavras entre colchetes
que ora pressupunham a inclusão de um termo necessário à regência
normativa (geralmente preposições), ora indicavam a inserção de
conectivos ou verbos de modo a favorecer o encadeamento de orações
dentro de um período longo, ora sugeriam ainda um termo que figurasse
mais adequado do que aquele redigido no próprio documento, restando
ao leitor optar pelo que lhe parecesse correto. Todas as vezes em que
não foi possível identificar vocábulos ou trechos escritos por Freire
Alemão, fosse em razão de sua caligrafia ou por ter a tinta manchado
a folha de papel ou mesmo desvanecido pela ação do tempo, apôs-se-
lhes as advertências [palavra ilegível] e [palavra borrada). Sempre que
para alguma palavra distintamente identificada no manuscrito não foi
encontrada sua forma dicionarizada atual, optou-se pela notação [sic].
No propósito de melhor orientar a leitura foi adotada a divisão

31
do diário em itens discriminados a partir da sua catalogação. Além do
título, vêm indicados o período a que se refere cada segmento e sua
respectiva classificação, conforme disposta no Setor de Manuscritos da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Finalmente cumpre salientar que, não obstante seja o manuscrito
obra de uma só pessoa, a edição ora trazida a lume constitui, pelo
contrário, um trabalho de natureza irredutivelmente coletiva. Os
profissionais engajados nas diferentes etapas de sua consecução —
pesquisa, transcrição dos originais, revisão da transcrição, revisão do
texto e atualização ortográfica, diagramação — deixam aqui o resultado
de uma empreitada feita em conjunto.

Antonio Luiz Macêdo e Silva Filho é


Francisco Régis Lopes Ramos 6

Kênia Sousa Rios 7

5 Doutor em História pela PUC-SP. Professor do Departamento de História da UFC.


6 Doutor em História pela PUC-SP Professor do Departamento de História da UFC e diretor do NUDOC.
7 Doutora em História pela PUC-SP. Professora do Departamento de História da UFC.

32
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33
DIÁRIO
Viagem de Fortaleza a Aracati
16 a 24 de agosto de 1859
[[-28,8,2]

[E 1)
Viagem da Fortaleza a Aracati

Agosto

16: Terça-feira, 16 de agosto, saímos da casa onde tem residido a


comissão, pelas quase cinco horas da tarde, eu, o Lagos e o Carvalho, com
os nossos ordenanças. Obsequiaram-nos acompanhando até o rio Cocó
o Exmo. presidente da província, o Dr. Gabaglia e seus adjuntos: Soares,
Barbado, Borja Castro, Lassance e Assis, que o acompanhou, faltando o Sr.
Santos Souza, por estar em Arronches, o Oliveira, o Bezerra e seu genro.
Chegamos a Messejana às seis horas e meia, indo conosco o Dr.
Assis. Logo que chegamos nos apresentamos ao suplente de subdelegado,
que estava em camisa e ceroula, na frente de sua taberna. Depois fomos a
um sujeito chamado João Crisóstomo, que é da cidade e aí está tomando
ares, com sua família; este nos recebeu mui bem, nos ofereceu a sua casa
e quanto precisássemos, quis que fôssemos tomar chá com ele, mas como
hesitássemos ofereceu-se para o mandar à casa da Câmara onde íamos
pousar. Depois de conversar algum tempo fomos para a Câmara, onde
armamos as redes; tomamos o chá e mais uma frigideira que o Ássis

mandou preparar em casa de outro sujeito que nos tinha ido encontrar
(assim o pensamos) em casa oferecendo-se para tratar dos nossos animais
aquela noite, o que aceitamos; manteve-se sempre zeloso em servir-nos,

37
mas nos pareceu homem interesseiro e ladino. De manhã, estando já
encomendado o almoço a esse sujeito, nos mandou convidar para almoçar
com ele o Sr. João Crisóstomo, o que não aceitamos, visto ter já o almoço
aprontando-se. Veio logo de manhã visitar-nos o subdelegado, o Sr. João
Crisóstomo e um padre que serve ali de vigário.
Or. João Crisóstomo demorou-se e assistiu ao nosso almoço, mandando
à sua casa buscar leite, que nos faltava. Era nossa tenção seguirmos de tarde
para o Aquiraz, mas acontecendo falar-se na viagem ele e o tal ladino nos
disseram que o caminho pelo Aquiraz tinha para o comboio inconvenientes,
tendo de passar o rio Pacoti, que só oferecia uma trilha vadeável, sendo para os
lados fundo; e enfim havia ainda a passagem [f. 2] do rio Catu, inevitável indo
por ali, e que só embarcando se fazia. Isto nos surpreendeu, por nunca nos
falarem nessas dificuldades, e tendo um lote de 30 e tantos cavalos carregados
com malas pesadas, delibamos imediatamente os seguir, e mandou-nos
aprontar os nossos cavalos e, depois de nos despedirmos do subdelegado e
do João Crisóstomo (o vigário morava fora do povoado), partimos eram onze
horas e um quarto (o Dr. Assis tinha saído mais cedo para a cidade). Era o
sol bastante forte e a estrada toda de areia, passamos o rio Cauaçu por duas
pontes, o rio Tipuiú por uma ponte; neste lugar é a terra arenosa e denegrida,
e produz muito boa mandioca e a sua farinha foi afamada em outros tempos
como o atesta uma quadrinha popular da cidade.

Água da Jacarecanga
Tainhas do Cocó
Cunhãs de Parangaba (Arronches)
Farinha do Tipuiú.

E vimos nas vizinhanças do rio roça da mandioca.


E à uma hora chegamos ao vale do Pacoti.
É uma larga vargem, mui plana de barro denegrido, agro-seco e
rachado, pelo meio da qual se espreguiça fazendo gepos [sic] e dividindo
em dois ramos o rio Pacoti — destes ramos só um, que passa perto do morro
do Aquiraz, é que tinha água; no lugar onde passamos teria de largura umas

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cinco ou seis braças e água até dois palmos, e só na ribeira oposta o barro
negro fazia atoleiros, que ofereciam alguma dificuldade ao passar. A nossa
tropa, ou comboio, como aqui dizem, já estava descarregada. Este vale do
rio, coberto de carnaúbas em toda a sua extensão, tem em frente do Aquiraz
talvez meia légua de largo e é limitado pelo lado da vila por um cordão de
oiteiros arenosos, além dos quais e em extensão talvez de mais de légua está
o mar; O rio porém, fazendo voltas encostado a esses oiteiros, as vai romper
longe daí, formando barra a três léguas ao nordeste do Aquiraz. E no tempo
das chuvas fica todo coberto d'água, formando um vasto lagamar.
[f. 3] Há feito um aterrado que o corta em linha reta do Aquiraz à
entrada do vale, e que havia ponte na passagem do rio, mas o rio a levou e
hoje se não passa por esse aterrado, ficando a passagem tomada no tempo das
cheias ou passando-se com muitos riscos, ou em balsas. Aquiraz está, como
já disse, sobre a esplanada dum vasto combro de areias, que se comunica
com os medóes que formam os tabuleiros daí até o mar com duas a três
léguas de largo. Logo que chegamos, fomos para a casa da municipalidade
onde estava já a nossa bagagem e nos informamos das autoridades do lugar:
o subdelegado não estava e fazia as suas vezes o suplente, que fomos logo
cumprimentá-lo achando-o muito à fresca em uma mui pequena casa de
comércio, a loja, antes armarinho; daí fomos ao juiz municipal, o Sr. Alcino
de tal, o qual achamos no seu engenho e assentando um alambique. Tem
a família em um sobradinho do engenho e tem uma sala particular onde
recebe, limpa e ordenada: por aí nos conduziu e nos demoramos pouco.
Este engenho é uma boa fábrica com moendas de ferro e é o segundo que
vimos aqui a que se pode dar o nome de engenho; é este e o da Monguba.
De tarde saímos a visitar a povoação, que é pequena e decadente,
passamos pela Matriz e fomos examinar as ruínas da igreja dos jesuítas,
que eles chamam colégio e que está dentro das cercas do engenho do
Sr. Alcino. À igreja era de boas proporções, com paredes de pedra e cal,
portados de cantaria e adornos em relevo — tem a era de 1753. O claustro
não se chegou a fazer, havendo ao lado direito (e provavelmente ao esquerdo,
que não vi) pedras de espera para essa obra. À casa dos jesuítas, ao lado
da igreja e comunicando com ela, era de esteios de aroeira, de um resto
ainda à sapota; os mais, assim como os outros materiais, foram tirados e
os quatro esteios que atualmente sustentam os dois sinos da Matriz foram

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provavelmente tirados dele. A igreja está sem teto e [de] todo desornada;
as imagens foram depositadas na Matriz. O chão da igreja e do claustro
tem sido revolvido profundamente pelo povo, e talvez pelas autoridades,
cuidando acharem-se ali tesouros [f. 4] escondidos pelos padres, quando
foram extintos. Foi um verdadeiro vandalismo o desmantelamento desse
templo, que se devia conservar. Diz-se que foi no tempo da presidência
do senador Alencar que se começou essa obra de destruição e as más
línguas asseveram que algumas coisas foram para a sua fazenda, o que
não posso acreditar; depois foi outro presidente [de] cujo nome me não
lembro que mandou tirar a telha e madeiras do teto, dando para isso 80
ou 100$ [oitenta ou cem mil-réis], e que tudo se esbanjou. Isto é o que
ali comentaram.
A respeito da expulsão dos jesuítas contou-nos um velho que aí tem
uma venda, e que conta hoje 89 anos, que a ordem chegou na véspera de
Natal e que nessa mesma noite fora o colégio cercado e nele estavam juntos
todos os jesuítas, donde se presume que eles sabiam dos negócios. Os padres
estavam sempre espalhados, havendo dois em Arronches, dois na Matriz,
dois em Soure etc., e nessa noite todos estavam reunidos. O convento
cercado por tropa, os padres disseram missa, ou antes diziam missa, porque
estiveram assim presos por 15 dias, tendo sempre duas sentinelas à vista.
Embarcaram no porto do Iguape, que pouco depois se obstruiu. A sentença
da expulsão dos jesuítas, escrita em latim e em português, está transcrita no
livro da Matriz, onde Lagos a viu.
18: Apresentados na casa da Câmara, aí dormimos; e ao amanhecer
do dia 18 caiu alguma chuva (o céu se carregou e começaram a cair pancadas
de chuva mui fortes; as nossas malas ou bolsas estavam na rua à apanhar
toda a chuva que, continuando até além das dez horas, obrigou[-nos] a ficar
até à tarde).
Às sete horas e meia partiu o comboio, fazendo um rodeio para
evitar a passagem por canoa do rio Catu, designando-se-lhes o Cajueiro do
Ministro para pouso, mas usando o caminho seguiram até Cascavel. Nós
ficamos em Aquiraz, o Reis fez o desenho da Matriz e do colégio, Lagos
tomou muitas notas de tradições do lugar. Os livros do Arquivo (antes
armário) da Municipalidade nos foram franqueados, mas de pouco [f. 5]
nos serviram, por não existirem já aí os mais antigos.

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À casa da Câmara é um pardieiro de telha vá, apenas ladrilhado e o seu
madeiramento é de carnaúbas (uma coisa notável é que daqui para Aracati
o madeiramento dos tetos, digo, os caibros de carnaúba não são pela maior
parte* em bicas, onde se assentam os canos dos telhados, mas os canos são
assentados nos intervalos dos caibros, que são de carnaúbas rachadas, postas
com o miolo para baixo ou mesmo para cima destes telhados; tinha visto
um na cidade, na sala de jantar da casa em que aí mora o Sr. Franklin de
Lima. E uma razão ouvi para isso que me parece plausível, e é que, se uma
telha dos canos se quebra, é logo vista e substituída, quando de outro modo
não se vê e a água caindo na bica de carnaúba a apodrece.
Na véspera às ave-marias tínhamos ido ver o cacimbão, que é um poço
grande de boca quadrada, [palavra ilegível] de pedras e com fundo d'água
de talvez 40 palmos. Foi este poço feito pelo padre Serafim, missionário que
persuadiu o povo a ir buscar pedras para a obra na barra do Pacoti daí a três
léguas; ao lado desse poço está uma grande represa ou açude.
Eram passadas quatro horas da tarde quando partimos de Aquiraz,
querendo-nos obsequiar várias pessoas do lugar, que nos acompanharam
até a passagem do Catu, onde chegamos pelas cinco horas, tendo andado
por tabuleiros onde há alguns engenhos de açúcar. A passagem do Catu é
um grande lagamar tortuoso, que tem também algumas léguas e formado
pela obstrução da barra do rio; o lugar onde passamos em canoa é o mais
estreito e muito fundo: tem de largura 50 a 60 braças, os cavalos passam ao
lado, a paisagem é bela e Carvalho a desenhou. Passados nós voltaram os
quatro cavaleiros que nos acompanharam e nós seguimos para o Cajueiro
do Ministro, onde chegamos talvez às sete horas da noite, tendo perto desse
lugar passado uma caponga onde os cavalos quase nadaram, e isto era já
noite.
Caponga chamam a poços mais ou menos fundos e seguidos uns dos
outros. Não achamos aí a nossa bagagem, que depois soubemos que seguiu
para Cascavel por errarem [f. 6] o caminho. O dono deste sítio é um sujeito
de uns 50 anos de idade, baixo, barrigudo, conversador, de camisa sobre as
ceroulas e casado pela segunda vez com uma mocetona morena e de belos
olhos; é major da Guarda Nacional.
* Na casa em que estamos é de bicas.

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Recebeu-nos com afabilidade, deu-nos ceia de carne seca com farofa,
água de café com grude, isto é, beiju de tapioca e coco — é [na] verdade o
que nós chamamos sola, menos o coco — e umas broinhas de ovos bem
feitos, queijo duro etc. etc.; mandou-nos logo estender redes, mas nada
de água para banho e para os pés, é coisa quase desconhecida pelas roças
no Ceará. Dormimos, e ao amanhecer caiu uma ligeira neblina, ou chuva
fina. A casa do nosso hóspede é pequena, térrea, ladrilhada e telha vá, está
pegada com a casa de farinha, que é um largo telheiro, apenas com paus-
a-pique em alguns lugares, roda de cevar com rodete como é geral aqui,
prensa de parafuso (como a do Azarias) e forno de tijolos. São os fornos de
farinha no Ceará feitos de grandes tijolos quadrados que assentam sobre
três, quatro ou cinco arcos, como os dos fornos de louça, com uma beira
de pouco menos de um palmo, feita de tijolinhos postos obliquamente.
Alguns destes fornos os medi e tinham 14 palmos de boca. O mexedor de
farinha tem um assento, ordinariamente oposto à boca da fornalha, que fica
para fora, e mexe a massa ou farinha com um rodo cujo cabo tem 16 a 18
palmos de largo. A farinha é sempre malfeita, grosseira e cheia de caroços às
vezes do tamanho dum caroço de amêndoa, sendo as peneiras da massa mui
grosseiras, deixam passar crueiras. Tiram muita goma da massa.
Ao lado desta casa de farinha estava o engenho de açúcar. As moendas
são de ferro e puxadas por dois bois. Estava moendo. O corpo do engenho
é todo aberto e coberto de folha de palmeira. A casa das caldeiras, pequena,
é de tijolo e coberta de telha; havia um barigue [sic] de três tachos, o caldo
caía num pequeno cocho, ou gaveta, e daí era cevado para a primeira
tacha em uma cuia de cabaça amargosa [f. 7] grande. As formas de barro
grandes, de três, quatro e cinco arrobas — só faz açúcar mascavo, o ano
passado vendeu 2.060 arrobas. Cada carrada de açúcar que vai para a cidade
leva 120 arb. [arrobas] e lhe custa 50$000 [cinquenta mil-réis). Não tem
escravos, “apenas dois escravinhos”, disse ele, “e trabalho com livres do país,
pagando-lhes 320 por dia alimentando-os, ou 640 a seco”. Os canaviais
são mui perto da fábrica, ficam por detrás em uma baixada por onde corre
um ribeiro d'água perene e donde bebi; eu lá fui, é como o rio das Piabas
no Mundaú, e dum e do outro lado a terra é um barro denegrido, onde ele
planta a cana; mas é necessária esta venda — disse ele que no ano passado
comprou estrumos de animais no valor de 50$000 [cinquenta mil-réis).

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Vi a plantação de cana, é por quadrados e destes vimos pouco pela ribeira;
abaixo da ribeira para a casa e engenho a subida é mui suave e na distância
de 300 passos. O sítio está sobre um terreno raso a perder de vista. Há ao
lado da ribeira alguns pés de buriti, palmeiras que pela primeira vez vi, e
foi isso o que me levou lá, digo, aos canaviais. O homem planta também
mandioca, mas só para o gasto; e somente vende o excedente, e isto nas
areias secas, e nada mais. Deu-nos [para] almoço fritada de carne seca,
farofa, paçoca, isto é, carne socada com farinha, café, digo, água suja de
café, e grude e beijus de massa. O almoço nos mandou pôr dentro na casa
do jantar, mas ninguém da família apareceu. (Nós tínhamos visto várias
senhoras e meninas andarem lá dentro, deitadas na rede na saleta de fora;
elas andavam pela sala de dentro e passavam pelo corredor, olhando sempre
curiosas para fora).
Também ele nunca se sentou à mesa, nem à ceia, nem agora ao
almoço; estava em pé em roda, servindo, mandando e conversando.
Mas, logo que prontos nos fomos despedir dele, se apresentaram as
senhoras, a saber: a mulher e outra, que talvez era sogra, e uma menina, e
nos despedimos delas.
Este lugar é chamado o Cajueiro do Ministro porque neste lugar
havia um rancho antigo e [f. 8] em frente dele um vasto cajueiro. Quando
os ouvidores ou ministros da justiça andavam em correição, o dono do
sítio mandava preparar o rancho e limpar o cajueiro por baixo, donde
ficou o nome de Cajueiro do Ministro; e talvez mesmo que os viandantes e
parece [até] os magistrados preferissem pousar embaixo do cajueiro, antes
que no rancho, e quem sabe se mesmo aí não davam audiência? Isto são
conjecturas, mas o homem só nos disse que o sítio fora de seu avô e que este
tinha aquele cuidado em mandar limpar o Cajueiro do Ministro. Depois
das nossas despedidas e agradecimentos e oferecimentos dele para ficarmos
para jantar, saímos eram mais ou menos nove horas.
Andamos primeiro por tabuleiros e ora por matos, até chegarmos a
Cascavel pelas onze e meia queimados de sol. Achamos a nossa bagagem
pousada na casa da Câmara Municipal, edifício, ou casebre, e tão bom
se não pior que o do Aquiraz. Logo que chegou, nos informamos das
autoridades do lugar. O subdelegado estava firme, fazia suas vezes um
suplente e mesmo a cavalo dirigimo-nos à sua casa para o cumprimentar e

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o achamos à fresca no balcão duma pequena lojinha; voltamos a descansar
e logo fomos visitados pelo juiz municipal e por outras pessoas. Depois do
jantar, às cinco horas fomos à casa do juiz, estivemos à porta conversando,
aí estava também o Lagos e outro sujeito da terra, capitão da Guarda
Nacional; pedindo eu água, o doutor nos convidou para dentro e nos
apresenta uma mesa com goiabada, queijo e água. A casa era da maior
simplicidade: na sala havia uma rede e algumas cadeiras; para dentro era
tudo simples e tosco, salinhas mui pequenas de telha vá; bom quintal,
onde ele manteve os nossos cavalos. Dali demos uma volta pela vila e nos
recolhemos. Ao anoitecer fui [me] lavar [f. 9] para o lado do mar, e a noite
foi quente. Ao amanhecer do dia seguinte estava o céu carregado e ventava
do mar, e pouco depois, quando já se ajuntavam os animais de carga,
entrou a chover por pancadas mui fortes, o que durou até mais de onze
horas, de modo que se resolveu ficar a viagem para de tarde; e as nossas
malas, que estavam na rua, apanharam toda a chuva. Passada a chuva, foi o
Carvalho tirar as vistas da Matriz e da capelinha de N. S. do Ó e eu andei
correndo a vila para tirar dela um plano, como já havia feito no Aquiraz.
De tarde, antes de sairmos, fui também ver o interior da capelinha da
Senhora do Ó, ao lado direito da qual estão quatro catacumbas com
letreiros e em uma delas se lê a data de 1713 e seus letreiros foram copiados
pelo Carvalho. À igreja é pequena e a capelinha é toda pintada à antiga e
pinturas fingindo pedra que não deixam de ter sua elegância. Montamos
a cavalo e assim nos fomos despedir do suplente e saímos da vila para
pousar no Alto das Cajazeiras. O caminho a seguirmos logo tirado a linha,
bordado de matos dos dois lados e arenoso, é bonito; antes das seis horas
chegamos ao rio Choró, por uma suave descida chegamos ao vale do rio
que, pelo lado por onde entramos, apresentava uma campina rara com
moitas de carnaúbas e de cactos de uma forma elegante, de sorte a fazer-
nos parar para contemplar o lindo panorama que se nos oferecia: o rio
corria embaixo murmurando sobre um leito pedregoso, ou formado por
uma greda dura, era largo de algumas braças e de fundo desigual, mas
não excedendo os joelhos dos cavalos. [f. 10] A ribanceira do lado oposto
era abrupta e alta de duas braças talvez; logo a subimos, apresentou-se
diante de nós uma grande planície de terra denegrida e grotada, coberta

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duma floresta de carnaúbas, o sol ia entrando e uma infinidade de vira-
bostas, de anuns pretos e brancos e de bandos de uns pássaros pardos, de
peitos-vermelhos, goelas de fogo voavam de uns para outros e enchiam
os ares com seus cantos. É este vale uma ilha de légua de comprido que
o rio faz dividindo-se em dois ramos: o primeiro, que tínhamos passado,
tem o nome de Passagem do Beija-bode, e o segundo, que íamos passar,
se chama Passagem da Casa-forte; quando a esta chegamos nos meteu
algum medo, tinha ribanceiras altas, água escura e largura de cinco a seis
braças, mandou-nos adiante um dos ordenanças que, mal entrou, voltou
logo porque o cavalo se ia afundando. Grande aflição do Lagos porque
via a impossibilidade de passar o nosso comboio que vinha já perto, mas
o outro meu ordenança atirou-se e passou, com água que não chegou às
abas do selim; mas ainda assim temia ele que as cargas se molhassem e
irritava-se quando eu lhe dizia que passaria sem perigo; e voltou para trás
mandar buscar outra passagem do rio mais alta e fazendo parar o comboio
que vinha chegando. Fizemos pensar que o José do Ó fosse sondar o rio e
de lá nos gritasse que se passasse.
Acalmou-se o Lagos e passamos o rio sem novidade, sendo já quase
noite; a tropa seguiu-nos logo e passou bem.
Alguns passos adiante, um oitavo de légua talvez, está o pouso
chamado Alto das Cajazeiras; para aí nós [f. 11] fomos a uma palhoça,
que tem fora duas grandes cajazeiras, e aí nos indicaram uma casa de
farinha para pouso, com efeito para lá fomos. Acabavam de fazer farinha
e estavam fazendo beijus e grudes (solas) várias mulheres e raparigas, e
ao mesmo tempo espremiam e lavavam massa para tirar a goma; vários
homens havia aí também, trabalhando. A casa é um grande telheiro
aberto, ou sem paredes, e só pelo lado de fora estava fechado de grossos
paus-a-pique, por dentro havia um cercado para onde montamos os
nossos cavalos de sela e lhes demos para comer jerimuns (abóboras); os
animais de carga ficaram no campo peados. Ceamos fatias de presunto
assadas com beijus e solas que nos vinham oferecer as farinheiras; foi de
galhofa até às nove horas ajuntando-se depois mais homens, curiosos e
contadores de histórias. Ficamos em nossas redes e a turba, assim como
alguns dos nossos, foi para a casa vizinha, e ao som duma rabeca e de uma
viola dançou o samba até muito tarde.

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De madrugada levantou-se uma ventania, que se seguiu logo de
chuva que coava pelos telhados, que eram metade de palha e outra de
telha; nós, como estávamos na parte telhada, nem assim ficamos isentos das
goteiras; muita da nossa carga ficou molhada. Ao romper do dia cessou a
chuva e o comboio tratou logo de sair. Nós, a saber, eu, Lagos e Carvalho e
os dois ordinários ficamos para almoçar; o almoço nos veio da casa do dono
da fábrica e constou de café, antes água de café, e de uma [f. 12] dúzia de
ovos, que em vez de quentes estavam cozidos e nos foram apresentados
dentro de um prato de rosto. Comemos os ovos com os beijus que nos
ficaram da véspera, eram quase crueiras, e bebemos em cima a água suja
de café. Já então estava de novo a casa de farinha cheia da mesma gente da
véspera, que continuava a sua labutação. Às nove horas montamos a cavalo
e seguimos para o Pirangi. Era todo o caminho bordado de matas virgens,
ou capoeiras, que se não diferencia deles, e que se parecem com as nossas
capoeiras. Às onze horas mais ou menos chegamos ao vale do Pirangi: é um
vale largo semelhante ao do Pacoti, coberto de carnaúbas e pelo qual passa
o rio desse nome, dividido em três ramos; todos estavam secos, apenas em
alguns lugares havia poções duma água barrenta. Saindo desse vale demos
em uma grande vargem chamada Vargem da Serra, no meio da qual está a
situação onde íamos pousar.
O dono da casa nos apareceu em camisa e ceroula, nos agasalhou
com boas maneiras, mandou ou antes foi armar três redes na casa de farinha
e mandou aprontar almoço; este contava de dois pratos de fritada, de carne
seca assada, de farofa, de beijus, meia dúzia de ovos duros e uma água suja de
café, e morna intragável, mas para não descontentá-lo — ele comeu conosco
igualmente, mas nos havia dito que já tinha almoçado —, como dizia, para
[f. 13] contentá-lo eu, fazendo das tripas coração, emborquei duas xícaras.
Depois disso nos fomos deitar nas redes, e ele sentado num banquinho não
cessou de falar, fazendo-nos questões às vezes impertinentes. Contava ele
que nós (digo, a comissão) vínhamos ao Ceará descobrir minas de metais
preciosos, fartar a província de águas e ensinar a trabalhar: “Porque”, dizia
ele, “nós estamos ainda muito brutos; na sua terra (parecia que se referia
à Europa) há tantos meios de abreviar o trabalho que nós desconhecemos,
vejo coisas vendidas por preço tal que seria impossível fazê-los entre nós”
(isto é, o Ceará); referia-se sem dúvida aos artefatos europeus. “Eu aqui

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tenho tanto trabalho para plantar, limpar e de fazer a mandioca em farinha,
desejava ver algum meio de fazer esse serviço mais depressa”; e era nisto,
como em outras coisas, que ele esperava que a comissão desse ou ensinasse
modos de facilitar os trabalhos, e quando eu lhe expliquei qual era o
objeto da minha seção e da do Lagos, o homem caiu das nuvens e não
podia compreender-me; e enfim disse: “Já vejo que com os senhores não
ganho nada”. Era curioso ver este homem falar, era uma linguagem quase
composta por ele: por exemplo, para dizer “por esta redondeza” dizia “por
este redontório”, para dizer “estamos carregados de trabalho” dizia “estamos
carregados de labório”, e assim por diante. Mas no meio de sua rusticidade
discorria bem e mostrava muito bom senso. Tem creio que 12 filhos, seis
fêmeas e seis machos; os meninos, que foram os que se mostraram (as
meninas e mulheres [f. 14] as víamos na porta da cozinha que dava para a
casa de farinha onde estávamos, e onde alguma moradora (entramos sem
nos falarem, menos uma pecurrucha) e a mulher também apareceu de vez
em quando); os meninos, dos quais o maior terá 16 anos, são mui ágeis e
desembaraçados; quando chegou a nossa bagagem, foram ajudar a descer
as cargas e a carregá-las, mas tem o pai grande desgosto, por serem mui
rudes. Há cinco ou seis meses que têm mestre e nem ainda soletram bem
um nome, e isto todos eles.
Aconselhei-lhe que não os atormentassem com pancadas, como
fazia o mestre, que tivesse paciência, não sendo eles culpados da pouca
inteligência; e que em vez de bolos de palmatória lhes desse antes bolos de
aveias ou de milho em prêmio quando dessem boa lição; isto causou-lhe
certa surpresa e disse rindo — e para o mestre, que estava presente: “Vou
mandar vir uma carga de rapaduras para dar aos meninos”, o que causou
riso geral na companhia — havia entre muitas pessoas em roda. Eram todos
matutos, mas espertos e curiosos, examinando e admirando as espingardas
e pistolas que levava o Lagos. Era de noite e nós não tínhamos jantado,
esperando que o nosso homem nos desse de comer, mas ele (que passa por
sovina), tendo-me perguntado se nós trazíamos comida e eu lhe dissesse
que sim, descansou; mandou-nos pois assaz presunto e fazer farofa, com
que ceamos, e ele nos mandou um bule da água suja de café, temperado
com rapadura. No dia seguinte me pediu desculpa por não nos ter dado
jantar. De manhã cedo nos aprontamos para sair, ele ofereceu-se para ir

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[f. 15] com o Lagos à sua roça [palavra cortada] ver os estragos da lagarta
nos mandiocais e dali levá-lo a ver um serrote que tem muitas e variadas
pedras. E como nos não oferecesse almoço nem café, comemos um pouco
de presunto cru com farinha e queijo e montamos a cavalo às sete horas,
eu com o comboio e o Lagos com ele; designado o sítio da Amarela para
nos reunirmos. Andamos por pedaços de estrada arenosa, reta e bordada de
vistosas matas, que faziam um belo efeito; e a manhã era fresca.
Chegamos aos córregos da Amarela, onde há uma palhoça. Os
córregos estavam secos, são dois leitos de torrentes, com largura de 30 a
40 braças, que se encontram neste lugar; tornando em uma vargem larga
que vai ter a uma lagoa chamada Amarela, ou das Amarelas, seja porque a
água é amarelada, ou porque é essa lagoa cheia de pedras de cor amarela, e
de que vimos algumas nos leitos secos das torrentes; é essa vargem coberta
de carnaúbas. No encontro dos chamados córregos fica um alto ou espécie
de promontório em cima do qual está a palhoça de que falei. Esta palhoça
tem ao lado um pequeno curral, onde havia uma porção de cabras presas, e
ao pé do cercado uma outra palhoça toda aberta onde era a casa de farinha.
Chegamos aí seriam nove horas, o sol já queimava.
Era tudo silêncio, só as cabras davam sinal de vida no curral, fomos
rodeando a casa até o fundo, eu e o Reis sentimos movimento dentro
e um falar baixo, nos aproximamos à parte de trás e chamamos; [f. 16]
acudiram duas mulheres, mas não queriam chegar-se a nós e correram
quando nos aproximávamos a elas; então estando já nós no fundo da casa
apareceu uma mulher a quem pedimos agasalho e almoço, sobre esta última
parte fez suas dificuldades dizendo que nada
tinha que nos conviesse. “O que comeu Vmce.
[vosmecê]?”, perguntei-lhe eu. “Jerimum, feijão,
o que Deus quer”, respondeu ela. Então eu lhe
disse: “Estão aqui cabras, não tem leite”. “Tem”,
disse ela. “Não tem rapadura?” “Um bocadinho”,
respondeu. “Não tem café”. “Muito pouco”.
“Pois então faça café, ajunte leite e adoce com
rapadura que estamos satisfeitos”. Sorriu-se e
entrou para dentro.
Nós voltamos para a frente, onde uma das

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meninas estava vendendo melancias a uns soldados de um destacamento
que chegou depois de nós. (Este destacamento de uns poucos de soldados,
alguns casados levavam suas mulheres, iam para o Crato e conduziam dois
presos, criminosos de morte e iam ambos algemados, para responder aos
júris do Icó, um, e o outro no Crato). O Reis comprou logo duas boas
melancias, que estavam excelentes, abriu-as logo e foi as devorando, eu
também com duas talhadas para minorar a sede, havia também boa porção
de jerimuns e logo compramos uns poucos para os nossos cavalos, que não
tinha capim. Nessa correria chegou um sujeito irmão do dono da casa e
travou logo conversa conosco. Chega serão dez horas o Lagos com o seu
ordenança, vinha torrado, e sequioso atirou-se às melancias, como gato
a bofes, e dizendo-lhe que esperasse pelo café: “Não quero café, morro
de sede”. O homem de quem acima falei e a quem disse que pedira café à
senhora [f. 17] que era sua cunhada, e sabendo que não havia em casa beijus,
saiu e daí a pouco voltou com uma porção de beijus de massa, grosseiros,
mas que nos remediaram. Enfim pôs na mesa, veio um bule cheio de ótimo
café com leite de cabra e um prato com uma dúzia de ovos cozidos, que nos
regalou. O Lagos mandou vir café simples, o Reis também tomou pouco café
com leite, por terem comido muita melancia; eu fartei-me no café tomando
quatro xícaras famosas e com isso ficamos até à noite. O velho estendeu logo
uma rede para mim e mandou buscar outras duas, para o Lagos e Reis, e
nós, estendidos e balançando-nos nas redes, conversávamos e nos diverttamos
com uns rapazes que chegaram depois e algumas raparigas, que vieram para
a sala, aí se contou muita história, se tomaram muitas notas e se gracejou
bastante. Eu apenas saí a ver uns pés de cumaru na vargem, os quais estavam
inteiramente sem folhas, e o Lagos foi com um dos rapazes a um lugar de
muitas pedras e trouxe de lá algumas amostras também do serrote a que o
tinha levado de manhã o dono do sítio do Pirangi; levou pedaços que lhe
pareciam ser de mármore.
Passamos um dia mais alegres do que cuidávamos e às três horas
e meia partimos, e ainda com sol quente, com o desígnio de dormir nas
Imburanas, onde deviam ter pousado as nossas cargas. Chegamos a esse
lugar às cinco horas; é uma grande vargem de barro denegrido, coberta
de carnaúbas, onde no tempo das águas se forma um vasto lagamar; agora
apenas tinha alguns poços. Em roda dessa grande [f. 18] bacia seca havia

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algumas palhoças, a uma das quais que nos pareceu a mais frequentada nos
dirigimos; mas nada encontramos, nem notícia da nossa bagagem; depois
uma pessoa que encontramos certificou-nos que ela ia já muito adiante, o
que pôs o nosso Lagos enfurecido e por mais que eu o quisesse acomodar
dizendo que, se se tinha adiantado, era para achar melhor comida para os
animais de água e milho, nada o abrandava e fomos seguindo para diante
por um caminho, já não tão bom, mas bastante sujo de mato pelo meio do
caminho, e marchávamos de noite com os cavalos cansados, indo muito
devagar, até que avistamos um vale com algumas carnaúbas e uma grande
lagoa; aí vendo luz em uma palhoça lá se foi indagar e se soube que até que
estava arranchado ali perto no sítio das Carnaubinhas; estávamos a alguns
passos desse lugar. De Imburanas por diante começamos a encontrar muitas
maracanás, as primeiras que eu tinha visto no Ceará: sentavam pelas árvores
à beira do caminho e mui mansas. Apeamo-nos no pouso, onde a nossa
gente havia chegado pouco tempo antes. O Lagos ralhou bastante com o
Raimundo (condutor da tropa) e com o José do Ó, nosso factótum. É uma
casa grande, meia coberta de telha e meia de palmas, meia toda aberta, onde
havia fábrica de farinha, e outra meia ainda meia barreada e meia fechada
de paus-a-pique, com cercados de porcos, de cabras, de vacas etc. aos lados.
O dono é um rapaz casado e com família, nos recebeu mui contente, nos
deu ceia de peixe e café ralo feito com água barrenta, única que aqui há e
que, [f. 19] se eu a quis beber, pedi-lhe que me mandasse fazer uma garapa
com rapadura, e assim a traguei.
23: De manhã nos levantamos e nos aprontamos para sair, com
tenção de ir almoçar no Aracati, que é daí a duas léguas e meia; ele nos não
ofereceu café, talvez por não tê-lo, e nos convidou para comermos carne seca
assada, o que agradecemos. Eram sete horas quando montamos a cavalo e
por um caminho como o da véspera, isto é, maltratado, caminhei até oito
horas e meia, indo devagar e por uma chapada quase igual; a essa hora
avistava-se ao longe um baixado, que eu presumi logo ser o leito ou vargem
do Jaguaribe; com efeito pouco depois, por entre as duas bordas de matas
do caminho, avistei eu os tetos de algumas casas atrás duma igreja. Clamei
mui contente: “Estamos em Aracati”, que foi sempre descortinando-se e
mostrando-se até que o vimos em toda a extensão sem vermos porém o

50
rio. Chegamos à vargem, como as outras de um barro denegrido rachado,
coberto de carnaúbas e limitado em nossa frente por uma porção mais
elevada e arenosa e com alguma vegetação detrás da qual está o rio. Esta
vargem é bastante larga e estava seca; começamos a ver algumas palhoças
e depois entramos por uma cancela, espécie de barreira, donde avistamos
o rio, e além dele a cidade. A maré está vazia e o rio só oferece a largura
de talvez 50 braças e com fundo raso porquanto os cavalos apenas nadam
umas quatro ou cinco braças no meio do rio; a passagem é em canoas.
As pessoas de pé vêm descalças e, arregaçadas as calças, entram no
rio, pois na maré baixa a água se espraia muito e a canoa pela [pega] logo
na areia [f. 20] e os cavaleiros entram no rio até a borda da canoa e nela se
apeiam, tiram os arreios do cavalo, o cavaleiro dentro da canoa e o cavalo
fora, puxando por cabresto até a canoa encalhar do outro lado, então sela-
se de novo o cavalo e o cavaleiro monta e sai do rio. O canoeiro nem outra
pessoa carrega aqui os passageiros; tem a demora da passagem porque os
cavalos passaram em duas viagens, não podendo passar mais de três de cada
vez; estivemos esperando na praia e expostos ao sol ardente até além das
dez horas. Enfim entramos na cidade e seguimos pela mui grande rua até
a casa já ocupada por Manoel e Vila Real, que haviam chegado uns quatro
dias antes.
Tivemos um bom almoço de peixe e café com leite e pão e boa água;
foi um verdadeiro regalo.
Gastamos nesta viagem, que fazem ser de 30 léguas, oito dias
incompletos, saindo da cidade no dia 16 de agosto às quatro da tarde e
entrando em Aracati no dia 23 pelas dez da manhã.
Aracati, 24 de agosto às onze horas da noite.
Foi esta narração feita às pressas e sobre apontamentos tomados a
lápis durante a viagem; e por isso muito incompleta, e muito mal escrita.

51
Notas sobre a vila de Aracati
29 de agosto a 14 de setembro de 1859
[[-28,8,3]

[f. 21] Aracati: Pequena cidade situada junto e ao lado direito do


rio Jaguaribe, a duas léguas de sua foz, consta de uma rua larga comprida e
algumas travessas ou becos, e mais algumas filas de casas, formando praça
ou ruas (veja-se planta); tem muitas casas de sobrado e algumas de dois
andares, pela maior parte velhas e decadentes, mas tem alguns prédios
novos e bonitos. Toda a rua tem largos passeios ou calçadas de tijolo como
na capital, ou de pedras brutas, mas bem assentadas, e o meio é de areia
funda, [de] mistura com algumas terras, o que produz uma poeira fina e
incômoda.
Tem quatro bons templos, mas nenhum está concluído; faltando
acima a conclusão de uma ou de ambas as torres, ou do revestimento
interno.
Em roda da cidade há grande número de palhoças, mas não arruadas.
Nas grandes cheias do Jaguaribe, como uma de 39 e [outra] de 42, toda a
cidade fica embaixo d'água, há casas que ficam com água pelas vergas das
juntas e pelas ruas andam canoas e lanchas, e de circunstância mui forte.
Nessas ocasiões quase toda a gente sai da cidade tirando seus móveis e os
que têm sobrado os passam para cima, como fazem as vendas, armazéns e
lojas; muitas casas se arruínam e o espetáculo deve ser medonho, porque
toda a grande vargem fica submersa, formando um vasto lagamar, do meio
do qual surgem as casas ou antes os sobrados e as igrejas. Este estado dura
alguns dias, às vezes 15 e mais.
Há pouca sociedade: as famílias vivem retiradas e encerradas, pouca
gente se vê às janelas; só nos [f. 22] domingos e dias santos aparecem de
tarde; mas isso mesmo pouco. À gente é branca, preta ou mulata, poucos

52
caboclos, ou mamelucos, na rua se veem em serviço pretos e pardos. É gente
industriosa, as mulheres de todas as classes trabalham muito em crivos que
os fazem delicados e de muito bom desenho, e chamam labirintos, assim
como em rendas que chamam 4icos; mas parece que estas são principalmente
feitas em chuças e os melhores labirintos nas praias; trabalho em palha de
carnaúba fazendo-se chapéus, esteiras etc. etc. É notável que por toda a
parte por onde tenho andado se vejam sempre aracatienses empregados em
vários serviços e em negócio.
Os partidos políticos foram aqui extremosos e divididos e animados
uns contra os outros de um modo singular: cada um partido habitava as
casas de uma parte da grande rua; como ainda hoje: numa rua é chimango,
a outra caranguejo; cada um tinha sua igreja, não se cumprimentavam;
perderam-se as relações de famílias, entre os dissidentes; insultavam-se
mutuamente e estava sempre de quem vive? ou alerta uns contra os outros.
As eleições eram verdadeiras batalhas, nunca se faziam sem sangue: e é a
gente tão amestrada nisso, direi antes tão turbulenta, que eram chamados a
fazer as eleições em outros lugares. Como ontem nos disse aqui o boticário,
praticavam de toda a qualidade de bandalheiras e falsificações.
Mas parece que — entendo isso — não havia verdadeiras ideias
políticas, eram famílias separadas e brigadas com seus partidários; a política
era o pretexto. Hoje isso está mais calmo, todavia aqui como no resto do
Ceará os sectários de partidos políticos ainda se fazem guerra e se insultam
mutuamente e se perseguem. Aracati é um ponto comercial em razão
de ser mais perto do Jaguaribe, e o comércio do Crato, [f. 23] do Icó,
Quixeramobim etc. etc. se faz por aqui; todavia, não vejo esse movimento
que se viu dizer. Vejo a rua quase sempre quieta e deserta — portas e janelas
ou sem gente ou fechadas, de vez em quando passam pela rua grandes carros
com fardos de algodão puxados por seis e oito juntas de boi. O gado aqui
é sem comparação superior ao da capital, onde via sempre bois pequenos,
magros, raquíticos puxando os carros, e cavalientes da mesma aparência
carregando vários gêneros. Aqui tem o gado uma bela aparência, são de boa
estatura e redios.* A cidade é muito farta, principalmente de peixe e ovos;
as galinhas são raras no mercado, tudo muito mais barato. Ontem à noite
* Aqui o gado se nutre de pastos gramíneos; agora muito que estão secos, eles comem bem o capim seco que
os engorda, e deve ter melhor gosto a carne e leite.

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compramos aqui quatro camurins de três palmos cada um a duas patacas,
mas a gente da terra os tem ainda mais baratos; os ovos custam a vintém; a
carne é boa e abundante; verduras não há, ou há muito poucas.
Não há passeios, o único é o afamado Cumbe: no domingo de tarde
saímos nós todos a fazer um passeio a cavalo e corremos toda a cidade em
meia hora, por leste e pelo lado da vargem, onde estão as igrejas.
Custa-nos o sustento do nosso cavalo aqui demasiado, uma carga
de capim e que nos vem de três léguas de distância, vendem-nos por
dois mil; ração de milho e de jerimum, 200 a 400 réis [$400]; salário
de criado que quase exclusivamente se ocupa com o cavalo, 12$ [doze
mil-réis]; assim o sustento do cavalo importa mais que o nosso, e não
passamos mal.
[f. 24] Isto porém é para quem tem cavalos inteiros, porque sendo
quartaus, ou castrados, mandam-se para o pasto comum que é a chamada
ilha dos Veados* — onde se pagam 80 réis diários e manda dar-lhes ração
quem quer: estará o uso da terra; o capim do pasto está agora inteiramente
seco, mas os animais dão-se bem e engordam, parece que pertencem a um
particular, que recebe por cada animal 80 réis por dia, ou 2$ [dois mil réis]
por mês.
Na casa em que estamos aí não vi ratos nem baratas; moscas e
mosquitos, poucos.
Anteontem, quando íamos parao Cumbe, estava à beira do caminho
uma famosa cascavel morta a porrete. O campo cerrado e fechado com
cancelas é grande, tem mais de légua de comprido e quase légua de largo. É
cercado em parte com cerca de moiróes furados: estas cercas as vi aqui pela
primeira vez, duram 12 e mais anos; os moirões são ordinariamente de pau-
ferro, que dura como a aroeira, ou de outra madeira que dura, têm cinco ou
seis buracos por onde se enfiam lascas de carnaúba.

* Onde o capim está torrado, nas estrebarias os animais comem com vontade; o inconveniente deste pasto
é ser habitado por muitas cascavéis.

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Outro modo de cerca que vimos ontem, 16 de setembro, na Cacimba
do Povo, e que já tinha eu visto — em Pirangi — à festa da carnaúba.

[f. 25] Temos quase defronte da casa em que assistimos o boticário


Teixeira, o qual, fazendo a casa em que mora e tem botica depois da
enchente de 1839, levantou de paiol ou aterro da casa mais palmo e meio
além da altura a que chegaram as águas; porém, em 1842 a enchente foi
maior e entrou-lhe pela casa, até palmo e meio de altura, vindo a ser esta
mais alta que a de 39 três palmos. Contou-nos o Sr. Barbosa, cunhado do
Valentim, que nesta enchente de 42 a água apenas cobriu o ladrilho da casa
em que hoje mora. Esta casa está no lugar mais alto da cidade, por estar no
princípio da grande rua, mas tem um bom patamar de dois ou três palmos;
dá mais que nessa ocasião, andando ele embarcado com outro sujeito numa
canoa, pela rua chegando em frente de uma das travessas, a água corria
por ela para a vargem com tal violência que arrastou a canoa e a levou
tumultuadamente, dando-lhe encontrões pelas paredes até que, ao sair do
beco, formando uma espécie de cachoeira, voltou-se à canoa; ele pôde se
agarrar, mas o seu companheiro ia sendo levado pela correnteza e foi saber
pelo preto remador, que o foi apanhar.
Homens brancos trabalhadores. Ouço aqui uma queixa geral contra
a indolência e vadiação desta gente, custa-lhes muito a chegar e não têm
persistência no trabalho; falham quando mais se precisa deles; eles fazem
grandes estragos nas plantações, roubando tudo. Costumam muito furtar,

55
isto é, pedir dinheiros adiantados — safaram-se. O preço dum jornaleiro
aqui é de 640 [réis] a seco. Todos se queixam da falha da polícia, isto é,
querem que o governo obrigue esses homens a trabalhar!
[f. 26] A alimentação do trabalhador ou, em geral, do povo, e mesmo
da gente que está em certa posição, são a carne, a farinha e a rapadura, que
comem como sobremesa com farinha. Diz-se também que, tendo-se na
boca um pedacinho de rapadura, não se sente sede.
A água que se bebe na cidade é vendida todas as manhãs pela cidade
em barris, carregados em carros, trazendo cada carro (parece que é água) 40
barris, e os vendem a 40 réis. Os barris são desta forma, tanto os dos carros
como os que são carregados ao ombro.
A água é clara e de bom sabor, e fornecida por uma cacimba.
A melhor água daqui é a de Beirada, do sítio do Sr. Pacheco; é um
olho-d'água que dá sempre em abundância. Diz o Sr. Pacheco que de
manhã é morna e ao meio-dia mui fresca.
Ainda agora estiveram aqui conversando conosco duas pessoas
de Aracati, uma delas o tenente Bento Colares. Entre outras coisas nos
disse, contando maravilhas da capeba para hidropisias, da purga-do-
leite; de raiz da (pausa) que aqui ninguém que esteja iscado do galico
(coisa muito comum na terra) come veado nem peru, por serem carnes
mui carregadas.
Contaram façanhas de cavalos e de homens andadores admiráveis.
Um desses andadores, que já hoje parece que não faz dessas façanhas, vai à
capital num dia e volta no outro, come e bebe e mija e suja andando.
De outro, o que creio se chama Matias, refere que um (f. 27]
montou aqui a cavalo, tendo passado o rio; ao sair do sol acompanhado por
ele, prometendo-lhe 30$000 [trinta mil-réis] acompanhou-se até a cidade;
chegou antes, chegara ao Ceará às seis horas da tarde. Que inglês! Que
cavalo! E que andador!! O inglês deu-lhe 40$100 [quarenta mil e cem réis).
Fazem daqui à capital 30 léguas quase sempre por areais.
Não há cultura nenhuma nos arrabaldes da cidade, que são uma
capoeira rasa (hoje tem o aspecto tristonho porque está todo o capim
seco). Vejo muito pouca verdura, na nossa mira só aparecem maxixeiros e
jerimuns, pelos quinhões vejo mamoeiros, graviolas.

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Porém, pelas beiradas das carreiras de areia há cultura da cana-de-
açúcar para aguardente, de mandioca etc. Há muitos e belos coqueiros-
da-praia, que dão constantemente; dizem aqui que todos os meses dá um
racimo floral que leva um ano para dar fruto maduro, assim cada coqueiro
tem pelo menos 12 racimos continuadamente, contendo desde botões
até o fruto perfeito, e cada cacho dá muitos cocos e o coqueiro dura de
30 a 40 anos, e alguns chegam a um século. Uma das coisas com que se
obsequia a um hóspede é a água-de-coco, e com o coco se fazem umas
várias comidas. Mas ali mesmo no Cumbe e vizinhos não vi uma horta,
nem um jardim.
O tempo vai muito seco, há quase constantes ventos de levante
(vento geral), que sopra com força das dez horas da manhã, diminuindo
um pouco a certas horas da tarde e continuando pela noite com bastante
força, de madrugada diminui e não se faz calor até oito da manhã. Levanta
muita poeira e torna os passeios incômodos, mas modifica muito os calores;
[f. 28] dizem que assim vai até o inverno.
Ontem, domingo (4 de setembro), vi algumas mocetonas passeando
e divertindo-se pelos quintais de algumas casas, que são devassados da
nossa sala de dentro. Eram cinco ou seis bonitas moças, alvas, coradas,
bem-feitas, de belos cabelos pretos, das feições não pude bem julgar,
mesmo usando do óculo, como que elas se riam e fingiam, mas de modo
a serem sempre vistas.
Daqui concluo haver em Aracati alguma gente formosa, mas que
apenas se deixa ver na rua e às janelas (neste momento passa o viático pela
rua e eu vou para a janela com o castiçal); só nos domingos se mostra,
alguns de tarde pelos sobrados, nas casas térreas é sempre por detrás dos
rótulos. Nas casas que dão o fundo para o campo, ficando-lhes de tarde o
sol contrário, saem pelos quintais e póem-se sumidas fora do portão, onde
podem ser vistas. Parece costumavam ir à missa de madrugada, segundo o
que me disse em Pacatuba a senhora do Valentim. Mas hoje não há aqui
senão um padre e este dá a missa na Matriz das nove às dez horas do dia,
e poucas vão à missa, pois não as vejo passar pela rua (ainda não pude
ir à missa, pois nos dão sempre o almoço fora da hora, como aconteceu
ontem; tencionando ir à missa, fui de tarde, estando a igreja aberta para
um batizado).

57
Tenho visto aqui um ou dois cabriolés e um carrinho de cabeça, ainda
não vi cadeirinhas e não tenho visto senão uma senhora na rua com seu
marido, ou parente.
A respeito de moças bonitas ouvi hoje dizerem que, nos lugares
chamados praias, daqui até [f. 29] Mossoró no Rio Grande do Norte, há
muita povoação, quase tudo de pescadores e de gente formosa: as moças
são alvas, coradas e bonitas, mais industriosas e que é aí onde se fazem
principalmente os famosos labirintos.
Aracati é célebre neste gênero de indústria.
Em Russas se fazem principalmente rendas e bicos; no Icó são
bordados de cores; no Sobral redes etc. etc.
À indústria que tem por matéria-prima os produtos da carnaúba é
importante. Da haste de carnaúba se faz todo o madeirame da casa, mais
esteios ou forquilhas, fazem-se bicas, ripas etc. O lenho ou madeira externa
é meio duro e pesado, de cor parda escura, fazem dele bengalas etc. como
se faz do airós [sic]. Da raiz se fazem cestas e cestinhas de costura e dela se
servem como da salsa, do grelo se faz a farinha e excelente tapioca (como
hoje me mostra o tenente Bento), das folhas novas se fazem tucum ou fios
do dorso das folhas como nós tiramos das do tucum, que é excelente em
força e duração; as formas de suspender redes são desta. Da mesma folha se
fazem bons chapéus, cestinhas, peneiras etc., do talo da folha se faz muita
coisa como caçuás etc. etc., a fruta é sustento para o homem e para o gado,
da amêndoa torrada fazem café, das folhas desfiadas fazem enchimentos de
cangalhas etc. etc. Enfim da carnaúba se extrai grande porção de cera. Estas
palmeiras são infinitas, por tada esta província é lugar em que se não vê
outra coisa e por léguas de extensão, todos os lugares baixos e úmidos, vales
e margens de rios, tudo está inteiramente coberto desta palmeira. Dizem [f.
30] que dois milheiros de folhas dão uma arroba de cera.
Temos aqui dois estabelecimentos industriais levantados por
estrangeiros: um curtume por um francês cujos produtos me dizem que
se exportam todos, e a fábrica de sabão, velas e licores do Cumbe, onde
passamos um dia — por um espanhol.
Aqui há poucos pianos, se é que os há (ainda não ouvi). As moças
cantam modinhas acompanhadas pelo violão; daqui tenho ouvido meninas
solfejar e aprender o canto.

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Em geral os homens aqui, como na capital, são mesquinhos e um
tanto ciganos. Por ora temos achado pronto a obsequiar-nos e me parece
desinteressado o tenente Bento Colares, homem solteiro e que tem com
que passar bem, ganhado por sua indústria e autoridade.
Ontem à tarde, estando conversando com um sujeito cujo nome não
sei, sentados à porta da botica do Teixeira e falando ele sobre a visita à gruta
do Areré um dia que o pai do Franklin do Amaral, que morreu com 80 anos,
em sua mocidade entrara ele só naquela gruta, o que foi de grande ânimo, pois
naqueles tempos a gruta era tida como mal-assombrada. Disse mais que ele, um
seu mano e outro sujeito entraram na gruta, não há muitos anos, que andaram
por ela subindo e descendo.
Hoje de tarde, indo de passeio à Beirada, sítio do Pacheco, conversando
com o Bento Colares e perguntando-lhe sobre praias, disse-me ele que este
lugar também se denomina Areias, e que fica além da Ponta Grossa daqui a
umas 15 léguas, que é lugar muito povoado, que há aí dois engenhos, muita
plantação, pescaria etc., que o povo é de gente branca e as mulheres [f. 31]
são alvas, coradas e fortes e que a povoação é muito entendida.
Achamos como disse no sítio do Pacheco, proprietário e negociante
rico de Aracati, e que hoje está de viagem para a Europa. Éramos eu, Lagos,
Reis, o Bento e Pacheco, irmão do proprietário do sítio, o qual está daqui a
uma boa légua, à beira dos morros e passa-se a camboa por uma fronte de
carnaúbas em grande espaço; antes da camboa o terreno é alagadiço e há aí
salinas; além da camboa o terreno é ainda alagadiço, mas com água doce
provinda dos olhos-d'água que nascem debaixo dos morros. O sítio tem
engenho de aguardente e casa de morada, tudo muito melhor do que o que
já temos visto por aqui.
A casa das moendas é grande, e feitas de madeiras lavradas; as
moendas são muito boas; a casa da aguardente é de telha e paredes de pau-
a-pique barreado e pequeno; o alambique, que é de cobre, está assentado
fora, debaixo de um telheiro. A casa de vivenda é espaçosa, com uma boa
varanda, sustentada por grossos pilares cilíndricos, ladrilhada e muito
levantada sobre o terreno, que é encostado ao morro que fica por detrás.
O que há aqui de mais notável é um olho-d'água mais perto de casa,
do qual ela sai em grande quantidade e fazendo cachões, é recebida num
tanque de fundo de areia limpo, com fundo de três palmos mais ou menos

59
e com duas a três braças em quadro. Este poço está coberto com uma casa
cujo teto e paredes é de folhas de palmeira, carnaúba, e serve de banheira.
Passa esta água pela melhor potável de Aracati: meti a mão no meio dos
borbotões d'água e a achei um tanto morna. Afirmam que de manhã e de
noite é quente e ao meio-dia, muito fria!
[f. 32] A água que sai desta fonte, e que nem folha, é recebida em
reservatórios com pequenas comportas e distribuída por meio de vales pelas
hortas e canaviais até grande extensão, e além disso alaga a vargem em
muitos lugares. Os canaviais estão mui viçosos e as canas, muito grandes.
Aqui vi plantação de camélias, parreira etc. etc. É um bom sítio da roça,
saímos de lá às ave-marias e chegamos à cidade mui cedo, porque viemos
esquipando e correndo, tendo-me pedido que trocassem os animais o Sr.
Pacheco, sendo o dele um quartão de excelente andar passo baralhado, que
trazia os outros a meio galope.
7 de setembro, onze horas da noite: Agora acabamos de chegar de
uma representação dada por curiosos em um teatrinho particular, e que
para o país não esteve má. À casa está suficientemente arranjada; e bem
que o calor era grande, suportei-o melhor do que na capital, quando fui à
plateia e daí saí doente. As peças — tanto a comédia como a farsa — eram
boas e o desempenho para curiosos foi [palavra borrada] mau. Os rapazes
faziam damas e estavam meio acanhados. Havia uma galeria cerzida, que
estava cheia de senhoras; algumas me pareceram bonitas, não se devem
apresentar por falta de luz, e estavam bem vestidinhas.
8 de setembro: Agora são talvez dez da noite, toda a cidade está
silenciosa, e indo eu à janela para fechar a porta, vim ver debaixo muitas
luzes, esperei para recolher o que, e só quando chegam abaixo da janela é
que vi que era um defunto, em um caixão revestido de preto, em cruz de
Gali, carregado por quatro homens de casacas e acompanhado por oito
ou dez, vestidos de casacos elevando velas curtas, com cartuchos de papel,
contra o vento.
[f. 33] Hoje às oito horas da manhã aqui esteve um irmão do Sr.
Franklin de Amaral, homem de 68 anos e completamente cego de cataratas.
Disse que seu pai era pernambucano que se veio estabelecer em Aracati e
teve quatro filhos homens e uma menina, que morreu moça. Disse-nos
que, quando se entendeu, não se usava senão mui pouco e por curiosidade

60
da cera da carnaúba; que então se alumia[va]m as casas com azeite de
carrapateiro, com velas de sebo e de cera da terra, que esta era abundante
aqui pelos arredores donde se tirara muito mel e cera, e que as igrejas se
alumiavam com velas de cera branca; que havia bastante criação de gado,
que se exportavam carnes salgadas, couros etc.
De noite fui eu e Manoel visitar o juiz municipal, cuja senhora é
filha do Icó, mui amável e está de viagem para o Icó, provavelmente para
ter lá o seu bom sucesso, estando com o ventre muito adiantado. Estavam
lá mais dois sujeitos e o Dr. Pacheco, conversavam muito sobre coisas do
Ceará, tomaram chá etc. e voltamos depois das dez horas. Soubemos aí
que, antes de chegar-se ao Icó, há uma mulher muda que trabalha em
louça admiravelmente, fazendo tudo o que se lhe encomenda e segundo o
modelo que se lhe dá, que a louça é mui preta e lustrosa. Contou também
muita coisa da vida de um sujeito que tem hoje 86 anos e que se acha bem
disposto e vigoroso: foi um valente, que conta [f. 34] ter feito várias mortes,
que ele sem cerimônia as refere por que e como as fez, estando degredado no
Pará por uns 20 anos e também foi por várias vezes assaltado e esbordoado
a deixarem-no por morto, uma vez porque uma sua filha, moça de mais de
20 anos e muito honesta, foi a uma função acompanhada por uma irmã de
mais de 30 anos; porém, foram escondidas. Tendo-lhes o velho proibido
de dançar, deu pela falta delas, esperou e, quando entraram pela porta do
quintal, as foi açoitando com uma peia que a pobre moça ficou cheia de
vergões, até pelo rosto, e dessa vez saiu de casa e foi para companhia de um
parente. É um velho façanhoso e dos bons tempos destes sertões, mas tem
a boa qualidade de saber defender a um amigo.
É notável como o povo do Ceará entende a sua nacionalidade: para
eles o Brasil é o Ceará, os mais provincianos são estrangeiros. Ontem o
irmão do Franklin, conversando com Manoel, disse: “Vieram os senhores
a este nosso Brasil”. O sujeito que nos hospedou à margem do Pirangi,
conversando conosco nos confundiu com a gente da Europa, dizendo: “Os
senhores lá fazem isto com grande facilidade etc. etc.”, referindo[-se] aos
artefatos europeus.
Em geral não estimam aos das províncias limítrofes. De Piauí falam
com desprezo e denominam a província Terra dos Serões, o que eles têm

61
horror. A respeito de Rio Grande não se ocupam com ela, parece que os
respeitam pertencendo à mesma província. De Pernambuco não cessam de
fazer comparação entre o povo dali com o do Ceará, pondo os cearenses
mais acima dos pernambucanos em inteligência, em correção de linguagem,
em costumes mais brandos etc. Parece que em algumas coisas têm razão.
[f. 35] Com os do Maranhão há mais rivalidade: os maranhenses chamam
aos cearenses cabeças-chatas e os não têm em bom conceito; os cearenses
também se desforram como podem. A gente do Ceará que tem uma certa
cultura mostram-se invejosos e prevenidos contra o Rio de Janeiro; todas
as desgraças de sua província são causadas ou ao menos não remediadas
pelo governo, que só trata do Rio de Janeiro. Aqui em Aracati o boticário
E Teixeira, conversando conosco e tratando das misérias da sua terra,
exclamou: “Aqui no Rio se gasta com o provinciano bastando para nos
felicitar!”. Estar a declamar contra o provinciano é muito geral aqui no
Ceará. O sonho dourado desta gente é a sua independência, é o Ceará
formando um Estado. Eles fazem uma ideia tão exagerada da sua província,
que no seu entender é em tudo superior a todas as outras; e o seu estribilho
é sempre “Deem-nos chuvas, dois meses só, todos os anos, que o Ceará não
precisa de nada e pode fartar a todo o Império”.
10 de setembro: Dez horas da manhã agora chego da casa do Dr.
Pacheco (médico), que nos deu um almoço; éramos convidados eu, Lagos,
Reis, o juiz municipal, estava presente o Bento e chegou enfim o escrivão
do juiz municipal. Está o almoço asseado, bem-feito, boa louça; consiste
em galinha de molho pardo, bifes, torta de ostras, ovos estrelados, ova de
camurupim, sofrível vinho branco, chá e mais fez melhor que tenho visto
aqui (exceto o chá de ontem em casa do juiz municipal), queijo preparado
de frigideira, excelente pão e água fresca. A casa em que moram os Pachecos
— o médico e outro, que está agora ausente e que parece estar encarregado
de cobranças da casa do irmão mais velho e ricaço da terra, que está em
viagem para a Europa — a casa, digo, tem uma distribuição singular, é uma
espécie de labirinto, toda de telha vá (exceto as salas de visita e de janta,
salvo o gabinete da sala), comunicando todas as peças por cima [£. 36]
como do uso aqui no Ceará (senão em todas as províncias do Norte).
A casa em que assistimos é construída à maneira comum do Rio:
o seu madeiramento até barrotes e forro todo de carnaúbas, e as peças do

62
sótão são ladrilhadas sobre lustros, ou barrotes, unidos de carnaúba. As
portas e janelas de fora têm todas postigos; bem que, tanto por fora, portas
ou janelas envidraçadas.
Na casa, digo, no quintal da casa dos Pachecos vi um dos jaraus
[jarais?] que aqui fazem para plantar hortaliças, e o juiz municipal me disse
que chamam a isto balcões e que se fazem para preservar as verduras dos
animais, galinhas, cabras, porcos etc.
Seriam onze horas quando aqui veio um dos filhos do Sr. Caminha,
pediu-me para ver seu pai e ficou de me mandar o seu carro às cinco horas.
Com efeito a essa hora se apresentou um carro asseado, com um preto
cocheiro com libré nova; meti-me nele e passando pela casa deles, que é
um grande sobrado de dois andares, ele se meteu também no carro com um
filhinho. Saímos da cidade pelo lado da Cacimba do Povo e assim mais de
um quarto de légua nos achamos em frente duma casa de campo, rasa e de
pouca aparência, mas que parece ter cômodos interiores. Estavam algumas
pessoas fora, na calçada; na sala estava uma senhora idosa que julgo é a
mulher do Sr. F. Caminha, depois foram aparecendo outros e chegando
alguns sujeitos, e mais depois chegou uma família com três senhoras e
vários homens, e enfim chegou o juiz de Direito. Examinei a moléstia do
Sr. Caminha, que é um tumor sobre a clavícula do lado direito; aconselhei
que fosse a Paris para se extirpar, no caso de ser possível. Foram os filhos
(com doutor ou juiz) e mais sujeitos mostrar-me o seu jardim e pomar:
estava tudo seco e de má aparência, laranjeiras [f. 37] feias, cobertas de
pó e com bastantes frutos que o Sr. Caminha moço me asseverava serem
excelentes, e outro senhor que estava no Rio de Janeiro acrescentou que
não achou as seletas do Rio melhores, creio que este era também filho
do Sr. Caminha, formado em Leis; o outro que nos foi buscar a casa
e que agora nos mostrou o seu pomar e jardim é pessoa distinta e tem
viajado pela Europa. Várias as frutas. Havia algumas goiabeiras, plantadas;
romeiras, graviolas, figueiras, um pé de sapoti etc., poucas flores e muito
comuns, vi um pé de Tabernaemontana com flores dobradas brancas e
cheirosas, um pé de algodão de lá loira ou dum amarelo de ganga, sujo. O
pomar é aguado por dois grandes e fundos poços, a que chamam cacimba,
com bombas de carnaúba e tiradas por moinhos de vento. Uma boa casa
de banho.

63
Entramos pata a sala, conversou-se um pouco; vi uma senhora com
um pequeno tumor entre as juntas e me despedi, fazendo-nos o Sr. Caminha
pai muitos oferecimentos e prometendo-nos carta de recomendação para o
Icó.
Meti[-me] no carro com o mesmo senhor com que tinha vindo e seu
filhinho, que vinha dormindo encostado a mim, e mais outro sujeito.
Esta família é aqui a mais aristocrática, talvez a mais rica e a que
melhor se trata. O seu chefe atual é também o chefe do Partido Conservador
ou Caranguejo, como aqui dizem, e tem por oposição a casa dos Pachecos,
que estão à frente do Partido Liberal ou Chimango. Estes dominam a
patuleia (sendo um pouco mais cavados), principalmente a da cidade. Os
Caminhas têm por si grande parte da gente do sertão.
Esta divisa das duas famílias aqui dominantes é muito antiga, [f.
38] segundo diz o boticário Teixeira, e as desavenças começaram pelos ares
aristocráticos e maneiras pouco populares (2) dos Caminhas que irritavam a
gente menos distinta. O povo aqui, diz ainda o boticário, é muito cioso de
sua liberdade e não sofre distinções.
O que parece natural é que a culpa não estará só de um lado: se de
um havia alguma altivez, nascida da sua posição e mais riqueza, do outro
havia inveja e despeito; e sendo estes sentimentos manifestados por atos,
começam a azedar-se. Vieram depois as ideias políticas e, achando os ânimos
predispostos para a divisão, ela se manifestou e tomou o caráter irritante e
odiento que tornam sempre estas gentes míseras. Se é que a divisão das
famílias não foi posterior às divisões políticas, o que não tivemos tempo de
averiguar,
O que é curioso que hoje de manhã almocei na casa dos Pachecos e
de tarde estive em casa dos Caminhas.
Pensando com meus botões, veio-me a ideia de que esta visita foi
um pretexto para me levarem à sua casa, visto que não faria bem ver para
os seus adversários que os membros da comissão os não frequentassem,
nem fossem por eles agasalhados.
Chegando a casa e não achando o Lagos, que havia combinado comigo
para ir ao juiz provedor, e ouvindo tocar o sino da Matriz para a ladainha,
convidei o Vila Real e fomos à Matriz. A ladainha foi acompanhada de
música no coro e não estava má, de baixo respondiam as mulheres de lençol

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num som fino de falsete, que me parece canto de crianças. O corpo da igreja
tinha grande quantidade de mulheres de lençol pela cabeça, o que produzia
um efeito singular; entre elas havia uma outra rapariga de vestido com
lencinho ao pescoço e uma meia dúzia de pretas com vestido e sem lençol.
Este lençol, toalha [f. 39] ou mantilha branca, que achei asseado e próprio
para o clima, é só usado pela gente de certa ordem; e reparei que as cativas
a não trazem. Hoje as raparigas, que vai tudo já em certo desembaraço e
educação, já não querem trazer lençol. As famílias mais decentes, e eram
poucas, tinham-se colocado pela parte de cima das grades; os homens, que
ainda eram mais poucos, estavam em roda, encostados às paredes pilastras e
postos junto à capela-mor, onde havia até moleques de pés descalços, e no
corpo da igreja alguns estavam entre os vãos das duas portas laterais (entre
os quais éramos nós); e maior número fica por baixo do coro, junto à porta
exterior, onde era maior o número dos pretos.
A ladainha foi curta, o padre apenas fez a oração final.
11 de setembro: Esta manhã recebi um presente de frutas da casa do
Sr. Caminha, são uma boa porção de laranjas e alguns figos; tudo ornado
com ramalhetes de flores, rosas, cravos, resedás, espirradeiras, saudades,
melíades [meliáceas] etc. etc., e coberto com uma grande toalha de largos
crivos e rendas.
Cinco horas da tarde fizemos um passeio a cavalo eu, Manoel e
Vila Real e Reis, em caminho. Encontramos o Lagos, que se incorporou
conosco, seguimos o caminho do sul, que vai para Icó, e andamos uma
boa meia légua, até o lugar chamado S. José, de uma igreja que aí houve
antigamente.
A estrada é por uma campina, da vargem do Jaguaribe, cuja relva e
mato pequeno está de todo tomada; o pó é encarnado pela ventania que
fazia, mas é toda aprazível, com habitações (chácaras soltas; fila de prédios
regulares, já de palhoças). [f. 40) Passamos pela Cacimba do Povo, que é
um poço grande coberto e fechado, com bomba e tanques, donde saem
algumas bicas; a Câmara paga a um homem, que tem sempre os reservatórios
cheios, tocando a bomba. À água parece não ser da melhor e é fornecida
grátis ao povo. Paramos em uma choupana, nos apeamos e Lagos, Reis e eu
entramos; havia nela duas mulheres (uma muito velha), duas moças e uma
criança, beberam água (não eu) muito ruim, conversamos um pouco; e no

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instante Manoel e Vila Real, que se não apearam, safaram-se, estes dois não
gostam de andar conosco. Dali voltamos e, passando pela casa de campo do
Sr. Caminha, onde ontem estive e que é bem defronte da Cacimba do Povo,
e estando ele, seus filhos e mais outros sujeitos sentados fora da porta, nos
chegamos e apeamos e entramos na roda; pouco depois começaram a vir as
senhoras (e havia sem dúvida uma dúzia delas) e fizeram outra roda. Eram
ave-marias, vinha anoitecendo, a lua cheia ou quase cheia já estava algumas
braças sobre o horizonte e defronte de nós o vento continuava a soprar,
porém mais brando; no céu não havia uma nuvem. Era uma companhia
agradável, conversamos, e principalmente sobre a nossa viagem, mas era
forçoso separarmos e nos despedimos. Pouco depois de chegarmos ali,
chegou um irmão do Sr. Caminha baixo e gordo, morador nas vizinhanças
da serra da Anta — onde tencionamos fazer, saindo daqui, nossa primeira
excursão — e mostrou-se desejoso de que parássemos em sua casa, o que
prometemos. Partindo, pouco depois o Lagos separou-se de nós e foi, [f.
41] acompanhado do seu ordenança, fazer uma visita; eu e o Reis viemos
para a cidade. Chegamos a casa, logo saímos; eu fui à igreja do Rosário
dos pretos, onde havia oração, para ver o interior da igreja. É um templo
pequeno com uma só torre do lado direito, o interior é mui singelo, a
capela-mor é pequenina e pobre; tem mais dois altares laterais; o corpo da
igreja é de telha vá, encaibrada como as nossas casas no Rio e de caibros
não lavrados. Havia bastantes mulheres de toalha, e a maior parte era negra,
também atoalhada. Demorando-se a reza, saí e vim para casa. Disseram-me
que as pretas cativas levam toalha ou lençol quando acompanham a santa
missa, mas que fora dessa usam pano de lençol.
12 de setembro: Levantei-me e vim para a janela, foi agora que reparei
em muitos porcos e galinhas soltos na grande rua.
Esta rua tem quase 400 braças de comprido e na frente da nossa casa
tem de largura 109 palmos e é toda ela quase da mesma largura; e parece
um pouco torta e mal nivelada, de areia fina escura, e profunda no meio, e
à beira das casas pelo lado do mar tem capim. Tem muitas travessas, estas
são estreitas, de 20 a 25 palmos talvez; além desta grande rua há mais uma
paralela a esta, não tão larga nem tão comprida e com casas falhadas em
muitos lugares da parte do rio, cujas casas desse lado dão fundo para o rio.
Do lado oposto, digo, do lado do campo há outra rua paralela, que se pode

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dizer em projeto, por ter as casas muito falhadas, e há um pequeno número
de quadras, é também larga e bem alinhada, fica ainda por fora desta. [f.
42] Ainda para o lado do campo, ou vargem, outra rua larga e direta, e que
apenas tem casas do lado da cidade e algumas do lado oposto; esta rua em
projeto acaba pelo norte em frente da Matriz, e tem do lado do campo as
duas igrejas, a dos pretos (Rosário) e a dos pardos (Prazeres).
Há mais outro templo na rua principal, que não é pequeno e tem
o frontispício acabado e reparado, com duas torres.
Não entrei nela ainda por estar sempre fechada, no fim há mais uma
pequena capelinha a que chamam nicho, na rua que fica paralela à principal
pelo lado do campo pouco abaixo da casa, antes do fundo da casa em que
moramos. Muitas casas deste lado da rua grande vão com seus quintais até a
frente de detrás onde têm portão, onde não [se] têm ainda feito casas desse
lado. São as casas dotadas de passeios ou calçadas nas frentes, de tijolo, ou
de granito tirado do Areré — estas calçadas são em geral mais altas que a rua,
principalmente no lado do sul, e algumas têm porões mais altos, isto não só pela
falta do nivelamento da rua, como principalmente por causa das enchentes.
Se esta cidade vier ainda a prosperar abrindo-se-lhe ou desobstruindo
assim [a] barra, não será mais difícil dar às casas e ruas uma elevação
conveniente para as pôr a salvo das inundações, pois estas não excedem no
meio das ruas e nas portas mais baixas de 12 palmos. Temos em frente a
casa do boticário Teixeira, levantada de modo que só lhe excedeu palmos e
meio a excessiva enchente de 1842.
Já tive ocasião de falar da gente, mas hoje posso acrescentar mais
alguma coisa. Poucos índios, muitos [f. 43] pretos e mestiços ou pardos
dão ao povo um caráter especial, ou diverso, do que tenho observado em
outros lugares.
Alguma atividade mais, mais turbulentas, mais gênero mercantil e
ao mesmo tempo mais ciganismo. E me parece gente mais dominada pelo
interesse que por sentimentos generosos. Mais recolhimento nas famílias,
e diz-se que há mais moralidade. Não domina aqui o tipo da beleza, a
gente é mais feia. Algumas moças bonitas, claras e coradas tenho visto,
mas no geral, como observamos no teatrinho onde havia mais de 100, e na
família dos Caminhas onde tenho visto reunidas bastantes senhoras, não
são bonitas: há muita semelhança com a gente do nosso Rio de Janeiro.

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Ontem quando passeávamos de tarde, indo à Cacimba do Povo,
passamos por duas cruzes. Uma destas, chamada cruz das Almas, está no
descampado a alguma distância da embocadura da grande rua talvez 200
braças, e num lugar elevado, o que me pareceu ser efeito de aterro. À outra
cruz é em São José, distando daí um quarto de légua.
Vamos à primeira. Quando se fundou, digo, quando se erigiu na vila
Aracati, havia no lugar uma cruz e por isso se deu o nome à vila — de Santa
Cruz do Aracati. Afirmam que esta cruz atual é a mesma desse tempo, que
só foi consertada; mas ontem examinando-a de perto vi-lhe as arestas mui
vivas, O prego que segura o braço ainda bem conservado (este pode ser
novo), enfim a madeira da cruz não me indicou grande velhice; mas em
todo [f. 44] é este o lugar da primeira cruz e a elevação do terreno em que
está, indicando ser artificial, me induz a crer que houve aqui talvez alguma
capelinha.
É verdade [que] essa elevação pode também ser o resultado do atrito
do andar dos homens e de animais, que se não aproximam da cruz. Enfim
aqui é que teve origem a povoação, é lugar mais elevado, menos sujeito à
cheia e aqui perto da cruz é que se levantou pelourinho. À cidade cresce por
baixo, apesar dos inconvenientes das enchentes, pela facilidade do comércio
provavelmente oferecido; o rio [possui] melhores pontos de desembarque
para baixo, sendo provável que nos tempos primitivos chegassem aqui
embarcações maiores do que a que vem hoje.
Agora de tarde conversando com o Teixeira e outros que estavam
presentes sobre a cruz, e [havendo] perguntado eu se esta era a primitiva
da fundação da vila, o Teixeira não soube responder, mas outros asseveram
que sim; mas que havia sido consertada e posta em pé direito há poucos
anos. O Teixeira diz que o terreno mais alto do pé da cruz é devido a um
entrincheiramento que fizeram em roda dela levantando a terra para dentro,
por ocasião de desordens em 1824.
Diz também que o pelourinho antigo estava na praça que fica entre
a cruz e a entrada da rua, e de que ainda existem porções do alicerce. E
dizendo eu que presumi ter tido ali começo a povoação por ser lugar mais
alto e por estarem ali a cruz e o pelourinho, disse o Teixeira que, pelo
contrário, a povoação começou mais embaixo e que a quiseram chamar
para ali, o que se não conseguiu.
Dissera mais que a grande matança do gado antigamente era no
campo que fica para baixo da cidade e que vinham até aqui navios costeiros
trazer gêneros e carregar carnes, couros etc.
[£. 45] Às cinco horas da tarde fui visitar e despedir-me do coadjutor,
que mora em frente e ao lado da Matriz. Estava à janela do sobrado uma
moça que me mandou entrar e fui recebido por uns poucos rapazes, todos,
como ela, vestidos de preto, [que] fizeram-me entrar na sala de jantar;
e dali para um gabinete, onde estavam em roda de uma pequena mesa
alguns rapazes, e um deles sentado à cabeceira da mesa se conserva com o
chapéu na cabeça e dirigindo-lhe algumas palavras, apenas me respondeu
conservando sempre o seu chapéu, dirigi a vista para a janela não olhando
mais para o tal malcriado, que até quando entrou o padre e conversou
comigo se conservou coberto, é uma caricatura de Quáquer. Os outros
se mostraram mais civis tomando-me o chapéu e chegando uma cadeira.
Demorei um pouco. Depois fui para a botica, onde logo se reuniu a roda
costumada, e aí conversamos sobre coisas do país e outros. Algum tempo
depois veio um rapaz a toda a pressa chamando um médico que acudisse a
um sujeito que tinha tido um ataque, levantamos todos para lá ir e o rapaz
foi chamar outros. Chegando a casa, achamos o homem aos gritos e sem
fala, e a mulher aflitíssima; mandamos vir água quente e mostarda para
escalda-pés e no instante chegou o Lagos e logo depois o Pacheco, com
o escalda-pés, cheiros, fricções etc. O homem foi tornando, assim eu saí
logo com o boticário. A casa do doente estava cheia e na rua muita gente
espreitava pelos rótulos.
Fui diretamente até o extremo superior da rua para visitar e despedir-
me do juiz promotor, que o achamos na sala, em mangas de camisa, com
uma menina ao colo, junto com sua senhora. O juiz é filho de Pernambuco
e ela filha do Rio Grande do Norte. Conversamos um pouco e me despedi.
Fui para a casa do juiz municipal, Dr. Aristides, cuja senhora teve há dois
dias um aborto. Estive aí um pouco e me despedi. O juiz é cearense e a
senhora filha do Icó, onde tem seus pais. O doutor manda pôr à nossa
disposição [casarão] [f. 46] que tem vazio em Icó. Fiz as minhas despedidas
e vim para casa. Entrando achei na sala de dentro um mocinho talvez de 12
anos conversando com o Vila Real, o que não dei atenção e fui para a alcova
da sala, despi-me e me pus na rede.

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Porém depois vêm o Lagos e o Vila Real em grandes gargalhadas a
contarem a que tinha vindo aquele menino. É neto do boticário Teixeira,
é órfão de mãe e tem umas irmãs, a mais velha das quais terá 12 para 13
anos. O quintal e fundo das casas em que moram é devassado da salinha,
ou varandinha, que tem a casa em que assistimos, que é do mesmo lado
(são quatro grandes quintais contíguos que daqui se devassam e é neles que
temos visto as senhoras que as habitam, pois na frente são casas térreas e de
rótulos).
O pateta do Vila Real, e M. também se mete na dança, tem o faro de
namorar quanta menina vê e põe-se constantemente na varandinha a fazer
gaiatices para as meninas e a irmã deste rapaz tomou o negócio a sério e não
saiu também do quintal, ou do sobradinho da cozinha de sua casa. O Lagos
e o Reis também se divertiam com as meninas tocando uma cornetinha
de capa quando as viam sem compreenderem, e elas davam muxoxos e
arrenegavam.
Mas vamos ao caso: o tal menino chegou com tal desembaraço ao
Lagos e Vila Real e lhes perguntou que tenção tinham eles a respeito de sua
irmã. O Lagos deu-lhe uma resposta torta, mas o Vila Real entrou a dar
satisfações e depois de muita conversa em que o menino saiu-se, disse-me
que suas irmãs eram umas namoradeiras, safadas; terminou por declarar-se
e propor casamento a Vila Real.
Faço esta história para contar os costumes. Aqui (como na capital)
em se frequentando uma casa com moças, em se cortejando, [f. 47] as
moças entendiam logo que é arranjo de casamento; já o mesmo Vila Real
se achou [num] embaraço em Pacatuba, com uma das filhas de Manoel
Valentim.
É mais para mostrar o desembaraço desta gente. Qual moço de 12
anos (se não menos) teria no Rio o desembaraço deste sujeitinho daqui?
Aqui nos frequentou a casa outro mocinho daqui, de 12 a 14 anos, muito
esperto, amigo da casa, de sorte que o Lagos lhe confiou uma espingarda,
deu-lhe pólvora e chumbo e ele trazia quase todos os dias pássaros mortos;
aqui estava, aqui comia, pois mora do outro lado do rio. Nós gostávamos
dele parecendo-nos sisudo e sincero; pois ao restituir a espingarda trocou-a
dando a sua que é mais inferior. O Lagos conheceu logo a velhacada e lhe
disse que a espingarda não era aquela, eu estava presente, Manoel e outros,

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e ele com ar imperturbável sustenta que era e que podia trazer a sua para
mostrar. O Lagos com pena dele não insistiu: e eu lhe havia dado no dia
anterior 10$ [dez mil-réis] de esmola para a mãe. Que tais amigos?
Ontem, 12 de setembro, saí de tarde a despedir-me do juiz de Direito,
que não o achei, e do escrivão Lobo com quem estive algum tempo.
Conversando lastimou ele a incomunicabilidade das famílias aqui; não sabe
a causa disto, não é como alguns pensam a antipatia política, entre os de
mesmo partido se podiam visitar. Não parece também ser o que pensa o
Teixeira boticário: este diz que a aristocracia, a ares de superioridade que
se dão algumas famílias sobre os outros, é a causa, pensar o povo aqui
mui cioso de sua liberdade. Diz Sr. Lobo que todos os chefes de família
lastimam isso, mas nenhum se anima a opor-se a esse costume; as próprias
famílias, irmãos e [f. 48] vizinhos custam muito a visitar-se. Aqui certas
pessoas, se propensas a arranjar uma sociedade de baile, obtiveram a sala da
Câmara Municipal, preparam-na conforme trastes fazendo-lhes acomodar
conveniente. Ajuntar a primeira reunião — compraram-se refrescos, doces,
chá etc. e todos fizeram as cartas de convite que se distribuíram pelas
famílias.
Mas foi grande o desapontamento que no dia só se apresentaram
cinco senhoras!!
Discutiram reunir ainda uma vez só os homens para fazer o enterro,
comendo os restos dos doces etc. etc., e acabou-se a sociedade.
Diz ele que seu avô lhes contava que em seu tempo se reuniam as
famílias para passarem juntas ora numa ou noutra casa, no campo, os dias
santos, os domingos ea festa, mas que quando ele se entendeu já a coisa era
como agora.
Despedi-me dele e vim para a botica onde estive algum tempo,
conversando na roda costumada, e esteve também aí o Lagos. Fomos para
a casa às oito horas.
14 de setembro: Logo de manhã se nos apresenta aqui uma parda cativa
de outra filha do boticário e casada, e mora aqui perto de nós: esta mulher é
uma fera; surra por prazer, martiriza as escravas, parece que já matou uma com
martírios (a irmã falecida). A mãe da mocinha de quem há pouco falamos era
outra fera, essa queimava as escravas metendo-lhes tições acesos pelo rosto e

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pelo corpo; isto tem já provado cenas desagradáveis, mas não há emenda. Já na
capital havia outra destas feras que martirizou uma negrinha, no quintal, para
o qual botava o fundo da casa em que morávamos, parecia que metia na boca
da rapariga uma mordaça e dava-lhe pancadas todos os dias à hora certa; era
uma festa em casa, vindo os filhos pequenos, meninos e meninas, rodearam a
padecente, darem-lhe também pancadas.
[£. 49] Esta cena durava tempo, as pancadas eram compassadas e
intermediadas de ralhos da fera e de risadas das crianças. Isto me incomodou
sobremaneira, porque do meu quarto se ouviam as pancadas, gritos e
risadas, e os gemidos da paciente: muitas vezes descia para sala, outras tinha
vontade de avisar a polícia, mas não o fazia por não ter a certeza de que
haveria castigo (alguma coisa haveria depois).
Mas vamos ao caso de hoje. Logo muito cedo o Lagos, que mora no
sótão, ouviu pancadas e gritos (isto é todos os dias e em várias horas), abriu
a janela e gritou: “Basta!”. A fera furiosa olhou para [ele] e diz: “Quem diabo
fala aí?”. “Diabo é ela”, respondeu o Lagos; “mulher bárbara”. “Mas que se
importa vocêl??, “Importo-me muito, isso é uma desumanidade; se fosse na
minha terra você estava na cadeia”. “Não estou paritica [sic]”, disse ela e
retirou-se. À escrava ouvindo isto saiu pelo quintal e veio lançar-se a nossos
pés para que a comprássemos, pois sua senhora a matava de pancadas. Era
uma pobre parda, tinha o corpo cheio de feridas e contusões, a cabeça com
brecha e sinais antigos, vestida com roupa suja, era uma miséria! O Lagos
quis primeiro mandá-la apresentar ao juiz municipal; mas resolveu melhor
em ir ao Teixeira, pai dessa mulher, expor-lhe o caso. O Teixeira lá foi a casa,
ralhou com a filha e prometendo pôr cobro naquilo, visto que o marido o
não fazia. Parece que ele lhe vai também ao velho.
Depois nos veio aqui um dos sócios do Teatrinho União, com um
papel pedindo o nosso parecer sobre a moralidade das peças representadas,
que haviam sido censuradas, o [palavra ilegível], dizia ele, nO Aracati de
hoje.
[f. 50] Havia com efeito um artigo nesse jornal censurando algumas
coisas e notando algumas partes, ou ditos pouco decentes, e outros defeitos,
mas não havia nada de ofensa, é uma boa advertência. Dissemos que nós
não nos metfamos naquele negócio, estando aqui de passagem, que podiam
responder ao jornal em nome do administrador do Teatro. Mas o homem

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estava agastado e dizia que o não achou quem atestasse ao contrário daquele,
ia para tratar de desmanchar o Teatro; procuramos acalmá-lo. Já então
estava também aqui o Sr. Aristides e o Lagos, que aconselhou o homem que
não fizesse tal coisa etc. etc.
De tarde fui fazer as minhas últimas despedidas ao boticário, juiz
municipal e Pacheco.

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Viagem do Aracati ao Icó
15 de setembro a 6 de outubro de 1859
[1-28,8,4]

[£. 51)

Viagem de Aracati ao Icó

Quinta-feira, 15 de setembro: Pelas quatro horas da tarde saímos do


Aracati. Éramos eu, Lagos, Manoel, Vila Real e Reis e fizeram-nos a honra
de acompanhar, ou de impor-nos, como aqui dizem, até uma légua fora da
cidade os Srs. Dr. Aristides (juiz municipal), o Dr. Pacheco (médico) e o
Bento Colares.
A nossa bagagem, ou comboio (como cá chamam), tinha partido de
manhã. Fizemos a primeira légua depressa e os nossos amigos se despediram.
Pelas seis horas da tarde, quase anoitecendo, passamos o Jaguaribe no lugar
chamado Passagem das Pedras, o rio tem aí largura talvez de 100 braças e se
acha apertado por ribanceiras de algumas braças de altura, que só as excede
nas grandes enchentes. Agora tem só água salgada e terá talvez 20 braças
com três palmos de maior fundo; e corre aqui por um pedregulho, duma
espécie de granito folhoso, com faturas de arestas vivas, mas no fundo do
rio está quebrado pela passagem principalmente de carros, formando seixos
arredondados. A pouca distância da ribeira oposta está um pouso chamado
Passagem, tem um rancho ignóbil, cuja melhor parte, que é fechada e de
parede caiada, ocupa agora o padre Pinheiro, que é capelão de uma pequena
capelinha que aí existe e que agora está aí com a família (mãe e irmão).
Além do rancho há mais algumas habitações soltas e que ocupam uma área
espaçosa; enfim a sobredita capelinha, que tem só feita a capela-mor, que
é um quartinho onde apenas cabe um pequeno e sofrível altar, e na parede

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encravado um nichozinho de Santa Ana. Fora há um pequeno alpendre
coberto de folhas, [f. 52] quando lá fui havia uma meia dúzia de mulheres,
envoltas em /ençóis, uma das quais se estava confessando. O capelão nos
obsequiou muito quando íamos cear no terreiro porque a pequena tasca do
rancho estava cheia de gente e muito quente. Ele mandou pôr uma mesa,
ofereceu-nos a sua louça e uma vela de estearina, para não termos o trabalho
de desarranjar as nossas malas, ceou conosco ao luar; as senhoras ficaram
dentro de casa.
De manhã almoçamos e partimos porém antes das oito horas; o sol
era já bem quente e o calor era moderado pelo vento sueste que soprava,
às vezes com bem força, e nos incomodava com a poeira que levantava;
caminhávamos sempre dentro do vale do Jaguaribe, plano como um
terreiro, largo a não se verem os limites, coberto todo de carnaúbas, ora
juntas ora dispersas, e por baixo a relva e pequeno mato: estava tudo
queimado; e dominava neste pasto uma Amaranthacea achivarilla já sem
folhas, mas com os talos avermelhados e capítulos brancos; dizem que o
gado come esta planta e o meu cavalo, que não havia comido de noite, com
outros, que são inteiros, gostava dela. Há de espaço a espaço grandes lagoas
que ainda não secaram.
Andamos talvez umas duas e meia léguas, e de tempos em tempos
passávamos algumas palhoças, com seus cercados, algumas vezes mais
unidos, outros mui dispersos. Em roda delas pastava algum gado e fatos de
cabras, são habitadas por vaqueiros, ou pescadores da ribeira do Jaguaribe,
que fazem alguma plantação no que chamam vazantes, ou roças (plantação
de mandioca) daí a duas e três léguas, nas matas. Em uma dessas casas,
que tinha melhor aparência, vimos algumas pessoas nas portas a olhar para
[f. 53] nós, então ia eu só, com o Bordalo, caçador do Lagos, e o meu
ordenança (porque o Lagos e Reis se haviam adiantado e Manoel, com o
seu criado, eu o tinha deixado atrás vendo uma mulher doente); e como
hesitávamos no caminho que havíamos de tomar e desejávamos saber o
nome de uma povoação, que nos parece grande, com igreja, foi o ordenança
a esta casa, cujo dono informando-se de quem eu era dirigiu-se para mim
e eu o fui encontrar.
Era um irmão do Sr. Caminha do Aracati, que eu aí o tinha visto,
em casa do irmão, e que me tinha convidado [para] passar pouso em sua

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casa e de que já não me lembrava. Desculpei-me que havíamos mudado o
plano de viagem e que por isso já não podíamos aproveitar o seu obséquio.
Disse-nos que o poço que avistamos era o Jiqui e nos ensinou o caminho
e lugar de passar o Jaguaribe. Agradecemos a boa honra e seguimos, mas
passando por perto de outra casa onde víamos muitas pessoas juntas na
varanda, e sentadas ou encostadas em um carro, nos chegamos para nos
indicarem ainda o verdadeiro caminho, porque andávamos por um campo.
Esta boa gente insistiu para que nos apeássemos e passássemos a força do
sol, que na realidade está soberbo (eram 11 horas mais ou menos), e como
nos disseram que havia uma mulher doente me apeei, depois de questioná-
los se tinham visto passar outros cavaleiros, isto é, o Lagos e Reis, que
se adiantaram. Disseram-me que passaram de manhã cedo três cavaleiros,
mas que disseram supor ser o juiz municipal. Com efeito era ele, que na
véspera nos havia dito que ia à Catinga do Góes a fazer um inventário e
que lá nos encontraríamos. Apeado me fizeram entrar para a sala da casa
cujo pavimento era de terra, o teto de telha vá [f. 54] e toda a madeira de
carnaúba. Pobre choupana, ofereceram a rede onde me sentei e, enquanto
esperava pela doente, conversamos sobre várias coisas; eram uns cinco ou
seis homens, como poucos, vaqueiros, mas boa gente e muito tratáveis,
conversando bem: não eram passados cinco minutos pediu-me o dono que
entrasse para outra salinha de dentro, onde achei uma mesa posta com
toalha limpa e louça de pó de pedra azul, um prato de peixe frito e outro de
fatias de queijo, um prato de farinha bem alva e um bule cheio de excelente
café com leite. Tomei só uma xícara de café com uma fatia de queijo; o
Bordalo fez o mesmo. Enfim apareceu a doente e me fizeram entrar para [a]
sala mais interna onde estavam as mulheres, velhas, mocetonas e raparigas.
Depois de receitar e gracejar com elas me despedi desta excelente gente, que
ainda nos mandara uns meninas a ensinar a passagem do rio. Perguntando-
lhes eu se o rio nas enchentes chegou à sua casa, responderam que em 39
havia chegado à verga da janela e em 42 à travessa de carnaúba, que me
mostraram, isto é, chegou ao telhado. Nessas ocasiões todas os habitantes
desta vila abandonam suas moradas e vão procurar lugar alto, onde o rio
não chega.
Passei o Jaguaribe, [que] ainda corre; e tinha dois palmos no mais
fundo e de largura umas dez braças. Aqui vi pela primeira vez o que chamam

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vazantes, são as coroas margens do rio que se vão descobrindo e deixavam
barros, ou tabuleiros, da areia como aqui; ou [f. 55] de chão barrento (estas
dizem que são as melhores). As que aqui vi eram em forma de canteiros,
mais ou menos largos e plantados com simetria e de uma aparência agradável
saindo muito o verde viçoso dos feijões e batatas sobre a areia alva, era dum
lado e do outro do rio havendo de ambos bons lenços de areia enxuta. É
admirável o vigor destas plantas que principalmente são melões, melancias,
abóboras ou jerimuns, feijões, batatas, cebolas etc. Algumas vezes toda essa
bela vegetação é destruída por enchentes imprevistas. Todas as ribeiras do
Aracati oferecem estas vazantes, principalmente onde não chega a maré que
entra por ele dentro sete léguas. No lugar onde estamos já ela não chega. O
vale do Jaguaribe tem de largura por onde temos andado, e pelo que posso
conjeturar, uma, uma é meia e duas léguas, e tudo fica embaixo d'água nas
grandes enchentes, dando vau ou nado e na extensão por ela acima.
O chão raso e igual é duma terra, ou barro de louça, escura e rachada
e fica todo grotado, como agora, quando seca. Há lugares um pouco mais
elevados nos quais é mais arenoso e não se finda. Desde que saímos do
Aracati andamos nele. No inverno as viagens são penosas, porque ou está
tudo coberto d'água, o qual se demora de um a cinco ou seis dias, ficando
somente as baixas, lagoas ou córregos cheios, e que muitas vezes dão nado,
ou enxugando ficam lamas e atoleiros.
O lugar onde passamos o rio se chama Caiçara, [f. 56] onde o
leito do rio deve ter de margem a margem suas 20 braças. Passado ele nos
achamos entre duas cercas com um corredor de algumas braças de largura;
o terreno é já mais alto e coberto de mata. Andamos talvez um quarto de
légua e entramos na povoação de Jiqui, que de longe vistos os telhados e
grimpas da igreja nos parece bonita, mas não o é: uma pequena igreja, uma
grande praça coberta de mato quadrada, do qual dois lados tinham filas
de casas térreas pequeninas e de má aparência, são de telha, caiadas e com
suas calçadas de tijolo na frente; mas tudo irregular, umas novas, outras
arruinadas; no terceiro lado, esquerdo à igreja, há algumas casas. Chegados
metemos os cavalos em um telheiro, ou casa aberta, e nos dirigimos para
uma onde já se achavam os outros companheiros que tinham passado por
caminho mais curto, sem dar a volta, mas passaram o rio em canoa. O
Reis estava desenhando a igreja. Entrei na casa em que estava, era uma

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casinha de negócio, como um armarinho, por fora do balcão apenas admite
três cadeiras; o dono era um rapaz bem-parecido e cortês, deu-nos genebra
e água sofrível, obsequiosamente; a mulher estava numa sala ao lado do
armarinho, trabalhando, e como a porta que dá para a loja estava aberta,
estava a nossa vista; e nos mostrou um lenço de labirinto ainda no seu
bastidor perfeitamente trabalhado e de bonito desenho, e o que admirava
era estar claro, como se fosse lavado, não estava ainda concluído; o preço
era de 16$ [dezesseis mil-réis] e na cidade e em Aracati lenços como aquele
valem ou vendem por 30 e 40$ [trinta e quarenta mil-réis]. Tendo o Reis
concluído o desenho e Lagos tomado algumas notas, nos despedimos e
antes perguntei ao moço se nas enchentes chegou ali o rio. Disse-nos que
em 1842 chegou a umas casas de palha que estavam no fim da rua. À
povoação está assentada acima do vale [f. 57] do rio e no tabuleiro que
borda o Jaguaribe do lado direito. Montamos a cavalo era quase meio-dia
e seguimos para a Catinga do Góes, passamos de novo o rio na Caiçara e
entramos no seu vale e andando por ele pelo tempo duma hora mais ou
menos, com sol forte e muita poeira, chegamos à povoação da Catinga do
Góes.
Antes de entrarmos nela passamos por um terreno coberto de árvores
de pau-branco e um sujeito que nos acompanhou disse-nos que era resto da
caatinga que deu nome ao lugar.
Quando nós apeamos, isto é, eu, porque os outros se haviam
adiantado, me veio receber o Dr. Aristides e o outro Dr. juiz promotor, que
ambos vindo essa manhã de Aracati nos fizeram entrar para a casa do padre
que é aqui o capelão; e sentamo-nos em uma rede; estavam presentes mais
várias pessoas e outros foram chegando depois. Aí nos demoramos obra de
três quartos de hora e fomos para a casa imediata, que pertence ao mesmo
padre e que se comunica com a dele pela cozinha; já alguns dos nossos —
Manoel, Reis e Vila Real — estavam comendo.
À casinha muito pequena com frente ao poente, atravessada de malas
e mil outras coisas, atravessada por algumas redes, era muito incômoda
e de um calor insuportável. A água de beber muito ruim, leitosa. Logo
que pudemos fizemos a barba, nos vestimos e fomos sentar-nos do lado
oposto, à sombra das casas, onde já se achava o padre e os dois juízes e mais
alguns vizinhos, e aí corria fresco e bebemos água que nos mandou dar uma

78
senhora em frente de cuja casa estávamos, mais fresca e menos leitosa que
o que tínhamos em casa. Juntos todos ali se conversava em várias coisas e o
Lagos se divertiu bastante com um gorducho, pobre homem e que se mete
a engraçado, o Sr. Felipe de tal, baixo, gordo, de 57 anos. Ao anoitecer
nos recolhemos, tendo antes disso ido os dois magistrados assistir a um
inventário, creio eu.
[f. 58] Ceamos cedo. O Lagos, segundo seu costume, foi passear com
o Reis, eu fiquei em minha rede, chegaram os doutores e tendo já voltado
o Lagos e Reis aí se conversou um pouco; aquietou-se a casa seriam dez
horas, já então eu me achava um pouco incomodado, doía o ventre e sentia
algum enjoo, procurei disfarçar balançando-me na rede; mas entre 11 e
meia-noite, quando mais esperava senti de súbito necessidade de evacuar —
saltei da rede e saí para a praça, mas vendo ainda algumas pessoas sentadas
à porta de suas casas, retirei-me e dirigia-me para o quintal; mas no meio
do corredor e em frente da porta que dava para o quarto onde dormiam
Manoel e Vila Real, não me pude mais conter, abaixei-me e fiz um despejo
horroroso, tanto por baixo como por cima com ânsias, com um sentimento
de desfalecimento, angústias de vomitar, copioso suor e por um momento
tive uma síncope que foi instantânea, mas que eu senti a interrupção do
sentimento saindo como de um sonho, mas tendo a cabeça encostada não
caí. As bacias de banho entravam e saíam, bebia de vez em quando goles de
aguardente, até que enfim tudo se calmara pela uma hora da noite, e dormi.
Nunca tive uma indigestão tão violenta e que eu atribuo em grande parte
à água má, que bebi.
De manhã acordei moído e com pouca disposição de fazer viagem,
mas ao mesmo tempo desejava sair daquele lugar e me resolvi a fazê-lo:
mandei buscar uma meia garrafa de cidra que bebi e me fez bem. Esta
povoação é bastante, pois a igreja é de 1752, mandada fazer por uma senhora
que se presume ser a viúva do Góes, primeiro fazendeiro daquele lugar. O
padre Teles diz Catinga dos Góes, é possível que fossem dois irmãos. É uma
pequena capela, que hoje faz a capela-mor do corpo projetado que ficou só
nas paredes até altar de cimalha. Consta a povoação de duas filas de casas,
de telha, térreas (há uma de sobrado) e pela maior parte insignificantes; o
terreno é raso e sujeito às enchentes: [f. 59] a de 1842 entrou na igreja e
subiu a três palmos.

79
Uma coisa notável é que neste lugar não há mosquito de qualidade
alguma, alguma barata e não vi ratos.
O Lagos e Reis saíram primeiro, tendo de ir por diverso caminho
para examinar e desenhar certas pedras que estão perto de Russas, notáveis
pela sua posição e pelas figuras que têm pintadas, de tinta encarnada e que
são provavelmente do tempo dos índios. Eu, Manoel e Vila Real saímos
depois, tendo apenas todos nós tomado uns poucos golinhos de café
simples. O sol era famoso e marchávamos pelo vale do Jaguaribe e pelo
espaço de cinco léguas. Pelas duas léguas e meia primeiras era a vegetação
quase a mesma que notei atrás: carnaúbas quase únicas e o mesmo pasto
queimado e algumas lagoas e casas raríssimas, pouco gado exceto cabras, de
que vimos bastantes, mas logo depois notamos quase abruptamente uma
grande mudança: por entre as carnaubeiras, que começavam a ser mais raras,
apareciam muitas árvores copadas, verdes e quase todas com flores, eram:
caraúbas, begoniáceas mui semelhantes aos nossos ipês-do-campo, as quais
estavam bem floridas, não tinham folhas e as flores são de um belo amarelo;
mulungus, cuja copa tem um aspecto particular — é piramidal — e os ramos
horizontais [se] formam com camadas paralelas (alguns sem folhas), cobertas
de magníficos cachos de flores encarnadas; paus-brancos, estavam todos
com frutos secos e já quase todos com folhas murchas ou secas; [palavra
ilegível], alguns com frutos passados e não tinham flores, que colhi. Vi um
frei-jorge sem flor nem fruta; [f. 60) oiticicas muitas e grandes, carregadas
de flor; quixabas (Bumelia), árvores copadas, espinhosas, com flor; feijão-
branco (caparidácea) sem flor nem fruta; pajaús bastantes com flor e fruta;
marizeiras muitas sem flor nem fruta; mutambas, grandes, copadas, com
fruta ainda verde, mas já andavam as jandaias ou tiribas comendo-as. Não vi
uma só jaramataia (Vitex), que são numerosas logo passando a Caiçara para
Jiqui. Chegamos a Russas às onze horas da manhá com muito sol. O braço
ou afluente do Jaguaribe que passa perto da vila está de todo seco; chama-se
riacho de Russas. Chegou depois o nosso comboio e o Lagos e Reis, tendo
feito os desenhos das pedras. Russas é uma alegre povoação assentada no
vale do Jaguaribe, mas em ponto elevado de sorte que nem o rio a cobre;
na grande cheia de 1842 a enchente tocou algumas casas nas extremas mais
baixas das ruas. As matas ou tabuleiros que rodeiam este sítio são planos e
rasos, de modo a formar um horizonte oceânico. A igreja está no meio da

80
grande praça quadrilátera; as casas, dispostas em duas filas laterais e uma
na frente, são pela maior parte térreas, mas têm alguns bonitos sobrados.
O lugar é muito quente, bem que ainda lavado de ventos. Há aqui poucas
moscas e menos mosquitos, ainda não vi ratos, baratas poucas. À carne é
muito boa, os ovos a dois por vintém, leite de vaca já não há, mas o de cabra
vendem a 12 vinténs a garrafa; há algum peixe do rio: mantês-pessim [sic] é
cara; pão menos mau; água, bem que um pouco leitosa, não é das piores. Eu
tenho bebido principalmente cidra [f. 61] por causa de um incômodo. Não
há hortaliças, não há fruta de qualidade alguma, apenas laranjas mui verdes;
não há capim verde para os cavalos, os jerimuns vêm de longe. A gente nos
parece boa, pacífica, conversável. De ordinário são trigueiras, pela maior
parte pardas, cabras e negras; há pouca gente de raça americana; tenho visto
algumas carinhas bonitas. Parece que se dão todas não havendo divisões de
famílias, nem em política. Agricultura aqui é quase nula, apenas plantas pelas
vazantes do Jaguaribe, melões, melancias, jerimuns, feijão, batatas, pouco
milho e cana. À indústria é de criação e de cera de carnaúba. Enquanto não
chegou o Lagos, que trazia uma carta para um sujeito daqui, apeei-me à porta
dum moço que me ofereceu a sua sala e casa, onde estivemos algum tempo e
bebeu-se umas três garrafinhas de cidra. Chegado o Lagos fomos para a casa
que nos indicou, ou alugou, o sujeito de que falei; estava desocupada, varreu-
se à pressa e nos metemos dentro. À noite nos veio visitar o juiz municipal, o
padre capelão ou vigário depois; e mais várias pessoas.
Domingo, 18 de setembro: Nos vestimos e fomos todos à missa,
pelas dez horas. A igreja não é pequena, tem três naves, com duas ordens
de colunas cilíndricas, baixas e de um gripim enorme (é no gosto da Matriz
da capital), mas ainda não estão concluídas, as naves laterais estão ainda em
terra e o barrotamento do soalho superior é de carnaúbas e provavelmente
ladrilhado por cima; a capela-mor tem seu trono e retábulo com ornatos [f.
62] de bom gosto e dourados — sobre fundo azul-claro —, mas tudo se acha
um pouco deteriorado. Os morcegos voavam a cada instante por dentro da
capela-mor e em roda do trono, enquanto se dizia a missa. O ponto de vista
que oferecia a igreja era curioso: as mulheres enchiam.o corpo da igreja e
todas elas (com exceção de três a quatro) estavam envoltas em toalhas mui
limpas postas sobre a cabeça, o que dava à igreja um aspecto particular. As
que não trajavam deste modo não privavam em gosto, nem quanto ao modo
de vestir-se nem quanto às cores dos vestidos. Os homens ocupavam o lugar

81
das grades para dentro, e a gente ínfima ficou à porta da igreja ou por baixo
do coro. Não saí mais nesse dia, por não estar ainda bem-disposto.
De noite dez para onze horas foi visto um grande meteoro a
nordeste que deu um grande clarão e arrebentou produzindo um som
como de trovoada. Já em março, estando nós na capital e ao almoço, se
ouviu um estrondo, que pensamos ser da peça e sinal de vapor entrado;
em várias partes se ouviu o estrondo e cada um dava a explicar que lhe
parecia, mas parece que em alguma parte se viu o meteoro.
Segunda-feira, 14: De manhã estive estudando e desenhando
algumas plantas. De tarde, depois de entrado o sol, fui com o Lagos e
Reis visitar o juiz municipal e o padre Lino, que não estavam em casa,
daí fomos para a casa do dono da casa em que estamos, aí achamos uns
poucos sentados fora na calçada e a porta aberta; um destes era o juiz
municipal.
Aí conversando em várias coisas.
Disseram que o vale do Jaguaribe tem de largura em alguns lugares
cinco e seis léguas; que os carnaubais chegavam até a fralda da serra do
Apodi; [f. 63] e que se estendia ainda daqui para cima umas poucas de
léguas, creio que disseram 17. Que a freguesia das Russas dá de cera de
carnaúba 30 mil arrobas por ano, que se exportam, não contando a do
consumo; sobre a colheita da cera disseram que só os olhos fechados é que
davam boa cera e que os abertos, se a davam, era escura e de má qualidade.
Que eram necessários dois milheiros de olhos para dar uma arroba.
Que se faziam vários cortes, um em cada mês: que o primeiro podia dar
até 16, 0 segundo mês e terceiro ainda menos, mas que os últimos é que
davam maior quantidade dela; que se no primeiro corte eram necessários
dois milheiros, no último um milheiro de olhos dava uma arroba; que as
carnaúbas de lugares úmidos davam menos, porque há grande viço e os
olhos abriam logo.
Depois das sete horas viemos para casa, acompanhando-nos o juiz
municipal, porque havíamos dado essa hora a um moço músico daqui que
pediu-nos licença para dar-nos uma serenata. Com efeito pouco tempo
depois apareceu com outros sujeitos, com uma clarineta e um violão:
com o violão cantava modinhas e alternadamente tocava na clarineta,
acompanhando-o outro no violão. Isso por tempo de quase uma hora. Este
moço não toca mal a clarineta e toca vários outros instrumentos de sopro;

82
o seu canto não é muito agradável por ter a voz um pouco [f. 64] e dum
metal não muito são; mas não deixa de ter gosto e estilo, que segundo me
informou é o estilo do sertão e no qual cantavam em Pacatuba os filhos
do Valente, que são do Aracati. Esteve aqui também agora um moço, Dr.
Tertuliano, que disse que o padre Teles de Meneses foi capelão de seu avô-
pai na sua fazenda, mas não tive ocasião ou curiosidade de indagar onde
era a fazenda.
Terça, 20 de setembro: De manhã ocupei-me estudando algumas
flores ou plantas. Ao jantar pela primeira vez comi carne excelente, mui
gorda, mesmo demasiadamente gorda, e saborosa; todavia, à parte a gordura
tão saborosa, como esta já tenho comido no Rio, o que os nossos cearenses
não concedem. Desde que cheguei a esta província, e por todos os lugares
por onde tenho andado, nem pude saber em que consistia a supremacia da
carne do Ceará. O dia foi muito quente. Às ave-marias saí a fazer algumas
visitas e estive na casa do juiz municipal, que como o presidente da Câmara
Municipal e outro sujeito jogavam o voltarete. Estive ali algum tempo e
recolhi-me.
Quarta-feira, 21: Ocupei-me com o estudo de várias plantas.
Não vamos hoje para diante porque o Lagos tem uma pescaria vista
para hoje de tarde.
De tarde fui me despedir das pessoas que nos hontavam visitando-nos
(e a ninguém achei em casa). Voltara da pescaria o Lagos e várias pessoas da
terra que o acompanharam eram mais de oito horas; não acharam nada de
valor científico.
Quinta-feira de manhã partimos seriam sete horas e meia e nos
acompanhou os Sr. Dr. Guimarães [f. 65] até uma meia légua. Logo
adiante, antes de passarmos o Jaguaribe, o Lagos e Reis se separaram e
tomaram outro caminho, eu acompanhado pelo meu ordenança Anastácio
segui passando o leito do rio em seco (Manoel e Vila Real ficaram atrás com
o comboio). O Jaguaribe aqui tem entre as suas ribeiras, que são escarpadas,
mais de 20 braças de largura. Havia bem no meio um cercado de talos de
carnaúba, para uma plantação de feijão, plantação que chamam vazante:
consiste em covinhas levantando a areia, até achar umidade, e lançar aí uma
porção de estrume, que eram excrementos de cabra. Passado o rio chegamos
a uma choupana, que fica à borda, e nos informamos se nas cheias o

83
Jaguaribe cobre a vargem; apareceram-me uma mocinha clara, rosada, com
um menino nos braços, e mui desembaraçada, que respondia as minhas
perguntas, até que chegou uma mulher idosa, com quem conversei. Em 42
o rio excedeu a sua margem naquele lugar a grande altura. Andamos sempre
pela ribeira ou vargem do Jaguaribe coberto de carnaúbas e árvores soltas de
várias naturezas magníficas e esparsadas.
Oiticicas, mulungus, carnaúbas, paus-brancos, juremas, mutambas,
espinhos-de-judeu (animácea das bagens rubras que vimos no Cumbe)
etc. etc. Havia em todo este espaço muitos pássaros: cardeais, canários,
vira-bostas, taribas [tarubas], vários cantos de pombas — e entre estas
bandas de muitas centenas de pombos de bando, que são do tamanho
das nossas juritis pequenas. Cobriam as árvores de modo que, estando
elas secas, ficavam como folhadas de pássaros. O Lagos apeou-se em uma
ocasião e [se] aproximando começou a voar o bando e ele, antes que
desaparecessem todos, atirou de longe e caíram quatro. Eu cheguei ao
Limoeiro, tendo dado uma volta, por erro, era talvez meio-dia. E fomos
hospedados pelo padre Fulano de tal Bessa, que já estava prevenido;
deu-nos excelente jantar (que para mim foi almoço) de capotes (assim
chamam aqui as galinhas-d'angola) [f. 66] e excelente água de que me
não fartava; e é água apanhada em poços, ou cacimbas, ou covas feitas
no leito arenoso do Jaguaribe, que passa a uns 200 passos da povoação,
onde o fomos ver; tem ainda alguns poços, mas esses só servem para
bebedouro dos animais e outros serviços. Cavando-se na areia dois
palmos se obtém uma água cristalina, fresca e saborosa, principalmente
deixando-a repousar de um dia para o outro. Água como eu só bebia em
Pacatuba ou em Monguba.
Às cinco horas mais ou menos chegaram o Lagos e Reis, Manoel e
Vila Real — esbaforidos e esganados de fome, estavam com uma xícara de
café desde manhã. O Lagos estava danado. Só comeram às sete horas da
noite, outro capote assado que mandou o padre Bessa, que tinha ficado de
nosso jantar.
Limoeiro é uma povoação nova junto à margem direita do Jaguaribe,
que em 42 a alagou, tem 40 casas de telha, com 140 a 150 habitantes, e
em roda nas palhoças haverá ainda uns 100 habitantes; de escravos talvez
haverá 20. A igreja é boa e nova, não concluída ainda; porém feita de maus

84
materiais, está já arruinada, e o padre a tenciona consertar e acabar. O Reis
a desenhou. Há gente branca na povoação e notei já de meio do caminho
em diante nas choupanas muita gente e meninos brancos, alvos, corados,
loiros. Daqui se avista a serra do Apodi e o serrote pedregoso da Jurema.
Nós nos acomodamos em uma casa que o padre Bessa nos destinou, com
cômodos sofríveis.
A indústria deste lugar é a fábrica de cera de carnaúba e criação de
gado; plantam alguma coisa nas vazantes, mas não achamos nem fruta,
nem verde para os nossos cavalos, nem hortaliças. À fruta da oiticica que
abunda nestes lugares dá um bonito óleo, mas de mau cheiro, vale a pena
procurar meios de o purificar. [f. 67] Às cinco horas da tarde (tendo o
Lagos e Reis ido a um lugar onde contavam haver uns ossos tirados do
sítio do Jatobá, e com tenção de virem dormir no Limoeiro) eu, Manoel
e Vila Real partimos para o Tabuleiro d'Areia (tendo seguido antes —
às quatro horas — o comboio). O padre Bessa honrou-nos com a sua
companhia até o Riacho d'Areia. Anoitecendo, nós antes de chegarmos à
povoação andamos perdidos todos e só lá chegamos quase às oito horas.
Achamos já a nossa bagagem arranjada em uma excelente casa com que
nos tinha preparado o capitão Silva Maia, com quem fomos logo ter e
com ele conversamos um pouco.
Sábado, 24: Aqui nos vieram visitar os Srs. capitão Maia e o padre
Manoel, com os quais conversamos por algum tempo e nos deram muitas
notícias, principalmente o padre, que é muito curioso; antes disso, tendo
ido ver a igreja de manhã, assistimos à missa. À igreja, com as cerimônias
que se lhe têm feito, é um excelente templo para este lugar: a sua frente é
nova, de gosto moderno, e não deixa de ter elegância; o corpo da igreja tem
corredores laterais e é espaçosa; tem também corredores e coro. À capela-
mor é pequena e foi uma capelinha antiga, o seu retábulo tem esculturas
de bom desenho, dourados, sobre azul — o frontal do altar é de tábua, mas
pintado fingindo muito bom damasco branco com galões e franjas de ouro.
Tem mais três altares laterais: do Rosário, do Senhor dos Passos, que é uma
imagem grande e boa, e da Conceição. Tem a igreja uma torre alta, ao lado
esquerdo — senti depois que o padre, vendo a nossa demora ao chegar de
noite, tendo já um tempo chegado a bagagem, mandou tocar o sino da
torre, como para fazer o rebate, para nos apear; eu não ouvi o toque, nem o
meu ordenança, Manoel diz que ouviu umas três badaladas.

85
O padre, que tem 58 anos, é dum excelente caráter jovial, generoso e
me parece sincero; de bons sentimentos, animado [f. 68] e [de] sentimentos
benévolos e amigáveis para com seus fregueses, religioso sem superstição,
tem cooperado muito para o melhoramento do templo, para festas e para
tudo o que é um favor de localidade. Ele é filho de Russas cujo avô foi ali
fazendeiro e era ou tinha a mania de criar éguas russas, o que parece deu
nome àquele lugar. Diz ele que em 1807, tendo ele cinco anos e estando no
quintal folgando com os moleques, sentiu o tremor de terra e que, correndo
para dentro de casa, achara seus pais de joelhos diante do oratório, e diz
que algumas pessoas dali afirmaram ter visto a Matriz vacilar (o que não é
provável). Em 44 se sentiu outro ligeiro tremor, aqui no Tabuleiro e outros
lugares.
Povos destes lugares há já, desde Aracati para cá, muita gente
branca e alva, parece-me gente de boa índole, de caráter firme e de espírito
bastante inteligente. As mulheres mais recatadas, mas parece que são assaz
moralizadas. Os sacerdotes que tenho visto depois de Aracati me têm
parecido muito diferentes dos da capital e outros lugares respeitáveis, de
costumes honestos, ou ao menos não escandalosos. O que muito distingue
esta gente é a confraternidade entre todos; o que o furor da política tem
cessado, e nada se parece com o que há em Aracati e que eles muito
censuram. Há mais espírito religioso, veem-se por aqui templos muito
superiores às circunstâncias dos lugares e às posses dos habitantes, não é
como em Pacatuba e outros lugares onde são verdadeiros sândalos as igrejas.
Por todos a perto temos sido muito bem recebidos e agasalhados. Há aqui
no Tabuleiro muito boa carne, excelente pão, a água é leitosa e ruim; eu
tenho bebido cidra, que por felicidade se tem achado em todos os lugares;
não há [f. 69] fruta, nem verduras, nem leite. O ar é muito quente, o vento
é também quente; mas é assim mesmo um grande refrigério.
Tabuleiro está numa assentada alta e domina todos os lugares em
roda, que é tudo raso. O Jaguaribe lhe passa a ocidente a uns três quartos
de légua e ao oriente passa um braço dele chamado Quixerê e que na volta
pelas abas do Apodi se alarga e forma uma grande e comprida lagoa a que
dão o nome de Salinas, talvez por ter em alguns lugares semelhança com
as salinas. Daqui do pantanal da casa em que estamos se vê ao oriente
a serra do Apodi, que estará na distância de pouco mais de légua, cuja

86
chapada tem, o que nos informaram, neste lugar 16 léguas de largo,
ficando a divisa entre as províncias de Rio Grande e Ceará na distância de
oito léguas daqui. Pela fralda do Apodi corre o Quixerê, ou Salinas, que
está cheio d'água. De Salinas até a subida do Tabuleiro é uma vargem rasa
com carnaúbas, de largura de duas léguas e com algumas casas de vivenda.
A ladeira do Apodi parece daqui não ter mais dum oitavo de légua; não
é igual, tem grutas sucessivas etc., mas em geral é um talude que dá em
muito lugar acesso fácil e o alto da chamada serra é uma chapada vasta, ou
antes tabuleiro, tão igual e tão horizontal que daqui imita perfeitamente
um horizonte oceânico.
Quanto a mim esta espécie de tabuleiro fazia uma vasta planície que
ocupava grande parte das duas províncias, sobre a qual corriam as águas nos
tempos primitivos em enormes lençóis; e que depois cavados leitos formam
os vales dos dois rios, o Jaguaribe e o Mossoró, que correndo quase [£. 70]
paralelos deixam entre si este extenso muro, que constitui a serra do Apodi,
Araripe etc. etc.
O vale do Jaguaribe e provavelmente o do Mossoró são dignos
de estudo: as planícies vulcânicas que neles se manifestam, as grandes
ossadas que aí se têm descoberto e seguramente as muitíssimas que ainda
estão ocultas, o tom variado que dá certos terrenos etc. etc., tudo espécie
explorada, seguidas semelhantes.
Jaguaribe em suas grandes enchentes (a de 42) chega às fraldas do
Apodi, cobre toda a vargem e em 42 subiu a 60 passos pelo Tabuleiro. O
Apodi fica aqui de uma e meia a duas léguas do Jaguaribe, a superioridade
que a outra ribeira, de muita largura, diz o padre, que tem uma légua, aqui
a enchente pode ter de largura quatro léguas.
O alto do Apodi é mui árido, formado duma terra vermelha com
pouca areia. No tempo das chuvas fica mui escorregadio e a subida é mui
difícil no tempo seco e árido e a terra pior quando se anda a cavalo por
cima. Tem poucos moradores e, coberta de mata folhada, tem aroeiras,
angicos, pereiros, paus-brancos, cumarus, frei-jorge, marmeleiros, canelas-
brancas etc. etc. pau-d'arco etc. As portas das casas aqui são de cumaru e
não há nestes matos cedros.
Há no alto do Apodi bons pastos e criação; vem beber nos olhos-
d'água, creio que dos flancos da serra.

87
A vista desta serra, ou antes saboleiro, aqui do Tabuleiro d'Areia é
bonita e particular, é um verdadeiro horizonte de mar. Aqui na povoação
ainda existe uma das suas antigas casas, em que morou o padre F. de tal
Maia; nesta casa, que é baixa feita de carnaúbas, de telha ladrilhada e caiada,
recebia ele os moços dos lugares circunvizinhos e lhes ensinava latim. A aula
era na sacristia e os acomodava em casinhas, talvez palhoças, [f. 71] que fez
pegadas à sua casa; era como um seminário — dava-lhes comida etc. Chegou
a ter alguma vez até 60 colegiais; o pai do senador Alencar aqui estudou.
Davam então a este lugar o nome de Nova Coimbra.
O capitão me diz também que aqui se faziam as grandes reuniões ou
revistas dos corpos auxiliares, ou milicianos desse tempo, juntando-se duas
a três mil pessoas (no que suponho haver exageração).
Há por aqui bastantes pássaros, anteontem os caçadores do Lagos
mataram uma maracaná que estava com outra, sentadas no campo, ou
praça da povoação, e pastando como pombas. Nos currais, ou cercados de
detrás, onde vou sempre de manhã por necessidade, estão as pombas de
bando mariscando em redor de mim no chão e nas passagens dos arbustos
estão sentadas pombinhas cascavéis, mui mansas, e outros pássaros.
Hoje domingo, 25: O Lagos saiu mui cedo com outros sujeitos e fora
visitar alguns lugares em roda.
Às dez horas fomos à missa eu, Lagos e Reis; houve bastante gente
na igreja. Todas as mulheres, até a senhora do capitão Maia, levavam lenços
pela cabeça, havia entre elas algumas gentis e pela maior parte pardas ou
caboclas. Há aqui poucos pretos e todavia há uma confraria do Rosário;
fazem a sua festa no fim do ano com rei, rainha etc. etc. O Reis tirou a vista
da serra do Apodi de cima da torre da igreja; e saído tirou a vista da igreja.
Tivemos quase todo o dia a nossa casa cheia, principalmente de mulheres
que se vinham informar de seus achaques, até à meia-noite.
[£. 72] À tardinha vesti-me e saí a visitar o padre Manoel e o capitão
Maia e com eles estive conversando algum tempo, sentados na calçada de
suas casas, em frente das portas, segundo o uso do povo.
Ao anoitecer chegou de S. João o padre Alencar, vigário de Aracati
e inspetor das escolas primárias, que as anda inspecionando.
Em um sítio chamado Jatobá, no lugar Pocinho, em um tabuleiro '
de areia, cavando-se uma cacimba, na profundidade de 11 palmos se

88
descobriu uma ossada de um grande animal, toda petrificada. Dela
tiraram alguns ossos, com pouco cuidado, e trataram mal; e maior parte
deles se perdeu e provavelmente uma parte boa está ainda no lugar. O
padre Manoel, que possui um astrágalo dessa ossada, me fez dele um
presente e eu dei ao Lagos para juntar com a cabeça dum fêmur e uma
vértebra que ele pôde conseguir dum sujeito, que as possuía. Havia um
costellis [sic] que tinha quatro palmos de comprido com quatro dedos
de largura.
Este padre de que aqui tenho falado se chama Manoel Vicente
Colares, tem 58 anos e é filho de Russas.
O capitão Maia (pausa) é dos descendentes do antigo padre Maia,
excelente pessoa e com muito boa vontade nos tem servido e obsequiado —
afirma que o Apodi não [tem] mais de duas alturas do Tabuleiro, o que me
parece pouco.
Segunda-feira, 26: Às sete horas da manhã fui cumprimentar e
despedir-me do padre Carlos Alencar, em cuja casa estava já o padre Manoel
de quem também me despedi, e do capitão Maia, que quis fazer-nos o
obséquio de acompanhar-nos até meia légua de caminho.
[f. 73] Andamos sempre pelo vale e ribeira direita do Jaguaribe.
Passamos o riacho Quixerê, com leito da areia, estava seco e terá aí
de largura 20 a 30 braças. Passamos mais a nossa esquerda por três grandes
lagoas: a das Pedras, a do Meio e a do Lima. Chegamos a S. João às dez
horas e aí achamos já o Lagos e Reis, balançando-se nas redes, em casa
do Sr. João Cassiano Freire de Castro, mulato, ou acaboclado, que nos
agasalhou com afabilidade, deu-nos para almoço um bule de café, ou antes
uma água de café que a sede tornava suportável; pedindo-nos mil desculpas
por não poder tratar melhor. A água que aí nos apresentou era clara e fresca,
tirada de cacimbas do Jaguaribe que se ostentava à nossa vista, com grande
largura, avaliando-a em 300 braças o nosso hóspede; mas seguramente
não chegam lá. Fartamo-nos de água fresca, pois em Tabuleiro era a água
péssima, leitosa, mas ainda elogiada pelos moradores dali (e o nosso capitão
Maia disse-me que não podia suportar a água do Aracati!). Neste lugar não
bebi água e consumi seis meias garrafas de cidra.
O vale, ou ribeiras, do Jaguaribe, nesta viagem do Tabuleiro a S.
João, nos apresentou já certa mudança; já não eram essas vargens largas

89
e planas como um terreiro, mas sim semeadas de morros, ou pequenas
colinas, mais ou menos pedregosos (gnaisse, quartzo, seixos rolados) e
por entre os quais é o vale coberto de matas de caatinga, com pasto, seco,
por baixo raras ou nenhumas carnaúbas, por onde passávamos. As matas
são de pau-branco, que estão quase desfolhados, e as folhas que restam
murchas ou secas, carregadas de fruta; pereiros quase sem folhas.
Por entre essas árvores de aspecto tristonho vicejavam as oitícicas,
sempre verdes, imitando grandes e largas mangueiras, estavam carregadas
de flor cujo cheiro é desagradável; juazeiros, árvore de grande copa, sempre
verde e imitando a da laranjeira; marizeiras, árvores de grande copa, com
folhagem verde; [f. 74] a quixabeira, árvore de grande copa hemisférica e
que chega ao chão (estavam carregadas de flores cheirosas); mulungus, árvore
de bonita copa piramidal, com ramos horizontais, estava sem folhas e com
lindas flores encarnadas; caraúbas, belas árvores, cobertas de flores amarelas
e sem folhas perfeitamente como os nossos ipês; mutambas, árvores copadas,
estavam com folhas e frutas passadas; jaramataias, árvore derramada,
imitando as nossas aroeiras, com folhas dum verde pardo, lindas flores azuis
e cheirosas etc. etc. À vegetação menor era do mufumbo, arbusto que pela
primeira vez vi no Tabuleiro e que daí para cima é muito abundante, forma
reboleiras de ramos longos; estava com fruta xiquexique, cardeiro que vi
pela primeira vez em Limoeiro; alguns cardeiros da espécie dos tabuleiros da
praia; jamacarus que também os observei aqui pela primeira vez; e algumas
urumbebas, ou palmatórias, que também as achamos de Tabuleiro d' Areia,
onde Manoel as colheu cobertas de cochinilha, em vários lugares matos de
macambira.
De Limoeiro para cima as colinas são cobertas de caatingas quase
formadas só de juremas, principalmente da preta, e de pereiros.
S. João, pequena povoação com uma igreja e situada sobre um monte,
de bela vista, à margem direita do Jaguaribe que se mostra em baixo, e que
nas grandes enchentes o banha até grande altura e se torna majestoso; e
entrando pelo vale, que separa o monte onde está a povoação de outro,
onde é a moradia de José Cassiano, a comunicação se faz por canoas como
aconteceu em 42; felizmente essas enchentes são muito raras.
De tarde fomos visitar a povoação, a cavalo, assentada no alto
do morro, é alegre e a vista do Jaguaribe lhe dá alguma coisa de grave,

90
mas infelizmente não havendo aqui comércio, é ela insignificante, e de
aspecto miserável.
[f. 75] Há apenas uma carreirinha de casebres (só uma tem melhor
aspecto) sujos e arruinados e habitados por pobre gente, ao lado esquerdo da
igreja, ficando entre estes e as casas uma espécie de beco, ou caminho desigual
e pedregoso; além disto há mais algumas palhoças dispersas. A igreja, que
não é pequena, nunca foi acabada e se acha no mais triste abandono: o corpo
da igreja de telha vá e o pavimento de tijolo que, servindo de cemitério, está
todo estragado, faltando-lhe em várias partes tijolos e cheio de altos e baixos;
tudo sujo; é moradia de infinitos morcegos, que esvoaçam constantemente,
emporcalham a igreja e lhe comunica um cheiro ou fedor insuportável. Esta
praga de morcego nas igrejas, do sertão principalmente, é um grande mal;
de Russas em diante são muito abundantes. A capela-mor mostra o que foi
em outro tempo, tem sua tarja, e pinturas e douradores sofríveis e teve muito
boas alfaias. Foi ela fundada por um português Damazo de tal, fazendeiro
aqui muito rico e que tem a sua sepultura junto ao altar, em 1735.
Houve em outros tempos aqui festas mui concorridas.
Ainda aqui se acham algumas roqueiras com que antigamente se
atirava nos festejos. Esses tiros são hoje proibidos, porque abalando a
igreja concorriam para a sua ruína. Passou depois a igreja para outros
proprietários havendo nessa família cinco padres seguidos que eram
capelães e a [palavra ilegível]; mas esse se acabou e o templo está
abandonado. O nosso hóspede é descendente dessa família.
A casa do Sr. Cassiano está situada, como já disse, em outro monte,
separado da povoação e antes dela, subindo o Jaguaribe; foi feita pelo
último dos cinco padres, que era seu tio. É grande e de aparência nobre,
telha vá e ladrilhada, ao lado esquerdo dela está a casa antiga da família,
edifício tosco, acachapado; o que mostra a bruteza destes tempos, sendo
no entanto [f. 76) a habitação da primeira gente daqueles lugares. Nesse
velho pardieiro se acomoda a nossa bagagem e aí se acomodaram também
Manoel e Vila Real.
O Sr. Cassiano tem hoje, se bem me lembro, 67 anos e está bem-
disposto. Contou-nos que entrou nas revoluções de 1817 e de 1824; por
ocasião da primeira foi, com seu pai, que também entrou nela, preso para o
Rio de Janeiro onde esteve três anos.

91
Em 24 era ajudante de ordens do Alencar, que foi o presidente da
República do Ceará, e que escapou de ser com ele morto, porque o Alencar,
vendo a sua causa perdida, instou com ele para que o deixasse quando fugia,
e no dia seguinte foi alcançado e morto. Diz ele que o dia da proclamação
da República foi de grande festa e prazer na capital.
Víamos dentro da casa várias mulheres e crianças, muitos homens, que
creio eram todos da família. Um desses sujeitos mostrando-nos uma bengala
de aroeira, muito pesada, disse: “É bengala de eleições; ainda está virgem, mas
pode ser que sirva em 1860!”. Não sei qual é a opinião política dessa gente,
mas é provável que sejam chimangos visto os precedentes do chefe.
Terça-feira, 27: Partimos de manhã. Marchávamos pelo vale do
Jaguaribe, que perdia sempre o seu caráter tomando o aspecto do sertão,
isto é, ia-se tornando mais montuoso, mais pedregoso; o rio já apresentando
lugares com lajes, ou grandes blocos de rochas graníticas, a vegetação
tomando também outra aparência: diminuem as carnaúbas e aparecem
caatingas e tabuleiros. Quase em meia viagem chegamos ao alto dum
grande monte, donde se nos oferecia o país já outro, e tinhamos em frente
a serrania do Pereiro, que mudava inteiramente a serra € nos impressionava
agradavelmente. Passamos pela casa do padre Ambrósio, de má aparência e
com uma latada de folhas secas na frente, o que daqui em diante se tornou
muito comum. É uma espécie de alpendre formado [£. 77] de quatro,
seis ou mais forquilhas e com um engradeamento de varas por cima, e
sobre este uma coberta de ramos; algumas vezes tem uma ou duas paredes,
outras vezes é inteiramente fechado de todos os lados, com a mesma ou
semelhante ramagem. Estas latadas se fazem na frente das casas, para abrigo
do sol. Algumas casas feitas inteiramente como esta costumam ter também
o nome de latadas. É o que pode haver de mais tosco e que dá às casas uma
aparência feia e tosca. Como dizia, passamos pela casa do tal padre e aí
erramos o caminho por conselho dum vaqueiro que também o não sabia, e
tendo feito uma volta de talvez meia légua, com sol ardentíssimo chegamos
ao lugar chamado Cabrito quase às 11 horas.
E por engano fomos ainda à casa duma senhora, irmã do sujeito
para cuja casa íamos, esta instou comigo para apear-me e ver-lhe alguns
doentes, o que fiz, demorando-me uma meia hora. Receitei, bebi água,
conversei e segui para diante, pedindo-me ela mais duma vez que passasse

92
ali a força do sol. (À noite me mandou um capote — galinha-d'angola —
e um queijo.) Pouco adiante me apeei na casa do Sr. Manoel da Cunha
Pereira, subdelegado de S. João — freguesia de Russas. Estavam à mesa ele
e mais outro sujeito, o Lagos e o Carvalho, que havia chegado antes. Eu
me sentei à mesa, que continha carne seca, linguiça, farofa, água de café
ou chá e talhadas de queijo com farinha. O nosso subdelegado de meia
estatura, gordo falador, galhofeiro, estava, segundo o costume da terra, de
ceroula e camisa solta por cima. Estava em casa uma senhora assaz gorda,
desembaraçada vizinha, e mais duas moças filhas do Sr. Pereira, que é viúvo.
O dia foi todo muito quente e o vento leste (mais ou menos), que chamam
aracati, chegou entre seis e sete horas [f. 78] da noite com alguma força
e refrescou o tempo. O nosso hóspede deu-nos de jantar às quatro horas:
carne cozida, feia, e com catinga da vaca insuportável, linguiças (de que
comi só com uma mão escaldada), queijo e doce por sobremesa. Às nove da
noite demos nós o chá.
Disse-nos ele que em 42 a enchente do Jaguaribe, do qual a casa
está perto, entrou pela casa, que é assentada na vargem.
Quarta-feira, 28: Saímos às sete horas e andando sempre mais ou
menos aproximado à ribeira do Jaguaribe e por um terreno já próprio do
sertão, isto montes pedregosos, áridos, cobertos de jurema-preta e pereiro,
de aspecto tristonho, parecendo ter por aí passado o fogo, e o leito do
Jaguaribe apresentando-se já com porções pedregosas etc. etc., com grande
calor e cobertos de poeira, chegamos pelas quatro horas ao sítio chamado
Caiçara. Casa tosca e arruinada, assentada no alto dum monte largo e
baixo, à beira do Jaguaribe, no meio dum sertão; o dono não estava em
casa, a senhora não nos apareceu, mas ofereceu-nos a casa, isto é, a varanda
e uma sala onde mandou armar três redes. Mandamos-lhe pedir que nos
fizesse aprontar alguma coisa para comer, pagando nós o que fosse. Seriam
duas horas quando uma rapariga nos abriu uma porta e fez-nos entrar para
outra sala, onde estava uma mesa com toalha limpa e um grande prato
de arroz com galinha etc., tendo-nos antes mandado dar água às mãos,
conforme é ainda uso aqui. Manoel e Vila Real chegaram depois; de noite
tomamos chá e dormimos.
Às ave-marias eu estando necessitado de lavar-me, dirigi-me para o
rio, onde ainda existem poços, e num desses junto a umas pedras lavei-

93
me como me foi possível. Era este banho distante da casa uns 500 a 600
passos; à beira do rio estavam agasalhadas as pombas de bando, em grande
quantidade pelas moitas, árvores [f. 79] e as grandes copas de oiticicas e
mufumbos da beiras altas do rio. Elas levantavam-se em bandos, produzindo
grande barulho; é nesses lugares que de noite com fachos se apanham à
mão.
No campo da frente da casa, que é amplo, pastavam durante o dia e
principalmente à tarde em grande quantidade e (coisa curiosa — que antes
tinha visto no Tabuleiro d'Areia) as maracanás pastavam no campo por
entre as pombas. Os nossos caçadores mataram pombas e maracanás.
Quinta-feira, 29: Montamos a cavalo de manhã e logo rodeando
um largo monte, avistamos, vindo da parte da fazenda para cima, bandos
de pombas tão continuados e em tanta quantidade, que parávamos a
contemplá-los. Os bandos continham centenas de pombas, e umas atrás
das outras formavam um cordão sem fim. Gastamos sem dúvida mais de
dez minutos em rodear a montanha e os bandos não cessavam de aparecer
no horizonte ao longe onde apenas se percebiam, formando a cauda desse
largo cordão de que não víamos princípio nem fim. É coisa incrível, e só
vendo-se se faz disto uma ideia. Essas pombas saem de manhã do seu pouso
à margem do Jaguaribe, onde vêm de tarde beber e dormir, formando outro
cordão semelhante e começam a passar ainda com o sol e continuam aí de
noite; e de manhã tornam para o pasto, no meio dos sertões.
Em caminho encontramos um sujeito, que vinha muito depressa;
passou por mim olhando-me com atenção e parou a conversar com o meu
ordenança, depois volta e se dirige para mim, parei e nos saudamos: era o
proprietário da casa em que dormimos que, tendo notícia da nossa chegada
à sua casa, vinha encontrar-nos. Andamos juntos por algum tempo e entre
várias conversas se mostrou sentido de não estar em casa porque tinha no
seu sítio um lugar com indícios de haver ali alguma mina. É a mania da
terra: todos julgam ter em seus domínios minas e tesouros escondidos.
Enfim subindo e descendo oiteiros mais ou menos pedregosos, e
já bem caracterizado o sertão, chegamos cedo [f. 80] ao nosso pouso de
Santa Rosa. É o lugar alegre, sobre um oiteiro raso e muito igual com
subida suave e coberto duma vegetação enfezada, o que eu chamei carrasco;
mas a gente do lugar a denomina tabuleiro, e com grande campina no

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meio da qual está uma igreja e em roda dela, formando uma larga praça
quadrada, filas de palhoças, ou latadas feitas com forquilhas, e cobertas
e emparedadas com folhas ou ramos de oiticica. Umas têm um só vão,
outras têm repartimento como a em que pousamos eu, o Lagos e o Reis.
Quando chegamos tivemos grande satisfação porque achamos o
Lagos e Reis almoçando da matalotagem que levaram e rodeados de uma
meia dúzia de magníficos melões dos quais comeram-se logo dois e este foi
o meu almoço.
O Reis foi logo desenhar o nosso rústico acampamento, assim como
fazer depois o prospecto da igreja, que não é pequena mas mui se acabou e
está hoje quase em abandono e habitada por morcegos.
Tivemos todo o dia a nossa palhoça rodeada de gente da terra, todos
ou quase todos vaqueiros vestidos com suas vestes de couro — gente boa
conversadeira, inteligente e curiosa.
Tivemos aqui boa água do Jaguaribe, que passa por baixo e que nas
enchentes chega à boa altura do morro.
As caatingas ou morros cobertos de matos que hoje vimos eram quase
só formados de juremas-pretas e de pereiros, e por baixo o panasco.
Sexta-feira, 30: Partimos de manhã, andamos por terrenos e caminhos
semelhantes aos do dia precedente. Chegamos a um lugar chamado Ossos.
Como a viagem nos ficou curta, seguimos até o sítio chamado Raposa
e sendo ainda a jornada pequena, e tendo notícia de que teríamos mais
adiante melhor pouso, seguimos até o lugar chamado Defuntos, é o que o
novo proprietário tem chamado Morada Nova. Aqui fomos bem recebidos
pelo senhor que é criador de gado, tem a sua casa — [f. 81] como é o
comum dos sertões — pequena de telha vá e ladrilhada, tudo toscamente
feito. Pedimos-lhe que nos mandasse aprontar comida, pagando o que
fosse (como havíamos feito em Caiçara): deu-nos almoço e jantar; de noite
tivemos o nosso chá e para o dia seguinte vendeu-nos um carneiro por
5$ [cinco mil-réis]! A comida custou-nos não sei quanto, o Lagos é que
fez o pagamento. Este senhor tinha recomendação de uma pessoa, que
vimos na capital, na casa do juiz de ---- e que habita estes lugares — é o Sr.
Francisco Diógenes Paes Butão, manda no Monte Viçoso, termo do Riacho
do Sangue — para que nos obsequiasse. A mulher não nos apareceu, apenas
vimos os filhos.

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Conversando conosco nos disse que nos morros fronteiros à sua casa
muitas vezes via ele lotes de emas que passavam (em toda a viagem só tive
ocasião de ver umas três seriemas) e que os cordões de pombas de bando
passavam às vezes formando uma faixa no céu de mais de meia légua de
extensão; e perguntando-lhe se não matavam-nas para comer, disse-me que
não, que ninguém fazia conta delas, que não valia, sendo caça pequena, a
pólvora, chumbo e que enfim alguns homens que se davam à caça eram os
que mais misérias passavam. Sobre a criação de gado me disse que era de
grande proveito e fartura, porque quando a estação corria bem a vida de
criador de gado era um paraíso; mas que era muito incerta e que se estava
sujeito a passar de rico a pobre e miserável de um ano para outro, que ele,
muitas vezes, durante esses desastres, se propunha a mudar de vida, mas
que, apenas se anunciava um bom ano e voltava a alegria, se esquecia de
tudo — e não se animava a mudar de vida.
Quanto aos pastos me disse que o mimoso era o mais apreciado pelo
gado; que o preferia e o engordava mais e o tornava mais redio, sendo
no entanto seu sustento mais fraco, mas por isso mesmo era consumido
mais depressa e que muito resistia menos à seca; que o panasco não era tão
procurado pelo gado, mas que comiam bem na falta do outro e que resistia
melhor [f. 82] às secas e que era um sustento mais forte; que o agreste não
existe, ou é muito raro no Ceará, mas que é comum no Piauí. Este pasto
tem a vantagem de se queimar e reverdecer prontamente, dando assim
sempre pasto fresco ao gado.
Sobre os sertões do Piauí disse que eram mais montuosos e que a pedra
que abundava neles era uma rocha branca e frágil. O pasto principalmente
de agreste e as matas, sendo da mesma natureza que as daqui, têm todavia
um caráter singular pela muita abundância duma árvore espinhosa, que
chamam favela, e abundam muito em macambira.
A respeito dos sertões do Rio Grande disse que eram semelhantes
aos do Ceará.
Disse que passamos pelos lugares denominados Ossos, Raposa e
este Defuntos, separados uns dos outros obra de meia légua. Eis aqui a
tradição a este respeito:
Certos homens habitantes de Jiqui, que viajavam por estes
lugares, tiveram uma desavença e se dividiram em duas parcialidades e

96
combateram, resultando daí ficar uma das parcialidades vencida e muitos
mortos (outros contam que uns viajantes, encontrando-se com uma
malta de gentios, os maltrataram e que estes vieram de noite e os mataram
a todos dormindo). Desta mortandade de um ou do outro modo ficou
o nome ao lugar de Defuntos. Os parentes dos mortos vieram ao lugar,
juntaram os ossos e os conduziam para dar-lhes sepultura em Russas,
carregando-os em malas às costas de animais; estes ao passar o riacho da
Raposa, aparecendo-lhes aí um destes animais, se espantaram e deitaram
[f. 83] a correr, do que vem a darem a este lugar o nome de Raposa.
Enfim os animais esparramados foram até o lugar chamado Ossos, onde
lançando a carga fora semearam os ossos pelo chão, onde os apanharam
ficando o sítio com o nome que tem.
Sábado, 1º de outubro: Partimos de manhã, viajando por terrenos
montuosos do sertão, mas sempre no vale do Jaguaribe. De um desses
montes mais altos tivemos a vista [de] um belo panorama da serra do
Pereiro e de um oiteiro cuja vegetação era quase só de pereiro, que estavam
todas reverdecidas e cobertas de flores. Isto produzia uma linda vista,
saindo muito o verde dessas árvores dispersas, sobre o fundo do monte
vestido de panasco seco de cor loira, como uma seara.
Em outro monte menos alto, despido de arvoredo com uma casa no
cume, junto ao caminho, dirigindo-nos para ela, a fim de perguntarmos o
nome da serra que tínhamos diante, quando íamos subindo e chegando a
casa, a uma janela desse lado se agruparam umas poucas de moças, curiosas,
formando um bonito painel: eram todas graciosas, robustas e coradas, mas
de cor requeimada. Chegando à frente me apareceu um moço, que me
convidou para apear-me, o que não fui e só pedi as informações de que
precisava e continuei o caminho; e às onze horas entramos em Jaguaribe-
Mirim, onde já estavam Lagos e Reis.
[f. 84] Entramos na casa do vigário e daí nos dirigimos a procurar
pouso; acompanhando o vigário e mais dois sujeitos dos principais da
povoação, fomos obrigados a tomar duas casas para poder acomodar todo
o nosso pessoal e bagagem. Lagos, Reis, Manoel e Vila Real se aboletaram
numa e eu fiquei na casa onde se agasalhou o comboio.
Não havendo melões cerca daí a uma légua, um sujeito que havia
apresentado uma caixa de música para ser consertada ao Lagos e Reis,

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se oferecia a ir buscar melões. Partiu logo, eram onze horas e à tarde nos
chegou uma carga de melões (25) que nos custou 4$ [quatro mil-réis], e
tivemos melões até quarta-feira.
Tivemos todo este dia a casa cheia de gente, homens e meninos,
todos aí entraram muito sem cerimônia, com o chapéu na cabeça, e nos
iam logo fazendo questões, mirando e pegando em tudo, a maior parte
com camisa solta sobre as ceroulas, ou calças. Jantamos rodeados deles, pois
nem se afastaram, e pareciam curiosos até de nos ver comer, até para mudar
de roupa, para os não desagradar nos despíamos e vestíamos à vista deles,
que achavam a coisa muito natural. A gente é pela maior parte branca, mas
queimada; os meninos alvos, de bonitos olhos e bela dentadura, espirituosos,
espertos. Como nos dissessem que a serra do Pereiro, que tínhamos à vista,
era digna [f. 85] de ser observada e estava dali a cinco léguas a sua vila, e
que de Icó seria necessário voltarem atrás, fazer uma viagem de 12 a 16
léguas, resolvemos demorarmo-nos aqui alguns dias e ir na segunda-feira ao
Pereiro, oferecendo-se para nos acompanhar o Sr. José Mariano, habitante
de Jaguaribe e um dos seus notáveis habitantes.
Toda esta gente nos tem recebido bem e obsequiado: tenho visto
algumas senhoras em casa com saia e em mangas de camisa cheia de crivos
e rendas.
Domingo, 2 de outubro: Levantei-me e fui ao rio tomar um banho.
Tem aqui o Jaguaribe seguramente 80 a 100 braças de barreira a barreira,
agora é um vasto areal, com muitos e largos poços d'água; em alguns lugares
grandes lajes ou rochedos. À água nos poços é cristalina e morna e a que
serve de lavagem, de banhos e para bebedouro dos animais; a que se bebe
é tirada de cacimbas, isto é, de pocinhos que se cavam na areia com dois
ou três palmos de fundo, no qual se ajunta logo água, que se apanha com
uma cuia, ou outra qualquer vasilha, e se enchem os potes, ou cabaças. (É
por estes lugares mui usado carregarem água em enormes cabaças, algumas
das quais levam tanto como um pote). Quando cheguei ao rio já lá havia
muita gente: raparigas, pretos e pretas que apanham água, algumas [a]
lavarem crianças etc., de sorte que me foi necessário caminhar em muito
tempo para [f. 86] achar um lugar, que me conviesse e cheguei-me para
um dos poços grandes, formados junto a uma laje, mas aí perto estavam

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uns pescadores estendendo suas redes, e entre eles uma mulher. Não havia
mais a escolher, despi-me e banhei-me à vista de Deus e de todo o mundo.
Grande quantidade de aves ribeirinhas passeava, voava, mariscava e cantava
dando animação à paisagem. Eram tetéus, socós, garças, jaçanás, peaçocas
[sic], narcejas etc. etc.
Fomos à missa entre dez e onze horas: estavam na igreja, além de
alguns homens vestidos de casaca ou paletós, muitos vaqueiros com seus
vestidos de couro e as mulheres, que eram 40 e tantas, pela maior parte
brancas (mas ainda não vi as moças alvas e coradas e formosas de que
tanto me falaram), destas umas seis ou oito mocinhas, uma clara loira,
de fisionomia interessante e mui sisuda, e duas irmãs morenas de belos
olhos, loureiras e graciosas; estas trajavam vestidos de seda preta e xales de
filó pela cabeça, a modo de véus (aqui vimos isto pela primeira vez e mui
poucas traziam lençóis) Em geral vestiam-se mal e andavam acanhadas e
respeitosas, menos as duas feiticeiras, que eram airosas.
Antes da missa cantaram a ladainha e durante a sagração quatro
senhoras entoaram com quatro vozes bem afinadas uma oração, ou espécie
de bendito, mui agradável.
Depois da missa fui ver um senhor doutor e voltei para casa. De
tarde ajustamos a viagem ao Pereiro. [f. 87] Segunda-feira levantamo-nos de
madrugada, mas enquanto se aprontavam os ânimos e tomávamos uma xícara
de café, ia amanhecendo. Quando montávamos a cavalo, éramos eu, Lagos,
Reis e dois sujeitos do lugar, que nos acompanhavam por obséquio: era o Sr.
José Mariano e um seu compadre proprietário da fazenda de criar ali vizinho;
eram dois excelentes sertanejos, montados em belos e valentes quartaus, que
não cessavam de os fazer mostrar seus andares, ligeireza e valentia.
Quando chegamos abaixo da serra, tendo já passado um monte
pedregoso, que eles chamam serrote, cuja passagem é mais para cabras
que para cavaleiros, era já o sol bem quente. À ladeira da serra é de mais
de légua, pedregosa, íngreme e de lugares difíceis; chegamos ao alto às
oito horas mais ou menos e daí à vila é boa légua e meia, e que terreno
montuoso. Entre nove e dez estávamos na vila; e aí nos acomodamos
numa tosca casinha, na qual um conhecido dos sertanejos (os que nos
acompanharam) e que nos tinha mandado abrir aquela casa, armar umas
cinco redes de uma família, creio que do subdelegado, que estava fora, nos

99
mandou aprontar um excelente almoço, de galinha guisada, frigideira de
carne picada, café, bolachas etc., tudo servido numa bandeja com toalhas
limpas e de crivos e rendas. Também de noite nos mandaram uma bandeja
de chá (bem entendido, tudo isto se pagou). A água aqui é má, leitosa,
felizmente havia em uma [f. 88] miserável tasca cidra boa, de que durante
o dia bebi umas três garrafinhas. De noite fomos visitados pelo vigário e
um Cavalcante de Albuquerque, pernambucano, pessoa das principais do
lugar e que está servindo o lugar de juiz municipal, e mais outras pessoas,
com quem conversamos por algum tempo e obtivemos bastantes notícias
do lugar. O Lagos é quem tem se encarregado de escrever essas notícias e
o padre vigário lhe forneceu muitos apontamentos e dados estatísticos. De
tarde andei passeando com um sujeito aqui casado e estabelecido que foi
soldado e estava no Rio de Janeiro, tem aqui um bom sítio, com vargem e
água. Corri com ele as cacimbas tanto de bebedouro de animais e outros
serviços, e que é uma lagoinha suja e de má água, e outra donde se tira água
de beber a qual ele está forrando de tijolo. Vi um milharal que estava todo
seco e os pés de milho quebrados e voltados para baixo, um palmo mais ou
menos abaixo da primeira espiga. Está todo bem seco e assim se conserva o
milho na roça de um ano para outro sem que apodreça nem lhe dê o bicho.
(Aqui soube de uma maneira de conservar livre do caruncho o feijão e creio
que também o milho, e é ajuntar-lhe um pouco de mercúrio doce). Corri a
sua horta e pomar, vi muita erva-doce, couve, cebolas, algumas laranjeiras,
um grande limoeiro, uma romeira, mamoeiros e bananeiras. Estive na casa
dele, com a mulher e uma filhinha; são pobres, [f. 89] mas industriosos e
não passam necessidades. A grande plantação desta serra é a do algodão, de
que segundo nos informaram exportam 300 a 400 arrobas dele com caroço.
E uma coisa notável observei no alto desta serra que é todo montuoso,
são uns montes de terra de forma cônica e de grande varandal, chegando
a mais da altura dum homem, com base proporcionada e dispostos com
certa simetria, achando ter quase toda a superfície. Estes cones de terra,
a que ouvi chamar muros, são formados provavelmente por uma espécie
de cupim, a que a gente da terra chama formiga. Estes montículos, sendo
duma terra fofa e habitados por animais, são de grande fertilidade quando
não falta a chuva; sobre eles se planta algodão, mandioca, milho, feijão e
tudo o que quiserem, e vêm com muito vigor.

100
Dormimos juntos para sairmos de madrugada, mas um dos nossos
companheiros (um dos sertanejos) acordou-nos muito cedo, eram talvez
três horas, mas enquanto se aprontavam os animais e enquanto andamos
subindo e descendo montes, até chegar à escarpa da serra, o que se fez
com muito vagar, começamos a descer os precipícios já com dia. Lagos,

Reis e os dois jaguaribanos foram mais depressa, e eu acompanhado do


meu ordenança desci a serra com meu vagar, colhendo palmitos, [f. 90]
tomando notas, de sorte que cheguei à povoação muito depois deles,
depois das nove horas e com um sol e mormaço dos maiores que havia
sofrido.
As plantas que colhi na descida da serra e nas vargens foram as
seguintes:
Aroeira com flor e fruta
Angico com flor
Louro (cordiácea) com flor
Caroba com flor, estando a árvore sem folhas
Plantas que vi e que não colhi, por tê-las já ou por não terem flor
nem fruta.
No olho da serra, onde o clima é mais fresco que na vargem do
sertão, a vegetação estava viçosa pela maior parte com folha e as plantas
semelhantes às da vargem da Pacatuba eram:
Camarás (sinanterácea e lantana)
Anil
Mororó
Pacoté (com flores)
Maracujá (de tabuleiro) com flor
Magirioba [mangiroba]
Mata-pasto etc. etc.
Na ladeira vi, do meio para baixo:
Aroeira
Angico

101:
Louro
Frei-jorge
Jucá
Pau-d'arco
Jatobá
Pau-de-mocó, ou de serrote
[f. 91)
Marmeleiro
Sabiá
Catingueira
Mororó
Feijão-bravo (çappari [sic])
Imburana
Trapiá
Ingá
Mutamba
Oiticica
Juazeiro (gotejando de manhã, com folhas novas)
Maniçoba
Mulungu
Gonçalo-alves
Ângico
Cardeiro (facheiro)
Melosa (acantácea) etc. etc.
O meu cavalo, o do Lagos, o do Reis chegaram estrompados, logo que
se tiraram os arreios entraram a estremecer, a arquejar, não querendo comer.
Vieram participar que os cavalos estavam muito mal ou triguisados
ou milhados. Há aqui pelo sertão e talvez em todo o Ceará a ideia de que
o milho demasiado causa moléstia e mata o animal. Os sujeitos que nos
acompanharam (cujos excelentes quartaus nada sofreram) e mais outros da
povoação se ofereceram obsequiosamente para tratar dos cavalos, que os
julgavam perdidos; sangraram o meu, o Lagos e Reis não consentiram que
Os seus fossem sangrados, mas eu, julgando sempre que o cavalo o que tinha

102
era cansaço [f. 92] pela penosa e longa subida e descida da serra, vendo que
tão empenhados em querer tratar do animal, entreguei-o. Sangraram-no,
banharam-no etc., o que eu sei é que Lagos e Reis seguiram viagem no dia
seguinte nos seus cavalos e eu vim até Icó no do Vila Real, vindo ele em
outro cavalo, que foi de Manoel; o meu veio puxando à destra.
Quando chegamos do Pereiro achamos já na povoação muitos
vaqueiros com suas vestimentas de couro e seus quartaus, amestrados no
exercício de vaqueiro e prontos para derrubar gado, de que já havia uma boa
porção dentro de um curral. O sol era ardentíssimo, como já disse, mas eles
quiseram mesmo àquela hora (era mais de meio-dia) dar-nos o espetáculo do
derrubamento de bois. Fomos para junto dos que foram convidados e vieram
alguns de longe; e eram rapazes alguns filhos, irmãos ou parentes de alguns
fazendeiros distintos, como era um dos que nos acompanhavam ao Pereiro,
eram por todos uns 12 que com seus trajos e montaria especial faziam um
bom efeito. O Reis, trepado na cerca do curral com o seu álbum, desenhava a
serra. Abria-se o curral, partiu um boi e atrás dele um ou dois cavaleiros, e
quando estavam na maior força da carreira um cavaleiro, [f. 93] deitando-
se do lado do boi, pegava-lhe na cauda enrolada na mão e imediatamente
o cavalo abria, isto é, afastava-se do boi e o cavaleiro puxando-o pela cauda
dava com o boi no chão para o seu lado, e às vezes com tal força que o
boi dava duas voltas, ou tombos. Isto é um exercício que eles fazem por
brinquedo, mas na vida de vaqueiro é o modo de amansar o boi bravio, que
levando um ou dois tombos fica entregue, ou pacífico. Às vezes morre o boi,
outras o cavalo, outras o cavaleiro, e outras todos.
O que se conta destes homens, correndo atrás de bois por meio de
caatingas ou matas cerradas, por lugares pedregosos e cheios de precipícios,
é próprio a formar um romance. São homens destemidos, ágeis e vigorosos
e cheios de entusiasmo por essa vida. Desde criança se acostumam a ela.
Todavia, o espetáculo que nos ofereceram, que muito nos interessou pela
sua novidade, não pôde ser tão brilhante como era de desejar, porque sendo
na povoação havia pouco campo para a carreira e esse mesmo era de ladeira,
algumas casas serviam de obstáculo.
Esta povoação é pequena, consta da igreja, que está separada, e de
um quadrado bastante grande formando praça, com casas nos três lados
ficando [f. 94] do lado aberto, a um canto e fora da praça, a igreja.

103
As casas são de telha, mas todas mui pequenas, ladrilhadas de telha
vá e sem ornamento de qualidade alguma, são pela maior parte espécie de
sanrulos [sic], mas o sítio é bonito e alegre, é uma espécie do morro de
pequena altura e mui largo: um tabuleiro. Ao pé dela corre o Jaguaribe, que
nas grandes enchentes, como na de 1842, chegou aos fundos de algumas
casas da parte do rio. A maior parte do monte é coberto de pasto, fazendo
um grande campo em roda da povoação. A igreja foi feita com risco grande
para o lugar, mas nem se acabou e atualmente está muito arruinada; [0]
corpo da igreja de telha vá, o pavimento de tijolo e está muito estragado,
por se enterrar nela; é habitada por grande quantidade de morcegos
que esvoaçam com constância e dão à igreja um cheiro desagradável,
nauseabundo. Isto se nota em muitas igrejas do sertão, por mais cuidado
que se tenha.
O padre vigário é moço, filho do Aracati, muito estimado, pelo
que observei, e de vida exemplar. Obsequiou-nos muito. Tem feito muita
diligência e tem conseguido alguma coisa para tornar o templo mais
decente, e um retábulo novo de cedro, de mau gosto e ainda não pintado se
deve aos seus cuidados. Hoje vive-se aqui tranquilo, mas foi este lugar em
outros tempos mal afamado; sua povoação foi plantada com má semente, [£.
95] me dizia o nosso hóspede de Defintos.
Eis aqui o que apanhei do que me contou o Sr. José Mariano estando
conversando comigo na primeira noite, sentados no patamar da calçada. Um
padre (não conservei o nome) comprou esta fazenda onde já havia igreja,
mas se bem me lembro essa primitiva igreja, que era de taipa (paus-a-pique),
arruinou-se e ele construiu a que existe, deixando-a talvez no estado em que
está. Teve ele dois filhos naturais, a um dos quais tocou a fazenda, a igreja
etc., depois da sua morte; indo este filho, já morto o padre, a Pernambuco, a
negócio, lá contratou e trouxe um padre E Martins, para capelão.
Pouco tempo depois teve o corpo de tropa miliciana de marchar para
Santa Catarina, onde havia guerra, e sendo ele oficial de milícias acompanhou
o seu corpo. O padre Martins amigou-se com a mulher e passado algum
tempo, ou porque houvesse alguma falsa notícia, ou porque assim lhe fazia
contar, espalhou que o homem tinha morrido, escreveu para Pernambuco a
seus credores, para que lhe mandassem procuração para liquidação da casa.
Conseguido isso pôs a fazenda em hasta pública, ato que se fez perante o

104
ouvidor e embaixo de umas grandes oiticicas que inda existem, perto daqui
e que se me mostrou. Feito isto ficou o padre Martins senhor de tudo, da
mulher e da fazenda. Passados porém em quatro anos volta e se apresenta
o dono, mas o bom do padre teve astúcia de lhe armar um crime [f. 96]
pelo qual foi preso e remetido para a capital, onde morreu na cadeia. Ficou
o padre Martins em posse tranquila de tudo; morrendo deixou alguns
filhos, que eram aqui os senhores, potentados e valentões (parece que eram
pardos). Todavia, no princípio portaram-se com alguma dignidade e eram
respeitados, mas foram logo degenerando e de filhos a netos foram tendo
sempre a pior, de modo a se tornarem verdadeiros facinorosos e o lugar um
covil de malvados e assassinos. Hoje está tudo acabado, algum resto dessa
gente sempre malvista; bem que rixosa, está decaída e desprezada.
O dia, como já foi muito quente e de tarde, para o lado do Icó,
ou serra do Câmara, havia uns escuros e chovia e na madrugada do dia
antecedente, disse-me um da nossa frota que frescou muito para aquele
lado.
Quarta-feira, 5 de outubro: Partimos de Jaguaribe ao romper do dia
e pelas dez horas chegamos à Boa Vista, à margem esquerda do Jaguaribe,
cujo largo leito passamos. À povoação está sobre uma ribeira curva bastante
alta, de sorte que em 42 o rio apenas chega aos quintais ou fundos das
casas do seu lado. À povoação tem só uma rua e sua igrejinha, casas todas
insignificantes, mas de telha, a melhor é a do vigário, que ainda não está
concluída e na qual pousamos por convite dele. A nossa comida — almoço
ajantarado e ceia — foi preparada numa casa vizinha, de um ferreiro, com
mulher e dois filhos, um dos quais bem gentil. São conhecidos do vigário,
que é [f. 97] compadre e se comunica pelos fundos. Tomamos outra casa
onde se acomodara a nossa bagagem. À terra miserável e sem recursos, ou
certas vezes nos eram negados pela gente, que estava prevenida contra nós,
e não nos olhava com bons olhos, havia se espalhado ideias extravagantes
em todo o Ceará, a respeito da comissão e de seus fins. Éramos estrangeiros
que vínhamos explorar a província para [a] entregar aos ingleses, em
pagamento da nossa dívida, e outras coisas semelhantes. Estando o Lagos a
falar e gritar com os homens do nosso comboio e, segundo o seu costume,
cheio de raiva e com ameaças, estavam os da terra curiosos a olhar para ele
e enfim perguntando ele se não havia quem lhos vendesse uma galinha.

105
Como respondessem que não, prometia atirar na criação que via, porque
assim morta abririam preço. E vendo passar pela rua uns perus, perguntou
de quem eram. “São do padre vigário”, responderam, então ele se dirigiu
para a casa do vigário. Um sujeito que presenciara isto de perto, vendo-me
calado e sorrindo aos destemperos do Lagos, tomando-me por brasileiro,
animou-se a perguntar-me se aquele sujeito não era inglês?
Voltou porém depois o Lagos e nos convidou para a casa do
vigário que no-la ofereceu obsequiosamente e nela passamos o dia assaz
comodamente e satisfeitos. A sala de dentro, que dá para o rio, tem uma
linda vista, estando defronte a serra do Pereiro, e era fresca porque de lá nos
vinha o vento. O padre é pernambucano, pouco instruído e de inteligência
curta; e chama-se João Ferreira Rabelo. Dizendo-se que não tinha com que
nos obsequiar, mandou às vizinhas que nos preparassem um peru dos deles,
o qual pagamos por 2$ [dois mil-réis], e ele comia conosco; mas deu-nos
queijo e vinho. [f. 98] Um costume, de que penso que ainda não falei, é o
de dar-se água às mãos antes do jantar. Em Limoeiro, chegando eu à uma
hora com grande sol e poeira, o padre que ali nos hospedou não se lembrou
de me oferecer um banho para o rosto, e quando íamos para a mesa veio
uma preta com a bacia d'água e toalha, eu tirei-me de cuidado e lavei o
rosto e ele lavou as mãos na mesma água.
O nosso Lagos ficou enamorado duma das filhas do ferreiro (que
realmente era bonitinha) e [que] procurou todo o pretexto para ir conversar
com ele, o que parece que deu cuidados ao nosso vigário.
Quinta-feira: Partimos de manhã antes das sete horas, com tenção
de pousar no sítio chamado Cachoeira, que era daí a duas léguas e meia,
mas chegando aí achamos a casa fechada e uma preta que nos apareceu
disse-nos que seus senhores estavam no Icó, mas que dali a meia légua
havia pouso. À casa é de aspecto muito melhor do que o que até ali
tínhamos visto, assaz grande de telha e caiada e de paredes grossas de
tijolo, formada sobre um largo paiol e assentada no alto dum monte,
todo coberto de pasto, que agora estava torrado; nem uma árvore ao pé
de casa. Seguimos ao tal pouso indicado pela preta, era uma pequena
palhoça e uma senhora branca, bem-falante, que a hábito se escusou
dizendo que a sua sala não admitia mais que uma rede e não tinha outro

106
cômodo, deu-nos água a beber e nos indicou outro pouso adiante; a
meia légua de distância seguimos e chegamos ao tal pouso, de tristíssimo
aspecto, mas era mais amplo e o dono nos recebeu afável; estava com a
família na casa de farinha fazendo farinha, que é o seu negócio. Dentro
da casa havia uns oito ou nove grandes sacos cheios e cosidos, cada um
dos quais devia [f. 99] ter pelo menos dois sacos dos nossos no Rio, e que
ele dizia que eram de dois alqueires e que os não vendem senão a 8$ [oito
mil réis]. Entramos para a casa, cheios de calor, suor e poeira e retados
de fome. O Lagos perguntou à mulher do nosso hóspede se não nos.
podia aprontar alguma coisa, respondeu que nem tinha nada, nem quem
aprontasse. Pastavam no terreiro alguns capotes, perguntou o Lagos se
não os vendiam, disse que não. O Lagos, sempre arrebatado e com mau
modo, não sei o que lhe disse e enfim ela se resolveu a vender um capote,
mas pediu-lhe uma pataca; diz o Lagos: “O preço é $200 [duzentos
réis)”. “Eram, senhor, por isso não o dei”. O nosso amigo agastado disse:
“Não o quero”. Disse-nos que chegou o comboio e porque eu lhe fiz uma
observação moderada partiu comigo com despropósitos, o que opus a
minha paciência. Enfim chegou o comboio e eu ordenei que o José do
Ó me comprasse o capote para jantarmos. Passamos o dia arrufados e
fizemos as pazes de noite ao luar.
Acaba a farinha; vieram para com as moças e rapazes e estiveram a
conversar conosco, eles a examinarem as nossas redes e depois foram buscar
algumas obras de labirinto para mostrar-nos.
E nesta ocasião o Lagos, aproveitando-se da sinceridade de uma das
meninas que mostrando-lhe um lenço de labirinto que uma sua prima lhe
tinha feito por 2$ [dois mil-réis], ofereceu por ele os mesmos 2$, ao que a
menina hesitando um pouco se viu em necessidade de os aceitar, visto que
já tinha dito que vendia. Ele depois da compra nos disse: “Ele vale muito
mais”. Isto me incomodou e tive pena da moça. A mãe, que chegou depois
do negócio feito, disse: “Ela, se quiser comprar outro como este, não o faz
por menos de 3$ [três mil-réis), foi sua prima que lhe fez este por amizade”.
De manhá partimos para o Icó, que nos diziam dista dali quatro
léguas, mas entende que são cinco boas léguas. Chegamos a Icó pelas onze
horas, com bastante soalheira e nos fomos hospedar na casa do Dr. Aristides,

107
que nos deu carta [f. 100] para o sogro, recomendando-nos a mandado
para a nossa disposição a casa do sobrado que aí tem vazia.
Paredes-meias está a casa de um negociante, o Sr. Teixeira, para cuja
loja fui enquanto o Lagos andava procurando outra casa, parecendo-lhe que
esta não era suficiente.* No entanto, eu estava conforme e, perguntando
ao Sr. Teixeira se não havia na cidade alguma casa de pasto ou botequim,
disse-me que não, mas ofereceu-se para nos mandar aprontar chá e, inda
que recusássemos, ele insistiu. E daí a pouco mandou uma sua rapariga
limpar a casa e depois veio-nos uma bandeja com chá, café, pão, biscoito
etc., e almoçamos muito bem. Ele também nos acompanhou.

* (Quis acomodar-se na casa da Câmara e lá dormiu uma noite com o Reis; mas afinal voltou a morar na casa
do Aristides conosco. Temos notado que [trecho apagado] provava sempre protesto para morar separado de
nós, e sempre com o Reis; mas isto levo água no bico.)

108
Viagem de Icó ao Crato
4 de novembro a 8 de dezembro de 1859

[[-28,8,5]

[f. 101]

Icó, 4 de novembro de 1859

Hoje tenho passado um dia bastante triste e sempre lembrando da


minha gente, mas toda a manhã estive ocupado estudando plantas. Estou
muito aborrecido, com grande desejo de marchar para o Crato. Está
passando o tempo de lá estar, e estão passando seguramente muitas árvores,
que já floresceram; mas...
Ontem de tarde depois do jantar, deitado numa rede onde tomei
café, sentaram-se ao pé duas mulheres pardas: uma casada e que tem o
marido preso há oito anos pelo crime de deixar fugir um preso da cadeia!;
outra pobre, que me tinha de manhá trazido um melão, na ideia talvez
de receber de molhadura uns dez tostões, e são presentes destes que nos
trazem muitas vezes. Eu estava na sala trabalhando e mandei o Manoel
que desse ou mandasse dar pelo homem encarregado das compras dez
ou 12 vinténs. Ele, creio que por judiaria, mandou dar quatro vinténs.
A pobre clamou contra isso, mas não me disse nada e voltou de tarde,
não a queixar-se, dizia ela, porque o que ela me dava era de coração, e
não vendia; mas não gostou que lhe dessem quatro vinténs. Levou mais
meia pataca e parece que foi contente, mas provavelmente desta não
terei mais presentes. A outra casada me vinha pedir para falar ao juiz de
Direito a favor de seu marido e, sentada ao pé da rede, se lastimava de
suas misérias.

109
“Hoje, dizia, ainda não comi senão um mamão!” [f. 102] (me parece
ser uma comida trivial aqui para a pobreza; custam um vintém e são muito
grandes).
Então comecei a perguntar-lhe pelo modo por que se alimentam
aqui os pobres. Disse-me que passavam misérias, que havia dias em que
nada comiam e de ordinário só fazem uma comida no dia. “Compro, diz
ela, dois vinténs de coração, quatro vinténs de fígado, mais uns dois vinténs
não me lembro de quê. Com isto fazemos um cozido ou guisado, que se
come com pirão”.
E esta comida é para umas poucas pessoas: ela, o pai, uma irmã doente
e um rapaz, que é um bestalhão, diz ela, e vadio. A esta dei também uns 12
vinténs. Por isto se vê como passa aqui a pobreza: andam pelas ruas muitos
pobres, cegos, aleijados a pedir e nós temos sempre a casa cheia destes
miseráveis, principalmente no sábado. Além disso, somos perseguidos para
subscrição para casamentos, para alforrias e para mil outras coisas.
O aborrecimento deu-me para escrever estas coisas.
Oito horas da noite.

Hoje, 5 de novembro (sábado), passei o dia menos triste e estive


escrevendo ofícios para Gabaglia, Gonçalves Dias etc. De tarde, sol posto,
saí a fazer algumas visitas, mas só fiz uma, achando aí convir que me
entretive por bastante tempo. Fui sempre.
[f. 103] Quase às oito horas despi-me, estava só em casa e pus-
me à janela: a noite era linda de luar, só algumas nuvens laceradas,
prateadas pelos raios da lua, vagueavam pelo céu de um azul desmaiado
e salpicado de amortecidas estrelas.
A observação do firmamento me infundia maior melancolia. Um
grupo de sete ou oito meninos, quase todos vizinhos, a saber: quatro filhos
do Teixeira, que mora no sobrado contíguo ao nosso e à esquerda; duas
moças que moram em uma casa térrea fronteira, parentes dos Teixeiras, uma
das quais é a bonita de que ontem tratei; mais duas, que não conhecia, e uma
da casa térrea paredes-meias com o nosso sobrado à direita e que também é
parente das primeiras e em cuja casa se ajuntaram e, conforme o costume do
Ceará, sentaram-se em cadeiras formando um círculo fora da porta.

10
Falavam muito e muito depressa, interrompida a conversa com
risadas contínuas, o que me fez lembrar as meninas do Manoel — lembrança
que me fez muita saudade. Eu, nos meus devaneios, olhando para o céu
tinha os ouvidos aplicados à conversa, e algumas palavras soltas que podia
perceber no meio da torrente delas me faziam conhecer a simplicidade e o
trivial dos assuntos que as entretinham e davam ocasião a tanto riso cheio
de ingenuidade e de inocência, caindo umas sobre as outras. [f. 104] Ao
menos era assim o que eu sentia, e o estado melancólico e sentimental do
meu espírito dava àquele grupo, visto ao luar, cheio de vida e prazer, um
certo encanto que suavizava, bem que aumentou a minha tristeza. Já se
dissolveu o grupo. São mais de dez horas.
Domingo, 6 de novembro: Não fui à missa por ter que escrever.
Recebi visitas do tenente-coronel Dr. Dias Azedo e do professor público
de latim e particular de música — é também compositor, disse — e do
Théberge, que aqui esteve até quase sete horas. Depois do jantar voltou
o Théberge e com ele fomos eu e Manuel visitar um sítio na rua chamada -
[palavra ilegível]. Não estava o dono e corremos toda a chácara onde vimos
laranjeiras, limoeiros, araticuns, juazeiros, goiabeiras, ateiras, coqueiros,
cajazeiras etc. E uma bananeira de taboca que separei com o bambu, [além
de] tamarindos, bananeira, espirradeiras bem bonitas, resedás (vecendentes),
roseiras, jasmim de (pausa) é uma Tabernaemontana dobrada, branca, mui
cheirosa, etc. etc. Tem a chácara duas grandes cacimbas de tijolo, com
bombas e por meio de levados (regos) rega todas as plantas. Em uma das
cacimbas um sujeito metido a mecânico quer fazer uma roda de modo
contínuo (a roda tocava uma bomba, que lançava água na roda!). Aí vimos
a roda no chão e a bomba tocada por uma alavanca. Voltamos para casa às
ave-marias e da janela vimos passar a procissão do Rosário, que constava de
um sacerdote de dalmática, conduzindo uma pequena imagem da Senhora
do Rosário debaixo do pálio. Alguns [...) [f. 105] Depois disso saíram a
passear o Lagos e Reis e foram ao banho Manoel e Vila Real. Eu fiquei
sentado à janela: fazia belo luar e as meninas vizinhas não cessavam de
falar e de rir. E ora numa casa ora noutra, sempre triste meu pensamento
vagueava por longe cheio de saudade.
Esta minha tristeza, que é habitual, tem tornado estes dias penosos,
por ver que estamos perdendo tempo e eu, amarrado ao Lagos, hei de estar

Mi
pelo que ele quiser. Que homem singular! Que gênio desabrido! Esquecido
que teríamos dos trabalhos da sua seção, que anda à matroca, apenas
enchendo alguns pássaros já muito cediços, sem nenhuma consciência dos
seus deveres, se ocupa em coisas inteiramente estranhas e que só poderiam
ser assunto secundário. Não ouve nem atende as nossas queixas, minhas e
de Manoel, nenhum caso faz de nós, assim como não faz da seção que lhe
pertence. Não sofre a mesma reflexão que nós. É coisa incompreensível:
julga-se interiormente senhor de si e de seu tempo, empregando toda
a sua atividade ora em rever livros das Câmaras, em tomar notas de
acontecimentos antigos, em ver tudo o que oferece alguma curiosidade,
fazendo para isso até viagens longas e penosas. Ora ocupa-se em relações
com a gente mais ínfima, frequentando as alcovas e entretendo alcoviteiros
e faladores, [f. 106] comprazendo-se em obter deles segredos de famílias e
quantos assuntos correm sobre os habitantes, aceitando com deleite tudo
quanto pode servir de desabono e querendo por aí apreciar a moralidade
da gente.
Dado a namoros, se apaixona e não respeita rival, irritando-se contra
os que por tais os julga, inimizando-se com eles, fazendo-lhes quantos
defeitos pode e cobrindo-os de baldões. Na capital desonrou-se com o Dr.
Ovídio. Em Boa Vista tomou ojeriza ao padre que nos acolheu.
Em Icó disparou contra o Caminha etc., e com o pobre Cagoés —
porque lhe não entregou a filha!! E eu estou atado a este homem, que não
tem comigo a menor atenção. Se lhe falo em fazermos a correspondência
da comissão, diz-me arrebatado: “Ainda não concluí a minha, e sem isso
não a faço”. Faz os ofícios de má vontade e quando muito bem lhe parece.
Se eu proponho algum negócio contra a sua vontade, diz-me francamente:
“Isso não faço eu!?. Assim estou reduzido a um autômato. Por amor dele
e do seu desabrimento ficaram os outros mal comigo, e ele me trata deste
modo!
E a responsabilidade de tudo cai sobre mim!
Dez horas da noite.
Ontem à noite passou pela rua um carro e creio que carregado de
lenha, e tão carregado que ia rinchando. Não era grande como são os carros
daqui; fazia o volume de uma das nossas carroças do Rio e era puxado por
cinco juntas de carneiros. Também temos aqui uma casa vizinha que tem

112
um carneiro que carrega água [f. 107] em dois pequenos barris sobre uma
cangalha, e é conduzido por um preto. Em Russas e em outros lugares já
havíamos visto carneiros carregando.
Os carros ordinários são grandes, pesados, rodas mui grandes, sem
chapação e formadas de muitas peças de madeiras. Aqui no Icó são pela
maior parte conduzidos por sete juntas de bois, que são aqui superiores aos
da capital, mais gordos etc.
Há aqui muitos bons cavalos esquipadores, bonitos, mui gordos, não
são ferrados. O Théberge me disse que não foi ele o primeiro em pôr aqui
sege, que já um magistrado andou aqui de sege.

Segunda-feira, 7 de novembro: Às dez horas fomos eu, Lagos e Reis à


missa de defuntos cantada, que aqui chamam festa das Almas. Havia só três
padres e os dois Simplícios e Rufino; vimos músicas, salmearias e cantaram
lições. A música dirigida pelo mestre Simplício etc.: podia-se ouvir tanto
a instrumental como a vocal; havia no corpo da igreja uma eira armada
pobremente.
Houve bastante gente, tanto homens como mulheres, e destas grande
número vestido de vestido de seda preta, com véus e adereços de ouro,
como cordões, pulseiras, broches etc., e estavam bem penteadas.
Nós assistimos à missa de uma tribuna; pouca gente havia nas tribunas:
eram crianças e rapazes, e nas do lado esquerdo e direito não tinha ninguém.
Alguns homens tinha também já o coro (estando o mesmo no corpo da
igreja). [f. 108] Festa pobre, mas no meio do sertão não creio fariam festa
melhor. Depois do jantar ou antes, à tardinha, saí a fazer algumas visitas:
visitei o Dr. Souto e o Sr. José Frutuoso Dias, que o achei à janela com
a mulher e filhas, com a camisa por cima das ceroulas e depois que me
cumprimentou é que vestiu um chambre; é genro do visconde de Icó. Disse-
me que recebeu cartas do visconde em que nos convida a passarmos por
Saboeiro, onde ele se acha hoje, velho e achacado; deseja consultar-me. Está
daqui talvez a umas 40 léguas! Prometi de fazermos a diligência de passar
por ali quando voltássemos do Crato. Voltei para casa, onde me achei só,
mudei de roupa e vim para a janela: estava na rua o grupo das meninas, nas
já filha as duas defronte [sic], que tornariam para o sítio.

113
Da janela vi sair o enterro do Sr. Ricardo, falecido de ascite, é doente
que eu vi e a quem propus a punção que foi praticada pelo Dr. Théberge,
que o tratava antes, e eu ajuntei e ajudei à operação. Faleceu esta noite
passada; o caixão era levado à mão, acompanhado por grande número de
pessoas com tocheiras e padres salmeando.

Terça-feira, 8: De manhã trabalhei desenhando e estudando o


pereiro-branco (Aspidoperma). De tarde, quando o sol aposentou, saímos
a cavalo eu, Manoel, o Vila Real e Reis e o meu ordinário. Dirigindo-nos
ao sul, fomos até o alto dos morros que rodeiam Icó (teria um quinto de
légua). Largando a viagem, começamos a subir e descer, até que ganhamos
uma altura [f. 109] donde se via bem a cidade e o país que a rodeia. Havia
eu feito uma ideia muito diversa do que vi hoje. Estava persuadido de
que Icó estava assentado num imenso vale (persuasão que hoje a não sei
explicar). Mas a coisa é muito diversa: a vargem onde está a cidade, e pelo
meio da qual passa o rio Salgado, forma, segundo o que pude ajuizar, o
fundo dessa bacia quase redonda, cujo diâmetro, transversal ao que corta a
direção do rio, não teria mais de um quarto de légua. Este vale é rodeado
por montes de pequena altura, que vão sucedidos uns dos outros até chegar
pelo sul à serra do Pereiro, do Camará, e pelo norte a outra seria que julgo
ser a dos Orós. Estes montes, a julgar pelos que vi hoje, são — dizem — terra
vermelha e pedregosa (é o verdadeiro chão do sertão); a vegetação dos que
hoje percorremos é uma caatinga carrasquenha. O chão é limpo, o arvoredo
ora cercado, ora embastido, é quase todo de catingueira. Alguns pereiros e
mutambas etc. são arvoredos ramificados logo abaixo, com muitas hastes,
formando touceiras, principalmente as catingueiras, cuja altura apenas
excede à de cavaleiro. Esta vegetação quase homogênea desta Caesalpinia
será a razão de chamarem a esta planta catingueira? Hoje isto me parece
mais provável; para antes disso tinha minhas dúvidas, supondo ser assim
chamada pelo cheiro forte que expiram os bagres e porque [f. 110] a
chamam também catinga-de-porco. Diz Manoel que os montes do lado
oposto têm outra vegetação: é quase toda de pereiras.
Quando aqui chegamos estavam estes montes com o seu arvoredo
todo seco, e com as chuvas dos dias 21 e 22 de outubro reverdearam com tal

114
prontidão que cinco dias depois estava tudo verde e agora está já forando: as
catingueiras, os pereiros e outras plantas, entre elas uma linda begoniácea de
grandes cestões de flores cor-de-rosa viva, que temos colhido e desenhado.
Voltamos e chegamos a casa depois das ave-marias. Depois chegou o Lagos,
que havia ido de manhã à casa da muda (daqui a quase quatro léguas) para
a ver trabalhar uma louça preta de grande perfeição. Diz ela que um acaso
a fez descobrir o modo de empretecer a louça, cozinhando-a uma vez com
bostas de cavalo (o que não me parece acreditável). Seus pais trabalhavam
em louça (potes, panelas etc. etc.). Os instrumentos de que se serve são
os mais simples e toscos (e o Lagos trouxe-os para amostra) e com eles faz
ela tudo: bules, xícaras, jarros etc. etc., aparelhos completos e conforme os
modelos que lhe dão. É realmente admirável a perfeição com que ela os
faz, cobrindo-os de relevos e desenhos elegantes. Tomam uma cor preta e
lustrosa, e firme como a de louça inglesa. O segredo, ao que parece, consiste
nisso simplesmente e ela não fez mistério: queimava umas xícaras à vista
do Lagos, deste modo fez uma pequena fogueira de banha e à roda do
fogo ia queimando a louça. Fez-me um presente de uma jarrinha: [f. 111]
fazendo-a girar continuamente, até que se achou corada e vermelha, tirou
as brasas e tições, assentou as xícaras sobre o lugar da fogueira que estava
quente, e depois foi lançando bostas de cavalo até cobri-las, a bosta entrou
a arder e continuou até consumir-se, deixando as xícaras empretecidas.
Depois passou-lhes por cima cera de carnaúba (a de abelhas faz o mesmo
efeito), esfregando-os, e deu o negócio por concluído.
A explicação que me ocorre é que bosta queimando-se dá um fumo
muito carregado de partículas de carbono que se insinua da louça, um
pouco abertos em razão do calor; a cera as firma e dá lustre. O Lagos me
deu uma jarrinha
Hoje me trouxeram um presente de ovos, que me custou 100 réis.
Aqui esteve ontem um velho de 73 anos, cujo modo de vida tem sido
desde a sua mocidade conduzir cartas de um extremo a outro da província.
Agora vai ele à capital buscar um neto. Diz que em seis dias faz essa viagem
(provavelmente a fazia em outro tempo); duvido porém que hoje faça 30
léguas em seis dias; e em poucos dias de demora volta.
Contou-me alguns feitos curiosos da sua mocidade, mas a conversa
foi longe e disso não me lembro. Foi mais soldado miliciano, e antes do seu

115
casamento, que foi em 1806 (a mulher ainda vive), talvez em 18 de abril ou
maio, conta ele que veio ao sertão o governador João Carlos d'Oeynhausen
(depois marquês do Aracati) a fazer apaziguar os tumultos causados pelos
Feitosas e outros desalmados. Prendeu um dos [f. 112] chefes Feitosas
(coronel ou capitão-mor) — é o pai da parda de que falei no mesmo dia
4 — e um seu filho, que, segundo conta o velho, das pessoas que matara
ou mandava matar cortava-lhes as mãos e as guardava! Este um, logo que
foi preso, deixou crescer a barba e, com a cabeça pendente sobre o peito,
com ponta do queixo e barbas, fez uma ferida sobre o peito e para isso não
levantou a cabeça. Ele diz que assistiu a alguns fatos estando em serviço
durante a passagem do governador. Conta também a prisão do capitão
ou coronel Manoel Martins, um pardo mas respeitado, diz o contador, o
qual duas vezes fugiu, mas foi sempre apanhado. Ele atribui esta prisão à
inimizade que lhe tinha o coronel E de tal Bezerra, que acompanhava o
governador.
Há aqui no Icó uma prostituta (casada) chamada Germana de tal
Feitosa, é dos Inhamuns e parda, com que o Lagos tem tido conversas e que
as tem aproveitado. Parece que ela já mandou atirar em alguém e também
lhe deram já tiros. Não desdiz da raça. As antigas questões morticiosas entre
os Feitosas, os Montes e Moraes fazem uma página negra da história do
Ceará e se pode prestar para um romance.
O Crato tem também suas páginas escuras, suas façanhas, de heroísmo
brutal (como se deu em tempos remotos em todas as partes do Brasil; por
toda a parte passou esse heroísmo bárbaro da faca e do bacamarte). Não é
uma manha só do Ceará; e mais podemos dizer que toda a nação passou
por esse quadro.
[f. 113] Icó, 7 de novembro: A Lombardia tem uma superfície de 377
milhas quadradas da Alemanha; a conta de habitantes mais de 2.900$000
[dois contos e novecentos mil-réis).
Sob o aspecto agrícola e industrial é esse país o mais rico e adiantado
da Áustria.
O valor, digo, o rendimento ao nível da indústria
lombarda é calculado em ,............. ceereerenenerareearteaees 61.750$000
florins
compreendendo comunicações e indústrias............ 738000

116
agentes do comércio ........ereemeeneeerererereerees cerco 18200
operários... meceeerecarereearenaraaata 60$700
famílias......ceeeeerrererererererearerneenas cereeerererereaesa 56$300
sanatórios ....... erreeeerererenerereceeerenecarenenaeeaeanenaenada .. 330$000
fica para empregados, polícias, sacerdotes e povo. .. 2:328$800
dos quais tirando metade — dos velhos, crianças,
voluntários etc. etC............... restam ...... 1:000$000 e tantos
habitantes agricultores

De manhã fomos a uma conferência com o Dr. Théberge sobre uma


moléstia da irmã da mulher do nosso vizinho Teixeira.
Vim para casa, fiz alguns estudos, li etc. até o jantar.
A preta que nos traz o jantar (que é feito em casa de uma família) tem
uma filhinha, parda, por nome Martinha e que nos lembramos aqui de a
forrar por subscrição, e hoje apresentou a filha, com licença do senhor para
se forrar pelo preço de 600$ [seiscentos mil-réis]. Contávamos com 4008
[quatrocentos mil-réis] porque assim nos tinha dito a mãe, mas aproveitou
estando [f. 114] a oferta que fizemos e levantara o preço. Combinamos
em propor a alforria da criança por 4008 [quatrocentos mil-réis] entre nós
somente se o senhor nos consentir. À criança aqui fica conosco até de tarde.
Tendo o sol entrado, saí eu a fazer algumas visitas de despedida:
fui ao Casimiro Pinto Nogueira, que não o achei; fui ao Caminha, que o
achei na sala em uma mesa de jogo, com o irmão doutor que chegou há
pouco de Aracati e com mais dois sujeitos, que não conheço; daí fui à casa
do Sr. Théberge a fazer os meus adeuses às senhoras. Hoje é que me foi
apresentada a filhinha mais moça, de oito anos e mimosa. À mãe fez que ela
me oferecesse um pires com alguns confeitos ou amêndoas de castanhas de
caju feitos pela filha mais velha, que é uma moça mui sisuda e grave, e não
é feia. É seguramente a moça mais bem-educada do Icó.
O Dr. Théberge, homem de uns 44 a 45 anos, veio para o Brasil
emigrado depois de 1868. Esteve em Pernambuco e creio que está no Ceará
há oito anos.
É um médico distinto e homem muito trabalhador, tem feito e
continua a fazer muitos serviços à província, que tem visitado e explorado

117
na maior parte de sua extensão, para o lado do sul. Tem [f. 115] reunido
muitos documentos, examinado e extraído de muitos livros antigos, tem
induzido quantas tradições há sobre sucessos antigos, sobre os modernos,
sobre agricultura e indústria e comércio e tenta escrever a história e
corografia da província. Fez já uma carta, muito mais detalhada a corrente
que quantas existiam antes etc. etc.
Tem concorrido para muitos melhoramentos, empreendendo fazer
um teatro, que está quase concluído e que tem uma bonita frontaria; por
dentro ainda o não vi.
Está aumentando, consertando e tornando mais sadia a Cadeia do
Icó.
Tem um projeto de uma nova estrada do Icó para Aracati, em cuja
exploração e estudo tem gasto muito tempo, dinheiro etc. etc.
Este homem foi dos primeiros que nos vieram visitar e muitas vezes
vem à nossa casa, conversa muito e contou-nos muita coisa. Com a maior
sem-reserva e franqueza nos mostrou os seus planos, os seus trabalhos,
deixou-nos em casa a sua carta corográfica, o seu mapa onde está traçada a
estrada projetada etc. A sua família é muito estimável. Foi sua mulher que
introduziu pianos aqui e deu lições. É esta família que no tempo das festas
promove as reuniões, saraus e bailes, dando-lhes muita diversão etc. etc. etc.
[f. 116] 10 de novembro: De manhã, antes durante o dia, li jornais
do Comércio e Mercantil: chegaram do Rio ao Lagos. Não saí de tarde. Hoje
nos veio convidar o Dr. Porfírio para assistimos ao seu casamento no dia
18; casa com a filha do Gurgel, a qual passa pela menina mais bonita do
Icó! À noite o Dr. Théberge e sua família estiveram na casa do Teixeira,
nosso vizinho.
Pelo que posso ver aqui nas vizinhanças, as meninas, moças e senhoras
do Icó se dão pouco ao trabalho; gostam muito de janela e me parecem
loureiras, o contrário do que observamos em Aracati. Há algumas moças
bonitas e interessantes, e trajam-se bem; mas ainda não vi as formosuras, que
nos diziam na capital; havíamos de achar. Em geral têm pouca educação, e
assim devia ser, quando no Rio de Janeiro isso não abunda.
Segundo costume antigo da terra, deixam-se roubar mui facilmente,
sendo isso muito comum, e parece mesmo que o casamento com uma
moça roubada é mais saboroso, As senhoras casadas não gozam em geral

118
de boa fama na boca dos maldizentes e principalmente nas dos alcofas.
Os lupanares são impróprios aos da cidade; muitos, e muito públicos, e
são frequentados sem recato até por homens casados. Há muitos entes
depravados que se prestam a inculcá-los, com insistência e impertinência.
Neste ponto Icó cura a palma a quantos lugares temos visitado da
província.
[£. 117] Icó, 11 de novembro: Hoje fiz alguns estudos, li jornais de
manhã, de tarde saí a fazer visitas de despedida. Fui primeiro ao vigário, que
não o achei, e estive um pouco de tempo sentado a sua porta com o irmão e
mais outro sujeito; e vendo que ele não vinha, despedi-me. Fui daí à igreja
do Bonfim, que estava aberta e, reunindo-se gente para a adoração, fui ver
o seu púlpito, que é digno disso, é todo coberto de talha doirada. Daí fui a
despedir-me do juiz de Direito Dr. E. de tal Reis. Enfim fui fazer a minha
visita e ao mesmo tempo despedi-me dos dois irmãos Simplício e Porfírio,
músicos e mestres, o primeiro de latim, o segundo de primeiras letras.
Eles têm também em casa ensinamento de música vocal e instrumental.
Voltei para casa, despi-me e pus-me à janela, ao fresco, até que, chegando o
infalível Aracati (eram sete para oito horas), levantou tais nuvens de poeira
que me obrigou a abandonar o posto.
Icó, 12: De manhã estudei uma espécie de Waltheria e li jornais. De
tarde, não tendo feito a barba e estando o tempo muito quente, não tive
ânimo de sair. Estou muito aborrecido e amarrado ao L. [Lagos], que parece
não ter pressa...
Domingo, 13: Hoje não fui à missa por amanhecer um pouco
incomodado e por estar o dia coberto e triste. Depois do almoço, estando
à janela lendo os Jornais do Comércio, veio aqui um menino trazendo uma
bolsa com flores artificiais, feitas por umas senhoras habilidosas e que
trabalham sem instrumentos. As flores são bonitas, delicadas e inusitadas,
vêm para o Lagos, que as encomendou para levar para o Rio.
O menino tem dez anos, boa fisionomia, boa cor e mui esperto; por
isso nos pusemos a conversar com ele. Perguntando-se-lhe quantas irmãs
tinha, falou [que] tinha três, duas pequenas e uma maior — duas flores,
e uma que está se pondo. E como nos visse rindo-nos, observou dizendo
“Eu errei, queria dizer: e uma que está chegando, ou que se está pondo
moça”. Perguntando-lhe eu se estava na escola, [f. 118] aprendendo a ler,

119
disse-me que estivera um ano na escola e que por doença deixou de ir, mas
que ia continuar. “Mas”, ele disse, “eu num ano aprendo bastante”. Qual?
é uma escola safada, o mestre régio sequer não se importa com ela. Aqui o
Rufino (mostrando-me a casa) é o mesmo, tem a aula ali embaixo, numa
camarinha. Não se importa com a escola, larga os meninos vadiando e vai
jogar, até a hora de tomar a lição. “Então qual é o bom mestre aqui?”, lhe
perguntei. “Para dizer a verdade eu não vejo nenhum”.
Perguntou-me se não íamos a Milagres; disse-lhe que sim; “e que tal
é o lugar! Será melhor que Ic6?”.
“Não, senhor”, me respondeu, “aqui sempre é terra maior. Lá o que
tem de melhor é que tudo é mais barato, mas não se mata gado senão uma
vez na semana, e aqui há carne de gado todos os dias. Lá a carne é a quatro
vinténs ou um tostão e aqui está agora a sete vinténs, e é carne ruim de vaca
aperreada. Eu estive em Milagres, pode-se dizer que me criei lá, estou aqui
a passeio mais de ano”. Finalmente, olhando para mim diz-me: “Como é
que o senhor veio ao sertão já tão velhinho!”. Não sei o que lhe respondi,
mas voltei-me para o meu Jornal do Comércio e não tive mais vontade de
conversar com o fedelho. Isto escrevi para mostrar como é inteligente e
perspicaz esta gente do Ceará, e principalmente do sertão. O filhinho do
Cândido (Cagoés), de pouco mais de cinco anos, me surpreende com
suas perguntas e [f. 119] repentes e seus discursos. Não mais me admira o
discurso da mãe e a sua fraseologia, a profusão e propriedade dos termos,
suas reflexões morais etc. etc.
Daqui saíram há pouco os Srs. Gurgel, que nos veio convidar para
assistirmos ao casamento da filha com o Dr. Bonfim, e o coronel Dr. Dias
Azedo.
Durante a manhã trabalhei alguma coisa e li jornais. Depois do
jantar, digo, à tarde não saí, estava fazendo calor e eu muito aborrecido. À
noite pus-me à janela e havia defronte, em casa do Simplício, grande sarau
musical. Eram os estrangeiros, que aqui andam dois harpistas e um clarineta,
que tocaram desde o anoitecer até depois das dez horas peças variadas.
Havia intervalos de harpejo simples ou de canto ao piano, parecendo-me
que o cantor era o Rufino.
Segunda-feira, 14: De manhã trouxe o mateiro uma boa colheita. A
carvoeira, calisteno com flor e a jurema-branca também com flor e frutas

120
abertas do pereiro-branco; fiz de todas estas plantas desenhos, em esboços.
Estamos nos aprontando (finalmente) para seguirmos para o Crato, e eu
não só aborrecido com a demora, mas incomodado por não ter o Lagos
me aprontado a correspondência do governo; e tendo já prontos alguns
ofícios, eu os não fichei ainda esperando que ele me apresentasse os que [f.
120] tinha de fazer. Sempre com receio de tocar nisso, mas era necessário
fazê-lo, pois devia deixar a correspondência no Correio, e saindo da mesa
lhe perguntei se não fazia os ofícios; respondeu-me mui simplesmente:
“Não”. Apenas me pude conter, mas não lhe disse nada; e vindo para a sala,
perguntei-lhe de novo se não se fazia os ofícios. Respondeu-me: “Quem
quer vai, quem não quer manda”, e que estava muito ocupado e que os fazia
se tivesse tempo.
Então deliberei-me a perguntar-lhe se ele estava nas ideias do
Gonçalves Dias e se fazia a correspondência por obsequiar-me. Disse que
sim e que eu podia agradecer-lhe se quisesse, pois nas Instruções nada havia
a esse respeito, e replicando-lhe eu que nesse caso me havia enganado e
que eu estava persuadido de que eles se haviam comprometido a fazer
correspondência. “É verdade”, disse ele, e que a havia de fazer, mas quando
tivesse os seus negócios concluídos, ao que observei que eu, se soubesse
que havia eu de fazer a correspondência oficial, ou do governo, de modo
nenhum me teria encarregado do lugar que ocupo; e que isto era mais um
motivo para eu mandar a (pausa) tudo isto (eu já estava fora de mim).
Repeti-lhe muitas vezes que eu entendia que a correspondência do governo
era a nossa primeira obrigação e que mesmo devia ser anteposta aos nossos
deveres científicos etc. etc. O homem disparou, chamou-me ingrato, que
o queria pisar etc. etc., que não se importava em mais nada, nem com o
comboio, nem com o rancho, que só ia cuidar nas coisas de sua seção!!!, [f.
121] que todo o trabalho caiu sobre ele etc. etc.
Eis aqui como isto vai! À direção do comboio ele a tomou por seu
moto próprio. Os trabalhos da escrituração ele os tomou no Rio sobre si,
sem que nunca me consultasse sobre isso. Veio para o Ceará, trouxe todos
os passos, as instruções e outros documentos consigo, trouxe tudo o que
pertence à escrituração — papel etc, etc. e o selo. Nunca nos entregou nada,
nem nunca nos falou nisso; dispunha e dispõe de tudo como seu. Agora,
quando saímos da capital, recebeu o dinheiro e o guardou sem a menor

11
atenção para comigo, enfim tem-se apoderado de tudo e de toda a direção, e
eu faço em tudo isto a figura de Pilatos no credo. Ele é tudo, eu não apareci
em nada senão para assinar pedidos de dinheiro etc. (nem me importo com
isso) e queixa-se de que tem muito trabalho!
É o caráter mais singular que conheço: desabrido, despótico,
arrebatado, não atende a nada, não sofre a menor oposição a seus desejos
nem aceita a mais pequena reflexão que o contrarie. E nos seus furores
é indiscreto quanto se pode ser. O meu amigo Lagos, sem o querer, sem
pensar nisso, reputa-se senhor do seu tempo e desembaraçado de qualquer
dever e responsabilidade. É um homem que viaja por si, a sua custa, e para
se divertir, principalmente.
Quando chega a um lugar, todos os seus cuidados se empregam em
pôr-se em relação com a gente feminina — desde as casas altas até as mais
baixas e infames —, rodeia-se de alcoviteiros e de escravos [f. 122] que
servem a seus fins e dos quais se informa da vida particular das famílias,
dando crédito às torpezas, mentiras e calúnias dessa gente. Não suporta
rivalidade: triste daquele que ele só suponha que lhe põe embaraço ou
que lhe faz concorrência: põe-no logo pela rua da amargura e faz quantas
desfeitas pode; triste da rapariga que lhe faz alguma renitência: esta é
imediatamente coberta de baldões e de impropérios. As noites são todas
entregues à devassidão — esta é para ele a sua primeira ocupação.
Segue-se o fazer-se caritativo, mas há quem duvide da legítima
caridade: é este mais um meio de se insinuar e penetrar no seio das famílias, e
também satisfazer com isto um certo amor-próprio ou desejo de popularizar-
se pelo rei da terra, porque tem ojeriza natural a quem tem certa elevação.
Este é o seu segundo modo de empregar o tempo.
Em terceiro lugar, ocupa-se em tomar-se famas, estatísticas,
anedotices, histórias, indústrias etc. etc.
Este é o seu terceiro empenho, que é sem dúvida útil, mas não lhe
pertence, nem devia fazer esquecer outros deveres. Tem escrito resmas de
papel, mas aí não se acha uma página de zoologia! Tenciona sem dúvida
apresentar esses trabalhos ao Instituto sem se lembrar que esse é um meio
de fazer reparar no pouco que se ocupa com os trabalhos de sua seção.
Em quarto lugar a zoologia, digo, devia ser a zoologia. [f. 123] Ora,
aqui está como ele compreende a sua missão: trata de tudo, menos daquilo

122
para que cá veio. E eu estou amarrado a ele, eu o sofro e hei de sofrer calado.
E ele entende que eu lhe devo ser obrigado!
Ficou muito enfadado, subiu para seu quarto, e não quis vir ao chá.
Tudo isto me enche de aborrecimento e de tristeza, e suspiro por me
ver na mesma casa.
Enfim tem praticado com Manoel picardias infames. O menino
tem sempre escrito suas notas, com critério e boa observação; pois o nosso
homem já lhe botou dois livros, ou cadernos cheios de notas, um em
Pacatuba e outro aqui no Icó. Este último estava cheio de notas incontestes,
estatísticas, sobre rios e suas origens, sobre vegetação e sobre costumes. Que
quererá dizer isto, será para se servir dessas notas? Ou será porque só ele
apresenta as suas? Em qualquer caso o negócio é grave e o desabono muito
pela marotice e abuso de confiança. Esta nunca pensei que ele a praticasse
e custou-me muito em acreditar, mas Vila Real e Manoel têm disso perfeita
convicção.
Hoje foi o dia bastante quente e sempre coberto; das nove a onze
horas da manhã choveu na serra de Camará, aqui caíram alguns chuviscos.
Às dez da noite estava o céu limpo. Estas noites passadas têm sempre
fuzilado do lado do sul.
[f. 124] Dia 15: Esta manhã fiz um estudo da cajazeira, que está
agora florescendo, para comparar com a nossa cajazeira-mirim.
Temos estado aprontando-nos para a viagem. Sempre triste e
atormentado, estou acreditando que o Lagos de propósito demora a viagem
para assistir ao casamento.
Depois das cinco horas da tarde vim a fazer algumas despedidas.
Fui à casa do Sr. Francisco Manoel Dias e à do Dr. Souto, que o
achei doente de cama. Fui ao Dr. Casemiro Pinto Nogueira, que o não
achei em casa, daí ao Sr. Lúcio de tal Guimarães, que me recebeu na sala,
onde a senhora lavava uma criança e outro menino nu e não muito limpo,
mas bonitinho e muito dado; encostou-se a mim querendo me tomar a
bênção, foi bom que o pai reparou nisso e o tirou de cima de mim. A
senhora é magnífica, na corpulência e frescalharia.
O Sr. Guimarães é ainda moço, bem-apessoado e tem ares de
estrangeiro. O coronel José Dias Azedo não estava em casa, fui daí ao Sr. José
Dias Frutuoso e fui recebido por uma de suas filhas - moça desembaraçada

123
e que não é feia — assim como o outro irmão que chegou depois. Na sala
estava uma parda trabalhando num largo labirinto. Pouco depois apareceu
o Sr. Frutuoso e um menino que provavelmente é filho ou parente. Com
eles sentado a uma janela, estando as duas meninas em outra (a senhora
mulher do Frutuoso não apareceu), conversamos por algum tempo.
Despedi-me desta família, prometi na minha volta do Crato passar
pelo Saboeiro para visitar o visconde de Icó, como ele desejava.
[f. 125] Saí daí, e fazendo uma volta para não passar pela casa da
Lulu, que me tem mandado muitos recados para que eu lá apareça e que
deseja muito ver-me e eu bem sei para quê..., fui para a casa do Cândido
Cagaé; a filha nos veio receber à porta muito contente (esta foi a primeira
vez que fui a esta casa e o fiz também porque desejava que lá fosse para me
conhecer). Mas logo me conheceu, tendo me visto nas igrejas; entrei e vi-
me logo rodeado de muita gente. Estava a sala ainda sem luz e o Cândido,
com o seu desembaraço, fez que a filha e as duas sobrinhas me abraçassem,
o que eu aproveitei apertando-as bem; são três mulatinhas bonitas, sérias,
espirituosas e requestadas por toda a boa rapaziada do Icó. Com efeito
valeu a pena; sentei-me numa cadeira, elas me rodearam sentadas no chão;
as velhas — a saber, a Candinha e duas irmãs — ficaram mais afastadas,
sentadas em redes; duas que estavam doentes sentadas no chão. Estive
assim por algum tempo conversando e gracejando com as raparigas, até
que chegou o meu amigo Lagos, que tomou assento; e como estamos
enfadados e não nos falamos, isto é, ele não me fala, retirei-me logo para
não dar a conhecer a nossa desarmonia, mas não sem pesar porque eu
estava gostando da galhofa, apesar [f. 126] de umas três crianças muito
malcriadas que me atormentavam a cada passo. Era o Manoelzinho,
filho do Cândido, outro brigarote me parece maior que ele e tão ou mais
malcriado e uma menina de oito para nove anos que é insuportável,
pelos seus modos; as irmãs, a mãe e tias não cessam de gritar: “Tem modo,
menina” . Mas qual, não atendia a nada, tinha constantemente dois dedos
na boca a chupar e, por mais que eu ralhasse e dissesse que aquilo era
muito feio, ela dava gargalhadas e vinha se pôr diante de mim a chupar
os dedos, e os outros dois fedelhos punham-se na mesma atitude com
os dedos na boca: o partido era rir de tudo isto. Eles, os três malcriados,
não deixaram de pedir-me a cada momento um vintém, e porque eu me

124
dirigisse para a menina e lhe dissesse que enquanto chupasse os dedos não
lhe dava nada, ela, estendida no chão, com os dedos na boca me disse:
“Ainda que o senhor me desse 20 contos eu não deixava de chupar os
dedos! Não hei de mentir!”. Então lhe perguntei: “Que gosto acha nisso?”.
“É um costume que tomei, e não o posso largar!”. Ao sair, a velha doente
me acompanha até fora da porta para pedir-me uma esmola, dei-lhe uma
moeda de duas patacas que levava. Esta gente é muito pobre, mal tem que
comer; passam dias que não comem senão uma vez no dia, à caridade, mas
as três raparigas, [f. 127] quando saem ou vão à igreja, é numa grande
tafularia. Ainda na festa das Almas eu as vi na Matriz, emparelhando com
as mais asseadas damas, de vestidos de seda preta, pulseiras, broches de
ouro, enfim estavam em completo toalete.
Tudo o que ganham é para se vestirem. Ainda agora se estão
aprontando para a festa de Natal. Chegaram de baixo alguns vestidos de
veludo, de grande preço para a terra, 60 e 80$ [sessenta e oitenta mil-réis);
foram as pessoas mais ricas que os compraram; mas estas tafuleiras não
quiseram ficar atrás, armaram-se também de vestidos ricos. O Cândido
andava pedindo e chorando a todo o mundo dinheiro para o vestido da
filha. Nós fomos também investidos; estávamos à mesa e o Lagos com seus
modos desabridos gritou com ele: “Daqui não leva um vintém. Sua filha
é uma tola, uma presumida querendo ombrear com as pessoas mais ricas,
sendo uns pobretões etc. etc.”. Disse tanta coisa, mortificou tanto a pobre
da mulher que eu, com pena dela, fui para o meu quarto e lhe dei em
particular 20 mil-réis, com que ficou contentíssima. Parece que o Lagos e
Reis afinal sempre lhe deram alguma coisa. Estas raparigas são honestas e
trabalhadeiras e pobres como são requestadas por Caminha e outros moços;
não se deixando seduzir, e isto aqui no Icó! Merecem que as respeitem. A
filha do Cândido para a qual eu dei os 20$ [vinte mil-réis] não cessava de
olhar para mim risonha e satisfeita, [f. 128] como se estivesse deste modo
agradecendo-me.
Dia 16: Não foi possível fazermos viagem hoje. Adia para amanhã.
Estando já tudo fechado e em aperto de viagem, hoje de manhã ocupei-
me em arranjar as minhas canastras, em concluir os ofícios, para o governo
geral e provincial, que enfim o Sr. L. [Lagos] se resolveu a fazer, bem que
sempre queixoso de minha ingratidão.

125
Hoje se passa a carta de liberdade, que se lançou em notas, para
a mulatinha Martinha, de idade de sete anos, para a qual demos 4008
[quatrocentos mil-réis], 80% [oitenta mil-réis] cada um, contando a mãe
em 1008 [cem mil-réis]. Pediram pela mulatinha 600% [seiscentos mil-réis),
desceram 200 a 100, mas nós — que a tínhamos prometido forrar por 4008,
por ser esse o preço que primeiro nos havia dado a mãe, parecendo-nos que
se queriam aproveitar do nosso comprometimento e boa vontade — não
quisemos dar mais. A razão deste passo que demos é porque, tendo-se-nos
apresentado aqui uma assinatura de contribuição para alforria de uma criança
de três anos, quase branca, da casa de um parente do Caminha, e vindo à
nossa casa o próprio Caminha falar neste negócio, porque nos negamos
a concorrer (e isto porque o Lagos tomou a iniciativa e arrebatadamente
rejeitou a lista, e isto pela sua ojeriza e asco ao Caminha), eu prometi-lhe,
desculpando-nos de não haver feito por que ser logrado, dar alguma coisa. E
proferindo eu o negócio aos outros, foi ainda o L. [Lagos] que, se enchendo
de indignação pelo proceder do Caminha, lançando-lhe toda a sorte de
impropérios, arrastou os outros a não concordarem; então eu lhes disse que
ao menos permitissem que eu contribuísse com alguma coisa em nome da
Comissão Científica, e assinei 25$ [vinte e cinco mil-réis) [f. 129) da minha
algibeira. Contou depois que se havia dito que a comissão havia dado uma
quantia mesquinha. Com isto o Lagos não deixava de fazer-me zombarias
e, um dia vindo a cabra Genoveva trazer-nos a janta (veio acompanhada da
mulatinha sua filha, que é interessante), o Lagos aproveita a ocasião para
fazer acinte ao Caminha e propõe nós abrirmos uma subscrição para forrar
a criança, encarregando-se ele de a apresentar ao Caminha e a seus parentes
etc. À ideia não achou oposição, e dizendo a mãe da mulatinha que a sua
seria de 4008, lembrou o Vila Real de a libertarmos nós, sem contribuição
alheia. Foi também aceita a proposta, mais silenciosamente que com votos
declararam. E assim se fez.
À tardinha saí a despedir-me de algumas casas que me faltavam.
Fui primeiro ao Joaquim Pinto Nogueira, sogro do Dr. Aristides, visita
não devida senão em atenção ao Aristides, porque o homem não nos
citou. É um ricaço de terra — e recebeu-me muito bem e encheu-me de
oferecimentos. Dei-lhe uma carta para o genro. Fui daí à casa do tenente-
coronel José Dias Azedo, que ainda não achei e deixei-lhe um bilhete. Fui

126
depois à casa do tenente-coronel Roberto, que o não achei, nem a quem
dar um bilhete. Daí fui à casa do Gurgel, que o achei só, despedi-me dele e,
dizendo-me que o Dr. Rufino estava em casa, para lá me dirigi. Então em
casa do Rufino o Geraldo, sogro do Gurgel, o padre e mais dois sujeitos.
Aí nos demoramos um pouco, conversando [f. 130] sobre o Ceará, suas
bondades, seus inconvenientes, sua indústria etc. etc. Seriam quase sete
horas quando me despedi. O doutor está com sua casinha pronta e asseada
para seu casamento. Dali fui ao nosso vizinho Teixeira, onde achei, além da
família (mulher e quatro filhos), uma senhora de Aracati filha do Geraldo,
e cunhado do Gurgel e um rapazinho filho deste. Estava uma reunião
interessante e um dos filhos do Teixeira estava tocando piano. Aí estivemos
bastante tempo conversando, com muita satisfação. Despedi-me apertando
a mão a todas as senhoras, o que não é coisa aqui muito usada, e só algumas
senhoras casadas e mais desembaraçadas é que o fazem.
Dia 17: Ainda não foi possível sairmos hoje, e visto que amanhã é o
dia do casamento da filha do Gurgel, para o qual aí temos sido convidados
pelo noivo e pelo pai da moça, Manoel e o Lagos me vêm propor a demora
da viagem por mais um dia, para não faltarmos ao convite, alegando que
mostrarão-se sentidos se o não fizermos. Achei-lhes razão e fica a viagem
para depois de amanhã, sábado.
Às cinco horas da tarde veio aqui o Dr. Théberge, como tínhamos
ajustado de manhã, para ir me mostrar o interior do teatro. Passando pela
Cadeia, cuja obra está ele administrando e que concluída fica boa, com
divisões para homens e mulheres, e o sobrado casa da Câmara e do Júri. [f.
131] Para me mostrar uma planta que traz dentro no pátio, lá fomos e pude
vera grande quantidade de presos, pela maior parte criminosos assassinos.
Fomos depois ao teatro e o achamos muito bom dentro, com três ordens de
camarins, ou antes com três galerias, porém não tem divisas, e as colunas
que sustentam e as galerias são de carnaúbas bem trabalhadas, formando
colunas. O saguão de entrada tem no meio quatro grossas colunas que
sustentam o soalho e por cima dele há um grande salão onde se pode dar
um baile. O cenário também não é mau e já tem um pano de boca, bem
pintado, fingindo uma cortina encarnada. Tendo visto o teatro, voltei para
casa muito suado. Às ave-marias saí e fui à casa do Cândido, levando um
colete branco, mal lavado, para que lá me clareiem e engomem para ir

127
amanhã ao casamento do Dr. Rufino. Passei aí seguramente uma hora,
tão entretido que me pareceu um instante. As três moças, Josefa, filha do
Cândido, e Maria e Olímpia, sobrinhas dele, são graciosas, duma conversa
agradável e espirituosas, tão meigas, tão amáveis, que me interessaram
muito. A Josefa, não sendo tão bonita como as outras, principalmente como
a Olímpia, que é a mais bonitinha, todavia é a mais sedutora. Estivemos
gracejando [f. 132] com elas e saí, despedindo-me de todos, contente de
haver passado um pouco de tempo tão agradavelmente.
Dia 18: Passamos o dia aborrecidos por não termos mais que fazer,
e demoramos a nossa viagem ainda por um dia porque não parecia bem
sairmos no mesmo dia do casamento para que havíamos sido convidados.
Às sete horas da noite nos vestimos e fomos para a casa do Gurgel, que já
estava com muita gente. Foi uma excelente reunião de grande número de
pessoas das primeiras famílias do Icó. As senhoras pela maior parte trajavam
com riqueza e gosto, parecia acharem-se em uma reunião do Rio de Janeiro.
Havia algumas moças bonitas, mas sobre todas brilhava a filha
do Théberge, não como mais formosa, mas pelo seu porte, elegância e
gravidade. Aí vimos também uma bela mocetona muito falada do Icó,
creio que D. Maria do Rosário.* Os homens trajavam também com asseio
e gosto. À noiva estava muito bem vestida. É bonitinha; o noivo também
não é mal parecido. Tocou-se piano. A mulher do Théberge e filha e um
rapazinho aprendiz cantaram — o padre Teodolfo, o Simplício e um dueto
por Théberge e Simplício, acompanha no piano a filha do Théberge. Chá,
café, bandejas de doces, cidra, licores etc. etc. Às dez levou-se a noiva para
sua casa e acabou-se a festa.

[f. 133]

Partida do Icó

Sábado, 19 de novembro: Às cinco horas da tarde partimos do Icó,


acompanhados pelo Dr. Théberge — os irmãos Simplício e Rufino, o Sr.
Teixeira e o padeiro, a quem o Lagos curou um filho e o quis obsequiar,
servindo de guia até Lavras. E às ave-marias chegamos a um lugar onde
o Dr. Théberge nos levava para passarmos a noite, por ser conhecido do
* Casada com o Alexandre Caminha.

128
proprietário. Casa grande, com boa frente, de tijolo, caiada, com grande
terreiro ladrilhado e bordado de parapeito na frente e situada no alto de
um morro, tendo o engenho em outro morro defronte. Não estando em
casa os donos, e ficando-nos o sítio do major Firmino a légua e meia de
distância, nos resolvemos a seguir para lá, que era o nosso destino, e ele nos
esperava já há dois ou três dias. O Sr. Teixeira despediu-se de nós e os mais
companheiros nos seguiram. Chegamos ao sítio do Firmino quase às oito
horas, já ele não contava conosco e nos esperava para o dia seguinte. Esta
visita ao seu engenho foi ajustada no Icó, quando ele nos visitou. Achamos
aí o padre Vicente e mais várias pessoas. Conversou-se até depois das onze
horas porque a ceia foi demorada, por quererem alguns dos convivas comer
peixe do açude. Ainda se conversou e nos deitamos depois de uma hora.
Nós cinco da comissão dormimos em um grande quarto, ao lado da varanda
do engenho fronteiro ao outro, onde mora provisoriamente o proprietário,
que ainda não fez casa. Na varanda dormiu o Dr. Théberge e outros, o
padre e outros foram dormir em uma casa separada do engenho: é um
armazém, onde vimos uma grande tulha de guardar farinha.
Domingo de manhã Théberge e outros se levantaram cedo e foram
se banhar no açude. Tomou-se café simples, o almoço foi depois das dez
horas. Houve a missa depois, para a qual se armou um altar no quarto
em que nós dormimos, e depois da missa, um casamento; os ornamentos,
cálix, crucifixo etc. vieram do Icó e só chegaram depois do meio-dia.
Assistiram à missa a senhora do Firmino, com o ventre mui crescido, a
noiva, outra mulher idosa e a Rita, criada ou escrava mulatinha [f. 134]
airosa, alegre, fagueira, ligeira, jeitosa, e que nos agradou tanto a todos,
que na despedida lhe demos, questionando-nos, 4$ [quatro mil-réis]. Ela,
chegando-se para mim em particular, mostrou-me as duas cédulas de 2$
[dois mil-réis] novas, dizendo-me: “Deram-me isto para quê?”. “São 4$
que lhe damos pelo trabalho que teve conosco”, lhe respondi. Assistiram à
missa também várias outras pessoas. A noiva estava de barriga bem cheia, é
parda, e o noivo também pardo, ou cabra, de figura esquisita, apaixonou-se
por esta sujeita, que dizem era uma meretriz. O padre almoçou à uma hora
e desapareceu. Às três horas reapareceu e nos divertiu muito. É moço, filho
do Icó, muito engraçado e arremeda a quem quer perfeitamente e com
graça. Contou muitas anedotas do tempo de estudante em Olinda, a revolta

129
dos estudantes em 1846 sendo presidente Chichorro da Gama, sempre
arremedando o bispo de Pernambuco e o reitor do Seminário, que muito
nos fez rir. Contou muitos e curiosos casos do padre Verdecha [Verdeixa]
(hoje vigário no Juiujuba) que pintam bem o caráter singular deste homem
etc. etc. Entreteve-nos até às cinco horas, em que nos chamaram para
jantar. Levantamo-nos da mesa às sete horas, com luzes acesas. Jantar farto
de peixe, de carne; estava presente um irmão do major Firmino que mora
no Pereiro, mas já em território do Rio Grande, e muitas outras pessoas
inquilinas ou moradores nas terras do sítio. Eram mais de 30 pessoas, só
homens, e serviu-se a mesa duas vezes. Havia muito e muito bom vinho de
Lisboa e Porto, fizeram-se muitas saúdes e o padre e os irmãos Montezumas
(Simplício e Rufino) cantaram por vezes canções bochinchos; enfim foi um
bom pagode. Às dez horas ainda se tomou chá. Durante o dia sempre se
ocupava o estômago com alguma coisa: laranjas, limas, cerveja, cidra etc.
etc. Dormimos e na segunda de manhã acordamos cedo e nos preparamos
para viagem. O Dr. Théberge e os irmãos Montezumas se despediram e
voltaram para o Icó, o padeiro nos acompanhou até Lavras. [f. 135] Nelas,
como o nosso excelente hóspede quer também acompanhar e demorando-
se a vir o seu animal, mandou fazer café: a boa Rita e a cozinheira se
puseram em movimento e num instante apareceu uma bandeja com café,
biscoitos, bolachas, queijo, manteiga, de modo que quase almoçamos; e
quando montamos a cavalo, já o sol estava alto. A uma légua de distância
se despede o nosso major, depois de nos haver contado várias anedotas
e casos curiosos. Lagos, Vila Real, Manoel, Reis, o padeiro, que servia
de guia, e o ordenança adiantaram-se, e eu, segundo meu costume, fui
indo a meu cômodo. Passamos pelo boqueirão, que é um grande talho ou
corte no serrote, chamado de boqueirão, e por onde passa o rio Salgado,
que ainda estando seco, como agora, deixa sempre um grande poço nessa
passagem. Este boqueirão é de um belo efeito, e impondo um certo medo
quando se está dentro: a fenda do monte (que é todo de pedra) no lugar
mais estreito terá cinco a seis braças; e a altura das paredes, cortadas muito
irregularmente, deve ser de altura talvez 20 braças; o poço é em lugares
muito fundo, dizem que de 20 a 30 palmos, quando está baixo, como hoje.
Tem porém uma coroa de areia, que não corre pelo meio, mas corta
duas vezes o leito do rio, onde os cavalos quase tomaram nado; esperava

130
achar aí os companheiros, mas qual! O aspecto da passagem mete algum
medo. O Anastácio, meu ordenança, quis montar o cavalo, parecendo
ser raso o poço, o que não contente, e o fez voltar a procurar um prático
que nos guiasse por aquela vizinhança. Pouco tempo depois de ele partir,
estando eu apeado na boca da rocha, vi chegar do lado oposto um cavaleiro,
vestido de vaqueiro, acompanhado por dois meninos, e eu fui notando por
onde eles passavam, de modo que já então me animaria a passar sem guia.
Os meninos, passado o poço, ficaram ali brincando [f. 136] perto sobre
umas pedras. No entanto, enquanto me vinha o ordenança, me ocupei
a tirar um esboço tosco da vista do boqueirão. Chega o Anastácio sem
ninguém, porque em uma casa, onde uma mulher lhe ensinou a passagem,
não havia quem a viesse mostrar, estando os filhos fora: eram aqueles que
ali estavam brincando e que já tinham servido de guia aos companheiros
que iam adiante. Chamamo-los, eles vêm prontos, metem-se n'água, nós
os seguimos, em lugares chegou água ao sovaco do mais moço e às abas
dos nossos selins. Demos ao pequeno os cobres que havíamos e seguimos.
Pouco depois que saímos do boqueirão nos achamos em um país de aspecto
inteiramente novo para mim: era um terreno ligeiramente acidentado, ou
colinas mais elevadas, porém tudo em campo, coberto de capim seco e já
quase de todo destruído, com arvoretos ou moitas de arvoretos ou matinho
pequeno, mas muito soltos de modo a assemelhar-se com os nossos campos.
“Chama-se Campestre”, diz o Anastácio. Pouco depois, andando já sobre
montes com aspecto de sertão, avistamos a vila de Lavras, aonde chegamos
às dez horas do dia. Achamos os companheiros já instalados numa boa
casa, que estava cheia de homens e rapazes curiosos. Já o Sr. Teixeira nos
havia mandado preparar o almoço, que o achamos na mesa. Chá, bolacha,
queijo, manteiga e água mui boa; armaram-se logo redes, e refeitos nos
lançamos nelas.
Voltamos atrás.
[f. 137]

Engenho ou sítio Formoso

É propriedade do Sr. Firmino, major da Guarda Nacional; principiou


a fundá-lo em 1844, sendo então aquele lugar um deserto. As terras em

131
grande parte foram dote de sua mulher, mas ele as têm acrescentado,
comprando algumas porções contíguas, e hoje possui, segundo ele avalia,
16 léguas quadradas, tendo um dos lados por divisa o rio Salgado: todo
este terreno é um sertão, de superfície mais ou menos montuosa, coberto
de caatingas, carrascos e tabuleiros, com boas pastagens, com muitos matos
ricos em aroeiras, paus-d arco, braúnas, pereiros etc. etc.
Tem estabelecidos em suas terras 300 moradores, os quais não pagam
arrendamentos; mas diz ele que, quando precisa de trabalhadores, eles se
prestam de graça, dando-lhes só alimentos, reunindo às vezes 200 ou 300
homens. Em ocasião de eleições dá o major Firmino uma carga de 400
votantes no Icó. É do partido caranguejo.
Este homem inteligente (ele é o mestre das suas obras), industrioso,
perseverante tem apontado os dictérios, as zombarias e censuras dos seus
próprios amigos, e ainda mais dos seus desafeiçoados e invejosos. Tem gasto
com este estabelecimento para cima de 90 contos, sendo 60 para as obras
do açude e fábrica de açúcar. O açude é uma grande represa que quando
cheia forma uma [f. 138] vasta lagoa, que se estende por entre os montes
e com tal grandeza que, com a moagem de um ano e com outros usos, só
baixa cinco palmos. O seu grande fundo é de 70 palmos; hoje tem apenas
30 porque o esgotou para assentar uma nova porta d'água de bronze, que
mandou fundir em Pernambuco, por modelo feito por ele. Cria este açude
uma grande quantidade de peixe, e de peixes assaz grandes. Uma pescaria
quando as águas estão baixas pode dar 200 a 300$ [duzentos a trezentos
mil-réis] na feira do Icó. Os principais peixes são: curimatás, traíras, bagres,
branquinhos etc. Torna-se ávido à mesa com fartura de peixe.
Além desta grande represa, ele está fazendo outras, de modo que
espera ter mais de légua de terras regadas para lavoura, pelas vargens por
entre os montes.
É admirável ver-se no meio de um país cuja vegetação está toda
torrada e sem folhas, vargens cobertas de plantas cultivadas ou espontâneas,
do verde o mais vivo e do mais portentoso vigor.
O Sr. Firmino nos apresentou umas canas plantadas no inverno deste
ano, [f. 139] e que ainda não estão bem maduras com dez e 12 palmos e
grossura proporcional.

132
A cultura principal aqui neste sítio é da cana, mas plantam-se também
mandioca, milho, feijão, arroz, frutas, hortaliças etc.
(Em todo o sertão se plantam, durante o inverno, mandioca, milho
e feijão e arroz).
Atualmente, sendo ainda o fundo dos vales desigual, não podem
ser regados com igualdade pela água do açude, vindo por isso a plantar
com desigualdade. (Há sem dúvida lugares baixos e planos que são regados
igualmente, mas não isso o mais comum). Por isso eu lembrei ao Sr.
Firmino igualar os terrenos por meio por de um arado e ele prometeu fazé-
lo quando pudesse.
O baldo — assim chamam a parede que sustenta o açude — tem de
comprimento 300 palmos, de fundo 70, de largura em cima 30, e de base,
que é muito larga, não me lembro de quantos. Tendo começado o aterro
carreando a terra em coeros [sic], à maneira do país, e tendo já consumidos
uns 400 destes, mandou fazer uns carros apropriados para condução e
despejo da terra e com eles trabalha atualmente em outros açudes que está
fazendo.
[f. 140] A casa do engenho é grande e muito bem-feita; todos os
pilares e paredes são de tijolo e barro e os alicerces, largos e fundos de pedra
e cal. Todo o madeiramento é de aroeira e pau-d'arco, principalmente
tirantes, frechões, vigas de grandes dimensões (tudo lavrado a enxó),
caibros de pereiro serrados, ripões de cedro igualmente serrados. As
moendas são de ferro, grandes e fortes, assim como todas as mais peças
do mecanismo, e tudo é movido por água que vem do açude, que estará
a umas 100 braças distante do engenho. A roda d'água tem 30 palmos
de diâmetro, cisterna de tachos, caldeiras etc., [tudo] mui bom e bem
juntado: casa de aguardente grande, cômoda, alambique moderno com
excelentes aparelhos e utensílios. A água que move o engenho corre em
grande parte por canos escondidos, vai à casa da caldeira e do aguardente
servindo a diferentes usos. A casa do engenho é quadrada, tendo os lados
de 119 palmos. O corpo do engenho é grande. É uma das fábricas de
açúcar das maiores que tinha visto no Ceará. Ainda não está feita a casa
da vivenda, e o Sr. Firmino a tenciona fazer sobre uma colina que fica por
diante do engenho e sobremaneira a ele.

133
O Lagos tomou sobre tudo apontamentos mais mui minuciosos.
[f. 141]

Lavras

Segunda-feira, 21 de novembro: Pelas dez horas da manhã entramos


nesta vila, que está assentada numa quase planície à margem, não longe da
margem esquerda do Salgado, de cujo leito arenoso se tira excelente água.
Consta de uma grande praça, aberta de um lado, tendo do lado oposto
a igreja isolada e, por detrás desta e aos dois lados, filas de casas térreas,
e algumas — como em que estamos aposentados — têm na frente calçada
de tijolo mui alta e com três degraus para a praça. Além destas casas, há
ainda por fora ou em roda algumas formando pequenas ruas. O lugar é
alegre, arejado e mais fresco que Icó. Como já disse, tem boa água; mata-
se rês de dois em dois dias; não tem padaria; não há frutas nem verduras e
dificilmente se obtém leite. Todavia, temos passado aqui bem e com fartura,
fornecendo-nos comida um sujeito Machado. Os animais têm bom pasto
e ração.
Temos aqui o vigário, o coadjutor, juiz municipal, subdelegado, que
é aqui nosso vizinho, e um Sr. José de tal Teixeira, que é primo do Teixeira
do Icó e que muito nos tem obsequiado.
A gente do lugar é muito boa, afável, obsequiadora e de um caráter
franco e alegre. Tenho aqui notado nas crianças, que são numerosas, uma
boa constituição: gordas, fortes, coradas e todas de cabelos mui loiros, belos
olhos, mas sofrem muito deles.
[f. 142] Este lugar é abençoado, raras vezes há aqui secas. Em 45, quando
ela flagelou toda a província, não se fez sentir aqui, senão pela grande afluência
da gente que aqui se abrigou.
Há muitos engenhos de aguardente e rapadura. Plantam muita
mandioca, principalmente numa parte da serra da Vargem Grande que dá
muita e excelente mandioca; no resto desta serra (isto é, no alto) há muitos
bons pastos € não se pode plantar aí sem fazer cereais. Cultivam na vargem
e nas colinas mandioca, muito arroz, muito milho, feijão-de-corda e de
arrancar, e fumo, que é um dos ramos do comércio africano, o algodão. Há
também criação de gado, porcos e cavalos, de aves etc.; os ovos são a três
por vintém.

134
Ontem, 22: De manhã fiz alguns estudos e de tarde fomos todos,
com muita gente da vila, assistir a um casamento festejado com grande
samba, na casa de uns pardos matutos junto à serra da Vargem Grande,
daqui a mais de duas léguas. Quando lá chegamos — sete horas da noite — já
estava feito o casamento, que foi em casa, pelo padre (pausa) que também
assistia ao samba.
A casa coberta de telha fosca, chão de terra com uma comprida
varanda, onde estava armada uma mesa de mais de 40 palmos. As mulheres
sentadas todas do lado de dentro, os homens do lado de [f. 143] fora; e nós
fomos todos convidados a tomar assento, mas só tomamos uma xícara de
café, além de um copo de cerveja preta que me foi oferecido logo que me
apeei. Provei aluá de milho, assim como tomei alguns tragos de genebra
no mesmo copo onde bebia outra gente, e que com a mais ingênua sem-
cerimônia me ofereciam. Este copo corria também pelo mulherio, entre o
qual havia algumas senhoras e que não desdenham de tocar-lhe. A longa
mesa coberta com uma tosca toalha tinha espalhados pratos com arroz
com farinha, com galinha cozida, com carne assada e com umas sortes de
almôndegas, garrafas de vinho. Era bom ver como certas mulheres comiam
e como outras (as meninas) deixavam de comer por vergonha, ou comiam
duas no mesmo prato. Veio depois o café, em que tomamos parte.
Acabada a mesa formou-se o samba no terreiro. Estenderam uma
rede nos esteios da varanda e instaram comigo para que me sentasse nela,
o que não aceitei, e não fui mal no negócio porque puseram-me em uma
cadeira de couro em lugar onde estava ao lado das senhoras, com quem
eu conversava. Fui muitas vezes tirado, assim como as mais companhias,
mas levantávamos e tirava alguma senhora e principalmente alguma das
quatro meninas que melhor dançavam. Havia muita gente, [f. 144] mais
de 200 pessoas seguramente. Tocavam duas violas e uma rabeca; cantavam
uns dois ou três sujeitos. Com bancos se formou um quadrado bastante
grande, onde se sentavam nos três lados de fora homens, do lado da varanda
outro banco onde estavam os noivos, as meninas de que já falei, mais umas
mulatas. As senhoras ficaram sentadas dentro da varanda
Era uma reunião de matutos, pela maior parte cabras e mulatos, mas
havia muita gente branca de gravata lavada:* o padre, o juiz municipal, o

* A Comissão Científica em peso, com seus ordenanças.

135
escrivão e outras figuras, algumas das quais bem patolas e dançadores. Da parte
das senhoras havia também algumas brancas, e das melhores famílias do lugar.
Tudo boa gente. O dono da casa, pai da noiva, é um pardo, que
só pouco antes de nos retitarmos é que se nos apresenta com pé no chão,
camisa sobre as ceroulas e dando-nos mil desculpas por não ter aparecido
antes. Os noivos eram dois pardinhos.
Eram passadas dez quando nos retiramos, saindo conosco várias
pessoas. Chegamos a casa à meia-noite. O samba, depois da nossa saída,
é que tomou fogo, dançaram quadrilha, solo inglês e não sei que mais, até
amanhecer.
O passeio foi longo e alguma coisa penosa, mas contentou-nos
bastante.

[f. 145]

Lavras (2)

Quarta-feira, 23: De manhã estudei e desenhei várias plantas, com


interrupções dos visitantes e dos doentes. De tardinha, depois do café, vesti-
me e fui fazer a minha visita ao subdelegado, depois fui à casa do Teixeira,
onde achei duas mesas de jogo: uma de homens só jogava o trinta-e-um,
outra de senhoras e homens jogava o marimbo. Demorei-me pouco e
chegando a casa vieram várias mulheres para se receitarem.
Quinta-feira, 24: De manhã desenhei e estudei algumas plantas.
Tivemos a casa quase sempre cheia de homens e mulheres, que se vinham
receitar.
À noitinha vesti-me e fui fazer a minha visita ao padre vigário; mas
achando-o sentado à porta duma senhora viúva, aí lhe foram os meus
cumprimentos, e, sentado também, conversamos por algum tempo e
retirei-me.
À casa em que estamos é nova, não pequena; muito alta na cumeeira,
telha vá, telhado de caibros e ripas, sustentado por cinco terças de carnaúba,
de cada lado; as paredes interiores chegam só à altura da parede da frente,
ficando todo o telhado descoberto por dentro e comunicando-se todos os
quartos e salas por cima. Construção muito comum, direi mesmo geral pelo
interior do Ceará, e muito dentro das cidades. A sala de fora é ladrilhada

136
com tijolos em losangos e formando uma estrela no meio, para o que se
prestam mal os tijolos desta forma.
A cal é de pedra, como na maior parte da província.
[f. 146] As crianças andam nuas pelas ruas e praças, mesmo as das
principais famílias daqui. Há aqui muito poucos pretos, quase todo o
serviço é feito por mulatos e mamelucos (lá o major Firmino nos disse
que só tinha sete escravos). Vi aqui em Lavras velas de carnaúba de bom
tamanho, de dois e três vinténs, como ainda não tinha visto em outra
parte. Hoje estando à ceia e conversando-se francamente, o sujeito que nos
fornece comida e que assiste à mesa, e mesmo às vezes nos faz companhia,
contou entre outras o seguinte: Que um sujeito, não sei se O padre Vicente
ou Verdeche [Verdeixa], falando de casamentos dissera que o casamento dos
antigos era sempre acompanhado de três instrumentos: trombeta, tambor
e bacamarte. A trombeta terá, ou não terá? O tambor eu lhe ponho muita
dúvida — repelia-se o bacamarte [palavra ilegível).
Sexta-feira: De manhã ocupei-me com o estudo de algumas plantas,
e receitando para alguns doentes.
O Lagos e Manoel foram ao boqueirão, a examinar uma gruta que aí
há, e foram acompanhados de grande número de pessoas da vila.
Depois da ave-maria havia na igreja o que chamam adoração, eu
lá fui ver a igreja e a devoção. Saí antes de concluída; disse o Lagos que
depois houve penitência de disciplina no coro, então contou-nos o Sr.
Machado (que dá comida) que são homens e mulheres que se metem no
coro fechados, cobertos os rostos com lenços, e ali se disciplinam a fazer [f.
147] sangue, que suja o coro e o torna fedorento.
Hoje recebemos de presente da parte do subdelegado dois grandes
melões, que comemos. Hoje estavam melhor que os do Icó, mas não
excelentes. Ontem também nos mandaram dois pequenos melões e uma
pequena melancia, que ainda não comemos.
Nota-se ainda aqui em Lavras a ausência de insetos etc. Os mosquitos
(muriçocas) são raríssimos,* ao menos agora baratas ainda as não vi.
Moscas são poucas.*
Ratos e camundongos ainda os não vi.
* Agora (14 de março) há alguns.
* [Palavra ilegível] há bastantes.

137
Faz aqui algum calor, mas suportável.
De manhã, entre dez e duas horas, ventou bastante, ainda não notei
bem donde; mas talvez de leste ou sueste. À noite, entre sete e oito horas,
correu um vento bravo (aracati), que vem do norte e passa pelo boqueirão.
Temos notado também aqui poucos pedintes de esmola, exceto um
ou dois cegos. São aqui os casamentos muito frequentes. Na vila o vício
dominante é o jogo, e parece que não muito liso.
Logo que soa ave-maria toda a gente se descobre e [nos] pomos em pé
a rezar.
Nas sextas-feiras à noite concorre o povo à igreja [f. 148] para a
adoração. Nesta tem lugar a disciplina dos penitentes (esta penitência
começou com a pregação do padre (pausa)), e quando o vigário mandou
fechar o coro, porque o sujavam de sangue, se disciplinavam de noite na
praça.
Dizem-nos que são de ordinário gente dos matos, homens e mulheres,
mulatos, cabras, pretos e não sei se brancos também; vão com o corpo nu
para a igreja. Os homens com um capote e as mulheres de lençol, todos
com a cara coberta.
26: Hoje estive sempre em casa estudando várias plantas, receitando
etc., e de tarde sentado na calçada conversando e tomando notas que me dava
o Moraes. Diz ele que no Crato há um sujeito chamado Ludgero, que mora
fora da cidade uma légua, que é muito conhecedor de matos e plantas etc.
27, domingo: Eu estava ainda na minha rede tendo acabado de tomar
café, quando chegou o Lagos fele e o Reis tomaram outra casa, distante da
nossa e pelos fundos da Matriz) danado, porque lhe foi o café frio, tendo
estado a Romana com a bandeja a bater a nossa porta muito tempo sem que
alguém abrisse, mas o seu maior desespero era por não ter recebido cartas
pelo correio, chegado ontem à noite [...)]

[f. 149]

Lavras (3)
[...] nem Jornais do Comércio e só Mercantis, e esses com falta de números
etc. Segundo o seu costume disse despropósitos, destemperos, queria

138
imediatamente que eu fizesse um ofício, não sei se ao presidente da
província, se ao governo, queixando-se do correio, que se eu não quisesse
ele o fazia tomando sobre si a responsabilidade e mandando à capital um
próprio com o ofício; “se não remediar a isto vou-me para o Rio de Janeiro,
não posso aturar isto, não posso passar sem a minha correspondência, que
se perca a do governo não me importa”, sou muito egoísta etc. etc. Estas
últimas palavras se dirigiram a mim e eu sempre calado, dando de maneira
alguma razão para o não irritar mais. Afinal quando veio almoçar vinha
acomodado, rindo-se como se nada tivesse havido! Que homem singular!
Depois do almoço, quando ia me vestir para a missa, vi muito povo
de joelhos por fora da igreja, estava-se já dizendo missa. Vesti-me e saí a dar
um passeio correndo pelas ruas ou lugares que ficam por detrás e em roda
das casas de quadro da praça, e que de ordinário são casebres insignificantes.
O sol estava forte e o calor era intenso; o suor me corria na testa
caindo em bagos; não me lembro de ter alguma outra vez suado assim — [f.
150] em passeio. Não vi por aí nada de notável nem uma carinha bonita;
exceto se elas se retiravam, o que não pareceu. Aqui o que tenho visto de
melhor são as crianças, que andam nuas por toda a parte: gordas, fortes,
coradinhas, de cabelos loiros ou ruivos e bem-feitinhas, espertas. Esta
manhã entraram no meu quarto, estando eu na rede a ler, umas quatro a me
pedirem ameixas porque ontem eu havia dado algumas (ameixas silvestres).
Eu me levantei, tirei da canastra um cartucho dos confeitos que me mandou
a senhora do Dr. Théberge e dei um a cada um. Daí a pouco entraram de
novo no quarto a pedir mais e para outras crianças, e me atormentaram, eu
gritava, saíam correndo em algazarra, daí a um instante estavam outra vez
atormentando-me, até que veio um rapaz e as levou todas.
Durante a manhã levei a receitar e a ouvir os doentes.
Senti, quando fui à igreja, achar já o coro fechado porque ia ver
o como se acha emporcalhado pelo sangue dos penitentes. O assoalho e
paredes, dizem os que lá foram, estão cheios de sangue. É isto singular aqui
e no Crato.
De tarde estive na calçada conversando com vários sujeitos que aí
vinham e ao anoitecer saí a cavalo com um sujeito por guia e o ordenança,
e fui a uma légua de distância para ver uma doente. Em voltando tomamos
café, e fui eu com o Vila Real à casa do Teixeira e lá estivemos um pouco

139
a ver jogar o marimbo. (f. 151] O Teixeira estava de camisa sobre as calças
ou ceroulas e duas senhoras, a mulher e outra, entravam no jogo. O Reis
tinha-se retirado. Lagos e Manoel foram à fazenda do Fundão, do Moraes,
daqui a cinco léguas, e voltam amanhã.
28: De manhã fiz alguns estudos e receitei para várias pessoas. O
Teixeira me veio pedir que fosse ver a mulher e logo que acabei de almoçar
saí com ele. À senhora está pejada e sofrendo dos dentes. O Teixeira é um
homão, como aqui dizem, e talvez não tem mais de 40 anos; a senhora está
desfigurada e doente, tem ao todo 14 filhos, deles existem dez e destes, três
casados, duas moças e um rapaz. É um bom exemplo da prolificação deste
povo: casam muito meninos e enchem-se de filhos.
Os casamentos são muito frequentes. Nestes dias temos assistido a
vários casamentos, no Icó ao do filho do Gurgel, em Sítio Formoso outro,
em Lavras um, em Vargem Grande outro, e há dois ou três dias se casaram
aqui três, um na nossa vizinhança.
Há porém um reparo a fazer: não tenho visto muita gente velha, nem
no Icó, nem aqui (nas reuniões, nem nas igrejas). Dizem-me todos que há
alguma gente de 80, 90 e 100 anos — [f. 152] mas não é isso muito comum.
Se avaliarmos a salubridade do sertão pelo aspecto das crianças, parece-nos
sadio, mas temos sido aqui consultados por quase toda a gente da vila e do
campo. Às moléstias mais frequentes nas primeiras idades são as dos olhos e
há bastantes cegos e muito defeituosos, quase todas as crianças softem dos
olhos; nos adultos são as moléstias do figado, barriga d'água e congestões
cerebrais; as mortes repentinas, nos dizem, são aqui vulgares. As senhoras
são sujeitas a ofícios histéricos. Temos visto alguns casos de opilação, que
aqui chamam amarelidão.
À asma não me parece aqui tão comum como na capital. O mal
venéreo é bobalia [sic] e afeta a muita gente. E todos falam em gália [galico]
com a maior sem-cerimônia, mesmo as mulheres.
Não ouço aqui em Lavras se falar tanto em roubos de moças, como
no Icó.
Hoje veio aqui em companhia de algumas doentes uma mocinha bem
interessante; entraram pelos fundos da casa e não são as primeiras que fazem isto.
Depois de jantarmos, estando sentados na calçada, chegaram do
fundão o Lagos e Manoel.

140
Haviam dito que lhes guardassem jantar, mas o nosso fornecedor
Machado, entendendo que eles [...]

[f. 153]

Lavras (4)

[...] chegariam muito tarde, quando viessem hoje, não guardou comida,
tencionando preparar uma galinha para a noite. O Lagos porém pergunta
logo se lhe guardou comida, mandando saber em casa do Machado; este
veio dizer que não havia guardado, mas que ia fazer comida. O Lagos
desbarata logo: “Não quero mais nada, visto que não guardou comida,
como eu tinha ordenado; pago com o meu dinheiro e tenho direito a ser
servido a meu contento”. O pobre do homem olhando para mim disse:
“Que remédio!”. E foi para sua casa. Eu antes tinha feito toda a diligência
para acalmar o Lagos, até dizendo-lhe que eu que era o culpado, que nos
havíamos combinado naquilo etc. etc., a nada atendia. “Dei ordem, [disse
ele,] duro, a fazer, se fosse eu que cá estivesse mandaria guardar etc. etc.”; e
isto em vias altas, à vista da gente que estava na frente das casas. É preciso
ser louco! Vem a ceia do café à chá e com ele galinha ensopada e pão-de-
ló; sentou-se na mesa e come de tudo. O Machado manda dizer que de
amanhã em diante não fornece mais comida. Logo que participei isto ao
Lagos, mandou imediatamente buscar a conta que o Machado ficou de
mandar lá amanhã de manhã. Manoel e Vila Real querem continuar com
o Machado, o que me obrigou a ir convencer o Lagos; e chegando lá diz-
me ele: “Isto é diplomacia [f. 154] da minha parte, você verá amanhã,
traz ele a conta, eu pago-lhe e ele há de me perguntar se não quer que
continue, isto é gente miserável, estava fazendo um bom negócio conosco”
etc. etc. “Mas se ele não vier, como eu presumo”, lhe repliquei, “então o
Teixeira nos arranjará outra casa”. Incomodou-se quando eu lhe disse que
os dois querem continuar: “Isto é demais, companheiros”, disse ele, “é
mostrar desarmonia entre nós, é para desfeitear-me” etc. etc. De sorte que
nós outros havemos de estar sujeitos aos seus caprichos e disparates! Que
homem insaciável!
Depois da ceia eu e o Vila Real nos sentamos à porta, os nossos criados
e outros empregados da comissão formaram também um grupo ao pé e entre

141
eles se meteram duas mulatinhas aqui da vizinhança e nós nos entretínhamos em
ouvir as suas conversas, gostávamos de ouvir conversar a uma das raparigas. Vinha
saindo de dentro da nossa casa a parda Romana com a bandeja em que nos trouxe
a ceia. “Vem cá, Romanal”, diz a espevitada.
R [Romana]: “Que quer você que está aí tão fubada?”.
E [Espevitada): “Que é o que diz, mulata encharcada?”.
R: “Se estivesse aqui gente (falando conosco), eu te respondia... é por
isso que não chove...”.
Ia descendo os degraus e dizendo: “Deixem de pabulagens”. Disseram
mais coisas que me escaparam.
A Espevitada, como os rapazes a charqueassem, diz: “Eu sou do
mato”, mas [adverte que) não era tão matuta. [f. 155] “Os da praça não me
dão quinan”.
É um gosto ver esta gente falar, explicam-se muito bem, com termos
muito apropriados e pitorescos.
Ontem foi o dia muito quente. Esta manhã amanheceu o tempo
coberto e caíram alguns chuviscos, de tarde fuzilava no sul. Tínhamos
intenção de sair amanhã para o Crato, mas Manoel observou que daqui
a três léguas há uma mata com muitas árvores florescidas importantes, de
modo que nos propôs mandar lá amanhã colher essas flores. Nesse caso,
teremos de estudá-las depois de amanhã e só poderemos sair na quinta-
feira. O Lagos gosta muito quando temos algum dia de demora por nossa
causa.
29: De manhã estudei a flor e ramo da violeta. Receitamos a muitas
doentes pela maior parte afetadas do cérebro, por congestões algumas desde
meninas; afecções do piloro tenho visto algumas, doentes de fígado.
De madrugada, digo, ao romper do dia ouvi repiques de sino: era o
mastro que se levantava para as novenas de Nossa Senhora, cuja festa é a 8
do mês que entra. O Lagos foi hoje a pé visitar as lavras, ou betas.

[f. 156]

Às ave-marias, fazendo sinal para novena, preparei-me para ir a ela;


Vila Real não quer ir, Manoel está bastante incomodado do sol que ontem
apanhou e Lagos e Reis também não foram. Havia música, mas música do

142
sertão. A igreja, bem iluminada e bonita, a capela-mor está pintadinha de
novo e com certa elegância. Havia uma boa porção de mulheres, pela maior
parte brancas, poucos cabras e negros; muito poucos homens. As mulheres
com lençóis ou véus finos pela cabeça, algumas meninas bonitas.
Estes lençóis que as mulheres trazem pela cabeça foram a princípio
verdadeiros lençóis, com que as mulheres saíam da rede e com que saem à rua
e à igreja. Mas hoje só os muito pobres é que usam dos lençóis; em vez dos
lençóis são hoje toalhas com babados e rendas, e quase sempre mui limpos,
mas que conservam o nome primitivo de lençol. É o mesmo que acontecia
aqui no sertão e talvez mesmo nas cidades do litoral com os homens, que
andavam de camisa solta sobre as ceroulas e por cima um timão: assim [se]
recebia, saía à rua e ia à igreja. Hoje os timões são raros e em vez do timão
usam de um chambre; este chambre é ou era algumas vezes rico, de seda, de
veludo etc. Diz o Dr. Théberge que ele é que os fez desaparecer no Icó.

[£. 157]

Lavras (5)

Aqui em Lavras o nosso bom Teixeira não anda de outro modo, em


casa recebia-nos em ceroulas e para a praça saía de chambre.
Aqui esteve o Alexandre Caminha e um seu cunhado, que vêm do
Crato e vão para o Icó. Eu os fui visitar em casa do Ildefonso, subdelegado de
polícia, onde estão aboletados. Apanharam esta manhã uma forte pancada
de chuva; aqui não choveu, esteve o dia coberto e quente.
Devo aqui fazer uma declaração: desde Aracati, onde vi uma cascavel
morta, até o lugar em que estamos não vi mais uma cobra, nem um sapo.
Há muito poucos insetos, talvez no inverno a coisa não seja assim.
30: Levantando-me de manhã, achei a colheita que fez ontem o
Barreto: violeta, que já tínhamos estudado, unha-de-gato, um Oncidium
(rabo-de-tatu) e ramos de jatobá com botões. Estudei estas duas plantas
últimas.
Algumas pessoas me vieram consultar e entre elas um sujeito
da Paraíba, que traz a mulher doente. Vem de uns 15 ou 16 meses, era

143
sua tenção levar a mulher ao Icó a consultar o Dr. Rufino, mas sabendo
estarmos [f. 158] aqui, quis antes vir ter conosco. Prometi-lhe ir de tarde ver
a mulher. Com efeito, apenas acabávamos de jantar e tomar café sossegando
na minha rede, Seriam quatro horas e meia que nos chega o homem; vesti-
me e fui com ele à casa onde ela estava, que era perto.
A senhora é ainda moça e havia ser uma bonita menina, duma
tez um pouco morena, mas corada, tinha nos braços uma filha bonita
como um serafim: gordinha, clara, rosada, loira e olhos azuis (é isto bem
comum aqui nos sertões desta província, como nos dos confrontantes).
A sua doença é consequência de uma congestão ou derramamento
cerebral e data já de uns cinco anos. É uma moléstia muito comum
aqui nos sertões, entre as pessoas que me têm consultado. Muitos
homens e mulheres são afetados por esse mal e se diz que morre-se
muita gente de estupor.
Outra moléstia também singular, e da qual já tive três ou quatro
consultantes, é o espasmo de terço interno do esôfago, ou antes do piloro
(que impede a deglutição de alimentos sólidos, ou mesmo líquidos, que
às vezes são rejeitados, ou passam com dificuldade) e enfim moléstias de
olhos. Aqui em Lavras poucas crianças não sofrem dos olhos, há muita
gente defeituosa e cega.
Saindo daí fui visitar o padre, que está servindo de vigário, e
depois fui ao Setúbal aqui nosso vizinho: é português e está já aqui [f.
159] estabelecido há muitos anos. Casado pela segunda vez, é senhor do
boqueirão, uma serra de um lado e do outro. Achei-o sentado à porta e
a mulher também sobre a calçada (no chão) com uma criança ao colo.
Conversamos por algum tempo; mas pouco colhi dele.
Disse que a mandioca que mais se cultiva por aqui é a manipeba, que
está pronta em um e meio a dois [meses] e é muito rendosa. E perguntando-
lhe sobre o tamanho a que chega, disse-me que quando arrancam a mandioca
deixam ficar os pés mais mofinos, os quais na segunda arrancação, estando
já com três, quatro ou mais anos, chamam-lhes “capitães” e as arrancam
com tudo, cavando em roda e que dão, às vezes, raízes mestras que ele
compara com o seu corpo e altura e grossura, e ele é alto e bastante gordo.
Enquanto se cantavam as novenas eu estive algum tempo à porta
da igreja, ouvindo e vendo. A capela-mor bem iluminada e o coro, com

144
o sacramento exposto, produziam um bonito efeito. Está a capela-mor
pintada de novo, com seus dourados: simples e elegante.
Voavam pelo corpo da igreja alguns morcegos.
[f. 160] 1º de dezembro: Esta manhã, quando íamos almoçar,
apareceu-nos o Lagos (que depois que brigou com Machado separou-se da
nossa mesa*) e o Teixeira. Lagos disse-nos que amanhã, 2 de dezembro, ia
ao boqueirão outra vez para entrar segunda vez na gruta e fazer o desenho
do boqueirão. E dizendo-lhe eu que era dia de gala, e que ele pretendia
festejá-lo, respondeu que não importava, que lá ia e voltava; então o Teixeira
tomando a palavra propôs-nos uma festa para lá, concorrendo cada um
com 2$000 [dois mil-réis], que sua família e muitos outros iam para lá, de
manhã muito cedo a pé, que os homens iriam depois, levava-se comida, para
almoço e jantar; e que lá estando podia-se jogar, dançar, brincar etc.
Ninguém fez reflexão, todos prometem concorrer, bem que Vila Real
disse logo que ele lá não ia.
Mandamos logo a nossa cota; mas daí a pouco veio Teixeira com
ódio dizendo que sentia muito em desmontar-se a patuscada, mas que sua
senhora adoecera e vinha restituir o dinheiro, o que mande-nos aceitar,
tendo ele já feito algumas despesas com galinhas, vitelas etc.
Convém agora moralizar todo este negócio. O nosso amigo Lagos, que
cuida mais dos divertimentos do que do seu dever, foi sempre aproveitando
todas as ocasiões de demora [em] nossa partida, e nos marcou o dia de
sábado, 3 de dezembro, para ele: tendo ajustado com [...]

[£. 161]

Lavras (6)

[...] várias pessoas daqui festejou o dia 2 de dezembro, agora


isto sem combinar algum comigo, que lhe tinha dado, porque ele me
perguntou, o dia de quinta-feira. Na quarta de manhã, perguntando-
lhe se não saíamos no dia seguinte, respondeu-me simplesmente: “Não”.
Depois me veio consultar sobre um sarau que, dizia ele, o Teixeira lhe
tinha lembrado, para o dia 2 de dezembro! Ao que respondi que isso nos
não convinha, que fazia mau ver no Rio de Janeiro etc. etc. Soube depois
* Mas o bom do Machado continuou a levar o mesmo preço pela comida.

145
do mesmo Teixeira, que o disse a Manoel e Vila Real, que a lembrança
fora do Lagos. Desenganado daqui inventou esta outra patuscada para o
boqueirão, espécie de baile campestre, metendo ainda adiante o Teixeira!
É singular este homem! Não sei o que ele pensa! Não [Nem] que
contas quer dar. Estamos a perder dias e mais dias e eu amarrado.
Temos um contratempo bem desagradável: Manoel apanhou grande
soalheira no domingo e na segunda-feira, indo com o Lagos à fazenda do
Moraes, daqui a seis léguas, e está caído com a sua enxaqueca, tem tido
vertigem e febre. Não posso agora deixar de expressar aqui o desgosto que
ele me causou, talvez sem o querer, ou sem intenção; e não é a primeira
vez que ele me tem incomodado com suas maneiras desatenciosas para
comigo. E é o caso: na terça-feira ao almoço, estando presentes o Machado
e o Teixeira, este lhe pergunta se tinha aproveitado bem a sua viagem ao
Fundão. Ao que respondeu ele: “Aproveitou a comissão, mas não eu, que
vim muito incomodado, isto não me convém, [f. 162] vá lá quem quiser,
é melhor fazer o estudo em casa”. A alusão não podia ser mais clara, não
podia exprimir-se de outro modo querendo referir-se a mim. Eu fiz reparo
e disfarcei por estarem ali pessoas estranhas e não querer que eles notassem
desgosto entre nós. Mas dói-me muito e tanto mais quanto era a sem-razão.
Esta viagem foi ajustada entre ele e o Lagos e eu tive notícia dela,
que eles se preparavam para ela! É necessário que eu esgote as últimas fezes
deste colega!
Voltando ao pagode gorado, veio-me depois dizer o Lagos que
a razão foi porque faltaram os convivas com a contribuição.
A manhã gastei-a vendo e receitando a doentes, em ler, em lavar-me
etc. etc. Uma coisa notável é que aqui em Lavras não somos atormentados
por pobres a pedir esmolas; senão por dois ou três cegos, um dos quais pede
esmolas cantando ao som de uma rabeca. Algumas raparigas nos têm vindo
pedir para alforria; mas a isso nós temos esquivado.
Temos visto aqui cabaças enormes, que serviam de carregar água,
alguns carregam em pote bom.
Anteontem, ao almoço, apresentou-nos mamão picado em um prato;
provamos o fruto aqui estimado e grande recurso para a pobreza.
De tarde saímos a ir ver uma senhora doente, em cuja casa achamos
grande número de sucuins, vestidinhos já para novena. [f. 163] Sentados

146
à porta com uma boa roda conversamos um pouco, a fazer hora para a
novena; fomos primeiro ao largo, onde o Lagos estava levantando o mastro
e nós amanhã devemos içar a bandeira imperial.
Começou a novena e nos dirigimos para lá eu, o Lagos e o Reis e nos
pusemos por fora de uma porta lateral. Eles me conduziam ao coro, por
uma escada assaz trabalhosa, para ver o sangue dos penitentes. Com efeito
as paredes do coro estão salpicadas, e muito, de sangue, até altura superior
à do homem; o pavimento tem também manchas de sangue, em poça.
À igreja tinha bastante gente, muitas senhoras e meninas bonitinhas.
À gente baixa, entre a qual vi alguns cabras bastante velhos, trazia lençol
pela cabeça, as senhoras em xale de filó ou um lencinho pequeno dobrado
em triângulo e posto sobre a cabeça, cobrindo apenas o alto da cabeça, é
[palavra ilegível].
O nosso Machado é um dos primeiros cantores do coro, tem boa voz
e canto por música,
Dezembro 2: Às seis levantou-se a bandeira imperial ao som de tiros
e do hino de D. Pedro I tocado pelos músicos daqui. Depois do almoço o
Lagos e o Reis (que foi desenhar o boqueirão), acompanhados por muitos
homens da terra, foram outra vez ao boqueirão, entraram na gruta, mas
porque adentraram muito por ela adentro, mas na [palavra apagada] se
apagaram os archotes ainda não chegou ao fundo. Alguns morcegos saíram,
[duas palavras apagadas] por todos [duas palavras apagadas], como se
tivessem coqueluche, o Teixeira, que sabe [várias palavras apagadas] um
violento calafrio. Eu não fui, ama- [f. 164] -nheci um pouco incomodado,
ocupei-me com o estudo de algumas frutas e com arranjos da viagem. De
tarde veio-me o Lagos dizer que os oficiais da Guarda Nacional da vila se
propunham a assistir em grande fardamento ao descimento da bandeira [e]
que o Setúbal andava convidando gente para um sarau em casa da Câmara.
Eu saí e fui me despedir de todas as casas onde tínhamos conhecidos, voltei
depois das seis horas e fui-me pôr de casaca para assistir às festas. Com
efeito, juntamo-nos em roda do mastro. Eu de casaca, o Lagos também e
com suas decorações, o Reis com sobrecasaca militar e suas fitas, três oficiais
— coronel, capitão etc. —, muito bem fardados, músicos e povo. Tirado o
hino eu dei as vivas ao imperador, à Aâmula imperial, à nação brasileira, à
província do Ceará e aos habitantes de Lavras. Descida a bandeira ao som

147
de descargas e toque de hino, retiramo-nos; estava eu em casa, descansando
quando vim, dirigiu-se para ele um grupo acompanhado de música e,
chegando à calçada e em frente da nossa casa, pararam e os oficiais nefandos,
um deles, creio que o capitão, dirigiu-me uma fala, concernente ao dia, ao
que eu respondi mui laconicamente por não ter sido prevenido. Vieram
depois os mesmos oficiais a convidarem-nos para assistirmos à brincadeira.
Vestimo-nos e fomos para a casa da Câmara, que é um pardieiro ou antes
uma espécie de saguão, ladrilhado e de telha vá, com algumas cadeiras e
bancos toscos. Eu fui convidado a sentar-me em uma cadeira de braços,
para ali assistir, pouco depois começaram a entrar as famílias, talvez
passaram 30 senhoras e nessas algumas moças bonitinhas, como eram as
filhas do nosso Machado, e outras, pobremente vestidas mas não sem certa
elegância. Dançaram primeiro algumas quadrilhas, um pouco engrolados,
depois passou-se ao fado, no qual também nós fomos obrigados a figurar.

[f. 165]

Lavras (7)
Eram onze horas quando se deu fim à função. O dia de hoje foi
mais fresco, amanheceu coberto e chovendo pelas serras, aqui caíram alguns
chuveiros de manhã — a tarde foi de sol; já na noite de terça para quarta-
feira, depois da madrugada, deu aqui um forte chuveiro e constou-nos que
chovera também em lugar distante, daqui a cinco léguas.
3 de dezembro: Estamos prontos a seguir de Lavras hoje de tarde.
Às quatro e meia partimos, andando sempre pelas ribeiras do rio Salgado e
atravessando-o uma ou duas vezes, chegamos pelas oito e meia à povoação
chamada Venda, e nos fomos aboletar em casa de uma mulher parda que
nos hospedou e deu comida. Foi a casa logo invadida por muitos homens,
principalmente mulatos ou cabras, e meninos: aí se nos apresentou o Sr.
Benedito de tal, filho de Aracati, e hoje e daí já há alguns anos e, segundo
ele afirma, é um dos primeiros povoadores deste lugar e o que mais tem
concorrido para seu crescimento; foi ele quem começou a igreja que serve
de freguesia, cuja administração passou a outros e que está por acabar.
Em consequência duma promessa por ocasião duma moléstia, diz ele,
empreendeu edificar outra igreja dedicada a São Benedito, agenciando

148
para isso esmolas, porque, diz ele, “sou pobre, assim tendo o meu ofício de
alfaiate”. Esta igreja está quase concluída em lugar aprazível e ele, com o fim
de a [f. 166] acabar, ou antes de a acrescentar, empreendeu uma viagem ao
Rio, que a fez este ano e conseguiu dos deputados e senadores uma loteria
e obteve esmolas do imperador e da imperatriz, dos frades de São Bento e
de outras pessoas, tendo de ir ainda ao Rio no ano próximo assistir a correr
a loteria. Este homem nos obsequiou muito, parece sisudo e honesto; mas
há quem duvide de seu desinteresse e honradez.
Estando nós dormindo (a casa é na praça e muito próxima à igreja),
ouviu-se depois da meia-noite (era sábado) oração cantada na igreja. Fra o
canto forte, entoado, monótono, grave e que me infundia sentimento religioso,
mas atentando-se bem ouvia-se também tinido de disciplina, então acresceu
ao sentimento religioso certo horror. O Lagos e o Reis levantam-se e vão para
fora ouvir, aproximando[-se] cuidadosamente do templo, então, dizem eles,
ouvia-se perfeitamente o tinido das disciplinas, e horrorizados se retiraram;
eu levantei-me também, assim como Vila Real e Manoel — fomos mais perto
ouvir, mas nem pude perceber no meio do canto o som das disciplinas que
os outros ouviam. Enfim nos recolhemos fazendo cada um reflexões diversas
segundo seu modo de ver a respeito desses homens. Mal nos tínhamos deitado
quando ouvimos na calçada da nossa casa um dos penitentes pedindo esmola
e pedindo padre-nossos, cantando num tom lamentável e sepulcral que nos fez
ainda mais horror. Levantaram e saíram a vê-lo e darem-lhe alguma esmola o
Lagos, Reis e Manoel. O quadro era medonho no escuro da noite. Viram um
homem pardo, de constituição atlética, nu, tendo só a ceroula e esta arregaçada
até o alto das coxas, [f. 167] com uma grande pedra na cabeça e na mão um
tijolo com que batia nos peitos, com tanta força, que a mim, que estava na
minha rede, parecia que batia no chão e ao mesmo tempo continuava suas
lamentações medonhas, às vezes acompanhadas de grande pranto. Deram-lhe
a esmola e fizeram algumas questões a que respondia; mas se perguntavam
quem era, dizia: “Sou um pobre penitente”.
Havia já se disciplinado muito e clamava que já não podia com a
disciplina.
De manhã fomos todos ver a igreja, cujo corpo está ainda bruto, sem
teto; o espetáculo era para dar horror e enjoo. Às paredes, até maior altura

149
que a de um homem, estavam borrifadas de sangue a não haver onde se
pusesse um dedo; pelo chão, que é de terra, viam-se poças de sangue.
Este modo de penitência foi aqui introduzido, creio que há dois
ou três anos por um padre Agostinho, fanático religioso que o deixamos
na capital. Quando ele pregou por estes sertões, se exaltou de tal modo o
sentimento religioso do povo, que não se via senão penitência por toda a
parte: nos templos, nas casas, pelos matos; parece que algumas mulheres
morreram em consequência da abstinência e dos jejuns. Os penitentes
reuniam-se nas praças (não cabiam nas igrejas), aí se disciplinavam
horrivelmente. Faziam procissões rezando e disciplinando-se. No Crato
a coisa chegou à grandeza; hoje tem acalmado muito e parece que aqui
já cessou de todo, mas continua na Venda, em Lavras e talvez em outros
lugares. Os penitentes se apresentam [f. 168] nus das pernas e do ventre
para cima, levam sempre as cabeças cobertas. E as disciplinas são formadas
de lâminas de ferro, três ou quatro cortantes e afiadas pela margem; e
são desta forma e tamanho para mais ou menos enfiadas numa argola e
suspensa por uma tira de couro, ou de outra matéria. A penitência tem
lugar no sábado [palavra ilegível] ainda ladainha.

Muitos escarnecem desta gente e os têm por facínoras, hipócritas,


ladrões etc. etc. Asseguram que na noite de penitência há sempre algum
roubo de cabras e galinha etc, etc, que voltando da igreja vão para a casa de
suas amásias, que lhes lavam os cortes etc. etc.
É isso possível e creio que muitos são levados a isso por remorsos de
grandes crimes; mas é também possível que a exaltação e fanatismo religioso
imperem sobre muitos; seja como for o negócio não deixa de ser grave.
Seriam dez horas, fomos à missa em São Benedito. A igreja estava
cheia de mulheres e os homens, alguns pelo coro e umas varandas corridas do

150
coro para os lados da igreja, como se usa muito aqui nas igrejas dos sertões,
em uma das quais, a do lado do evangelho, estivemos nós todos, menos Vila
Real, e outros na porta da igreja e na praça. Era grande concorrência, pela
maior parte eram cabras, muitos mestiços etc. Entre as mulheres, envoltas
em lençóis, xales ou só lencinho na cabeça, havia algumas caras bonitas e os
homens eram muito vestidos de couro.
[f. 169]

Venda (8)

Terminada a missa uns meninos muito espertos afirmaram-nos


que ali não muito longe existiam letreiros em uma pedra. Dirigimo-nos
todos para lá e muita gente da melhor que ali estava nos acompanhou; os
pequenos, chegando ao rio (Salgado), que está seco e só com poças e tem
aqui o fundo de rochas, mostraram-nos o que eles chamam letreiros: era
uma veia de quartzo que tinha na rocha e que, fendida em várias direções,
apresentava-se a quem não sabe ler como uma linha de escrita. O Lagos
logo viu o logro [e] gritou: “É deste menino, quero atirá-lo na água”. Os
meninos se esparramam num momento e tudo deu em galhofa.
Vimos o grande poço que faz aqui o rio e que tem meia légua de
extensão e lugares muito fundos, com fundo quase sempre de rocha e que
forma no fim do poço uma vasta cachoeira, de pequena inclinação. Tem
este poço muito peixe e de excelentes vazantes.
A água que se obtém das cacimbas é assaz boa, bem entendido
deixando repousar pelo menos um dia, porque logo que se tira é quente e
turva e diz a gente do país que ela bebida logo produz rouquidão. Isto se
entende para toda a água da cacimba.
Aqui procurei eu ver se pelas pedras que dividem os poços corria água
de um para o outro e vi que isto não acontecia, ao menos em alguns lugares;
o que vem contrariar a hipótese que tinha formado a respeito das águas
[£. 170] dos poços do Jaguaribe e seus afluentes e é que a água baixando e
deixando de correr à vista e por cima da areia continua a correr por baixo
formando como um rio subterrâneo, em falha de melhor palura, pois que
vi e observei muitas vezes que quando um poço se comunica com outro
por um pequeno fio d'água vê-se perfeitamente a água correr aqui e sempre
para baixo. O Dr. Théberge, a quem expus esta observação, ainda a roborar

151
por outra sua, e é que, quando se abre uma cacimba, a água que se acumula
é turva, e começa logo a limpar-se. Mas limpa-se de cima para baixo. A
dificuldade que agora me opôs o leito pedregoso do rio, creio que se pode
explicar] talvez deste modo: ou a rocha tem fendas, ou tem areia por baixo
ou pelos lados, por onde corre a água, ou então para de correr, por efeito da
grande evaporação nos poços de pedra. O caso é que esta água dos poços,
se a não revolvem, conserva-a sempre limpa e sã.
Do rio voltando para a casa (isto foi antes da missa), acompanhado
pelo mestre Benedito, corremos grande parte da povoação, que consiste
num grande quadrado ou praça e uma rua, que faz o lado da praça em
frente da Matriz.
Quando íamos para a missa, vimos na praça fazendo-se feira e a
fomos ver; era feira pobre e nela vimos farinha, rapadura, bananas, mamões
etc.
[f. 171] Esta povoação pertence à freguesia de Lavras, a sua cultura
industrial consiste principalmente na plantação e preparação de fumo e na
de alguns [tipos de] algodão, e em algumas engenhocas onde se faz rapadura
e aguardente. Planta-se, nas vazantes, muito alho e cebola, que se exportam
para vários lugares, e enfim de mantimentos: mandioca (manipeba e
turtuga), milho, feijão e arroz.
Tivemos a casa sempre cheia principalmente de mulheres que se
tam receitar, jantamos e nos preparávamos para seguir viagem quando um
sujeito se lembra de pedir ao Lagos uma esmola para as obras da igreja. O
meu amigo aproveitou a ocasião para gritar contra os padres e vigários, que
eram uns usurários, que esfolavam o povo a quem não faziam a mesma
caridade etc. etc. E tudo isto porque estava despeitado com o capelão do
lugar, por não ter vindo visitá-lo! É um homem despótico, orgulhoso e
arrebatado, que não pode sofrer que lhe faltem com aquilo que ele julga que
lhe pode dar proeminência. É preciso que ele sobressaia em tudo, senão.......
De Lavras até a Venda vi pelo caminho (ribeiras do Salgado) as
plantas seguintes:
Braúnas com fruto
Gonçalo-alves id.
Aroeira id.

152
Carvoeira id.
Pereiro id.
Cajueiro-bravo id.
Mufumbo id.
Outro id.
Paraíba
Marizeira com flor
Canafístula com fruto
Madeira nova
Carnaúbas
[f. 172] Partimos depois das três horas para o lugar no pouso
denominado Juiz, à beira do Salgado, e que não é mais que uma pobre casa,
onde habita uma família de pardos e situada no meio duma caatinga, na
ladeira, e quase na fralda de um monte, por baixo do qual passa o Salgado.
Aí chegamos já noite, não havia nada que comer, nem uma galinha, nem
um capote, nem ovos, em uma palavra nada. Tivemos pois de esperar que
chegasse o comboio. Trazíamos linguiças, queijo, doce, café, chá etc., mas
para o café não havia modo de o fazer. A gente da casa, todos em ceroulas
grandes e pequenas, misturou-se conosco: é boa gente; o povo de saia
remexia-se lá por dentro e como a casa tinha poucas paredes se deixavam
ver andando da sala para a cozinha, ou espreitando-nos curiosas. Algumas
aparecem para se receitarem.
De manhã cedo começa o rumor, sempre se pode tomar uma xícara
de café com biscoitos etc. No se encangalharem os animais parece faltar
uma cangalha; eis [que] entra com seus furores o nosso [Lagos] clamando
contra os cargueiros, que deixaram vir ladrões furtarem as cangalhas! Os
donos da casa se afligiam e protestavam não haver ali os ladrões; e como eu,
por atenuar aqueles despropósitos, gracejasse, dirigiu-me também algumas
palavras menos doces, e eu aturando e gracejando: “Que remédio!?. Enfim
a cangalha se descobriu no lombo de um cavalo!
Enfim acalmado o tumulto, montamos a cavalo e partimos.
Era o pouso escolhido o Riacho dos Porcos. Pôs-se adiante o
Lagos, acompanhado pelo mestre Benedito e o seu ordenança. Nós famos
andando a nosso cômodo e observando o país e sua vegetação. Passado
o riacho da Caiçara, entramos nos Cariris, disse o Benedito, mas ainda

153
não mudava o aspecto do país, era ainda o mesmo sertão árido, mas de
alguns lugares se tinha a vista do Araripe, entre Venda e Juiz.
Saindo de Juiz, começamos a subir e descer uma série [...]

[f. 173]

Juiz e Riacho dos Porcos (9)

[...] de grandes montes cobertos ora de caatingas ou de tabuleiros, aos


quais diz o Benedito se dá o nome de morro Dourado, provavelmente é
algum deles que tem esse nome. Quando chegávamos nos altos tínhamos
vistas muito variadas do país, que é montuoso (aqui chamam morros aos
montes maiores ou menores do sertão, ou de outra parte, chamam serrotes
aos montes pedregosos e com pouca ou nenhuma vegetação, chamam
serras a montanhas como a da Aratanha, Maranguape etc. e também aos
grandes montes, rasos, ou chapadões do interior, como são o Apodi e
o Araripe). Todos estes montes têm muita madeira preciosa, como são
aroeiras, gonçalo-alves, braúnas, paus-d'arco, violetas etc. Descendo do
morro Dourado nos achamos em grande planície, pertencente à ribeira
do Salgado, e por alguns tempos marchamos à beira de um riacho, de que
não sei o nome.
Nestas baixas a vegetação era mais vigorosa, mais viçosa, mas já
quase desprovida das madeiras de cerne. Aqui (nas ribeiras do riacho) são
ingazeiros, guaratimbós (que chamam também ingá), sabonetes, figueira
etc. etc. Chegando ao lugar onde devíamos atravessar o leito do riacho
(seco), o que tem o nome de duas passagens e nos parecendo já suficiente
viagem para os animais de carga; e porque estávamos na ideia de que o Lagos
seguisse para Missão Velha, como nos disse, sendo-nos assim indiferente
este ou aquele ponto, e havendo aí no alto da ribanceira do riacho uma casa,
fomos a ela perguntar se havia lugar e cômodo para pouso [f. 174] nosso
e do comboião (como aqui dizem). Achamos na casa somente meninas e
meninos, os pais estavam fora.
Os pequenos muito espertos nos receberam dizendo que podíamos
pousar e fizeram diligências para isso; foram mostrar os cercados, os pastos
etc. etc., e enquanto o irmão mais velho andava com o meu ordenança

154
mostrando-lhos, eu sentei-me num banco e comecei a conversar e gracejar
com os meninos: são brancos, alguns bonitinhos e corados. São oito irmãos,
dos quais o mais velho terá 12 a 14 anos. A casa pequena, coberta de telha,
paredes barreadas de pau-a-pique e embaixo terra.
Duas meninas, uma teria oito a nove anos e a outra seis a sete, a mais
velha achei-a cosendo e a mais moça tinha nos braços um irmãozinho de
pouco mais de ano; outro de mama estava na rede. Era um gosto ver como
estas crianças falavam e discorriam. “Meninas”, lhes perguntei, “não há aí
nada que comer-se?”. “Nada, senhor, não há galinhas ou capote para vender,
não, senhor; há só estes pintinhos”, mostrando-nos uns franguinhos que
andavam pela sala. “Mas então vocês [0] que comem?” “Pois o senhor não
sabe?” (rindo-se). “O que almoçaram hoje?”. “Farinha, senhor”. “Farinha
só?”. “Só, senhor, somos tão pobres!”. “E o que hão de jantar?”. “Pão de
milho (cuscuz), meu pai já vem para socar o milho”. “Então só pão de
milho?”?, “Só, senhor”, respondia rindo-se.
Depois de muito questioná-las, concluí que almoçavam farofa de
farinha e ao jantar, cuscuz, e que não ceavam. Estas crianças repetiam tantas
vezes “Nós somos tão pobres!”, sorrindo-se e com um acento de resignação,
que me comoviam.* Os meninos me rodearam e observam todos os meus
trajos com curiosidade e inteligência. “Isto há de ser muito”, indicando o
pano [f. 175] do meu paletó: “Isto é ouro?”, pegando-me na corrente do
relógio etc. etc. À mais moça das meninas não se queria chegar para mim,
falando sempre de longe, e um dos irmãos dizia-me [que,] se lhe desse uma
moeda de ouro de 20$ [vinte mil-réis], ela viria. São assim estas meninas
do sertão etc. etc.
Examinado tudo pelo ordenança e vendo que a água para os animais
era dali a meia légua, Vila Real instou para que fôssemos para diante em
busca de outro pouso. Separei-me destes meninos com pesar, caminhamos
mais uma meia légua e chegamos ao pouso chamado Riacho dos Porcos,
bem que esteja à beira do Salgado, mas é pelo riacho dos Porcos que vem
do Jardim, faz barra no Salgado pouco acima desse lugar.
Há na frente da casa e à beira da estrada dois grandes cajueiros, dos
que chamam “cajuim” por darem uma fruta muito pequena. Embaixo
deles estava arranchado um pequeno comboio: a casa é pequena e o seu
* Os machos diziam que tinham muita vontade de aprender a ler, “mas não temos quem nos ensine”.

155
proprietário o Sr, Manoel Pereira, homem de 79 anos, ainda com certo
vigor e conversando muito bem, casado com uma parda (ele parece branco)
quase da sua idade, tem tido bastantes filhas, mas todas têm saído, e só tem
consigo uma que é viúva e muito doente. Mostra-se indiferente a partidos;
nas guerras do Pinto Madeira hospedou as suas tropas e o próprio Pinto
Madeira, assim como hospedava os seus contrários. Estando aqui reunidos
vários matutos, dos quais alguns se vinham receitar, entre conversas diziam:
“Então os senhores vieram correr todo o Brasil?”. Queriam dizer todo o
Ceará, porque para [f. 176] esta gente o Brasil é o Ceará; tudo o mais é
estrangeiro. Vimos nestes lugares muito jatobá, jurema-preta, carvoeiras da
flor roxa e amarela (Callisthena), cajueiros-bravos, pau-amarelo, canafiístula,
madeira nova e tingui-capeta. Estando eu e o Manoel colhendo algumas
plantas, passavam dois sujeitos (pardos ou cabras) e chegando-se para nós
perguntaram para que fazíamos aquilo, e dizendo-lhes nós, por graça, que
estávamos descobrindo as riquezas do seu país, replicaram dizendo: “Nós
cá somos empedrados, não sabemos nada”.
Partimos do pouso do Riacho dos Porcos às oito e meia, e às onze
estávamos em Missão Velha, povoação das mais antigas do Cariri, mas
que nem por isso está muito adiantada. Tem um bom templo, grande,
limpo e ornado por dentro, diz o Lagos; eu não entrei nela, mas não está
concluída e a povoação forma um grande largo quadrado, de casinhas
antigas, insignificantes e pobres, com palhoças dispersas em roda. O mestre
Benedito levou-nos para uma casa de seu conhecimento, onde fomos mui
bem tratados. O dono da casa é o Sr. Joaquim José de Souza Júnior, pardo
bem escuro e a mulher a Sra. Ana Maria da Fé, parda clara de seus 46
anos; são ambos naturais do Icó, casados há 30 anos e nos 24 primeiros
tiveram 23 filhos; destes existem dez: é excelente gente. O Sr. Souza me
parece homem sisudo, a mulher, boa criatura, alegre, conversadeira, muito
obsequiosa.

[f. 177]

Missão Velha (10)

Não perdiam ocasião de conversar conosco; até de noite veio ela


mesmo dar-me água aos pés, numa bacia de rosto e queria por força me lavar

156
os pés, o que não consenti. Têm uma filha de 14 anos pardinha clara, gentil
e honesta, os filhos rapazes desembaraçados, industriosos, quase todos com
o talento de músico; um deles toca vários instrumentos, canta modinhas
etc. e muito mais gostei dos dois mais moços, dos quais o caçula, que tem
seis anos, canta com gosto, e outro de sete para oito acompanha de viola e
canto, e muito bem. Passamos nesta casa um dia bem cheio e alegre. Vieram
a casa algumas pessoas receitarem-se, de tarde visitei o vigário e um doente.
Em casa do vigário tomamos conhecimento com o Sr. Bernardino Gomes de
Araújo, homem curioso e noticioso e que tem escrito sobre a crônica antiga
de Missão e Cachoeira, notas dadas principalmente por sua mulher, que é da
família dos Arnauts, uma das mais antigas do Cariri (tem um filho no Rio de
Janeiro estudando na Escola Militar: é Filinto Gomes de Araújo).
Passa pela vargem o rio Missão Velha, que recebe antes o riacho
do Gato e que vai se lançar no Salgado: este rio nas enchentes abarrota a
vargem, mas logo evacua como aí se explicaram.
Aqui se mata gado nos sábados, uma a duas vezes, às vezes também
no meio da semana; nas sextas e sábados come-se peixe, ou dos poços ou
salgado, vindo do rio de São Francisco, como são o surubim, a curimá, a
curimatá etc.
Este comércio com o rio de São Francisco começou há pouco tempo;
faz-se pelo sertão com a vila de Juazeiro daquele rio, sendo viagem de 84
léguas. Do Ceará vai rapadura, [f. 178] aguardente erc., e do São Francisco
vem peixe salgado, matalotagem etc.
Não posso deixar de contar aqui ainda uma do nosso Lagos. Chegando
a Missão Velha pelas onze horas, foi-nos pouco depois apresentado o
almoço e, estando eu à mesa, perguntou[-se]-me na ausência dele a que
horas queria o jantar, eu respondi que quem almoçava daquela maneira
(era galinha com arroz, café etc.) e àquela hora podia jantar às seis horas.
Vindo o Lagos e inquirindo sobre a hora do jantar, se lhe respondi que eu
havia dado às seis horas, ao que pronto retorquiu: “Ele tem o seu estômago
e eu o meu, e quero jantar a hora que me convier”. Isto é que é ser bom
companheiro. O homem despótico, irritável, não sofre fazer um papel
secundário, é necessário que ele dé ordem a tudo!
Dia 7: Almoçamos e partimos. O Lagos queria chegar neste dia ao
Crato, supondo haver lá grande festa; mas achou-se enganado. Parti pois

157
com o mestre Benedito. Nós, eu, Manoel, Reis, Vila Real, o Sr. Bernardino
e um filho do nosso hóspede, o tocador de vários instrumentos. Na
véspera, quando vínhamos para Missão, quisemos ir ver a cachoeira com
a sua célebre gruta, mas, quando chegávamos ao Arraial da Cachoeira, o
Lagos, que tinha ido muito adiante com o Benedito, já vinha de volta.
O Benedito nos foi mostrar e desanimou-nos dizendo que a cachoeira
era ainda dali a meia légua; o sol estava ardente. Nesse caso ajustamos
de ir a ela hoje quando voltássemos para seguir para o Juazeiro. Agora
tínhamos almoçado, era já tarde, a viagem à cachoeira e gruta penosa [f.
179] e o Sr. Bernardino aconselhou-nos de não irmos lá; e que em vez
disso nos ofereceu a sua casa, bem que a reconhecia insuficiente. Está o
seu sítio daqui a meia légua e na direção do caminho que devíamos seguir,
aceitamos a proposta e fomos pousar ali, chegando pelas dez horas. Daí se
despediu o filho do Sr. Souza.
Este sítio que tem um engenho (moendas de pau) do tamanho dos
nossos e cujas terras são propriedade do Sr. Bernardino trazidas em dote
por sua mulher, que é da família antiga dos Arnauts, tem o nome de Ossos,
porque diz o Sr. Bernardino [que] aqui se deu uma peleja entre os Feitosas e
Montes, permanecendo por tempo sobre a terra os ossos dos mortos.
Passa por perto da casa um córrego, riacho dos Ossos, de água corrente,
limpa e potável e não longe da casa forma um poço de bom tamanho e
profundeza para banho, e sombreado perfeitamente por duas oiticicas e uma
ingazeira. O Sr. Bernardino lhe pôs o nome de Banho das Ninfas e lhe serviu
de assunto a um poemeto intitulado “Poema Campestre”, que não deixa de
ter merecimento contendo alguns versos felizes e imagens graciosas; logo
que chegamos no-lo deu para ler, e depois fomos ao banho. Quando lá
chegamos, estando ele ocupado pela filha e raparigas da casa, desviamo-
nos eu e o Reis e andamos vagando, dando tempo a que saíssem. Voltei e
já lá achei Manoel lavando-se e Vila Real com suas cerimônias; despi-me e
quando já estava regalando-me, chega o Sr. Bernardino que assistia ao meu
[palavra ilegível).
[f. 180] Vindos para casa, achamos redes estendidas no corpo do
vergante, que é aberto, e nos entretivemos lendo ou conversando, tomando
notas sobre coisas do país até o jantar, que se pôs às quatro horas. Acabado
o jantar apareceu-nos a senhora e sua filha para se receitarem. Receitamos,

158
conversamos, tomamos café, comeu-se doce, bebeu-se água e montou-se a
cavalo acompanhando-nos o Sr. Bernardino até sair à estrada.
Seriam sete horas da noite quando chegamos ao Juazeiro e nos
aboletamos em casa de uma família, por intermédio do subdelegado do
lugar que ali estava e que nos obsequiou quanto pôde e foi para seu sítio
que é dali a alguma distância. Toda a família, pai, mãe e meninos estiveram
sempre fora na calçada, as meninas em saias, desde a menor até a imediata
à mais velha, que só nos apareceu de manhã.
É gente branca, pobre, como é quase tudo aqui pelo sertão.
Às meninas e rapazes são espertos e conversados e nos serviram de
entretenimento. Uma delas, Rosa, tem um olho perdido. (Notei que em
Missão Velha havia pouca ou nenhuma moléstia de olhos e é lugar muito
sadio porque aí vi muitos velhos.) O vigário não tardou em aparecer,
vestido de batina e chapéu de dois bicos, é moço e me parece modesto,
sisudo e de excelente caráter. O Lagos havia jantado com ele e ele nos
esperava também para pousarmos em sua casa, e mostrou-se sentido de
termos vindo para esta outra; tendo conversado um pouco retirou-se e
logo depois nos mandou um pão-de-ló e outros docinhos feitos por suas
manas, com quem ele vivia. Era noite de luar, deitamo-nos tarde. Depois
da meia-noite deu um bom chuveiro.

[f. 181]

Juazeiro (11)

Levantamo-nos de manhã, vestimo-nos para entrar no Crato, quase


no meio da gente da casa e das meninas com suas sainhas (depois do Icó
a maior parte da gente do povo e mesmo algumas senhoras em sua casa
andam vestidas de saia, com camisas finas, transparentes, cheias de crivos,
entremeios, rendas, babados etc. etc.). Fomos nos despedir do vigário, daí
fomos à igreja, que já estava aberta: é grande, mas está ainda por dentro e
por fora inteiramente nua, parecendo que nem emboçadas estão as paredes.
Voltamos para casa, tomamos uma xícara de café com pão-de-ló, de que nos
mandou o vigário e que o demos quase inteiro às meninas; e à mais velha
dei-lhe 10$ [dez mil-réis) para que repartisse com suas irmãs, [com] o que
ficaram muito contentes. Despedimo-nos desta boa gente e partimos.

159
O caminho que do Juazeiro conduz ao Crato é de três léguas — [de]
estrada plana, arenosa, tortuosa — e bordado de vigorosa vegetação; era
uma estrada das vargens do Rio de Janeiro. Ao lado direito nos ficava uma
vargem fresca, por onde passa um rio, e toda plantada de cana-de-açúcar,
havendo à beira do caminho 13 engenhos, às vezes quase juntos. Quando
chegamos ao alto dum morro sobranceiro à cidade, se nos ofereceu um
bonito panorama, por diante fechava o quadro a serra do Araripe, que não
é mais que uma vasta chapada rasa e igual, como a do Apodi, adiante da
qual [f. 182] fica a bacia do Crato, toda vestida de vigorosa vegetação e
formando contraste com o aspecto do sertão. No centro e por entre o verde
das árvores aparecia a torre da Matriz. À estrada, descendo moderadamente,
oferecia grupos de gente com trajes domingueiros que concorriam para a
missa,
Tudo isto era aprazível e agradável. Logo que entramos na cidade
vimos o Guilhermino, ordenança do Lagos (o qual já aí estava de véspera),
que nos conduziu para a casa do Sr. tenente-coronel Antônio Luís
Alves Pequeno Júnior, irmão do Teixeira do Icó, a quem fomos por este
recomendados. Veio nos receber à escada e nos conduziu logo para a sala
do jantar e sentou-nos a uma mesa farta e delicada (já iam começando a
almoçar porque só contavam conosco depois das onze horas e são pouco
mais de nove).
Depois do almoço fomos para o sobrado que nos está destinado,
acompanhando-nos até lá o Sr. Antônio Luís Alves*
Tendo eu em ocasiões de grande desgosto e de contrariedades escrito
algumas notas duras sobré o Lagos, pede a justiça que declare que aqui no
Crato se tem tornado outro, trata-me melhor, escreve com toda a diligência,
e sem mesmo eu pedir-lhe, a correspondência oficial e está se ocupando
mais, ou antes bem, de sua seção.

* Este Sr. Antônio Luís é uma das principais pessoas do Crato e talvez o maior capitalista e negociante.
Tratava bem em sua casa. É homem de excelentes maneiras e grave. Aqui nos tem tratado com delicadeza
e nos tem obsequiado muito.

160
Estada no Crato
8 de dezembro de 1859 a 29 de janeiro de 1860
[1-28,8,6]

[f. 183]

Crato (diário)
Dia 8 de dezembro: Chegamos às dez horas, almoçamos em casa do
tenente-coronel Antônio Luís Alves Pequeno Júnior e viemos ao meio-dia
para nossa residência onde já achamos Manoel e Vila Real, que chegaram
depois de mim e daí estava já o Dr. Macedo, que nos foi visitar. O Lagos
ajustou a comida com uma preta miúda da Bahia. Depois do jantar visitou-
nos o Sr. Joaquim do Bilhar, homem pardo e proprietário aqui, filho do Icó
e que nos disse mal da sua terra (por não serem aí progressistas?). Ele hoje
é Icó [Crato]. Às ave-marias saí com o Vila Real, à fresca como estávamos e
demos um passeio pela rua do Vale, que fica por detrás da nossa casa, cuja
frente é para a rua do Fogo. A rua do Vale é uma triste e pobre rua, mas
larga e longa; fazia calor, mas menos que no Icó.
Dia 9: De manhã escrevemos para o Rio e para o Ceará, tendo
achado aqui a nossa correspondência que passou por nós em Lavras e veio
parar aqui.
Fizemos alguns estudos botânicos.
Recebemos visitas do Sr. Dr. juiz de Direito, do Sr. Antônio Ferreira
Lima Sucupira, cego e muito noticioso, e do Sr. Antônio Luís Alves Pequeno
Júnior. E de tarde fomos visitados pelo Sr. Dr. promotor e o Sr. delegado de
polícia. A tarde estava quente; a sol forte saí com o Lagos a pagar algumas
visitas e ver alguns doentes. Visitamos o Dr. Macedo e depois fui eu só ao
Sr. Antônio Luís Alves Pequeno Júnior. Quando [f. 184] tomávamos chá,
ouvíamos canto semelhante ao dos penitentes da Venda. O Lagos saiu e foi

161
observar no morro que nos fica por detrás e viu muita gente sentada ao luar
e rezando; são com efeito penitentes? — pela maior parte mulheres, mas não
se disciplinam.
Dia 10: De manhã ocupei-me estudando algumas plantas e recebendo
visitas.
Uma das coisas que mais aqui nos atormentam é a quantidade de
pobres, de órfãos, de aleijados, de cegos, de presos da cadeia, que nos
vêm pedir esmolas, de joelho e chorando. É uma miséria terrível e nós
não podemos satisfazer a todos e nos achamos em grande embaraço.
Eles supõem que seremos muito ricos e que podemos fartar a todos. O
que fazer? Como resistir a tanta desgraça? Uma maneira que eles têm de
levar-nos dinheiro é singular: trazem-nos um presente (são ovos, mangas,
animais, galinhas etc. etc.) e é claro que a esmola deve ser superior ao
valor do presente. O que fazemos é dar-lhes alguns cobres e restituir-
lhes o presente, com um presente que lhes fazemos. Não é um modo
engenhoso de obter dinheiro? Às vezes nos vemos tão aborrecidos, que
tomamos o presente e o restituímos no mesmo momento sem lhes dar
nada, com o que não vão contentes.
[f. 185] De tarde não saí com preguiça de visitar, com o calor.
Dia 11 (domingo): Perdi missas porque depois de almoço, indo me
preparar para ir à igreja, vi da janela que o povo saía já da missa e pus-me
a trabalhar, escrever, desenhar, ler etc. Recebemos um bom presente do
Dr. Macedo: mangas, ananás e uma bonita cesta ou cartela de açúcar, ou
alfenins, toda cheia de ramos, pássaros, serpentes etc. etc.
Perseguição de pobres e de presentes a vender. Foi o dia de hoje tão
quente como o de ontem. De manhã, ao romper do dia, estando a serra do
Araripe coberta de nuvens, parecia que chovia aí.
Em razão do calor não tive ânimo de me vestir e saí à fresca com o
Vila Real a passear pelo monte Barro Vermelho, que fica ao sul da cidade,
de cujo alto se avista toda a cidade.
Dia 12: De manhã desenhei e estudei algumas plantas, sendo
interrompido por visitas e pelos pedintes. De tarde fazia muito calor e
ao anoitecer saí a visitar algumas pessoas. Visitei o Dr. promotor, que
mora defronte de nós, e daí fui ao delegado de polícia, que fica no fim
da rua. Aparece a senhora e mais vários sujeitos e conversamos até quase

162
oito horas. Ão sair estava a noite escura e um cunhado do delegado me
veio acompanhar até a casa. Tanto numa como na outra casa se conversou
muito sobre coisas [f. 186] da terra. Ainda nos referiram aqui o que já
tínhamos ouvido em Aracati, que havia uma casta de morcegos que são
embocetados: tomando-se um deles e atirando-se no chão sai de dentro
outro, e atirando também este no chão ainda saí de dentro outro!! Assim
como de um lugar ou tremedal no Timbaúba, que cavando-se nele uma
cacimba junta-se água e logo aí aparecem peixes, saindo da terra ou do
fundo da cacimba. Histórias de grutas de pedras de peixe, de açudes
grandes etc. etc.
Dia 13: Estávamos juntos para subir hoje a serra do Araripe, mas a
chegada do correio nos fez deferir essa viagem para amanhã. Teve o Lagos
notícia da morte do Dr. Ildefonso Gomes no Rio.
Fechamos a nossa correspondência, vimos doentes, demos esmolas
etc. etc. O dia foi muito quente; as moscas muito importunas. Às ave-
marias fui visitar o Dr. juiz de direito e em sua casa estivemos sentados na
calçada, no meio de uma grande roda, onde se conversou bastante. Hoje
vi e conversei pela primeira vez com o Sr. Jucá,* sujeito singular e de má-
fama. Seriam oito horas quando nos separamos.
Dia 14: Depois do almoço, eram quase dez horas, o sol já bem quente,
montamos a cavalo, eu, o Lagos e o nosso coletor Barreto, para subirmos o
Araripe, e chegamos ao alto 20 minutos antes do meio-dia. São boas duas
léguas. Embaixo era o calor fortíssimo, mas no alto da serra a temperatura
era bem suportável. Estavam lá em um rancho aberto duas mulheres pardas
e um rapazinho [f. 187]; tinham até algumas frutas de jatobá. Disseram-
nos que ainda não tinham almoçado e tinham ido colher frutas como
marangabas, jatobás para comerem. Que miséria, antes queriam esta vida de
selvagem do que sujeitarem-se a trabalhar! Dei alguns cobres aos pequenos,
provamos da fruta de jatobás, que é seca e desenxabida. Disseram que este
da serra é melhor que o jatobá da vargem, cuja fruta é maior e tem mais que
comer, mas não é tão saborosa. As marangabas ainda não tinham colhido.
A vista do alto e beira-serra é larga e bonita, vê-se a perder de vista grande
parte do Cariri; todo ele é mais ou menos montuoso e com serras baixas. O
* Sobre este nome o autor escreveu Bernardino de Castro Freire.

163
Crato, digo, a cidade via-se embaixo parecendo antes um montão de pedras
do que uma cidade. Viam-se de cima os telhados.
Na descida, em lugares muito íngremes e o cavalo, com que se atolava
num pó vermelho finíssimo e que se levantou como fumo, eu me apeei e
desci a pé puxando o cavalo não sem receio [de] que ele viesse sobre mim.
Chegamos à cidade suados, empoeirados e andamos muito devagar,
parando, observando o país, colhendo plantas e detendo-nos às portas das
casas à beira do caminho — e que são muitas — para beber água, cervejas e
conversar.
Em uma destas duas meninas muito crianças e interessantes me
ofereceram limas e mangas com muita graça; dei-lhes alguns cobres.
De tarde muita calma e eu enfadado não saí.
[f. 188] Dia 15: Desenhei e estudei algumas plantas. Visitou-nos
o redator d'O Araripe, o Sr. João Brígido dos Santos, e mostrando-lhe eu
desejo de ler o seu jornal, ofereceu-me para isso a sua coleção. Na saída
mandei o ordenança acompanhando-o para me trazer. Este moço inteligente
e trabalhador nasceu em S. João da Barra, em Campos, mas veio pequeno
para o Ceará com seu pai, que era cearense.
Falando do Icó, disse com certo desdém que a gente dali ou é
portuguesa, ou aportuguesada, que é gente estacionária, afeminada, pouco
dada ao estudo etc. etc, No Icó também não se fazem boas ausências do
Crato. Lá estas rivalidades que temos sempre notado em toda a parte, como
entre a capital e o Aracati, como aqui no Cariri a respeito do Exu, Jardim
etc. etc.
Logo que chegou a coleção atirei-me a ela e hoje comi todo o primeiro
volume. De tardinha saí a fazer visitas, mas só visitei o Sr. Sucupira, que
o achei sentado à porta com outras pessoas; chegou depois o Dr, Macedo
com sua senhora; eram oito horas quando me retirei para casa.
Dia 16: Deu de madrugada um chuvisco. Amanheceu o tempo
chuvoso, mas melhorou logo. De manhã ocupei-me com o estudo de
plantas, interrompido por visitas e pobres que pediam esmolas. Li depois
O Araripe. De tarde, não tendo feito a barba e fazendo bastante calor, bem
que menos que ontem, não saí.
[f. 189] Dia 17: De manhã estudei botânica, consultas e leitura d'O
Araripe.

164
Ao anoitecer fui visitar o juiz municipal que o não achei, daí fui ao
Garrido boticário e estive conversando com ele algum tempo.
Dia 18, domingo: Logo muito cedo nos veio procurar um sujeito e
questionar-nos sobre o negócio dos morcegos embocetados, de que já nos tinham
falado em Aracati. Dizia o sujeito que não acreditava, mas que pessoa de seu
conhecimento lhe asseverara o fato; mas cremos que sua intenção foi saber se
era certo havermos nós prometido certa soma se o caso fosse verdadeiro.
Nós o remetemos para o Lagos. Almoçamos e fomos à missa. Estava a
igreja cheia de mulheres, pela maior parte pardas (cabras) e mamelucas; entre
elas algumas carinhas bonitinhas. De homens havia grande número porque é dia
de eleição para deputados provinciais e muitos eleitores eram matutos. Saindo
da igreja (éramos eu, o Lagos e o Reis) fomos visitar o redator d'O Araripe,
João Brígido dos Santos, e não nos demoramos porque, estando a sala cheia de
gente, e provavelmente se tratava de eleições, não os quisemos atrapalhar. Dali
saímos, corremos parte da cidade e fomos à feira (na praça do mercado), onde
havia grande barulho de gente, que vendia os seus gêneros trazidos de fora, a
saber: farinha, milho, arroz (um arroz muito miúdo chamado merium), sal de
Mossoró, carne, toicinho, bananas, mangas, ananases, rapaduras, certos potes,
jarras, jarrões, aluá, limonada, doces etc. etc.
[f. 190] Voltando para casa visitei o José do Ó, o Bilhar. Em casa
recebi visitas, li etc. etc.
Às ave-marias, estando-nos aprontando para irmos ao teatro, onde
representa um politiqueiro baiano, chegou o Brígido com um moço do
Jardim, muito bem-parecido e bem trajado; este nos fez oferecimento para
quando fôssemos ao Jardim. Fomos ao teatro, mas não ficamos até o fim,
porque não valia a pena.
Havia muita gente masculina, mas senhoras poucas e, destas, poucas
bonitas. O teatro é pequeno, estava muito escuro, mas me pareceu melhor
que o da capital, o que prova nele mais efeito é o teto de telha vá; tem duas
galerias para senhoras, uma baixa, que estava vazia, a de cima só metade
tinha famílias, a outra metade estando também vazia foi invadida pelos
homens e nós fomos para lá também.
Dia 19: De manhã, depois de algum trabalho botânico, estava
copiando a carta de Brígido ao Dr. Théberge sobre alguns fatos de 1826,
quando nos vieram visitar três sujeitos: um deles é o alferes Canuto José

165
de Aguiar, que era da tropa de linha e interveio nesse sucesso. Depois de
alguma conversa rogou-me que fosse assistir a uma conferência a um doente
da Missão Velha, que está aqui, tratado pelo Dr. Macedo e ao qual já eu vi
com o Lagos. Prometemos lá ir.
De tarde, às cinco horas, vesti-me e com o Lagos (Manoel não foi)
fizemos a conferência. Nessa ocasião pedi ao Canuto que me acompanhasse,
pois desejava conversar com ele, ao que se presta de melhor vontade. E
em casa, depois que se retiraram algumas visitas, expus-lhe o que queria
dele, que era a verificação dos fatos contados na carta do Brígido ao Dr.
Théberge, [f. 191] no que conveio de bom modo, prometendo-me em tudo
dizer a verdade, ainda que com isso houvesse algum comprometimento. Li-
lhe a carta toda, que ele acha exposto e visto alguns pequenos reparos ou
acaso algumas circunstâncias, que tudo escrevi. Prometeu que ia mandar
a história da morte do Tristão e outras notícias mais alguma coisa que me
mandaram, o Buril da História, folheto que se [palavra ilegível).
Depois de conversarmos bastante retirei-me daí nove horas da noite.
Dia 20: Amanheci adoentado com dor de garganta etc. Manoel
subiu ao Araripe e trouxe dele algumas plantas.
Fiz alguns estudos e estando escrevendo, seriam onze horas, passou
pela rua uma escolta com alguns presos, um dos quais vinha a cavalo e
a sobrecasaca azul. Soube depois que este é um Sr. major Adriano, hoje
morador em Piauí, [no] sítio Cabaceiras, foi preso nesta província vindo
a ela tratar de certo negócio. Este sujeito há muito tempo que está no
rol dos culpados e o acusam de alguns crimes de morte. Está na Cadeia,
infame masmorra, e de mistura com os condenados de grandes crimes e
assassinatos. De tarde, adoentado, não saí.
Dia 21: Amanheci mais incomodado. De manhã fiz alguns estudos
botânicos e li O Araripe.
De tarde saí com o Lagos e o Bilhar, que pediu-nos para ver um
doente seu amigo que chegou de fora. [f. 192] Feita a visita ao paralítico,
em seguida fui à casa do Sucupira, onde conversamos um pouco e voltei
para casa bastante incomodado.
Dia 22: Passei mal à noite, com febre; tomei uma dose de sulfato de
quinina. Andei todo o dia triste, muito aborrecido e lembrando-me sempre
cheio de saudades da minha gente do Rio e Mundaú.

166
De manhã veio o Bernardino Gomes de Araújo, de Missão Velha,
pediu-me uma carta de recomendação para seu filho que estuda no
Rio e vai matricular-se na Escola Militar. Disse-lhe que viesse de tarde
buscar. Com efeito veio e o aproveitei conversando com ele. Sabe coisas
de sua terra, contando certas coisas de Feitosas e Montes; disse-me que
há, creio que perto de Missão Velha, um lugar chamado Tabuleiro dos
Pares, porque aí estando eles, por intervenção não sabe de quem, se
acomodaram.
O dia foi muito quente, não saí.
Dia 23: De madrugada deu uma trovoada com boas pancadas d'água.
Ainda tive febre esta noite, tomei mais uma dose de sulfato. Dia aborrecido
como o de ontem.
[£. 193] 24: Hoje tenho passado um dia bem incomodado, bem
triste e deitado na minha rede porque nem posso escrever entrando logo
a suar (como agora me está acontecendo); não faria senão lembrar-me da
minha família, que provavelmente lá estão reunidos e contentes.
Soubemos hoje, ao almoço, que ontem aqui na vizinhança, sítio
do Sr. Bilhar, dois homens tiveram questões na rua e um esfaqueou o
outro de modo que chegando a casa faleceu, e o matador foi a casa,
tomou um bacamarte e ausentou-se. Diz o Bilhar que eram dois sujeitos
bons, trabalhadores e pais de família.
Hoje faleceu aqui um sujeito com 92 anos de idade.
Ao jantar comunicou-me o Lagos que uma pessoa chegada da
capital, donde saiu depois da chegada do vapor vindo do Rio, dissera-
lhe que no Ministério dois ministros estão desavindos, o Ferraz e
o Sinimbu, e que há no Rio receio de movimentos, que um já fora
prevenido pela polícia. Agora vem de novo dizerem que chegou da
capital um expresso com ordem de fazer retirar toda a tropa de linha do
interior para a capital, ordem que fora para todas as províncias.
Estas notícias nos vieram ainda mais entristecer.
Refletindo e supondo que tudo é verdade e não havendo no meu
modo de ver motivo algum para desordens [f. 194] interiores, o que
penso é que rompeu a guerra dum Buenos Aires, com o que explica bem a
concentração de forças nas capitais do litoral e muito a desavença entre os
dois ministros.

167
São sete horas da noite de Natal e escrevendo ouço grandes rumores
nas ruas; é porque estão chegando para a missa da meia-noite.
Agora, nove para dez horas, a feira que está aqui quase fronteira à
casa em que estamos, está cheia de povo e há aí um grande rumor e gritos e
rezas de rapazes, crianças e estalos de fogos da China, atirados no meio do
povo. Eu não posso sair, mas diz o Lagos que está curioso de ver-se, porque
está todo iluminado e cheio de tabuleiros de doces muito variados e de
mesas com garrafas de bebidas espirituosas e tudo topetado de gente. Coisa
notável: não se vê um bêbado; é isto observação que temos feito desde a
capital. Raríssima é a pessoa do povo que se vê bêbada pelas praças e ruas;
o mesmo temos observado pelo sertão.
25, dia de Natal: Por meu incômodo de saúde não assisti à missa,
que foi dita na praça, levantado um altar no adro da igreja, o qual é
levantado alguns degraus sobre o terreno e a praça é um grande quadrado,
bordado de casas térreas. Segundo informação dos que assistiram, a
praça estava literalmente cheia, principalmente ou quase totalmente
de mulheres, que todas traziam lençóis, xales ou lenços brancos sobre
a cabeça. [f. 195] Da praça seguia o povo, até grande distância, sem
interrupção. Que o sacerdote subiu ao altar, o ato se tornou de uma
grande solenidade, não se ouvia o menor sussurro e a luz fraca das
seis velas da banqueta lançava um clarão incerto sobre essa multidão
prostrada de joelhos e com as cabeças envolvidas em toalhas alvas. Na
ocasião de se bater nos peitos, ouvia-se um como trovão longínquo, que
começando junto ao altar se propagava pela praça e ia morrendo pelas
ruas. Mas na ocasião da elevação da hóstia e cálice é que a solenidade
se tornou sublime e religiosa. A amplidão da abóbada celeste, o som do
campanário, o bater nos peitos e o canto do bendito entoado por todo
o povo eram para produzir comoção.
Antes de uma hora depois da missa caiu um forte chuvisco.
Tivemos durante o dia algumas visitas e presentes das festas, dia aliás
aborrecido para mim.
26: Depois da meia-noite entrou a chover e amanheceu o dia
chuvoso. Às águas se tornaram sujas e más. Passei toda a manhã no meu
quarto bastante incomodado, tendo passado a noite mal.
Entre algumas visitas tivemos a do Sr. Jucá e a do Sr. Ferrer, sujeito

168
pernambucano, do qual já no Icó tivemos notícia pelo Dr. Théberge, e aí
soubemos que escapara de um tiro à queima-roupa. O Sr. João Brígido
entrou também aqui e em conversa com Manoel [f. 196] asseverou-nos
que o remédio aqui trazido contra carbúnculos e pústulas transmitidas pelo
gado é a raiz do velame.
De noite tomou chá conosco, no quarto do Lagos e Reis, a bela
Maria.
27: Passei mal a noite, com muita tosse etc. O dia foi muito
aborrecido. Não pude fazer nada.
Fomos visitados pelo Sr. Gualter Martiniano de Alencar Araripe,
morador no Exu e aí uma das principais pessoas, e é delegado de polícia
neste lugar. Pessoa distinta, bem trajado e bem conversado; dizendo-lhe
que tencionava, visitando o alto do Araripe, chegar até a borda da serra
do lado de Pernambuco, pediu e instou que descêssemos e fôssemos até o
seu sítio, que é perto do Exu, e o prometemos fazer.
Queixou-se do mal que querem os habitantes do Cariri no Ceará, aos
do Exu, asseverando que os habitantes do Exu nunca fizeram malfeitores
desta banda, e no tanto que os daqui lá têm ido e cometido atentados,
que lá foram matar a várias pessoas da sua família, por pertencerem à dos
Alencares etc. etc.
Às ave-marias aqui vieram o João Brígido e o Dr. Macedo convidar-
nos para um sarau na casa do Brígido. Foram os outros, menos eu por
doente.
28: Amanheci doente, aborrecido, não pude trabalhar.
Jantou conosco um moço da Barbalha, tio do João Brígido, e
contou-nos muitos casos de morticínios. Disse-nos que a gente dos
Inhamuns foi sempre levantada, matadora e quem lhes quebrou [f£. 197] o
encanto foi o presidente Silveira da Mota em 1844 ou 45. Hoje estão muito
quietos e amedrontados.
Pajeú foi também lugar mal-afamado pelos muitos facínoras que
gerou ou acoitou. Hoje está também muito mudada, em outro tempo se
poderia chamar Pajeú das Balas, como hoje Pajeú de Flores. Piancó é ainda
atual covil de desabonados. “Estive, disse ele, em casa do major ou tenente-
coronel Constantino, homem muito conhecido, muito tratável e de palavras
macias; mas à sua mesa se acharam na minha presença 20 assassinos!”.

169
Prometeu ao Lagos fazer diligência por lhe obter os célebres
bacamartes do Filgueiras, os quais denominados Boca da Noite, Meia-
noite e Estrela-d'alva. É com eles que Filgueiras dava rebate em seu sítio
na Barbalha.
À noite me trouxe a cozinheira um bom pão-de-ló.
29: Ainda me acho adoentado, apenas pude escrever algumas notas
e ler, não saí.
Não tivemos visitas nem pedintes.
De noite belo luar, grande concorrência para a novena.
30: Esta noite passei pior, tossindo muito. De manhã escrevi quanto
me foi possível, copiando O Araripe. Aqui me vieram visitar de manhã
várias pessoas, o Sr. Gualter do Exu, que me disse que mandara aprontar o
caminho da serra para a minha passagem. Conversando com ele a respeito
dos [f. 198] sertões de Pernambuco, disse-me ele que não há ali grandes
povoações e referindo-me o nome de algumas das principais vilas do sertão.
As caatingas são ali muito cheias de cardeiros de várias castas: jamacaru,
xique-xique, cardeiro-de-facho, coroa-de-frade etc. Muita macambira e
crivos, assim como muita favela, o que muito salva os gados no tempo das
secas. O Sr. Bernardino de Castro Freire Jucá, este, além de outras notícias,
disse-me que do Araripe para Piauí não há descida abrupta mas suave.
Que todos os anos, em setembro e outubro, os criadores que costumam
fazer soltas de seu gado em cima no agreste tocam fogo nesses pastos, o que
segundo ele é a causa da destruição dos matos nestes lugares. Recebemos
do Sr. capitão Francisco Leão da Franca Alencar um grande presente de
frutas: excelentes mangas de todos os tamanhos, cores e formas, muita lima,
apenas de vez, assim como as goiabas, que são pequenas e ainda muito
verdes, mas já se comem, frutas colhidas no seu sítio.
De noite grande concurso para a novena. Eu, doente, fiquei só
em casa, ouvindo daí a música e canto na igreja, repiques, foguetes eo
murmúrio popular. Triste consolação!
Não chega o correio, pelo que estamos ansiosos, pois correm más
notícias do Sul.
Agora depois do chá [f. 199] me diz o Lagos que há uma carta de
um deputado do Ceará escrita do Rio, em que diz ele que na véspera da saída
do imperador estava preparado no Rio um novo 7 de abril, e que nele

170
figurou L. de Abreu e Tosta; mas que a polícia abafou esse movimento,
permanecendo sempre receios de grandes novidades. Conservo-me sempre
incrédulo, sem que todavia deixe de me entristecer.
31: Hoje me acho convalescente. Veio visitar-nos o sogro do João
Brígido, que veio dos sertões de Pernambuco, onde diz ele que já começa
a morrer o gado por falta d'água, e que os criadores dizem que se em oito
dias não houver chuva morre todo o gado. Este senhor se chama Antônio
Raimundo Brígido.
Hoje chegou o portador do Sr. Canuto, trazendo uma carta e O
folheto denominado Buril da História, que ele me havia prometido e que foi
para mim uma desilusão; eu esperava uma história de Pinto Madeira e seus
feitos, mas o tal folheto não é mais que uma coleção de ofícios do tempo da
Guerra da Independência, Fidié em Caxias. O portador veio carregado com
uma grande cabaça de peixe e de tal preço. E uma palangana de peixe frito.
À tardinha me vesti e saí pela primeira vez depois da minha moléstia
e fui assistir à última novena e não desgostei. Havia numeroso povo [f. 200]
que não cabia na igreja e a festa se fez com gravidade e solenidade religiosa.

Ano de 1860
Janeiro, 1º: Amanheci bem-disposto. Ao almoço nos chegou a visitar
o capitão Francisco Leão da Franca Alencar, debaixo de rigoroso fardamento
e muito bem fardado (temos notado aqui, como [em] Lavras, andarem os
oficiais da Guarda Nacional perfeitamente fardados). Às dez horas saímos
eu, o Lagos e o Reis, fomos à feira que não estava tão cheia como costuma,
daí seguimos para a Matriz. Quando aí chegamos dizia missa um sacerdote
e o povo já estava na igreja, tão condensada que não havia meios de aí
penetrar. Retiramo-nos pois, andamos correndo a cidade, fomos beber
água em casa da Maria Madalena, que a achamos toda debochada e quase
dormindo em uma rede na sala. Aí nos entretivemos um pouco, depois
voltamos para a igreja e, já finalizada a festa, dirigimo-nos para a casa do
Sucupira, e sentados à porta com outras pessoas da casa aí vimos passar uma
grande parte do povo e várias famílias. Seriam oito horas, despedimo-nos,
eu fui para casa, o Lagos e o Reis ainda foram dar pernadas.

171
Pelas cinco horas da tarde saiu a procissão da Matriz [f. 201] com
sete andores, pequenos mas bonitinhos, iam alguns anjos, com saiotes
verde-mar, muito povo e a procissão marchava com certa ordem. Esta
passou pela nossa rua e eu e Vila Real a vimos do sobrado. Depois saímos,
demos uma volta pela praça e enfim fomos para a casa do Sucupira; depois
de comentarmos alguma coisa, eu vim para a casa; os outros foram ainda
passear. Chegando a casa chupei umas mangas e deitei-me na rede e dormi,
sendo acordado para tomar chá; então soube que havia um grande leilão no
largo da igreja assistido de muita gente e das melhores famílias para as quais
se puseram [a] assistir. Os objetos arrematados eram oferecidos às damas.
Por ser já tarde não fui ver.
2: Chegou enfim o correio, que com tanta ânsia esperávamos.
Recebemos ofícios do governo e carta da família. Boas novas e nada a
respeito das notícias sinistras que por aqui corriam. Parece que há algum
engraçado que se ocupa a inventar desses carapetões; não sei com que fim.
Eu achava a coisa tão fora de razão e tão sem razão que não podia acreditar,
bem não deixasse de conceber temores; mas o Lagos parecia acreditar
e explicara a seu modo a possibilidade desses movimentos. Ele tem sua
maneira particular de ver as coisas e não me parece homem de convicções
passadas, e sempre disposto a acreditar mal dos outros. Foi ele hoje muito
pronto em responder aos ofícios e depois as circulares aos companheiros,
não deixando de me agradar. [f. 202] Parece que reconheceu que eu tinha
razão. Escrevi para o mano e para as manas.
De tarde aqui esteve um moço, filho de Inhamuns mas hoje
estabelecido na Paraíba, daqui 50 léguas.
Fazendo-lhe algumas questões sobre os sertões da Paraíba, disse-nos ele
que nesses sertões não há serras, apenas serrotes. Nas secas caatingas não há
pau-branco, sabiá, nem jatobá. Há pereiros, juremas, catingueiras, marizeiras,
juazeiros, oiticicas e maniçoba. O pasto é principalmente de mimoso. Nas secas
morre muito gado, assim como cabras, carneiros etc. À indústria é de criação e
de courama. Há algumas fábricas de açúcar, onde há açudes. Há poucas frutas,
exceto: atas, melões, melancias, jerimuns etc. Hoje de manhã apareceu-me
aqui um sujeito (na aparência mameluco) já de idade e assustado; veio pedir-
me uma esmola; trazia consigo um caderno velho, dizendo que eram títulos
duma sesmaria que lhe pertencia, mas que, apoderando-se dessas terras os ricos,

172
enquanto eram crianças, hoje estão eles de posse e ele pedindo esmolas; e que
visto não lhe servir aquele papel porque não podia demandar com os ricos,
me fazia presente dela, que indo para o Rio podia conseguir alguma coisa.
Perguntei-lhe se não tinha herdeiros a quem deixar, disse que não e que a gente
da terra o não dava e que, se eu o não aceitasse, o queimaria. Então [f. 203]
me resolvi a aceitar para salvá-lo do fogo e lhe disse que não o queria para outra
coisa senão para me aproveitar de alguns nomes antigos de lugares e de homens,
que ali se achavam. Dei-lhe 2$000 [dois mil-réis] e retirou-se satisfeito.
3: Esta manhã estudei algumas plantas, recebi novo presente de frutas
do Sr. Leão (do Jardim), a saber, excelentes mangas e bananas.
De tardinha saí e fui visitar o Sr. Gualter (do Exu). Às oito horas
tomamos chá no quarto do Lagos em boa companhia (eram quatro
negrinhas do Crato).
Seriam dez horas quando subiu com grande ruído pelas escadas
uma malta de mascarados, que começaram a festejar os Reis (vai essa súcia
de três dias antes a três dias depois). Eram 14 máscaras, seis de mulheres
(rapazes vestidos de mulher), seis figurões cavalheiros rapazes e dois bobos.
As raparigas vestidas de branco (e não estavam mal), os homens de calção,
grande farda e chapéus de pancadas, imitando a antiga guarda francesa e
quatro sujeitos tocando violas, flauta, tromba.
Não estavam mal ensaiados e dançaram várias contradanças. Eis aqui
em que consiste o Reis.
4: De manhã estudei algumas plantas, continuo a leitura do Jornal do
Comércio, que chegou ao Lagos por correio.
De tarde saí eu só, dirigi-me para o morro que está ao sul da cidade,
chamado Barro Vermelho ou Boa Vista, [f. 204] para ver o lugar e sítios
da forca que se levantou para a execução do Pinto Madeira. Um pardinho
que estava com uniforme à porta da sua palhoça e a quem perguntei onde
era o lugar, acompanhou-me até lá. É num belo assentado do monte, com
bela vista para a cidade que fica embaixo, a altura parece que não é grande
porque o monte é raso. No lugar só achamos as escavações que se fizeram
para arrancar os paus da forca, estes paus foram puxados e estão a alguma
distância ao lado de uma choupana. São três excelentes estios lavrados e
ainda bem conservados. A forca foi levantada em 1834. Por uma sorte de
superstição ninguém se quer servir deles.

173
Pinto Madeira porém não foi enforcado, requer que como militar
desejava ser antes arcabuzado e lhe foi concedida essa graça. Morreu pois
fuzilado na frente da forca. Pinto Madeira, homem sem instrução, mas
não destituído de gênio, toda a gente do Jardim onde tinha seu sítio
ou engenho o respeitava e o seguiu; sem dúvida cometeu crimes, como
faziam todos os seus contemporâneos; mas a sua morte foi um verdadeiro
assassinato jurídico. E isso rodeia a sua memória de certa auréola: e não
se pode chegar ao lugar de sua morte sem certa comoção.
Desci de lá, fui à casa do João Brígido visitar o sogro, nem um nem
outro estavam em casa. Segui para a casa do Dr. Macedo, onde estivemos
um pouco com ele, sua senhora e mais outra, comemos doce e bebemos
água e nos despedimos; [f. 205] passando pela casa do Sucupira entrei e
conversei com ele um pouco.
Cheguei a casa bastante suado, porque tem estado dia e tarde muito
quente.
Agora dez horas, cai um pequeno chuvisco.
Deitei-me, mas ainda não tinha dormido quando ouvi som de
instrumentos e canto, Levantei-me e vim à porta da sala observar, fazia
algum luar e havia muita gente na rua que acompanhava a tropa cantadeira
de Reis. Cantaram à porta de um vizinho, depois vieram à nossa onde
cantaram. Não se abriu a porta por não sabermos o que depois soubemos,
que eram João Brígido e outros patrícios. A brincadeira estava boa, não
pude perceber as letras, mas o canto é quase como o nosso do Rio.
Os cantores cantavam dois versetos, acompanhados só duma flauta;
depois a música repetia e assim alternadamente. A música me parece compor-
se de instrumentos de sopro (clarinete, flauta, fautim, trompão etc.); de vez
em quando lançavam foguetes. Dormi e acordei e ainda ouvi cantarem.
5: De manhã desenhei e estudei algumas plantas. Não tivemos
visitas, nem pedintes, mas passei o dia aborrecido; de tarde não saí.
Tomamos chá no quarto do Lagos bem acompanhados. Seriam onze
horas quando apareceu o Reis da [trecho borrado] cantando pelas ruas
vizinhas. Andaram mais outros [trecho borrado]), cantando.
Depois da meia-noite caíram alguns chuviscos.
[f. 206] A serra do Araripe mostra-se de manhã sempre carregada de
nuvens.

174
6: Às sete horas caiu um pequeno chuvisco, não fomos à missa.
Depois do almoço vesti-me e saí sozinho por detrás e fui até o alto
do monte Barro Vermelho, onde está uma fábrica particular de pólvora.
Por aí andei apanhando algumas plantas e voltei; cheguei a casa muito
suado, o sol estava quente.
Em casa estudei as plantas colhidas.
Depois da janta tivemos a visita do padre vigário; despedindo[-se] ele,
saí a fazer algumas visitas; não achando em casa o tenente-coronel Antônio
Luís, segui para a casa do Sucupira, onde havia roda à porta; e aí estivemos
conversando até quase às oito horas. Voltando para casa aí achei a Antônia,
irmã da Maria Madalena, que, queixando-se de ser sua mãe doente, pediu-
me uma esmola; mas creio que havia segunda tenção na menina.
Dia 7: De manhã fiz alguns estudos; mas estive todo o dia melancólico,
lembrando-me sempre do Rio. Hoje achei no Jornal do Comércio a notícia
do novo motor para veículos chamados bariotrópios [barotrópicos], que se
põem em movimento pelo próprio peso dos passageiros, que pondo os pés
em duas barras paralelas às linhas do movimento e fazendo curvar-se [0]
peso dum lado e do outro com outro pé alternadamente, fazendo oscilar
o centro de gravidade, para máquina [f. 207] em movimento, fazendo-o
mesmo subir ladeiras!
Depois de jantar recebemos convite do Sr. João Brígido para
concorrermos hoje à noite a uma reunião ou sarau em sua casa. Com efeito,
às oito horas nos apresentamos lá eu, o Lagos e o Reis (Manoel e Vila
Real não quiseram ir). À casa em que ele mora tem boas e espaçosas salas.
Achamos aqui reunida muita gente, talvez a maior parte da gente graúda do
Crato e alguns homens bem trajados e muitas senhoras, algumas das quais
vestidas com simplicidade e elegância. A música com bom instrumental.
Dançaram-se várias quadrilhas e um rapaz dançou um solo ou passo, a que
chamam passo húngaro, e dançou bem.
Houve serviço de refresco, chá, café, doces etc. etc. Às nove horas
tivemos uma dança popular, brincadeira de reis, a que dão o nome de Babau.
Apareceram alguns mascarados, graciosos, e alguns homens e mulheres
com roupas brancas; suspendem um lençol que serve de bastidor e por
baixo dele saem os personagens, que jogam uma sorte de farsa ou entrudo,
que acaba por dança e canto, entremeados de gracejos dos mascarados. Vem

175
depois o boi que dança, investe etc. Vem depois uma sujeita montada num
cavalo de pau “Zabelinha”, que também dança, coiceia etc. Afinal aparece o
Babau, que é um sujeito grotescamente vestido e montado numa espécie de
animal com grandes queixadas de burro; vem aos pinotes saltando por meio
do povo, que foge; investe [n]os grupos que os dispersa no meio de gritos e
risadas e sempre aperreado pelas máscaras. [f. 208] Enfim acaba tudo por
um dançado e canto que já não tem graça.
As senhoras e homens deixaram as salas e vieram se pôr na calçada para
melhor ver a brincadeira. É um divertimento popular que não deixa de ter
sua graça.
Voltando para as contradanças, mas eu quando foi dez horas me
retirei; o Reis, por incômodo, já o tinha feito antes.
Cheguei a casa e vim logo escrever isto. São quase onze horas. Lá
estava o Dr. Ratisbona, que chegou ontem da capital e tinha conversado
com o Lagos, lhe disse que as notícias da corte são más, que o Ministério
está todo desavindo, que os periódicos TZrano e Charivari estão muito
exaltados e insolentes, dirigindo-se diretamente ao P. e charqueando dele!
etc. etc. O Lagos dá grande crédito a tudo isto, eu dou-lhe quarentena; não
deixa isto de incomodar-me e concorreu muito para a minha tristeza de
hoje.
8: De manhã trabalhei alguma coisa em botânica, almoçamos e fui
à missa. Vindo da missa continuei os meus trabalhos. Tivemos a visita do Sr.
José de Montes Furtado, que acompanhou o Sr. José Joaquim de Macedo,
homem idoso e cego, o qual me disse que foi espoleta, mas que alguns de
seus anos lhe foram ingratos. Parece-me pessoa de senso e chistoso. Veio
depois também visitar-nos o Sr. Gualter, que vai esta tarde para o Exu para
mandar ver uma liteira, em que deve ir a senhora que sofre de asma e está
com companheiro, que volta nesses três dias dele. Colhi algumas notícias
que tomei à parte.
Depois do jantar tive de sofrer alguns desgostos [f. 209] com a minha
cansada paciência. Vesti-me depois e saí, estive na roda do Sucupira até oito
horas da noite. Entre outras se falou num célebre Pimentel, personagem que
valeu a pena ser observado. Diz o João Brígido que ele tem uma fisionomia
que se distingue de todos os mais homens; mas o que é notável são as
extravagâncias, ou antes loucuras desse homem, que também é acusado de

176
matador. Aqui vão algumas das suas, de que conservo lembrança. Em uma
reunião se tratou duma estúpida questão, isto é, que ninguém seria capaz
de dar um murro na ponta dum facão, e ele tirou um facão, pô-lo de ponta
e atirou um murro na ponta fazendo uma larga e profunda ferida na mão!
Outra vez chamou um moleque seu escravo e dá-lhe uma clavina, carrega e
ordena ao moleque que lhe atire; queria ver se ele era capaz de se esquivar
do chumbo. A criança hesita e ele a ameaça de a matar se não atirar, o
pequeno dispara a espingarda, e ele bem que se desvia, apanhou alguns
bagos de aço na ilharga, e em outras partes. Contando-lhe que havia um
sujeito que fazendo-se amarrar os pés e mãos mandava que o atirasse no rio
de São Francisco e o passava a nado, quis mostrar que fazia o mesmo e, em
vez de se fazer amarrar de pés e mãos, mandou ainda que os ajuntassem,
e assim se fez, atirou[-o] dentro dum açude; foi ao fundo e valeu-lhe um
sujeito que ali estava que nadava, mergulhou que o foi apanhar no fundo.
Uma vez estando-se a atirar de bacamarte numa festa, ele quis atirar e como
lhe fizessem renitência em dar-lhe o bacamarte chegou no tição de fogo ao
pé do barril de pólvora e ameaçou de lançar-lhe fogo se lhe não dessem a
espingarda, o que fizeram logo.
Cegou dum olho [f. 210] e, quando seus amigos lhe davam pêsames,
respondia que para viver um olho basta, ter dois olhos é vício.
Seus gracejos: um dia em uma sala onde dormiam várias pessoas
desejou ele uma rede onde estava outro sujeito que não lhe queria ceder;
ele deixou-o dormir e veio com uma vela de carnaúba (cujo pingo queima
como chumbo derretido); o pobre do homem dormia à fresca, ele chegou e
fez cair um pingo de cera no [duas palavras ilegíveis], apagando logo a vela;
o sujeito despertou dando um grito, que um bicho lho mordera, e saiu da
rede, era isso que ele queria, estava certo dela.
Convidou a um irmão mocinho e muito medroso para uma caçada, no
caminho lhe ia contando casos de onças cada um mais medonho, andaram
pelas matas e seguindo. Assustado, instava para que fossem dormir a casa,
e ele resoluto a dormir ali, no meio das onças. Enfim o menor adormeceu
e ele lançou-se sobre o irmão, rugindo e dando-lhe dentadas e arranhões,
o menino acordou horrorizado e gritando por socorro; mas ele continuou
na brincadeira, até que vendo que um moleque que os acompanhou fugia
espavorido pelos [matos], largou o irmão e partiu atrás do moleque para que

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se não perdesse, qual voltou achando o irmão tremendo de medo e referia-lhe
a brincadeira, e o menino lhe rogava que não contasse aquilo em casa.
Malvadez desta fera: fazendo montar um cavalo bravo por um
pequeno, que caindo o fazem montar de novo, o que vendo um sujeito que
isto presenciou: “É melhor matá-lo logo”, disse-lhe, e o desalmado pega pelo
pescoço da criança e dá com a cabeça numa pedra, fazendo saltar-lhe os miolos.
Uma irmã sua casada tem a desgraça de adulterar: ajuntou-se com o
cunhado, levaram a pobre moça (que ia dizendo que sabia para que a levavam)
[f. 211] e no mato fizeram uma cova, mataram-na e enterraram sentada.
Outros casos contaram desta organizada perversão de que me não lembro. O
João Brígido disse que inda há poucos dias esteve com ele.
Agora que isto escrevo está a tropa do Babau cantando e gracejando
no meio de aplauso da multidão. É bem defronte da nossa casa, não sai
muito defronte da nossa porta, a galhofa é grande. Não pude resistir, meti a
vela na alcova e abri um pouco uma porta por onde respirava, via na casa do
juiz promotor, que mora defronte e ainda vi a dança do boi, e a da cavaleira,
Zabelinha, que dançando cantava: “Zabelinha come pão, que daremos
Zabelão cachaporra de bordão para o padre sacristão”. Afinal o aparecimento
do Babau. Havia muito povo na rua, fazia luar.
9: De manhã fiz alguns trabalhos botânicos e depois do almoço saí
com o meu ordenança, subimos até o alto do Batateira e estávamos em uma
palhoça conversando com algumas pessoas e descansando. O morro é árido e
pedregoso, de terra ora avermelhada, ora parda e poenta.
Vegetação: a mata é baixa e miúda, porque se corta constantemente.
Disse-nos o Sucupira que ainda em 1845 haviam ali muitas boas madeiras.
Vi aí muito arvoretos dum bigumios — que cuido ser violeta, ou coração-
de-negro, muita dum bignoniano de folhas grandes e pubescentes, que as
crianças chamaram pau-d'arco, mas creio que não é. Vi uma suartre, que é o
que chamamos banha-de-galinha, que tem cerne como jacarandá [f. 212); e
alguns angicos etc., tudo sem flor nem fruta.
Embaixo, já nos quintais das casas, vimos algumas árvores da madeira
nova com fruta. Pitomba com fruta verde. Tem bambu etc.
Chegando a casa muito suado mandei buscar cidra e bebi uma
garrafinha. Depois trabalhei alguma coisa. De tarde saí e fui para a roda do
Sucupira, onde se conversou muito até oito horas. Estando aí passou pela rua
uma cavalcata de mascarados cantando de reis, outros dançando porque
são os que no primeiro dia foram a nossa casa. Alta noite ou de madrugada
caiu um chuveiro.
10: De manhã estava preparando o relatório para o governo e fiz
alguns estudos de plantas.
De tardinha saí e fui para a roda do Sucupira onde conversamos até
quase oito horas. Aí nos disse ele que aqui não muito longe havia alguns pés
de bacumixá, árvore das sapotáceas cuja fruta é boa de comer, e que diz ele
que só dá fruta de sete em sete anos. Então me lembrei [de] que podia ser
o nosso guaranhém, mas parece que a fruta da bacumixá é redonda. Disse
mais: a jenipapada feita com leite se chama cambica, cambica de jenipapo
com leite. Disse que aqui [há] uma murta cuja fruta se assemelha com a
nossa gumixama. Disse um sujeito que aí estava que da fruta de imbiribá se
faz um bom licor Xalapia sericea.
[f. 213] Hoje nos mandou o Sr. Sucupira alguns pequis, dos quais não
pude gostar, mas abri-os para estudar. Disse-lhe que quando foi arribado
com o Gruiffeld à foz do Orenoco, aí lhe trouxeram os índios muito desta
fruta a que davam o nome de piquê, as quais eram maiores que os daqui.
A polpa do pequi (assim como a amêndoa) dá muito bom azeite,
com o qual se tempera o arroz e guisados. Agora mesmo tirei uma porção
da polpa, parece que se assemelha com a do coco-de-catarro, e levando-a à
luz ardia bem e dava óleo.
Dia 11: De manhã estudei o pequi e a flor do jatobá. Depois de
almoço montei a cavalo com Manoel para irmos ao sítio do Otávio;
passamos pelo sítio do Lanceiro que foi do Tristão Gonçalves de Alencar
Araripe, que fica à beira da estrada; não achamos aí o atual proprietário,
José de Montes Furtado, que estava no engenho e não consentimos que
o fossem chamar. Vimos sempre a casa antiga onde ainda há porção
que foi da casa do Tristão. Devia ser uma casa ordinária como são as
dos sítios daqui quase todos. Paredes de pau-a-pique, telhado baixo
sem forro, chão ladrilhado, portas baixas toscas etc. Vimos ainda aí no
terreno uma [f. 214] moenda de pau antiga que pertenceu ao engenho
do Tristão; há ainda algumas grandes mangueiras plantadas por ele ou
no tempo dele. Chegamos ao sítio do Otávio com sol muito quente,
ele nos esperava. À sua casa é coberta de palha, paredes de pau-a-pique

179
e só uma espécie de varanda, que tem esta rebuçada. Aí estivemos um
pouco, comemos doce e bebemos água. Ajustamos uma viagem ao alto
do Araripe para sábado e voltamos.
Chegamoas à cidade muito suados, bem que o sol estivesse encoberto.
Colhemos em caminho algumas plantas.
Ao anoitecer fui para a roda do Sucupira; aí chegou também o Lagos,
conversamos um pouco e nos retiramos. Fazia calor, ventava e o céu estava
carregado; caíram alguns chuviscos.
12: De manhã fiz estudos botânicos.
Depois do meio-dia estando eu trabalhando na sala, ouvi rumor na
rua e indo à janela lateral vi muito povo no largo da Matriz e entre ele
muitos soldados; mas já demonstra se haver dissipado, chegou pouco depois
o Lagos e disse-nos que havia agora assistido a uma luta entre os soldados
da polícia e soldados de linha, que armados de baionetas se atacam; mas só
tinha havido pancadas, cabeçadas etc. e que os soldados não obedeciam aos
cabos nem ao comandante. Era uma perfeita insubordinação e anarquia.
[f. 215] Estando jantando entrou um dos nossos criados dizendo
que um policial fora morto pelas tropas de linha. Com efeito, apartados da
primeira luta, um dos mais valentes policiais, o que mais se havia distinguido
na refrega, dirige-se só para o rio a banhar-se. Os soldados de linha, não sei
quantos, dirigiram-se para lá, acometeram-no e o assassinaram. O matador
já está preso, e mais outros cúmplices, e da força da linha vão ser retirados
para fora. É o segundo assassinato depois que aqui estamos e notei que este
fato não atrai (desperta) a curiosidade de muita gente!
De tarde fui para a roda do Sucupira; conversamos um pouco, viemos
tomar chá e voltamos para assistir ao levantamento do mastro, para a função,
de que também somos juízes ou coisa que o valha. Em casa do Sucupira,
onde também se reuniu, além de outros, o Dr. Ratisbona. Aí apenas até
que chegasse a música, que veio tocando e atirando-se foguetes. Pararam
em frente da casa, aí se acenderam luzes com cartuchos de papel para muita
gente e marcham todas para o largo. No adro da igreja se benzeu a bandeira,
ao som da música e foguetes; depois saía ela em princípio acompanhada
pelo povo com tochas, música e foguetes, ainda na roda pela praça e por
algumas ruas, passando por diante da casa do Sucupira. Pôs-se a bandeira
no mastro, que foi içado, ao som de música, com grandes foguetes.

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[f. 216] 12: De manhã trabalhei desenhando e escrevendo etc. etc.
De tarde saí mais cedo, fui visitar o João Brígido, que está doente, daí fui
ao Dr. Macedo, que também está incomodado dum olho. Aí estava um
irmão dele, o pai e outro moço. Conversamos por algum tempo e ouvindo
foguetes e música, me despedi e fui assistir às novenas. Daí estava um
pouco na roda do Sucupira, vim para casa tomar chá no quarto do Lagos,
aí chegou depois o Paulo, fogueteiro etc. e enfim o Sr. Gualter de Exu, que
vinha informar-nos do estado duma senhora que está gravemente doente
no Exu. Seriam dez horas que [quando] subi para o meu quarto.
14: Almoçamos mais cedo e eu, Manoel, acompanhados pelo
Barreto, o nosso mateiro, montamos a cavalo e partimos para a casa do
Sr. Otávio, sobrinho do Francisco, que mora em Belo Monte junto à
subida da serra. Ele estava já nos esperando e um outro moço ali vizinho;
seguimos. Fiz toda a subida da serra sempre a cavalo, mas o pobre animal,
quando venceu os grandes desfiladeiros, estava alagado em suor; os outros
subiram a pé, puxando os cavalos. Chegamos ao alto do Araripe; por algum
tempo estivemos parados, descansando os animais [f. 217] e gozando da
bela vista do Cariri e serras ao longe. Enfim entramos pelo caminho do
Exu e por ele andamos talvez meia légua, e como a vegetação se tornasse
montuosa, voltamos. A chapada do Araripe, ao menos por onde andamos, é
perfeitamente plana. Duma terra pulverulenta cor de tabaco, perfeitamente
seca. À vegetação consta de árvores de certa grandeza, mas de troncos e
ramos tortuosos, à semelhança de grandes cajueiros, copa larga e casca, em
quase todas, muito [palavra ilegível] e profundamente fendida, à semelhança
da janaguba e de marfim. Estas árvores afastadas umas das outras deixam
o terreno limpo embaixo, onde cresce o capim a que chamo agreste e que
é bom pasto para os animais; também a toda esta parte da chapada se dá o
nome de agreste e se chama mata onde a vegetação é condensada. Estavam
algumas plantas em flor que colhemos, e outras com fruta.
Na volta desci às partes alcantiladas do caminho a pé, metendo
os botões no pó fino e seco que se acumulou no caminho pelo atrito da
pedra mole, de que se compõe a montante e em que ajunta-se nele até os
tornozelos, ficando todo empoeirado. Chegamos à casa do Otávio suados e
emporcalhados e fomos à levada lavar o rosto e cabeça. Jantamos [f. 218] e
foi na ocasião do jantar que tive o gosto de ver a mulher do Otávio, que é

181
irmã do Dr. Macedo: um ser bonito, é gentil e desembaraçada.
Seriam quatro horas quando descemos para a cidade.
O dia havia sido quente (em cima da serra a temperatura era
agradável), o céu estava carregado de nuvens negras, chovia para alguns
lugares; depois de estarmos na cidade viram-se alguns relâmpagos e enfim
já noite caiu um chuvisco. À seca já fez estragos pelo sertão causando morte
de gado mesmo aqui no Cariri; os lavradores já se vão queixando da falta
de chuva.
Não saí. Tomamos chá no quarto do Lagos bem acompanhados.
15, domingo: Tendo trabalho a fazer e achando-me pouco
disposto, não fui à missa. Estudei e fiz alguns esboços das plantas,
colhidas ontem. O Sr. Gualter aqui nos veio fazer a sua visita de
despedida (segue amanhã para o Exu), exigindo que lhe déssemos o dia
pouco mais ou menos em que iríamos ao Exu. Declaramos que só de 25
em diante o poderemos fazer. Recebemos uma carta do alferes Canuto
em que nos recomendou um doente, para receitarmos.
De tarde recebemos um mimo da Sra. D. Bela, mulher do Otávio:
doces e mangas. À noite saí, estive na roda do Sucupira, assisti um pouco às
novenas e não assisti ao leilão.
[f. 219] Anteontem, quando íamos à serra, paramos no sítio Lanceiro,
que foi do Tristão; aí estava o Sr. Montes, de quem obtive algumas notícias.
Mostrou-me a porção da casa velha que tinha sido do Tristão e o lugar onde
foi o engenho, que era pegado à casa. Mas disse-me ele que Tristão pouco
tempo passou [nJaquele sítio, que o havia comprado em 18 ou 19, depois
que saiu da prisão pelos movimentos revolucionários de 1817, que poucas
vezes e por pouco ali estava, tendo a sua moradia na cidade com a família;
e que em 23, começando de novo a revolta do Cariri, não foi lá mais.
Disse que ele tinha tenção de fazer casa e melhorar o estabelecimento, mas
não teve tempo de fazer; o que há dele são algumas mangueiras, que inda
existem.
Dia 16: De manhã estudei e desenhei algumas plantas. De tarde,
pelas cinco horas, saí e fui ao sítio do Sr. Bilhar, que me pediu fosse ver a
mulher que estava com um forte ataque. Fui a pé e cheguei lá cansado e
suado, pela muita areia: vi adiante e depois o Bilhar me quis mostrar a sua
chácara e rio e banheiro etc. É uma bela chácara com casa das melhores

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do Crato, quando estiver acabada, e de sobrado, com boa perspectiva e
bem dividida; construída ao modo francês por risco do Dr. Théberge,
está ainda nua. Na seara há muita quantidade de coqueiro-da-praia que já
está dando, magníficas mangueiras, que inda estão [f. 220] carregadas de
fruta (e me parece que em parte alguma há melhores e mais abundantes
mangas que no Crato) e gostei de ver os meninos e meninas filhos do Bilhar
encharcando-se de mangas e até uma doente já de certa idade trepada e bem
alto na mangueira e uma pequenina nua tragando uma manga com casca
e tudo. Algumas goiabeiras, plantadas, uma jambureira, que inda não deu,
bananeiras etc.
Fazia dó ver as laranjeiras todas mortas, ou morrendo, cobertas duma
lepra branca. Informam-nos que havia no Crato muito e mais boas laranjas;
mas que há dois ou três anos apareceu essa moléstia, que não deixou uma.
É também grande a plantação de ananases.
Vista a chácara me retirei para casa, e não saí mais.
Chegou hoje o correio, trouxe cartas ao Lagos de sua família, em que
se diz que a notícia que por aqui tem corrido de desordens no Ministério é
tudo falso.
17: De manhã trabalhei acabando alguns desenhos e fazendo outros.
De tarde saí um pouco mais cedo e fui visitar o sogro do Brígido. Na
volta parei e sentei-me um pouco à porta do Sr. Macedo e aí estivemos com
as senhoras e alguns sujeitos, um deles irmão do doutor que não estava.
[f. 221] Vim depois para a roda do Sucupira, aí se contou mais uma
do Quinca (Joaquim) Pimentel, que, estando uma vez desesperado com
dor de dente, pediu a um sujeito que lhe arrancasse o dente com uma faca;
e porque este se não prestasse a isso, saiu como um louco pelas matas a
procurar uma cobra que o mordesse, metia os pés nos matos chamando
cobras etc. De noite estando na rede sentiu cair-lhe uma coisa sobre o peito;
pega, e com tanta felicidade que segurou pela cabeça uma cobra coral.
Gritou pelo dono da casa que trouxesse luz e este vendo-o com a cobra
enroscada no braço e pedindo que a matasse, não se queria chegar a ele,
então ele esperando que a cobra se desenrolasse atirou[-a] com força contra
uma parede e depois a mataram. “E que tola”, exclamou ele, “quando cá
a chamava não apareceu, agora me cai em cima!!?. No que em tudo isto
mostrou muito sangue frio.

183
O Sucupira conversando, estando alguns de seus primos presentes,
sobre seus antepassados, chamou a todos preguiçosos e relaxados; dentre
sua avó e suas tias só tinha morado em casa de telha, as que foram casadas
com homens de fora (portugueses), todas viviam em casa de palha.
18: De manhã estudei algumas plantas e fiz alguns desenhos. De
tarde saí com Manoel e fomos ver uma senhora mulher [f. 222] do Montes
que ele está tratando. Daí saímos e fomos visitar o padre Lima Seca irmão
do Sr. Franklin de Monguba. Daí fomos à casa do Jucá, que não achamos, e
fizemos conhecimento com o padre Marrocos, que estava sentado à porta.
Daí fomos visitar o Dr. Ratisbona, que não achamos; mas entramos e vimos
a senhora que está doente e tratada pelo Dr. Lagos, que aí estava; havia
em casa várias senhoras. Daí vim com o Lagos para a roda do Sucupira,
Manoel foi para casa: aqui estivemos conversando durante todo o tempo
que duraram as novenas, ouvindo a música e vendo foguetes e passar gente
e viemos para casa depois das oito horas.
19: Durante a manhã estudei e desenhei algumas plantas e tracei o
relatório que devo mandar ao Ministério do Império.
De tardinha saí e fui me sentar na roda do Sucupira, onde estivemos
até às oito horas. Aí ouvi a um sujeito ter visto uma carta e um artigo
publicado pelo O Cearense, em que se diz que Urquiza fizera pazes com
Buenos Aires e que as Repúblicas do Prata se tinham combinado para fazer
a guerra ao Brasil; e como eu dissesse que isso não tinha fundamento e não
passava de uma mentira impressa, replicou o sujeito que a coisa podia ser,
porque sendo o Brasil a única monarquia na América nos faziam a guerra
para adotarmos a república! Ri-me.
O dia de [f. 223] de ontem havia sido bastante quente e o céu esteve
sempre mais ou menos anuviado; de tarde viu-se chover em alguns lugares;
mas às oito horas da noite o céu estava estrelado e o tempo refrescado. O
dia de hoje foi mais fresco, o céu estava puro; parecem desvanecidos os
sinais de chuvas e a seca já faz muito mal nos sertões, onde está morrendo
muito gado.
Diz o Sr. Sucupira que em outros tempos os invernos começavam
em outubro, e pelo Natal já se comia feijão em bagens e havia milho; mas
há alguns anos isso tem mudado. Diz que o mês de janeiro foi sempre mais
ou menos seco. Diz que os invernos começam sempre para aparecer o céu,

184
principalmente de manhã, anuviado, por caírem chuveiros, ora aqui ora
acolá, e que o sinal certo de chegar o inverno, que vem sempre da parte do
levante, e carregara o horizonte para esse lado, e principalmente quando é lá
muito rasteiro ao oriente. Que tem havido invernos muito bons chovendo
só de madrugada. Que às vezes chove aqui dias e noites continuadas etc.
Dia 20: Acordei esta noite com uma grossa pancada d'água,
acompanhada de alguns trovões longínquos e amanheceu o céu anuviado;
e as ruas mostrando ter corrido água. Não esperávamos isto, ontem quando
nos recolhemos estava o céu limpo e estrelado.
De manhã ocupei-me estudando e desenhando plantas. De tarde
tive a vísita do reverendo padre Lima Seca, que conversou e contou-nos
muita coisa; é homem noticioso. Saí, estive assistindo à novena e na roda
do Sucupira, que nos contou [f. 224] várias anedotas como estas: Eram
dois portugueses ambos casados com parentas dele Sucupira, moraram
em sítios contíguos, divididos por um rio, tiveram em disputa, estando
armados de espadas, à beira do rio que então estava cheio, e eles nas
ribeiras do rio se descompuseram, puxaram pelas espadas e deram muitos
golpes no ar, cansados deram-se por satisfeitos e fizeram as pazes. O outro
caso se deu em Missão Velha: dois sujeitos, dos quais um vinha para a
missa das nove horas; encontrando-se (andavam de ponta) um, logo que
avistou o outro, puxou pela espada e gritou: “Aqui, meu amigo, havemos
de ter cutiladas de Roldão ou a briga de Ferrabrás e Oliveiras”. O outro,
surpreendido com aquilo, volta a cavalo e toca a fugir; o fanfarrão correu
atrás, de espada nua e gritando. Adiante estava o caminho atravancado
por um pau, de modo que era necessário rodear; quando o que fugia quis
rodear, o agressor, supondo que lhe fazia face, volta o cavalo e deita a fugir.
O outro parte atrás até entrarem em Missão Velha pelo meio do povo
que esperava a missa, onde sabendo-se do caso houve grande galhofa e os
sujeitos fizeram pazes.
Sábado, 21: Levantamos mais cedo, tomamos uma xícara de café e
montamos a cavalo. Eu e o Lagos fomos para a casa do Sr. [f. 225] Carlinho
(Carlos de tal, pequeno lojista daqui) com o qual estava ajustada uma viagem
às nascentes do Batateira. Achamos quatro senhoras prontas (a mulher do
Sr. Carlinho, a mulher do outro companheiro de viagem, Sr. capitáo-mor
e mais duas moças, gentis solteiras, e filhas do Sobral). Estava também aí

185
pronta uma mesa de almoço, tomei café com beijus de tapioca. Prontos os
animais, montamos a cavalo as quatro senhoras, quatro homens, os dois
casados e mais duas moças e nós dois, ao todo dez cavaleiros. Dirigimo-
nos para um sítio perto da nascente e que dista da cidade légua e meia.
Lá chegamos quase às onze horas. Este sítio se chama Loanda (porque foi
habitado por mui tam [palavra apagada]), engenho que faz rapadura, e
aguardente; está situado sobre uma lombada e tão perto da escarpa da serra
do Araripe, que nós e as senhoras mais moças fomos a pe à nascente. O sítio
se acha em maior altura da serra e dela se gera de uma larga e bela vista: vê-se
o Crato, a matriz de Juazeiro, a serra de S. Pedro e outros montes de perto
e de muito longe. Avista-se ainda uma [f. 226] grande parte do Cariri, com
seus sítios e canaviais e palmeiras por toda a parte. A proprietária atual, a
Sra. D. Jerônima, viúva de um irmão do capitão-mor, senhora de 56 anos,
de aspecto venerado, afável e bizarro em sua casa tem em sua companhia
um filho o Sr. major (pausa) casado, ou viúvo, porque não lhe vi a mulher,
mas sim uns dois filhos dos quais um de seis a sete anos todo entrevado,
raquítico e idiota.
Fomos recebidos por esta boa gente da maneira a mais amável e sem
cerimônia. Apresentou-nos logo boa restilada e cestas de frutas: mangas,
goiabas, maracujás, limas etc. etc.
E o que mais gostei foi ver as moças comerem goiabas desde que
chegaram até às quatro horas, em que se pôs o jantar. Excelente almoço e
café com leite, cuscuz, bolachas, chá etc. etc.
As senhoras pouco depois foram debaixo, esperamos por elas para
irmos à nascente. Seria meio-dia quando partimos para lá, sol muito quente
e o caminho é seguramente dumas oito horas de légua. Eram mais três
senhoras e quatro homens. Chegamos à célebre nascente e ficamos um
pouco desapartados porque o mato cerrado encobria o olho-d'água e só
vimos sair do mato um jorro [f. 227) d'água limpa e fresca, que agora
que faz seca calculam em nove telhas, e cai pela serra abaixo com bastante
arruído, ficando boa parte dela numa levada que a vai receber na nascente.
Sentamos aí perto à sombra, à borda da levada, e comemos mangas, que as
senhoras tiveram cuidado de levar; e depois de talvez a demora de meia hora
voltamos para casa, aonde cheguei, não cansado, mas ensopado de suor.
Esta nascente é uma das muitas que brotam dos flancos da serra do

186
Araripe, e fecunda seus arredores em uma conta de três léguas mais ou
menos. Estas nascentes, que a gente da terra chama as correntes, formam
muitos rios, e esse da Batateira provém de três fontes. De todas, ou quase
todas como nascem quase sempre em meia altura da serra, se foram
levadas, conduzidas pelos espigões da serra, ou lombadas que dela nascem,
e distribuem para regadia [irrigação] das serras de lavoura.
Acabado o jantar eram quase cinco horas, apartaram os ânimos e
voltamos para a cidade, onde chegados às ave-marias e todos nos fomos
aprontar para a última novena. O Sucupira deu-nos a chave de uma tribuna
para dela assistirmos amanhã à festa chegando à igreja (tamos com o tenente-
coronel Pequeno e mais outro sujeito). Estava a igreja topetada e [f. 228] e
deliberamos ir para a tribuna; bem que a escada que lá conduz é de meter
medo, é por fora da igreja mais alta: vacilante, malfeita, com dois corrimãos
mui foscos: subimos com muito susto. Estava a igreja cheia de mulheres,
que contamos e achamos ser 1.050 para mais, e com os homens gente das
tribunas e coro devia perfazer 1.500; fora da igreja ficaram seguramente
500 pessoas para mais.
A vegetação da nascente do Batateira é muito semelhante à do rio,
muitas espécies colhemos, só me lembro de: embaíbas, periquiteiras, egas,
pariparobas (caapeba), taiuiá, oficial-de-solo, bico-de-papagaio (Syplícia
cumpiles), uma acáulica de flores solitárias e rubras, uma begônia, um
junco, aquático, de pendões longos, flores amarelas, reunidas em forma
de pinha pela disposição das brácteas — é uma xirio e asseverara o Vila
Real que há dela nos Inhamuns.
Dia 22, domingo: Ífamos almoçar que [quando] nos vieram visitar
três senhores, o Sr. Simeão Teles de Menezes Jurumenha, o Sr. Ludgero
de Carvalho Paes e um Sr. filho do capitão-mor. Como lhes disse que
tencionávamos ir amanhã no sítio do capitão-mor, ofereceram-se para
irmos juntos o filho e o Sr. Simeão.
Almoçamos e nos aprontamos para a festa, à qual assistimos de
uma tribuna que nos [f. 229] arranjou o Sr, Sucupira; éramos eu, Lagos e
Reis. Manoel e Vila Real não foram, provavelmente porque não quiseram
concorrer para a festa. À festa se fez com bastante decência, pregou o padre
Marrocos. À música vocal e instrumental foi a melhor que tivera na terra,
grande quantidade de foguetes etc.

187
Grande concorrência do povo, era curioso ver-se o corpo da igreja
todo cheio de mulheres, quase todas com lençóis ou xales, brancos, muito
alvos, lançados pela cabeça. As senhoras que trajavam cortesás com vestidos
de sedas ricos, bem-feitos e airosos, bem penteadas etc., traziam todas um
lencinho dobrado em triângulo posto em cima da cabeça e algumas com
eles atados por baixo do queixo; e uma menina que estava na tribuna em
frente da nossa bem vestida, vestido de seda furta-cor, roxo e verde, afogado
com cabeça de franjas, tinha um lencinho transparente, rendado e posto
mui elegantemente pregado embaixo dos queixos, à maneira dum véu de
freira, o que fazia sobressair um rostinho redondo, corado e bonitinho.
Havia nas tribunas algumas senhoras e moças bem-parecidas. No corpo da
igreja havia mais de mil mulheres pela maior parte cabras ou mamelucas.
De tarde houve procissão, que vi passar pela nossa rua, da janela.
Eram oito ou dez pequenos andores, pobres, mas enfeitados e com
certa elegância, e o pálio. [f. 230] Acompanharam a procissão algumas
irmandades e muita gente de casaca com tochas. Seguia a música e alguma
tropa e por fim grande número de cabras de camisas por cima das ceroulas,
mas limpas, o que nos parece corresponder às mulheres de lençol na igreja.
Tudo para sisudez e gravidade.
À noite fui assistir ao grande leilão, que aqui chama ato. É na praça
em roda duma grande mesa cheia de objetos para leilão: doces, frutas,
vinhos, licores, aves assadas, peixes e mil outros objetos. São postas algumas
ordens de bancos, onde se sentam as famílias, por fora das quais ficam os
homens, e o quadro é fechado com paus que sustentam lampiões. Estive
assistindo ao leilão obra duma hora e me retirei, para depois se retirarem
também Lagos e Reis.
Estivemos aí quase às dez horas; o Lagos tomou boa parte nos piques.
Quando um objeto era arrematado tocava a música e atira-se foguete. Se
o objeto era digno de ser oferecido às senhoras, cada um os ia oferecer à
dama, que a quem queria cortejar ou obsequiar.
Por fim se lançou uma máquina ou balão.
Estava eu escrevendo esta nota ao som de música e dos foguetes
e ouvindo uma grande algazarra, abri a janela e via a máquina que caía
incendiando no meio das vaias da popular rapaziada.
[f. 231]. Dia 23: De manhã estava me apresentando para irmos

188
FB a

passar o dia no sítio do capitão-mor, quando veio o Lagos dizer que


decidiram saber antes com antecedência, para não serem surpreendidos;
visto estarmos com viagem para o Exu, transferimos este passeio para
quando voltássemos. Durante a manhã trabalhei em alguns desenhos e
no relatório para o governo. Estávamos à mesa quando um dos criados
disse-nos que naquele momento um homem havia esbordoado a mulher
e a deixara por morta. Soube-se depois que um sujeito (veja-se a nota
adiante) encontrando a mulher em adultério lhe dera três facadas pelas
costas, que lhe vararam os pulmões. O Lagos foi chamado e lhe fez o
curativo, e supõe que não escapa. Foi confessada e sacramentada.
Às ave-marias saí, visitei o Dr. juiz municipal. Daí fui para a roda do
Sucupira onde estava entre outros o Dr. Ratisbona. Aí me pediu o Sucupira
[para] ver uma senhora doente, sua parente, o que prestei-me; fui entrando
para a sala onde achei a dita senhora no meio dos da casa, e toda cheia
de vergonha, para fazer a história da moléstia e fazer apalpamento para
se deixar apalpar, no meio em galhofa das outras. Voltei para casa depois
das oito horas e tomamos chá no quarto do Lagos em boa companhia,
chegando afinal o Jucá.
[f. 232] 24: De manhã estive copiando alguns artigos d'O Cearense
e fazendo alguns desenhos botânicos. Veio nos visitar o comandante do
destacamento, o Sr. Antonio Gomes Ferreira Perigoso. Fomos hoje e ontem
atormentados por pedintes.
De tardinha saí, estive um pouco na roda do promotor, onde estava
tanto o juiz de Direito e a senhora do promotor. Daí fui para a roda do
Sucupira, onde estive até quase oito horas. Aí se conversou muito sobre
animais daninhos da lavoura.
De noite talvez depois da meia-noite caiu alguma chuva. O tempo vai
muito seco, pelos sertões da Bahia, Pernambuco, Piauí, e consta já grande
mortandade de gado, e mais em alguns lugares parece haver morrido gente
à fome.
Achamo-nos aqui ilhados; no caso de haver seca não há meio de
sair, tudo em roda é sertão árido. Isto nos tem dado algum cuidado. Quem
nos anima é o Sucupira: ele espera por inverno e diz que o mês de janeiro
sempre foi seco no Cariri, o que faltou foi chuva em outubro, novembro e
dezembro. Diz ele mais que houve [n]o ano passado alguns sinais, a que os

189
antigos davam muita importância. Acham [que] quando os angicos resinam
pouco é sinal [f. 233] de bom inverno seguinte; quando as marizeiras,
juazeiros e paraíbas choram é sinal de bom inverno. Ora, o ano passado os
angicos deram pouca resina e as árvores acima referidas, [portanto] choverá
muito. (Creio que esta chuva é principalmente no tempo da brota.)
25: Foi hoje o dia de muito calor; amanheceu o céu anuviado, de
tarde viam-se em vários pontos nuvens encasteladas, formando trovoadas,
em alguns lugares chovia ao longe.
De manhã ocupei-me com alguns desenhos. De tarde, depois
de termos jantado, eu estive no quarto do Lagos onde vimos chegar o
Capanema, Garrido, Dias, Coutinho etc., acompanhados de outros
cavaleiros passando pela rua do Vale, que fica no fundo das casas em que
moramos. Vila Real e Manuel, que estava em cima, vendo-os passar, os
saudaram e chamaram-nos; eles seguiram para a casa do Ratisbona.
Eu mandei um ordenança visitá-los e oferecer a nossa casa, enquanto
a não tivessem. À resposta que nos trouxe o ordenança foi: “Que já tinham
casa”.
Então eu disse ao Lagos (que já não tinha falado em irmos ou não
visitá-los, mas que parece quiseram eles que deviam vir apresentar|[-se) ao
presidente da comissão), disse eu: “À noitinha, se eles não tiverem vindo,
iremos nós visitá-los, para tirarmos toda [f. 234] a presente da queixa”. O
Lagos aprovou e lembrou que devíamos [ir] cada um separadamente para
não parecer que o faziam com solenidade, e logo depois se apresenta e os
foi visitar. Eu saí à hora do meu costume, o Reis saiu ao mesmo tempo,
e os achamos (menos o Coutinho) sentados à porta do Dr. Ratisbona.
Receberam-me mui friamente. Estimei na ocasião de ir à casa do João
Brígido para levar números da Revista Brasileira, que eu ainda não tinha
lido. De lá fui para a roda do Sucupira e daí para casa com o Lagos.
Dia 26: De manhã trabalhei estudando e desenhando, tive a visita
do padre Lima Seca. Veio depois o Capanema, entrou para a sala de
dentro, esteve com Manoel e Vila Real mais de uma hora e retirou-se sem
me falar, estando eu na sala!
De tarde saí e logo na porta encontrei Capanema e Dias com o Dr.
Ratisbona passeando. O Dias não nos visitou ainda. Estive na roda do
Sucupira; dela vim para o quarto do Lagos; estava o Capanema em cima,

190
chegou depois o Coutinho, que também não nos procurou ainda, e eu
ontem quando os visitei não esqueci de perguntar por ele.
Anteontem na roda do Sucupira, falando-se sobre Filgueiras, contou
o Sucupira vários casos de força deste homem não ordinário. Era homem
agigantado, mas bem proporcionado e bonito.
[f. 235] Contam deste homem muitos atos de bravura e força. Ainda
não tivemos ocasião de ver aqui uma famosa pedra que ele tombou e, estando
banhando-se aqui no Crato com três sujeitos, estes quiseram, reunidos,
mover, do poço ou do banheiro, uma grande pedra e não conseguiam.
Filgueiras afastou-os, meteu as mãos à pedra e tombou-a.
Existe ainda na vizinhança da sua casa um grande visgueiro à beira
do caminho; e muitas vezes passando ele por baixo, agarrava-se a um galho
desse assim e suspendia o cavalo entre as pernas. Um dia estando aqui na
cidade deitado numa rede, a senhora da casa falando nos casos de forças que
se contavam dele, parecia duvidosa. Filgueiras levanta-se da rede, pega nela
pelos punhos e arrebenta todos os cordões e diz para a Sra: “Comadre, que
rede tão podre?”.
Tinha três bacamartes afamados: o Boca da Noite, o Meia-Noite e o
Estrela-d'alva. Eram tão grandes, que se metia um braço pela abertura do
cano e só o Filgueiras era capaz de atirar com estas armas.
Um sujeito, que era também homem de força, entendeu que podia atirar
com um desses bacamartes, disparou-o e caiu ele para um lado e a arma para
outro.
É com estes bacamartes que Filgueiras dava a caserna e ajuntava seus
cabras para qualquer ação.
Dia 27: De manhã estive desenhando e estudando algumas plantas.
Depois do jantar tive uma conversa com o Lagos, em que me contou
coisas que me encheram [f. 236] de desgostos e impaciência! Estávamos
aprontados para sair quando me vieram visitar o Capanema, o Dias e o
Coutinho; o Capanema entregou-me uma carta do Martins e deu-nos a
notícia; desta vez chegou o correio com más notícias do Sul etc. etc. Vieram
visitar-me uma grande vizinhança.
Saí, estive em roda do Sucupira onde se conta muita coisa — mais
uma do Filgueiras: Estavam os liberais ou o povo do Crato na Matriz para
festejarem o juramento da Constituição, quando foi a igreja cercada por

191
gente armada, ou tropa dirigida pelos corcundas, o ouvidor etc. Uma
pessoa grande e notável (não me lembro [d]o nome) saiu à porta a exortá-
Jos, quando recebeu uma porretada na cabeça e um tiro que o apanhou em
um braço. Filgueiras, que estava na igreja, saiu, puxou a espada e investiu
só contra os agressores e os põe em fugida.
Os realistas, ou anti-constituição, ou antes os antiliberais, para
indisporem o povo contra os liberais espalharam entre eles que estes
queriam acabar a religião e que era necessário defender Nossa Senhora da
Penha contra os seus desacatos, e convocam essa gente em nome de Jesus
Cristo. O caso que por muitos domingos e dias santos vinha toda essa
gente — os cabras, montados ou a pé, armados como podiam e cercavam a
igreja. Ninguém se atrevia a lá entrar, o vigário dizia missa sem ouvintes;
essa matula só se retirou de tarde, afinal o mesmo vigário é que acaba com
missa etc. etc. Recolhi-me para casa, tomei chá no quarto do Lagos, recebi
as cartas do correio e escrevi para o Rio.
[f. 237) Dia 28: De manhã fiz alguns estudos e desenhos e li o
Jornal do Comércio que chegou ao Lagos. De noite saí com o Lagos e
fomos para a roda do Sucupira. Daí voltamos e era ocasião do chá. O
Vila Real passou com o Manoel e o Lagos o chamou, dando-lhe algumas
ordens. Ele começa a responder com altivez e com o chapéu na cabeça;
eu quase fora de mim; peguei-lhe pelo [braço e] disse-lhe que falasse mais
brando e tirasse o chapéu; daí seguiu-se uma disputa, o Manoel, que
ouviu, desceu e meteu-se nela, mas com modos e palavras conciliadoras.
Então se apresentaram as razões que de parte a parte havia para desavença
que reinava entre nós. A disputa durava uma hora e parece que daqui em
diante haverá mais harmonia; o Manoel fez mil protestos de que nunca
teve intenção de me ofender e me pedia perdão se involuntariamente o
havia feito. E quais os fatos iniciais para estas desavenças do Lagos, do
Vila Real? Não houve: isto [foi] apenas uma troca de palavras ásperas,
mas quem primeiro as empregou foi o próprio Vila Real, portanto por sua
própria causa dele é que partiu o primeiro motim (mas já antes, durante a
viagem, ele tinha dado mostras do que havia de ser por a diante). Quanto
a Manoel, o primeiro fato que apronta é darem eles ordens aos empregados
da comissão e essas ordens serem contrariadas, o que respondi que não

192
o deixam fazer, porque não podia haver harmonia se todos mandassem.
Assim também senti, comprovei deles a origem dessas desavenças. E assim
eles do Aracati em diante entenderam que deviam escolher animais [f.
238] condutores e tudo para fazerem malote [matalotagem] sem a ordem
dos chefes e nos referimos isto, sem nada lhe dizer. Manoel com seus
modos desabridos dava ordens ao José do Ó, aos ordenanças etc. etc., do
que se queixavam. O meu ordenança é um cabo de esquadra, eu o trato
sempre com certa consideração, mas ele mandava e por quem mandava,
um escravo é pouco: “Vá apanhar cavalo, vá dar água a cavalo” etc. etc. O
homem se queixa disto e eu nunca o repreendi, sofre tudo. Ora eu, aqui,
a causa de tudo quanto haveres safado!!
O dia hoje foi quente, o céu esteve sempre com nuvens encasteladas;
de tarde havia no horizonte nuvens azuladas e chuva. De vez em quando
havia tufões de vento. De noite ainda ventou.
29: Amanheceu o dia com o céu anuviado, a sul e norte. Hoje
não fui à missa e estive ora estudando ou lendo, ou sendo interrompido
[por] doentes que se vinham receitar, e no fim por visitas dos Srs. Brígido,
Cardoso, Jucá, Hamilton e Otávio. De tardinha saí e estive na roda do
Sucupira até mais de oito horas.
Esteve hoje o dia bastante quente, ou do mais ou menos anuviado,
refugos de vento, grande halo na lua etc.
Estamos nos aprontando para ir amanhã a Exu.

193
Viagem ao Exu, Jardime Barbalha
pela chapada do Araripe
30 de janeiro a 8 de fevereiro de 1860
[1-28,8,7-1]

[f. 239]

Segunda-feira, 30 de janeiro de 1860: Saímos do Crato, eu eo Lagos,


acompanhados pelo Barreto, nosso coletor, por José dos Santos, meu criado,
e por Domingos, escravo do Lagos; foi também conosco um sujeito da terra
para servir-nos de guia.
Eram nove horas quando partimos, demoramo-nos um pouco à porta
do Sucupira e às dez horas e meia estávamos no alto do Araripe, subindo pela
ladeira de Belo Monte, que estava bastante arruinada, pelas últimas chuvas;
e nos lugares mais perigosos subi a pé. Já quase no alto encontramos com os
Drs. Capanema, Coutinho, Gonçalves Dias e Manoel e outros, que vinham
de volta, tendo para lá ido mais cedo. No alto, tendo de fazer aí muda
de animais, por outros que estavam na solta, foi-nos necessário aí esperar,
perdendo uma hora de viagem. Às onze horas é meia continuamos a nossa
viagem, andando na chapada e pelo agreste até uma hora e um quarto, o
que nos dá duas léguas de caminho. Chegamos ao carrasco à uma hora e
um quarto, e à boca da mata à uma hora e meia, o que nos dá de carrasco
um terço de légua. Na entrada da mata há plantações de mandioca e, vendo
aí uma casa de farinha, antes um [f. 240] rancho de palha com roda e
forno (aqui vimos pela primeira vez um crivo de couro de vaca servindo de
peneira), estando o sol bastante quente, contra o que esperamos no alto do
Araripe e, já com bastante sede, metemos-nos embaixo e bebemos cidra, de
que o Lagos levava duas garrafas. Descansando obra de um quarto de hora,

194
continuamos nossa viagem entrando pouco depois na mata, de que tanto
falam os cearenses, e que não passa a mais de uma das nossas pequenas
capoeiras. Faltava um quarto para duas horas, o sol queimava, a mata mui
seca não nos protegia bastante; estávamos enfadados, como aqui se diz, e só
20 minutos antes das cinco horas é que chegamos à picada, feita de novo
pelo Sr. Gualter; dez minutos depois se nos descortinou uma grande porção
da província de Pernambuco. A vista duma outra província e o prazer de
ter concluído uma grande viagem dissipou todo o nosso aborrecimento e
tornou-nos alegres.
Ao sair também deste outro lado da mata há culturas de mandioca,
a que chamam aqui roça, e ao pé da ladeira havia outra semelhante casa de
farinha, mas esta estava em ação e cheia de gente, homens e mulheres, e
nos aproximamos a pedir água para beber, o que eles nos deram contentes.
Tendo gastado quase três horas na mata, avaliamos em quatro léguas de
travessia. Faltava-nos a descida da ladeira. Esta ladeira é nova e não está
concluída, é obra do Sr. Gualter (para cuja casa íamos) por se achar a
ladeira antiga [f. 241] e de muito difícil trânsito; mas quando chegamos
à beira da serra e princípio da ladeira, tivemos horror! Figurou-se um saco
que aqui faz a serra (chamado o saco de Sto. Inácio, talvez pelos jesuítas
que aqui tiveram missão), talhado quase a pique e na altura talvez de 200
braças e por cuja parede desce a ladeira ainda mui toscamente feita! Anda-
se pendurado sobre um abismo, apenas mascarado por algumas árvores de
aspecto mesquinho!
Apeei-me imediatamente, e o mesmo fez o Lagos, e descemos toda
a ladeira a pé. Chegamos abaixo estrompados, suados e cobertos de poeira.
Estávamos em Pernambuco. Montamos a cavalo e daí a pouco, em outro
saco que faz a serra, achamos-nos na vila do Exu. Aldeia antiga de índios,
chamados Exus ou, como querem outros, Ansus (e dirigida pelos jesuítas),
de cujo colégio restam ainda vestígios, ou alicerces. A vila é insignificante,
de aspecto triste e miserável: a matriz, que nunca se acabou, está caindo
em ruínas, nunca foi rebocada e por dentro, diz o Lagos, que a foi ver, está
inteiramente nova.
Aí nós chegamos a uma casa de uns pardos e bebemos água.
Andávamos muito devagar pelo cansaço dos animais e quando chegamos
ao sítio do Sr. Gualter Martiniano de Alencar Araripe, que há pouco era

195
subdelegado de polícia, eram seis horas e um quarto. Desde as oito horas,
em que tínhamos almoçado, só havíamos bebido água durante o dia.
[f. 242] Estava ele sentado a sua porta com mais dois ou três sujeitos
e nos recebeu da maneira a mais amável; esperava por nós desde o dia
25, como havíamos ajustado no Crato, e mesmo nesse dia havia ele, com
mais alguns amigos, subido a serra para esperar-nos ali. Informado de que
estávamos sem jantar, mandou servir a mesa com doces, queijo e vinho,
enquanto se aprontava comida. Assim fomos pouco depois introduzidos na
sala interior do jantar e se nos ofereceu uma mesa, com toalha muito limpa,
alumiada por dois castiçais de cristal, com mangas, duas compoteiras de
doces, queijo e uma garrafa de cristal com vinho bem sofrível e boa louça,
tudo muito limpo: era uma mesa suntuosa para estes lugares e condizendo
pouco com a casa. Em geral as casas pelo sertão do Ceará, e das outras
províncias, e mesmo nas povoações e vilas, são pouco confortáveis e duma
simplicidade primitiva.
Os donos protestam sempre que estão para fazer casa melhor, como
nos disse o Sr. Gualter por várias vezes. Esta em que estamos, feita por ele, é
de paus-a-pique, ladrilhada e de telha vá e caiada, mas está mal conservada.
Tem na frente um grande e alto terraço, obra nova. Ao lado esquerdo há
forja e engenho, a saber, umas moendas de paus expostos ao tempo e a casa
de fazer [f. 243] rapadura, ou aguardente; ao lado direito [palavra borrada]
casa onde há oficina de carpinteiro e outros cômodos pelos fundos, algumas
senzalas cobertas de capim ou palha.
À frente da casa tem a vista desafrontada, porquanto alguns serrotes
fronteiros e em rumo do Araripe, que se estende ao sul, são baixos e
afastados. Não há nestas fazendas ou sítios campos gramados como no Rio,
tudo é coberto de mato pequeno em roda, ou o terreno é nu.
Seriam dez horas quando nos chamaram para a ceia levantando o Sr.
Gualter um reposteiro de chita que tem a porta que dá [alo corredor da casa
de jantar: estava a mesa fumegando com guisados de aves e foi rematada por
uma vasta e bonita bandeja acharoada, sobre a qual tinham um serviço de chá
de porcelana dourada e outra com várias qualidades de bolos, biscoitos etc. etc.
As senhoras não apareceram aqui pelo sertão, e principalmente no
de Pernambuco, elas não se amostram senão em certas ocasiões. A dona da
casa me pareceu estar em um quarto, despensa ou copa, que dava para a sala

196
de jantar, com a porta meio fechada, porque dali saíam os pratos, e tudo
o mais, e para ali tornavam. Uma singularidade, que aqui notei, é que na
mesa se punham bandejas com talheres e pilhas de pratos e guisados, vindos
[f. 244] cada um por sua vez. Ao lado da casa de jantar, que é pequena,
havia uma sala maior, por cuja porta, que a não fechavam, víamos dentro
senhoras e mulheres sentadas na mesma sala de jantar; cosiam sentadas no
chão várias raparigas.
Depois de refeitos, voltamos para nossas redes, na sala de fora. É a
primeira coisa que se faz, logo que chega qualquer hóspede: armarem-se
tantas redes quantos eles são: bem lavadas e mais ou menos ricas, segundo a
fortuna do dono da casa. Entrando-se na casa dum pobre, ele levanta-se de
sua rede e a oferece a quem chega. Para dormir-se mete-se dentro da rede
uma almofadinha, de pano mais de palmo, e uma coberta: a almofadinha
vem sempre enfronhada em crivos e rendas e a cobertura é segundo a estação.
Aqui nos sítios de Pernambuco (os três de Gualter e seus parentes) eram
sempre colchas de rica chita forradas de morim. As redes são nestas terras
as cadeiras, os sofás e as camas. Não quero dizer que não haja cadeiras, nas
casas mais abastadas há sempre cadeiras, de pau, de couro ou de palhinha,
conforme as posses, e em algumas casas há camas.
Como dizia, deitados e balançando nas redes, uns cachimbando,
outros charutando e outros palitando os dentes, deu-se a taramela até quase
onze horas. O uso do cachimbo é muito geral nestas [f. 245] províncias;
o Sr. Gualter diz mesmo que prefere o cachimbo ao charuto. Às senhoras
também cachimbam, mas às escondidas.
Nada desejávamos tanto como um banho; mas é coisa que raramente
se oferece no sertão; isto é sem dúvida devido já à falta d'água no verão, já ao
costume de se banharem nos rios. E quando vem água é numa pequenina
gamela, ou bacia, onde mal cabem os pés: esta bacia com água se apresenta
no meio da sala e o preto, criado ou criada que a traz, com uma toalha ao
ombro, que tem mais de crivos e rendas que de pano, e além disso dura de
goma, dispõe-se a lavar os pés dos hóspedes e donos da casa. Nunca me
pude acostumar a semelhante uso e mandava levar a bacia para um quarto
ou canto, e aí eu mesmo lavava os meus pés e me banhava se estava só.
Antes do jantar vem água para as mãos e sempre a rica toalha engomada.
Por esta ocasião refarei a luta que eu tinha com as lavadeiras, que nunca me

197
podiam entender, recomendando-lhes que me não engomassem ceroulas,
camisas de meia, lenços, toalhas, calças etc. Era obrigado muitas vezes a fazer
voltar a roupa para se desengomar; muitas vezes [se] fazia às avessas: vinham
as camisas com peitos e colarinhos moles e as ceroulas, lenços etc., tesos
de gomas! Aqui no Crato a moça que engomou a minha roupa, porque
já aborrecido fiz voltar a roupa para [f. 246] pô-la a meu gosto, afligiu-se,
chorou, maldisse-se, porque não me entendia!
É bom agora referir alguma coisa da conversa que houve à noite, entre
o Gualter e outros sujeitos, a respeito de eleições, e então eu e Lagos éramos
só ouvintes. O sujeito que veio conosco do Crato, como guia, contava o
que se estava passando ali a respeito das próximas eleições: ele administrava
um sítio do Bilhar e dizia que Bilhar (que é socó, ou saquarema) exigia
que todos os moradores das suas terras votassem com ele e que aqueles
[que] quisessem votar pelo outro lado saíssem do sítio, quando não
mandaria lançar fogo nas suas palhoças; que Maia (atualmente carrapato,
ou chimango, por se ter agora passado para esse partido) oferecia moradia
em seus sítios a todos quantos fossem expulsos pelo Bilhar e quisessem
votar com os carrapatos. Eis aqui a teoria: diz Bilhar que o seu sítio é a
sua casa e que em sua casa não quer quem lhe faça guerra! Pelo que tenho
presenciado isto é geral no Ceará, muito principalmente no sertão. E eis
aqui a liberdade com que o povo vota! Qual é pois o valor das palavras com
que enchem a boca os garimpeiros?! Mas isso não é o pior; calculam, e sem
cerimônia, o número dos votos pelo dinheiro que podem gastar os diretores
da eleição e já não vendem os seus votos só os primeiros votantes, mas
até os eleitores! [f. 247] Notei também maior intolerância no Exu do que
no Crato: o Sr. Gualter, que me parece um homem cordato, assim como
seus parentes, segundo ele afirmou, não quer nem relações com quem não
for do seu partido. “No Exu”, diz ele, “tudo é concorde, não há um voto
dissidente!”. No Ceará, mas principalmente no centro de Pernambuco,
fazem todos ostentações de liberalismo e provavelmente isto acontece em
todas as províncias do Norte (no Ceará porém me parece que os grandes
fazendeiros são de opinião contrária).
Mas o que é triste é a ideia que eles têm da corte e do governo e do
soberano; para eles a corte é a depravação personificada, é o servilismo nu
e cru. O governo € o imperante governam como governavam os antigos

198
capitães-generais: ali tudo é vendável e corrompido. As arbitrariedades
das autoridades subalternas, os distúrbios e morticínios nas eleições, tudo
provém do Rio de Janeiro, e mesmo diretamente do imperador!
São estas ideias semeadas pelos mal-intenciosos e mesmo pela
imprudência e licenciada imperança.
São estes sentimentos perigosos para a tranquilidade e integridade
do Império, que convém por todos os meios destruir. Infelizmente
o procedimento do governo, não dando toda a atenção às províncias
longínquas, dá argumentos em que se podem firmar! Creio que a política
mais conveniente era olhar ainda mais para as extremas do Império que
para o centro.
Também se contaram algumas extravagâncias [f. 248] do Quinca
Pimentel, de que farei menção à parte.
Chegada a hora de dormir. Eu me retirei para o quarto onde estava
armada uma rede para mim, os mais dormiam na sala.
31 de janeiro: Levantamo-nos tarde, veio logo café e fizemos hora
para o almoço tagarelando, ou escrevendo.
Depois de excelente e farto almoço, saímos: o Lagos para a vila
e eu andei, subi o morro por detrás da casa, com um moço que aí está
homiziado por intrigas amorosas acontecidas no Crato. Andei vendo
plantas e também fui observar o talhado da serra, seus sacos etc., para
traçar uma carta de viagem. Depois desci até abaixo à cancela para
colher duma árvore leguminosa denominada rabo-de-cavalo, assim como
mandei o Barreto colher algumas plantas.
Jantamos depois das três horas, tomou-se café, conversamos sentados
à porta. Apareceram visitas, doentes para se receitarem etc. etc.
De tarde deu uma trovoada a oeste, nos sertões de Pernambuco, com
chuvada. De noite caiu alguma chuva no Exu.
Fevereiro, 1: Amanheceu o dia coberto. Esta manhã ocupei-me
em traçar a carta da minha viagem, servindo[-me] da bússola do Lagos e
com informações do Sr. Gualter. Hoje, em ocasião em que eu estava só,
apareceram as senhoras, cada uma por sua vez; a primeira foi uma irmã
do Sr. Gualter, senhora casada, já com perto de 40 anos, bem constituída;
mas [f. 249] sofrendo gravemente do útero. Depois apareceu a senhora
mãe do Sr. Gualter e da doente, querendo saber o juízo que informava da

199
moléstia da filha. É uma senhora branca, respeitável, filha do Jardim e que
conta seus 83 a 84 anos, mas acha-se bem-disposta e conversa muito bem,
e é muito noticiosa, Finalmente apareceu a mulher do Sr. Gualter, senhora
bem-apessoada, discreta e bem-parecida, é filha da Paraíba, sofre um pouco
dos olhos. Esta se apresentou trajada como se fosse fazer uma visita, cheia
de adereços e bem vestida.
Ao meio-dia acumulavam-se nuvens sobre o Araripe e à uma hora
e meia dá uma trovoada assaz forte com bastante chuva, vinda da serra é
da parte do norte.
Aqui no Exu, informa o Sr. Gualter, o vento leste anuncia é o norte traz
chuva.
Às três horas havia cessado de chover, ficando sempre o tempo
coberto.
Passamos a tarde no terraço atirando em passarinhos, experimentando
espingardas; a noite, deitados na rede contando histórias.
Hoje se nos apresentou água para os pés na pequena bacia, tudo
como fica relatado atrás.
Seriam sete horas da noite quando começou a cair uma pequena
chuva, que aumentando choveu toda a noite sem cessar, e bastante.
2 de fevereiro: Amanheceu chovendo e o nosso Gualter muito
contente. Eram oito horas, ainda chovia [f. 250] e víamos transtornada a
nossa viagem que estava justa para hoje.
Eu saí do Crato com tenção de chegar só ao Exu, demorar-me aí
um dia e voltar; nem levava roupa para mais. O nosso hóspede [na época,
“hóspede” significa, também, “anfitrião”, aquele que hospeda] quis que nos
demorássemos mais um dia, no que convinha facilmente para dar descanso
ao meu cavalo e para mandar lavar alguma roupa branca. Depois o horror
que havia concebido da ladeira e que tinha de a subir a pé, o desejo de ver o
Jardim e tendo já roupa lavada, tudo e as instâncias do Lagos me induziram
a fazer esse giro, do que me não arrependo.
Enfim ao meio-dia já quase não chovia e tínhamos uma boa
tarde de viagem: o Sr. Gualter nos acompanhava e nos levava para
pousar em fazendas de seus parentes e de seu irmão. Com efeito
às quatro e meia estávamos a cavalo, nós e os nossos criados. O Sr.
Gualter e o seu pajem fardado e agaloado, dávamos que ver. Às seis e

200
meia estávamos nas Caraíbas, sítio ou fazenda de uns parentes do Sr.
Gualter; receberam-nos uns cinco sujeitos, alguns dos quais homens de
grande estatura, muito bem conversados, muito curiosos e discretos,
todos homens brancos, fizeram-nos uma recepção assaz graciosa. As
senhoras não apareceram. Deram-nos uma ceia farta, infelizmente a
água era péssima e eu não pude tragar um gole. Tomamos um café,
dele pusemos-lhe pedra-ume e depositou no fundo algum tempo uma
grande quantidade de argila.
[f. 251] De manhã deram-nos almoço cedo e fomos introduzidos no
interior da casa onde estavam as senhoras, das quais duas estavam doentes,
ambas afetadas do peito, dentre elas havia uma moça corada e bem-parecida.
O dono da casa se chama Simão Geraldo de Carvalho, e a sua senhora
D. Maria Vespasiano de Alencar. Todos os mais homens e mulheres eram
parentes que se juntaram, por saberem que ali íamos dormir.
Do Exu a este sítio fazem três léguas.
Partimos seriam quase oito horas e andando por entre caatingas,
matas e tabuleiros (era já sertão), chegamos a Caiçara às dez horas e dez
minutos. Fazemos de Caraíbas aqui quatro léguas.
Caiçara: situação antiga desta família desde os bisavós, que foram
os chefes da família Alencar e os primeiros colonos destes lugares, que
conquistaram aos índios.
Recebeu-nos muito bem o Sr. Luiz Pereira de Alencar, irmão do Sr.
Gualter. Armaram-se redes na sala e nos pusemos à fresca. A senhora do Sr.
Luiz Pereira, e uma moça sua filha, só nos aparece pelas dez horas da noite,
quando nos íamos acomodar, e o Lagos estava já em ceroulas na sua rede e
foi obrigado a vestir-se: a senhora vinha receitar-se e apareceu a esta hora
porque durante o dia esteve atormentada de dores de cabeça.
Fomos também aqui tratados com certo luxo [f. 252] para o sertão.
Temos notado aqui em Pernambuco um certo ar de grandeza na gente
e no trato, que não observamos no Ceará; no entanto, aqui se nos dizia
sempre que a gente do sertão de Pernambuco era abestalhada, falavam
muito incorretamente etc. etc., mas vimos tudo em contrário; ao menos
nestes lugares por onde andamos, estivemos sempre com gente branca, bem
trajada, homens e mulheres, e conversando perfeitamente bem e mostrando
inteligência. Os pernambucanos, porém, ou por nos ouvirem, visto que eles

201
sabem o que corre a seu respeito no Ceará, ou mesmo porque, em outros
lugares do sertão, seja o que se diz, os pernambucanos, quero dizer, alguns,
falando dos sertões de Pernambuco, repetem o que ouvimos no Ceará. O
que também notei nestes senhores do Exu é o desdenharem do Cariri e
julgarem o seu sertão e a gente dele melhor que a daquele.
O Lagos os entreteve, como no Exu, com a sua espingardinha,
atirando em pássaros, em alvos etc. Havia grande quantidade de maracanás,
nas árvores, nos campos.
O Sr. Luiz Pereira me deu várias informações a respeito da cultura
e criação destes lugares, que escrevi em outra parte, e o que me disse a
respeito de seus avós primeiros colonos aqui é o seguinte:
Vieram de Portugal, se bem me lembro, três irmãos: uma senhora, que
se casou, creio que para as partes do Jardim (no Ceará), e dois homens destes,
Leonel de Alencar Rego, seu bisavô e avô do senador Alencar, foi quem veio
estabelecer-se neste lugar, conquistando terras [f. 253] dos índios Caracuis
e Ansus. Esta luta com índios durou até seus pais, em cujo tempo ainda se
lançaram bandeiras contra os pobres índios, e sendo ele menino ainda se
lembra de ver o índio José Angelim com sua mulher, nus, entrarem pela sala
e se lançarem embaixo da rede onde estava seu pai, pedindo-lhe perdão e
submetendo-se,
Ainda não há muito tempo que morreu com avançada idade, o
último dos Caracuis, chamado Pascoal do Rego. Diz o Sr. Luiz Pereira que
estes índios eram bem-apessoados e de cor clara.
Devia ser em 1710 que o Sr. Leonel de Alencar se estabeleceu neste
lugar, sendo a sua casa no lugar onde hoje tem casa o Sr. Gualter: o sítio
Araripe aqui perto de Caiçara, mais próximo ao rio (riacho do Rugido)
(quando visitamos chegamos a essa casa).
[Isso], o filho; porém o avô do Sr. Luiz Pereira e que fez a casa onde
ele mora, existindo ainda perto dessa casa, que foi acrescentada pelo pai,
que lhe fez mais uma sala, que é onde agora se recebem hóspedes e onde nós
estamos; toda a casa tem paredes de tijolo, chão ladrilhado, teto de telha vá,
parece ter bastantes cômodos para dentro; na sala feita pelo pai existe uma
espécie de altar feito de tijolo, onde estava um oratório e lá diziam missa.
Seus avós e pais se ocupavam com criação de gado, cavalos, ovelhas,
cabras etc.; eles continuam no mesmo. Plantam legumes no inverno.

202
De noite nos deram água para os pés, na sala, e numa baciazinha.
[f. 254] De manhã cedo deram-nos água para o rosto e pôs-se uma mesa
com café simples e leite separado, com tapiocas (solas) e biscoitos. Eu
tomei café com leite e o Lagos; eles e os meninos, que eram quatro ou
cinco, café simples. É notável que nos sertões tanto do Ceará como de
Pernambuco não gostam de café com leite e o café geralmente usado é
muito fraco. Despedidos dos nossos excelentes hóspedes, o Sr. Gualter
ainda nos acompanha por espaço duma légua. Partimos de Caiçara eram
alguns minutos depois das sete horas.
Uma légua andada, e ao chegarmos a uma grande lagoa que estava
agora seca, o Sr. Gualter se apeou e nós fizemos o mesmo para fazermos
as nossas despedidas: excelente pessoa, cavalheiro e conosco se portou
a cativar-nos. Caminhávamos por tabuleiros e caatingas, por montes
pedregosos e debaixo de forte soalheira. À uma hora nos metemos debaixo
de um formoso imbuzeiro, carregado de frutas, mas verdes, pusemo-nos
à fresca, sentamos, tirou-se o soleio aos cavalos, e contávamos aí com
uma refeição, pois o Sr. Luiz Pereira havia metido numa toalha fatias de
peru assado com farinha e um tijolo de doces; mas era o Domingos quem
trazia o farnel, e ele e o José, meu criado, não apareceram. Esperamos até
às duas horas (o Lagos esbravejava e prometia castigar o preto, mas eu
procurava acomodá-lo, com toda a pachorra), qual havia estava furioso!
Vimos que os rapazes, deixando-se ficar atrás, haviam perdido o caminho,
montamos a cavalo e seguimos. [f. 255] O sol rachava, sendo ainda uma
ou duas léguas se nos ofereceu à beira do caminho um imbuzeiro com
bastante fruta ou de vez, ou já bastante madura, apanhamos boa porção
para mitigar a sede, mas eu fiquei com alguns dentes excessivamente
dormentes e dolosos (isto me doeu uns dois dias), o Lagos também
sofreu. Ao chegarmos ao sítio do Jenipapo, já nas ladeiras do Araripe,
havia muita quixabeira carregada de fruta, apanhei algumas, mas é fruta
desenxavida. Enfim às quatro horas chegamos ao sítio Jenipapo, quase a
meia altura do Araripe e mui próximo a ele. O Sr. Francisco Xavier Lopes,
para quem trazíamos carta do Sr. Gualter, estava na roça e lá se mandou
entregar a carta. Foi-nos mostrada uma casa antiga e arruinada, separada
da casa de família, na qual nos metemos. A nossa gente ficou à sombra de
grandes juazeiros.

203
A casa em que fomos hospedados é a que foi dum português, que abriu
este sítio pequeno mal construído, de telha e esteios, sem ladrilho. Em uma
repartição havia um oratório, cuja porta caída deixa entrar aí porcos, cães,
galinhas etc. Haviam armadas duas redes e presas a duas espécies de colunas
que sustentam um dossel que cobria o altar e o nicho. Tudo estava pintado
e enfeitado toscamente com pedaços de papéis de várias cores, fornecendo
laços, flores etc., provavelmente obra dos rapazes. Aqui se festejam vários
santos e se diz missa para confissão e comunhão da família.
Sem nenhuma cerimônia cometemos o desacato de [f. 256] nos
deitarmos nessas redes; por baixo delas estava estendido um couro de boi,
sobre este couro se nos pôs a ceia e eu e o Lagos, deitados nas redes, e o
dono da casa e um filho, que é estudante de latim, em granito sentado
no couro, e outros filhos € alguns curiosos da vizinhança, em roda de pé,
assistindo a nossa comida que nos soube bem: era arroz com galinha; bem
que tivéssemos já comido o peru que nos chegou uma hora depois de nós,
mas a ceia foi pelas nove horas da noite.
O Sr. Lopes, dono deste sítio, é um caboclo, ou mameluco, de
seus 60 anos, que veio desse serviço de camisa sobre as ceroulas e assim
se conservou sempre, mas os filhos, e são bastantes, e os vizinhos que
vieram ver os bichos, estavam decentemente vestidos. A gente feminina
não a vimos, estava na casa da vivenda, separada. Há engenho de açúcar,
moendas de pau, mas grandes e expostas ao tempo, casa do engenho de
telha, os tachos são tachos de vários tamanhos.
O Sr. Lopes, apesar da carta de recomendação, quando chegou, logo
que lhe perguntamos se tínhamos alguma coisa de comer, e para nossos
cavalos, disse-nos redondamente: “Não há coisa alguma”, dizendo que
tudo se pagava. O homem parece incrédulo; enfim, foi-se pouco a pouco
chegando e mandou fazer galinha com arroz e café, sofrível. Mandou buscar
cana para os cavalos e afinal até apareceu capim e milho. Como chegassem
os rapazes, que haviam com efeito errado o caminho, recomendando-lhes
que não apressassem a galinha, [f. 257] que ficaria para a ceia, visto que
tínhamos que comer. Enfim o bom do homem humanizou-se, tornou-se
conversador e não nos deixou mais, e pouco depois a casinha estava cheia
de seus filhos e conhecidos; de alguns aproveitei tomando algumas notas
sobre plantas, culturas etc. etc.

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5 de fevereiro: Levantamo-nos, o nosso hóspede já estava levantado,
mandou-nos dar água para o rosto e vir café bem sofrível com tapiocas (solas).
E quando se lhe perguntou quanto devíamos, fez-se generoso,
nada quis receber (o homem arrependeu-se de nos haver recebido tão
friamente), então combinamos em dar a algum de seus filhos 10$ [dez
mil réis], com que ficaram contentes.
Então quando montamos a cavalo, e pedindo-lhe que nos indicasse
um guia para a serra, mandou-nos acampar seu filho estudante, que foi
conosco até Jardim.
Montamos a cavalo seriam seis horas e meia, rodeamos uma ponta
da serra e entramos a subir. Subida ruim, como são todas do Araripe, foi
preciso apear no lugar mais perigoso. Às sete horas estávamos no alto da
serra donde gozamos uma extensa vista dos sertões de Pernambuco, toda
cheia de serrotes e montes. Andamos meia hora pela mata, que é sofrida,
tem muito pau-d'arco, jatobá, banho-de-galinha etc. etc. De carrasco
tivemos por 50 minutos. Aqui achamos a linda amarílis, que se chama
cebola-brava; de agreste, 70 minutos.
Às nove horas e meia começamos a descer para o Jardim e quando
chegamos à borda da serra, ao princípio da ladeira, ofereceu-se-nos um belo
panorama: era o saco do Jardim. Todavia, tinham-nos tanto exagerado esta
vista que não correspondeu à ideia que fazíamos.
[f. 258] Parte da ladeira desci a pé. Às dez horas e 20 minutos nos
apeamos em casa do Sr. Manoel da Cruz Rosa Carvalho, que tinha ido à
missa, mas estava em casa seu genro, o Dr. Belarmino Gomes de Sá Roris,
juiz promotor do Jardim, e que já o havíamos visto no Crato (o juiz de
Direito é o Dr. Américo Militão de Freitas Guimarães, que no dia seguinte
nos veio visitar à noite). O Dr. Belarmino mandou-nos logo dar almoço
de café com leite, bolachas, biscoitos, tapiocas etc. Pouco depois chegou o
Sr. Rosa Carvalho [e] chegaram depois várias visitas e vários doentes que
vinham se receitar.
O Lagos foi visitar a vila, mas eu deixei isso para depois. Depois
de jantar chegaram alguns sujeitos vizinhos e passamos a tarde sentados à
porta, e depois de anoitecer deitados nas redes.
Tanto à ceia como ao jantar as senhoras não vieram para a mesa; mas
ao jantar a mulher do Sr. Rosa Carvalho esteve sempre presente, mas em pé e

205
servindo: trouxe uma garrafa de cidra e distribuiu como se fosse champagne.
De noite o filho do Dr. Belarmino, cuja mulher nunca vimos e só a ouvimos
falar e cantar acalentando o filho; esse menino chorou toda a noite e o berrar
do menino e o canto da senhora nos foram excelentes perturbadores do sono.
Depois da ceia, estando nós na sala, o Sr. Rosa Carvalho entrou para dentro
e daí a pouco rezava-se o [f. 259] terço ou coisa que o valha terminado por
orações cantadas, como lá entre nós.
Segunda-feira: Levantamo-nos cedo e eu assim mesmo como
estava de paletó branco e calças de brim, tudo já enxovalhado, dirigi-me
para a vila, que é distante um oitavo de légua, mas a manhã estava fresca.
Quando lá cheguei já lá achei o Dr. Belarmino, que dirigia o trabalho
dum prédio que está construindo, com patamar alto e de boa aparência.
Eu fui direto à matriz, que está em obra, e aí me entretive um pouco com
alguns sujeitos que lá estavam, provavelmente empregados no trabalho,
que consiste em um novo teto, porque o antigo, apodrecidas as tesouras,
estava ameaçando ruína. O corpo da igreja é obra nova, mas que nunca
passou de paredes e telhado, sem nenhum revestimento e de grandes
proposições e sem nenhuma relação com a capela-mor que é pequenina,
duma simplicidade rústica e muito antiga.
Em 26, quando se deram as carnificinas do Jardim, quando
mataram o vigário (veja em outro lugar carta do Brígido ao Théberge)
e várias pessoas notáveis da vila e arrojaram os corpos ensanguentados e
mutilados dentro da igreja, as paredes do corpo da igreja apenas haviam
chegado a meia altura.
Depois de observarmos a igreja e o telheiro chamado Feira, e de
saber onde era o sítio do infeliz Leonel [f. 260] que fora nessa época
desastrosa assassinado no meio de sua família, a tempo que iam para a mesa
jantar, tendo igual sorte o filho mais velho, e a mulher e filhos, fugindo
espavoridos para as brenhas, como referiu um de seus filhos, com os olhos
rasos de lágrimas, contando-me seus infortúnios e de toda a sua família;
sabendo, digo, onde era e com os indícios que a senhora (cunhada do Sr.
Franklin de Lima) me tinha dado, para lá me dirigi. Porém chegando ao
rio, que aí alarga-se espraiando, apenas pude contemplar o sítio a certa
distância, do qual só se vê o telhado do engenho, pelo mato que cresce
em roda. Saindo daí, com destino para casa, o doutor me veio encontrar e

206
pedir para ver uma senhora doente ali; visitei a doente e [tendo] receitado,
voltei para casa; mas já o sol incomodava e cheguei suado.
Depois do almoço tivemos muita visita já de curiosos, já de doentes.
A meu pedido o Sr. Rosa tinha mandado buscar um velho caboclo, para
dar-me notícias sobre as antiguidades do Jardim; chegou o caboclo,
montado a cavalo, ainda bem forte, conversador, jovial e tendo as suas
faculdades mentais bem conservadas. Eis aqui o que obtive dele: chama-se
Gonçalo da Sá, nasceu no Riacho da Brígida, em 1762 (tem hoje 98 anos)
e foi batizado em Cabrobó pelo visitador Gonçalo Coelho de Lemos. A
respeito do Exu nos disse que quando se entendeu era tudo [f. 261] ali
uma vermelhada, isto é, todos os habitantes eram índios, chamados Exu.
Os primeiros povoadores brancos foram Francisco José dos Santos, Inácio
Caetano, Julião Maia, Felipe de Souza, de mais se não lembra. O avô do
senador Alencar era Joaquim Pereira de Alencar, comandante do Corpo de
Ordenanças, e habitou em Caiçara (era provavelmente pai do senador; isto
não se ajusta com as notas que tomei ali).
Em 1808, tendo-se casado no Jenipapo, veio morar no Jardim, no
sítio de Miguel Soares de Brito, filho doutro Miguel Soares, que foi o que
abriu esse sítio, com engenho de moer cana, e só sete léguas pelo rio abaixo
havia outro engenho chamado do Sobrado, que foi da família dos Pintos
Ramalhos. Haviam mais outros sítios no saco do Jardim, um de João Maciel
Aranha, tio de Miguel Soares, e que possuía mais de 40 escravos de Angola
(nesse tempo era o jornal dum trabalhador $080 [oitenta réis]). Em 1790
situou-se daqui Antonio de Medeiros Furtado.
Depois da grande seca de 1791 a 93 é que começou a povoação da
vila atual do Jardim, acudindo para aqui gente de toda a cor. Sete freguesias,
conta-se que ficaram nessa ocasião inteiramente despovoadas. Os palmeirais
ficaram todos destruídos por lhes tirarem os palmitos para alimento.
Em 1799 o capitão Jacinto da Silveira fez [f. 262] doação das terras
para patrimônio da igreja e logo se benzeu o lugar para ela. Foi seu primeiro
vigário colado o padre Antonio Manoel de Souza, tendo antes havido vários
capelães.
O rio do Jardim chamava-se primeiro rio do Gravatá, por ter esse
nome, que inda conserva, a nascente; no fundo do saco era muito abundante
d'água nos tempos primitivos.

207
Todo este saco está coberto de grandes matos de angicos, jatobás,
braúnas, paus-d'arco, aroeiras etc. etc., e habitado de toda a qualidade
de caça, desde a anta e queixadas, guaribas e onças até os animais mais
pequenos; grande quantidade de pássaros, zabelês, nambus etc. etc.
De tarde, estando nás sentados à porta, nos veio visitar o Dr. juiz
de Direito do Jardim, Américo Militão de Freitas Guimarães, moço muito
amável.
À ceia nos serviram de imbuzada; já tínhamos comido deste prato, à
ceia, em casa do Sr. Gualter, mas lá os imbus estavam ainda muito verdes.
Eu comi um bom prato e não desgostei. Prepara-se este prato tirando-se a
polpa do imbu cozinhado e incorporando-a com leite, ajuntando-lhe açúcar
e aromas. À gente do país ajunta-lhe farinha, o que me parecia demasiado
assalvajado; eu o comi puro.
Depois terço, depois choro do menino e acalantamento da senhora.
É do imbu ainda verdoso que se faz a boa imbuzada.
[f. 263] Terça-feira: Depois de almoçar nós nos despedimos dos
nossos hóspedes e montamos a cavalo às oito e meia. O Sr. Rosa Carvalho
fez-nos a honra de acompanhar-me até a subida da serra, que vai para
Barbalha. O Sr. Lagos segue para Milagres. Passando pela vila fomos ainda
ver a senhora doente para quem ontem receitamos. Passamos ao lado e bem
perto do engenho e casa do infeliz Leonel, pouco depois começamos a subir,
famos sempre ao lado direito do rio que nasce da boca da mata e tínhamos à
direita outro rio que vem do saco, chamado Cafundó. Passávamos por entre
habitações e sempre subindo, e tendo andado pouco mais ou menos uma
légua chegamos à nascente da boca da mata (onde o Dr. Ildefonso, que aqui
estava, ia sempre banhar-se),
São duas nascentes muito próximas, nascem debaixo de Lapas e uma
grande quantidade; vê-se a água formar cachoeiras por baixo de pedra.
Os rios saem feitos de meia altura das ilhargas do Araripe! Em toda a sua
circunferência, dizem, menos para o lado do Piauí, onde a serra não tem
escarpa; também do lado do Exu a serra não é tão abundante d'água, como
para o lado do Cariri, ou Crato, o que eu explico pela maior altura me
parece que tem o terreno da parte de Pernambuco.
Tendo-nos apeado e visitado a bacia, ou bastar [f. 264] feito logo ao
nascer da água, fazendo tapagem adiante, donde a água cai em cachoeira, eu

208
provei da água tomando em uma folha, é clara e boa. Estava nessa ocasião
uma grande quantidade de gado bebendo água, era gado que pasta no agreste
da serra e desce de dois em dois dias, creio eu, a beber. O Sr. Rosa Carvalho
se despediu e voltou, eu segui a minha viagem com a minha comitiva e
um vaqueiro criado do Sr. Rosa que nos guiava, mas levava matalotagem e
água em odres. Às nove horas e meia estávamos em cima da serra, tendo-
nos apeado em um lugar que era uma verdadeira e horrível escada pela
pedra, mas a ladeira é curta, por termos já subido muito até aqui. Faz sete
léguas de chapada, creio que não é tanto, e toda plana e dum belo agreste
com grandes árvores copadas. À uma hora paramos embaixo dum enorme
visgueiro, desarreamos os cavalos e os soltamos; peados, descansamos,
comemos peru assado com farinha e bebemos detestável água de borracha,
mas a sede tornava-a suportável. Enquanto jantávamos cantariam em roda
de nós lotes de seriemas, que as não vimos; o canto tem alguma semelhança
com o da saracura. Às duas horas pusemo-nos em caminho e pouco depois
nos achamos à borda da serra e princípio da ladeira.
Goza-se aí duma bela e larga vista, avistamos Barbalha e Missão Velha
e outra povoação, [f. 265] não nos souberam dizer qual era. Entramos a
descer e logo cheguei a lugar onde eu vi-me com necessidade de apear-
me. Esta ladeira, se contarmos com todos os montes, grotões pedregosos e
medonhos que tivemos de passar, em muitos dos quais eu me apeava, ali
chegaremos à vila da Barbalha, tem duas boas léguas.
Entramos na vila eram cinco horas e meia; eu ia estrompado, sujo,
suado, empoeirado. E fomos hospedar-nos na casa onde moram os filhos
do Sr. Rosa Carvalho que aí estão estudando e para os quais eu trouxe carta
dos pais. Estes moços são dois: Antonio da Cruz Rosa Carvalho e Manoel
da Cruz Rosa Carvalho, a quem eu chamava Carrapatinho, e mais dois
outros também estudantes me receberam e me trataram o melhor que eu
podia desejar e o melhor que eles podiam fazer. Passei uma noite distraída
gracejando com os rapazes, todos inteligentes, conversadores (exceto um
que era mais calado) e desejosos de aprender.
Apenas apeei-me e descansei um pouco, fiz a barba, mudei de camisa
e mais roupa e saí com dois dos rapazes, a correr a vila e a entregar uma
carta ao Sr. Lúcio de tal, irmão ou tio do Brígido escrivão, ou tabelião

209
da vila. Este o encontramos, que tendo notícia da minha chegada, ia-me
também visitar (já nos tínhamos visto no Crato) e com ele andamos vendo
a vila, que é muito superior a Jardim e Exu. Está bem assentada [f. 266] no
alto dum monte, tem muitas casas novas caiadas e um ou dois sobrados. A
matriz, que estava fechada me pareceu grande, mas maltratada. Voltei para
a casa e o Sr. Lúcio nos acompanhou e aí esteve conversando até oito horas
e despediu-se.
De manhã, quando me levantei para mandar aprontar os animais
para sair cedo, vi já a cozinheira preparando uma galinha. Com efeito os
estudantes não quiseram que partíssemos sem almoço e o Sr. Antonio da
Cruz Rosa Carvalho, o mais velho dos filhos do nosso hóspede do Jardim e
qual me parece ser o reitor do colégio, saiu e voltou com algumas mangas
e pouco depois apresentou-me um prato com talhadas de manga; eu comi
algumas, mas não estavam bem maduras (é uso por aqui comer-se mangas
em jejum).
Às oito horas estava o almoço pronto: galinha ensopada, arroz,
café, tapioca, bolacha etc. Depois de terem almoçado o Barreto e José,
despedimo-nos destes moços, que nos cativaram pela sua amabilidade e
maneira obsequiosa com que nos trataram. O Carrapatinho me mostrou
umas esporas que lhe tinha dado o Dr. Ildefonso Gomes, quando esteve
no Jardim; eles o chamam Dr. Velho. Desejando eu ver o sítio do célebre
Filgueiras, que me diziam avistar daqui da vila, logo que me levantei [f.
267] dirigi-me para um sujeito, que estava na casa defronte e perguntei-
lhe pelo sítio do Filgueiras; ele, com toda a atenção para comigo, saiu e
me conduziu a um lugar, não longe, donde vimos perfeitamente a casa. O
sítio se chama S. Paulo e hoje é habitado por uma filha do Filgueiras, D.
Mafalda. Veio depois sentar-se comigo à porta da casa dos estudantes e aí
conversando disse-me alguma coisa a respeito tanto de Filgueiras como do
Pinto Madeira. Sobre Filgueiras apenas confirmou-me um fato, que eu já
tanto tinha ouvido, e que foi presenciado por ele: vindo um carro carregado
creio que de cana e atolando-se em um lameiro donde duas juntas de bois
não o puderam safar, enquanto o carreiro ia buscar mais bois, Filgueiras
chegou e, suspendendo o carro por uma das extremidades do eixo, os bois
puderam safá-lo. Disse que era homem agigantado e muito forçado.* Do
* A respeito do Filgueiras disse ainda falando dos seus bacamartes, que às vezes dava rebates falsos, juntando

210
Pinto Madeira* disse também alguma coisa e da mortandade que os cabras
cometeram na Barbalha em 1832, mas não conservam as circunstâncias
desses fatos de memória e só que morreu muita gente dos liberais e dos de
Pinto Madeira.
O caminho da Barbalha ao Crato é de três léguas, há alguns montes a
subir e descer e em alguns lugares é muito pedregoso e de passagem difícil,
que me obrigava a opor-me de pé. Passamos diante [f. 268] do lugar onde
está o sítio que foi do Pinto Madeira, chamado sítio do Coité (mas não
pude ver) como no Corrente Caldas.
Antes de chegar ao Crato observei o que ansiosamente desejava ver:
eram algumas reses conduzidas por uns poucos de vaqueiros, com seus trajos
de couro e com alguns cães. Um garrote mais bravio metia-se sempre pelos
matos, que eram caatinga cerrada, então vi e admirei como esses homens
entravam pela caatinga, sem trilho e por onde os levava o garrote, e a toda
a carreira!
Às onze horas cheguei ao Crato, na quarta-feira 8 de fevereiro tendo
feito um giro de 42 léguas.
As notas que tomei sobre os vegetais e cultura vão em memória
separada.

muita gente, afagava-os, dava-lhes de comer, e depois despedia-os dizendo-lhes: “Está bem, minha gente,
ainda não é tempo”.
* Pinto Madeira foi casado com uma senhora, que foi antes sua amásia, e da qual nunca teve filhos; diz o
Barreto que já é morta.

211
Estada no Crato
9 de fevereiro a 8 de março de 1860
[1-28,8,7-2]

[f. 269]

Crato (Diário)
Fevereiro
Tendo saído do Crato no dia 30 de janeiro para o Exu com tenção
de voltar dois dias depois, ali resolvi acompanhar o Lagos ao Jardim; dali,
separando-nos, fui para a Barbalha, donde regressei, chegando ao Crato no
dia 8 de fevereiro pelas onze horas da manhã. .
Nesse dia, cansado da viagem, pouco fiz, nem saí à noite; e foi o dia
quente bastante.
Dia 9: Amanheci aborrecido e adoentado, trabalhei com tudo durante
a manhã; à noite saí e visitei o Dr. juiz promotor, a quem entreguei uma
carta que trazia do Jardim, e depois fui ao Dr. juiz de Direito a entregar-lhe
outra que também trazia dali — colhi-lhe na tarde. O dia havia sido quente,
de tarde se formou trovoada por diversos lugares e fuzilava a leste, dizendo o
Dr. juiz de Direito que teríamos chuva. A seca já tem feito mal, impedindo
as plantações, e está dando muito cuidado à gente do Cariri.
Dia 10: Não passei bem a noite e amanheci ainda mais adoentado;
todavia fiz alguns trabalhos. Não saí de noite.
Acordei de noite aos roncos de trovoada e ao som de chuva. De
manhã amanheceu chovendo, e de vez em quando dava fortes trovões; isto
era já no [trecho inconcluso].
Dia 11: Chegou o correio, não tive cartas senão em objetos relativos
à comissão; fiz alguns estudos e de tarde não saí.
Todo o dia tem estado coberto, o sol tem aparecido por intervalos.

212
Dia 12, domingo: Não fui à missa, estando ocupado com a
correspondência oficial e minha. [f. 270] Desta vez não recebi cartas da
família, nem ainda a resposta da carta que mandei de Icó ao visconde de
Sapucaí, e a quem devo escrever agora.
Trabalhei ainda em alguns desenhos. Chegou o Lagos da sua viagem.
Hoje me acho melhor do meu incômodo; de manhã fui visitado pelo Dr.
juiz promotor, despachei vários doentes e pedintes. Às duas horas está
chovendo, toda a manhã tem estado o céu anuviado. Às três horas já não
chovia e melhorou o tempo.
De tarde não saí.
Dia 13: Amanheceu dia anuviado e chuvoso pelas abas do Araripe.
Amanheci eu mal disposto e triste, assim estive todo o dia, mas estive
sempre trabalhando, escrevendo ou lendo. De tarde não saí.
Durante a manhã caiu alguma chuva; agora ao anoitecer ronca
trovoada e cai alguma chuva.
Começa o ar a tornar-se úmido e sinto agora algum incômodo da
garganta, além do mais.
Dia 14: Amanheceu o dia coberto e nuvens pelos flancos do Araripe
e parecia que aí chovera.
Amanheci hoje bastante aborrecido e assim estive todo o dia; apesar
disso fiz algum trabalho. De manhã vieram despedir-se o Capanema e
Coutinho e de noite o Dias: tencionam partir amanhã para o Jardim.
Não saí de tarde.
Hoje trouxeram ao Lagos o cano do bacamarte Boca da Noite, do
Filgueiras: pesa seguramente meia arroba.
[£. 271] 15: Amanheceu o dia aberto e a serra do Araripe com os
flancos anuviados e chovendo em alguns lugares, mas tudo se dissipou.
Amanheci melhor, mas não de todo bem; fiz algum trabalho, mas
ocupei-me mais em leitura. Hoje partiram para a Barbalha o Sr. Capanema,
Gonçalves Dias etc.
De tarde não saí.
16: Amanheceu o céu com algumas nuvens, principalmente sobre o
Araripe. Hoje amanheci um pouco melhor, mas alguma coisa defluxado.
De manhá fiz alguns estudos e trabalhei no relatório para o governo.
De tarde saí, fui visitar o vigário, que o achei sentado à porta com o padre
213
Marrocos e outro sujeito. Conversamos um pouco e daí fui à casa de
Sucupira, em cuja sala só encontrei o filho e mais uma pessoa que não
conhecia, demorei-me pouco e vim para casa.
Ao meio-dia estava a serra do Araripe com grandes grupos de nuvens
e roncava a trovoada. Durante toda a tarde esteve ameaçando, mas só
caíram finíssimos peneiros; mas é provável que chovesse em outros lugares.
Agora sete horas está o céu estrelado, mas fuzila muito.
Às onze horas estando escrevendo e ouvindo roncar trovoando longe,
abri a janela e vi o céu já com nuvens carregadas e fuzilando a leste, donde
vem o sussurro da trovoada.
[f. 272] Dia 17: Amanheceu o céu anuviado, principalmente sobre
a serra do Araripe. De manhã, amanhecendo um pouco melhor, trabalhei
desenhando algumas plantas. De tarde não saí. Todo o dia foi o céu mais ou
menos anuviado, mas nem choveu, nem ouvimos roncar trovoada.
18: Deu esta madrugada uma forte trovoada com bastante chuva;
amanheceu ainda chovendo (eu tive de noite, antes da chuva, uma tosse
muito incômoda); às oito horas havia cessado a chuva e abriu o sol. Eu
ainda hoje tenho estado incomodado, endefluxado, dores de garganta e
uma grande tristeza.
Durante o dia, quando o meu incômodo me permitiu, estudei e
desenhei algumas plantas. De tarde não saí e aqui esteve conosco o João
Brígido.
19, domingo: Esta madrugada deu uma forte trovoada e alguma
chuva. Amanheceu o céu anuviado. Não passei bem a noite, tive dores de
garganta, alguma tosse, dormi mal, tive câimbras. Não fui à missa.
Fiz alguns estudos. De tarde não saí.
20: Esta noite não choveu; o dia foi mais ou menos anuviado, mas
não houve trovoada. Tem feito bastante fresco estas noites, de sorte que fui
obrigado a pôr dois lençóis. Ainda não estou bom, sinto dores nas faces,
alguma tosse e aborrecimento e tristeza.
Não saí de tarde, tomando o entrudo.
Hoje copiei o relatório para o governo.
[f. 273]
Crato (diário)
Dia 21 de fevereiro: De noite não choveu; também eu passei melhor

214
esta noite. De manhã concluí o relatório para o governo, arranjei parte dos
meus papéis, estou aprontando-me para sair daqui.
Depois do jantar apanhou-se o entrudo na cidade e estivemos aqui
resistindo a assaltos de uns pardinhos e do Paulo Fogueteiro. O Lagos ficou
bem molhado com laranjinhas de cheiro. O negócio cá em cima era mais
com Manoel e o Vila Real. Eu bem que, melhor de saúde, tenho todavia o
espírito inquieto e triste.
22: De manhã estava o céu anuviado principalmente sobre o Araripe
eo Sr. Otávio, que aqui esteve de tarde, disse-me que em seu sítio no Belo
Monte choveu hoje de manhã.
De manhá me ocupei com estudo de algumas plantas e de tarde
também. Hoje passei um pouco melhor e mais distraído. De tarde fiz a
barba, mas não tive ânimo de sair.
23: De madrugada chuva acompanhada de trovoadas, abundante e
durou até o amanhecer, digo, até às sete horas, depois de que limpou o
céu e faz sol e fresco. De manhã fiz alguns trabalhos, apesar de estar ainda
aborrecido e adoentado, tendo tido esta noite dores de garganta e dormido
mal.
De tarde tivemos notícia de haver falecido em Aratanha, no rio de
José da Costa, o Sr. Assis — nosso companheiro — [f. 274] assim como de
haver falecido no Rio de Janeiro o conselheiro Jerônimo Francisco Coelho.
Estando na necessidade de pagar algumas visitas, vesti-me assim mesmo e
fui primeiramente ao major Simeão Teles de Menezes Jurumenha, que há
muito tempo nos visitou e há pouco nos fez um mimo de ananases e uma
meia dúzia de caixetinhas de excelente goiabada. E agora ofereceu-se para nos
mandar uma matalotagem para a nossa viagem, avisando-o para isso uns três
dias antes. Estavam em sua casa alguns sujeitos e aí estivemos obra de uma
hora, na sala interior do sobrado onde ele nos recebeu.
Daí fomos à casa do tenente-coronel Antônio Luís, que anda
também doente. Em casa dele, onde chegou logo o João Brígido e mais
outros sujeitos, conversou-se sobre o estado dos caminhos e as notícias que
obtivemos foram as mais tristes, pois tirou-se-nos a esperança de descermos
agora para o Icó; tem chovido muito e daí para baixo ainda mais. No Icó o
rio não dá vau e todos os rios, riachos e córregos estão cheios, e se o inverno
continuar como vai tão cedo não sairemos daqui; bem que disse o Antônio

215
Luís que se pode ir pela serra de S. Pedro, porque então só se passou o
Salgado uma vez e aí tem uma boa canoa, mas em todo o caso ficaremos
em Icó.
Estas notícias tristes umas sobre as outras me acabrunham! Desde o
anoitecer até agora dez horas está fuzilando muito para sul e sudoeste e é
provável que tenhamos esta noite tormenta. Com efeito, [f. 275] ainda não
era meia-noite, caiu sobre o Crato uma forte trovoada com bastante chuva
e vento e que durou mais dé hora.
24: Amanheceu o céu anuviado e avançando sobre o Araripe. Eu
não passei bem a noite. De manhã, estando copiando alguns artigos d'O
Cearense sobre a história do Ceará, apresentou-se o Sr. Alexandre Ferreira
dos Santos Caminha, irmão do falecido Caminha do Aracati, a visitar-nos,
acompanhado do Sr. Jucá, e em conversa nos disse que do Rio Grande do
Norte sai grande quantidade de sal, das salinas do Açu, para o Rio Grande,
Santa Catarina e Rio de Janeiro.
Mandou-me o número último da Revista Brasileira o Sr. Brígido, que
o li todo hoje.
Fiz alguns estudos botânicos.
Não saí de tarde.
25: Esta noite não houve ao menos aqui trovoada e chuva (já passou
a influência da lua nova); eu também passei melhor.
Hoje amanheceu belo dia.
De manhá trabalhei desenhando e descrevendo algumas plantas.
De tardinha saí, estive um pouco na roda do Dr. Sette, daí fui à casa do
Sucupira, onde não achei ninguém na sala. Segui para a casa do Jucá, em
cuja roda estava ele, o padre Marrocos e mais dois sujeitos que não conheço
e aí conversamos ao luar até às sete horas. Na volta passei pela botica do
Garrido, entrei e conversei um pouco; daí voltei para casa.
26, domingo: Amanheceu o céu anuviado, principalmente o alto do
Araripe. Esta noite não passei mal.
[f. 276] Não fui à missa e ocupei-me em copiar alguns artigos d'O
Cearense, relativos à historia do Ceará.
De tarde não saí. Hoje morreu o Leão, armeiro de curiosidade e
mesmo inventor de algumas armas.*
Este homem ainda moço, bem constituído, sofria um aneurisma da aorta, que lhe saía dentre as costelas,

216
27: Amanheceu o céu anuviado e chovendo nas vizinhanças do
Araripe, em Belo Monte. Esta noite dormi pouco, mas não passei mal. Entre
sete e oito horas chegou também aqui no Crato um pequeno chuvisco. Às
nove horas estava o tempo seguro e fazia sol.
De manhã ocupei-me com estudos botânicos. Faz um belo dia e
agora nove horas da noite está fazendo o mais bonito luar; não se vê no céu
uma nuvem.
Não saí, por aborrecido.
28: Amanheceu a serra do Araripe anuviada.
Tive esta noite outros incômodos, como insônia e grande
desenvolvimento de gases de estômago e ainda mais nos intestinos. De
manhã cedo, destempero de ventre, espírito cheio de tristeza; todavia,
ocupei-me com estudos de plantas.
Depois de jantar estive no quarto do Lagos, onde se achavam
várias pessoas e entre elas o Paulo (fogueteiro). Conversando a respeito de
facínoras e malvados, contou-nos ele os casos seguintes: no Rio Grande do
Norte um sujeito que tinha quatro filhos enviúva, depois desvirginou as
três mais velhas, e a mais moça que teria 12 para 13 anos, querendo-a ele
forçar, fugiu de casa [f. 277]. Este desalmado casara segunda vez e um dos
filhos amigou-se com a madrasta, o que, sabido pelo pai, brigaram e o filho
investe armado contra o pai, para o matar; outro irmão que estava presente
avança-se ao irmão e o mata. Isto aconteceu nestas fronteiras do Ceará.
Diz o Paulo que passando ele pelo lugar onde isso aconteceu e
morrendo-lhe aí em pessoa a foi enterrar, e abrindo-se a sepultura achou
nela um cadáver mirrado e disse-lhe o vigário que era o daquele filho que,
amigado com a madrasta, quis matar o pai.
Aqui no Crato havia um velho (alcunhado o Pecador) que vivia na
miséria, tendo aqui um filho negociante e arranjado, que não o favorecia.
Um dia aparecendo-lhe o velho (Pecador) todo esfarrapado, perguntou-lhe o
Paulo por que não pedia alguma roupa a seu filho. “Não o faço”, respondeu-
lhe, “porque não ma dá”. “Pois venha comigo”, disse-lhe o Paulo, que se dava
com o filho, “vamos à casa de seu filho”. Com efeito, lá foi e aparecendo-lhe
o pai naquele estado pediu que lhe desse alguma roupa. “Não senhor não lhe
formando um tumor sobre a parte anterior do peito. Fazia-nos muita pena quando ele aqui vinha conversar
conosco. O Lagos leva uma arma de invenção dele, é um chicote que é ao mesmo tempo pistola e estoque.

217
dou”, respondeu, “vá trabalhar, faça como eu fiz”. Sentado não cedeu. Dali a
um ou dois dias ardeu-lhe a loja toda de fazenda de maneira a não ficar nada
que se aproveitasse! Ardeu a fazenda durante toda a noite até o amanhecer,
sem arder a casa e sem que ele e uma rapariga que ali dormiam dessem pelo
incêndio, por estarem ambos muito bêbados!
Esta noite não saí e fez um lindo luar.
29: Amanheceu o céu anuviado, principalmente sobre o Araripe;
dissipara-se tudo e fez um belo dia.
[f. 278] Desde o dia 24 de fevereiro que não chove, senão às vezes
de manhã algum ligeiro chuveiro. As grandes tormentas coincidiram
aproximadamente, e passagem da lua nova. Tem feito lindíssimas noites de
luar. Eu continuava [a] não passar bem: dores de garganta, tosse, desarranjo
de ventre, tudo me atormenta e me enche de tristeza.
Fiz alguns trabalhos botânicos e alguns extratos do livro antigo da
Câmara do Crato, que contém os atos de criação da vila etc. Este livro
está em mãos dum particular e decerto não volta mais para o Arquivo!
Também todo o Arquivo da Câmara está em casa do João Brígido, que o
está estragando!
De noite não saí.
Março, 1º: Amanheceu o céu anuviado e a serra do Araripe, onde
parecia chover; às sete horas caiu aqui uma pequena chuva. Continuo a
estar incomodado.
Fiz alguns estudos botânicos. De tarde não saí.
À noite estive no quarto do Lagos, onde estivera o Dr. juiz de Direito
e o filho do Ferrer e depois as duas irmãs, com quem tomamos chá. Fez
belo luar.
2: Ao romper do dia caiu uma pequena chuva; mas quando nos
levantamos melhorou o tempo e fez bom dia, um pouco quente. Ocupei-
me com estudos botânicos, tendo depois do almoço saído a ir ver um
filhinho do Garrido. De tarde não saí. Faz belo luar. Depois da meia-noite
senti cair alguma chuva e ouvi alguns roncos de trovoada.
[f. 279] 3: Amanheceu bom tempo, nuvens [palavra ilegível] no céu.
Eu passei um pouco melhor esta noite, mas sempre triste. Durante
o dia fiz alguns estudos botânicos, li jornais que chegaram do Rio, escrevi
ofícios e cartas para a família e receitei a alguns doentes.

218
À noite não saí. Fez belo luar. Alta noite caiu alguma chuva, sem
trovoada.
4, domingo: Amanheceu o céu anuviado.
De manhã concluí os ofícios, estudei alguma planta, li jornais, receitei
etc. De tarde, mais cedo que de costume, saí a fazer despedidas, porque
estou preparado para descer para a capital o mais depressa e escoteiro, e
tinha marcado o dia de quarta-feira.
Despedi-me do João Raimundo, sogro do Brígido, do Dr. Macedo e
seu pai e do vigário. Fazia luar.
Depois da meia-noite começou a chover, por pequenos chuveiros
acompanhados de roncos de trovoadas, surdos e afastados uns dos outros;
isto durou até o amanhecer, então a chuva aumentou um pouco e os
trovões eram mais fortes.
5: Sete horas da manhã, céu anuviado. Araripe carregado; mas já não
chove, nem com trovoada.
Esta noite não passei bem, ontem à noite comecei a sentir-me
incomodado, suando muito, tossindo e com a dor de garganta. Amanheci
aborrecido.
Seriam oito horas quando o tempo escureceu e grossas nuvens
tocadas por uma aragem do sudoeste, outra de cima do Araripe e [juntas]
deram uma grossa chuva, que durou mais de meia hora.
[f. 280] Entre duas e quatro horas caíram mais algumas pancadas
boas de água. Agora são nove horas [e] faz luar.
O senhor que esteve aqui conosco no quarto do Lagos e que veio de
Barbalha disse-nos que passou ali [pelJo rio e a larga vargem por onde ele se
espalhou, a pé, puxando o animal com água pelo umbigo.
Aí entrou também uma senhora viúva, vestida duma túnica
preta atada com um cordão de São Francisco e um véu preto. É uma
sorte de penitência, que teve origem tem 16 anos com as pregações
de missionários. Aqui não sei se há mais algumas, mas no Icó há um
certo número destes penitentes. Mora em Timbaúba e vem nos pedir
uma esmola, dizendo-se sempre ser grande pecadora, tem 54 anos e tem
ainda a mãe viva.
Hoje amanheci bem incomodado, passei todo o dia com alguma
febre, dores de garganta, bronquite, tosse etc. etc.

219
Estou desesperado, para me ver fora daqui. Assim mesmo fiz hoje
alguns trabalhos.
6: Amanheceu o céu anuviado, mas não deu chuva. Não passei bem
a noite com alguma febre e sem sono. Ocupei-me com arranjos de viagem.
De tarde despedi-me da casa do Sucupira, do comandado Caminha, do
comandante do destacamento, do Jucá, do Dr. Ratisbona, do padre Lima
Seca, do João Brígido, do Dr. juiz de Direito, do Dr. juiz municipal. Estive
com o Coutinho, que aqui está doente.
[f. 281]
Crato (Diário)
Dia 7: Ao romper do dia choveu, por espaço de uma hora ou mais,
com alguns roncos de trovoada e passei esta noite melhor; dormi bem, mas
amanheci [palavra borrada] alguma coisa, a tarde estando aprontando-me
para viagem.
Aqui veio um pobre, cego dum olho, pediu-me esmola. Nasceu em
1760 (está fazendo cem anos), tem a mulher ainda viva, que é mais velha
que ele. Casou-se em 1800, teve poucos filhos dos quais ainda dois [vivem].
É natural de Piancó, na Paraíba. Na grande seca de 1791 era já [palavra
borrada] tinha 30 anos feitos. Conversava bem. E mostrou-me sentido de
que deixássemos tão cedo o Crato. “Por quê?”, lhe perguntei. “Era bom
que os senhores estivessem aqui para as eleições porque teremos muita
desordem nesse tempo” [, respondeu.)
Hoje arranjando os meus papéis achei a nota que julgava perdida a
respeito da mãe do Sr. Gualter, no Exu. “D. Ana Joaquina de Carvalho, tem
83 anos já feitos, teve sete filhos, mas só se criaram os três últimos”; é irmã
da mãe da Sra. D. Brasilina, mulher do Sr. Franklin de Lima.
De tarde saí a fazer minhas despedidas e as fiz ao tenente-coronel
Simeão, ao tenente-coronel e também juiz, ao Dr. juiz promotor, ao Ferrer,
ao Paulo e ao Bilhar, que não achei em casa.
Dia 8: Fez ontem bom luar. À noite foi boa e amanheceu bom
dia. Eu sofri mais esta noite e dormi menos que a passada. Estou
me aprontando para sair do Crato depois do almoço. Aqui está o Sr.
Jucá, que conversando sobre os invernos do Ceará disse-nos que nos
Inhamuns em tempos mais antigos o regular era chover em outubro,
suficientemente, depois começar o inverno [f. 282] propriamente dito

220
em fevereiro, e em março havia um veranico, e em abril era a força das águas
(como ainda hoje o é em maio), vem dirimindo e junho é o fim do inverno.
Disse mais que em 1813 nos Inhamuns chove todo o ano em todas
as luas cheias e novas; mais no tempo do inverno e menos fora dele, e
que nesse ano as árvores não largam as folhas. Depois do almoço porém,
estando todos prontos, eu e os que me faziam a honra de acompanhar-nos
até certa distância estando mesmo já a cavalos, é que [se] me disse que
nem os cavalos de carga nem o ordenança tinham ainda chegado; foi pois
necessário desmanchar-se tudo e deixar a viagem para de tarde.
Assim foi pelas quatro horas e um quarto que saímos do Crato, tendo
aí estado três meses bem completos; e durante quase todo esse tempo estive
sempre mais ou menos adoentado e sempre melancólico. Adeus Crato!

221
Viagem do Crato a Pacatuba
8 de março a 20 de abril de 1860
[1-28,8,7-3]

[f. 283] '

Partida do Crato
Quarta-feira, 8 de março de 1860: Pelas quatro horas e um quarto
da tarde saí do Crato acompanhado por algumas pessoas, que me quiseram
impor como aqui ao Icó. Eram os Srs. Drs. Ratisbona e Sette, o tenente-
coronel Simeão, Paulo, Jucá, os filhos dos Srs. Sucupira e Paulo, além de
meus companheiros Lagos, Reis, Manoel, Vila Real e o Francisco caçador.
Faltaram alguns que se tinham apresentado de manhã. Todos, menos
o Sr. Sette e o tenente-coronel Simeão, que ficaram em meio caminho,
acompanharam-me até o Juazeiro, aonde chegamos pouco antes das seis
horas, dirigindo-nos à casa do reverendo vigário, onde eu fiquei.
Em casa do vigário, que é moço e fala do Ceará, de alguma instrução
e me parece de muito boas intenções, fui perfeitamente acolhido.
Cheguei bastante incomodado e demasiadamente cansado. Durante
a noite acordei duas vezes atormentado pela bronquite e tosse; metia na
boca alguns torrões de açúcar, que ele teve a bondade de deixar em cima
da mesa, e com isso mitiguei um pouco, dormi vestido de calça e paletó de
pano.
9: Acordei de manhã e logo se encheu a casa de doentes; uma parte
deles dos olhos, uma tísica, outras opiladas, aos quais fui despachando,
talvez não muito a contento do vigário, que é partidário de simpatia e aí
trata os doentes por esse método.
Tomei uma xícara de café e montei a cavalo às sete horas e meia,
acompanhado pelo meu ordenança. Pus-me em caminho para Missão

222
Velha. Os dois animais de carga da minha bagagem vêm com o Barreto e
José dos Santos, meu criado.
Logo a pouca distância do Juazeiro caminhávamos numa vargem
coberta, ora de carnaúbas ora de árvores de urutum, principalmente de
braúnas, isto na distância de quatro léguas. As carnaúbas estão com frutas
ainda verdes, as braúnas têm frutos secos e notei que uns tinham muita
fruta e outras nem uma. Será espécie dioica? Alguns corações-de-negro com
fruta verde, e ao aproximar-nos da Missão Velha vi muitos cumarus sem flor
nem fruta e algumas andiras (Angelis) [f. 284] da mesma sorte. Achamos
também uma Rollinia arborea, cujo cálice é rubro, o que me deram o nome
de ata-brava. Passamos quatro vezes [pelJo rio Salgado, com mais água do
que eu pensava; e [em] alguns lugares chegava mais perto do cavalo, com
grande correnteza. É tão agradável, a este respeito, viajar no Ceará durante
o verão, que é mau e medonho durante o inverno.
A última passagem do rio foi junto à cachoeira da Missão Velha.
Aproveitei a ocasião para ver a cachoeira e achando aí na povoação um
destacamento de tropa de linha que vai para Lavras, o comandante, que
é nosso conhecido, apareceu-me logo e me conduziu a ver a cascata. Com
efeito é digna de ver-se: o rio aqui precipita-se em vastos socavões de
pedra, dividindo-se em uma parte com mais água que cai por uma sorte
de fenda de paredes-a-pique, e de altura de seis a oito braças talvez, e disse-
me o comandante que é no finito desta brecha que se acha a gruta tão
visitada no tempo seco, em que não existe cascata. A outra porção do rio,
mais abundante, cai por outra aberta da rocha, mais larga, e por quedas,
produzindo belo efeito para ser pintada. Juntando-se a água das duas
cascatas, encaminham-se pela vasta abertura da rocha até cair de novo em
leito térreo.
[f. 285] Vista a cachoeira, dirigi-me para a vila de Missão Velha,
aonde cheguei quando o sino da Matriz dava meio-dia. Fui hospedar-me
na mesma casa onde paramos quando viemos para o Crato.
À noite fui visitar o vigário e me voltou um pobre doente que está
moribundo. Eram sete horas da noite, fazia belo luar, o céu sem uma
nuvem, mas fuzilava a leste sobre o horizonte, onde se não via também
uma nuvem. Passei melhor a noite. Estando já deitado fui chamado para
ver a filha, que estava com histerias.

223
10: Amanheceu chovendo, o que muito me contrariou; mas dava
sinais de melhorar o tempo, mesmo continuando uma chuva fina. Saiu o
meu pequeno comboio, eu almocei e montei a cavalo com o tempo ainda
chuvoso. Eram nove horas e cheguei sem novidade ao pouso denominado
Tropas, além dos morros dourados (mas que me parece pertencer ainda a esse
sistema de morros, assim denominados porque aqui existiu mineração de
ouro). Era uma hora e fazem distar este pouso de Missão Velha seis léguas;
neste trajeto passei o riacho des Porcos e o Salgado nas duas passagens. Vinha
eu bastante inquieto a respeito destes rios, mas os passamos mui bem.
As viagens no Ceará são singulares: no verão todos os rios estão
reduzidos a verdadeiros areais; no inverno esses areais se submergem e se
tornam em rios caudais, muito largos, de grande correnteza e medonhos;
toda a província fica coberta deles e isso interrompe, ou dificulta ao menos,
as viagens. O terror que se tem a esses rios é grande e assim deve ser pelo
contraste e pela alteração constante de seu fundo, pois eles não têm um
fundo conhecido. De seco começa a tomar água até alagar tudo em redor.
De tarde, de passagem, uma pequena chuva durante; os braços
invadeáveis da manhã e de tarde se tornam de novo invadeáveis. As frases
populares são: O rio está de vau e O rio está de nado, ou pôs-se de nado. Vai
a gente entrando num desses rios de dez, 20, 30 braças de largo, tomado
de susto, e só quando se chega ao meio é que toma ânimo, sentindo certa
satisfação em atravessar essa gigantesca torrente!
No rancho não estavam os donos, mas só três interessantes meninos
de anos: o maior — Mário — terá oito anos, muito inteligente; o do meio —
Joaquim — e até muito gentil; estava mais um pequenino — João. Chegaram
depois duas meninas, vivas e sabidas, como aqui dizem.
[f. 286) Jantei arroz com linguiça (presente da senhora do Dr.
Ratisbona) cozinhado pela muita gente, goiabada (presente do tenente-
coronel Simeão Jerumenha), café. Serão quatro horas. (Em Missão Velha,
casa do nosso hóspede, apesar da boa vontade da dona, não achei fartura:
quase tudo era fornecido da minha bagagem e dei 48500 [quatro mil e
quinhentos] réis, que a senhora me pediu).
Pouco depois chegaram marido e mulher, do rancho em que estou,
e acharam-me já na minha rede balançando-me. (Aqui pelo sertão, quem
tem casa à beira da estrada tem estalagem, quer queira quer não. Chegou

224
passageiro, apeia-se e vai-se arranchando; o que é difícil é achar coisa de
comer, nem uma galinha querem vender).
Eles parecem boas pessoas. Gostei de ouvir conversar o marido com
um sujeito que queria curral para acomodar o gado que trazia e dizendo
ele que o cercado que tinha era pequeno para as vacas da casa, não podia
admitir mais, pois o proprietário não o quer; e a gente não deve fazer
cortesia com o chapéu alheio. Ele, vaqueiro da fazenda, diz que esta noite
choveu aqui bastante, principiando antes da meia-noite até de manhã. Que
houve um grande ronco de trovoada somente. O rio Salgado passa aqui
pertinho e por detrás da casa; ainda agora de lá venho de o contemplar,
tem seguramente aqui 20 braças de largo e corre majestoso. Água muito
barrenta. Pelo movimento d'água supus ser muito fundo, mas diz-me ele
que mais para cima davam aqui por principiar o poço.
Depois da meia-noite choveu, por mais de uma hora.
Pouso de Tropas, onze de março, domingo
Amanheceu o dia sem chuva, mas de noite choveu. Ontem ao
anoitecer fuzilava a leste e ao nordeste. Esta noite, que não passei mal,
sofri mais que ontem e acordei com dores de garganta. Dormimos aqui
juntos cinco passageiros, negociadores de gado, um deles moço branco bem
conversado.
Ontem, pouco depois que cheguei, indo ao rio e vendo que enchia,
marquei onde chegava; daí a pouco voltando tinha subido talvez uma
polegada. Às ave-marias voltei lá, tinha diminuído já obra dum palmo.
Começara a encher depois do meio-dia — resultado das chuvas de serrotes,
nas suas cabeceiras, oito a dez léguas do curso. É sempre o que acontece
quando chove de noite, disse-me o meu hóspede. Hoje de manhã nada
examinado, achei inda mais baixo, mais quatro dedos. O que me animou
muito porque tinha de o passar dali talvez a um quarto de légua. Às ave-
marias de ontem assisti o recolher das vacas de leite, do que gostei.
[f. 287] Quando eu, que estava em minha rede, ouvi estarem
cobreando e levantei-me para ver. Achei os bezerros no curralinho, berrando,
e as vacas respondiam de dentro da mata. O vaqueiro e dois de seus filhos
mais velhos — e estes trepados nas cercas dos currais — aboiavam, cantando
um canto um pouco semelhante ao dos tocadores de bestas nos engenhos
que moem. Levaram assim cantando ora um ora outro, ao mesmo tempo

225
que os bezerros e as vacas berravam. Estas vinham vindo vagarosamente
da mata e se meteram no curral, isto até o anoitecer. Conversando ele
comigo e perguntando-lhe eu pelas vantagens que tinham os vaqueiros,
disse-me que tinham um sobre quatro bezerros, que eles chamam sortes, e
o leite durante o inverno, quando o dono não vinha passar o inverno na
sua fazenda. “Neste caso davam algumas vacas de leite, para as crianças”,
disse ele. Aqui entrou ele a lastimar-se, dizendo que os donos das fazendas,
seu maior prazer era tirar as sortes do pobre vaqueiro. Assim os primeiros
bezerros que separam antes da partilha são os do dízimo e sempre escolhem
os melhores; mas quando chega o “dizimeiro” os lhe dão os piores e nunca
os mesmos aí escolhidos. Tudo isto é uma desvantagem do vaqueiro, que se
reclamar é uma desordem. Enfim, diz ele, a vaqueirice nas águas do Cariri
é uma coisa desgraçada e se o vaqueiro se sujeita a ela é por ser esta a sua
educação. “Um vaqueiro que entra com duas camisas numa fazenda sai
com uma e esta rota. Se o vaqueiro toma ao dono mantimentos, o que uma
carga de farinha de milho, de arroz etc. etc., no fim do ano não recebemos
sorte”.
Às vezes demora-se muito para vir ferrar o gado e repartir-se, isto
inda é em desvantagem do vaqueiro, pois quanto mais tempo se demora a
partilha mais diminuem os bezerros por mortes, ou por outros acidentes;
sempre sendo para os dois a maipr desvantagem, pois dele é o maior número.
Dão ainda ao vaqueiro animais em número proporcional à extensão da
fazenda.
Às oito horas e meia montei a cavalo, tendo ao despedir-me dado às
meninas uma moeda de prata de 100 réis, e outra aos meninos. Passamos
o rio Salgado na passagem das pedras, de largura dumas 15 a 20 braças,
de grande correnteza e fundo de pedras, mas mais rasa que a de baixo, de
fundo de areia, mas que quase dava nado. Chegamos ao meio-dia ao pouso
denominado Juiz, que tem embaixo um largo riacho, que me supunha ser
o rio Salgado e que vinha com receio dele; mas é um riacho, cujo nome me
não soube dizer, o que com admiração eu achei-o reduzido a dois palmos de
fundo. No pouso bebi água e segui. Passamos uma série de morros, que me
parece serem do mesmo [f. 288] sistema dos morros dourados. Andamos
depois por uma vargem beirando sempre o Salgado que, correndo aqui por
um leito de pedras, vai sempre mais ou menos encachoeirado e produzindo

226
sussurro. Passamos o riacho do Caiçara e enfim chegamos à Venda, suados,
afadigados, enfadados, como aqui dizem, porque a soalheira era grande e os
grandes morros pedregosos matavam os animais e não nos deixavam andar.
Agora é que eu reparei na formação destas montanhas. São verdadeiras
rochas, de natureza salitrosa, desde o xisto de grossas folhas até quase ao
amianto. É esta rocha que se desapega e se quebra em fragmentos e torna
o terreno todo pedregoso. E todavia como nascem aqui plantas, árvores
gigantescas, balançando raízes entre este sisudo salitroso. Esta é a razão
da secura dos sertões, porque quase em todos eles o terreno é este: árido,
incapaz de absorção e impróprio para a lavoura, porque não é arável, exceto
em alguns tabuleiros, vargens da beira dos rios, onde há terrenos de aluvião.
É por dentro da mata que todo o sertão está coberto duma espécie viçosa
[de] vegetação que nasce o capim, que está agora ainda muito tenro e, disse-
me o vaqueiro de Tropas, que ali havia o mimoso, o panasco, o vermelhão
e o agreste, provavelmente. Assim é por todo o sertão. As vacas, apesar da
novidade do capim, já dão seu leite e notei que o leite é muito natoso, mas
elas têm úbere pequeno e todavia dão leite, cada uma em quantidade; a raça
é também pequena.
O meu vaqueiro de Tropas vendia leite para almoço, mas de noite
deu-me satisfação de não ter coalhado o leite para apresentar-lhe a clássica
coalhada do sertão.
Cheguei à Venda eram duas horas passadas. Na entrada toquei na
casa do mestre Benedito, a mulher me disse que havia já nove dias que
ele estava de viagem para Pernambuco. Segui e dirigi-me à casa onde já
nos havíamos hospedado quando subíamos para o Crato e, estando a casa
fechada, aproximamo-nos de uma casa onde havia várias pessoas, que nos
informaram que a dona não estava aí. Então perguntei se não havia uma
varanda ou acomodação que hospedassem; perguntei por uma senhora
bem gorda, que nos deu, quando de lá saímos. Haviam-nos inculcado;
responderam que talvez sim. Partimos para lá, a casa é mesmo na praça, a
senhora [...]
[f. 289]
Vargem Grande (diário)
[...] a senhora mandou-nos apear e recebeu-nos perfeitamente. É
filha do Icó, onde tem irmãos. Casada pela segunda vez com o Sr. Joaquim

227
Duarte de Oliveira, homem de 65 anos, ela se chama Antonia de Paiva
Brito. É muito gorda, clara, corada, de olhos entre pardos e azuis, bem
conversada. Mandou-nos logo preparar uma fritada e café com leite; à noite
deu-nos galinha guisada, com farofa, arroz e coalhada. Armou-me logo
uma rede, num quartinho ao lado da sala de entrada que é [uma] venda,
de que ela é a caixeira. Fiz a barba, mudei de roupa e lancei-me de novo
na rede. Fazia todavia muito calor, porque o sol dava de frente na casa e a
sala estava sempre com gente curiosa e de curiosa conversação. Apareceu-
me o nosso alferes Canuto, que conversou por algum tempo; desfez-se em
comprimentos e em oferecimentos. Às ave-marias pomos cadeiras fora e
aí estivemos mais à fresca. Antes disso eu desci ao rio, a ver o efeito das
cachoeiras, que são pequenas e de nenhum efeito.
O calor da tarde, os relâmpagos a leste e o ar toldado anunciavam
chuva de noite, mas fui informado que apenas cai aqui pela meia-noite um
ligeiro chuveiro.
Dia 12: Levantei-me, lavei-me e fui ao rio ver quanto havia baixado
e exonerar-me. Voltei, estava o almoço pronto: galinha, resto de ontem e
um bule de café com leite, bolachas, pão-de-ló e depois do almoço tomei
algumas notas escritas do que me contava o Duarte, que é noticioso.
Disse-me que conheceu muito o capitão-mor José Pereira (Filgueiras),
falou-me nos três bacamartes — Boca da Noite, Meia-noite e Estrela-d'alva;
mostra-se admirado, assim [como] outros sujeitos que ali estavam, quando
eu lhes disse que levávamos o cano do Boca da Noite. Disse-me o Duarte que
um deles era de bronze e tão grasso o cano que se metia a mão dentro para
se tirar a bucha (mas creio que isto é história da Carocha), que era homem
agigantado e muito bem-apessoado, um dos melhores cavaleiros daqui
neste tempo. À mulher que estava presente acrescentou que o viu muitas
vezes, que frequentou a casa de seus pais no Icó, que era homem afável e
manso, gostando muito de crianças. Contou-me o Duarte várias façanhas
do Filgueiras, como aquela do encontro dos Calados, quando lhe mataram
o sobrinho e Filgueiras com a coronha da espingarda matou três, tirando-
lhes o couro da cabeça e, dizem, levou nessa ocasião também algumas balas
que o não feriram, [f. 290] das quais uma achatou-se no arção da sela,
outra passou-lhe pela coxa sem o ofender (aqui há coisa demais) e que desde
então o nome de Filgueiras se tornou mais popular. E se diziam dele coisas

228
maravilhosas: que viam-no a cavalo viajando de noite; que a sua espada
soava e tinia pendurada etc. Disse que o sobrinho do Filgueiras, morto
nessa ocasião, fora enterrado em Missão Velha, onde ele viu o cadáver que
estava com o rosto negro como um carvão.
Disse-me que havia muitos versos feitos a Filgueiras e recitou-me
alguns, que eu escrevi. Foi uma quadra e uma só décima glosada, não se
lembrando dos outros:

O Filgueiras tem consigo


Cinco dotes com grandeza
Honra, força e valor
Mansidão e a nobreza.

Este ilustre varão


Este homem tão sublimado
Merecia ser coroado
Como foi rei Salomão
Sua reta descrição
Eu por ela me obrigo
E sinceramente digo
Que pra mim é sem segredo;
E as boas partes do mundo
O Filgueiras tem consigo.

A senhora do Duarte me disse que D. Mafalda, filha do Filgueiras,


é uma senhora formosa. Disse o Duarte que no tempo do Filgueiras era
também o padre José Gonçalves de Couto, de Seridó na Paraíba, muito
amigo do Filgueiras e igualmente temido e respeitado naquele lugar, em
cuja casa se asilavam os fervorosos; “o que um fazia, o outro praticava”,
assim se exprimiu.
Falou-me também no sargento-mor José Vitoriano Maciel, do
Cariri, que ainda hoje vive muito velho, que foi um belo homem, militar
respeitado, bom cavaleiro etc.
A respeito de Tristão, disse-me que o conhecia; e a mulher, [f. 291]
que era um homem muito gentil e bem-apessoado. E a respeito dele me

229
citou o Duarte a seguinte quadra única de que se lembra sendo muita:

O Tristão triste acabou


Luiz Pereira é falecido (ou Luiz Pedro?)
José Pereira já está preso vencido!
O Cariri está combatido.

Ao despedir-me não quis a senhora aceitar nada pelo agasalho.


Saímos eram nove horas. Ao sair da Venda vi pela primeira vez, vindo do
Cariri, uma árvore de pau-branco em flor.
Ao meio-dia cheguei à Vargem Grande, tendo passado por um serrote,
ou antes muitos morros pedregosos; os cavalos chegaram estropiados.
Pousamos na Vargem Grande em casa dum pobre lavrador vizinho e
creio que parente da família, onde assistimos em novembro a um casamento,
e que mora da outra parte do rio. Estava ele com a casa cheia de trabalhadores,
todos pardos ou cabras, moços e de bom humor, em cuja conversa, um pouco
rendosa, me distraía. À noite, estando só com o dono da casa (que também é
pardo escuro), as mulheres apenas apareciam à porta da sala, curiosas de me
verem comer e de observar a minha rede. Uma delas, mais idosa, creio que a
mãe, veio-me pedir um pedaço de carne para matar um desejo! Mandei-lhe
dar um bom tassalho de carne, com que ficou muito contente. Estando só
eu na minha rede e ele noutra conversamos bastante tempo e de sua conversa
colhi que no sertão as forquilhas ou esteios de casa são só de aroeira; que esta
folha se parecia com a canafistula (de flores retas) e mesmo com a carvoeira; O
pau-amarelo também dá boas forquilhas. O pau-d'arco, o jatobá, o gonçalo-
alves nada prestam para esteios; a braúna não serve senão para engenhos,
moendas etc., por ser pau que só dá miolo, sendo grosso e é mui duro de
lavrar assim como pesado para transportar-se, razão por que só se servem
dela para cercas. O jucá, ou pau-ferro, também ninguém usa dele por ser
muito duro de trabalhar-se; disse-me que a timbaúba, quando é grossa, tem
miolo roxo, que há aqui o miolo de pau-branco porque nas suas ribeiras
abunda esta madeira. Que o inerus [sic], espécie de bananeira-brava (e que
em Tropas me disseram que dava raiz [f. 292] boa de comer-se e semelhante
à da macaxeira), ele a tem também cultivada, mas que a batata não é boa de
comer, ou é jucaronta e sem comparação com a macaxeira.

230
E”

Tomamos café com leite, pão-de-ló e coalhada, de que ele não quis.
Esteve a noite estrelada; não fuzilava nem chovia.
Dia 13: Levantamos cedo, o dia estava lindo. Tomei uma xícara de
café simples e saímos juntos com o comboio, pouco depois das seis horas.
O meu hóspede não quis receber nem pelo milho da ração dos cavalos
de ontem e hoje. Antes, como um dos cavalos cargueiros estava muito
estropiado, ofereceu-me um seu, para conduzir a carga até Lavras, o que
não me foi [dado] assim aceitar, visto que o cavalo ia sempre andando.
O meu também não está muito são dos cascos, foi uma má deliberação.
Querendo evitar Lavras e as passagens do Salgado, estropiei os animais no
tal levante e me vejo na necessidade de ir a Lavras, por ser viagem de duas
léguas e ver se aí trocamos o cavalo por outro são. Quando pensávamos
atalhar rodeamos! Uma coisa que nos vai custando muito é beber água
barrenta do rio Salgado! Aqui em Lavras (como em Vargem Grande) não
há outra. O negócio de água de beber no Ceará é sempre um tormento e a
gente do país não cuida nem sabe como melhorar a água.
Passamos ainda uma vez o Salgado ao entrar em Lavras. Diziam-
nos que a passagem estava muito boa por estar o rio raso, mas qual! (é
necessário ter guia para evitar os peraus ou as pedras do fundo, e o meu
cavalo andou a vacilar sobre elas). Antes de chegarmos ao rio demos numa
lagoa de algumas 200 braças, entramos por ela, não sabendo por onde sair.
Mandei o ordenança informar-se da gente que passava e com efeito havia
rodeio para se evitar semelhante aguada.
Entramos em Lavras quase às oito horas, fui direto à casa do
Teixeira, que estava no patamar de chambre e camisa solta sobre a ceroula,
no meio de alguns sujeitos, o qual, logo que me avistou, dirigiu-se para
mim, assim como os outros que me rodeavam. Depois das saudações
ordinárias e de algumas explicações, perguntei-lhe se a casa da Câmara
não podia hospedar-me e, sem resposta, foi tomar o chapéu e pediu-me
que o acompanhasse, dirigindo-se para a casa do filho do Setúbal, cujo
filho nos recebeu muito alegre, dizendo que a família estava no Boqueirão.
[f. 293]
Lavras (diário)
Fez-me entrar para a sua casa, ou loja, e aí tratamos da minha
hospedagem. Estando a casa da Câmara ocupada por outra pessoa, enfim

231
acertaram em uma que está vazia e para onde me conduziram. Instalado
em casa, ele ofereceu-me para mandar me aprontar um almoço ligeiro; com
efeito pouco tempo depois entrou uma mulata com uma bandeja coberta
com uma toalha de labirintos e babados, contendo um bule de café morno
e de mau gosto, bolachas, pão com manteiga, um prato de pastéis (que não
pude tragar). Eram mais de dez horas e eu estava com fome, engoli duas
xícaras de café, um pão e mais uma metade e um canto de um pastel. Nem
a fome me serviu nesta ocasião; € quem gostou disso foi a mulata, que levou
contente e graciosamente a bandeja ao meu ordenança e mais membros da
comitiva; tinha um copo d'água barrenta para beber.
Mandei ao Barreto que visse quem me preparava um frango com
arroz para o meu jantar e leite para de noite.
Fiz a barba, vesti-me e saí a fazer minhas visitas a meus antigos
conhecimentos [conhecidos]. A primeira casa foi a do Teixeira, que achei
sentado, segundo o costume, a uma mesa de marimbo; a mulher sentada
no chão acolchoava alguma coisa de seleiro. Várias personagens vagavam
pela casa.
Saí daí e fui à casa do nosso bem conhecido Machado, mas não o
achei; estava na salinha sua senhora sentada no chão e rodeada de crianças,
umas nuas e sujas, outras com roupas de maior simplicidade e de pouco
asseio; e enfim as três filhas mocetonas, que sem terem formosuras são
as mais formosas de Lavras, principalmente uma que é assaz gentil. Estas
estavam decentemente vestidas e trabalhando em labirintos, rendas etc.
Ficaram animadas de me ver, porque eu havia dito que não voltaria por
aqui e ainda mais porque havia corrido a notícia de que eu tinha morrido
em Barbalha, tendo comido duas mangas! Perguntei-lhes se haviam rezado
por mim. À mais bonita, com seu sorriso matador, asseverou que sim.
“Pois bem”, disse-lhe eu, “quando a senhora morrer rezarei também”.
Conversamos, gracejamos e saí, indo visitar o Caminha e daí voltei para
casa a descansar. Foram então me visitar o senhor tenente-coronel Silva
Brasil, o professor de primeiras letras e um sujeito que se vinha receitar. [É
294] O senhor Brasil diz que é filho ou se criou aqui em Lavras e que sendo
menino (ele tem 64 anos) vira muitas vezes arder o serrote do Boqueirão,
como se houvesse sobre ele umá coivara, e outros que estavam presentes
asseveram ter ouvido a mesma coisa de seus antepassados.

232
Contaram maravilhas de achados de ouro aqui em Lavras e enfim
desfizeram-se em elogios ao território de Lavras, que, dizem eles, nunca
sentiu seca, nem em 1845 a seca se fez sentir aqui. Enfim queixaram-se
muito dos tributos que pesam sobre os criadores e lavradores.
Chegou-me o jantar numa bandeja coberta de infalível toalha de
viés e babados. Era galinha assada, galinha cozida, galinha guisada, farofa
e arroz açafroado. Comi arroz e um pouco de galinha guisada, mas tudo
aos empurrões; não havendo na vila nem cerveja, nem cidra, mandei vir
aguardente (por não poder beber vinho). Veio aguardente detestável; mas
assim mesmo dei-lhe duas entradas, receando cair bêbado. Fui para a rede
e não tardou o Anastácio de me oferecer uma xícara de café; mas café que
não me agradou, parece que a água do rio polui tudo!
De tardinha, estando aqui o Caminha, disse que se apanhava aqui uma
água de cacimba, dum riacho que, embora sofrível, mandei encomendar
um pote para a manhã, porque água de cacimba no mesmo dia de tomada
não presta. À senhora do Sr. Zezé, queixando-[me] da água, teve a bondade
de me mandar um pote de água do Cumbe, tomada ontem.
Achei aqui esperando-se o correio de hoje para amanhã e resolvi
ficar até que ele chegou, porque me asseverou que se podia abrir o maço
do Crato, pois podem vir ofícios e correspondências importantes e de
que eu preciso ter notícia pronta.
Ão anoitecer saí a ver um doente e depois estive na roda do Zezé e
do tenente-coronel Brasil. Este me contou muita coisa a respeito da guerra
do Fidié, em cuja expedição ele foi: diz que este general estava muito bem
fortificado, porque o forte da Taboca, no meio da cidade de Caxias, estava
todo cortado em roda e guarnecido de artilharia, que jogava por cima da
cidade, por toda a parte, e que só a falta de víveres o rendeu. Diz que
teve pena quando viu Fidié entregar-se a Tristão, apresentando os braços,
como para serem amarrados (aqui eram há talvez bem vestido): Fidié estava
de calças brancas, sobrecasaca com medalhas ou comendas. Tristão se
apresenta também convenientemente fardado. Contou-nos muitas coisas
de Filgueiras, histórias já contadas por muitos com variedade de pequenas
circunstâncias. Asseverou que Filgueiras não era assassino, as únicas mortes
que cometeu foi a dos cabras calados que conduz[iJam o sobrinho preso
e que depois de ter a fama [f. 295] e a heroindade de Filgueiras. Diz que

233
Filgueiras veio a Lavras, apeou-se em casa do capitão-mor e parece que em
casa deste estava um sobrinho de Filgueiras que havia sido raptado. Ele
o levou consigo, empresando o raptor, [e] o apresentou em tempo para
casar-se, o que tudo se fez como ele prometeu etc. Diz que no Maranhão
chasqueavam do Filgueiras e o chamavam Bom, será porque era a respeito
que ele continuava a dar a Tristão e outros quando o consultavam ou
tratavam de negócios públicos. Confirmou o que me disse o Duarte a
respeito do padre José Gonçalves do Couto, que diz ser do Acauã, perto
de Seridó. Falando a respeito da família dos Cavalcantes de Pernambuco
recitou-nos o verso seguinte:

Se fores a Pernambuco
Deves de estar bem preparado
Ou a seres Cavalcante
Ou a seres cavalgado.

E a respeito do barão de Boa Vista repetiu-nos também o seguinte:

Quem furta pouco é ladrão


Quem furta muito é barão.

Não sei o que há nisso de justo; o que sei é que o meu homem é um
pouco má-língua.
Falando a respeito da família do visconde do Icó, diz primeiro que
são os Cracarás [Carcarás] (nome duma fazenda do pai do visconde) gente
de baixa extração, e que nos Inhamuns não têm a importância que se lhes
quer dar no Rio de Janeiro porque ali está ainda debaixo da influência dos
Feitosas. Assevera que esta família não é assassina (aqui faz ele protestos
de sua imparcialidade, pois é e sempre foi liberal ou chimango), a única
coisa que há foi o assassinato do padre Inácio, do irmão e do seu vaqueiro,
que indo fugindo foram alcançados embaixo duma árvore, jogando e aí
foram crivados de balas e mutilados os corpos, principalmente do padre,
escapando só uma criança, que se pôs de joelhos com as mãos postas. À
mãe destes infelizes foi ao Rio de Janeiro pedir justiça ao imperador e de
volta morreu; os assassinos ainda estão impunes.

234
Muito mais coisas me contou o homem que me passaram da memória.
Dia 14: Amanheceu belo dia; eu estou quase de todo restabelecido.
Logo cedo me apareceu aqui o genro da mulher do Setúbal para ir lhe ver
os olhos e conversando a respeito dos invernos me disse o seguinte:
Quando os anos correm regulares, as primeiras águas [f. 296]
aparecem de setembro a outubro, e quando elas faltam sofre a lavoura e
há mortandade nos gados.
Que o inverno começa ordinariamente de 20 de janeiro em diante e
acaba em maio, e às vezes em junho.
Que as chuvas vêm sempre de levante e com trovoadas começando
logo às quatro horas da tarde a se formarem cartolas de nuvens no horizonte,
onde se veem logo relâmpagos e trovões.
Às vezes se mostram mais tarde, às seis horas e às nove da noite,
caídas aqui as chuvas com fortes trovoadas, muitas vezes; às vezes chega
tarde das dez horas até além de meia-noite.
Que quando tem durado a chuva e que o céu está tão coberto de
nuvens, veem-se então correrem as nuvens de diversas direções trazendo a
chuva, por um, dois ou mais dias.
Nada de correio. Vieram algumas visitas e doentes.
De tarde saí, estive um pouco com o Sr. Brasil. Saí e fui ver um
doentinho de sarampo, neto do Brasil. Fui visitar o padre coadjutor que não
estava, daí fui ao professor de primeiras letras, o que também não estava;
e daí vim para casa do José (Zezé) onde estava o Caminha e mais outro
sujeito. Conversamos muito, até além das sete horas, desfrutando a senhora
mulher do José, filha de Barbalha, muito chimanga e que se animava muito
falando em Nunes Machado que, diz ela, foi morto por um marinheiro etc.
etc. De tarde o horizonte ao nascente se carregou de nuvens. Deu alguma
chuva para o Umari. De noite o céu esteve mais ou menos anuviado.
15: Amanheceu bom dia. Nada de correio. Aqui estava agora o
padre coadjutor. Saí e fui à agência do Correio, daí fui à casa do professor
que ainda não o achei (hoje, quinta-feira, é feriado). Daí voltei à casa
do Zezé, onde estava Caminha e outro, daí à casa do Teixeira, daí à do
Machado; estavam dentro almoçando. Voltei para a casa e encontrei o
tenente-coronel Sr. Brasil, que ia receitar-se. Fomos para a minha casa e
daí a pouco chegou o professor e ali se politicou muito. O Brasil é grande

235
chimango, mas protestando sempre por sua imparcialidade. Ainda
repetiu que os Cracrás [Carcarás) de Inhamuns não têm importância;
que nos Inhamuns a gente boa, nobre, é a dos Feitosas (são chimangos).
Contou-nos outra vez a história da morte do padre Inácio.* Estava
em Piauí e daí por desavenças políticas (disse-me o coadjutor que era
perseguido com crimes de mortes, mas por imputação falsa) vinha fugindo,
com um irmão, um sobrinho e o seu vaqueiro para a vila de Souza, para daí
passar a Pernambuco. [Contou] que tinha passado pela casa [f. 297] dele
Brasil (morava em Umari, fronteira da Paraíba) e que o padre havia tomado
uma xícara de café, mas que não se queria demorar; que mais adiante, só
distante de Souza duas léguas, quis descansar e meteram-se no mato junto
a um riacho e aí, descuidados, jogavam os três setes; que foram assaltados;
que os assassinos eram 28 armados todos de clavinotes e comandados por
uns Mourões;* que chegando a uma fazenda do visconde mudaram de
animais e partiram a toda a brida, e que os viu passar nesse andar, a ele,
logo suspeitou que alcançassem o padre, mas outros asseguram que não
porque já o julgava na vila.
Uma pessoa que tinha conhecimento do lugar onde estavam os
perseguidos, sendo peitada, denunciou-os e guiou os matadores. Estes
tendo-se apeado seguiram o riacho até descobrirem as vítimas e deram-
lhes uma descarga de tiros, e depois ainda deram, cada um, um tiro no
padre já morto e depois o despedaçaram! Não me falou do menino, que
escapou.
Os corpos foram conduzidos pelos assassinos (!) à vila de Souza
em um carro, assim como sua bagagem já roubada, e apresentaram-se às
autoridades dizendo que os mataram por terem resistido.
Diz o professor que no Icó, em casa não sei de quem, foram os
assassinos festejados. Foram processados e julgados inocentes pelo juiz de
Souza. O padre morto era moço, partidista liberal e influente no lugar de
sua residência. Na precatória que tiraram para o prenderem era considerado
criminoso.
Estão muito persuadidos que a família Cracrá [Carcará] teve grande
parte neste assassinato.
* Inácio de tal Mourão.
* . . .
O major Manoel Bezerra de Paiva e outros parentes do padre e desavindos.

236
Conversamos sobre a Paraíba, o Sr. Silva Brasil diz que na Paraíba,
província mais pequena e mais pobre que a do Ceará, há melhor governo,
que os empregados são melhor pagos, o correio mais bem administrado,
que a Assembleia Provincial trata de aliviar a lavoura, que a do Ceará faz
pelo contrário etc. Diz que o sertão dessa província é muito melhor que o
do Ceará; o seu terreno é todo plano, mas com serras, onde há a lavoura,
e nos lugares brejosos; que os pastos são superiores aos do Ceará, o gado é
melhor, as vacas parem mais (quem tem 50 vacas conta com 50 bezerros
quando no Ceará com o mesmo número é fartura apanhar 30), dão melhor
leite etc.
Seriam duas horas que me apareceu de novo o Sr. Brasil e convidando
o professor e me vieram contar as falcatruas do padre Verdeixa, que é filho
duma mulher dama, que depois se casou e se conduzia bem, que não paga
suas dívidas, mas também não cobra o que lhe devem; nunca teve amásia
nem casara.
[f. 298] Veio-me visitar um sujeito que serve, ou serviu, de juiz
municipal na vila. À tardinha saí, fui pagar esta visita e na casa achei
também o Sr. Brasil, que tornando a falar na morte do padre Inácio disse
que devia fazer ainda uma declaração: é que os Mourões matadores do
padre eram mais parentes dele do que do visconde; mas insistindo sempre
em que o visconde gastou com o livramento dos culpados 7 a 8:000$000
[sete a oito contos de réis] e protestando sempre por sua imparcialidade.
Perguntando-lhe eu pela razão por que perseguem o padre, [disse:] “Eu sei!
Por crimes inventados”. E como um sujeito que estava presente lembrasse
um criminoso de morte, que não sei se fugiu da Cadeia da capital, aí disse
ele: “Atribuíram essa morte ao padre, mas injustamente; esta morte parece
que foi um parente do visconde ou dos Mourões”. Tendo aí conversado um
pouco e a conversa versando sempre em política, despedi-me e fui para a
roda do Zezé, onde estive até tarde.
O dia havia sido quente, principalmente à tarde. Das quatro horas
em diante vi romper o horizonte de nordeste a sudeste, carregado de nuvens
acarteladas. Entrou depois a fuzilar, o que durou até alta noite, e se ouviram
roncos de trovoadas; estive receando que viesse alguma tormenta embarcar-
me, mas nada deu aqui.
Não chega o correio.

237
16: Amanheceu bom tempo. Nada de correio. Tendo já perdido dois
belos dias de viagem, não espero mais senão até às nove horas de hoje.
Dizendo-me que se podia abrir o maço do Crato, entendi conveniente
esperar correio para ver se vinha correspondência oficial ou de família.
Ouvi na casa do Zezé estar conversando na enchente de 1842 e
disseram que o rio aqui cresceu até chegar água à praça e destruiu todas as
casas (que tais serão elas?) que ficavam na praça e fora dela para o lado do
rio, sendo todas as que existem atualmente novas. Ora, era preciso que as
águas subissem cinco a seis varas de altura, o que devia ser medonho.
Esta enchente se atribui, e deve ser assim, ao impedimento que as águas
têm na passagem do Boqueirão. E aí chegou ela até quase a boca da gruta.
Com efeito, nessa ocasião não se sentiu grande enchente no Icó. É tradição
não muito antiga que as águas do Cariri chegaram constantemente pelo
Salgado até Icó. O padre Lima Seca disse-me que ainda isso é de seu tempo;
depois chegava-se até Missão Velha e hoje nem ali chega. Datam todas as
denominações das águas de 1817.
[f. 299] De tarde fomos conversar com o Sr. Brasil, que ainda politicou
muito e fez seus protestos de que não é republicano, mas monarquista
constitucional. De manhã ainda me tinha contado que o avô do Ildefonso,
ex-subdelegado de Lavras, veio uma vez a Lavras, acompanhado de uns
200 homens — ele era capitão de ordenanças — com o intento de matar o
vigário de Lavras. Isto foi em 1823, pouco mais ou menos, creio que em
um domingo, e chegando com a sua gente armada ocupou a praça, mas o
capitão-mor de Lavras o acomodou e o vigário subiu para o púlpito, fez uma
prédica chorando e lançando fora a estola; e daí fugiu por Pernambuco para
o Rio de Janeiro, donde voltou vigário de Goiana, onde morreu. “Qual
era o crime do vigário?”, perguntei. Respondeu-me o Brasil: “Acusavam o
vigário de, tendo uma sobrinha moça e muito formosa, pô-la no lugar de São
Vicente, orago da freguesia, e de vez em quando levantando-lhe as roupas
beijá-la!”. O que haveria nisto de verdadeiro? Saindo da roda do Brasil,
despedido, procurei o ex-subdelegado Ildefonso, que me tinha visitado;
mas já tinha ido para seu sítio. Fui para a casa do Zezé, aonde pouco depois
chegou um sujeito com duas senhoras. Aí estivemos conversando e fazendo
falar a mulher que é carrapeta danada; despedi-me e fui para casa aprontar-
me para sair de madrugada.

238
À noite estava linda, céu estrelado, nem uma nuvem, nem relâmpagos.
Mas acordei depois de meia-noite e chovia por pancadas. Um dos cavalos
de carga, o que troquei pelo que vinha estropiado, que já ontem me tinha
feito perder a viagem, não foi encontrado, senão já de dia, de sorte que não
pudemos sair senão às seis horas e meia do dia.
17: De manhã já não chovia; encontrei o padre vigário nas calçadas,
o genro da mulher do Setúbal e o nosso Brasil, dos quais me despedi, pela
última vez, e parti.
Passamos o rio Salgado muito raso. O riacho da Pendência não corre,
mas no lugar da passagem tem poço que nos deu pelo joelho do cavalo.
Chegamos a Carrapicho depois de onze horas com grande sol e em
jejum, tendo só tomado alguns goles de café simples; ainda era noite. No
rancho achamos um sujeito velho do rio de São Francisco, que vem trazer
uma carta do Icó, do Juazeiro, por 12 mil-réis correndo a sua conta! Disse-
nos que no Juazeiro o rio tem boa meia [f. 300] légua de largo, nas suas
águas naturais, e é muito fundo e que tem duas vilas: uma do lado da Bahia,
grande, a rica, onde há uma grande feira, e outra do lado de Pernambuco,
que se comunica por meio de uma barca. Que o rio é muito abundante
de peixes, de várias qualidades e muito grandes. Que só se cultiva para
mantimentos nas ilhas, quando elas se descobrem e que a produção é
admirável de tudo, dando mandioca até de três meses. E que fora das ilhas
não há lavoura, por ser sertão bravio, de muito espinho, mas muito bom
para pasto de gados, que os produz magníficos.
Disse-nos que o sujeito que mandou matar o subdelegado de Urucuri
está em seu sítio com gente para defendê-lo; que o vigário ou um padre do
Urucuri também estava destinado à morte e que estava escondido. Que
por esse mesmo tempo um sujeito que se casou nesses lugares com uma
viúva rica, querendo governar as fazendas de outro modo do que estava
pela viúva, fora assassinado, não tendo se casado mais de quatro anos. Disse
mais que a Lavras de Louças, onde havia já grande povoação, em razão de
uma seca de dois anos ficou despovoada fugindo toda a gente e morrendo
muitos de fome e conta caso de um pai que matou um filhinho para se
alimentar!
Carrapicho, quatro horas da tarde: São habitados do rancho uma
família de mulatos que me parece boa gente, dentre eles está uma mulher

239
branca, ou quase branca, provavelmente casada com algum dos pardos, o
que tem três filhinhos bonitinhos, alvos, corados, de cabelos loiros, belos
dentes e muito fortezinhos.
Eram quase cinco horas quando nos pusemos a caminho, para
dividirmos as cinco léguas que há daqui a Icó.
Em Lavras, onde estive três dias esperando o correio, que afinal
chegou quando já me dispunha a seguir viagem, ter ofícios e resposta a
cartas importantes que escrevi para o Rio; e nada de novo; mas recebi
muitas cartas da família, as quais li e reli e me deixaram contentes porque
nem uma notícia má traziam, antes eram todas boas.
De Lavras a Icó vinha achando notícia de que correu por estes lugares
que eu era morto, tendo comido umas mangas na Barbalha. E tocando
em uma pobre palhoça no lugar chamado Urubu, que o Barreto me havia
indicado para pouso, aí achei um ([...]

[f. 301]
Icó (diário)

[...] velho sapateiro, o Peba, que me pediu para lhe ver uma pessoa que
tinha recebido uma pedrada dada por seu filho que mora no Icó, e diz ele que
com intenção de o matar, e que estava esperando cavalgadura para ir ao Icó
dar queixa contra o filho. Este me perguntou quem eu era e, sabendo, disse-
me que tivera muita pena, que por aqui correu que eu era morto.
À boca da noite chegamos ao pouso Santo Antônio, onde mora um
sujeito, rico para estes lugares e parente dos Caminhas. Apareceu-nos ele
no terreiro desculpando-se de ter doente moribundo em casa a que se fazia
quartos, e por isso não podia dar agasalho. Depois de eu partir perguntou
ele a um dos meus quem eu era. Indicou-nos mais para diante pertinho um
pouso. Para lá fomos, era uma casa pequena, meio aberta, uma latada na
frente. Vinha com meu comboio um moço do Crato, que também trazia
alguns animais e gente da comitiva a qual, vendo a pequenez do rancho,
quis seguir para diante, mas uma parda ou cabra idosa que estava sentada
dentro disse-nos: “A casa ainda tem lugar para algumas redes”, e esta boa
vontade da mulher me decidiu logo a apear-me, e o mesmo fez o meu
companheiro de viagem.

240
Eu fui-me logo sentar junto dela e nos mesmos paus em que ela
estava sentada e pedi logo água, que me veio trazer uma menina filha dela.
Armamos as redes e nos fomos acomodando; eis que chega o nosso homem
de Santo Antônio, sujeito grande e gordo com camisa solta sobre as ceroulas,
e me saudou, dando-me mil desculpas, dizendo que quando soube quem
eu era ficara muito sentido e arrependido porque eu poderia passar mal a
noite; nós também lhe poderíamos ver o seu doente. “Agradeço a V. Sa.
a sua atenção”, disse-lhe eu, “tinha razão para negar o pouso, visto a sala
estar com o doente. Agora já está o meu cavalo desarreado, mas amanhã
de manhá eu irei ver o seu doente; mande-me aqui cedo dizer se ele está
inda vivo”. Ficou o meu homem contente, conversamos ainda sobre várias
coisas e despediu-se. Tomei chá e dormi menos mal.
18: Ao amanhecer aprontaram-se os comboios, tomei café simples;
chegou o recado de que o doente ainda vivia e eu lá fui ver: hidropisia,
inflamação do fígado, morte certa.
Ao despedir-me o dono da casa, cego de cataratas, pediu-me uma
esmola e a filha, mulatinha interessante, veio-me oferecer [f. 302] uma
galinha bem gorda. Dei ao cego uma cédula de 1.000 [mil-réis] e às duas
filhinhas uma moeda de 500 [réis] em prata a cada uma, de que ficaram
saltando de alegres. Por esta ocasião me lembro de que em Carrapicho,
quando cheguei, ao meio-dia, tendo tomado de manhã umas gotas de café
simples, perguntei a uma mulher cabra que me apareceu se não tinha leite,
ou ovos, ou qualquer coisa que eu comesse, por estar em jejum; respondeu-
me que nada havia em casa. Mas — quando se fez o meu almoço, depois
de uma hora, dando eu a cada filho uma fatia de pão e um pedaço de
queijo, e quando jantei, às quatro horas, mandei-lhe um pedaço bom de
goiabada para repartir com os filhos, que são interessantes — veio de dentro
um filhinho trazendo no prato em que levou o doce uns poucos de ovos! Já
em Tropas o leite que tomei com café ao almoço foi comprado ao vaqueiro, a
cujas filhas dei também algumas moedas. Não sei pois como o Dr. Ildefonso
disse que eles se ofendiam que se lhes oferecia dinheiro pelo leite. O que é
certo é que em todos os pousos do sertão acha-se francamente lugar para
armar uma rede e água, mas comida não se encontra, nada querem vender
— “Nada há em casa”, é sempre a resposta —, mas afinal vai aparecendo
alguma coisa. Os viajantes da terra sabem disso e levam consigo sempre

241
matalotagens. Só em algumas casas tivemos comida oferecida, como em
Limoeiro, Cabrito etc. O nosso Lagos irritava-se com isto e maldizia de
tudo; mas se este é o costume da terra [...).
Tendo passado duas léguas de caminho detestável, não [havendo]
senão lajedos e montes de pedras de todos os tamanhos e um bem forte,
entramos no Icó entre oito e nove horas, quando se juntava o povo para
missa. Um sujeito a quem me dirigi (o Sr. [pausa]), perguntando pela
casa da Câmara, saiu de sua casa e me acompanhou até a porta e havendo
paredes-meias em casa de parentes seus, para aí me levou, enquanto o
ordenança que eu tinha mandado adiante procurava a chave da casa da
Câmara.
Instalado nela, fui logo visitado pelo Sr. Jatobá Jacaúna, pelo padre
engraçado, pelo Dr. Théberge e pelo Sr. Teixeira. O Théberge quer por força
que eu vá comer em sua casa.
[f. 303] Às três horas apareceu o Dr. Théberge, vesti-me e fomos para
sua casa onde logo fomos chamados para a mesa; e éramos eu, o doutor, sua
senhora e as duas filhas: a mais velha, mocetona magnífica, e a mais moça,
de sete a oito anos, também bonita. Depois de jantar dirigi-me para a casa
do Dr. Rufino, onde estava ele, sua senhora, o sogro e uma cunhada ou
mulher deste. Conversamos por algum tempo e saindo veio-me encontrar
logo o Dr. Théberge e fomos para a casa da Câmara, onde achei a Cândida,
o malcriadinho Manoel e pardinho Martinho, que aqui fôramos, e que me
trouxe um bom pão-de-ló. Chegou depois o Simplício e esteve conversando
algum tempo. Saindo ele, a Cândida pediu-me que fosse a sua casa porque
as meninas estavam com vontade de ver-me. Com efeito saí logo e para
lá fui, onde me receberam as graciosas Josefa, Maria e Olímpia, cheias de
alegria. Aí conversamos e gracejamos muito. É amanhã dia de São José.
Perguntaram pelo meu nome, eu disse que teria o nome que elas quisessem;
a Josefa me proclamou seu xará e para logo me lançaram ao pescoço cada
uma um cordão de ouro. É aqui no Ceará uso amarrar-se a pessoa no dia,
ou véspera, do santo de seu nome; e para ser-se solto tem-se de dar um
prêmio ou de comprar a soltura.
Enquanto lá estive, tive sempre o pescoço metido em cadeias de
ouro, que eu hei de rompê-las com pedacinhos de prata.
De noite senti algum calor; mas dormi bem.

242
19: Amanheceu o céu anuviado e para o lado do leste caíam alguns
chuveiros. Aqui já se queixam da seca. O Dr. Théberge veio me buscar para
almoçar com ele.
Depois que voltei e entreguei-lhe cartas que tinha escrito para o
Lagos e Manoel, para que as remetesse pelo primeiro correio. Depois que
voltei vieram-me visitar o Sr. Casimiro e Frutuoso.
Tendo jantado com o Dr. Théberge, saí com ele, visitei o Simplício, o
Moreira ou Nogueira, o Teixeira, que não estava em casa; apareceu a senhora
[f. 304] do Casimiro, o Frutuoso e daí fui para casa demasiadamente suado,
pois fazia muito calor e ameaçava temporal. Em casa me foram ainda o Dr.
Théberge, o Gurgel; a Cândida aí esteve também com o Sr. Manoelinho.
Seriam sete horas quando saíram as visitas e eu saí também e fui para
a casa da Cândida e aí estive obra de uma hora conversando e gracejando
com as três Ninfas. Distribuí algumas moedas pela minha soltura de São
José, com o que se tornaram ainda mais amáveis. Quando dali saí já ventava
e fuzilava muito, fuzis que começavam antes do anoitecer, por grande
espaço do horizonte do lado do nascente.
Ceei e deitei-me; não tardou muito em cair o temporal; choveu
bastante com trovões e demasiados relâmpagos e durou seguramente até
meia-noite.
Soube aqui pelos Drs. Théberge e Rufino que era morto no Rio o
doutor Carron Tavillard.
Dia 20: Amanheceu o céu anuviado, mas não chuvoso; estou-me
aprontando para seguir viagem.
Apareceu-me um caboclo com recados e oferecimentos.
Eram dez horas quando saí. Assistiu a minha saída o Dr. Théberge,
que me não acompanhou por não ter animal; acompanhou-me o Dr.
Rufino. Obra de meia légua passei o Salgado, com bastante água. Cheguei
a Forquilha além casa de Francisco [palavra apagada], cuja cunhada é a
mouca, ou tartamuda, que trabalha em louça tão belamente. “Era perfeita”,
diz-me a irmã, “até idade de 10 anos”. Teve nesse tempo uma grande dor
de ouvido e ao mesmo tempo úlceras na garganta, donde resultou ficar
mouca e quase muda, ou antes podendo apenas pronunciar uma, outra
palavra curta, como acabou-se, mas fala de modo a só certas pessoas da
casa poderem-na compreender. Comprei-lhe algumas peças mais fáceis de

243
conduzir, mas o que mais estimei foi vê-la trabalhar nos desenhos dum
copo: é admirável como com umas pedrinhas, sementes de mucunã e uns
ferrinhos, faquinhas e goivinhos de pau, ela faz tudo; e sem risco nem
mudados faz os desenhos, ramos e flores, com a maior presteza e com a
mais admirável certeza e simetria. Furtei-lhe de sua cabaça uma pedrinha e
uma mucunáã.
No lugar deste saiu Forquilha: terrenos de tabuleiros são pastos, com
arbustinhos raros de marmeleiros e de pinhão-bravo, de flor amarela e rubra
e de folhas lobadas e sementosas. Alguns pereiros, cipós-do-rio, juazeiros,
mata-pasto vêm nascendo em quantidade. ,

[f. 305]
Forquilha (diário)
O dono do sítio, Francisco Antônio Ferreira, não estava em casa e
sua mulher Maria Joaquina nos recebeu contente e obsequiosamente. Agora
cinco horas da tarde estamos no terreiro por detrás da casa, sentados eu em
uma esteirinha e a senhora e sua filha Francisca, muito gentil menina de
14 a 15 anos, sentadas num couro; estão fazendo renda. Dentro da casa o
calor é grande. O céu está carregado para nordeste e ronca aí trovoada. Esta
noite não deu a trovoada, mas choveu ontem ao meio-dia, o que vimos do
Icó. Tomamos chá juntos, eu, a Sra. Maria Joaquina, sua irmá — a mouca,
fabricante de louça — e a gentil Chiquinha. De noite caiu alguma chuva,
tendo ameaçado ao anoitecer fuzilando a sudoeste.
Dia 21, quarta-feira: Levantamo-nos cedo e mandamos aprontar os
animais, tomamos uma xícara de café com um pão e manteiga; ao despedir-
nos, perguntamos à Sra. Maria Joaquina quanto lhe devíamos pelo jantar
que nos deu ontem — galinha cozida e arroz —, disse-nos que não era nada,
então pedi-lhe licença para oferecer à sua Chiquinha um lenço de seda
(foulard francês) de que a menina se mostrou contente, Dei ao pequeno
José uma moeda de 500 tostões e à mouca, pela louça que lhe comprei no
custo de 1$920 [mil novecentos e vinte réis], dei três mil-réis em prata.
Voltou ela trazendo-me uma cuia de presente e a linda Francisquinha,
uma quartinha ou moringuinha. Partimos eram sete horas, passamos por
Lobato, chegamos a Cachoeira às dez [horas] e dez minutos, a Tamanduá
às onze [horas] e um quarto, e aí nos arranchamos. O dono da casa, mulato

244
alto, magro e feio, tem oito filhos e creio que quatro filhas, todos machos
e fêmeas bem constituídos, corados mas requeimados: rapazes de seis a 20
anos, meninas de três a 22 anos ou mais. Destas, duas casadas; as menores,
que foram as que aparecem bonitinhas, de olhos pardos ou azuis. Tem aqui
pequena fazenda de criação e tem roças na serra do Pereiro. Há nesta serra
um modo curioso de arrendamentos das terras: o terreno é coberto de casas
de formigas, ou antes cupim, de forma cônica, com altura dum homem ou
menino maior, o que chamam murundus, os quais se acham dispostos com
certa simetria e regularidade para se poder por eles avaliar o terreno que se
arrenda por ano. Assim se paga o roçado segundo o número de murundus
que contém, e estes são avaliados cada um a tostão ou seis vinténs. E são
eles, nos anos de bons invernos, muito produtivos; vindo sobre eles a planta
qualquer, com mais vigor que nas planícies entremeadas.
[f. 306]
Santa Ana

A dona da casa nos preparou uma galinha que trazíamos desde o


Carrapicho e que foi o nosso jantar. Às cinco horas saímos para dormir na
Boa Vista; sofremos grande calor na casa que nos agasalhou; e das cinco às seis
horas em viagem. Chegamos à Boa Vista já noite (às sete horas). Enquanto
se esperava pelos cargueiros me dirigi para a casa do capelão, o padre João de
tal, onde nos havíamos arranchado quando subimos. Estava ele conversando
sentado no patamar de uma casa quase defronte da dele, donde me viu bater a
sua porta e me chamou; aí fomos e, sentados, conversamos por algum tempo
até que chega o Barreto e, tendo o padre oferecido-nos a sua casa, mandei vir
para aí a minha pequena bagagem. E ele foi logo abrir a casa e acomodá-la;
pouco depois fui também para lá. Conversamos um pouco, mandei armar
a minha rede, na sua alcova, que ele me ofereceu, e preparar chá para ceia,
que tomei junto com ele. Depois do chá quis que eu lhe desse algumas ideias
sobre eletricidade e trovoadas (tem muito medo de morrer). Propôs-me
algumas questões filosóficas, mas mostrando-se contudo demasiadamente
besta. É ainda moço e filho de Pernambuco. Não se mostrou porém besta no
seguinte: quando eu cheguei à povoação, estive algum tempo conversando
com um sujeito em cuja casa me apeei. Logo na entrada da povoação, dentre
outras coisas, disse-me ele que no Icó já se não queria aceitar as cédulas do
Banco de Pernambuco. Durante o chá o meu padre me perguntou se eu tinha

245
notícia a respeito de bilhetes que eram rejeitados. Sem já me lembrar do que
o homem me tinha dito, ou por pouca importância à coisa, respondi-lhe que
o que eu sabia era que se estavam recolhendo as notas do Tesouro Geral de
50 mil-réis e de papel encarnado; calou-se. Quando almoçávamos (hoje 22)
me perguntou se não lhe podia trocar algumas notas grandes por pequenas,
das quais ele tinha necessidade, porque aqui na povoação não havia troco
para elas; eu lhe respondi que também não tinha grande porção, mas podiam
remediá-lo em quantia pequena até 200$000 [200 mil-réis), disse ele! “Isso é
impossível, meu padre, eu não lhe posso trocar mais de 20$ [vinte mil-réis)”.
Ainda regateando deu a 50, a 30, “impossível, Sr. padre”. Foi buscar o seu
dinheiro e me apresentou uma porção de cédulas do Banco de Pernambuco:
foi então que eu conheci a velhacaria do padre; fiz algum reparo, mas ele disse-
me: “Não, elas convêm aqui”. Enfim estava comprometido... fui buscar dez
notas de 2$000 [dois mil-réis] e dei-lhe, recebendo duas de Pernambuco de
108 [dez mil-réis).
Esta noite não choveu, mas ontem ao anoitecer fuzilava a sueste. Não
senti grande calor e dormi bem.
[£. 307] 22: Levantando-me, vesti-me e fui ao rio Jaguaribe, cheguei
atravessando grande porção do fundo da areia, que está seca, e cheguei à
beira d'água. A corrente terá oito a dez braças agora, sendo a largura do
rio aqui de 30 a 40 braças. Algumas pessoas que lá achei tomando água
me observaram que o rio estava tomando água, sinal de que tem chovido
para cima e o sinal era umas natas de areia fina que o rio trazia pela beira.
Quando voltei cheguei-me à cerca do quintal da casa do ferreiro, vizinho
ao padre (passando um beco entre as duas casas) e saudei as senhoras que
aí estavam sentadas e que já as conhecia da outra vez que aqui estive.
Responderam muito alegres e me pediram que entrasse, pois queriam
informar-se. Vieram pois para a sala o ferreiro, sua mulher e outro sujeito
vizinho com as três interessantes filhas. Aí ouvi a história das moléstias
e receitei. Fomos para a casa do padre almoçar e depois vim despedir-
me desta boa gente. Então estavam na salinha as duas filhas mais velhas
penteando seus longos e pretos cabelos, amáveis meninas. Com que ar de
bondade e ingenuidade me pediam que descansasse ali o dia e deixasse
passar o sol! E quanto me custa resistir a esse pedido! Mas tudo estava já
pronto, era força, saí e eram sete horas e meia, sol já bem quente.

246
Chegamos a Santa Ana eram onze horas, tendo andado quatro léguas
e um quarto antes. Em um sítio à beira da estrada encontramos uma porção
de gado, conduzido por uma meia dúzia de vaqueiros com seus vestidos de
couro; parei a ver o espetáculo, vendo-os correr pelos matagais atrás das
reses, que se esparramavam, e derrubando-as.
Um desses vaqueiros era dono da casa onde tencionamos arranchar-
nos e sabendo do ordenança que íamos para sua casa, meteu-se em nossa
companhia e nos conduziu a sua pobre casa de vaqueiro onde logo nos
estendeu umas redes e nos deu uma caneca de água fresca.
Daqui da casa, que está num morro alto, correndo por baixo o
Jaguaribe por um leito pedregoso e separando-se em muitos braços,
avista-se Jaguaribe-Mirim, que, diz o vaqueiro, está daqui a uma légua, e
Santa Rosa a cinco léguas para baixo. Temos defronte a serra do Pereiro,
onde vão os moradores daqui fazer suas roças. Isto escrevo aqui em Santa
Ana (casa do vaqueiro), às duas horas da tarde, com calor e atormentado
pelas moscas, que estão agora insuportáveis no sertão.
[f. 308] As mulheres no sertão vestem comumente saia e a camisa
cheia de crivos e entremeios, solta, sem lenço. As meninas de ordinário
trajam vestidos como a Chiquinha de Forquilha e andam decentes, outras,
e isso é o mais comum, têm os vestidos atacados pelo cós, mas o corpinho
solto e caído, mostrando a camisa rendada, os mais bem modelados seios
e às vezes um lencinho pelo pescoço. Assim estavam as duas interessantes
filhas do ferreiro em Boa Vista. Usam de chinelos, tamanquinhos ou
mesmo sapatos; meninos têm por toda a parte, até a idade de cinco, seis e
mais anos.
Água ruim por toda a parte. No verão falta ou são detestáveis, exceto as
das cacimbas do Jaguaribe e Salgado que são as que vi, mas sendo guardadas
de véspera. Agora no tempo das enchentes, bebe-se a água barrenta dos rios
e algumas casas mais caprichosas as coam por um pano! No Icó e daí para
baixo temos agora encontrado água sofrível, porque estando os rios com
grande parte do leito descoberto, fazem-se aí cacimbas, donde a água sai
quente e um pouco turva, mas guardada se faz suportável.
Agora aqui em Santa Ana, o nosso bom vaqueiro João Pedro da Silva
(cabra) a quem o Barreto perguntou se tinha alguma galinha para vender.
A primeira resposta foi: “Qual! Tem aí umas galinhas chocas”; e no entanto

247
víamos pela sala belas galinhas e frangos passeando. Foi porém para dentro
e tendo conversado lá não sei com quem se resolvera a vender uma galinha.
É sempre assim.
Jantamos às três e meia, e às cinco horas nos pusemos de caminho
para Defuntos ou Fazenda Nova, onde eu, andando muito devagar, em
razão de pedregulho e estar o meu cavalo muito estropiado, cheguei depois
das sete horas, já com noite,
Defuntos é do lado esquerdo de Jaguaribe e fronteiro ao outro sai
também Defuntos, do Sr. E Pinheiro, onde pousamos quando subíamos.
O proprietário deste em que estamos hoje é um Sr. Uchoa, que nos recebeu
muito bem, mandando-nos logo armar uma rede e, sentado defronte, junto
com sua senhora (ambos ainda moços e brancos), conversamos sobre vários
assuntos, quer respectivos à província, quer ao Rio de Janeiro [...]
[f. 309]
Cruz (Diário)

[...] e mesmo sobre a Europa, porque passaram uns estrangeiros com


uma Marmota, não sei em quanto tempo, e eles presumem saber da França,
de Roma, da Inglaterra, do Rio de Janeiro etc. pelo que viram na Marmota.
O Sr. Uchoa é bem conversado e judicioso, bem que sem instrução. Sua
senhora não fala pouco, com algum exaltamento e um pouco pretensiosa.
O meu Barreto e o José, que conduziam as cargas, passam pelo pouso,
sem o verem por ser já muito escuro e foram dar comigo em Aningas. Isto
me contrariou bastante e me encheu de cuidados, fazendo mil conjeturas.
Nada sofri no entanto porque o meu bom hóspede às oito me chamou
e apresentou-me a uma mesa, onde havia coalhada, chá, bolachas etc.
Ceamos bem e dormi embaixo da latada fora da casa, porque me dizia ele
que dentro era muito quente, mas fora senti um frio de madrugada.
E foi nessa ocasião que se me apresentou o Barreto para dizer-me que
estava em Âningas, por não ter visto a casa e que para lá ia aprontar-me o
almoço. Logo que rompeu o dia o Anastácio foi buscar os cavalos e os selou.
À dona da casa levantou-se cedo, o marido não, e despedi-me dela e partimos.
23, sexta-feirh: Aningas está dali uma meia légua. Cheguei aí ao sair
do sol; tirava-se leite e fazia-se café. A casa é habitada por uma senhora
viúva, branca ou quase branca, com dois filhos, que estavam fora, e duas
filhas moças, para uma das quais receitei, o que a dona me agradeceu,
-+
»A
248
dando-me leite para o café e mandando-o preparar por suas filhas e mais
um capote, ou galinha-d'angola, para o meu jantar.
Tendo almoçado despedi-me das senhoras e de um sujeito parente
da casa que aí chegou enquanto eu almoçava. Montei a cavalo seriam sete
horas e meia, andando muito devagar e com sol muito quente.
Cheguei às dez horas a Santa Rosa, pela ribeira esquerda do rio,
donde vi a igreja e as latadas, onde arranchamos quando subíamos e onde
tomamos um fartão de melões.
Bem defronte da povoação está uma casa onde vi uns moços e
cheguei-me para lhes perguntar se ali se conservava memória do lugar onde
foi morto o Tristão. Mostraram-se ignorantes disso e disseram que só seu
pai me poderia responder e o chamaram. Apresentou-se um velho talvez
de 60 anos, respeitável, rosto cheio, [f. 310] fresco e rubicundo, barbas
brancas etc., que principiou por questionar sobre quem eu era, ao que
respondido lhe perguntei se conheceu Tristão, se sabe onde foi morto e
como. Respondeu-me que conheceu muito ao Tristão, mas que na ocasião
em que foi morto estava na serra do Pereiro, mas que sabia que, na ocasião
do ataque de Santa Rosa, Tristão, vendo que o artilheiro fazia pontaria alta
e conhecendo-se atraiçoado, puxara pela espada e o matara, e que vendo a
ação perdida tomara o caminho cabeça abaixo e, encontrando com tropa
contrária que subia, dirigiu-se a atravessar o rio que estava seco e que
perseguido e tendo já perdido o cavalo, fora alcançado e morto ali perto
da sua casa, indicando-me o lugar, mas sem saber primeiramente o lugar
onde caiu. De Santa Rosa, que fazem distar de Aningas três léguas, vão
duas léguas à Cruz e uma légua à barra do Riacho do Sangue, que o achei
cortado e só com poços, em um dos quais dei de beber ao meu cavalo.
Cheguei ao meio-dia ao pouso: Cruz. Casa de telha, caiada,
com três portas de frente, situada sobre uma larga e rasa meia laranja,
coberta de relva, e em frente tem o Jaguaribe; pertence a um pardo
vaqueiro a quem pedi pouso e tinha a casa cheia de vaqueiros e de uns
três negociantes de gado (marchantes?) do Aracati. Fizeram-me entrar e
tomar uma rede e aí um dos aracatienses, moço bravo e desembaraçado,
travou conversa comigo, dando-me notícias do Aracati, das pessoas
que aí conheci, da morte do Caminha e do estado da casa falida dos
Caminhas.

249
És
Hoje tornei a ver o pau-branco com flor, depois de passar o
Riacho do Sangue; tinham desaparecido depois da Venda. No Icó
deixei recomendado o Sr. Théberge o apanhar-me flores de braúna e de
violeta, para o que lhe deixei algumas folhas de papel pardo. Daqui para
baixo a abundância do pau-branco é grande.
Cruz (cinco horas da tarde)
Vim jantar no rancho, onde está a minha bagagem; comi com arroz
o capote que me deu a senhora de Aningas, um pedacinho de goiabada, um
copo d'água fresca da jarra do cabra, que mora no rancho e que tem uma filha
mulatinha e feiticeira. Tomei café [f. 311] descansei um pouco balançando-
me na minha rede e recebendo uma branda aragem de leste, que modifica
o calorão, como aqui dizem, que está fazendo no sertão e que afugenta a
praga das moscas, que são agora insuportáveis. Quando o sol ia-se pondo,
tomei o meu paletó de seda e subi para a casa nobre do Vaqueiro e sentei-me
num banco fora e sobre o patamar, ou calçada de tijolo, que há na frente
da casa. Daí gozando da vista do campo, em frente da casa, o que dá a este
sítio, como a quase todos os do sertão, alguma semelhança com as casas dos
nossos lavradores no Rio, vista que vai morrer no horizonte limitada por
alguns serrotes de pouca elevação e de aspectos variados; gozando da vista do
grandioso Jaguaribe que corre junto à fralda da meia laranja onde está a casa,
pobre d'água, e mostrando grande parte do seu leito em areal; gozando da
frescura dum vento que sopra brando do leito, onde o céu apresenta algumas
nuvens, que se desfazem em chuveiros e do resto do céu limpo, tudo isto me
infundiu profunda tristeza e me despertou saudosas lembranças, que só se
apagam de vez em quando, quando chegam das caatingas e tabuleiros magotes
de gados, berrando e conduzidos por muitos vaqueiros, vestidos de couro e
montados em ligeiros quartãos, fazendo rodeio ao gado, que se esparsa nu,
ora cantando o canto do vaqueiro, entoado e saudoso, ao som do qual as
vagas marcham vagarosas para os currais; outras vezes são lotes de cabras e
de carneiros que saltam, berram e brincam pelo campo ou também bandos
de capotes que se recolhem gritando. Nas árvores cantam ao recolherem-se
os canários e as graúnas. Enfim tinha ao pé de mim, no mesmo bando, um
sujeito de Aracati tocando fados e lundus numa viola e uns poucos de rapazes
vaqueiros galhofando, contando carros de bois e vacas, tudo em sua língua
pitoresca.

250
[f. 312]
Cacimba da Pedra

Fui para casa do vaqueiro (que estava cheia de gente), aí lhe vi a filha
que anda adoentada e mais umas velhas, que se quiseram receitar. Veio a
ceia e o Sr. Bezerra reteve-me para cear: coalhada e café. Desci para a casa
onde estava a minha bagagem para estar mais a minha vontade e dormir
mais à fresca. De noite caiu alguma chuva.
De manhã cedo estava eu ainda na minha rede quando apareceu
uma mulher (mameluca) dali vizinha com uma interessante filhinha
(Raimunda) quase branca, e que se familiarizou muito comigo; dei-lhe
uma moedinha de prata de 500 réis e se foram; mas daí a pouco voltaram,
trazendo-me a pecurrucha, mui contente e mui cansada, um capote que
ela mesma tinha criado, para meu jantar. No entanto, a filha do dono do
rancho, onde estávamos, pardinha escura e bonitinha, trouxe-nos duas
tigelas de leite para o meu almoço. Preparado o café, mandei-lhe uma
tigelinha dele, com um pão com manteiga; e à Raimundinha, que já trazia
outro capote (camarada do primeiro, dizia ela) para vender-me e pelo
qual dei mais outra moedinha (o capote custa aqui 200 réis, uma galinha
doze vinténs e uma pataca), dei duas fatias de pão-de-ló, que trazia do
Icó, presente da Martinha. Entraram todas para o seu quarto e fizeram
súcia. Acabado o almoço, prontos os animais, fui à casa do vaqueiro
despedir-me dele e da gente que lá estava, principalmente do Sr. Bezerra,
que muito nos obsequiou aqui.
Estávamos em sábado 24 de março. Partimos às sete horas e meia e
chegamos à Cacimba da Pedra depois do meio-dia, tendo tido em caminho
a demora de quase uma hora, enquanto nos certificávamos do lugar onde
estávamos, e que vereda devíamos tomar.
Todo o terreno é de tabuleiros, vargens e baixios, de bons pastos, e
coberto de arvoredo folhado, sabiás, paus-brancos, juremas, mufumbos etc.
brigonimas [sic], carnaúbas etc.
São terras lavradias, mas muito secas.
Em Cacimba da Pedra, fazenda do Sr. José Augusto do Amaral,
excelente e amável moço que aí estava e me recebeu muito bem, o vaqueiro
da fazenda e o Sr. Félix José de Sá, casado e com muitos filhos, todos
vaqueiros. José dos Santos chegou com o cargueiro do comboio eram já

251
duas horas; o cavalo que conduzia as minhas malas adoeceu e ficou atrás
com ele e o Barreto.
Faz grande calor, está tudo muito quente e teme-se muito outro 45;
está tudo assentado e quando chega algum sujeito a primeira pergunta é:
“Donde vem? Chove por lá?”. Há grande quantidade de moscas; ao jantar
se é atormentado e caem a cada momento na comida e na bebida; dizem
que é sempre assim no sertão durante o inverno.
O Sr. Amaral mandou fazer a comida em comum e jantamos juntos,
e com o Sr. Félix, às quatro horas da tarde.

[f. 313]
Cacimba da Pedra (Diário)

Logo depois mandamos o José dos Santos, com um cavalo que me


emprestou o Sr. Amaral, a encontrar com o Barreto, para conduzir as malas;
mas encontrou-o perto, que já vinha, tendo achado um sujeito que lhe
emprestou um cavalinho e a quem dei 2$000 [dois mil] réis.
Hoje, quando vínhamos, encontramos em caminho o gado (26 reses)
que ia para Aracati, comprado pelo Sr. Bezerra: iam quatro vaqueiros a cavalo
e um de pé; os cavalos iam um adiante, um atrás e os dois ao lado andando
quase sempre pelo mato cercando o gado. Cantavam alternadamente a
cantiga dos vaqueiros, ou o seu alovai, canto prolongado e uma [pausa]. O
gado era formoso, de custo de 50 e 40 mil-réis cada cabeça. Tomei algumas
notas sobre cores de gado, que me não satisfizeram de todo; e a resposta da
conformar dos chifres [sic].
Dos rapazes vaqueiros conversando apanhei o seguinte:
Falavam de burros que haviam fugido e disse um pequeno que
havia ido em procura deles. “Burros! Bicho danado! Quando corre para
fugir, ninguém os apanha. Esta hora! Caíram no estradão de carro, papu,
papu, papu e estão nas Russas”. Contando-se dum velho que num curral
foi agredido por um touro e que, tendo saído pela porteira açambado
[sic], perguntava: “Por onde saí eu?”. “É que a doença ensina a gemer”,
disse o Sr. Félix Maromba, magote, maloca, de gado.

252
Maloca de mato cercado de vargem se chama capão.
Capadoça: novilhote, capado de pouco.
Torar: torar as cartas.
Pouco bom (inverno, saúde etc.).
Desmastício: transtorno de negócio, de saúde etc.
Arranco, arrancou etc.: dispersão repentina do lote, ou magote de gado.
Espirrar: arrancar em só lote.
A miti, na midi: (ao meio-dia) cinctanos, quatranos, quatronos etc.
Vargem: planície de massapé.
Tabuleiro: terreno arisco. Sr. Amaral
caatinga: mato virgem.

Ceamos juntos: coalhada, chá com leite etc.


Dormimos fora. Não houve chuva de noite; bem que de tarde
houvesse sinais, relâmpagos e chuvas parciais ao longe.
25, domingo: Estando o cavalo doente incapaz de continuar a viagem,
o Sr. Amaral mandou vir um seu negócio, dando-lhe eu de volta 308000
[trinta mil-réis], de que me deu recibo. Almoçamos e saímos às nove horas
acompanhando-me o Sr. Amaral pelo espaço de meia légua. Andando por
caminhos pedregosos chegamos ao pouso, Estrela, às onze horas e meia.
[f. 314]
Estrela

Sítio à margem do riacho do Livramento. Seu dono é o Sr. Antonio


Paz (vaqueiro), casado, com bastantes filhos. Das duas às quatro horas da
tarde o céu se anuviou, ronca trovoada e tem chovido em vários pontos em
redor. O Barreto dando um tiro num tetéu, que foi ferido, o companheiro
tornou-se tão sisudo, que vinha sobre o Barreto e sobre mim. Quando saí
ao campo tomei a espingarda e quando ele vinha sobre mim e contra o
vento atirei; dei com ele morto em terra; é o segundo pássaro que mato
voando. Fui aplaudido pela gente da casa e por um sujeito que aí estava,
com uma filha, para quem receitei.
Aqui me contaram, o dono da casa e o sujeito que aqui está,
maravilhas dum Dr. Manoel, americano? ou não sabem, o que cura com
água fria e com outros remédios. Tem feito milagres, levantando paralíticos,
prognosticando a vida e a morte, adivinhando moléstias e o modo de vida

253
do procedimento de pessoas que vi pela primeira vez etc. etc., mostrando-se
muito religioso, recomendando que tenham fé etc. etc.
Às cinco horas [me] aprontei e montei a cavalo para fazer algum
caminho, mas o meu cavalo estava de modo estropiado, que entendi
melhor voltar e dormir. Conversando com o senhor Antonio Paz, vaqueiro,
sobre criação de gado, disse-me ele que o dono desta fazenda, que mora na
capital, deu-lhe de quatro bezerros um e três ou quatro bois de matalotagem
por ano e todo o leite durante o inverno. Que o rendimento das fazendas
consiste na venda de bois, a qual nem todos os anos tem lugar, e só se
vendem quando há porção de boiada. Dormi aí e na segunda-feira.
26: Depois de almoçar, saí às sete horas da manhã e, por
desinteligência entre mim e o Barreto, fui eu ter à Jurema, na ribeira de
Santa Rosa, onde cheguei às dez horas, distância de três léguas. Terreno em
tabuleiros ondeados, pedregosos, cuja vegetação de maior parte consta de
juremas, paus-brancos, sabiás e carvoeiras. A menor consta de mufumbos,
marmeleiros, pinhão-bravo etc. E a rasteira consta de pasto muito novo
ainda; apocinácea de florinhas amarelas e na flor mesma [palavra ilegível],
folhas miúdas; Evoloclus de hastes eretas com uma a duas flores na ponta,
dum belo azul celeste na lébuba [sic] e fundo branco; papilináceas de flores
amarelas e outras de flores purpuríneas; portulacáceas de flores amarelas
ou de flores dum belo púrpura; rubiácea (Spernacoce?) de espátulas de
flores brancas; amarantácea (Izesin?); papaconha com flores brancas ou
ligeiramente aniladas; purga de quatro patacas que em outros lugares
achei-os em arbustos de certa elevação e estendendo [f. 315] seus ramos
encostados a outro mato.
A Sra. Ana Francisca, viúva com mais de 60 anos, é a dona da casa e
que me recebeu muito contente. Depois de me armar uma rede, mandou
vir alvos tijolos de coalhada, açúcar e farinha. Eu comi um pouco de
coalhada simples, que estava muito bem-feita. Mandou chamar um seu
filho que mora com ela (teve 14 filhos, seis machos e oito fêmeas, têm-lhe
morrido cinco, estão todos casados, menos o macho que lhe faz companhia;
perguntei-lhe quantos netos tinha, respondeu-me, olhando para o terreno
da casa que não é tão pequeno: “Não cabem aí” (tem alguns bisnetos). O
filho chegou logo e com ele um outro que chegou conversamos bastante.
A boa da velha matou logo uma galinha e depenou-a e pô-la no fogo

254
esperando que chegasse a minha bagagem, mas o Barreto tinha seguido
para o Córrego do Queijo, mandando um recado por um vaqueirinho da
casa que encontrou. Então resolveu-se a ela me aprontar a galinha ao modo
do sertão, isto é, ao modo de pobres vaqueiros, que é cozinhá-la em água e
sal e nas fatias de toicinho, fazendo do caldo um escaldado. Comi mais do
insosso escaldado que da galinha, que parecia ser de 20 anos. Despedi-me
dela pelas cinco horas, dando-lhe um bilhete de 10% [dez mil-réis], porque
infelizmente não trazia outro menor. Montamos a cavalo e nos dirigimos
para Córrego do Queijo, acompanhando-me em grande parte do caminho
um filho dela que mora para essas bandas.
Cheguei ao Córrego do Queijo às ave-marias e achei a choupana do
vaqueiro Cosme de Luna com várias pessoas que, tendo notícia de eu vir
ali dormir, vieram-se receitar. Deram-me logo água péssima, que a sede me
fez tragar. O Sr. Cosme, muito trigueiro, parecendo-se mulato, sua mulher
mais velha que ele, muito cheia de moléstias, parecia-me mameluca e deste
par velho e feio nasceu uma linda menina, que agora tem quatro anos, clara
de cabelos lisos, de belos olhos. Como eu a afagasse, desse-lhe doce e café,
veio-me trazer um queijo de forma quadrada como são todos ou quase todos
do Ceará. Dormi e no dia [...).
27: Almocei e a despedi-me; dei à pequena uma moedinha de prata
de 500 [réis], parti depois das sete horas para Morada Nova, onde cheguei
quase às dez horas, distância de três léguas.
[f. 316] Tinha de passar o rio Banabuiú, que é um dos grandes
rios do Ceará. Quando se viaja pelos sertões do Ceará no inverno anda-se
sempre cuidadoso a respeito dos rios, riachos, lagoas e até de córregos; a
mesma gente do país não deixa de se preocupar disso, rios que se passam a
seco no verão tornam-se respeitados no inverno, são em geral muito largos
e por isso só durante as grandes chuvas negam passagem. Quando comecei
a descer para o vale deste rio logo reconheci que me aproximava do rio pela
mudança que vi no terreno. Ao longe apareciam os telhados de algumas
casas, uma linha de cabeças de pedras brancas se mostrava sobre a mata e
uma floresta de carnaúbas não deixava mais dúvida: senti certa comoção, eu
me chegava para suas margens com algum pavor, mesmo sabendo que o rio
tinha muito pouca água e dava passagem livre. Andamos por mais de um

255
quarto de légua por uma vargem de barro negro, cheia de lagoas e lamaçais
pelo caminho, os quais também não me davam pouco cuidado.
Enfim descobrimos as altas margens do rio e pouco depois vastas
poças, largos e fundos, mais entremeados de cores de areia; aqui o rio
tem 30 a 40 braças de largo, cheguei à beira para o contemplar! E não sei
por que, cuidando a passagem por ali, nem por isso me horrorizei muito;
mandei o ordenança a uma casa de frente saber do lugar da passagem e
indicaram-me muito mais acima. Com efeito andamos um bom pedaço até
chegarmos à ribeira do rio; mas como estava ele aqui mudado, era um vasto
areal, pelo meio do qual se via o rio dividido em três ramos, dois dos quais
quase secos, e o primeiro, onde a água corria limpa e pura, não tinha de
fundo dois palmos! Aliviados deste pesadelo, logo que saímos do rio fomos
beber água a uma pobre casa situada à beira: água excelente, à vista da
qual há muitos dias bebemos. Marchamos ainda pela outra vargem ao lado
esquerdo do rio, onde nos atolamos, mas sem risco. À povoação de Morada
Nova se mostrava a um quarto de légua sobre um alto; para lá marchamos.
Ao chegar mandei o ordenança informar-se do lugar onde podíamos
pousar e como se dirigisse a um grupo de pessoas onde [...]

[f. 317]
Morada Nova (diário)

[...] estava o subdelegado, este me mandou logo convidar para sua


casa, onde nos recebeu muito civilmente. É o Sr. Eduardo Henrique Girão,
major [da] Guarda Nacional, duma das primeiras famílias aqui do lugar;
seu pai ainda vive e tem vários irmãos, um sacerdote e outros estabelecidos
com fazendas de criar. Perdeu sua mulher há pouco tempo, tendo sarampo,
estando pejada de oito meses, pariu e oito dias depois faleceu.
Ele se mostra ainda muito sentido e desgostoso por essa perda.
Ficaram uns poucos de filhos, algumas moças, meninos e rapazes (notei
nos filhos muita semelhança com os do Luís Jacinto, as moças se parecem
com a dona Maria, e os rapazes são a feição do João etc.), gente toda muito
amável. Vieram logo me visitar várias pessoas do lugar. A casa do Sr. Girão
para uma povoação do sertão não é má, e sua mesa bem servida. A povoação
consta dum quadrado de casas fechado pelos três lados e aberto o que dá

256
para o rio, onde se faz face à igreja, que não é pequena, mas, como muitas do
Ceará e do Brasil, não está acabada e já ameaça ruinar, pendente e pobre e
meio habitada por morcegos, que lhe comunicam um cheiro nauseabundo;
ladrilhada de tijolos, que sempre se levantam para enterrar os corpos. Às
casas são em geral pequenas e pobres; há todavia dois sobradinhos e me diz
o Sr. Girão que é bem provida.
Está o Sr. Girão lamentando-se da falta de socorros para se melhorar
esta povoação; mas, dizia ele, “com dez contos de réis acabávamos a igreja,
fazíamos um cemitério, uma cadeia e um açude para o povo e gasta-se
dinheiro tão superfuamente”. Por algumas palavras entendi que ele se
referia às despesas que faz o imperador em suas viagens e festas, instado que
lhe era muito fácil fazer esta esmola. Mostrei-lhe que ele estava negando
[enganado]. É um modo de pensar dos cearenses, e provavelmente da gente
de outras províncias, que as grandes despesas que se fazem na corte, com
teatros, festas etc., deviam ser contos repartidos pelas províncias!
[f. 318] A sua sala de jantar é no interior da casa e aí era a mesa, nela
se não aprontaram as filhas, mas só dois filhos maiores.
A respeito do Dr. Milagroso disse-me ele que não passa de um
miserável impostor, cheio de superstição, ou de velhacaria; e mesmo
cuida que é filho de Aracati, já o mandou chamar à sua presença, mas não
apareceu.
Esta gente do sertão, bem que inteligente, é por sua ignorância
demasiadamente supersticiosa e muito crédula, engole todos os carapetões,
como são anúncios de desgraças de secas, de dilúvios etc.; ficam aterrados,
não falam em outra coisa e se fazem rezadores. À propósito, aqui pelo
sertão se costuma rezar o terço de noite; ainda anteontem na casa em que
dormi, em São José, rezou-se o terço com salve-rainha cantada e “Meu
senhor amado”, com toada inteiramente semelhante a nossa do Rio. Rezam
depois da comida, lavam as mãos antes dela, ainda que seja trazendo-se
água em uma caneca. Outra coisa notável nesta gente do Ceará, falo do
povo, é dizerem sempre a qualquer propósito que eles são uns bestas,
uns bestalhões. Essa gente de baixo, dizem eles, é sabida. Nós temos aqui
riquezas, mas que aproveitam? Se somos uns bestas? Objetos que eles veem
da indústria europeia, como relógios, espingardas etc. etc., entendem que
são feitos no Rio de Janeiro, que para eles é como um país estrangeiro.

257
Quando eu pergunto aqui pelo sertão a esta pobre gente se sabem o que é
o Rio de Janeiro, respondem: “Tenho visto falar nele”. “Sabem quem é o
imperador?”. “Tenho visto falar nele”.
28: O Sr. Girão quis que almoçássemos com ele e por isso só às oito e
um quarto é que pudemos sair. Ao despedir-me, não tendo nada de alguma
merenda que ofereceu a algum dos filhos, ofereci à mais velha um pau de
sabão de areia para lavar as mãos.
Saímos com sol bem quente e chegamos à margem do Palhano, lugar
ou fazenda chamada S. Gonçalo, à uma hora e meia da tarde, queimados,
suados, enfadados. [f. 319] E nós chegamos à primeira casa que se nos
ofereceu, habitada por um pequeno fazendeiro: João da Cruz Ferreira Nobre,
ainda rapaz e casado com uma bela mocetona, clara, rosada, de olhos azuis
e cabelos loiros, a qual achamos sentada num couro cosendo camisinhas
para recém-nascido. Ela está pejada. Esta pobre gente nos agasalhou do
melhor modo, estendendo-nos logo uma rede; pouco depois chegou um
irmão, ambos são conversadores e me entretive até que chegou a minha
bagagem já pelas cinco horas. Eles, coitados, mostravam-se inquietos por
essa tardança porque viam que eu devia ter fome e bebia a miúdo água
(que não era das piores, tirada da cacimba do Palhano, que todavia ainda
não correu este ano). Eram quatro horas quando o moço veio ter comigo,
diz-me: “V. Mce. [Vossa Mercê] não ignora a minha pergunta (frase muito
comum no sertão). Quer tomar uma xícara de café?”. Respondi-lhe que
não tivesse incômodo, mas daí a pouco a mulher foi para a cozinha e veio-
nos logo um bule de excelente café, fatias de queijo assado e um prato de
farinha. Tomei uma xícara de café com um pedacinho de queijo. Chegando
a minha bagagem, a fiz seguir para a fazenda do Sr. Segundo, que fica
adiante meia légua e por indicação do Sr. Girão. Seguimos atrás logo e,
quando íamos subindo e chegando a casa, não vendo a minha bagagem
arreada me impacientei; mas chegando à latada, da varanda me apareceu
o Sr. Segundo, dizendo que os cargueiros seguiram para diante para outro
rancho ali perto, e como muito bom cômodo e no entanto que eu me
podia apear, agradeci-lhe e segui para o lugar indicado, um quarto de légua
mais adiante, aonde achei já minha bagagem descida. É a fazenda São José.
Hoje fizemos a primeira travessia, que assim chamam grande
extensão de caminho sem moradia: fazendo quase oito léguas, segundo

258
contam os do país. Pois de [f. 320] Morada Nova, ou antes de Banabuiú,
ao Palhano fazem sete léguas e do Palhano, fazendo São Gonçalo a São
José, são três quartos de légua. Esta travessia foi assaz penosa pelo grande
calor que sofremos, são tudo tabuleiros pedregosos, ou vargens e alagadiços;
em alguns lugares passamos bonitas campinas, esmaltadas de lindas flores
e algumas caatingas que queimadas à margem do caminho deixavam vir
grandes cardeiros, de 30 e 40 palmos de altura.
Nem uma morada nessa extensão; mas encontramos vários carros
carregados, vários comboios e passageiros.
Foi o calor grande, parte do qual passamos em São Gonçalo; de tarde
deu trovoada em várias partes com chuva. Isto por aqui anda ainda muito
seco; os legumes vão prosperando, o pasto vai aparecendo, mas os rios ainda
não correram.
Saindo de S. Gonçalo passamos o rio Palhano, que está seco, e me
pareceu antes um riacho; mas, disse-nos o Sr. Nobre, chamam-no rio porque
faz barra no mar, isto é, em água de mares, junto à barra do Jaguaribe.
O pouso de São José é habitado por um velho vaqueiro, que me
recebeu muito bem, assim como sua mulher, que achei sentada à porta da
sala com uma filha de belos olhos; são todos gente acaboclada e amáveis.
Aí vem jantar pelas oito horas da noite: um pouco de carne seca
assada e arroz, sobremesa de goiabada, que reparti com meus hóspedes,
e às nove horas uma xícara de café. A água aqui é suportável. Rezou-se o
terço depois das nove horas na sala com a porta fechada, estando eu e mais
um sujeito na sala de fora deitados em nossas redes. Alta noite caiu alguma
chuva. Conversando de noite com o vaqueiro, habitado da casa, disse-me
ele, dentre outras muitas coisas, que o gado se solta quando falta água e
pasto; então ele procura [...]

[f. 321]
Riacho (diário)

[...] ou o guiam para [onde] aguada, ainda que seja para os domínios
de outros vaqueiros, fazem cacimbas etc. Que as vacas emprenham quando
estão gordas durante o inverno e que prenhes continuam a dar de mamar

259
aos bezerros, às vezes até parirem, e que aquelas que não emprenham
continuam [a] amamentar os bezerros por dois invernos.
Amanheceu o dia 29 com má cara e chovendo, mas fazendo uma
estiada. Depois de almoçar café com leite, que nos [pausa] o vaqueiro, com
pão, que trouxe de Morada Nova (há aí um padeiro que faz pão quando
encomendam, ou nos domingos e dias de ajuntamento; fez-nos por
obséquio dez tostões de pão) e manteiga. Reparti o pão com a dona da casa
e sua filha e a esta dei mais, ao despedir-me, uma meia carta de alfinetes
para suas rendas.
As rendeiras aqui trabalham em almofadas feitas de um saco cheio
de palha e tem a forma dum travesseiro, curto e grosso. Ao pique chamam
papelão; por alfinetes se servem de espinhos de jamacaru e para encostos os
espinhos do xique-xique, que são maiores; os bilros são de coco.
Chamam rendas só as de duas ourelas, ou que nós chamamos
entremeio. As rendas duma só ourela chamam bicos, qualquer que seja a
sua largura, que às vezes chega a palmo e meio e a dois palmos. Aos crivos
chamam /avarintos [labirintos].
Tecem panos ordinários (como o que entre nós se tecia antigamente
e chamamos algodão tecido), brancos ou com listas azuis. Deste pano usa a
gente de trabalho e dura muito.
Tecem panos para redes ou tecem redes de muitas sortes de tecidos:
as ordinárias são lisas, outras trançadas, outras lavradas de vários feitios;
brancos ou com listras e xadrezes azuis, como as que se fazem no Crato.
Outros são mais ou menos ricamente bordados com linhas de cores e ponto
de marca, como as que se fazem principalmente no Sobral; algumas há que
são [f. 322] inteiramente de lavarintos [labirintos], outros de pontos ou
tecidos de custosa fábrica.
Quase todos os vaqueiros, se não todos, são sapateiros, fazem as suas
vestes, fazem seus arreios, fazem sapatos etc.
A sela do vaqueiro é muito rasa, alta, sem feitio, dura, guarnecida
por duas abas que se chamam gualdrapos; antes selins, não sei por que [a]
denominam ginete. Dão o nome de roladeira, é o ginete com um arção
levantado adiante, com gualdrapos. Hoje estão usando dum selim que
denominam selotes, que ora tem gualdrapos e se assemelha ao selim, e no

260
inglês, que eles chamam silhão. Diz o nosso hóspede do Riacho que para o
campo não há nada como o ginete.
As botas de que usam os sertanejos — e mesmo os pracianos quando
viajam — são espécies de botas russilhonas, mui duras e tesas, desengonçadas
e que nada enfeitam ao cavaleiro, ainda que este seja bem empernado.
Saí de S. José às sete horas com uma chuvinha fina; tinha andado uma
meia légua quando nuvens grossas e negras, trazidas por vento do nordeste,
começam a descarregar sobre nós torrentes d'águas, e mais ou menos nos
acompanhou por uma hora. Eu fiquei da cintura para baixo molhado
completamente e trazia calças brancas. Melhorou depois o tempo, abriu o
sol bastante forte. Era meio-dia quando o ordenança me mostrou um belo
arco-íris ou cera em roda do sol. Havia nuvens cúmulos na circunferência
do céu, ou no horizonte, mas no zênite eram cirros difusos e de forças
fantásticas. O arco era quase completo e muito vivo, seu diâmetro aparenta
ter e parecia de umas 300 braças; as cores que lhe pude distinguir eram, de
dentro para fora, encarnado, alaranjado muito vivo, amarelo, esverdeado e
anilado já muito apagado.
[£. 323] Chegamos à margem do Pirangi pouco antes de uma hora,
e nos apeamos na casa da fazenda denominada Vaca Morta, tendo gasto na
viagem pouco mais de cinco horas porque tivemos algumas paradas; e fazem
ser esta travessia também de sete léguas. Andamos por extensas caatingas,
muito cerradas por tabuleiros pedregosos e por vargens. Não encontramos
viva alma. São estas duas travessias — a de Banabuiú ao Palhano e a do
Palhano ao Pirangi — inabitáveis por falta d'água.
Chegam-nos já enchentes, mas muito sujas. Recebeu-nos o Sr.
Manoel Inácio de Sampaio, genro do Sr. Vieira, dono da casa e fazenda.
Recebeu-nos, digo, este moço muito amavelmente deu-nos boa aguardente
de Aracati, estendeu-nos rede, ofereceu-nos de jantar, que não aceitamos.
Assisti à comida de oito trabalhadores todos sempre em roda duma
alta mesa, coberta duma toalha bastante suja e servida com quatro grandes
pratos de escaldado, onde comiam dois a dois, e um prato de carne cozida
e outros de costelas assadas. O que eu admirava era como esta boa gente
bebia uma água que parecia tirada de um poço de porcos! À que nos deram
de dentro era um pouco melhor, mas no copo parecia chá carregado com
pouco leite. Com grande repugnância eu bebia alguns goles.

261
Eu disse uma mesa alta; é notável que em todo o sertão as mesas
são demasiadamente altas, algumas mediam com quatro palmos e meio
de altura, e os bancos, toscos e pesados, não têm menos de três palmos de
alto. Em Córrego do Queijo, fazendo eu esta observação a um moço que aí
estava, e a razão que ele me deu foi que nos tempos antigos e ainda hoje, para
desobriga, andavam padres correndo o sertão € desobrigando as famílias e
vizinhos, para o que diziam missa em casa, e de altar serviam as mesas de
jantar e por isso as faziam com essa altura. Agora [que] assisti a este jantar
dos trabalhadores me veio outra ideia: as mesas se faziam e se fazem com sua
altura porque essa gente — [f. 324] trabalhadores, passageiros etc. — devia
comer de pé diante dos donos da casa; acabado o jantar rezavam de mãos
postas, antes e depois de lavar as mãos, com sabão porque comiam com
colher o pirão, levando-o à bóca com a colher voltada, e a carne comiam
com a mão.
Outro costume aqui temos achado e com o qual não me posso
acomodar: acabada a primeira mesa dos amos e hóspedes, vêm para a
mesma mesa, com outra comida, os criados, quem quer que eles sejam.
O meu jantar só me foi apresentado às oito horas da noite! Com que
fome eu estava! Havia mandado fazer uma sopa, para melhor suportar a
sede: do caldo da galinha que se fez com arroz; mas o caldo grosso e escuro
me parece lama e só comi não sem repugnância o pão. Vamos ao arroz:
apareciam nele alguns pontos luminosos, como se fosse malacacheta. “Que
é isto?”, perguntei ao José. “São caga-fogos que caem no arroz!”. Seja tudo
pelo amor de Deus: comi doce e logo depois uma xícara de café, feito com
tal água!
Como esta gente se acostuma a isto! Informado eu de donde tirava
água, disse-me o Barreto que de uma ipueira! Duma lagoa. No entanto me
parece gente de algum trato.
30: De manhã levantei-me e fui para o curral ver tirar leite, nele
havia talvez 30 vacas e cada uma dava uma boa cuia de cabaça-amargosa,
quase cheia e de bom leite. Tiravam leite três pessoas, uma delas era o Sr.
Manoel Inácio, de pés no chão, calça arregaçada e camisa com fraldas soltas,
como sempre está em casa. Observei a grosseria com que tudo se faz em
nossa terra, porque isto não é só no Ceará; um mulatinho de talvez dois
anos se apresenta com uma cuia de cabaça-amargosa em que havia farinha

262
para ração dum trabalhador; despejaram-lhe leite até quase encher!
Tu comes tudo isto?”, perguntei-lhe eu; a resposta foi ir comendo.
“ . 2» . ..

Veio depois um menino, todo remeloso [...]

[£. 325]
Riacho (diário)

[...] mas bonitinho, filho do Sr. Manoel Inácio, da mesma idade do


mulatinho, com sua cuia, sem farinha, o pai despejou-lhe dentro tanto leite,
que eu o não beberia todo; pois o menino o emborcou, parando algumas
vezes ansiado para descansar! Neste ínterim chegam dois cavaleiros, que se
apeiam e se dirigem para o curral e me saudaram como conhecido: era um
o Sr. Barroso (Manoel Fidélis), morador na cidade e nosso vizinho quando
aí estávamos e pai duma bela menina, o outro era um moço, que esteve
no Rio de Janeiro; eles vão para suas fazendas. O Sr. Fidélis me disse que
já estavam na cidade o Capanema e Gonçalves Dias; afirmam que para a
cidade havia chovido bastante.
Almoçamos em companhia e conversa destes sujeitos, e como os
meus animais não aparecem senão depois das oito horas não pudemos fazer
a viagem que tencionamos indo até o Choró. Saímos eram já nove horas
e um quarto; às dez passamos o rio Pirangi, que está seco; na distância
de légua e meia passamos em Zacarias, numa pobre casa, onde bebemos
excelente água, tirada de cacimbas do rio Pirangi. Como é que os senhores
de Vaca Morta não mandam tomar água aqui? Uma senhora velha branca é
que me veio trazer água com tão boa vontade, que fez que eu me apeasse; a
filha armou logo uma rede e eu me pus a conversar com a velha, que estava
fiando. “Que idade tem, minha senhora?”. “Eu não sei. Na seca grande
dizia meu padrinho que eu tinha onze anos”. “Essa seca começou em 1791,
logo V. Mce. tem 80 anos”. Conversa perfeitamente bem, só lhe custa um
pouco a andar, por dores de cadeiras. Disse que já perdeu a vista, que usou
de óculos, mas que agora a recuperara e acredita que “não me lembro quem
sempre dizia que o velho que a vista recuperar, pouco poderá durar”. “A
senhora há de chegar aos cem anos”, disse-lhe eu. “Também, meu senhor,
minha avó morreu com 103, [f. 326] mas já não tinha paladar e assim não
quero eu viver”.

263
Fartei-me d'água, que me deram numa moringa e ao despedir-me
dei à velha uma nota de mil-réis [1$000] para dar à neta e a quem quisesse
mais bem; e parti era meio-dia. A minha bagagem já tinha seguido. Ao
meio-dia cheguei ao pouso chamado Riacho do Jerônimo, onde mora o
Sr. João Vieira. Antes de chegar passei por um cercado, cuja cerca é tecida
como ainda não tinha visto: são moirões singelos e separados, fincados no
chão em duas linhas, enchidos de varas; cruzam-se os moirões e se continua
a encher.
Nesta casa mora ele, sua mulher e um filho casado e que tem já um
bom número de filhos. Perguntando se não havia alguma galinha ou capote
para vender, a resposta foi a do costume: “Não há nenhuma porque toda a
criação está muito magra”. Pouco depois, perguntando eu a um dos netos
de quatro anos se ele não tinha alguma galinha sua que me vendesse, o Sr.
Vieira entrou para dentro e voltando mandou que apanhasse uma galinha
arrepiada que ali estava na sala; e parecendo-lhe magra mandou apanhar
outra, que se matou para meu jantar. Seriam duas horas, o céu se carregou
para nordeste, ronca trovoada e chove aí bastante; às três horas chove no
nosso rancho, até às quatro horas. Tencionávamos fazer de tarde mais uma
viagem até o açude da Marica, mas a chuva não deu lugar.
31 de março: Almocei e me preparei para viagem. A mulher do Sr.
Vieira me veio pedir uma esmola e dei-lhe mil-réis; dei mais mil à netinha
Rosa, que se deu mais comigo, por não querer o Sr. Vieira receber dinheiro
pela galinha. Parti do Riacho do Jerônimo às oito horas. Chegamos ao Açude
da Marica Simões, cujo marido mataram em Cascavel num sobradinho,
que lá vi crivado de balas. Aí bebi água e segui; antes havia passado por uma
caatinga, onde fomos perseguidos por grande quantidade de mutucas, que
é uma das pragas dos sertões durante o inverno; as moscas são outra praga,
aqui no inverno. Ágora mesmo estou escrevendo perseguido por elas. De
noite custa-me a escrever com a vela, primeiro pelo vento que reina quase
constantemente e que entra pelas casas sem cerimônia, achando abertas em
todo o sentido, depois por uma grande quantidade de pequenas mariposas,
que impacientam. Cheguei a Paulo Pereira já nas ribeiras do rio Choró
às onze horas e 20 minutos. [f. 327] Deste sítio se goza uma boa vista,
tendo-se diante as serranias de Cantagalo, em distância de cinco léguas.
Está sobre um alto junto a uma larga vargem, plana, limpa, coberta de

264
relva verde e semeada de grande número de árvores copadas: marizeiras,
juazeiros, sabonetes, mutambas etc., o que eram dum belo efeito — dão a
isto o nome de cobertas. É a ilharga direita do Choró, que fomos passar dali
a meia légua. Quando avistamos o rio (e íamos como de costume cheios
de certo pavor e o vimos largo, sete a oito braças, com barreiras altas e
grande correnteza) hesitamos em entrar; mandei adiante o ordenança que
também ia receoso; mas o maior braço não tocou na barriga dos cavalos.
Esta passagem se chama Jiqui. Passado o rio apresenta-se outra vargem
semelhante à primeira, mas mais pequena e mais irregular. Dirigimo-nos
para uma pobre choupana onde uma mulher rodeada de seus filhos fazia
renda; pedi-lhe água, perguntei-lhe pelo caminho e pelo melhor pouso
e mais perto, indicou-nos o Umari, para onde me parti e chegando logo
à outra vargem coberta, com várias casas em roda, procuramos uma de
melhor capacidade para pouso. A respeito de pouso devo dizer que muitas
vezes me via embaraçado quando chegávamos a uma casa e pedia pousada;
o dono da casa ficava abestado sem me entender: é que aqui o modo de
pedir pousada é um descanso, quando é por algumas horas, uma dormida ou
para passara noite, quando se quer dormir; é a resposta do dono da casa: “É,
Vossa Mercê pode arranchar-se” . Não se conhece a palavra pouso, ou pousada.
A casa é de telha, velha, arruinada, mas com cômodo; tem ao lado
casa de farinha grande e aberta, onde se agasalhou a bagagem. Pela primeira
vez vi, ou reparei, uma sala de paredes de paus-a-pique, barreada e rebocada
com superfície, como as nossas. No telhado há também alguma coisa a
notar-se e que já tenho visto por muitas vezes nesta minha viagem de volta
e é o telhado formado só de caibros prontos até poder receber as telhas de
cano, como se fossem de carnaúba; não são envaradas, digo enripadas.
[f. 328] O dono da casa em que estou no Umari é o Sr. Lucas
Evangelista do Nascimento, casado com uma senhora ainda moça e filha de
Cascavel, brancos ambos e já com seis filhos, que achei todos nus, menos
duas meninas já crescidas; os rapazes, de seis a sete anos, nus! Quando
cheguei calçaram sapatos: a mãe, que estava fora, logo que chegou vestiu-
os com camisas e logo se me apresentou, com desembaraço. Ao anoitecer
nos estendemos nas redes eu e o marido na sala e ela noutra sala defronte
da porta, e aí conversamos sobre vários assuntos, até que veio a minha ceia
de café com leite, pão com manteiga, boladeiras, queijo assado. Eles nada

265
quiseram porque jejuavam; eu dei à senhora o prato de bolachas para dar
a seus filhinhos. Disse-me o Sr. Lucas que aqui não conhecem as palavras
campo e campinha e que uma vargem coberta de relva se chama vargem
aberta e a que tem arvoredo (como as que vimos hoje nas ribeiras do Choró)
se chama vargem coberta. Que as caatingas arenosas se chamam aqui ariscos
(provavelmente ariscos, e são terras lavradias). Que o rio Choró seca em
outubro e às vezes, quando o inverno é escasso, em agosto. Que daqui a
Pacatuba são 12 léguas. Em toda a viagem hoje temos achado água sofrível;
aqui bebemos a do Choró, que não é muito saborosa, mas é clara. De tarde
roncou trovoada e deu chuva bastante para o nascente, ou nordeste.
Durante a viagem esteve hoje o sol mais ou menos coberto e
apanhamos alguns chuviscos. O terreno pelo qual andamos foi quase
todo arenoso e [em] alguns lugares pedregoso; sempre vargem, alagadiços
ou caatingas, rasas ou de pouca elevação. Vegetação muito semelhante à
de Pacatuba. Saindo do riacho encontrei logo muita Richardionia e [se]
começa a ver a Elicteres biflora, muita maniçoba, que é a mesma que no
Crato me deram como mandioca-brava. As caatingas são de pau-branco,
sabiá e juremas (vi hoje dois pés de jurema-branca, alguns frei-jorges).
Umari às dez horas da noite.
[f. 329]
Umari (diário)

Diz o nosso hóspede que a serra do Cantagalo, ou parte dela, é muito


rica em pedra de cal, que no alto de uma há como uma igreja, em outro
lugar aparece como um frade. Que se ouvia cantar galo em cima da serra,
disto o seu nome. Que uns caçadores dormindo nela lhes apareceu de noite
uma moça e que ouviam chorar uma criança e que fugiram espavoridos.
Disse-nos que corria por aqui que o Alencar tinha feito um levante e tinha
tomado a cadeira do imperador (isto corria também no Crato, quando
se agitou o povo para as qualificações e as outras bobagens semelhantes);
mas, dizia ele, parecendo não acreditar naquilo: “Sempre o Alencar é lá um
homão”.
De noite deu uma grande chuva.
Domingo de Ramos, 7º de abril: Amanheceu o céu anuviado, várias
pessoas a se receitarem. Não apareceu o meu cavalo. Costume das meninas
chupando os dedos, muito comum aqui; reunião de rapazes conversadores;

266
os cavalos apareceram tarde, o meu embaraçado, e dizem aqui que ele ia
sem dúvida para Acarape, donde é filho. É admirável como conservam os
sinais dos animais: assim que o viram reconheceram-no logo, por ter sido
aqui dum sujeito que o vendeu para o Ceará. Outra coisa também notável
é o reconhecimento do gado, dos animais e mesmo da gente pelo rasto:
conhecem pela forma do cano, pelo andar, se está livre, se está peado, se
o animal está cansado etc. etc. Assim seguem a marcha dum viandante,
seguem o rasto dum animal no pasto ou mato etc. etc. Perdi o dia de
viagem; temos tido a casa sempre com muita gente. Ao meio-dia saí com a
espingarda a ver se encontrava algum pássaro, fui até a beira do rio Choró,
que corre aqui perto, em nada pude atirar.
Tendo chegado e estando ainda mudando a roupa suada, começou
a chover, por pancadas fortes, e depois com trovoada; isto durou até além
de uma hora e eu escapei de a apanhar. Andando caçou [f. 330] à vista
das matas e do rio, e sendo hoje Domingo de Ramos, fez-me lembrar da
minha gente e me entristeci. Perdi o dia de viagem, de tarde ainda roncou
trovoada e deu chuva em vários lugares, e o aspecto ameaçador do céu fez
lembrar ao Sr. Lucas a predição do dilúvio de 2 de abril. De tardinha saí
com a espingarda acompanhado de um filho, o José, do dono da casa; andei
caçando em roda duma lagoa que há junto à casa: matei dois pássaros,
tendo dado quatro tiros. De noite passamos uma [palavra ilegível] deitados
em nossas redes conversando.
Da meia-noite em diante ainda choveu bastante.
2 de abril: Amanheceu, o céu anuviado, mas sem chuva e
prometendo bom dia. Às oito horas parti de Mari, ou Umari, e passando
por algumas casas fui chamado para ver alguns doentes. Numa delas uma
mulher com duas filhas e uma nora se mostraram medrosas dos nossos
trabalhos: andamos, diziam elas, medindo o Brasil (Ceará) e procurando
as suas minas para o entregar aos ingleses, que vêm escravizar a todo o
povo do Ceará. Mas gostei da nora, que me disse que elas e seus maridos,
que são valentes, haviam [de] resistir como pudessem etc. etc. Depois de
ouvir falar a esta pobre gente, e gracejei com eles, as dissuadi dessas tolices
e bobagens. Seguindo o caminho indicado pelos rapazes da casa, viemos
chegar ao lugar chamado Olho-d' Água à uma hora e meia.

267
Andamos por caminhos quase sempre [de] vargens arenosas e pouco
mais ou menos em meia viagem demos em um descampado (roças antigas),
donde tivemos a vista dum grande grupo de montanhas: eram as serras de
Cantagalo, de Baturité e a da Aratanha. As de Cantagalo, que eram as de
mais perto, não têm cultura alguma, talvez por serem áridas e pedregosas.
Viemos nós, no entanto, à serra de Cantagalo e andando por caminhos
muito fechados e tomados por ramos caídos, árvores cipoadas e sempre por
dentro de matas.
[F. 331] Olho-d' Água é fazenda de criação e plantação. Seu dono é o Sr.
Antonio Rodrigues Silva e sua mulher, a Sra. Maria Tomé Francisca de Santa
Ana, que está hoje com 81 anos, e ele com 83 quase completos*, tem uma
irmã que conta já 96 anos que nunca casou: está entrevada da perna e braços,
mas tem o corpo e a cabeça perfeitamente sãos. Ele me parece um robusto,
baixo, gordo, corado, com quase todos seus dentes, conversa perfeitamente
bem e prometia durar ainda muito. Sua senhora porém, demasiadamente
obesa, tem as pernas fracas e o juízo já um pouco leso, por ataques de cabeça
que tem tido. O Sr. Antonio me recebeu mui graciosamente, ofereceu-me o
seu jantar etc. etc. Aqui tivemos muita gente de casa e de fora que se quer
receitar. Ouvi muitas coisas a respeito das missões do padre Agostinho,
que é considerado como santo por este povo. Ele foi suspenso de pregar no
Monte-Mor e contam que depois de suspenso compuseram um bendito
que, cantado depois pelo sacristão, fez todo mundo chorar, velhos e moços.
Diz o Sr. Antonio que ele tem feito muito benefício às igrejas, fazendo o
povo limpar os templos, carregar materiais para fazer cemitérios e consertar
as igrejas, pedindo esmolas para concluir a igreja da Messejana etc. etc. As
missas de Monte-Mor eram embaixo de uma muito grande latada; as folhas
de várias naturezas com que era feita a latada têm sido carreadas em grande
parte pelo povo, que delas faz remédios para seus malés, já em banhos, já
internada etc. e que com eles se têm operado milagrosas curas.
Sentados ou deitados, e balançando-nos em nossas redes, eu e ele
conversamos toda a tarde, enquanto nos deixaram conversar os doentes que

* Se bem me lembro, disse-me que tem 14 filhos, os quais lhe têm dado ali agora uns 40 netos, e estes quatro
bisnetos.

268
me vinham consultar. De noite mandou-nos dar coalhada e eu o convidei
para tomar chá comigo.
[f. 332] De tarde estava o céu anuviado, mas não houve nestes
arredores trovoada; também não choveu de noite.
Dia 23: Levantei-me, preparei-me para seguir viagem e almocei
café com leite, de que também se serviu o nosso hóspede. Ao despedir-me
ofereceu-me um capote para meu jantar, e à boa Mariana parda escrava
[palavra ilegível] mexe tão bem uns ovos e um capão; a esta e a sua filha
Francisca dei a cada uma mil-réis em prata, com que ficaram contentíssimas
e me abraçaram pelas pernas. O Sr. Antonio quis por força impor-me:
mandou selar o seu cavalo e me acompanhou por quase uma légua de
caminho, até encontrarmos o rio Acarape. Ao ver este velho me lembrei
muitas vezes do nosso José Garcia.
Saí do Olho-d'Água (que não dá água agora e bebíamos excelente
água da chuva) eram oito horas, às nove e meia passei o rio Acarape, que
tinha bastante água e não deixou de causar-me receios. Tem no lugar em
que passamos, denominado Pedra Branca, seis a sete braças de largura, mas
no maior fundo apenas chegou água à barriga do cavalo. Do Acarape até
o Guaiúba: passamos por uma vereda, um caminho infernal de lamaçais
e fechado de toda a qualidade de paus e de espinhos, que era necessário
vir afastando e quebrando, e às vezes, por não haver desvio, apeando-me.
Felizmente o rio Baú corria quase ignorado pelo meio da mata pela pequena
quantidade d'água que tinha. O Guaiúba também nos deu fácil passagem.
Antes de chegar a Pacatuba encontramos um sujeito que vinha da capital
e deu-nos a notícia da morte do senador Alencar e de um seu sobrinho,
o padre Joaquim. Já perto nos apanhou um chuveiro, mas tivemos uma
casa para abrigar-nos. Cheguei a Pacatuba quase à uma hora e me venho
hospedar em casa do capitão Henrique Gonçalves da Justa, um antigo
conhecido.
[f. 333]
Pacatuba (diário)

Tenho de demorar-me aqui alguns dias para descansar o meu cavalo


que chegou muito estropiado e mandar lavar a minha rouparia. Aqui achei

269
preparadas 33 a 34 amostras de madeiras, que eu havia encomendado ao
Sr. capitão Justa e para o que lhe deixei 30$ [trinta mil-réis]. Achei mais
algumas plantas secas, mas muito mal conservadas; todavia algumas me
servem; não pedi a flor do [pau-d'Jarco-amarelo, a flor da rabugem, nem
a do pirauá, que havia encomendado ao Sr. Juvenal. Eu aborrecido, e não
muito bem de saúde, nada tenho feito em botânica. A minha vida tem sido
a leitura do poema do Milton, tradução do Leitão, e algumas outras obras
e de noite conversar em casa do Sr. Valente, onde passo alguns momentos
agradáveis.
No dia 9 (segunda-feira) fomos passar o dia em casa do Sr. Domingos
da Costa. Éramos eu, o Henrique da Justa, o irmão casado com a filha do
Sr. José da Costa, o Sr. Crisanto, o alferes Arcádio (subdelegado daqui,
excelente moço), um filho do Dr. Vitoriano e mais outras pessoas. Fomos
aí perfeitamente agasalhados e esplendidamente tratados como aqui se
pode ser. Os moços andaram a caçar marrecos no açude e lagoa, eu fiquei
conversando com o Costa. Havia na casa além da sua família mais algumas
pessoas de ambos os sexos. Achando-se gravemente enferma uma preta da
casa, rogaram-me para que passasse lá à noite, o que fiz ficando comigo
o Sr. capitão Justa. No dia 10 de manhã, depois do almoço, viemos para
Pacatuba; a distância do sítio é de légua e meia a duas. No dia 13 lá voltei
ainda de tarde a ver a doente, que achei melhor. Neste dia chegaram [f.
334] da cidade os Drs. Gonçalves Dias (que seguiu logo para a serra, sítio
do Sr. José da Costa) e Borja Castro, que ficou aqui conosco.
Ontem, 15 (domingo), fomos passar o dia na serra. Foram de
manhã cedo o Sr. Juvenal, o filho do Dr. Vitoriano, a Sra. D. Sabina e
suas duas sobrinhas (pausa).
Mais tarde subimos eu, o capitão Justa e o Dr. Borja Castro. Não
precisa dizer que fomos tratados à fidalga: mesa lauta e variada, numerosa
companhia de damas e cavalheiros. Estão aí o Sr. Justa e sua mulher, filha
do Sr. Costa, D. Maria Teófilo se pode dizer que se faz imperrinente de
obsequiosa e amável; suas filhas estavam também muito amáveis, fora do
que tínhamos visto quando lá íamos o ano passado; as duas moças filhas do
Sr. Dr. Teófilo são também amáveis e simpáticas. Fomos almoçar às onze
horas e o jantar acaba a noite e com chuva, que prometia ser abundante,
pela braveza do caminho e instâncias dos donos da casa. Passou-se a noite

270
na sala, fazendo-se jogos de prenda, de que eu já me lembrava apenas, e um
dos moços, sobrinho de D. Sabina, cantou algumas modinhas.
É preciso dizer que nos jogos de prenda só não entrou o Sr. Costa;
tudo o mais, velhos e moços, foi da súcia: houve abraços em profusão.
Armaram-se só para os homens de fora da família sete redes; a mim coube-
me uma magnífica e solitária em uma alcova. O subdelegado também
estava na festa.
Segunda-feira (hoje) de manhã tomou-se café simples cedo; e
descendo [f. 335] a pé as senhoras — a saber: D. Sabina, as duas sobrinhas
filhas do Dr. Teófilo, D. Maria Teófilo e sua filha D. Joana -, foi dirigir
que os homens descessem também a pé — estes éramos eu, Gonçalves Dias,
Borja Castro, o capitão Justa, o subdelegado, filho do Dr. Vitoriano, e outro
senhor, [de] cujo nome me não lembro. Os cavalos vieram puxados selados
pelos rapazes, e uma grande bandeja com um peru, galinhas assadas e mais
coisas trazia uma pardinha da casa.
Chegamos a Pacatuba, bastante suados e cansados, menos as moças,
que desciam correndo pelo monte abaixo, debaixo de galhofa. Fomos
acompanhar as senhoras até a casa do Dr. Sabino e ao sair mandou ele
convidar a todos para lá ir almoçar.
Eu chegando a casa despi-me, tirei a roupa, até ceroula, que estava
molhada; bebi alguns tragos de vinho de caju e continuei a suar muito.
Mudei outra vez roupa e deitei-me na rede, mas tendo de fazer a barba
tomei um copo d'água e com sede bebi metade, e comecei a barbear-me.
Em meio comecei a sentir-me indisposto, ameaçado de vertigem e
com vontade de ir ao vaso, o que fiz logo. Amanheci hoje mal do ventre e
em casa do Costa fui obrigado ao romper do dia a levantar-me com dores
no ventre e ir procurar meios de exonerar-me, o que não foi sem algum
incômodo, sendo ainda escuro e não querendo eu infestar o quarto onde
dormia. Sentado no vaso, coberto de suor, passou a vertigem, fiz porém [a]
obra e levantei-me, mudei outra vez de roupa, lancei-me na rede resolvido
a não ir almoçar em casa de D. Sabina; porém, tendo passado por um
sono, acordei melhor e entendi que não devia perder a patuscada. Eram
já onze horas quando me vesti e saí com o Henrique. Já lá achamos a sala
ocupada com uma mesa cheia de comida e todos os convivas preparados
para o festim; as moças tinham mudado os vestidos e estavam radiantes;

271
já lá estavam o Gonçalves Dias, o Borja, o subdelegado e outros. Eu comi
pouco [f. 336] mas extravagantemente para o meu estado: comi linguiça,
ovos estrelados, bebi vinho e duas xícaras de café com leite etc. etc., e não
tive novidade. Acabado o almoço conversou-se, vi uma menina doente e
nos dispersamos quase por uma hora.
Gonçalves Dias e Borja Castro partiram para a cidade às quatro
horas e meia. De tardinha, digo, ao anoitecer vesti-me e fui para a casa
do Valente, onde nos entretivemos alegremente, contando às meninas
a vida inocente e tranquila, santa dos conventos, mas por mais que me
esforçasse a dar-lhe um colorido agradável, teimavam sempre a preferir
a vida profana, menos uma delas, que teve a desgraça de ser cega; essa
alegre e resignada mostrava-se sem repugnância a esse viver.
Enfim vendo que minha eloquência era impotente, despedi-me e fui
para a casa da D. Sabina; eram mais de sete horas da noite e os achei todos
jantando com mais algumas outras pessoas, que haviam chegado da cidade.
Sentei-me à mesa mas só comi algum doce e bebi vinho e café; levantada
a mesa viemos todos para a sala e aí se renovaram os jogos do amigo, ou
amiga, mas sem prendas, e durante eles muito nos divertiu um Sr. Samico,
que veio da cidade: falador eterno e metido a gracioso; mas em que ele
mais brilhou foi em questões gramaticais, por exemplo não querendo que a
palavra “sou” fosse masculina. Gastou-se o tempo entre risadas e embaraços
das moças no correr do jogo, e era meia-noite quando nos separamos. Que
boa vida! Acabado o folguedo vêm, logo que me acho solitário, acabrunhar-
me a saudade e a tristeza.
Terça feira, 17: Amanheceu bom tempo, tendo ao romper do dia
caído alguns chuveiros. Aqui esteve de passagem o Santos Souza, que vem de
Acarape e vai para Maranguape pôr em ordem os seus trabalhos, descansar
um pouco e curar-se de uns intermitentes, que o atormentam desde muito.

[f. 337]
Pacatuba (diário)

Terça feira: De tardinha saí com o capitão Justa e fomos a Monguba


(S. João a Monguba) onde achamos só o Sr. Franklin e sua senhora, vestidos

272
de luto pela morte do senador Alencar, de quem são próximos parentes;
as meninas estão na cidade; aí achamos também o Sr alferes Arcádio,
subdelegado. Demoramo-nos até além das oito horas e voltamos todos três
para Pacatuba com bastante escuro, felizmente nem lamas nem águas, mas
muitos garranchos, principalmente da estrada geral para a fazenda — obra
de quase meia légua. A nossa conversa em Pacatuba versou sobre Jardim,
Crato etc. etc., sobre as revoluções do Ceará de 17 a 24, nas quais o Franklin
figurou e a mulher contou os horrores do Jardim, a morte de seu pai e vários
seus parentes; diz ela que foram mortos durante essas lutas sanguinolentas
24 de seus parentes, e roubados outros. Esses horrores e barbaridades hão
de provavelmente ser escritas pelas pessoas que atualmente se ocupam dessa
matéria, como são o Pompeu, o Juvenal, o Brígido, o Théberge etc. etc.
Conversamos sobre o Filgueiras, que foi padrinho de D. Brasilina.
O Franklin foi também na expedição do Caxias e o Filgueiras não gostava
dele por ser de ideais revolucionários. Contou-nos algumas circunstâncias
e fatos dessa expedição de que não me lembro, mas sobre as forças e
prestígio do Filgueiras asseverou e retificou muitos fatos de que eu já tinha
conhecimento e acrescentou outros: que muitas vezes gostava de tomar a
ponta duma corda e na outra mandar pegar quatro homens de força, e
ele, gritando que se tirassem, ia tomando a corda até tirá-la a si; que com
cinco se equilibraram as forças, ou mesmo o venciam; mas então ele, logo
que sentia força maior, soltava a corda. Em uma ocasião em que pregava
o padre não sei qual, convida[n]dos o povo a carregar pedra para as obras
da igreja, foi também carregar a sua e trouxe ao ombro uma de tal volume
e [f. 338] peso que, chegando ao largo da igreja e atirando-a ao chão, a
pedra se enterrou e de sorte que ninguém a pôde tombar senão o próprio
Filgueiras. Andou em serviço militar, creio que na Paraíba, acompanhado
de muita gente e onde se achou ele Franklin, e tendo de descansar e almoçar,
chegando abaixo duma grande árvore, convidou o Filgueiras a apear-se ali
à sombra, e estando embaixo da árvore que tinha um galho horizontal e
uma altura conveniente, Filgueiras indo a cavalo pegou com as duas mãos
no galho e suspendeu o cavalo entre as pernas, até ficar com os quatro pés
levantados do chão um palmo ou palmo e meio, dizendo rindo-se: “Como
está leve o meu cavalo, passou mal esta noite”. Quanto ao tirar o carro
do atoleiro diz que o ouviu ao próprio Filgueiras, que não fez mais do

273
que suspender a roda e meia do carro, mandando tocar os bois, que dum
arranco tiraram o carro da lama.
Quanto aos tiros de bacamarte, havia entre ele e os comandantes de
distritos um ajuste, ou sorte de telégrafo. O primeiro tiro era uma espécie
de alerta; e [entre] os comandados manda-se saber o que era, isto é, à boca
da noite; se à meia-noite disparava outro (ou dois) os comandantes eram
obrigados a dar cada um ou dois tiros para reunir os seus; e ao terceiro —
d'alva — sinal de reunião!
Quando se tratou da expedição de Caxias, na qual foi também o Sr.
Franklin, Filgueiras em cinco dias apresentou uns poucos de mil homens.
Conversamos depois a respeito do Pimentel e também o Sr. Franklin
asseverou a verdade de várias proezas das que me referi e acrescentou, ou
retificou, outras.
O precipitar-se pela escarpa do Araripe, diz que ele ia para o Exu e,
não querendo dar volta para descer pela ladeira, foi indo direito e quando
chegou à beira da serra meteu [f. 339] no cavalo, que recuava e precipitou-
se. O cavalo morreu e ele caindo, por cima dumas aroeiras, ficou muito
maltratado e perdeu um olho. Quanto a ser lançado no açude, foi ele mesmo
quem, tendo mandado amarrar os braços, passou-os por cima dos joelhos
mandando meter um pau pelas curvas e ele mesmo se precipitou no açude,
que indo ao fundo, lá firmando-se nos pés pôde lançar-se à superfície, e
que então outro sujeito [se] atirou n'água e o salvou. Quanto ao tiro que
mandou dar em si pelo moleque, conta-o desta sorte: carregou o bacamarte
com chumbo e mandou o moleque pôr-se no caminho com ele, e com
ordem de atirar para a primeira pessoa que passasse numa encruzilhada que
havia adiante, e ao alcance do tiro. Parte lá o moleque, montou a cavalo e
atravessou o caminho; o preto dispara o bacamarte que lhe matou o cavalo
e o chumbo em uma coxa. Isto mandou ele fazer para certificar-se de que
ninguém podia morrer sem ser a sua hora chegada. Quanto à punhada
sobre a faca de ponta, asseverou, por lhe contar pessoa que estava presente:
conversava-se estando um sujeito com uma faca e dizendo que ele podia dar
uma punhada numa faca de ponta; “Isto não é nada”, replicou Pimentel, “o
que quero é ver dar a punhada na ponta da faca”, e como nascesse daí uma
disputa ele, para sustentar opinião, tomou a faca, assentou o cabo na mesa
com a ponta para cima e com o punho fechado deu um murro de sorte que

274
a faca passou-lhe entre a palma e os dedos, deixando-os profundamente
[falta uma palavra] em todos.
Mais outras coisas de que me não lembro.
A respeito dos primeiros habitados do Jardim diz o Sr. Franklin que
as quatro primeiras casas que se fizeram na vila foram pelo padre Feijó, ele
se não lembra.
18, quarta-feira: Antes do almoço me vieram chamar para ver um
doente. Depois estive eu [f. 340] lendo ou escrevendo, de tarde saí a ver
uma mulher que levou um coice no peito e pela sua pobreza dei-lhe mil-
réis para comprar alguma coisa, como açúcar etc. Voltei para casa, mudei
de roupa e fui para a casa do Valente, onde estive até dez horas, e passei o
tempo bem entretidamente. De noite caiu alguma chuva.
Quinta-feira, 19: Amanheceu o dia chuvoso, com alegria do povo,
porque já os legumes precisavam de chuva.
Entre onze e meio-dia saí e fui visitar três doentes, voltando para casa
muito suado. Depois que cheguei a Pacatuba, quer faça sol ou chuva, tenho
sempre achado o tempo muito quente e suo muito continuadamente;
também não tenho passado bem de meu ventre e já tenho desmerecido e
perdido do que havia ganhado nas voltas pelo sertão. Em casa ocupei-me
em escrever, em desenhar e ler, à noite fui conversar à casa do Valente.
Sexta-feira, 20: Esta noite também caiu alguma chuva.
Estou-me aprontando para ir amanhã para a cidade.

[Pós-escrito]
Enquanto estive aqui em Pacatuba, digo, antes de ter chegado a
Pacatuba foi uma menina de sete a oito anos, filha do Sr. Crisanto, mordida
por uma pequena cascavel, mesmo no pátio da casa, estando elas folgando
sobre a calçada. Foi logo queimada a ferida e a menina nada sofreu. Há
muita cascavel aqui neste lugar. Em toda a minha viagem pelo sertão
não tive ocasião de encontrar uma serpente de qualquer natureza, exceto
em Aracati, onde vi uma cascavel morta, na ilha dos Veados. No Crato
dizem que há muita cobra, mas não tive aí ocasião de encontrar nem uma
(Fortaleza, 20 de junho de 1860).

275
Estada em Fortaleza
* 23 de maio a 27 de junho de 1860
[1-28,8,8]

[f. 341]

Fortaleza, 23 de maio de 1860

Depois que aqui cheguei tenho feito pouco ou quase nada em


botânica. As chuvas e o grande e continuado calor, que em mim se faz sentir
mais pelo copioso suor, são em parte causa disso.
Também o bom do Barreto tem [se] dado em preguiçoso e apenas
me tem colhido algumas gramíneas e amostras de algumas árvores ou
madeiras de construção. Como estou esperando a minha licença para ir
ao Rio e também por isso que não meto mãos à obra mais decididamente,
ocupo-me principalmente em ler livros que me empresta o Dr. Ratisbona;
já li os ensaios críticos ou retratos literários de Gustave Planche,
dissertações filosóficas de Jouffroy — Espiritualismo e materialismo, Sono,
Destino da humanidade etc. etc. — e agora estou as Memórias de literatura
contemporânea, de Lopes de Mendonça. Variação!
As tardes [e] as noites emprego-as em visitas e conversações familiares,
vadiação!
Tem continuado o inverno, ainda ontem choveu, o calor tem se
tornado mais moderado.
Na casa em que estou os mosquitos pernilongos me atormentam: é a
primeira vez que isto me aconteceu no Ceará. Hoje apanhei um carrapatinho
que me passeava pela mão estando eu lendo na rede, e foi agora que achei
a explicação de umas dentadas que sofria pelo corpo, deixando-me [f.
342] babuas [sic], e que não podia atribuir a dentadas de mosquitos; estes
tratantes vêm seguramente na roupa, que vem do rio.
Este morreu!

276
Ontem à noite, em casa do Manoel Bezerra, conversou ele comigo
bastante sobre negócios do Ceará; este homem, que tem hoje 55 anos, é
muito noticioso e conversa bem, tem tomado parte ativa nos sucessos de sua
terra, militou contra a revolta de Pinto Madeira em 32. Contou-me tanta
coisa que me não é possível tê-las agora de lembrança. Sobre a morte do
padre Inácio e seu irmão referiu o seguinte: há nos Crateús uma família de
Moreiras, aparentada com a do Francisco Fernandes Vieira, hoje visconde
do Icó; gente tranquila, diz o Bezerra, e que era ali calcada pelos Feitosas
e Mourões daquele lugar (Crateús). Estes mataram dois de seus parentes,
homens de alguma representação, então os Moteiras, que até então sofreram
pacientes suas prepotências, julgaram dever vingar-se, matando-os também;
e como as suas suspeitas recaíssem sobre o padre Inácio, deram queixa dele
e tiraram precatória para o prender (provavelmente, a coisa assim se passou,
com a intenção de o matarem logo que o encontrassem). E com efeito o
padre Inácio, um irmão, um vaqueiro e um menino se puseram em fuga e
os Moteiras se lançaram atrás armados de bacamartes. Certifica o Bezerra
que se refizeram de animais em uma fazenda do visconde, mas que isso
não prova cumplicidade, pois [f. 343] é costume do sertão, principalmente
sendo ainda a parentes. Enfim alcançaram e mataram o padre Inácio,
o irmão, o vaqueiro etc. Os Feitosas levantaram clamor atribuindo este
atentado à conivência do visconde.
Sobre o visconde, diz o Bezerra que era filho de um sujeito que
não tinha (no lugar?) nem importância, nem riqueza, mas sendo homem
inteligente e de grande atividade (fez num ano três viagens a Pernambuco
por terra, com negócio de gados) soube acumular uma grande fortuna,
sendo hoje o fazendeiro mais opulento do Ceará. É isto que tem irritado
os Feitosas € os feito seus inimigos, porque, sendo a família mais antiga
dos sertões e a de mais riqueza, não suportavam nem querem suportar
superioridade alguma e daí a guerra viva em que estão com o visconde
(a qual o Dr. Pompeu, diz o Bezerra, tem alentado e entretido com o seu
jornal).
Os Feitosas dominam e têm sua grande influência nos Inhamuns,
no Crateús e no Ipu, mas principalmente na primeira, que é como seu
feudo. Estes Feitosas, com os quais se têm afamiliado os Mourões e os Vales
foram sempre potentados e quase donos exclusivos dessas comarcas; eram

277
manhosos e não tinham partido certo, seguiam sempre a política dominante,
à qual davam sempre o seu apoio em toda a votação de seus domínios.
Assim se conservavam sempre nas posições e tinham em suas mãos toda
a administração, principalmente policial. Aquilo era uma república (diz
o Bezerra) [f. 344] misteriosa, o que ali se fazia não transpirava fora nem
chegava ao conhecimento do governo provincial. Eles matavam, surravam
a seu bel-prazer. Estes homens dominavam pelo prestígio do seu nome, pela
sua riqueza e pelo terror: é gente bruta e nunca manda educar seus filhos;
assim não [há] homem algum distinto entre eles. Ao contrário, o visconde
do Icó tem cinco filhos formados, é homem tranquilo e respeitável, nunca
foi assassino, acumulou fortuna granjeando-a, enquanto os Feitosas se
ocupavam de matar e de surrar.
Diz o Bezerra que eles viviam antes bem e sem se ofenderem; mas que,
sendo Manoel Felizardo presidente e tendo de nomear um comandante da
Guarda Nacional, havendo dois Feitosas e o visconde com patentes iguais,
ele escolheu o visconde, daí as iras. E como o visconde (então Francisco
Fernandes Vieira) sempre apoiou o Partido Conservador, os Feitosas se
tornaram adversários, fazendo-se chimangos ou liberais.
A respeito do Dr. Pompeu, diz o Bezerra que tem sido muito ingrato
porque, sendo um moço pobre, foi um parente do visconde que o mandou
estudar; que saído dos estudos era caranguejo, depois pertencia ao partido
do equilíbrio e hoje é chimango.
Sobre a família Alencar disse-nos muita coisa: que em 17, tendo esta
família se declarado pela revolta de Pernambuco, donde tinham vindo três
emissários, dos quais o padre Alencar era um, foram todos presos; um [...]

[f. 345]
Fortaleza, maio de 1860

[...] em Aracati, outro em Sobral (este ainda vive aqui) e o Alencar no


Crato; foi o Filgueiras que prendeu não só o Alencar mas toda a sua família,
incluindo a própria mãe, e os remete todos para aqui e daqui fora[m] para
a Bahia.

278
Que em 24 foram condenados e executados aqui pela Comissão
Militar cinco pessoas, entre aquelas eram um irmão do Paula Pessoa e
um mineiro que aqui entrou (chamado por alcunha Meu Senhorzinho)
e que servia não sei se de secretário, mas que seu maior crime foi o de
ter escrito um ofício, assinado pelo Filgueiras, em que este prometia ao
governo rebelde de Pernambuco o auxílio de uns poucos de mil homens,
e sendo especial recomendação do Rio de Janeiro contra o escrevente
sem se importarem com o assinante! As execuções se faziam no largo que
fica entre o Liceu atual e o Quartel, e onde também mora atualmente
o Bezerra; diz ele que era junto ao paiol, que ainda ali existe quase
arruinado.
Diz que Tristão era um homem ativo e inteligente e de bonita figura,
mas que era magrinho; comparou-o com o tenente Lassance, membro
adjunto da comissão. Que a este lorde Cochrane lhe quis dar escápula e lhe
mandar comunicar isso por um oficial (cujo nome me não lembro); mas
que Tristão ia-se sempre afastando a reunir-se com Filgueiras e iludindo o
oficial, dando-lhe ponto de espera, mas nem esperando-o. À proclamação
do lorde Cochrane, dando perdão aos implicados e à revolta, [f. 346] as
forças da rebelião se desmoralizaram, daí a derrota de Sta. Rosa. O Filgueiras
indo para o Rio morre de sezões em S. Romão.
O Alencar, indo fugitivo, sozinho e à ventura, levava algum dinheiro
em ouro. Um soldado da legalidade, que pressentiu, o foi seguindo e logo
que o encontrou dispunha-se a matá-lo quando o Alencar, lançando[-se]
de joelhos, com as mãos postas e mostrando-lhe a coroa, suplicava que o
não matasse e que se era pelo dinheiro que levava que lho entregava e que
o levasse preso ao seu comandante, e sendo apresentado ao comandante e
contando-lhe o caso, este mandou restituir o dinheiro.
Diz que Alencar foi feito senador pelo Partido do Chimango, com
quem se desonrou depois.
Que o morticínio do Jardim foi pelos cabras.
Que a sua desavença com a família dos Castros, que queria dominar,
foi por ele não abraçar o seu partido, daí se seguiu a guerra desabrida que
lhe fazem, atribuindo-lhe a morte do Facundo e a um seu irmão natural,
o qual antes em defesa própria havia matado um homem. E que é mais:
o próprio Dr. José Lourenço disse várias vezes, à vista de pessoas amigas

279
ou parentes dele, Bezerra, que estava persuadido [de] que não foi ele o
matador de Facundo, e no entanto não cessa de atormentar, tendo-o como
assassino. O Facundo foi morto por motivo particular e não por princípios
políticos, mas os seus parentes aproveitaram-se dessa morte para perseguir
aos seus contrários, fazendo cair [f. 347] sobre todo o Partido Caranguejo
a imputação desse assassinato, em 24 de maio de 1860.

Ontem, 25: Conversando com o Dr. Ratisbona e lembrando-lhe


quanto era conveniente reunir as tradições das épocas de 17-24 e 32 do
Ceará, aproveitando para isso as informações de testemunhas presenciais
ou contemporâneas dos poucos que ainda existem etc. etc. Dentre várias
coisas disse ele que Alencar é natural que tivesse parte na morte de Pinto
Madeira, que era melhor tê-lo mandado assassinar sem se fazer aquela farsa
de julgamento, pois que Pinto Madeira cometeu atos de barbaridade e
mortes etc. contra a família Alencar.
Disse que Filgueiras se tinha deixado seduzir por Alencar e adotara a
causa da Revolta de 17, e que fora decidido disso pelo avô dele, Ratisbona,
os quais ambos vindo sobre o Crato prenderam os complicados; que no ato
da prisão, Alencar, armado duma faca, quis ferir um oficial, que desviou o
golpe ferindo-o na mão com a sua espada; que a prisão da família e da mãe
(D. Bárbara) do Alencar fora por ordem do governador Sampaio.
26 de maio: Depois do almoço montei a cavalo e fui até a lagoa
Parangabussu [Porangabussu]. Colhi com flor e fruta a mapotácea que
chamam aqui marta. Colhi com flor e fruta o tentinho (Abrus precatorios),
colhi flor e fruta verde do guajeru, colhi for [f 348] duma Byronnina, que
creio ser a arbórea, colhi ramos com bagens duma leguminosa.
Echeporpermen que chamam aqui candeia e cujo cerne é dum
amarelo-dourado, como o vinhático. Colhi com flor uns pendões duma
linda gramínea. Esta com fruta a Tetracera e com flor a capota e uma linda
Centrosema.
28: Tenho estudado as plantas que colhi há três dias e estou lendo as
Harmonias econômicas de Bastiat, que me emprestou o Dr. Ratisbona.
É notável no Ceará como o povo é comedido e casto em sua
linguagem. Aqui não se ouvem como no Rio a cada passo palavras grosseiras

280
e desonestas; ainda quando brigam, empregam muito as palavras “safado”,
“danado”, “desgraçado”, poucas vezes se ouve dizer “diabo” aos meninos, os
moleques se descompóem e dizem raramente f. da p. Mas o que é curioso é
que usam da palavra “corno” muito sem cerimônia: não é raro ouvir chamar
o outro corno. Ainda antes de ontem D. Francisca Bezerra, estando com
sua filhinha recém-nascida no colo, e eu presente, disse para a menina,
rindo-se: “Esta corninha!”.
Ontem, 27, domingo: Houve aqui duas festas, em S. Bernardo e
na Prainha, com imperador do Espírito Santo. Eram foguetes, repiques
e músicas por toda a parte e gente endomingada. Eu porém não fui a
nenhuma igreja pelo muito povo que havia e calor. De noite, voltado de
casa do Bezerra depois das nove horas, ouvi a música por cada canto: eram
toques de piano e cantorias, era música militar pelas ruas e era uma bela
noite de luar.
[f. 349]

Fortaleza, 31 de maio de 1860

Há três dias chegou aqui a notícia de haver o Dr. Gabaglia sido


roubado por um de seus cargueiros, adiante de Imperatriz; nós ainda não
temos certeza disso. Será ainda uma dessas invenções, que não sei com
que fim se espalham a nosso respeito?
Há alguns dias que não chovia e o tempo se havia tornado um pouco
mais fresco: ontem de tarde porém, tendo sido o dia belo, sentiu-se calor,
e estando eu em casa do Bezerra, onde também se achavam a família do
assistente, o Viana, da Tesouraria, e o Gustavo, eram oito horas e meia
escureceu de repente a noite, que era de luar, as moças fugiram logo e caiu
uma grossa pancada d'água; apenas estiou eu safei-me logo e o Gustavo, e
depois de chegar a casa continuou a chuva em grossas pancadas, por toda a
noite até amanhecer o dia de hoje, 31, e são oito horas e inda chove.
Ontem de manhã indo eu consultar alguns livros ao Liceu, assisti à
demolição do pequeno e antigo paiol da pólvora, que estava num canto da
grande praça que tem dum lado o Liceu, em frente o fundo do Quartel, no
fundo casas (onde é a do Bezerra), e em frente o mar — a fortaleza fica aí
perto e junta ao Quartel. Junto a esse paiol, e pelo fundo, foram arcabuzados

281
cinco vítimas da Revolução de 24. De tarde fui à Lagoa Funda, onde estão
Capanema, Dias e Coutinho, e vim de lá com Capanema já noite.
Junho
1º: Foi este dia belo e não muito quente. A noite de lindo luar, mas
para a madrugada entrou a chover e continuou até amanhecer o dia.
2: Coberto e chuvoso até às cinco horas da tarde. A noite [£. 350]
porém se pôs boa e de luar. Baile da sociedade, reunião familiar, a que fui
convidado a ir: bonita reunião, canto e dança até depois das duas horas
da madrugada e eu me retirei depois das dez, sem tomar parte no chá e
refrescos.
Dia 3: Fez bom tempo. Fiz alguns estudos e li os jornais do Comércio,
que vieram pelo Tocantins. Esperava por este vapor a licença que pedia para
ir ao Rio e não me veio, o que me desgostou bastante; estava resolvido ainda
assim a ir pelo Tocantins, mas enfim resolvi-me a esperar mais uns 15 dias
a ver se pelo próximo vapor vem a licença, e quando não venha não tenho
remédio senão ir por ele e sem ela.
Dia 4: Fez hoje 14 anos a filha mais moça do Bezerra e fui assistir
ao sarau, que estava asseadinho, farto e bonitinho; houve canto e dança
até além de uma hora da noite; e eu assisti até ser o último a sair porque,
tendo acompanhado D. Francisca e Guilhermina, fora obrigado a esperar
por elas; mas tendo depois da meia-noite escurecido o tempo e caído grossa
chuva, D. Francisca (filha do Bezerra), que esta ainda anda de resguardo
desse parto e sofrendo vários incômodos, ficou em casa dos pais. Voltei pois
sozinho e eram duas horas da noite quando me chamaram para cear café
com leite. Em casa do Bezerra não comi nada, tomei chá e uns bolos etc.
etc.
[f. 351) 5 e 6: Foram dias sem chuva e sem novidades.
7: Amanheceu lindo dia. Ontem à noite estive em casa do Sr. Franklin
de Lima e conversando sobre as revoluções do Ceará de 17 a 32 contou-
nos ele horrores e como escapou perseguido pelos cabras: havia ele andado
fugitivo, dormido em casa da mãe do padre Carlos, atual vigário da capital,
e de manhã tendo almoçado no mato com mais três companheiros. Seriam
dez horas da manhã quando, sendo denunciados por um preto, foram
acometidos, dando os cabras uma descarga de espingarda, mas que os não
feriu; ele e mais outro puderam fugir, mas outro companheiro desanimou e

282
ficou no lugar com outro, que era menino, e foram apanhados. O menino
foi testemunha dos martírios com que acabaram a facadas o pobre homem
que, depois de mutilado no meio de charcos, expirou. Não mataram o
rapaz, que o levaram consigo para o Jardim, fazendo-o passar por sobrinho
de um dos assassinos e que depois fugiu deles no Jardim. O Franklin e outro
companheiro escaparam. Ele atribui esta mortandade a Pinto Madeira, que
chama monstro; é no entanto necessário dar algum desconto às narrações
apaixonadas de homens que passaram por tais trancos. Ele (Franklin)
vangloriava-se de ter sempre sido patriota (os adversários eram realistas ou
corcundas).
É evidente que para ele os patriotas tinham sempre razão e eram
inocentes; os outros, de partido contrário, monstros e malvados. É também
notável o rancor que ele [f. 352] mostra por tudo o que é Rei e Soberano;
este rancor o tem comunicado à família e um de seus filhos é tão animado
destes sentimentos, que até se mostra irritado contra o pontífice por ser vei
de Roma!! República é o sonho dourado desta gente; isto é família A.
À respeito de sua província quantos desmandos e diabruras aqui se
praticam, tudo a mandado pela corte e pelo próprio I. [imperador]!
Hoje foi a festa de Corpus Christi e procissão. Fomos à procissão
somente eu e Capanema.
Eu e o presidente carregávamos as varas dianteiras do pálio durante
toda a procissão. Cheguei a casa muito suado (ia de farda grande) e com os
braços esmaecidos. Mudei de roupa e fui visitar D. Francisca. Daí para a
casa do Bezerra, onde estive até nove horas da noite.
8: Amanheceu chovendo e continuou até às sete horas; o resto do dia
foi bom. Amanheci constipado, com dores nos braços, ligeira bronquite,
resultado da festa de ontem. O Dr. Gonçalves Dias se acha adoentado;
tomou hoje um vomitório.
9: Fez bom tempo. Estou ainda incomodado. Hoje comecei a ler a
Profissão da fé do século 19, por Eugene Polletan, que me emprestou o Dr.
Ratisbona.
10: Amanheci ainda incomodado. Fui chamado de manhá cedo para
vero Dr. Dias, que se apresentou com um tumor sobre o escroto esquerdo,
que ainda não pude classificar e que me tem dado bastante cuidado. O Sr.
José Lourenço também o viu e não soube reconhecê-lo.

283
[f. 353]
Fortaleza, 12 de junho de 1860
O dia de ontem como o de hoje têm sido belos; as manhãs assaz
frescas, mas as tardes sempre quentes. Hoje recebi uma carta de Manoel
datada de Baturité, onde se acha, tendo-se adiantado do Lagos. Também
soube pelo capitão Oliveira que o Gabaglia se achava no Sobral, donde
tinha escrito, e que chegara sem novidade, sendo portanto ainda mentira o
que se disse do roubo. O Dr. Gonçalves Dias vai melhor.
13: Santo Antônio. Fez bom tempo; continuo ainda com o meu
defluxo e muita tosse sem expectoração. Hoje teve o Sr. Franklin de Lima
um ataque de hemopatia, mas sem consequência, estou tratando dela. D.
Francisca Bezerra vai melhor, assim como Gonçalves Dias. Anteontem
soube pelo Bezerra que era falecido no Icó o Sr. major Firmino (o do
açude).
14: Esta madrugada ou ao amanhecer caiu alguma chuva e agora,
sete horas, está o dia lindo. Ontem me disse também o Dr. Coutinho
que Manoel tivera no dia 7 em Baturité uma congestão e que tivera uma
síncope, mas ele escrevendo-me no mesmo dia nada me disse. Ontem, tendo
passado mal de meu defluxo e tossido muito na noite anterior, achando-
me em casa do Sr. Franklin e a tosse importunando-me a mim, e a gente
de casa (D. Liberalina) fazendo apologia do mel de jandaíra, fez-me tomar
umas colheres eram oito horas da noite. Pareceu-nos logo sofrer menos,
passei a noite tossindo menos e de manhã (hoje) lançando alguns grumes
de catarro cozido, do fundo dos brônquios, sendo antes a [f. 354] tosse
seca, ou lançando apenas algum catarro fluido. Tenho passado o dia de hoje
melhor, mas de manhã fui à bacia fazendo com o efeito de um purgante
brando. Às dez horas da noite tomei uma colher.
15: Passei muito melhor esta noite, apenas tossi. Amanheceu belo
dia. Tendo ontem à noite havido sinais de chuva. A tarde e noite foram um
pouco quentes e ventosas.
16: Amanheceu turva, ventosa; das nove às dez horas caiu alguma
chuva. Eu passei melhor esta noite do meu defluxo e me acho quase
restabelecido. Ontem de tarde senti ligeira dor de garganta; estando em casa
do Sr. Franklin de Lima a menina mais moça apresentou-se queixando-se
de dor de garganta. Reina atualmente a angina nesta cidade, assim como

284
febre intermitente e defluxos. Agora acabo de receber uma bandejinha com
oito magníficas atas que me mandou D. Francisca Bezerra em nome de
uma filha, Filomena. Tarde e noite um pouco quentes.
17: Amanheceu bom dia. Estando lendo Polletan (Profissão de fé do
século 19), achei um pedaço sobre a religião da Índia, que julguei dever
transcrever aqui por extraído:
A Índia criou os códigos e os dogmas; ou antes confundiu os códigos
e os dogmas na Teologia; então a Religião era a Ciência; e o Sacerdote
depositário dela explicou o céu à terra, e falava inspirado. Ora eis aqui
a primeira Legislação, ou para melhor dizer a primeira organização de
trabalho. O sacerdote, pelo invencível domínio da inteligência sobre a
ignorância, tomou o título de confidente de Deus, Legislador sagrado da
divindade, a promulgou [f. 355] ao pé do Himalaia.
Quando Brahma, deus gerador, criou o homem, tirou-o da sua boca
Brahma e lhe deu por esposa a escritura santa das Vedas.
Brahma meditava a escritura, e para proteger sua meditação na
solidão, contra a cólera dos leões, tirou de seu braço direito Khatrija, o
homem do punhal — e do seu braço esquerdo Khatryami para mulher deste
Khatrija; fazendo sentinela ao lado de Brahma, teria morrido de fome se
Brahma não tirasse de sua coxa direita Vayssia, o homem da agricultura,
e da sua coxa esquerda Vayssiani para sua mulher; mas, o trabalho deste
não sendo suficiente, Brahma tirou de seu pé direito Soudra, o homem do
serviço, dando-lhe por mulher Soudrani.
Cada uma destas castas corresponde a uma ordem de trabalho:
O Brahma pensa
O Kharrya peleja
O Vayssia lavra
O Soudra serve
Os três últimos somente têm companheira.
Brahma se tem a origem mística de escritura.
A Índia devia ser a primeira pátria do Dualismo: o Deus Criador e o
Deus Destrutor, o nascimento Brahma, a morte Siva [Xiva], duração Vichnou
[Vixnu], [£. 356] que formam o Triunvirato divino da Teogonia indiana.
Quando a civilização, armada da indústria contra a natureza,
quis introduzir na religião, formulando em dogmas, suas novas ideias e

285
conhecimentos, criou a Teoria das encarnações, foi Vichnou [Vixnu] — deus
do primeiro progresso — que ela submeteu a oito Avatares ou metamorfoses
da divindade.
Hoje chegou do Rio o vapor, trouxe-me cartas, mas nada de licença!
O que muito me angustiou pondo-me na necessidade de ir ao Rio sem ela.
De tarde fez bastante calor, o céu estava anuviado e das seis às nove
horas da noite caiu alguma chuva.
18: Passei mal a noite, acordei suado, aborrecido e triste. De manhã
fui à casa do Gonçalves Dias, isto é, do Dr. Ratisbona. Estou começando
a aprontar-me para a viagem. Aqui estava o padre Sucupira e conversando
sobre plantas medicinais disse-me que há uma batata, a que chamam bazata-
de-teiú, batata-de-cobra, e nos Inhamuns cabeça-de-negro, e também taiuiá
(será teiú-iá), que é planta trepadeira, da qual mandou algumas batatas
plantadas ao Dr. Lacerda no Maranhão e que este mandou dizer que já
havia crescido e florescido e que era planta de macho e fêmea.
Também mandou raiz da angélica-brava ao mesmo doutor por
pedido dele, que lhe achou virtudes e lhe pediu que lhe mandasse ramos
com flor e fruta [...]
[f. 357]
Fortaleza, 18 de junho de 1860
[...] para concluir o estudo da planta; mas quando póde obter isto e
mandar, já o Lacerda era morto.
19: Amanheceu bom tempo; passei esta noite melhor e estou mais
animado. De manhã fui à casa do Dr. Ratisbona, onde está o Dr. Gonçalves
Dias e aí, conversando-se sobre coisas do Ceará, o Ratisbona, que sabe
miudamente os sucessos presentes e passados do país e que me parece
imparcial e de bom critério, disse-nos que assistiu ao julgamento e execução
do Pinto Madeira, tendo então nove anos de idade, que essa reunião do júri
no Crato foi a primeira que aí se fez, que ele foi uma farsa escandalosa e a
execução do homem [foi] um verdadeiro assassinato jurídico.
Era presidente o senador Alencar e, se não há provas escritas e
autênticas de que tudo se fez por sua ordem ou consentimento, são todavia
as circunstâncias deste fato claramente deponentes contra ele.
Pinto Madeira havia mandado assassinar um parente de Alencar,

286
por ser patriota, e mais dois prisioneiros ou mandou ou aconselhou que
matassem, mas nunca matou ninguém por motivos pessoais. Pinto Madeira
era afilhado e foi criado em casa de seu avô, ou bisavô.
Quanto ao padre denominado Benze-cacetes, foi uma calúnia dos
liberais, nem ele benzia cacetes.
De noite, em casa do Sr. Franklin de Lima, que foi [f. 358] envolvido
nas desordens de 24 como liberal, enlaçado na família [dos] Alencares e
perseguido e muitas vezes assaltado, escapando por milagre, conversou-se
muito sobre esses acontecimentos. Estava presente o Sr. Neutel (filho do
Tristão Gonçalves de Alencar Araripe, morto em Santa Rosa) com sua família.
Contou o Sr. Franklin como o padre Alencar, andando fugitivo, com ele e
outros, foi preso pelos cabras e como um chefe dos cabras o livrou da morte
que lhe preparavam pelos sertões do rio de São Francisco. Nesta ocasião foi
morto um sobrinho do padre e ele (Franklin) e outro deveram a sua salvação
ao fugirem pelos matos. Diz o Sr. Franklin que ele tem a sua vida escrita.
20: Logo ao romper do dia começou a chover; são oito horas e ainda
chove. O dia de ontem e esta noite foram quentes. Eu me acho melhor.
Voltando da casa do Dr. Ratisbona, de quando menos esperava achei
em casa a minha licença de dois meses para ir ao Rio, o que muito me
tranquilizou.
A Mellia azedarach está florando; aqui lhe chamam também
ceisamerum [sic].
21: Amanheceu bom tempo. Eu estou sem novidade e aprontando-
me para a viagem.
“Besteza, que besteja?”, dizia ontem à noite uma espevitada, como
dizendo “que asneira?”.
“Pereba, feridinha, tenho aqui uma pereba”, dizia-me inda agora um
sujeito que veio receitar-se.
22: Fez bom tempo. Vou bem, arranjos devagar, despedidas, leitura
do Polletan.
[f. 359] 23: Amanheceu bom tempo. Vou bem. Depois do almoço
fui ao Palácio e daí à Tesouraria da província receber dinheiro. Às duas
horas montei a cavalo para ir à Lagoa Funda (hoje dá um jantar aos amigos
o Dr. Coutinho, por estarmos na véspera de S. João, santo deste nome).
Fui à casa do Dr. Ratisbona e aí esperamos um pouco; achei já aí o Dr.

287
E. Bandeira de Melo, habilitado na Faculdade de Pernambuco e filho do
Bandeira de Melo. Pouco depois chegou o Dr. Pompeu e todos partimos
para aquele lugar, onde estavam o Dr. Capanema, o Dr. Gonçalves Dias,
o Dr. Coutinho e mais o Sr. Numa Pompílio — cearense muito hábil em
vários ofícios, principalmente de ourives.
Achei aí algumas plantas colhidas pelo Dr. Capanema: ramos
de copaífera com frutas, parecem-me da mesma espécie que colhemos
em Aracati, fruto pequeno, arilo amarelo etc.; uma Utricularia de flores
amarelas; uma linda minusácea que nasce pelos campos etc. etc.
Depois do jantar balançamo-nos em redes na varanda da casa do
Lazareto e chalaçou-se, contaram-se anedotas etc. etc. até cinco horas e
meia e montamos a cavalo; chegamos à cidade às ave-marias.
Eu tinha convite para ir ao sarau do Dr. Justa, para ouvir cantar as
irmãs, mas chegando cansado não tive ânimo de me vestir de casaca. Vesti-me
pouco mais à ligeira, fui para a casa do Sr. Franklin de Lima e achei sentada
à porta a senhora cunhada dele; ele e a Maria estavam em Palácio. [f. 360]
D. Liberalina estava em sua alcova incomodada, a iaiá D. Aninha brincando
junto às fogueiras acendidas na rua e atirando fogos da China com os moços
duma casa vizinha (D. Brasilina estava na Monguba). Sentei-me também fora
da porta e aí estava por espaço de uma hora vendo os brinquedos das meninas
e lembrando-me do Rio e casa do mano João, cheio de saudade; agradeci à
senhorao presente que me fez dum bolo inglês, um prato de excelente canjica
(papas de milho) e algumas atas, e fui para casa, passando pelo meio de uma
tormenta de fogos, foguetes, bombas etc. etc. e grande algazarra.
24: Amanheceu bom tempo. Depois do almoço saí a fazer despedidas:
fui à casa do vigário Alencar, dos Mendes (fidalgos da serra), dos Vianas, do
major João Crisóstomo, do Varonil, do tenente Pedreira, do secretário do
governo, do juiz municipal, do Dr. José Lourenço, do Dr. Ribeiro, do Dr.
juiz de Direito, do Neutel. Voltei para casa depois de uma hora, e bastante
suado, no entanto estamos no maior frio do Ceará.
Às ave-marias saí, fui despedir-me do Gouveia, coronel português,
do Dr. Medeiros, de D. Vicência; fui daí à casa de D. Francisca Bezerra
e com ela para casa do pai, Manoel Bezerra, onde achamos o Luiz Viana
com sua filha e as filhas do assistente. Lá estivemos até dez horas e voltei
acompanhando D. Francisca à sua casa.

288
25: Esta noite caiu alguma chuva; mas agora, sete horas, faz sol e
bom tempo. Depois do almoço fui à casa do Dr. Ratisbona, onde achei o
Dr. Campos Mello, companheiro de viagem até Pernambuco, [...]
[f. 361]
Fortaleza, 25 de junho de 1860
[...] o Dr. Capanema e o Dr. Gonçalves Dias; aí conferimos sobre
negócios da comissão, daí irmos a casa buscar dinheiro e fui tomar passagem
para o Rio na agência da Companhia Brasileira do Vapor, o que me custou
160$000 [centro e sessenta mil-réis], não querendo eu aproveitar-me de
passagem do Estado, por ser a minha viagem por negócio particular. Paguei
mais 4$000 [quatro mil-réis] pelos dois caixotes, um com queijos e outro
com garrafa de vinho de caju. Daí fui ao Liceu e daí para casa, onde cheguei
bastante suado, tendo apanhado alguns chuviscos; ao entrar em casa recebi
uma bandeja com atas que me mandou a senhora do capitão Oliveira.
São João e Santo Antônio são muito festejados no Ceará; alguns dias
antes os rapazes não cessam de atirar bombas e foguetórios da China, e na
véspera é uma balbúrdia de foguetes, bombas lançadas na rua e fogos da
China, pistolas e mesmo buscapés; mas estes são raros na capital e muito
usados no Crato. Ás fogueiras são sempre ornadas com um ramo de árvore
e quase sempre com um pé de mamoeiro cheio de fruta.
Há muitas reuniões, onde se canta, toca, dança, tiram-se sortes e
ceia-se. É uma verdadeira festança popular. No dia 23, quando íamos
para a Lagoa Funda, no sítio (chácara) [f. 362] do Pacheco, à margem
do Jacarecanga, estava preparada grande festa, com barracões cobertos de
toldos, tudo embandeirado, com banda de música e por baixo de cajueiros
e magníficas goiabeiras estavam armadas algumas redes muito cecias [sic],
nas quais se balançam alegres e falantes muitas moças e meninas cortejadas
por vários cavalheiros, que passeavam entre elas. Como este quadro me
encheu de saudades!
À noite fui-me despedir do Dr. Pontes e do Gustavo, visitei o Gurgel
em casa de D. Vicência, fui ao Franklin, que saía com a família a fazer
visitas, fui para a casa do Bezerra.
26: Choveu de noite e amanheceu o dia anuviado. Ao meio-dia saí
a fazer algumas despedidas e fui à casa do Sr. Franklin de Lima, à casa da
senhora dona sua parenta (cuja filha curei duma feridinha e me mandou

289
um prato de açúcar, alfenins cheios de confeitos), à casa do Dr. Pompeu, à
casa do Dr. Ratisbona, à casa do Dr. Justa, que é companheiro de viagem,
e à casa do comendador Machado. Voltei para casa fatigado e muito suado.
De tardinha fui ao Palácio e ao chefe de polícia, onde deixei bilhetes;
fui à casa do capitão Oliveira, de D. Francisca Bezerra, das Sras. Guerras,
dos Fidélis, do inspetor da Tesouraria, à botica do Teodorico e à que foi
do Ferreira, à casa [f. 363] do Manoel Bezerra, do major assistente e à do
Franklin de Lima, para onde se mudou hoje, e enfim à de D. Vicência e
do Dr. Ratisbona para tratarmos com o Gonçalves Dias sobre negócios da
comissão. Vim para casa depois das nove horas da noite. Seriam sete horas
quando voltei ao Palácio para despedir-me do presidente.
27: Choveu alguma coisa de noite e amanheceu chovendo e chove
ainda; são sete horas.
Chega o vapor.

290
Viagem do Ceará ao Rio de Janeiro
no vapor Cruzeiro do Sul
27 de junho a 7 de julho de 1860
[1-28,8,9]

[f. 364]

(Junho, dia 27)

Viagem do Ceará ao Rio de Janeiro no vapor Cruzeiro do Sul


Embarcamos depois do meio-dia no escaler da alfândega, por
obséquio do Sr. inspetor da alfândega Vitoriano Borges, e para o escaler
entramos carregados por quatro homens numa cadeira sustentada por dois
varais, entrando os homens no mar até lhes dar água pelos peitos. Às quatro
horas e meia largou o vapor do porto da Fortaleza, no dia 27 de junho de
1860. Eu ia ao Rio com dois meses de licença.
28: Amanhecemos avistando terra baixa, ao longe.
Antes do meio-dia o vapor fundeou, fora do porto do Rio Grande e
mandou um escaler à cidade. Tínhamos à vista o recife e o farol da cidade,
avistávamos alguns edifícios; seguimos.
À uma hora passamos por Touros; viam-se no recife, a diferentes
distâncias, três navios encravados e perdidos, um deles grande, creio que era
inglês. Às três horas passamos o cabo de S. Roque.
29: Amanhecemos na barra da Paraíba; forte do Cabedelo bastante
arruinado.
Pequena a povoação de Cabedelo.
A duas léguas acima da barra encalhou o vapor. O comandante e

291
vários passageiros foram à cidade, que não avistamos e estava distante obra
de uma légua. Ouvíamos estourar foguetes, fazia-se a festa de S. Pedro, ou
eram funções particulares. Largou depois das quatro horas.
[f. 365] Tendo estado o tempo bom até aqui, o dia de hoje amanheceu
turvo e das duas às quatro horas, enquanto estávamos encalhados, choveu.
30: Amanhecemos em frente da cidade de Pernambuco. Às oito
horas estávamos dentro do porto e fundeados.
A maior parte dos passageiros saltou logo para terra; eu e outros o
fizemos depois de almoçar a bordo.
Entrando na cidade dirigi-me a uma cocheira para tomar um
carrinho; como porém a casa do chefe de polícia estava aí [na] fronteira
(rua da Cadeia velha), dirigi-me para lá a pé, para entregar um pequeno
embrulho à senhora do chefe de polícia, da parte das filhas do Sr. Franklin
de Lima, que são suas irmãs. Ele me recebeu na sua sala de audiência e me
convidou com instância para pousar em sua casa, o que não pude aceitar
porque queria estar mais em liberdade.
Quando dali saí começava a chover e continuando a chuva sempre
a mais, tomei um carro que me levou a uma hospedaria francesa por 5$
[cinco mil-réis], mais 1$ [um mil-réis] de gorjeta. Aí cheguei incomodado,
por estar muito suado e não ter roupa de muda. Ao jantar tive de aturar um
portuguesinho muito falador, não cessava de falar no Dr. Gonçalves Dias,
fazendo-lhe grandes elogios e dizendo que era o membro mais trabalhador
da comissão (ele sabia que eu era o presidente dela), de lastimar o dinheiro
que a comissão custava ao imperador! e outras baboseiras desta ordem, com
que dava espetáculo aos assistentes, que todavia não lhe davam grande
atenção e eram pela maior parte franceses.
[f. 366] De tarde saí, bem que o tempo era péssimo e chuvoso;
atravessei parte do Recife, Santo Antônio e Boa Vista quase até o fim,
comprei uns sapatos de borracha e voltei para o hotel, já com noite; tomei
chá no meu quarto, no segundo andar.
1º de julho, domingo: Saí de manhã cedo, visitei a igreja do Corpo
Santo, que é um bom templo, e a do Convento de Santo Antônio e a das
Terceiras desta ordem.
Voltei a almoçar no hotel; saí e tomei um carro às dez horas, fui
à estação da estrada de ferro, que é da maior singeleza, sem nenhuma

292
arquitetura: estava fechada ou apenas havia alguns empregados no
escritório. Nem me apeei e voltei, tomando a estrada da ponte Uchôa,
por onde já tinha andado o ano passado. Não me pareceu agora ser tão
bela como daquela vez, mas tem sem dúvida algumas coisas nobres e de
bom aspecto. Voltando fui tomar um banho na casa de banho tida por
um inglês, fui à cocheira pagar o carro, que me custou 108 [dez mil-réis]
e mais 1$ mil réis de gorjeta, fui ao hotel pagar o que devia de pouso e
comida (6$ [seis mil-réis] mais 1$ [mil-réis] para ser repartido pelo criado
e duas criadas).
Fui embarcar-me à uma hora e meia, quando já o vapor saía para o
poço, e tive de sofrer para lá chegar: chuva e mar muito grasso.
[£. 367] Achei a bordo o astrônomo Emmanuel Liais e sua senhora
e Cândido Batista de Oliveira, filho que voltava de uma comissão que o
governo mandara a Pernambuco.
2: Amanhecemos em frente de Maceió, capital de Alagoas; a vista da
cidade é risonha.
Às dez horas o comandante (mancebo, homem amável e atencioso),
que ia a terra, convidou-me para lá ir, assim como ao padre mestre frei
Caetano, provincial carmelita do Maranhão. Desembarcamos às onze
horas, o mar estava tranquilo e o dia era lindo, o calor suportável; andando
passeando pela rua da praia (Jaraguá), onde víamos alguns bonitos edifícios
de sobrado, comportados de mármore e espaçosos, e nos dirigindo para a
parte alta da cidade por uma rua bem aterrada, pareceu-nos a mim e ao
padre mestre que poderíamos chegar até a cidade, principalmente por me
dizerem dois negrinhos que havia lá carros de aluguel, e foram correndo
buscar um. Enquanto descansávamos na frente de uma casa, cujo dono nos
pôs fora assentos, conversando com ele, julgamos necessário tomar notas
do que ele nos dizia a respeito do preço dos gêneros comestíveis da terra.
Pedimos-lhe papel e tinta e nos fez entrar para a sala, onde uma senhora
fazia renda numa almofada como as do Ceará; e sentados [...]
[f. 368]
Julho, 2
[...] escrevemos o seguinte:
A carne fresca custa atualmente 280 a 320 [réis] a libra e quando
barata desce a 200.

293
A carne seca custa agora, por arroba, 5$ [cinco mil-réis] e há
abundância dela.
A farinha está a 800 réis o quarteirão, medida que teria um palmo de
boca, quadrado meio palmo de alto.
O feijão custa 1.280 [réis] o quarteirão.
O milho custa 500 [réis] e está, dizem, barato.
Exportam-se da terra algodão e açúcar.
Disse-me um boticário, com quem estivemos depois, que aí
encontrei, que o peixe é abundante e barato e isto é o que vale ao povo; que
uma galinha custa um selo (480 [réis]); ovos estão agora a três vinténs, pelo
consumo que agora se faz deles, sendo tempo de uns bolinhos. Em tempos
ordinários estão a três vinténs a dúzia; que do porco lançam fora a cabeça e
as entranhas todas; carneiro e cabra não comem, fazem nojo.
Tempera-se tudo com coco.
A gordura é rara ou falta de todo.
Ostras e um marisco, que chamam sururu, não comem.
À rapadura é barata.
[f. 369] O feijão usado é o mulatinho ou mendubi, do preto não
usam.
Sustento principal é a carne seca do sul e o bacalhau.
Como não chegava o carro fomos andando a pé na esperança de ter
carro para a volta ao menos, pois devíamos estar no embarque ao meio-dia —
hora dada pelo comandante. Chegamos à cidade, mas não subimos ao alto,
onde víamos a matriz e um belo edifício novo, que é Palácio da Assembleia
Provincial e será também do Liceu; é a melhor casa da Assembleia que tem
o Brasil, creio eu. O Palácio do Governo não o avistamos, mas víamos
uma grande casa nova e de bom prospecto, onde residiram SS. MM. [Suas
Majestades] quando aí estiveram este ano. Vimos na parte baixa a casa da
prensa de algodão, uma ponte de madeira boa etc. etc.
Fomos à casa ou cocheira ver se tinha um carro para voltarmos;
estavam alugados, era já mais de meio-dia. Não subimos à cidade e voltamos
a pé com toda a pressa; chegamos à casa da agência do vapor, onde estava
o comandante, era quase meia hora; mas a mala do governo se demorou
mais e só embarcamos às duas horas. E logo que chegamos a bordo o vapor
largou.

294
3: Amanhecemos à vista de terra, passamos os lençóis e Itapuá e às
três horas fundeou-se na Bahia.
Jantamos e saltamos em terra às cinco horas; fui direto para o Hotel
Figueiredo, onde o Dr. Justa [f. 370] tinha já tomado um quarto para
ambos e um que restava, no terceiro andar. Tendo descansado um pouco
segui e fui visitar o desembargador João Joaquim, que o achei de luto tendo
morrido sua mulher, D. Cândida, em dezembro do ano passado. Quis que
tomasse chá, mas não pude aceitar o favor e convidou-me para pousar em
sua casa quando voltasse para o Ceará, o que prometi.
Chegando à praça do teatro e vendo-o iluminado fui assistir à
apresentação de uma peça de mágica diabólica. Era o segundo dia dos
festejos de 2 de Julho. O teatro é asseado e bonitinho; os camarotes são
dispostos em galerias, que apenas os dividem por tabiques que chegam à
altura de encostos de cadeiras; os cômodos são, alguns, suportáveis. Havia
nos camarotes poucas senhoras. Às dez horas saí antes de concluída a peça
e fui para o hotel, onde tomei chá e dormi.
4: Saí de manhá, fui ao Passeio Público; de volta, entrei em algumas
igrejas e vim para o hotel almoçar. Saí depois e andei vendo a cidade; e
entrei no colégio que serve agora de Sé: é com efeito um belo templo, todo
de mármore, tem em frente na praça um bonito chafariz de bronze. Daí fui
embarcar, eram onze horas.
[£. 371] 5: O tempo vai sendo fresco; o dia foi um pouco brusco, mas
inda assim depois do sol posto pudemos ver um belo cometa.
6: Dia brusco, chuva, mar agitado, vista de terra ao longe; não se viu
o cometa exceto o Sr. Liais, que o avistou a cauda por entre as nuvens.
7: Dia meio coberto; estamos defronte de Cabo Frio; mar muito
grasso. Às três horas entramos na baía do Rio de Janeiro.
O vapor fundeou na tarde. Desembarcamos deixando a nossa
bagagem, que a fomos buscar no dia 8, domingo.

295
Volta do Rio para o Ceará
24 de agosto — 9 de setembro de 1860

[E 1)

Volta do Rio para o Ceará

Em 26 [24] de agosto de 1860, tendo acabado os dois meses de


licença com que fui ao Rio de Janeiro, embarquei no vapor Oiapoque, que
largou pelas quatro horas e meia, debaixo de mau tempo. Pela primeira vez
enjoei, o que se pode explicar por começar a viagem com temporal.
Em 28 amanhecemos com vista da Bahia, às onze horas desembarquei.
Fui para a casa do negociante francês, o senhor Henrique Contat [Monat].
Às quatro horas da tarde fez-me ele o obséquio de levar-me de carro a ver
a estação da estrada de ferro da Bahia, que achei ser obra de melhor gosto
e mais grandiosa que a nossa de Pedro II. No Rio* , assistimos à saída de
um pequeno trem. Voltando daí andamos fazendo um giro pelos arredores
da Cidade Alta, passando por Nazaré e pelos poços, chamados diques.
Chegamos à casa do senhor Monat na Cidade Alta quase às seis horas.
Recepção obsequiosa ao jantarmos, e às oito horas e meia me despedi dos
meus hóspedes, e fui dormir no Hotel Figueiredo.
29: Pelas seis horas da manhã embarquei. Às oito e meia largou o
vapor; o vapor levava muitos deputados das províncias do Norte, e os da
Bahia aqui ficaram, mas foram substituídos por outros passageiros.
30: Chegamos a Maceió e ancoramos à uma hora; aqui desembarcou
o meu companheiro de camarote, o dr. Rozendo César de Goes, filho de
* É a Casa da Estação vasta, toda de ferro, antes tingidas as paredes fingindo cantaria, tudo de bom gosto,
está em princípio. Os trilhos assentam sobre coçoeiras de pinho, que me disse o Sr. Contat, são preparados
e tornados incorruptíveis. Os vagões são grandes, com melhor arranjo de assentos, e asseados. Alguns são
salões, decorados, com assentos em roda, menos no meio etc.

296
Alagoas, que voltava de uma viagem pela Europa e Rio de Janeiro. Às seis e
meia largou o vapor.
31: Amanhecemos em frente do Recife, em Pernambuco. Às oito
horas desembarquei, juntamente com o padre frei Caetano Carmelita do
Maranhão, com o major José da Mata Moraes Rego, também do Maranhão
[f. 2] e um médico (Araújo Lima) que vai da Bahia para [0] Piauí em
serviço militar. Tendo almoçado em uma hospedaria francesa e passado pela
cidade, fomos conduzidos por frei Caetano ao convento de sua ordem,
cujo provincial e religiosos nos receberam mui bem, e quiseram que nos
hospedássemos no Convento, o que todos aceitamos. Os frades pela maior
parte moços andavam vestidos de camisolas de chita de ramagem. Tudo ali
dava mais ares de profano, que de religioso.
De tarde, ainda que estivesse o tempo turvo e ameaçando chuva,
saímos todos quatro e fomos à Igreja e Convento da Penha, residência dos
Barbadinhos. Havia festa, muita gente (mulheres de lenço pela cabeça) na
igreja, estava armada; música sofrível no coro. Fomos à cela do capuchinho
frei Caetano, que veio conosco do Rio, e que nos conduzia às tribunas para
vermos o templo; e aí tivemos ocasião de ver o bispo de Pernambuco, baixo,
grosso e de feições que inculcam pouca inteligência.
Saindo do convento, chovia, e nos recolhemos para o nosso convento,
onde dormimos, eu e o dr. Araújo Lima numa cela; e frei Caetano e o major
na cela do provincial, que foi dormir em outra parte.
1º de agosto [setembro]: O nosso companheiro frei Caetano disse missa,
a que todos assistimos. Despedimo-nos agradecidos do provincial e demais
padres. Fomos almoçar na mesma hospedaria do dia antecedente (Hotel del
Europa) e daí fomos para o vapor, o qual saindo da doca às oito horas e meia,
foi para o Lamarão onde esteve até às onze horas da noite à espera de alguns
deputados que quiseram ir ao teatro! Aqui assistimos ao embarque difícil e
perigosíssimo dos passageiros, que vinham para bordo do vapor.
2: Amanhecemos na barra no [rio] Paraíba; o vapor subiu pelo
rio até defronte da cidade, em distância talvez de uma milha. Nós os
quatro inseparáveis, e mais três moços passageiros, [f. 3] por obséquio do
comandante que mandou lançar ao rio um escaler para esse fim, fomos à
terra, onde chegamos às onze horas, tendo apanhado chuva na viagem. Mas
desembarcamos, e estivemos duas horas correndo a cidade, com sol forte.

297
Há uma rua à margem do rio, onde se vê uma casa nova, grande,
de sobrado, com bom aspecto, e que nos disseram ser a Casa do Algodão,
espécie de consulado, para o produto de exportação mais abundante da
província. Poucos dias antes se havia incendiado um navio carregado de
algodão mesmo no porto; e aí vimos o casco queimado, e grande quantidade
de algodão avariado, que se está aproveitando.
A maior parte da cidade é edificada sobre o monte, não muito
alto e as ladeiras são calçadas de pedras, irregulares, mas estão em muito
mau estado. As ruas da cidade alta, como a de baixo, são mais largas, e
não calçadas; as casas são bordadas de passeios de tijolos ou de degraus
de cantaria. As casas pela maior parte [são] pequenas e insignificantes,
mas tem bastantes de sobrado e algumas novas e de belo aspecto. Vimos
quatro conventos. O de S. Francisco que, se bem me lembro, é de 1743, é
obra digna de ver-se, bem que já bastante deteriorado. A igreja tem bonita
frontaria, é espaçosa e bem decorada por dentro. O claustro é belo, de
duas ordens de colunatas, [riscado] o teto do pórtico do claustro, bem
como os dos salões, são pintados à antiga e muitos e grandes painéis de
madeira estão suspendidos pelas paredes. Aí nos recebeu um frade, que
me parece português, também vestido de camisola de chita. O adro da
igreja é grande, lajeado de cantaria, com muros dos lados revestidos de
azulejos.
O Convento dos Jesuítas tem a igreja no Centro, e hoje [é] residência
dos presidentes, e está por isso conservado e limpo, creio tem a era de 1726.
O [Convento] do Carmo, cuja igreja é de belo frontispício.
O [Convento] dos Beneditinos, também de boa aparência. [f. 4]
Vimos mais três igrejas, a do Rosário, de S. Benedito e outra. À tesouraria
também não é mau edifício. À uma hora nos restituímos ao vapor, que
pouco depois largou, quer dizer, às quatro horas da tarde.
3: Amanhecemos defronte do Rio Grande, enquanto o imediato ia à
terra com a mala. O vapor, que não entra pela barra, ficou fora manobrando,
para melhor suportar o mar. Estávamos em frente da fortaleza, e avistando
a cidade, que fica num alto à margem do rio, talvez duas milhas distante da
foz. Às onze horas seguiu o vapor.
4: Amanhecemos à vista e perto da terra do Ceará, em cujo porto
fundeamos às oito horas.

298
Desembarcando, achei o Capanema e o Lagos, que vieram ao meu
desembarque.
Aqui nos detivemos até 4 de outubro em arranjos de viagem, mais
demorados por não haver dinheiro, não para mim que tinha sobras, mas
para os outros, até que aborrecido resolvi-me a partir deixando esses
negócios encarregados ao Lagos, que seja dito de passagem nem tem
pressa.
[£. 5]
24 de agosto: Às quatro e meia da tarde [partimos] com chuva [e]
vento, e o mar [provocou] forte enjoo de noite.
25: Dia enjoado sem comer e mar forte.
26: Melhor.
27: Sem novidades.
28: Amanhecemos na Bahia, almoçamos a bordo e desembarcamos
às onze horas.
Casa do senhor Henrique Monat.
Saí a ver a Conceição (oposto à casa do Manoel), aí estivemos na loja,
saímos, voltamos etc.
Três e meia saí com o senhor Monat de carro [e] fomos à estação da
estrada de ferro [com] obras superiores às do Rio, vagões, assentos, salão
etc etc.

Saída de trem com poucos carros, sistema de trilho, sobre tábuas de


pinho, tornadas inalteradas.
Voltamos de carro [e] subimos por uma ladeira, andamos pelos
arrabaldes do lado de Nazaré etc. etc. Fontes d'água, diques, boas chácaras
(roças ou jardins), chegamos à casa do Senhor Monat quase às seis horas.
Excelente e amável família. A senhora, três filhos e um irmão do Monat
[que] chegou depois.
Jantamos e tomamos café, chovera muito até além das oito horas.
Custamos a sair [e] fui para o Hotel Figueiredo, onde dormi. Saí de manhã
às seis horas e embarquei para bordo.
Saídos às oito e meia o dia [borrado] aqui na Bahia ficava[m] muitos
passageiros, deputados etc.
O vapor trazia do Rio muita gente.
30: Chegamos a Maceió, e ancoramos à uma hora.

299
Saída de alguns passageiros, senhoras e o meu companheiro de
camarote.
O dr. Rozendo, filho de Alagoas, que tem viajado toda a Europa.
Partimos às seis horas.
31: Amanhecemos defronte de Pernambuco. Saltamos no [ilegível],
fomos eu, frei Caetano, o major do Maranhão [e] o doutor, que vai por
Teresina.
Fomos almoçar no Hotel da Europa, daí fomos para o Convento
do Carmo apresentar-nos por frei Caetano. Fomos bem recebidos pelos
frades, moços patruscos (vestidos de camisolas de chita), pareceu-nos antes
um seminário que um convento e conversei sobre política (Fomos todos
tomar banho, vizinho ao convento. Convidados pelo provincial ficamos
aboletados no convento), jantamos bem com o provincial.
Saímos de tarde a passeio, chegamos à Penha, Convento dos Barbadinhos
(festa) na igreja. O barbadinho foi conosco do Rio [borrado] [f. 6] o bispo de
Pernambuco, baixo, gordo, feições grosseiras, estúpidas. Estivemos na cela do
barbadinho que levou-nos às tribunas para vermos o templo, estava cheio de
mulheres de lenços brancos na cabeça, música no coro sofrível.
Saindo, chovia e voltamos para o convento onde dormimos eu e o
doutor numa cela que me [pareceu] ser sala de [apagado] com bom piano,
onde depois do jantar um padre tocou com bastante maestria.
Frei Caetano e o major ficaram na cela do provincial.
Acoelhar-se, palavra usada aqui para dizer aguilhoar-se,
Disse-me o doutor... que por ordem do Governo da Bahia o dr.
Rebouças apresentou um [apagado] sobre as batatas, que foi publicado em
4 ou 5 mais ou menos do Diário da Bahia do mês de julho talvez.
Às dez horas tomamos chá.
1º de setembro (sábado) de manhã frei Caetano disse missa no
convento, a que nós assistimos.
Saímos depois de nos despedirmos dos bons frades [e] fomos para o
hotel, almoçamos e embarcamos no Oiapoque seriam... às quatro horas o
vapor saiu para o Lamarão no mais difícil e perigoso embarque. O vapor
largou depois das dez horas,
2: Amanhecemos defronte da Paraíba. Subimos até perto da cidade,
e ancoramos depois das sete horas.

300
Vista da cidade, edificada sobre uma altura, ou monte.
Almoço. Às onze horas em escaler do vapor fomos eu, o padre
frei Caetano, o major, O doutor e mais dois moços doutores, e não sei se
deputados.
Cidade. Casa do Algodão.
Convento com templo bom.
Matriz.
Convento de S. Francisco [de] 1743, bom pátio, boa perspectiva,
vestíbulo.
Claustro com colunas de quantidade superior, salões e tetos com
pinturas antigas, interior da igreja, Convento dos Jesuítas (1726)
Igreja no centro. Palácio do Governo.
Misericórdia.
Rosário.
Carmo, bela perspectiva.
Outra capela etc.
[£. 7]
Negócio de algodão.
Há uma informação no início da página, parcialmente apagada, o
que impossibilita a leitura)
À uma hora voltamos.
Quando íamos, chuva; na cidade sol forte.
Às quatro horas largou o vapor.
3: Amanhecemos defronte do Rio Grande.
Onze horas seguiu o vapor.
4: Amanhecemos defronte do Ceará.

301
Viagem de Fortaleza até a serra Grande
9 de outubro de 1860 — 2 de março de 1861

[f. 8]

Viagem da Fortaleza até a serra Grande

Outubro, 9: Saímos eu e Manoel da cidade da Fortaleza pelas nove


horas da manhã, fomos obsequiados pelos senhores Lagos, Capanema,
capitão Antonio Joaquim de Oliveira e Numa Pompílio de Loiola (que
se acha agora empregado pelo Capanema, por se retirar, por doente, da
Comissão o Dr. Coutinho) até quase uma légua de caminho. Chegamos
a Soure eram onze e meia, e fomos hospedados em casa do inspetor de
quarteirão dessa povoação, Félix Ferreira Pacheco, que mora com uma irmã
e duas sobrinhas, que nos prepararam um farto jantar. Às seis horas da
tarde partimos e às sete e vinte chegamos à fazenda do Juá, do senhor major
Joaquim José Barbosa, já nosso conhecido, pessoa amável e dum caráter
jovial, e que nos recebeu perfeitamente bem. Estava com outro sujeito em
casa, e às oito horas nos apresentou uma boa mesa de chá, café, biscoitos,
beijus etc., e boa água filtrada, que nos fartou, pois em Soure não a tivemos
boa. O chá foi servido por duas senhoras suas filhas, uma das quais ainda
muito menina, ele é viúvo. Dormimos na sala de fora em nossas redes eu e
Manoel, o senhor Barbosa e o outro hóspede.
Andamos hoje cinco léguas, três da cidade a Soure, e de Soure a Juá,
duas.
10: Não choveu esta manhã, a noite foi fresca. Levantados quase
às seis horas, o senhor Barbosa nos mostrou a sua fábrica de farinha, que
diz ele, e acredito, que o Ceará não tem segunda. É uma boa casa de telha
ampla, de boas madeiras lavradas, de paredes de tijolo, em parte caiadas.

302
Tem uma grande bolandeira, ou antes um engenho, com [almanjarra], e
tocado por animais trabalha dentro dum espaço circular, bordado dum
parapeito de tijolo e ladrilhado, com algum declive de sorte que a maniira
[manipueira?] corra e se dirige para um carro, que a leva parte para um
poço, ou sumidouro, e parte para uma [f. 9] espécie de taxa [tacho], onde
fervida dá uma sorte de papas que serve de alimento aos porcos. Do cercado
está também ali próximo o poço, e [a] taxa [o tacho] de que falei fica fora da
casa de engenho. À prensa é grande, bem feita de grossas madeiras, tem dois
fornos de mexer farinha, de onze palmos de diâmetro, um de tijolo como
são geralmente aqui, e outro com fundo de ferro. Tomamos café e partimos
eram seis e meia.
Passamos o boqueirão sem chuva (diz o Numa que sempre que por
aí passou foi com chuva).
Esta passagem é formada à esquerda pela serra do Juá, e à direita
pela serra do [Cauípe], que aqui se denomina Japuara ou Câmara. O nosso
comboio, que consta de seis animais de carga, e é dirigido por um cargueiro,
ou comboieiro, pelo Barreto, e pelo meu criado e o de Manoel [subscrito:
Francisco e Lourenço] adiantou-se; e nós, eu e Manoel, acompanhados pelo
meu ordenança nos enganamos, e tomamos caminho errado. Viemos dar
em uma fazenda chamada Ema, por estar debaixo da serra do mesmo nome,
e que é possuída pelo Sr. Joaquim José de Oliveira, que teve a bondade de
nos guiar, a cavalo, por um labirinto de veredas até sairmos na estrada.
Passamos logo o rio [Cauípe], que está seco, e pouco depois chegamos
à fazenda do Angico, quase ao meio-dia. Só pudemos almoçar depois de
uma hora da tarde. Não há verde para os animais.
Todo o terreno por que temos andado estes dois dias é baixo, arenoso
e arredado do mar duas léguas mais ou menos. Todo ele está cheio de
carnaúbas, cujas árvores estão com flor e fruta verde. As serras do Juá e
[Cauípe] são muito secas, pedregosas e sem grandes matas, bem que tinham
em si boas madeiras de pau-d'arco, de jatobás, maçarandubas, e angicos
e cedros do meio para baixo. [f. 10] Há certo número de lagoas grandes
como são: a Pabuçu, a Capuan etc., que servem de bebedouro para o gado.
Por toda a parte vimos muito pacoti com flor, e com fruta, e sem folhas,
alguns paus-d'arco roxo, com flor. Juazeiros com flor, pau-branco com fruta,
mororós com flor e fruta. Vimos uma rabugem com flor e fruta verde, uma

303
maria-preta, com flor e fruta. Catandubas com fruta e flor, um gonçalo-
alves com botões. Marizeiras sem flor nem fruta. Ao chegar a Angico vimos
muitas maniçobas inteiramente desfolhadas, e numa vargem muitas carobas
(de folhas miúdas) carregadas de lindas flores e sem folhas. As catingueiras
estão com flor etc. etc.
Do Juá a Angico dizem ser quatro léguas. Em Angicos pousamos,
para seguir no dia seguinte. Há em frente da casa, que está em lugar alguma
coisa elevado, um bom açude que serve de bebedouro aos animais. À água
de beber, que se toma num pequeno regato, não é má, a noite foi fresca,
mas não tanto como no Juá, Estamos já no sertão.
O proprietário de Angico é o senhor Ignácio Ferreira de Moraes,
caboclo, bastante trinado, baixo, grosso, de largas espáduas, pernas grossas,
um tanto arcadas; rosto largo, e cara feia, de camisa por cima da bermuda;
tratou-nos bem, isto é, hospedou-nos, prestou-se a mostrar-nos o caminho
etc. etc.
11, quinta-feira: Saímos de Angicos às seis horas e meia [e] andamos
por um terreno raso, ou pouco acidentado, mais ou menos pedregoso;
caminho de leste a oeste até a fazenda Ingá, distante de Angicos quatro
léguas cuja proprietária é a senhora Micaela Francisca de Abreu, viúva.
Eram dez horas e meia, apanhamos grande soalheira; andamos por maus
caminhos pedregosos e fechados de espinheiros. Sabiás, juremas, marias-
pretas e umari bravo. Achamos aqui água...
saíram [restante da linha apagada].
[£ 11]
Água má, leitosa, grossa, custa a tragá-la e começamos com os
incômodos do sertão, calor, ventos, má água, péssimos caminhos. Saindo
de Angicos andamos, primeiro por vargens pouco onduladas, cobertas
de carnaúbas e por espaço de quase uma hora, nos lugares mais altos,
apareciam) coroas de caatingas, e soltas algumas carnaúbas, e carobas,
cobertas de flores, e sem folhas.
Desapareceram as pacotis, ainda não as vimos por este lado nem
pereiros, [que] são raros, nem oiticicas; as árvores que aqui estão verdes são
juazeiros, que estão também floridos, tudo o mais com pouca exceção está
seca e sem folha, o pasto todo seco, este é ora agreste, ora mimoso. Todo
o terreno de largas ondulações é raso e forma tabuleiros, cuja vegetação

304
passa insensivelmente de caatinga a carrasco, sucessiva e alternadamente
conforme a natureza do terreno. Passamos alguns afluentes do rio São
Gonçalo, secos. A vegetação consta principalmente de sabiás, juremas,
marias-pretas, paus-brancos, catingueiras, mororós, imburanas, aroeiras,
paus-d'arco roxo, algum cedro. O carrasco é quase todo de umari bravo,
que é arvoreta carrasquenha de tronco tortuoso, coberto de casca branca
fundida (semelhante à de umari), muito ramalhuda e garranchosa,
espinhosa (espinhos resultados de raminhos abastados), quando vegeta em
descampado forma copa redonda até o chão. Seus ramos, que têm casca
branca, quando estão desfolhados dão aparência covaloide, tão divididos
e garranchosos são. Diz Manoel que a madeira ou cerne desta planta é
amarelo, denso, pesado.
O boqueirão pelo qual passamos se chamava Boqueirão da Arara. Os
caminhos são ou de ribeira, ou de travessia; os primeiros seguem os rios, os
segundos os atravessam — isto notamos agora conversando com um sujeito
que agora chegou estando nós jantando. São mais de nove horas da noite.

[f. 12]
Ingá

Aqui do Ingá, que está num lugar um pouco elevado, distante


do mar cinco léguas e meia a seis, se avista em roda um terreno raso, e
sem horizonte, todo coberto de caatingas e carrascos, só se avista bem ao
poente* a serra da Uruburetama, que fica daqui umas 13 léguas.
Hoje compramos aqui à dona da casa duas quartas de milho, a 1.000
réis a quarta, a medida é uma grande cuia de cabaça amargosa, que mede
meia quarta, e que seguramente é mais de uma quarta no Rio. Compramos
também um capote (galinha-d'angola) por uma pataca.
12, sexta-feira: Esta noite não foi muito fresca. Ao amanhecer chovia
no litoral, por este sertão não tem chovido, senão um dia da semana passada,
em que caiu uma pequena chuva ou chuvisco de manhã, ainda agora aqui
no Curu me disseram a mesma coisa. Partimos do Ingá às seis horas da
manhã, e chegamos ao Curu às dez e meia, fazem dum lugar ao outro seis
* Estava o sol por detrás da serra

305
léguas, mas não lhe dou mais de cinco, porquanto gastamos quatro horas
e meia andando devagar. Bem que de vez em quando cobria-se o sol, fazia
grande mormaço e não ventava senão por intervalos [uma] pequena brisa.
Eram nove e meia quando chegamos ao Riacho das Melancias, e fomos
a uma pobre casinha que está aí sobre um alto, julgando com admiração
que estávamos no Curu, por não nos terem prevenido, nessa casinha nos
apareceram três crianças nuas ou [malltrapilhas, que nos deram água para
beber, nos disseram o nome do lugar, e que estávamos a uma légua do
Curu, onde chegamos uma hora depois, indo devagar e com paradas.
[f. 13]
Assim fomos do Ingá ao Riacho das Melancias quatro léguas, e daqui
ao rio Curu uma légua. Todo este trajeto é por um país raso ou apenas
acidentado, em partes pedregoso, mas em geral arenoso e todo coberto de
caatingas, que estão todas desfolhadas, e compostas das mesmas plantas
que ontem mencionamos; só achamos mais arociras (com flor) que ontem
eram raríssimas.
Pouco pasto, exceto em alguns tabuleiros, passamos à margem de
cinco largas lagoas, cobertas de juncos e todas secas. A água por estes
lados é escassa e má. Curu — casa de telha com varanda, e uma sala, onde
arrancham os passageiros; achamos no fundo da casa duas mocetonas no
meio de grande quantidade de galinhas-d'angola. Às moças pedimos, e nos
concederam arranchar-nos.
Apareceu-nos logo uma senhora idosa, que logo nos trouxe uma rede
limpa para descansar enquanto não chegava o nosso comboio; ao pé da casa
corre o rio Curu. Água péssima. Compramos um capote para o nosso jantar
à noite, por uma pataca.
Temos à vista a serra da Uruburetama, a oeste, e a nove léguas talvez
de distância; tem um grande desenvolvimento de norte a sul, e cabeças
bastante altas.
Hoje não vimos carnaúbas.
Uma observação que vou fazendo agora é que sendo o calor
grande, e eu muito fácil em suar, nem por isso suo copiosamente e em
chegando aos pousos, pelas onze horas e meio-dia, não sinto grande
necessidade [de] mudar a camisa [e] de meia; e pouco depois me acho
enxuto. Outra observação que faço agora, e que me não lembro que

306
me tenha antes acontecido, é ter a boca seca, a saliva grossa, e o corpo
espesso escumado.
De madrugada, três horas, fomos acordados pelo comboieiro, que
enganado foi buscar os animais do peador. [f. 14] Fazia algum fresco, mas
só partimos pelas cinco horas e meia, já amanhecendo, do Curu para Recife.
Sábado, 13 de outubro: Tivemos na primeira légua algumas erradas,
que muito me aborreceram, e nos fizeram gastar para isso duas horas.
Passamos o riacho do Frio, que está com bons poços; aí achamos três
crianças apanhando água no leito do rio, fazendo cacimba. Apanhavam
água com uma pequena cuia de cabaço amargoso, e a lançavam em uma
grande cumbuca também de cabaço, por meio de um funil de cabaço.
Era uma menina de seis a sete anos vestida com uma camisa e mais dois
irmãos menores, macho e fêmea nus. Andamos quatro léguas por meio de
caatingas áridas, desfolhadas e por lugares muito pedregosos, até que bem
enfadados como por cá dizem; chegamos ao desejado Recife, que está a
cinco léguas do Curu, onde vínhamos esperando achar bom rancho, água,
pasto etc. Mas fomos tristemente desapontados quando nos indicaram
um triste casebre, sobre uma altura rasa desabrigada, como o único pouso
possível. Chegamos a ele, e dentro vimos uma mulher parda, rodeada de
uns poucos filhinhos, paramos sem lhe dizer palavra, tendo-a simplesmente
saudado; ela vendo-nos interditos disse-nos: “Podem se apear”. “Não há por
aqui”, lhe perguntamos, “um rancho maior, porque trazemos um grande
comboio?”. “Não senhor, é aqui mesmo”, respondeu-nos.
Apeamo-nos.
Não é possível haver coisa mais triste; não temos [ilegível] comparável
a isto. É uma armação tosca, coberta com algumas palhas ou folhas de
palmeiras, por cujas folhas entra o sol à sua vontade, as paredes de fora são
fechadas de paus-a-pique nus, só há um quartinho onde está a família que
tem paredes tarreadas até [a] altura dum homem; esfuracada, e remendada
com folhas de palmeira, a parte aberta onde estendemos nossas redes apenas
as admitiu. Deitados nas redes estávamos expostos ao sol, que entrava por
toda a parte; comendo sobre as canastras, o sol perlustrava as nossas iguarias.
Água, meu Deus, era na cor e grossura, como [f. 15] água de mandioca, o
calor forte, a comida salgada, e a falta de outra qualquer bebida no-la fazia
tragar; levando o copo à boca mas olhando para o céu, e pensando em coisa

307
melhor. Por baixo das redes vagavam porcos, cães, e galinhas com pintos.
Foi este um dia cruel.
Devo porém dizer que a dona da casa, parda acaboclada, moça
casada, pejada com a barriga capaz de conter três crianças, nos recebeu
afável mostrando todo o desejo de obsequiar-nos e, quando almoçou com
seus filhos me apresentou quatro bananas numa cuia, cobertas com uma
toalha, e pedindo-me desculpa.
O terreno que passamos hoje, todo coberto de caatingas baixas, salas,
só se diferença do de ontem pela maior quantidade de marmeleiros, à beira
do caminho. É terreno raso, apenas acidentado, árido, pedregoso; passamos
logo ao sair do rancho, passamos o rio Curu, seco e, em caminho, vimos
uma lagoa, também seca.
A nossa gente abrigou-se debaixo duma árvore de pau-branco
desfolhada, exposta ao sol. Não há pasto para os cavalos! Água longe.
Escrevo estas notas na rede, exposto ao sol, coberto de suor com sede,
mas tendo água ao pé! Rodeado de toda a sorte de bicho.
Domingo, 14 de outubro: Santa Cruz no alto da serra da Uruburetama.
Às seis horas e um quarto partimos do miserável, mas hospitaleiro
rancho do Recife, e passamos logo o leito dum riacho. Àssete horas chegamos
ao lugar chamado Campos, onde há à beira da entrada um açude, onde os
nossos cavalos se regalaram. Avistamos já perto alguns rochedos graníticos,
guardas avançados da serra.
Às sete horas e vinte minutos subimos uma pequena ladeira e nos
achamos numa assentada que é o primeiro socalco da serra nesta parte;
nessa assentada, ou chapada [f. 16] se quiserem, caminhamos andando
direito para a serra até às oito e vinte, isto e por mais de uma légua,
em terreno raso, com uma pequena ou insensível elevação para a serra,
e oferecendo apenas algumas depressões torrenciais, toda esta assentada
é coberta de caatinga rala, com pastaria por baixo, e aí vimos entre as
árvores gonçalo-alves com flor, aroeiras, e angicos também com flor; e
notamos logo mais verdura; mais folhas nas árvores, bem que a diferença
de altura é muito pequena, logo que entramos no seio da serra, no fundo
do qual está a garganta por onde havíamos de subir, o terreno se tornou
profundamente acidentado. Sentia-se já o ar mais fresco, e nas grotas, ou
leitos de torrentes agora secas, as árvores estão vestidas. Às nove horas e

308
vinte nos achávamos em um segundo socalco de pequena largura e daí
em diante a subida se tornou bastante íngreme, com passagens difíceis, e
pedregosas, mas alternadas com descansos ou pequenos socalcos, até que
ganhamos o alto da serra; então entramos a descer até que se avistou a
torre da igreja, e pouco depois algumas casas da povoação, situada no alto
duma cabeça central da montanha para aí subirmos, e nos apeamos em
frente da igreja, eram dez horas passadas.
À vista disso não fazemos de Recife a Santa Cruz mais de três léguas.
A gente do país avalia em quatro.
Esta serra da Uruburetama tem direção de norte sul; avaliamos a sua
extensão para mais de três léguas,* tem altas cabeças ou de rocha viva, ou
de rocha coberta em parte de modo a criar matas, mas o seu aspecto é árido;
não vimos uma só torrente com água, a altura em que estamos é talvez de
800 pés, o ar é fresco, a vegetação viçosa nos vales, e quebradas nas baixas
vi canaviais, e capim plantado nas encostas, há plantação de algodão que é
a cultura da terra. Água boa e fresca, que nos alegrou.

Logo que chegamos se nos apresentou um moço que [f. 17] disse ser
o mestre público de primeiras letras, o qual nos foi apresentar ao Sr. chefe de
partido, disse-me ele, pessoa importante do lugar; não estando na povoação
o subdelegado apresentou-nos depois a Rogério, moço bem parecido, filho
de Fortaleza, ou do Ceará como ele nos disse, que nos recebeu bem, vestido
duma [apagado] camisa, nos deu água, que achamos excelente e de que
bebi um bom copo (antes no lugar chamado Praça, no segundo socalco,
em uma choupana nos deu água uma mulher, dizendo-nos que não era
boa, e apanhada de hoje, mas como insistíssemos disse que nem tinha um
coco, e nos apresentou água numa tigela de barro, que apesar de tudo nós
a bebemos com certa satisfação, eu e Manoel). Na casa do vigário achamos
já vários sujeitos, e depois se foram juntando outros, gente que vinha à
missa de uma a duas léguas, alguns traziam pregões de casamentos, outros
crianças para batizar etc.
Aí estivemos conversando enquanto esperamos a nossa bagagem, e
enquanto o Sr. mestre público nos arranjava uma casa. Às onze horas nos
instalamos, encheu-se logo a nossa pousada de curiosos de todas as idades:

* Talvez seis [léguas]

309
fizemo-los sair para vestirmo-nos e irmos à missa, fiz depressa a barba, vesti-
me às carreiras, e chegamos à igreja quando se levantava o cálice.
Saindo da igreja voltamos para a casa, estendemos as nossas redes, e
nelas recebemos visitas de muita gente endomingada.
Santa Cruz já foi vila, que hoje passou para S. Francisco, ficando a
povoação, que é miserável, e decadente. Não há uma casinha de sobrado;
a maior parte das casas são verdadeiros pardieiros, mesmo a em que mora
o vigário. À igreja é grande, tem bom prospecto, mas para dentro é uma
vergonha; nem está toda ladrilhada e no altar, que é um simples caixão,
não há banqueta, nem trono. Os santos estão em nichos no altar, a [Nossa]
Senhora da Penha de um lado, Nossa Senhora da Conceição, de outro S.
Benedito. [f. 18] Não tem sacristia, o padre reveste-se ao lado do altar.
A terra é miserável, não achamos nem galinhas, nem capotes, nem
ovos. Não sei como se encontrou alguns pães de ontem, e muito malfeitos,
e os quais eu preferi à farofa, que nos fez o bom Barreto para comermos
com linguiças, que trouxemos da capital.
O clima é quente mas sadio, tenho hoje visto algumas pessoas
doentes, mas principalmente de vício sifilítico, algumas senhoras afetadas
de catarata e moléstias cerebrais; há muitas pessoas velhas, as mulheres
muito prolíficas. Tenho visto algumas senhoras e moças claras e não feias,
criancinhas bonitinhas. Toda a gente me parece pacífica, de boa índole,
obsequiosa. Há muita pobreza, não sei mesmo de que vivem, nos arredores
da povoação não vejo quase cultura alguma.
Segunda-feira, 15: Esta madrugada foi bem fresca; é o maior frio que
tenho observado no Ceará. Diz-me o Sr. André Vidal de Negreiros que é
sempre assim. Ao meio-dia está o termômetro de Biam a 23 graus.
Depois do almoço, Manoel foi a uma excursão ao alto duma cabeça
de serra, com um mateiro daqui. Eu saí a fazer algumas visitas e a ver alguns
doentes; recolhi-me ao meio-dia. Estivemos depois estudando e lendo. De
tarde saí a conversar com a vizinhança.
Terça-feira, 16 de outubro: Ao amanhecer estava o termômetro,
dentro da sala, que é de telha vá, em 19 graus e um quarto, sentia-se frio.
Ontem à noite, às nove horas estava em 23 [graus]. O céu amanheceu turvo,
às oito horas chovia pelas quebradas da serra. Às nove horas o termômetro
marcava 22 graus
Às duas horas — 23 [graus].

310
Às quatro horas — 23 [graus].
Às dez da noite — 20 [graus] e meio.
De tarde trabalhei em algumas plantas, e escrevi; tivemos aqui
bastantes doentes a se receitarem. Às ave-marias saí e estive sentado com o
Manoel à porta do vigário, conversando, e mais algum sujeito apareceu, até
às sete e meia, em que me recolhi [f. 19] e paramentos descontente com a
direção que deram ao templo, brigou, mas mandou [que] se concluísse; o
que acontece a respeito do edifício mas não foi decorado.
A povoação florescente perante a primeira metade deste século foi
ereta em [elevada a] freguesia no ano de 1848, e foi vila no ano seguinte,
decaiu rapidamente nos anos posteriores [e] deixou de ser vila em 1859 que
passou para S. Francisco, situado no sopé da serra daqui a duas léguas, no
lugar onde se situou Francisco da Cunha Linhares.
Estas notas foram dadas pelo Sr. André Vidal de Negreiros, que diz ser
quarto neto do que tanto figurou em Pernambuco. Nasceu aqui em Santa
Cruz em 1792. Tem aqui grande fazenda, é homem branco e dos primeiros do
lugar. Aprendeu as primeiras letras com frei José da Santa Clara, que era um
frade baixo, gordo, de grande barriga; comia uma só vez no dia, mas comia
por três homens. Dizia missa todos os dias; e sendo achacado de hemorroidas,
antes de ir para a igreja tomava sempre um clister composto de pimentas
malaguetas em quantidade; com o clister estava na igreja, dizia missa, casava,
batizava etc., voltando ao meio-dia, e só então é que descarregava o ventre do
clister e de tudo o mais, para o ir encher de novo. Voltou para Pernambuco,
onde morreu, distribuindo antes por seus afilhados e pobres as fazendas de
gado que possuía e o dinheiro que tinha junto [juntado].
Talvez este frei Vidal é [seja] o mesmo Frei Vital de que fala o Bispo
Azeredo Coutinho, escrevendo a El-Rei em 1806. Veja-se a Revista trimestral
do Instituto, volume segundo de 1840, pág. 10.
[f. 20]
Aqui está como escrivão o Sr. Brígido, pai de João Brígido do Crato,
que me veio visitar e a quem paguei a visita. O lugar em que está assentada
a vila é raso e rodeado de montanhas rochosas, e por isso muito quente.
O termômetro às três horas indo com 25 graus e três quartos e, bem que
ventava, o calor era incômodo, as noites são frescas. É já sertão.

311
À julgarmos pelo aspecto dos homens e das crianças, principalmente,
o lugar é sadio, [pessoas com) boa cor, bons dentes e inteligência. Santa
Cruz, onde parecia dever haver saúde, não é tanto assim. Vimos aí com
admiração muita gente opilada, muitas moléstias de olhos, principalmente
catarata e moléstias sifilíticas. Aqui se acha de passagem para a capital uma
família, cujo chefe vai doente, e que nos pediu para o vermos, sondado por
Manoel achou-lhe estreita a uretra por lesão de próstata.
A água aqui em S. Francisco é má, uma que sc vai buscar mais longe,
e a que estamos bebendo é clara, mas grossa e salobra, todavia quando está
fresca é bem suportável.

Quinta-feira, 18 de outubro: Em Carnaúbas.


Ao amanhecer, estando o céu toldado e ventando, o termômetro
marcava 20 graus, na sala da Câmara Municipal de S. Francisco.
Levantamo-nos e nos aprontamos, despedindo-nos de alguns dos
moradores de S. Francisco, e partimos eram sete [horas] e um quarto. :
Marchávamos às vezes subindo, mas sempre descendo [f. 21] [e] descendo
mais, e por assentadas ou socalcos, forma [riscado] digo [riscado] ou
bacias quase circulares, e rodeadas por ramos da serra da Uruburetama,
e insensivelmente nos achamos no terreno raso do sertão, na distância de
duas léguas para mais, de S. Francisco, que fica portanto em certa altura da
serra talvez 200 a três [trezentos] pés; essas cadeias de serrotes contínuos,
áridos rochosos, que se estendem da Uruburetama, e provavelmente por
toda a circunferência, para o lado do oeste entram pelo sertão [adentro por
espaço de léguas, confundindo-se com outras serras ou serrotes que cobrem
o país por este lado. A vegetação e o clima de S. Francisco é já de sertão, e
nessas duas ou três léguas de descida além do sabiá, do pau-branco, angicos,
da jurema, das aroeiras etc. etc., vimos agora aparecerem as oitícicas, e
os pereiros, as jaramiataias [jaramataias] e [em] abundância já os cactos.
Jamacarus, facheiros, xiquexiques, e urubetos rasteiros. Tivemos uma
grande errada, e com algumas paradas gastamos uma hora e três quartos,
e chegando a Carnaúbas ao meio-dia, ficamos para viagem três horas; que
andadas devagar, e passando ladeiras não podem dar do caminho senão
três léguas e meia a quatro; no entanto todo o mundo faz de S. Francisco
a Carnaúbas cinco léguas. O dia estava quente, mas sempre o sol coberto,

312
o que nos foi muito favorável. Em Carnaúbas estamos hospedados em casa
do proprietário desta fazenda, em casa assaz boa para fazenda do Ceará. O
dono está na serra, e a senhora nos deu agasalho, chegou logo depois um
filho moço de 25 anos, rapaz bastante simples, o que não é comum no
Ceará. Almoçamos às três horas da tarde, e então o termômetro dentro da
sala em que estamos mostra 25 graus, corre vento que ainda que quente
refresca.
Temos à vista e perto a serra da Uruburetama, que se estende para o
norte, e a sul avistamos as serras do Castoré, a oeste nos fica por detrás da
casa o serrote da Lagoa do Juiz.
[f. 22]
Nesta fazenda apanha-se nos anos bons mais de 30 bezerros, o preço
do gado aqui é: bois de um ano 25$000* [vinte e cinco mil-réis]; de dois
anos, 308000 [trinta mil-réis]; uma vaca, 308000 [trinta mil-réis]; um
carneiro ou uma cabra, 2$000 [dois mil-réis); galinha, capote, ovos a três e
quatro por vintém, leite (não se vende).
Às quatro o termômetro está a 25 graus e meio.
Água aqui é de um açude, é bastante clara, de sabor grosso e
assalobrado; mas melhor que a de S. Francisco, bebe-se bem.

19, sexta-feira, Juá: Em Carnaúbas estava o termômetro dentro da


sala em que dormimos, fechada, a 21 [graus] e meio ao amanhecer. Estava
o céu toldado e ventava pouco, ontem de tarde das três às oito da noite
ventava bastante do leste (dizem que os ventos são constantes, ora mais, ou
menos por todo o tempo das secas).
Às seis e meia despedimo-nos de nosso hóspede e partimos, demos
a cada um de seus filhinhos, que são dois meninos claros, fortes, corados
de olhos azuis, e cabelos loiros, 500 réis a cada um. Eram seis horas e meia,
às sete horas e quarenta minutos estávamos em Pocinhos. Às oito e vinte
estávamos em Mandacaru, aí tivemos uma errada de catorze minutos,
vimos no campo da casa algumas seriemas, e depois mais adiante nos
cantaram outras. Às dez [horas] e quarenta minutos chegamos a Juá onde
nos arranchamos. Foi pois a viagem de quatro horas e dez minutos, das
quais devemos deduzir uns vinte minutos de errada, e demoras, ficando-
* Isto é, bois de quatro invernos, e capados no terceiro inverno, é que chamam de ano.

313
nos pois três horas e cinquenta minutos, que andando devagar nos daria
cinco léguas escassas, e a gente do país faz de Carnaúbas a Juá seis léguas.
Conversando ainda com o genro do dono da fazenda de Carnaúbas, e que
é o seu vaqueiro, nos disse ele que a fazenda tem de terras, um quarto de
légua de testada, e meia légua de fundo, [f. 23] e que se acha já muito
apartada por vizinhos, tem uma manada de carneiros de 500 cabeças e a
ração que agora lhes dão assim como às cabras é de caroços de algodão.
Os fazendeiros do sertão, bem que em tudo preferem a carne de
gado, fazem sua alimentação mais ordinária da carne de ovelha, e de cabrito
durante o inverno, criam pouco porcos, muito capote e alguma galinha e
patos.
Quando falta pasto para o gado queimam as touceiras de xiquexique,
fazendo coivaras em cima e então servem de alimento ao gado, que o come
com prazer.
Andamos sempre com sol mais ou menos coberto, o que muito nos
favorece. O país é todo raro [raso], com pequenas ondulações, fazendo
meias laranjas muito rasas, cortado de escavações de torrentes; e semeado
de serrotes de vários tamanhos, às vezes formando verdadeiras serras; são
montes de cor cinzenta escura, rochosas, e mui árida, cobertas de caatingas
ralas, e de pastos, e o terreno raso é todo coberto de caatingas folhadas,
ou ralas e baixas, com pasto por baixo, constando de juremas, sabiás,
catingueiras, pereiros, aroeiras etc. etc.
Juá: Lugar de muitas habitações de vaqueiros, com aguada boa para
gado, e água de beber pesada, salobra, mas suportável. À casa onde estamos
é situada num alto, e fomos mui bem recebidos por seus moradores.
O dono da casa se chama Francisco José Pinto, filho, casado, e ainda
muito moço.
Às três horas da tarde o termômetro dentro da casa marca 26 graus,
corre um ar quente, e seco. De noite à hora da ceia, o nosso hóspede
nos fez companhia, ficando a mulher encostada na porta interior, e daí
tagarelando. É notável a simplicidade desta gente. Perguntaram-nos se
nós vínhamos mandados pela rainha, e como respondêssemos que sim,
perguntaram mais se a rainha já tinha feito pazes com o imperador. À vista
da nossa ignorância a tal respeito se explicaram então, dizendo: correu
por aqui que a rainha, que é chimanga [f. 24] quer que todos os escravos

314
sejam forros, ao que se opõe o imperador, que é do partido caranguejo;
esta desavença os separou, e receia-se por isso grandes novidades, porque
dizem [que] se quiserem forrar os escravos muita gente se há de opor e
resistir, e há de haver muita desordem, porque sem escravos não se pode
passar.
Neste gênero e neste sabor correu a nossa conversação até além das
nove horas da noite, e muito nos divertiu a simplicidade desta gente.
E para mostrar o que é aqui o espírito de partido, referirei o que
se passou conosco e o moço (simplório) de Carnaúbas: perguntando-lhe
Manoel se ele era caranguejo ou chimango, respondeu prontamente: “Eu sou
caranguejo, e não seria chimango por coisa nenhuma. Se me pusessem uma
faca ao peito obrigando-me a ser chimango, eu preferia morrer caranguejo”.
Então por que lhe perguntou Manoel: “Que mal há em ser chimango?”. “É
que os chimangos não querem rei; são absolutos, e só querem eles mandar”.
Por este modo discorria, apesar dos gracejos de Manoel.
Ao romper do dia em Juá estava o termômetro a 21 graus. Esta noite
ventou muito. Tomamos café, e partimos às seis horas e meia, e às onze
e um quarto estávamos nos Olhos-d'Água do Pajé, que fazem distar seis
léguas do Juá.
Sábado, 20 de outubro, Olhos-d'Água do Pajé, caminho: Saído de
Juá às seis horas e perdendo meia hora com erradas, chegamos ou passamos
às oito [horas] e três quartos o rio das Carnaúbas; tendo de caminho,
descontado o tempo das erradas uma hora e três quartos, que nos dá duas
léguas. Às nove [horas] e três quartos passamos o rio Aracatiaçu, tendo de
caminho duas horas e três quartos, e portanto temos quase três léguas e
meia. Chegamos aos Olhos-d' Água do Pajé às onze [horas] e um quarto,
tendo de caminho quatro horas e um quarto, o que faz cinco léguas boas, e
não seis como aqui calculam.
Apanhamos nesta travessia grande soalheira, o terreno é chão, mui
pouco acidentado, são tabuleiros de juremas e carnaúbas, com malhas
pedregosas.
Fomos muito bem recebidos pelo Sr. Antônio José da Rocha, homem
de aspecto venerável de 73 anos, mas forte e mui corado; vive aqui há
muitos anos com numerosa família; sua mulher ainda vive, é casado há
53 anos, e teve nove filhos, que estão todos casados menos uma que vive

315
ainda com ele. Eram mais de duas horas quando pôs a sua mesa, e instou
conosco [f. 25] para que jantássemos com ele, cedemos. Era o jantar de
carne cozida picada, com escaldado, e de carne guisada (a carne cozida
tinha uma catinga, que já notei em outra ocasião em que me oferecera carne
fresca cozida no sertão), e por sobremesa melado feito de rapadura e queijo.
A água aqui é bem sofrível; e a temos bebido bem. Aqui também o Sr.
Rocha nos perguntou se no juramento da princesa se tinham congraçado
os partidos! Estamos aqui suportando um grande calor.
A serra do Pajé nos fica aqui a sudoeste e a duas léguas, dizem de
distância da fazenda do Pajé daqui a Sobral fazem onze léguas à Santa
Quitéria onze léguas.
Às três horas estava o termômetro na sala a 27 graus.
Às cinco horas o metemos no Olho-d'Água do Pajé e desceu a 25
[graus] e meio.
O poço tem bastante água; mas não como fora porque se esgota
sempre para o bebedouro dos animais. O poço tem obras artificiais, mas
toscas — está coberto de telha, e cercado para que os animais não vão lá, tem
um bom tanque de tijolo, onde se põe água para os animais beberem. A
água é clara, e do fundo saem bolhas gasosas.
Jantamos às oito horas e nos fez companhia nosso hóspede. Estendidas
as nossas redes embaixo da latada, aí sofremos durante o dia muito calor, e de
noite muito vento e frio, que nos não deixou dormir. A casa estava sempre cheia
de gente, todos parentes do dono o Sr. Rocha. Ao amanhecer do domingo,
o termômetro que ficou na sala fechada marcava 21 graus. Depois de tomar
café, fui-me lavar na fonte do Pajé que estava quase cheia, uma água morna;
lavei-me bem a meu gosto, quando voltei para a casa achei a sala cheia de gente
e principalmente de senhoras da casa e da vizinhança que se vinham receitar.
Toda esta gente, principalmente os menofre]s são de uma aparência de saúde,
bonitos, corados, belos olhos, bons dentes, e mui espertos; diz o Sr. Rocha que
aqui nunca precisa cirurgia. As moléstias de que se queixam mais. [f. 26]
No entanto foi ele, segundo afirma, que introduziu no Ceará os
jumentos andaluzes para criação de burros, e nos mostrou dois que trazia
consigo para criá-los em suas fazendas. Faltam-lhe pois conhecimentos
práticos, e científicos, e gênio empreendedor, e desamor ao dinheiro para
que pudessem fazer mais [apagado].

316
De noite, conversando com o vaqueiro (do senador) Francisco Feijó
de Melo, que dormia conosco na latada, em sua rede, nos disse ele que há
por estes lugares muitas cascavéis, que se encontram em lotes (ainda não
vimos uma só), que há também surucucus, e muitas jararacas. Que por
aqui no sertão se costumava trabalhar nas cacimbas de noite com o luar,
ou mesmo com fachos; para não maltratar os bois, que arrastam a areia
ou terra que se cava e a arrastam em couros, ou em mesas de tábua. Que é
mais comum a moléstia do gado chamada treme (espécie de tétanos) no ano
em que abundam as pombas de bando, e atribuem isto, o que também nos
asseverou o senador Paula Pessoa, a comer o gado o esterco dessas pombas,
como o animal come milho.
Levantados de manhã, tendo tomado café, e acompanhados por um
rapazinho, que mandou o Sr. Feijó de Melo para ensinar-nos as erradas.
Partimos às seis horas e meia da manhã da segunda-feira 22 de outubro.
Às oito horas passamos o rio Jucurutu, tendo passado logo ao partir
de Picos um riacho afluente do Guiraira, tivemos uma grande errada talvez
de uma légua, e perdemos mais de uma hora em outras erradas, em paradas
etc., e viemos chegar ao meio-dia a Passagem Limpa, que fazem distar de
Picos cinco léguas; mas pouco mais de quatro julgo eu ser. Aqui fomos
hospedados e obsequiados por um filho da dona [f. 27] da casa, que [alinda
não nos apareceu. Aqui achamos mais dois sujeitos arranchados.
A viagem de hoje nos foi muito penosa, tanto pelas erradas como
porque o sol esteve ardente e sempre descoberto, e o país árido, queimado,
nem um refrigério nos dava. Na casa em que estávamos, que não é má, e
temos uma boa sala, olhando para o nascente, e estando sempre correndo
algum vento, é este quente, e o calor é intenso [que] mesmo a rede queima
as costas. O termômetro dentro da sala, às quatro horas marca 28 graus e
meio.
À água aqui bem que grossa, e leitosa, é fresca e tragável. Ontem
tivemos água detestável em Picos; e dessa mesma bebia o senador Paula
Pessoa.
O sertão que hoje passamos é mui árido, mui raso, pouco pedregoso,
é todo de tabuleiros, ou caatingas ralas, e tem ainda boa pastagem. Às matas
são pela maior parte juremas, têm aroeiras, paus-brancos etc. etc. Vimos
passar ou cantar algumas seriemas: e aqui nos disse o dono da casa em que

317
estamos, vendo passar pelo campo três caçadores com espingardas, que hoje
haviam matado três emas bem grandes. Eu ainda não pude ver uma ema
nos campos, ou matas.
Aqui me disse agora o Sr. Antônio Lima de Mesquita que as chuvas de
inverno nem sempre começam neste lugar com trovoadas, que as primeiras
chuvas, e mesmo durante o inverno, são sempre ao anoitecer, de noite, e de
madrugada; que raras vezes duram além das dez horas da manhá e que vêm
sempre do nascente.
Tenho achado este lado da província mais quente que o do Jaguaribe.
Venta quase sempre e do lado do levante, mas não venta constante e igual.
Das onze horas ao meio-dia venta mais forte, [f. 28] das quatro às seis
da tarde venta de novo, depois das oito às dez da noite e que dura até depois
da meia-noite, mas de madrugada cala o vento, e apenas há uma aragem até
às onze horas. Isto é para mais ou menos; às vezes há tufões e redemoinhos
fortes, as noites são belas e muito frescas, às vezes muito frias. As manhãs
têm sido de ordinário anuviadas e enquanto estivemos debaixo da influência
da Uruburetama, havia sempre de manhã um chuvisco, ou nevoeiro.
Das dez às cinco da tarde o calor é intenso, e o ar quente mas seco.
Assim sentimos calor mas suamos pouco; o contrário da capital onde suava
demasiado. Tenho passado bem, e já não sofro aquele cuspe grosso e escuro
na boca que sentia logo que entrei no sertão.
23: Às seis horas da manhã, o termômetro na sala em que dormimos
com as janelas abertas estava em 18 [graus] e meio; a noite foi fresca, mas não
fria; ontem de noite veio conversar conosco a dona da casa, que nos disse ter
sido casada pela primeira vez (é viúva do segundo marido) com um tio do Dr.
Pompeu, irmão da mãe, esta senhora já idosa não me pareceu branca legítima.
Tendo tomado uma xícara de café simples partimos às seis horas e
três quartos, despedindo-nos da senhora Theresa Rodrigues Tavares, e de
um filho, que mora aí perto, o Sr. Antônio José de Mesquita, que nos
obsequiaram quanto puderam; ele deu-nos milho para os nossos cavalos,
e ela deu-nos uma galinha, que foi preparada em sua cozinha para nosso
almoço, que foi às três horas da tarde.
Tendo pois partido às seis horas e três quartos (de terça-feira, 23
de outubro) passamos o rio do Macaco às sete horas e quarenta minutos;
andando errados chegamos à Caiçara às dez horas.

318
[f. 29]
Fomos recebidos mui bem pelo dono da casa o Sr. Zeferino Amâncio
de Oliveira, casado, ele e a senhora brancos, e moços têm já uns cinco
filhinhos mui galantes.
Andamos, com sol forte e descoberto, e por um país coberto de
caatingas e de largas ondulações, andamos por uma chapada quase hora e
meia e isto devido à proximidade da serra Grande que a temos à vista, na
distância de umas oito a nove léguas. Vimos nas caatingas algumas seriemas,
e uma linda perdiz.
Manoel colhe bagos de mulungu; e atrás da casa onde estamos há um
pé de cumaru com frutas já abertas, de que colhemos algumas e fizemos
estudo, tanto desta como da de mulungu. Estamos escrevendo isto sentado
na rede, com grande calor, e vento em postura (a casa está ainda aberta) e
rodeados de galinhas, capotes, cabras e cachorros e também de meninos.
Aqui temos uma mesa de mulungu de quase quatro palmos de largo
— oito de comprido, com quatro lados travessos de espessura e de uma só
peça e diz o Sr. Zeferino que os há que ainda dão maiores tabuadas e são
leves. Diz ele ainda que a timbaúba, que agora está por aqui com fruta,
engrossa muito e dá boa madeira de cerne, que é brando como o cedro.
Esta boa gente nos agasalhou muito bem; e como déssemos algumas
galantarias as filhinhas nos presentearam com uma galinha, que nos
mandaram oferecer por uma das meninas; e mandaram pedir emprestado
um pouco de milho, a uma vizinha, e nos deram.
Aqui estavam eles bastante vexados por notícias que lhes chegaram
de Pernambuco, um sujeito por nome Belmiro, filho dum personagem da
serra Grande, coronel da Guarda Nacional, moço de uns 25 anos, casado,
tendo para isso furtado a moça, e é também tenente da Guarda Nacional etc.
etc. Este sujeito, digo, indo a Pernambuco, levando cavalos para negócio,
e em companhia de mais uns poucos de homens aqui do Ceará, ali, creio
que em Pedra de Fogo, tendo concluído a venda de cavalos, seduziu uma
[f. 30] menina de 12 a 14 anos, filha também de pessoa importante dali,
onde é comandante superior da Guarda Nacional, enganando-a que era
solteiro, e furtou-a. O pai, os irmãos, e parentes da menina espalharam logo
gente em procura do raptor, e dizem que com ordem de o matar; ele porém
pôde escapar-se, e embarcar com a menina num vapor e ir para o Ceará,

319
onde se acha. A polícia porém de Pernambuco prende rodos dos outros,
seus companheiros uns poucos, outros fugiram; e apreenderam tudo o que
tinham.
É este caso importante para mostrar o caráter ainda destes homens,
o barbarismo de seus costumes e a arrogância do seu proceder, sem dúvida
entendendo que com eles nada podem as justiças! Veremos.
Os filhos do nosso hóspede, como todos os meninos do sertão, são
bem conformados, bonitinhos, alguns claros, rosados, de olhos azuis e
cabelos castanhos ou louros. Os olhos sempre magníficos, assim como os
dentes; bem feitos de pernas etc. etc. Isto enquanto meninos.
As moças logo que casam perdem esse lustre, e em consequência
do abandono a que se entregam, perdem todas as suas graças. Os moços
também, em razão de não tratarem de si, tornam-se logo farrões, bem que
quase sempre vigorosos e muitos chegam a idades muito avançadas.
A má alimentação, quase toda de carne, e carnes mal preparadas, de
farinha, de rapaduras etc. etc., exceto no inverno em que quase se sustenta
de leite, coalhada e queijo. Águas sempre más, e às vezes detestáveis, tudo
isso, digo, faz que [mesmo] com aparência de boa saúde pela maior parte
sofram do estômago.
Sofremos hoje grande calor; não havia vento, ou era quente, nem
lugar onde se estivesse; e sempre incomodados pela grande quantidade de
criação esfomeada, e que a tudo avançava.
Não sei como se pode criar no sertão sem alimentar [f. 31] a criação
com alimentos ou rações, tudo é torrado, nem vegetais nem animais de que
se nutrem! Às vezes nem água!
O termômetro, colocado na sala interna, estava às quatro horas da
tarde em 28 [graus] e um quarto.
O vento aracati* não chegou senão depois das nove horas da noite,
foi então que recolhemos a nossa rede e nos deitamos, a noite nem foi
quente nem fresca. Ao amanhecer estava o termômetro em 18 [graus] e
meio.
Quarta-feira, 24 de outubro.
Depois de tomarmos uma xícara de café simples, e de nos despedirmos
dos nossos hóspedes, partimos eram seis e meia.

*Aracati seu ar [apagado] vento bom [restante da frase apagada]

320
Às sete horas e três quartos passamos o rio Acaracu [Acaraú]. Às nove
horas passamos pelo lugar denominado Volta, aí passa o riacho Jatobá,
junto a um carnaubal. Às dez e meia chegamos a Marroais — que fazem
estar cinco léguas distante de Caiçara.
Andamos com sol sempre descoberto, calma forte, aragem pequena
ou nula. O terreno é como o de ontem de grandes e profundas ondulações,
exceto aos dois lados do Acaracu [Acaraú], onde meia légua para um lado
e para outro, pouco mais ou menos, as ondulações se tornaram mais raras
e largas, formando tabuleiros de terra parda e arenosa, sendo nas grandes
ondulações de uma terra avermelhada, e de pedregulho. As matas são
caatingas, de sabiá, jurema, catingueira, pereiros, mororós, angicos, aroeiras,
violetas, carobas, caraúbas, timbaúbas, cumaru, carvoeiras etc. etc.
Os angicos, as carobas, caraúbas estão floreando. Ás aroeiras,
cumarus, violetas etc. estão com fruta.
Ontem em Caiçara, e hoje em Marroais temos tido água má, só em
laranjada se pode tragar.
[f. 32]
Às quatro horas da tarde o termômetro colocado na sala aberta está
em 26 graus, o calor é intenso, apenas corre uma aragem quente, a gente
balançando-se na rede não acha alívio, a mesma rede queima as costas;
nem ao menos temos água que agrade ao beber!! O céu está estanhado; e
a serra da Ibiapaba, de um azul cinzento, lança fumo por toda a parte, de
queimadas nas suas encostas. Está daqui a umas quatro léguas, é rasa como
o Araripe.
O dono da casa em que estamos é o Sr. Inácio Alves Ferreira, casado,
e proprietário da fazenda denominada Marroais.
Estiveram aqui de tarde várias pessoas da família, e trouxeram uma
menina com um cancro num pé para se receitar.
Passamos o dia incomodados, à noite bem que dormimos com janelas
abertas, não foi muito fresca, o vento só nos chegou depois das nove horas
e fraco, e durou pouco.
De manhã estava o termômetro em 19 graus e meio.
Partimos para o Ipu às seis horas e meia, e chegamos às dez e meia
bastante enfadados, sol muito quente, ar quase parado, caminhos estreitos,
tortuosos, pedregosos, e caatingas torradas. O terreno como o dos dias

321
anteriores de grandes e profundas ondulações; quase sempre coberto de
pedrico. Em meia viagem, ao chegar à Boa Vista o aspecto do terreno e a
vegetação nos fez lembrar lavras, sambaíbas, paraíbas, coração-de-negro,
pau-de-moço, muita trameria (carrapicho-de-cavalo).
Chegando à vila tivemos mais de uma decepção; o aspecto da serra
amesquinhou-se de modo a entristecer-nos; daqui nos parece de vegetação
insignificante, não é mais que um monte raso, largo, semelhante em forma
ao Araripe. À vila é das mais miseráveis, cultura não a vemos etc. etc. etc.
(f. 33]
Fomos recebidos em uma casa onde estavam várias pessoas, uma
delas é um advogado aqui, o Sr. Dr. Leocádio de Andrade Pessoa, filho
bastardo do senador. O dono dali é alfaiate e dono de terra dizendo eles
que só um Sr. Teixeira, que aqui [é] uma das pessoas mais importantes, pelo
que me parece, e que estava no seu engenho, dirigindo as obras junto a um
grande açude. Lá mandamos o ordenança, que voltou com recados para
que nos depusessem a sua própria casa à nossa disposição, com efeito aqui
estamos já instalados nela.
Ipu. Quinta-feira, 25 de outubro de 1860.
Às duas horas e meia, quando íamos almoçar, estava o termômetro
em 27 [graus] e um quarto — tarde calmosa, o vento que aqui chamam
também aracati, só chegou e brando depois das nove da noite.
De tardinha nos vestimos, e fomos dar um giro pela vila, eu e
Manoel. Achamo-la com mais povo de que nos havia parecido; tem só
uma rua, mal alinhada, que dá na praça, que é grande, e ainda não de todo
guarnecida de casas. As casas são pequenas, em geral mesquinhas; há porém
já algumas de bom aspecto, e mesmo já existe um sobradinho, são de telha
e caiadas. À matriz tem só a capela nua com paredes de tijolo, que não estão
ainda rebocadas. O corpo da igreja, provisório, é uma coberta de telha,
com paredes de pau-a-pique barreadas somente, já muito esboaçada, ainda
a não vimos por dentro, ao lado da igreja — está a cadeia! Casebre de telha
com paredes de pau-a-pique barreadas; com uma latada na frente, onde
estão alguns soldados de guarda, há nesta cadeia onze presos homens, e
três mulheres em repartimento separado. Esta cadeia tem o aspecto de uma
casa arruinada. Estão, se parece, construindo em outro lugar uma cadeia
com paredes de tijolo, com grades de ferro etc., que será boa obra; bem

322
que pequena. Pelo fundo da Matriz há [f. 34] outra igrejinha velha, cuja
invocação não sei ainda, voltamos por outro lugar, donde víamos grande
parte de outras casas, já de telhas, e já palhoças.
Ao chegarmos a casa nos apareceu logo o Sr. Teixeira, dono da casa
em que estamos, e pouco depois o Dr. Leocádio — com eles sentados no
paiol, ou calçada da casa estivemos conversando até que nos chamaram
para jantar, eram mais de nove horas. Este jantar nos foi mandado da casa
do Sr. Teixeira,
Procurei o delegado de polícia, que não está na vila, fomos à casa do
subdelegado que a achamos fechada.
Dia 26: Ao amanhecer estava o termômetro na sala, [em] que dormi
fechada em 21 graus. À noite foi quente. De manhã saiu Manoel, vi alguns
doentes, e fez uma excursão botânica, das plantas que colheu desenhou
duas.
Eu só saí a ver aqui na vizinhança dois doentes.
Três horas da tarde: Termômetro 27 [graus] e um quarto. Dia quente
bem que hoje [com] alguma aragem. De tardinha, quase ao entrar o sol,
fomos a pé ao sair do Sr. Teixeira — eu, Manoel e os Srs. [ilegível] o achamos
no engenho dirigindo as obras, a fábrica é um ponto grande, bem feita,
com boas moendas de ferro, bem que não está acabada, achamos moendo
canas para aguardente. Conversamos até às oito horas, bebemos garapa e
voltamos para a vila; os canaviais são mui próximos ao engenho, em uma
baixada, que se estende ao longe, e tem por cima um grande açude, que
a conserva sempre fresca e úmida. As canas estão muito viçosas, e são de
grandeza enorme, o caminho para a vila passa por cima do dique ou parede
do açude, que ainda se está aterrando, para lhe dar mais altura.
Dia 27, sábado, amanheceu o dia anuviado e o termômetro na sala
fechada estava, às seis horas, [em] 21 [graus] e meio; a noite não foi fresca.
Três horas da tarde, 27 [graus] e meio, calor intenso, [f. 35] Manoel esteve
todo o dia incomodado. Eu saí a pagar algumas visitas a ver doentes e fui
ao secretário da Câmara Municipal o Sr. Paulino Francisco [ilegível] a ver
se havia livros antigos no arquivo, e se mos podia mostrar; com a melhor
vontade vestiu-se e foi comigo à Casa da Câmara, mostrou-me todos os
livros antigos, que vieram da antiga Vila Nova d'El-Rei, e permitiu-me
que os levasse para casa a examiná-los, em cujo exame gastei grande parte

323
do dia, nem de tarde saí. Veio visitar-me o Dr. Antonio Firmo Figueira de
Saboia, juiz municipal e dos órfãos.
Domingo, 28, de manhã céu anuviado termômetro 21 [graus]
e meio. Assisti à missa [e depois] me veio visitar o delegado de polícia,
que acaba de chegar da Campo Grande, é o Sr. Francisco José da Silva
Baima, alferes e comandante do destacamento que aqui está. Depois do
almoço nos vestimos, e fomos para a igreja, com o Sr. Teixeira; eram dez
horas e meia. Na sacristia achamos o vigário e o cumprimentamos; e várias
pessoas mais na igreja, que por dentro é mais asseada, bem tem decorações,
[mais] do que mostra por fora. Havia muita gente feminina, e entre ela
alguma carinha interessante, Depois da missa, voltamos para casa e nos
acompanhou o Dr. juiz de Direito, o Sr. Francisco de Assis Oliveira Maciel,
filho de Pernambuco; depois se apresentou o vigário, padre Francisco Corrêa
de Carvalho e Silva, filho de Aracati, e depois o Sr. Manoel José Coelho.
Conversamos bastante; depois fui ver os meus doentes e de volta pus-me
à fresca, bebi laranjadas, li os livros da Câmara e depois do jantar tivemos
sempre o Sr. Teixeira até além das oito, nove da noite: mandou também
ele chamar, a meu pedido, um caboclo velho, morador antigo deste lugar,
com o qual conversei inquirindo das coisas antigas do Ipu. Pouco obtive,
e escrevi [f. 36] e transcrevi: depois o Sr. Teixeira fez-me presente de uma
carta geográfica deste lugar, a saber da serra Grande e a parte do sertão,
entre Sobral, Granja e Ipu até o mar, feita pelo engenheiro London, que a
levantou com vistas de empreender uma estrada de ferro do Ipu a Granja.
O Sr. Teixeira obteve também um privilégio para lavrar as minas quaisquer
que descobrisse no Ceará mas não tem formada ainda a companhia, e julgo
que nunca a formará.
Foi hoje o dia muito quente, às três [horas] o termômetro estava a 27
graus e três quartos. Eram nove horas da noite quando começa o aracati.
Da conversa do Sr. Teixeira entre outras coisas obtivemos algumas
noções sobre o Apodi e a Borborema, tendo ele feito várias viagens por
terra do Ceará a Pernambuco. A chapada do Apodi é rasa, seca e coberta
de mata formada quase só, ou principalmente, de sabiás, uma outra árvore
que se parece com o pau-branco, e muita macambira. A Borborema é serra
alta, de subida desigual e com chapada também ondulada, toda coberta

324
de gramas, que formam campinas, semeadas de imbus, e de imburanas. O
rio Paraíba no lugar em que ele passou é largo, mas dividido, e com ilhas e
pedras denegridas, suas margens são montanhosas, de aspecto triste: a gente
que habita esse lugar é de aspecto feio, e miserável.
Segunda-feira, 22 de outubro: Foi a noite quente; ao amanhecer
estava o céu anuviado, e o termômetro a 22 graus. Seriam oito horas
quando o tempo se cobriu mais e caiu uma chuva fina vinda de cima da
serra. Ainda outra [f. 37] decepção, esperava eu hoje ver correr a cascata
do Ipu (o verdadeiro nome deste lugar é provável que fosse Itu, que se
corrompeu para Ipu, palavra mais usual) de que tanto se me falava; mas
a olho desarmado apenas percebi o fio d'água, que só com o óculo pude
perceber; mas dizem e eu creio que no tempo das chuvas abundantes corre
com força, o grande estrondo, formando um pano d'água de três braças
ou mais de largura; mas então a água é escura por vir suja de cima da serra.
Ocupamo-nos durante o dia em copiar alguns documentos dos
livros da Câmara Municipal; interrompidos de vez em quando por alguns
importunos, que se vinham receitar, ou que nos vinham visitar.
Tivemos uma visita, que não esperávamos: foi do tal Sr. Belmiro, o
roubador da menina pernambucana. Veio com ela para casa! Onde tem a
mulher, ainda não vi tanto desfaçamento, anda por aqui passeando, fazendo
visitas, e talvez fazendo ostentação de sua proeza. Está tão senhor de si e tão
satisfeito, como se nada se tivesse passado com ele. É ainda muito moço,
me parece estouvadinho, e seguramente falta-lhe juízo.
Às três horas da tarde estava o termômetro em 26 [graus] e meio. O
calor era forte, agora são oito horas e já venta o aracati.
Andei esta tarde pagando visitas; ao Dr. juiz de Direito, ao Sr.
Coelho, ao Dr. Saboia e ao delegado de polícia; vi os meus doentes e voltei
para casa, onde achei um maço de cartas, e ofício do Gabaglia, mandado
pelo capitão Oliveira.
Terça-feira, 30 de
outubro: Amanheceu o dia coberto, o
termômetro estava em 21 graus. Continuamos hoje a fazer extratos dos
livros da Câmara. Fiz uma vista da serra no lugar em que ela forma a
cascata, que aqui chamam bica. A água que cai aqui da serra é clara, e mui
boa, e é repartida pelos habitantes de cima da serra que a retém por uma
semana, e a soltam por duas semanas para os habitantes do Ipu. Todavia,
325
pelo desmazelo desta gente, [f. 38] em geral não se bebe boa água aqui,
com efeito aqui tivemos nós na nossa talha água mui pura, que ontem
quando se tomou era toldada, e má. A carne aqui não é das melhores;
há muito bom pão, há algumas frutas, laranjas, bananas, cajus (que não
são melhores que as do Rio de Janeiro, se houvesse indústria na gente se
podia ter aqui muita e muito boa fruta, muita hortaliça, verduras), não
pudemos aqui ter leite. Temos sido, como já disse, hospedados em casa
do Sr. José Bernardo Teixeira, que não consentiu que mandássemos fazer
comida, e a mandava aprontar aqui em casa de sua sogra, que nos deu
sempre comida farta, e boa. Este Sr. Teixeira é uma das primeiras pessoas
deste lugar — inteligente, industrioso, e trabalhador; tem introduzido
neste lugar muita coisa desconhecida por estes sertões, até [ha] víamos
achado em sua casa uma máquina de costura, que trouxe o ano passado de
Pernambuco [e] com que tem admirado aqui este povo, que julga aquilo
movido por artes diabólicas, “é obra do cão”, dizem eles, e nem querem
vestir roupa cosida na máquina. Está o Sr. Teixeira fazendo uma excelente
fábrica de açúcar; tem feito açudes, tem intentado formar companhias de
mineração e de extração de salitre, e de citrato de ferro por companhias
inglesas etc. Por isso tudo, e por ser filho do Ceará (Fortaleza) lhe fazem
aqui guerra, e o atormentam do modo que podem.
É casado aqui, e em quatro anos tem tido quatro filhos, a mais velha
de três anos, bem galante, a senhora teve um parto duplo. Seu sogro, o Sr.
Vicente Furtado de Mendonça, nos tem também obsequiado muito. Três
horas da tarde. Calor forte, termômetro a 27 graus.
Às quatro horas vesti-me e fui fazer as minhas visitas de despedida;
primeiro fui ao Sr. Justino Francisco Xavier, secretário da Câmara, a quem
fiz [a] entrega dos livros do arquivo municipal, que me tinham franqueado
e dei resposta vocal de uma carta, que me havia dirigido pedindo a minha
opinião sobre as febres que se diz reinarem aqui epidemicamente. Daí fui
ao Sr. Joaquim Corrêa Lima, piauiense aqui morador, que tem uma filhinha
entrevada. Em seguida visitei o Sr. Antonio Marins Crescente, também
piauiense. Daí ao Sr. Antonio Holanda Bezerra [f. 39] e passando pela
porta do Dr. Saboia, bati mas ninguém me apareceu, enfim visitei os meus
doentes. Voltando para casa achei cavalos selados, para mim e Manoel,
e fomos despedir-nos do vigário e do Sr. Teixeira, onde nos demoramos

326
conversando sendo da companhia o Dr. Pessoa, até quase oito horas;
quando voltamos para casa fazia boa lua.
O pequeno rio que forma aqui a cascata, chamada bica, se denomina
Puçaba.
A serra Grande, que daqui da vila não mostra sua grandeza, é todavia
de aspecto grave; sua composição e formação parece análoga à do Araripe,
com o que se continua, mas há uma grande diferença, e é que aqui o sertão
chega abaixo da serra, de cujos flancos não brota água como nos do Araripe;
a água que a serra lança para aqui vem por cima dela. Parece haver aqui
fenômeno inverso, sendo deste lado a serra, como é o Araripe para o Exu.
Ali as águas da serra caem para o lado do Crato, e aqui caem para o lado
do Piauí.
Quarta-feira, 31 de outubro: Levantamo-nos cedo para a partida, o
termômetro estava a 21 graus.
Fizemos um ligeiro almoço e montamos a cavalo às oito horas em
ponto, quiseram nos obsequiar acompanhando o Sr. Teixeira e o Dr. Pessoa,
que chegaram quase ao meio da ladeira. Veio também conosco o Sr. Joaquim
Corrêa Lima, que tinha negócio em Campo Grande.
Chegamos ao alto da serra às dez horas, tem pois a ladeira légua e
meia de desenvolvimento, dizem que é a melhor delas; mas tem pedaços
incríveis, anda-se por sobre um montão de pedras, em caminho íngreme,
é um verdadeiro caminho de cobras, nesses lugares me apeava. Subindo a
ladeira goza-se de magníficos postos de vista, vê-se um país raso por grande
extensão; ao longe a serra das Matas, e uma infinidade de serrotes de todos
os tamanhos.
[f. 40]
O talhado da serra é em lugares abrupto, em outros irregular e por
degraus, em alguns lugares se mostra imponente. Toda a ladeira é coberta
de uma vegetação, ora grande, ora de caatinga, e ora de carrasco do meio
da serra para cima, estavam os matos folhados e muitas plantas com flor.
Quando íamos subindo os últimos degraus, acompanhando o riacho
Puçaba que vai formar a cascata do Ipu, a vegetação, tanto espontânea
como cultivada, se tornou semelhante à do Rio de Janeiro. Encontramos
com flor a nossa Foncecea, a syplecampilos e a Schovenria, e outras muitas.
As casas rodeadas de cafezais, de laranjais, de bananais, com mamoeiros, e

327
mamoneiras, as roças de mandioca, de cana, de algodão, tudo verde, me
produziu um sentimento de saudade, e que me transportou em espírito aos
meus lares.
Andando sempre pela quebrada da serra ao lado do mencionado
riacho, cujas margens são bastante povoadas, e o terreno desigual e
montanhoso, e sempre com subidas mais ou menos ásperas, chegamos
ao meio dia a S. Paulo ao sítio do Sr. major Félix José de Souza, ancião
respeitável, que nos veio receber no terreiro, e nos mandou acompanhar
até outra casa [ilegível], de melhores acomodações, de um seu parente o Sr.
capitão José Ximenes de Aragão, pelo qual fomos excelentemente recebidos
e obsequiados; não tardou que a casa recebesse várias pessoas, entre as quais
o Sr. major Félix. Estendidos em redes numa espaçosa sala, conversamos, e
examinamos várias doentes.
Às horas fomos chamados para jantar.
[f. 41] .
O jantar constou de galinha cozida, e escaldada; galinha assada e
arroz, laranjas, ananás, queijo e doce de banana, água fresca e boa. Às cinco
horas da tarde partimos; antes tomamos café, e então se apresentaram as
senhoras. A mulher do Sr. Aragão é irmã do Sr. Belmiro, de que temos
falado, que furtou a moça em Pernambuco, e me dizem que está aqui em
Campo Grande, com a maior sem cerimônia.
O Sr. major Aragão, é outro moço do Sobral nos acompanhou até
Campo Grande, onde chegamos às seis e meia. Fazem do Ipu a Campo
Grande sete léguas, avaliação que eu acho muito aproximadamente légua e
meia de ladeira, do alto da serra até o sítio do Sr. major Félix, duas léguas
e meia, que fizemos em duas horas e daí a Campo Grande três léguas. Esta
última viagem foi quase toda pela chapada que é rasa arenosa, coberta de
agreste, e de muitas árvores do Araripe; mas com aspecto diverso, e muito
semelhante segundo me informei ao agreste do Piauí, do que estamos
vizinhos. Em partes o alto da serra tem ainda restos de suas matas primitivas
que deviam ser belas.
Aqui na serra temos tido água clara, e boa (menos a que agora bebi
daqui), ar fresco. Estamos na antiga Vila Nova de El-Rei, hoje povoação
dissidente e miserável. Estamos em um pardieiro, que dizem ser todavia a
melhor casa do lugar, que nos foi preparada por um irmão dum caixeiro do

328
Sr. Teixeira do Ipu. São mais de dez e vou-me deitar. Termômetro 18 graus.
Vila Nova de El-Rei, digo Campo Grande, quinta-feira, 1º de
novembro, seis horas, termômetro 17 graus.
[f. 42]
Sentado à porta com mais dois sujeitos, acontece que um deles era
o subdelegado Thomaz de Aquino Fonseca; deram assento, aí conversamos
até quase oito horas. O Sr. Cândido mostrou-me uma batata inglesa colhida
no seu quintal, e diz ele que de uma plantação que fez colheu mui boas.
Tenho visto pela primeira vez no Ceará o nosso mangalô, que aqui chamam
fava. Tenho visto aqui nos quintais, secos, como o da casa em que estamos,
com magníficas bananeiras, e muito boas laranjeiras, mas as laranjas não
são grande coisa, pequenas e azedas, dá por aqui o café, o repolho etc.
etc., mas não cultivalm] nada. É costume da gente do Ceará, do Piauí e
seguramente de outras províncias contíguas e análogas, comerem pouco,
ou nenhuma verdura. A alimentação vegetal destas gentes é a farinha de
mandioca; o milho, o arroz, algum feijão. O jerimum, a banana e os cocos
etc. etc. - Chamam comer escoteiro, comer carne só. Aqui como no Piauí. À
cultura aqui da serra é a mandioca, os chamados legumes, no inverno e nas
baixadas frescas a cana.
Sábado, 3 de novembro: Amanheceu céu anuviado, vento fresco de
leste, termômetro 17 [graus] e um quarto.
Ocupei-me com estudo e desenho de várias plantas, Manoel saiu a
fazer uma excursão a pé.
Três horas o termômetro está em 23 [graus] e meio. Tem sido o dia
um pouco mais quente que os passados.
De tardinha fui à casa do subdelegado falar-lhe a favor dum rapaz,
que anda escondido, para não ser recrutado por ter feito uma desordem,
estando embriagado; não o achei e me disse sua filha que ele fora chamado
pelo pai ao sítio; fui daí para a casa do Sr. Cândido, sentamo-nos fora sobre
a alta calçada, estava mais outro sujeito, [f. 43] chegou Manoel depois,
e depois mais outro sujeito [e] aí conversamos bastante; e dessa conversa
colhi o seguinte.
Aqui as mangueiras se tornam frondosas; mas dão muito pouca, ou
nenhuma fruta; essa porém é boa. O abacaxi não prospera, aqui dá uma
fruta mui pequena e ruim, o ananás dá bom até pelas matas, onde nasce por

329
si. Arroz não o cultivam. Mandioca, feijão e milho dá muito. À mandioca
era a primeira cultura antigamente, hoje cuida-se mais da cana, com que
se faz rapadura e aguardente, A cana rende muito aqui, assim uma pipa de
garapa de 80 canadas (cana dá oito garrafas) dá 16 canadas de aguardente,
e no Ipu só dá oito e mesmo sete. O açúcar porém do Ipu é melhor que
o daqui; que é sempre trigueiro. (No Ipu o Teixeira nos disse que purga o
seu açúcar com água, que fica em dois dias pronto, e muito claro; assim
porém perde muita parte sacarina, com o que se não importa, porque faz
dele aguardente).
Há aqui muitas e boas bananas, vejo aqui laranjeiras mais viçosas. As
goiabas são plantadas, cultiva-se café que o dá muito bom (dizem os daqui
que superior ao de Baturité).
Na seca de 1845 afluiu para aqui grande número de retirantes, vindos
do Riacho do Sangue, de Quixeramobim, de Mombaça e de Inhamuns. Por
felicidade houve esse ano aqui muita fruta silvestre que lhes foi de muito
socorro. Mesmo em 45 as árvores aqui não perderam as folhas. Sempre
calor [ilegível restante frase] [f. 44]
Nesse ano chegou aqui a farinha a 4$000 [quatro mil-réis] a quarta
(medida de 48 tigelas. Uma tigela equivale a uma garrafa ou meio quartilho.
Quartilho, duas garrafas. Oito garrafas, uma canada. Uma quarta tem oito
terças, e uma terça seis tigelas). E em 1846 vendeu-se farinha a 200 réis a
quarta!
Antes de 1845 era este lugar miserável. Em 1843 comprou um sujeito
o sítio da Timbaúba, um dos melhores daqui, junto com a casa em que nós
estamos, por 200$000 [duzentos mil-réis], e há pouco tempo vendeu a
casa, só, pelos 200$ [duzentos mil-réis] e o sítio por oitocentos [mil-réis]! É
notável esta época de 45.
No Crato se nos disse que daí datava a sua prosperidade, e que a
cidade se havia decorado com bons prédios de sobrado desde então.
Pacatuba prosperou depois desse ano.
Os rios azuis do alto da serra secam no verão, mas dão cacimbas. Há
por aqui alguns açudes. Houve em outros tempos muitas e vastas matas, cuja
grandeza atestam os restos, que ainda existem; mas só nas baixadas e nas
quebradas, as chapadas arenosas foram sempre despidas de grandes matas. A
cultura da mandioca, e hoje a da cana, do café etc. tem destruído tudo.

330
Há daqui bastante comércio com Piauí, levam daqui fazendas,
algodão grosso, rapaduras, aguardente, algum café e couro moído. Trazem
dele gado e couro de gado.
Há aqui muito beija-flor, várias quantidades de periquitos, pombas,
nambus, seriemas etc.
[F. 45]
Emas só existem nas macambiras. Alguma caça e pássaros
desapareceram daqui depois da seca de 45 como os urus (capoeiras). Onças
já não há senão nas macambiras. Porcos desapareceram, encontra-se hoje
apenas um ou outro catitu disperso, veados há poucos. Araras passam por
aqui do Piauí para os serrotes do sertão.
Há aqui um passarinho pequeno de cor vermelha ruja, que faz seu
ninho de passarinhos e põe sempre na boca do ninho um pedaço de pele de
cobra, que deixa na manhã.
Forma das medidas de secos, quarta, terça.

mms

Domingo, 4 de novembro: Ao amanhecer um belo dia e fresco o


termômetro na sala estava a 15 graus na sala fechada. Achei a medida da
área e ruas da povoação a passos, e tracei o plano dela. Ocupei-me depois
com o estudo de alguma planta, e de concluir a visão da serra no dique.
Três horas da tarde, termômetro 22 [graus] e meio.
Às ave-marias saí, fui à casa do subdelegado, a quem pedi pelo José
Rosa, que bêbado havia resistido à prisão, e que estava por isso condenado
para recruta, sendo qualificado guarda nacional; ele não teve dúvida em

331
absolvê-lo, depois veio ele comigo à casa, para nós com Manoel veio o
doente ferido de uma facada nas costas, parece que não tem perigo. Alguns
dias antes de virmos para aqui houve em um sítio vizinho uma desordem
que principiou por ter um rapaz ido com uma rapariga para uma fuzarca,
ou samba, e querendo outro disputá-la saiu o velho caboclo pai do primeiro
que estava na bulha armado de faca, a coisa acomodou-se; mas querendo
outros desarmar o velho caboclo que estava bêbado, este esfaqueou os dois,
um dos quais é o que fomos agora ver: mas logo que viram o cabo [f. 46]
no chão, outro sujeito, armado de cacete, deu-lhe cacetadas na cabeça que
lhe abriram o crânio, e matou. O matador fugiu [e] o velho caboclo morto
se enterrou no mesmo dia em que se enterrou outro sujeito morto também
em consequência de bordoadas. Veio depois para nossa casa o subdelegado,
junto com um mocinho bastante inteligente e aqui estivera conosco
conversando por algum tempo. Nesta conversa nos contou o subdelegado
horrores de mortandade cometida pelos Mourões, Barros, Melos etc. etc.,
que tenho pena de não poder reproduzir aqui.
Segunda-feira, 5 de novembro: Levantei-me cedo e vi o termômetro
na sala que estava em 17 graus — pulei fora da janela e desceu até sair o sol a
14 [graus] e meio. Já ontem estando na sala a 16 graus logo que se abriram
as portas desceu mesmo aí a 15 graus. É pois provável que nos tempos mais
frescos, junho e julho, ele desce estando fora do ar de manhã a 10 [graus].
Disse-me já o Sr. Cândido que já viu aqui o termômetro de [Reonimeer] (e
que é também o meu) a 13 graus, e que nunca o viu acima de 25 [graus),
isto porém é dentro de casa.
Também me disse o subdelegado, que se dizia que nos tempos
antigos, quando havia muitas matas, o frio era grande.
Hoje saí cedo a concluir o trabalho de levantamento do plano da
povoação — andamos medindo.
Depois do almoço saímos eu e Manoel a cavalo, Barreto, e um
mateiro daqui, Francisco de tal, a pé, e fomos até o sítio da Timbaúba, onde
há ainda uns restos de matas virgens — e dele voltando passamos pelo lugar
chamado Chapada. De um morro alto avistamos umas serras em distância
que avaliamos em seis à oito léguas, o que nos disse o mateiro [f. 47]
Francisco que eram as serras das Macambiras nas confrontações do Piauí.
Também no caminho encontramos o desembargador Machado, e o padre

332
Justino, que andam se preparando para as eleições. Chegamos a casa eram
mais de duas horas — bastante enfadados, porque o sol estava bem quente.
Às três horas o termômetro marcava na sala 23 graus.
De tarde fomos visitados pelo Sr. Fulano de tal Gomes, que mora
aqui no sítio Tamboatá, é filho do Sobral.
Ao anoitecer fui à casa do Sr. Carvalho, que estava se aprontando com
outro moço, de S. Paulo, que foi nosso companheiro quando viemos do
sítio S. Paulo para aqui para irem à minha pousada, saí-me pois; passando
pela casa dos italianos caldeireiros onde está pousado o desembargador,
aí o achamos à porta, com o padre, e mais outras pessoas, sentamo-nos
e conversamos um pouco, e depois viemos para aqui, onde nós achamos
Manoel, e conversamos por algum tempo. Contou-nos o Sr. Moraes mais
algumas circunstâncias da morte do Barbosa, disse-nos também que São
Gonçalo foi a moradia dos Mourões, onde praticavam toda a sorte de
malvadez, roubos, mortes etc.
Terça-feira, 6 de novembro: Ao amanhecer o termômetro estava na
sala em 17 graus — exposto ao ar livre no sair do sol desceu a 14 graus.
Tivemos esta manhã, e durante o dia bastante atrapalhação com gente que
se vinha receitar. Estivemos todo o dia trabalhando nas plantas da colheita
de ontem.
Às três horas estava o termômetro a 23 graus e meio, e à tarde um
pouco quente. À noite não saímos, e estivemos eu e Manoel sentados à
porta, conversando, e recordando-nos de coisas da nossa terra.
Quarta-feira, 7 de novembro [riscado] amanheceu o céu anuviado,
tendo ventado de noite bastante, [f. 48] o termômetro na sala estava a
17 graus e meio, e fora desceu a 16 graus e um quarto. Note-se quanto
dentro de casa é menos variável a temperatura, mesmo em casa de telha
vá, e as salas e quartos abertos por cima, quando dentro o termômetro tem
marcado 17 graus, desce fora a 14 graus e meio e hoje estando dentro em 17
graus e meio, fora só desceu a 16 graus e um quarto, isto é, quando dentro
se elevou mais dois quartos, fora a elevação foi de sete quartos.
Ocupamo-nos com o estudo das plantas colhidas antes de ontem, e
com o das que Manoel colheu esta manhã.
Mandei chamar a cabra que nos dá água aqui que tem os seus 60
anos, para tomar nota a respeito da época do assassinato do Barbosa.

333
Às três horas o termômetro estava em 23 graus.
Às ave-marias fomos conversar em casa do Sr. Cândido, e lá se achou
também o professor de primeira[s] letra[s], chegou depois Manoel. Da
conversa colhi o seguinte:
A telha e tijolo que se usa aqui vêm das macambiras, a sete léguas
daqui; a cal vem do sertão.
Aqui usam também a tabatinga, ajuntando-lhe goma de polvilho
cozido e diz o Sr. Cândido que supre bem a cal.
É tradição que antigamente chovia quase todos os dias aqui na serra,
mesmo no verão. Que havia sempre de manhã muito nevoeiro, mesmo
durante as secas. Havia muitos poços que nunca secavam e que têm
desaparecido principalmente depois de 45.
Diz o professor que esteve no Seridó, província da Paraíba, que é
um excelente sertão a ribeira do Seridó, cria-se aí muito e muito belo gado,
faz-se aí o melhor queijo do Império; e no tempo das secas fazem raspas do
miolo do xiquexique, que dá excelente farinha, para cuscuz, beijus, [f. 49]
escaldado etc.
Quinta-feira, 8: Amanheceu o céu anuviado, o termômetro estava
em 17 graus e um quarto. Ocupei-me no estudo das plantas já colhidas e
de outras que Manoel colheu hoje, e de algumas que nos trouxeram pessoas
da terra. Vieram muitas pessoas receitarem-se. Aqui estava o subdelegado
etc. etc.
Às três horas o termômetro na sala marcava 23 graus e meio. Fazia
algum calor.
Sendo o clima aqui do alto da serra tão temperado, o lugar enxuto,
e bem arejado, temos todavia notado que há muita gente, principalmente
raparigas, que são descoradas; temos visto algumas opiladas e muita
gente se queixa do estômago, da cabeça, e há uma queixa muito geral, é o
calorão, “Sinto um calorão”, dizem eles, não podemos explicar isto senão
pela má e insuficiente nutrição; há aqui muita miséria. Usam muito da
paçoca da banana verde e há gente que só come a farinha: o mal venéreo
também concorre para esse mau estado de saúde. Manoel entende que
também pode provir isso de ser a maior parte dessa gente criada no sertão,
donde vieram para aqui no ano de 1843 em que houve grande seca. A
mudança de um lugar quente e seco, e onde se faz uso bastante de carne,

334
para outro fresco, mais úmido, e menos alimentam animal, é, para ele, a
principal causa.
Aqui estava ontem de tarde um dos moços, que aqui veio com um
irmão, e o Sr. Corrêa do Ipu, de quem são parentes; hoje falando a respeito
dele disse-nos o subdelegado, que era gente perigosa, são rapazes como não
se dão aqui senão com um ou outro parente e são filhos de um facinoroso
deste lugar.
Que veio se me informar de vários incômodos.
[£. 50]
Sexta-feira, 9: O termômetro estava em 17 graus e meio na sala. Saí
cedo, e fui passear até o rio onde se toma água para empoçar; encontrei, em
caminho, e achei no rio muitas mulheres e raparigas que conduziam água
em cabaças de diversos tamanhos conforme a idade das que carregavam,
era tudo gente mestiça, ou cabocla. Vi um caboclinho de cinco para seis
anos guiando um carneiro que levava [uma] cangalha com duas ancoretas,
ou barrilinhos, que ambas devem dar um barril d'água. É um costume
comum no Ceará usarem dos carneiros como animais de carga, O rio, ou
riacho, está seco, e só tem alguns poços que têm antes lama do que água. O
leito do rio é aqui de uma terra negra poenta, que me parece uma sorte da
turba, cavadas cacimbas nesta terra, com fundo de dois a três palmos, dá-se
em areia; e a água aparece logo, mui clara; e tanto se tire como quanto se
ajunta. Voltando colhi algumas plantas.
Logo que cheguei a casa apareceu-nos o Sr. Francisco Ferreira
Passos que passou o dia conosco, referindo casos antigos destes lugares, e
principalmente as desavenças dos Feitosas e Barbosas, que tudo escrevemos.
Retirou-se para seu sítio depois das quatro horas; e eu saí a ver um doente
e daí fui para a casa do subdelegado, sentamo-nos à porta, juntaram-se só
mais algumas pessoas e aí conversamos até quase oito horas, em que me
retirei.
Quando ali estávamos fuzilava a oeste, e dissera ele que era o inverno
que começava em Piauí. Dissera mais, que os invernos aqui começavam
com trovoadas, e que estas continuavam [f. 51] durante o inverno, que os
invernos eram aqui frios e úmidos, com chuvas às vezes durando dois e três
dias seguidos; que na praça se formam atoleiros etc.
O termômetro às três [horas] estava em 23 graus e meio.

335
Sábado, 10: Amanheceu o céu anuviado, ventou muito como de
costume toda a noite. Termômetro 17 graus e meio.
Tomamos café, e saímos eu e Manoel à nossa excursão matutina,
dei volta em roda da povoação, à esquerda entrei depois pelo beco, e segui
o caminho que conduz a Viçosa, por S. Benedito e S. Pedro, cheguei até
as pedras, que obstruem a estrada, que passa pelo meio de algumas rochas
de certa grandeza, foi aqui que o alferes Antonio Barbosa foi esperado por
uma tocaia de alguns assassinos armados de bacamarte a mando do coronel
Manoel Martins, e outros que o entretiveram aqui no jogo, até a noite; e
de que ele escapou milagrosamente ficando apenas chumbado num braço,
e o cavalo no pescoço.
Aí no lugar mesmo, onde devia estar algum dos assassinos, colhi um
indivíduo feminino, com flor e frutas verdes, de uma rubiácea, comum
aqui, cujo indivíduo feminino ainda não nos havia sido possível colher; mas
chegando a casa, Manoel mostrou-me também um raminho que ele havia
colhido agora.
A vegetação aqui por estas planícies arenosas em roda da povoação
encerra muitas plantas cultivadas, outras que se encontram por toda a
parte, e algumas espontâneas, análogas ou idênticas às das vargens do Rio
de Janeiro.
Plantas cultivadas, e que se propagam por si agora: o rícino, O
estramônio (zabumba), a maravilha (bonina, me disse que se chama aqui
uma moça que estava à janela tomando fresco), guaiaba, araçá. Plantas
que temos achado por toda a parte: melão-de-são-caetano, mata-pasto,
mojirioba, erva-de-santa-maria (monte .....) anil, mulungu, salsa-da-praia
etc.
[f. 52)
Plantas espontâneas daqui e do Rio, uma Gomphia, a guaxima, a
Triumfola (guaxima brava), vassourinha e outras, o pau-pombo, uma espécie
de murici etc. etc.
Ocupamo-nos o dia com o estudo das plantas, fomos muitas vezes
interrompidos com visitas de mulheres, que vinham se receitar, e que nos
divertiam bastante.
Às três horas o termômetro estava em 22 graus, o dia foi quase sempre
anuviado. De tarde não saímos, Manoel tem estado com a sua enxaqueca.

336
Domingo 11: Ao amanhecer estava o termômetro em 16 graus e
meio, o céu anuviado, neblinoso.
Não houve ainda missa porque o padre... que aqui existe está ainda
atormentado de [ilegível].
Esperamos o nosso velho Ferreira, que nos prometeu vir passar o dia
conosco mas não veio.
Ocupamo-nos em estudar as plantas colhidas, e que se estão
colhendo; não nos faltaram visitas dos que se vinham receitar. Às cinco
horas montamos a cavalo eu e Manoel, e fomos ao sítio da .......... aqui
perto, que é atualmente do Sr. Vicente Gomes que aqui nos veio visitar;
quando chegamos havia saído com a senhora. Ao passar pelo sítio,
estivemos esperando por ele sentados à porta, mais de meia [hora], e como
ia anoitecendo, deixamos recado por uma moça que estava na sala, que creio
ser filha dele, por não podermos mais esperar, por nos estarmos prepara[n]
do para a viagem amanhã de manhã. Enquanto esperávamos, havendo
em roda da casa, digo, na frente um belo laranjal onde se recolhiam uma
grande quantidade de sanhaçus, sais, sabiás, cardiais e outros pássaros da
terra, e dois rapazinhos armados um de arco, e outro de besta com flechas
emboladas; tomei de um o arco [f. 53] [riscado sete palavras — “plantas
espontâneas daqui e do Rio de Janeiro”] e fiz alguns tiros, que errei todos
como era de esperar; mas neste brinquedo muito me lembrei das nossas
casas em Mendonha [Mendanha]. Este sítio, diz Manoel que pertence aos
vigários, e que aqui morou o padre Pacheco. A casa de vivenda é de telha
vá, o chão de terra; é caiada de frente larga, mas muito baixa — e mais baixa
parece porque o terreiro é mais alto, e de ladeira para casa.
Voltando chegamos à povoação e a pé nos fomos despedir das pessoas
mais gradas que aqui moram, e que nós conhecemos. Fomos ao padre, daí
ao subdelegado, em cuja porta estivemos sentados conversando bastante
tempo; estava ele, a senhora, outra senhora que não conhecemos, o professor
público, e o pai, que o vimos pela primeira vez. É um português, que foi
marinheiro, veio para o Ceará naufragando a fragata de guerra em que
andava, naufrágio que ele contava devido ao prático, que o comandante
havia tomado violentamente na Fortaleza, e que de zangado levou o navio
sobre um recife. Morreram 20 e tantas pessoas, entre eles o comandante; ele
salvou-se com outros agarrados a umas tábuas. Isto foi na costa da Parnaíba,

337
daí veio ele para o Ceará (Sobral) onde se casou em 1806, deve ser [estar]
portanto hoje perto de 80 anos.
Daí fomos à casa do Cândido, e daí ao professor público. Fui eu
ainda ver uma doente e me recolhi.
Segunda-feira, 12 de novembro: Amanhecendo começamos a
aprontar-nos para a partida e, tendo almoçado, montamos a cavalo às
oito horas e três quartos, [f. 54] a gente da povoação estava na porta
ou janela para nos ver sair. O Sr. Cândido nos quer obsequiar ainda
acompanhando-nos até uma légua de distância. Excelente moço, filho
daqui do Campo Grande, e aqui casou com uma senhora bem parecida,
e filha do Sr. (pausa) em cuja casa estivemos em S. Paulo. O avô desta
moça, creio que por parte de pai, foi assassinado barbaramente em
sua casa no ano de 1824, e que aqui se levantaram os cabras, e fizeram
grandes distúrbios assassinando, roubando, e cometendo toda a sorte de
desacatos.
Disse-me Sr. Cândido José de Carvalho, hoje quando vínhamos
para S. Benedito, que esse assassinato fora mandado por um José de
Araújo Veras, da família dos Feitosa, sempre, e ainda inimiga da família
dos Barbosas, a que pertencia o assassinado. Veras era morador creio
que também de S. Paulo. A razão a que se atribui esse crime foi, diz o
Sr. Cândido, que esperando e desejando Veras ser nomeado capitão-mor
daquele distrito, e constando-lhe que o avô de sua mulher ia ser nomeado,
mandou-o assassinar, levantando aquele tumulto entre os cabras. Quanto a
mim, se é verdade que [riscado “ele”] Veras mandou cometer aquela morte,
ele se aproveitou, e não provocou aquele levantamento dos cabras; pois
que, se atender-nos à era em que se deu, há de se reconhecer que isto era
seguimento e propagação dos tumultos do Crato.
[F. 55]
A povoação do Campo Grande é miserável e decadente. Mesmo me
parece que nunca foi próspera; pois que algumas casas térreas de telha que
tem [aqui] são mui antigas, e hoje caindo em ruínas; a única de telha feita
de novo é a que serve de escola pública, a maior parte das casas, que [riscado
“fecham”] marcam o quadro e que formam os simulacros da rua, como
o chamado beco, são miseráveis palhoças. A igreja que foi concebida em
ponto grande nunca se acabou, as paredes são fortes, de pedra e cal, mas

338
conserva ainda os buracos dos andaimes, não tem cimalha, e o telhado
foi feito às pressas, as telhas estão soltas, e as da cumeeira levantadas pelos
ventos; o interior, que vimos por abert[ur]as, está completamente nu, do
coro existem só os barrotes, o altar não o pude ver. À praça da povoação
é grande, mas está coberta de mato. À gente é quase toda cabra, mulata e
poucos negros, famílias brancas que vimos aí são a do subdelegado, a do
Cândido, o padre (pausa) o professor público, e umas moças que eram
nossas vizinhas. Vi mais duas ou três senhoras brancas que me pareceram
não serem dali. Fomos visitados, e vimos passeando na povoação vários
homens brancos; mas são moradores dos sítios em redor.
Só vi uma lojinha com algum jeito, é do Sr. Cândido, onde
vende fazenda, e todos os mais gêneros de comércio como vinho etc. O
subdelegado tem também uma vendinha pegada à casa, como a loja do
Cândido. Quanto a mais um sujeito, arma na sua miserável sala, onde
trabalha por qualquer ofício, umas prateleiras, onde arranja garrafas, botija
etc. etc. e ir aí em casa de negócio.
[f. 56]
Há nenhuma, ou pouca indústria, um ou outro sapateiro, seleiro,
alfaiate etc. As mulheres cosem, fazem na renda, mas devo dizer que tive aqui
roupa lavada, e [riscado “tão mal”] tão bem engomada como o ordinário do
Rio de Janeiro.
A gente é boa, muito indolente; e vivem miseravelmente.
É a essa miséria que eu atribuo [riscado “o ar do outro”) a pouca
saúde de que goza esta gente, pela maior parte pálida, ou amarela, sofrendo
quase sempre do estômago, dos intestinos, da cabeça, e as mulheres do
útero, sendo curioso que todas elas acusam um calorão que as incomoda; há
também, porém pouco, alguma moléstia de olhos, também os dentes não
são dos melhores.
Ora isto não se explica bem a vista do beniguido [?] do clima, que é
fresco e seco, se bem que me dizem que o inverno é aqui incômodo, mui
frio, úmido e lamacento.
As crianças são muito vivas e inteligentes. Estão na escola matriculadas
60, mas a frequência anda por 30.
A sucupira, assim chamam a palmatória, ferve ali.
A carne não é boa geralmente.

339
Água é bem suportável, é de cacimba, agora.
As galinhas, os patos etc. não são saborosos.
Não há leite, há muita banana e bastante laranja, que são pequenas
e azedas.
Há bastantes goiabeiras e araçazeiros, os cajueiros dão nos matos em
grande quantidade, há algum pequi.
Podia haver de tudo neste lugar; mas à indolência falta o repolho,
verduras, e vi aqui mangalô, a que chamam fava.
[f. 57]
A gente é toda mui pobre. Há alguns lavradores de cana, que têm sua
fortuna própria, começam a cultivar o café (aqui nos arredores os cafezais
estão torrados), plantam algum algodão, e fumo, só para o consumo caseiro,
o mais cultiva-se a mandioca, e o que chamam legumes, menos o arroz que
não dá aqui.
Fomos muito bem recebidos e obsequiados pela gente branca, e bem
queridos da gente de cor.
Colhemos aqui mais plantas do que pensávamos, quando vimos do
Ipu, a vegetação da serra.
Deixamos, como disse, o Campo Grande às oito horas e três quartos
acompanhado pelo Sr. Cândido José de Carvalho que nos quis impor até
o riacho chamado Garrancho ou dos Garranchos, onde teve sítio o infeliz
Antonio Barbosa, e para o qual vinha de noite, quando lhe fizeram a espera
perto da vila, e descarregaram sobre ele alguns bacamartes e de que escapou
milagrosamente.
Este senhor Cândido fez quanto pôde para obsequiar-nos, foi ele
quem nos arranjou casa e nos forneceu alguns trastes e vasilhas de que
carecíamos, presenteando-me com frutas de seu sítio, dando-nos muitas
informações sobre coisas da serra etc. etc. Vive aqui honestamente, de
negócio; e é casado com uma senhora filha de uma das pessoas mais
abastadas do lugar; e pertencente à família dos Barbosas, adversária dos
desalmados Feitosas, Mourões, Chaves, Melos etc. etc.
Chegamos à povoação de S. Benedito à uma hora e três quartos
tendo gastado em viagem cinco horas, das quais se deu [f. 58) seguramente
uma hora, que gastamos em colher plantas, e umas quatro horas, andamos
sempre devagar.

340
Calculamos pois em cinco léguas a distância entre estes dois lugares,
a que a gente da terra dá seis léguas; e aqui chegados soubemos que os
engenheiros do Dr. Gabaglia lhe acham quatro léguas e 300 braças.
O sol estava bem quente, e o caminho dava muita poeira. À estrada
em geral é boa, com poucas ladeiras e estas pequenas, e algumas pequenas
poças pedregosas. Há muitos sítios à beira do caminho com engenhocas de
cana, e com fábricas de farinha; tudo, casas e fábricas em geral são cobertas
de palha.
Exceto em um lugar junto a uma lagoa potó do qual nos descuidamos
de perguntar o nome, onde se esta[va a] levantar engenho com paredes de
adobes, as moendas são de ferro, e ao lado e pegado ao engenho se está
fazendo prédio com paredes de pedra, e um sobrado.
Toda a vegetação está verde, e muitas vezes caíamos em agradável
ilusão pensando caminhar pelas estradas do Rio de Janeiro: mas o terreno
está seco, apenas passamos um riachinho, o Inussu, que corria um fio de
água, e onde ele fazia poços era sujo de folhas secas e podres, além deste
vimos a lagoa de que já falei e onde dei água ao meu cavalo.
Havíamos caminhado talvez meia légua quando começamos a
observar mudança no país, já não eram aquelas planícies apenas onduladas
de Campo Grande; as elevações e baixadas eram maiores, e foram indo até
chegar a verdadeiros montes; e à proporção que isto acontecia a vegetação
crescia também, e tomava novo caráter, uma quantidade imensa de
palmeiras, [f. 59] que não existem em Campo Grande senão muito raros;
cobriam grande extensão do terreno e lhe mudou o aspecto; e à medida
que o movimento do terreno era mais profundo, digo, as ondulações mais
fortes, maior rigor ostentava a vegetação, que às vezes se tornava cerrado, e
contendo árvores corpulentas. Perto das boas matas que cobriam em outro
tempo esta vasta superfície. Estamos a meia légua do talhado da serra; e
as águas correm daqui para oeste, isto é, para o Piauí. Também é provável
que a forma montanhosa da serra seja em razão de estarmos próximo à sua
escarpa, e que daqui para dele a serra se vá aplanando, e descendo para o
Piauí. A cada passo os montes se abrem e deixam entre si vales profundos,
ou vargens frescas, que se estendem como serpeando por entre os montes,
e são boas terras lavradias, que estão quase todas aproveitadas, com
canaviais e manducais, e em tempo próprio se plantam todos os chamados

341
legumes na terra. Os milhos aqui, disse-me o Sr. Cândido, tomam bom
desenvolvimento e de ordinário dão duas boas espigas; às vezes, mas então
sempre uma é fanada. Em roda das casas, que quase todas são palhoças, há
bonitos laranjais, cujo fruto é pequeno e azedo (dizem que deixando de um
ano para outro se fazem doces), há limoeiros de que vimos uma cerca, as
limas são aguadas.
Chegado à povoação de S. Benedito nos dirigimos para a casa do
padre João Crisóstomo de Oliveira Freire, [f. 60] que nos fez apear e nos
mandou indicar uma boa casa, nova, de telha com bastantes cômodos que
estava desocupada e apenas nos instalamos nela, que nos mandou um pote
de água fresca, cadeiras, mesa, e um excelente jantar.
De tarde não saí. Foi toda a noite muito ventosa; e madrugada
bastante fria, ainda não tinha exposto o termômerro.
Terça-feira, 12: Amanheceu ventando muito forte. O céu estava
coberto de nuvens baixas, que corriam com o vento. Seriam sete horas
quando saí a dar um passeio, pela vargem, córrego e campo vizinho.
Andei depois vendo a obra da capela que se está fazendo, que é bem
suficiente para a povoação. Daí retirando-me encontrei Manoel, e com ele
conversando na esquina da casa do Sr. João de Mattos do Amaral [este] instou
para que entrássemos, o que fizemos, aí conversamos um pouco enquanto
nos varriam a casa. Logo para ela voltamos nos foram visitar o Sr. tenente
Felicíssimo, Eustáquio de Oliveira Freire e o Sr. João de Mattos do Amaral.
Depois do almoço trabalhamos até depois das quatro horas, em que se nos
pôs o jantar. O dia foi um pouco quente, mas o que mais nos incomodou
foi o pó, passa pela frente da casa um caminho, ou rua das mais frequentes
de terra e areia fina, que se levanta em nuvens quando alguém passa a cavalo
e há aqui um costume, que o é também em Campo Grande, no Ipu, antes
em todo o Ceará, que me parece inusitado, é o de esquiparem por dentro das
povoações e vilas, e cidades é a grande tafularia quer haja poeira, quer lama,
andam envolvidos em poeira, e mui contentes, sem se importarem com o
incômodo [£. 61] alheio. É aqui o nosso tormento; há aqui vizinhos um ou
dois sujeitos, que parece têm aqui suas namoradas, que passam e regressam
baralhando, e empoeirando tudo, se minhas pragas valessem!
De noite fui para a casa do padre João Crisóstomo onde estive até
oito horas, e onde se ajuntou bastante gente.

342
Quarta-feira, 14: Ao amanhecer estando ventando muito o
termômetro na sala estava a 16 graus e fora desceu a 15 graus. O vento
tem estado danado, até agora sete e meia é uma verdadeira tormenta, mas
o céu está limpo, e por ele correm as nuvens claras de leste a oeste [e] cá
por baixo são nuvens de poeira, que não nos deixa fazer nada. Seriam oito
horas quando começou a serenar o vento, mandei aguar a frente da casa e
pude então me ocupar dos meus estudos de plantas que foi até depois das
quatro horas. Tivemos aqui a visita do subdelegado, o Sr. Antonio Joaquim
da Silva Carapeba e do capitão Miranda Caboclo, idoso, e que espero me
dê muitas boas informações.
De tardinha estando lendo o Pedro Segundo, jornal do Ceará,
adormeci, e acordei com visitas. Era um moço do Rio Grande do Norte,
que está aqui. Chegou depois o padre João Crisóstomo, chegou mais o
subdelegado, o [riscado] tenente Felicíssimo e mais outras pessoas, com os
quais conversamos até às oito horas em que se retiraram.
Há aqui um costume a que devo fazer menção. Estavam, como já
disse, construindo uma igreja, e para se conduzir o adobe, tijolo e pedra,
donde se fabrica, sai ao anoitecer [f. 62] um sujeito com tambor, o outro
com um flautim e vão tocando, como para chamada, reúne-se a gente,
homens e mulheres a carregar tijolos ou adobes ao som da gaita e do tambor,
por esmolas e isto por um bom pedaço da noite. Hoje rufou o tambor e
soou a gaita mas não houve procissão porque faltou gente. Vai muita gente
branca.
Às três horas da tarde o termômetro na sala marcava 21 graus durante
o dia, e depois das oito horas acalmou o vento, e sem cessar inteiramente
não nos incomodou.
Quinta-feira, 15: Esta manhã foi serena, quase sem vento, e mui
bela, na sala estava o termômetro em 16 graus e um quarto, posto fora antes
de sair o sol desceu a 14 graus e um quarto. Depois do almoço montamos a
cavalo, eu, Manoel, e o nosso vizinho o capitão [tenente] Felicíssimo, e nos
dirigimos até a borda ou tope da serra, talhado do Saco da Lapa que fica
daqui a pouco mais de meia légua; o caminho em mais da metade é ladeado
de sítios, com bons ipus, plantados de cana, de mandioca, e outras coisas e
a certa distância da borda da serra vai por entre matas, restos das primitivas
florestas, e encerra ainda boas madeiras, de que trataremos em outra parte.

343
Quando chegamos à borda da talhada, tínhamos a nossos pés o
sertão, que se estendia para fora do Saco da Lapa, a perder-se de vista. Ão
longe e à esquerda avistávamos a serra da Meruoca e avistaríamos também a
cidade do Sobral, se não houvesse fumos pelo sertão [f. 63] das queimadas
que se estão fazendo e embaixo de nós tínhamos o Saco da Lapa mostrando
a pequena povoação [riscado] desse nome; e muitos sítios, disseminados
pelo sertão e pela fralda fresca e escarpa da serra.
Na volta tocamos em casa do subdelegado Antonio Joaquim da Silva
Carapeba que fica em caminho; ele estava fora, e só vimos uma mocinha,
sua filha, ce um moço, também filho, que tinha cavalo pronto e nos
acompanhou até S. Benedito, onde chegamos às onze horas.
Trabalhei estudando uma Cordia (gargaúba), que aqui chamam
jangadeira, até quase as quatro horas em que nos puseram o jantar.
Veio visitar-me o Sr. Antonio Marques da Assunção, morador em
um sítio daqui a duas léguas. É filho do ajudante Gonçalo Marques da
Assunção, que foi comandante interino ou subalterno das aldeias de índios
daqui da serra: era uma autaridade policial e muito era ele dos índios, e
ainda hoje respeitam e consideram a sua família.
Prometeu escrever uma memória sobre as seitas religiosas dos índios.
De tarde esteve ele ainda aqui, assim como o capitão Miranda, que me
trouxe uma garrafa de cauim de mandioca, para eu experimentar a bebida
dos índios; eu guardei a garrafa para amanhã, mas ele estava empenhado
em que eu provasse aquela bebida à sua vista [e] não houve remédio, creio
porém que ele não ficou muito satisfeito da [com a] experiência.
Às três horas o termômetro na sala mostra 21 graus e meio.
[f. 64]
Do capitão Miranda e do Sr. Assunção obtive algumas noticias,
que escrevi; eram sete horas quando se retiraram; eu vesti-me, e saí a fazer
algumas visitas.
Fui primeiro à casa do capitão [tenente] Felicíssimo, que é meu vizinho;
não o achei. Estive conversando com a senhora, que [é] filha do Piauí, por
algum tempo; fui daí à casa do Sr. João de Mattos, que achei fechada, e segui
para a casa do padre João Crisóstomo que estava na alcova balançando-se na
sua rede, e na sala estavam as moças que julgo serem sobrinhas, e eram cinco
ou seis, todas cosendo em roda da mesa, alumiadas por um velho candeeiro

344
de lata, que se acende com azeite de carrapato; é provável que não fosse muito
do gosto delas a surpresa. O padre veio para a sala, apareceram logo mais
alguns senhores e conversamos até nove horas, em que me retirei.
Sexta-feira, 16. Amanheceu bom tempo, nuvens vaporosas passam
pelo céu, tocadas pelo vento leste que ventou toda a noite e continua até
agora, sete horas, não muito impetuoso; o termômetro na sala indicava 16
graus e meio e fora, ao nascer do sol, desceu a 15 graus. Ontem estando o
tempo calmo, o termômetro desceu mais, o sentimento de frio era menor
que o de hoje.
Estivemos ocupados no estudo de várias plantas, Manoel foi até o
Carrasco, daqui a mais de duas léguas.
Às três horas o termômetro estava em 21 graus — hoje houve quase
todo o dia algum vento que cessou à tarde e agora nove horas da noite está
o ar calmo.
Ão anoitecer saí a visitar o Sr. Mattos, que não o achei, e vendo um
grupo de homens na obra da igreja para lá me dirigi; e entre eles estava o
que eu [f. 65] procurava, depois de conversar e ali eu parei, onde também
achei Manoel. Viemos para a casa do Sr. Mattos e aí fiz a minha visita. Às
sete horas e meia nos retiramos.
Sábado, 10: Amanheceu ventando muito, o céu anuviado,
termômetro na sala 17 graus. Fora, 15 graus e meio.
Manoel fez uma excursão a pé, e colheu algumas plantas; eu não saí,
e continuei o estudo das plantas, até além das quatro horas.
Três horas o termômetro na sala [marcava] 21 graus.
À tardinha saí, corri quase toda a povoação e fui para a casa do padre
João Crisóstomo, onde estive até quase oito horas, havia na sala várias
pessoas, e uma das moças estava passando uma camisa de pregas com
ferro e gostei de a ver como engomava bem, e dobrava bem a camisa. É
coisa notável em todo o Ceará pelos confins do sertão, como ainda há
pouco vi em Campo Grande, se lava (a bordoadas) e se engoma bem,
mas é tal o luxo dos engomados que tudo [se] engoma, toalhas, lenços,
ceroulas, e até camisas de meia tudo leva goma, mesmo.
Saí fazia lua, e passando por diante da obra da igreja que se está
fazendo, bastante gente, homens e mulheres (índios e cabras) carregando
tijolo, ou adobes para a obra ao som do tambor.

345
Domingo 18: Amanheceu ventando, e o céu vaporoso. Termômetro
dentro 17 graus, fora 16 graus.
Às nove horas e meia vesti-me e fui ouvir missa [na] capelinha de S.
Benedito, miserável, arruinada, coberta de telha a capela-mor, de palha a latada.
O altar e trono, é uma armação de paus, lavrados, ou toscos, e
cobertos de papel azul de embrulho, nos [f. 66] quais um curioso pintou
umas flores; o teto de telha vá, o chão de terra servida a credencia uma mesa
tosca, de quatro pés etc. etc.
Havia [entre] seu povo à missa algumas senhoras brancas,
passavelmente vestidas, várias de cor, com lençóis; homens encourados, e
rapazes e algumas autoridades de casaca, e bem vestidos etc. etc.
Voltando para casa veio nos visitar o Sr. Benedito Marques da
Costa, que ficou junto para acompanhar-nos amanhá em nossa excursão
e prometeu ver pessoa que queria ir às matas do Inuçu buscar um ramo de
árvore de lobo (carapá) que diz haver ali. Trabalhei no estudo das plantas
até quase quatro horas.
Às três horas termômetro 21 graus. Céu vaporoso, faz algum vento.
Visitaram-nos os senhores Érico João de Oliveira Freire, professor público,
interino desta povoação, e seu irmão, o Sr. Zeferino Januário de Oliveira
Freire, que é o dono do sítio chamado Cotó, da lagoa que tem este nome,
e que ele quer mudar para Porto Alegre, lugar de seu nascimento no Rio
Grande ou Paraíba.
Tínhamos mandado vir os cavalos para irmos de tarde fazer nossa
visita ao subdelegado Carapeba em seu sítio Piraguara (há aqui outro
sítio chamado Piracoara) mas, sendo ele vindo hoje à missa, aqui ficou:
deixamos pois esta visita para terça-feira e, como não tendo dado ordem
em contrário, os criados nos apresentaram os cavalos selados. Demos um
passeio, obra dum quarto de légua, e passando pela [£. 67] casa do capitão
Miranda, o fomos visitar, índio valente e fiel que aqui jaz na pobreza, e que
tanta festa nos tem feito.
À noite tivemos aqui o padre João Crisóstomo e o subdelegado: e
conversamos até as oito horas.
O subdelegado nos presenteou hoje com três bandejas de frutas,
laranjas, limas e bananas, tudo coberto como bem engomados, e conduzidos
por três pretos, asseadamente vestidos.

346
Aqui esteve também hoje o capitão Miranda a quem visitamos
esta tarde; e me veio mostrar vários papéis e documentos. Como a sua
nomeação de autoridade policial sobre os índios, com honras de capitão
pelo presidente entre (pausa) Martins e seus requerimentos e diligências
que fez para conservar os índios daqui nas terras que lhe foram doadas
pelos reis de Portugal, confirmadas e ampliadas em 1720; terras que, depois
de usurpadas dos pobres índios, ainda ultimamente por uma interpretação
cavilosa de uma lei novíssima se quis incorporar aos bens nacionais, para
depois serem distribuídas pelos amigos e espertalhões, como tem acontecido
em outras partes, mas aqui sempre conseguiu ele que os índios conservassem
as suas posses.
Segunda-feira, 19: Amanheceu ventando, correram pelo céu nuvens
vaporosas de leste a oeste como sempre acontece, termômetro dentro 16
graus. Fora 15 graus e meio.
Mandamos aprontar os nossos cavalos, e pôr o almoço mais cedo, para ir
às matas da Pimenteira. Mandamos convidar o Sr. Benedito Marques da Costa,
que devia ser nosso companheiro, para almoçar, [f. 68] que mandou nos dizer
que não esperássemos por ele porque havia almoçado. Estando nós almoçando
quando chegamos ao café, chegou ele também, e nos fez companhia.
Montamos a cavalo, e partimos devia ser mais de oito horas,
caminhando para oeste. Chegamos à casa do Sr. Antonio Marques
da Assunção, irmão do nosso guia, e nos apeamos, até que chegasse o
caboclo mateiro que ele tinha ajuntado. Chegado o caboclo partimos,
acompanhando-nos também o Sr. Antonio Marques, daí talvez a um
quarto de légua entramos na mata. É mata virgem, mas cortando próxima
ao carrasco, não é mata fresca, e entolhada, como é a do sopé da serra,
é antes uma grossa caatinga, sendo o seu solo alto e seco, a mata larga,
as folhas, como esta agora, não têm arvores de grande corpulência; mas
suas madeiras são densas, pesadas e duradouras, as espécies que notamos as
enumeramos em outro lugar.
Voltamos do meio da mata depois do meio-dia e chegamos à casa
do Sr. Antonio Marques quase às duas horas, com sol bem quente; mas
ventava, o que nos refrescou. Em casa achamos mais outras pessoas, entre
elas mais um irmão do Sr. Assunção e várias mulheres que ali foram esperar-
nos para se receitar.

347
O Sr. Antonio Marques instou conosco de que passássemos à força
do sol, e comêssemos uma galinha que havia mandado preparar.
[£. 69] No jantar, uma coisa achamos de novidade e foi um grande
copo de laranjada, em guisa de vinho.
Seriam quatro horas quando montamos a cavalo, e nos acompanhou
também o Sr. Antonio Marques.
Ali a povoação onde chegamos pelas cinco horas.
O sítio do Sr. Antonio Marques de Assunção é chamado Pimenteira,
ele porém quer dar-lhe o[utro] nome, e o denomina Abrigo Seguro. Foi
herdado de seus pais, tendo comprado a parte dos outros irmãos e a mata
que visitamos lhe pertence. Esta mata é limitada pelos riachos [riscado
—“da”] Pimeira e Pejuaba, havendo de um a outro uma légua para mais ou
menos, que é quase toda coberta de mata, e em largura de meia légua.
O Sr. Antonio Marques é casado com uma senhora ainda moça, e
tem já alguns filhos, ele tem 46 anos.
De noite fui para a casa do padre João Crisóstomo onde conversamos
por algum tempo.
Trouxe da mata alguns carrapatinhos.
O Sr. Antonio Marques, queixando[-se] da secura do seu sítio, nos disse
que [riscado — “seus ante”] os antigos fugiam de situar-se para o tope da serra;
porém as matas, muito frias, [por] chover muito aí, e haver muito inseto nocivo,
como potós, muriçocas etc., é vinha[m] para estes lugares, que então eram ainda
frescos, produtivos, e mais amenos; hoje estão secos, e os lugares desprezados
nas melhores condições para serem habitados, e sem os inconvenientes antigos.
[f. 70]
O Sr. Antonio Marques é homem inteligente, e ativo, fez uma casa,
que [alinda não está concluída, que para estes lugares, e à vista da maior
parte das habitações do sertão, se pode chamar confortável.
Terça-feira. Amanheceu ventando, céu limpo, o termômetro na sala
16 graus e meio.
De manhã ocupei-me com o estudo das plantas, mas uma longa
visita do subdelegado e do Sr. Mattos tomaram-me muito tempo.
Três horas da tarde, o termômetro está em 20 graus e três quartos,
faz sol, o ar está quase calmo, o vento costuma cessar às três horas da tarde,
para recorrer de noite.

348
De tarde saímos a cavalo eu, Manoel e o tenente Felicíssimo, que nos
acompanhou por obséquio e fomos fazer a nossa visita ao subdelegado no
seu sítio Piroguara, a meia légua daqui. Lá estivemos até mais de sete horas,
fazia uma linda noite de luar e o ar estava tranquilo. Tivemos ocasião de ver
a família toda do Sr. Carapeba, tem 12 filhos, dois machos e dez fêmeas;
destas quatro já moças, que não são feias, conversam bem, e com espírito,
apesar do triste isolamento em que vivem; quando chegamos estavam elas
ocupadas em bordar uma rede. Depois destas quatro, as outras formam
uma escada, até a mais nova, que creio que inda mama. Quando voltamos
nos acompanha também o subdelegado, já por nos obsequiar, já para assistir
ao levantamento do mastro para a festa de S. Benedito.
[f. 71]
Logo que chegamos nos dirigimos para a casa do padre João, onde
achamos já várias pessoas.
Daí a pouco ouvimos tiros de mosquete, era o mastro que vinha
carregado ao ombro dos caboclos, acompanhados de tambor, e em grande
vozerio. Enquanto se preparava a bandeira o capitão Miranda, chefe dos
caboclos, ordenou que fossem carregar pedras para a obra da igreja, com
efeito assim fizeram dando dois caminhos, um de pedra e outro de adobes.
E avaliamos os carregadores em cerca de 200 homens e mulheres, iam
sempre acompanhados do tambor, cujo tocador é um caboclo quase anão,
e feio; mas inda assim já casado duas vezes.
| Soavam tiros de vez em quando e uns músicos tocando clarineta,
e rabeca, bem entoados, tocavam algumas peças de vez em quando,
ajuntando às vezes a cantoria.
Enfim levantaram o mastro ao som da música, repigues de sino, tiros
de mosquete e vozerio da gente cabocla: os homens de camisa sobre as
ceroulas e as mulheres e cunhãs de lençol pela cabeça.
Esta cena ao luar, pela sua rusticidade, e pela gente que figurava,
produzia-me uma certa emoção, e me transportava pela imaginação aos
tempos primitivos dos aldeamentos pelos jesuítas.
Levantado o mastro, eram nove horas, vim para casa e estando jáa fresca,
fui surpreendido por Manoel e o tenente Felicíssimo, que acompanhados de
alguns caboclos entraram na nossa salinha. Frei Cabochos, um velho e dois
ainda moços puseram-se em forma [f. 72] e o velho, que tinha na mão um

349
instrumento gentílico, espécie de castanholas, feito das sementes do agoaés
(Thevetria). Pediu-me licença, e romperam em uma dança de caboclos, o
torém, que consiste em se porem enfileirados, ombro a ombro, e em círculo
quando o número é maior, e em correrem-se em círculo, andando de lado,
com passos cadenciados e fortes, ao som do instrumento. Este passo de dança
invariável é acompanhado por um canto monótono [e] pela repetição, e
pouco variado nas notas musicais. Disseram-nos que era o canto da cobra.
Mostrando eu desejo de ter algumas nozes do tal chocalho, Manoel lhes
pediu, e eles cederam prontamente, tiramos pois um pequeno molho delas.
Dei 2$000 [dois mil-réis] para que repartissem entre os três; Manoel
ajuntou mais alguns cobres.
Quarta-feira, 21: Amanheceu belo dia, muitos ventos e o frio.
Termômetro na sala 16 graus e meio.
Tenho-me ocupado com o estudo das plantas e aqui esteve o
subdelegado, que se veio despedir. Vai para sua fazenda. O dia tem estado
sempre mais ou menos coberto. Termômetro às três horas 20 graus.
De tardinha saí a fazer despedidas; e despedi-me do padre Mattos, do
professor público, e do Sr. Benedito Marques. Visitei a escola, que é uma
palhoça, mas a salinha não é má. O professor prometeu me dar amanhã
uma nota sobre ela e os discípulos.
Fui depois para a casa do padre João Crisóstomo, que estava com
ela cheia de moças, eram as domésticas, e mais três flores da Piragoara.
Chegado à [f. 73] hora da novena, saímos todos para a igreja, se assim
podemos chamar ao miserável nicho com sua latada. Todavia não desgostei
da função, havia iluminação suficiente de tripinhas de carnaúba, bem que
não sem algum risco de se incendiar o empalhado tabernáculo. À primeira
latada, que é fechada com paredes de pindoba, ficou literalmente cheia de
senhoras, mulheres pardas ou caboclas e cunhãs.
Além das flores da Piraguara havia mais algumas carinhas gentis de
homens, é que não vi fartura. O padre, vestido de capa d'asperge, oficiava
de canto e sobre uma sorte de jirauzinho, armado no repartimento das
mulheres, ficando-lhes por cima havia um grupo de músicos da terra, dois
rabecas, uma clarineta, um flautim e um tambor. Formam o coro, cujo
charivari não era de todo desagradável, cantavam também um ou dois dos
músicos e as mulheres entoavam de falsete.

350
Eu fui figura importante, porque o reverendo me mandou pôr uma
cadeira de palhinha, junto às grades, no qual bem a meu cômodo assisti à
ladainha. Por fora de vez em quando troava a ronqueira.
Acabada a festa acompanhei, com mais dois, o suado músico até a
casa do padre, onde porém me demorei.
O dia foi um tanto quente, bem que o termômetro o não indicasse,
por estar o céu sempre anuviado. Quando digo que fazia calor, era aqui para
a serra, a temperatura era agradável, não se suava. Ao pôr-do-sol vi para os
lados do Piauí uma cortina de nuvens escuras, € relampeado. E quando
saíamos da igreja havia grande escuridão para o tope da serra e ventava de
lá, a lua está toldada, parecia querer chover. Caíram chuvisquinhos. [f. 74]
A serra da Ibiapaba oferece as mais belas proporções para uma boa
habitação do homem e para o desenvolvimento industrial, pela amenidade
de seu clima, pela bondade das águas e pelas forças produtivas do terreno.
O que tem estorvado a esse desenvolvimento é em primeiro lugar a falta
de vias de comunicação em razão da escarpa abrupta da serra, a falta de
águas permanentes e enfim a condição dos homens que a têm habitado, ou
índios indolentes, ou brancos facinorosos, e mais bravios que os caboclos.
As gerações que têm passado por cima deste felicíssimo torrão, ignorante,
perverso, não têm deixado rasto de sua existência senão pela destruição
das belas matas que revestiam a serra, [que] lhe davam frescor, vigor e
águas perenes. Deixaram o que não podiam destruir, a beleza do seu céu,
a amenidade do seu clima, a pureza de seus ares e a terra empobrecida e
ressecada, que está esperando pela atividade e indústria, para lhe restituir a
substância e frescura com que possa nutrir e felicitar uma numerosa e bela
população.
Nunca ou apenas se faz sentir sobre a serra os efeitos deploráveis das
secas, que devastam os sertões. Muitas vezes logo em princípio de dezembro
aparecem as primeiras chuvas. Mas as de fevereiro até junho e julho são
certas, mais ou menos abundantes, muitos gêneros de lavoura se colhem
aqui duas vezes no ano.
A mandioca dá por toda a parte, a cana prospera [f. 75] nos lugares
frescos, ou ipus, assim como o milho eo feijão. O café se dá nos cumes dos
montes da beira, ou tope da serra. O algodão nas encostas frescas, só o arroz
se não dá aqui. As laranjeiras são vigorosas, mas a fruta é pequena e má,

351
assim também as bananeiras são de bela aparência mas em geral a fruta, que
é grande, não é macia, nem saborosa. Esta planta, assim comoo mamão, é
de grande socorro para a pobreza.
Com indústria se podia ter aqui tudo, mas tudo falta. O povo do
Ceará, e seguramente das outras províncias que estão em circunstâncias
análogas, não tem necessidade senão de carne, farinha e rapadura. À gente,
mesmo de certa ordem, pouco além vai daí. Todavia devemos confessar que
a província marcha, se nós compararmos o que hoje vemos com o que se
nos conta do que ela foi não há ainda muitos anos.
O povo em geral é bom, industrioso, mas indolente, como são os
povos dos países quentes, e das raças americana, africana e dizemos também
latina. As mulheres são mui políticas e o clima ajuda a criação dos filhos;
a gente, sem ser formosa, é de boa aparência, principalmente no sertão,
onde se veem belas formas, e vivas cores; mas tudo se deteriorou logo pela
[riscado — “sendo de viver”) falta de cultura e costumes semibárbaros.
Voltamos ao que dizíamos sobre esta serra. O calor nunca incomoda
aqui e as madrugadas são frias, as noites frescas. O vento quase [f. 76]
contínuo, às vezes incômodo. Agora pela seca começa a ventar ao anoitecer
ou mais tarde venta toda a noite, às vezes com muita força, principalmente
de madrugada e ao romper do dia, e continua até pouco mais ou menos
três horas da tarde, cessa então e faz-se sentir alguma calma. No inverno
dizem que venta pouco, e que faz às vezes calor mais incômodo, assim
como também frio insuportável, porque as habitações não têm abrigo
contra ele. As chuvas no inverno são ordinariamente por fortes chuveiros,
porém também duram muitas vezes dias e noites e então é que faz frio, são
muitas vezes acompanhados de trovoada, principalmente no principio do
inverno. Algumas vezes são acompanhados de furacões.
Por quase toda a parte os riachos e córregos secam no verão, e as
águas que se bebem são de cacimba; mas boa, clara e fria.
Nos tempos antigos, quando tudo era mata virgem, chovia quase
continuamente, os rios e regatas [regatos] corriam constantes. E o frio era
em alguns lugares desabrido, tudo hoje está mudado pela denudação do
país.
Lugares lavradios e festivos em outros tempos estão hoje abandonados
por secos e estéreis.

352
A formação desta serra é curiosa, não tenho estudos nem observação
suficientes para dar dela uma ideia cabal, ou mesmo aproximada, sendo o
mesmo sistema [f. 77] de serra partícipe da composição do Araripe.
O sertão aqui chega ao pé da serra como no Araripe para o lado de
Pernambuco; pela [ilegível] deste lado, como daquele não brotarem da terra
tantas águas como na parte que corresponde aos Cariris. As rochas que se
descobrem na escarpa ou talhado da serra Grande, para o lado do Ceará, me
parece serem da mesma natureza que a do Araripe. O terreno porém do alto
da serra é muito diferente do agreste daquela serra, mas tem analogia com o
terreno da mata do Araripe.
Aqui na serra Grande a chapada é mais ou menos acidentada, e se
eleva às vezes a formação de montes, cuja vegetação vigorosa e variada
mostra ser o solo da melhor constituição lavradia, mas isto é só na
proximidade da escarpa da serra, que chamam aqui em S. Benedito tope.
É a parte montuosa, e mais alta, daqui correm as águas para o Parnaíba do
Piauí: a serra ou o solo vão se abaixando pouco a pouco, suas ondulações
são menos amplas e chegam à formação dos chapadões.
A terra é resultado da decomposição de uma rocha de composição
arenosa e folhosa, cuja desagregação é fácil. Aqui pelos lugares planos e
rasos, e pelos leitos dos rios essa rocha se descobre, formando lagos largos e
horizontais, que se quebram facilmente com alavancas para as construções.
E segundo [f. 78] a rocha é mais ou menos profunda, o terreno é mais ou
menos próprio para a lavoura; e admira verem-se árvores de uma certa parte
nascerem mesmo onde a rocha está nua. Os montes e elevações são de outra
composição, é um gris tirando para vermelho, ou amarelo, que se reduz a pó
muito fino, e cuja decomposição parece ser favorável à vegetação, quando
tem água suficiente. Veremos o que dizem os nossos geólogos.

Povoação de S. Benedito

Chamava-se esta Inga, antigamente Córrego Grande, e ao lugar onde


é hoje a povoação, era O sítio das Bananeiras, pertencente ao índio Simão da
Costa, em cuja residência havia uma casa de oração dedicada a S. Benedito,
e a imagem que aí se venerava é a mesma que inda existe na capelinha atual.
E em 1810, quando para aqui veio o capitão Miranda, comandante auxiliar

353
dos índios de S. Pedro e S. Benedito, a quem devo estas notícias, existia
aqui, além da casa de Simão da Costa, mais duas: a do índio Manoel de
Souza, e a da índia D. Lucrécia, viúva. Todas eram cobertas de palha.
À igrejinha, ou nicho, que atualmente existe em ruína, e que nem
teve mais que a capela-mor, foi feita em 1812 ou 13 pelo índio Manoel de
Souza, com adjutório de outros moradores. Tem a vocação de S. Benedito
e é de paredes de alvenaria, e coberta de telha. Provavelmente foi de então
que se começou a chamar a povoação de S. Benedito.
Atualmente se está construindo um templo com boas proporções,
e com solidez, obra que promete ser magnífica para estes lugares. Deve-se
isto mais particularmente ao coadjutor da freguesia, o reverendo padre João
Crisóstomo, que mora aqui desde 1846.
[F. 79]
Quando ele aqui chegou, em 1816, havia neste lugar 12 palhoças,
com sete moradores. Atualmente existem 72 casas, das quais oito são
cobertas de telha, habitadas por 62 famílias, com 316 almas, das quais 33
são escravas.
Tem escola pública de primeiras letras, criada em 1854, de que é
professor interino o Sr. Érico João de Oliveira Freire. Estão matriculados 38
alunos, dos quais são sete pardos, 11 mamelucos e 20 brancos. A freguesia
ordinária é de 19.
Quinta-feira, 22: Amanhece o dia coberto, ventoso e frio, termômetro
na sala 16 graus e meio.
Durante a manhã desenhei ainda algumas plantas, e nos aprontamos
para partimos hoje para S. Pedro.
Antes das duas horas tínhamos jantado, e estávamos prontos. Fui
despedir-me do reverendo padre João Crisóstomo, e de sua família. Este
padre tratou-nos muito bem e obsequiou-nos muito, daí fui à casa do
tenente Felicíssimo a despedir-me dele e sua mulher. Também este senhor
nos obsequiou quanto pôde. Não saímos deste lugar sem alguma saudade.
Isto nos tem acontecido sempre que nos demoramos alguns dias em
qualquer lugar, somos tão bem tratados, tão amavelmente recebidos, que
sempre nos retiramos cativos.
Eram duas horas e meia quando montamos a cavalo, e como
tínhamos de ir tocando em várias casas, cujos donos nos queriam impor,

354
fomos perdendo algum tempo, e quando saímos da povoação eram duas
horas e três quartos.
Nos acompanharam um senhor (pausa) que veio conosco até S.
Pedro, onde mora, o tenente Felicíssimo, seu irmão professor de primeiras
letras, e o alferes Benedito. [f. 80] Os dois irmãos depois duma meia légua
de caminho se despediram e voltaram, o último nos acompanhou até o
sítio ou lugar chamado Pimenteira. Chegamos a S. Pedro às cinco horas e
vinte minutos. Gastamos pois na viagem, andando devagar, e parando para
observar e colher plantas, duas horas e cinco minutos. À distância pois de
um lugar a outro quando muito será de três léguas, mas a gente do país lhe
dá quatro. À tarde, como o dia, esteve sempre coberto, e fizemos [caminho]
apanhando alguma chuva. Aqui soubemos que ontem à noite deu aqui uma
boa chuva, com trovoada. São preparos para o inverno.
Em S. Pedro fomos apear-nos em casa do subdelegado, o Sr. tenente
Vitorino Alves Teixeira, já estava prevenido, nos tinha preparado aposento,
para onde nos guiou.
Às oito horas da noite começou a ventar.

S. Pedro de Ibiapina

Sexta-feira, 23: Amanheceu o tempo neblinoso, e um tanto ventoso,


o termômetro na sala 16 graus e meio.
Ocupei-me estudando plantas colhidas ontem na viagem, e hoje por
Manoel. Três horas da tarde o ar está um pouco quente, o céu tem estado
sempre mais ou menos anuviado. Termômetro na sala 20 graus.
De tardinha fui visitar o subdelegado e com ele conversei por algum
tempo. Prometeu-me dar uma nota sobre a povoação deste lugar, e o que
era há 30 anos quando ele veio por aqui, tendo nisto 12 [anos]. A Balaiada
do Maranhão, em 1840, propagou-se até Piauí, e de lá chegou até aqui.
Cometeu-se aqui vários assassinatos, reunindo-se a eles muitos caboclos ou
cabras daqui. Ele mesmo foi perseguido, levou um tiro de que escapou mas
apanharam-no, conduziram para a praça, sendo trazido por dois malvados
que lhe prendiam os braços, apontaram para ele o bacamarte armado, mas,
a pedido de [f. 81] alguns que se interessaram por ele, o largaram. O pai
morava aqui, não lhe fizeram mal, mas impuseram-lhe a obrigação de não

355
sair daqui. Ele porém entendeu que não devia permanecer no meio destes
levantados facinorosos, retirou-se às ocultas para S. Benedito [e] lá foram
os malvados, e incendiaram-lhe a casa, e começaram a destruir tudo, a
derrubar as matas etc.
Ele, que estava escondido, vendo aquele vandalismo e não cuidando
que o matassem, apareceu a ver se salvava o que tinha ali, mas lançaram-se
sobre ele e o mataram com judiarias etc. etc.
Despedindo saí a fazer um giro pela quadra medindo os passos
para tirar-lhe o plano. Voltando a casa, saí com Manoel e fomos à casa
do Sr. M. Marques, com quem ontem viemos, e que mora aqui na rua do
Cisco. Como ele se ofereceu, juntar-se-á a nós para ir amanhã fazer uma
excursão pelas matas daqui. Em conversa nos disse que a seca de 1825
chegou também aqui em cima da serra, donde várias famílias, passando-se
para [o] Piauí, perderam pessoas em caminho mortos de fome. Foi então
grande recurso para a gente daqui e a que vinha dos sertões o palmito e a
raiz da mucana. Ficaram inteiramente destruídas as florestas de palmeiras
que cobrem grande extensão desses lugares, [e] hoje se acham reproduzidas.
Ontem notei como se fazem aqui roças no meio das palmeiras. Brocam o
mato e tocam fogo, que devora tudo, e sapeca as palmeiras sem as matar, e
fazem as plantas [plantações] pelo meio das palmeiras, só quando se acham
muito juntas é que cortam algumas.
Ficam bonitas as roças.
Sábado, 24: Amanheceu o tempo coberto, ventoso, termômetro
dentro 19 graus, fora desceu a 17 graus.
Fizemos de manhã alguns trabalhos incompletos.
[f. 82]
O Sr. Marques veio, como ajustamos ontem, almoçar conosco; e
seriam onze horas quando pudemos montar a cavalo, para irmos à mata
(pausa). Éramos eu, Manoel, o Sr. Marques e Manoel Francisco, nosso
comboieiro. Chegamos à mata que é daqui a uma légua, não é já mata
virgem, mas capoeira antiga.
Pouca cousa aí colhemos, o que lá me levou principalmente era ver
se achávamos putumujus com fruta, mas algumas que vimos nada tinham.
Olhamos ali uma almécega, que dá madeira de [construir e] estava com

356
fruta. Vimos árvores de marmeleiro (crotoá), de oititurubá (/acunea) e a
carearea (cortalnigua) muito comum pelos descampados. Em caminho
colhemos algumas plantas de que farei menção em outro lugar.
Chegamos à povoação depois de uma hora com bastante soalheira.
Ainda assim fizemos o estudo de algumas flores, antes do jantar. Jantou
conosco o Sr. Marques, e no fim chegou o subdelegado, tomamos café, e
conversamos até o anoitecer. Eu saí e fiz um giro pela praça, e recolhi-me.
Hoje nos explicou o Sr. Marques o que ele chama capema, ou capemba,
é a parte inferior do talo das folhas da palmeira, que nas palmeiras novas,
antes de saírem do chão, são tenras e se comem, à maneira da alcachofra,
e foi de recurso à pobreza em 1825 — assim como o palmito das palmeiras
grandes.
Domingo, 25: Amanhece o dia anuviado, ventoso, termômetro
dentro 18 [graus], fora desceu a 16 graus e meio.
De manhá antes da missa trabalhei um pouco com algumas plantas.
[f. 83]
Às dez horas e meia vesti-me e dirigi-me para a casa do subdelegado
para irmos à missa, e ali achei o padre e mais alguns homens do lugar, e aí
estivemos conversando até às onze horas em que o padre subiu para a igreja,
e nós fizemos outro tanto.
Havia pouca gente na igreja, tanto mulheres como homens, que ao
todo fariam umas 60 pessoas. Vi na igreja poucas senhoras brancas.
Acabada a missa vim para casa, onde já estava o velho caboclo
Serafim, o qual eu havia mandado convidar para passar o dia conosco, e
dar-nos informações das coisas antigas daqui. Com o que nos ocupamos
até além das três horas da tarde.
Veio visitar-nos depois da missa o padre Domingos Dias da Conceição
e um irmão do subdelegado, o Sr. Honorato.
Jantamos às cinco horas com o bom Serafim, e no fim da mesa
chegaram dois sujeitos e três senhoras que se vinham receitar, e que ainda
fizeram as honras da sobremesa, e nos divertiram.
Ao anoitecer saí e fui sentar-me na roda do subdelegado, onde
estavam mais quatro ou cinco sujeitos, e aí estive até às oito horas. A noite
estava linda, e enquanto ali estávamos chegou um próprio de vila Viçosa
que me entregou um maço de cartas da parte do vigário dali, tivemos prazer

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[de ver] que dentro vinham cartas do Rio. Chegando a casa e abrindo só
achamos ofícios e cartas do Dr. Gabaglia.
Foi um desagradável desapontamento.
Segunda-feira, 26: Amanheceu ventando, céu anuviado, termômetro
dentro 18 graus. Três horas da tarde 20 graus, céu anuviado, caem chuviscos.
[f. 84)
Às cinco horas caiu alguma chuva. Ao anoitecer fui visitar o padre
Capelo. Saindo da casa dele e andando, medindo a passos a povoação, e ao
luar veio ter comigo o tenente Felicíssimo, que chegou aqui de S. Benedito,
e volta já.
Continuei o meu exercício e voltei para casa eram quase oito horas.
Terça-feira 27: Amanheceu ventando, e o céu anuviado. Termômetro
na sala 17 graus, fora desceu a 16 graus.
Tendo ajustado uma viagem à Gruta da Ubajara com o subdelegado,
[e] o tenente Vitorino Alves Teixeira, mas para aproveitar a manhã estudando
algumas plantas deixamos essa viagem para de tarde.
Três horas da tarde fazia calor, nuvens aquarteladas para a parte do
Piauí e termômetro na sala mostrou 21 graus.
Às três e meia montamos a cavalo eu, Manoel e o subdelegado,
acompanhando-nos o Barreto a cavalo. Tem já partido um homem a pé, com
uma cesta de comida. Com pouco mais de um quarto de hora estávamos
no tope da serra, e começamos a descer a ladeira, que é íngreme, pedregosa,
com saltos medonhos, e às vezes à borda de horríveis precipícios, pois desce-
se pelo talhado da serra quase a pique, e com pequenos ziguezagues. Eu
desci a maior parte a pé (pois por estas ladeiras sobem e descem comboios
de carga!), com mais de um quarto estávamos no que chamam cinta da
serra, que são socalcos, [riscado “2”] tabuleiros ou enormes espigões, ou
contrafortes que se vão sucedendo e aliviando a descida, logo que acaba a
escarpa perpendicular.
Essas sucalcadas, espigões ou lombadas, por meio dos quais a
serra vem, morrem muito longe, são evidentemente formados por vastos
desmoronamentos de escarpa da serra. Chegados pois a esse lugar de planície,
paramos [riscado — “junto”], apeamo-nos e estivemos contemplando, com
certo prazer e saudade, a vegetação que toda, ou quase toda, [lembra] a
nossa do Rio. Aqui vi pela primeira vez um enorme [f. 85] [riscadas nove

358
linhas] cepo, e uma tora de guararema, (com seis palmos de diâmetro) que
tem aqui o mesmo nome, que no Rio, e de que fazem [ilegível] grandes
carrapateiras (que chamam jito) etc. etc. Em outro lugar notaremos as
outras plantas.
Aqui neste lugar é ainda mata virgem e de grande vigor, semelhante
às nossas. E logo que nos achamos em descampados, se nos apresenta o
vasto panorama do sertão, imensa planície a perder de vista, semeada de
grandes montanhas e de serrotes áridos. Mas não nos foi possível avistar a
cidade de Sobral, que nos ficou defronte, e mui longe, por estar o ar um
tanto esfumaçado.
Depois de contemplarmos por algum tempo essa perspectiva,
entramos de novo a descer pelas lombadas de barro avermelhado e
pedregoso, e num lugar essa lombada se fez tão estreita que tínhamos dois
precipícios ou lados, e de grande altura o espinhaço por que andávamos
teria duas braças de largo, e daí descia não abrupta, mas por ladeira íngreme
até a profundeza dos vales, mas a vegetação marcava os precipícios.
Por essas lombadas não faltavam passagens difíceis e mui perigosas.
Depois daquela zona de mata de que já falei, à proporção que
descíamos tudo nos anuncia o sertão.
As matas eram já caatingas desfolhadas não apa- [palavra incompleta]
[f. 86] o mofumbo e a sabiá, assim o ar, o terreno, a vegetação haviam
mudado de caráter, e nós marchávamos como sertanejos. Às cinco horas
havíamos descido de todo os contrafortes da serra, e nos achávamos na
planície, mas planície ondeada do sertão.
Tocamos em casa de um senhor (pausa) no lugar chamado Tamondé,
por onde passa um riacho desse nome, que vem da serra. Continuei a andar
por entre caatingas queimadas, cheias de embaraços, de garranchos e de
espinhos; fez-se noite, mas de lindo luar. Andávamos por uma vereda. O
nosso prático, Manoel, que nos levava a leste do corvedo, perdeu a trilha,
e andamos errados por mais de meia hora. Enfim às oito chegamos ao sítio
chamado Araticum. Palhoça de um sertanejo, que tem aqui lavoura, e creio
que terras próprias, visto que encurtado a serra é lugar fresco. Recebeu-
nos muito bem e tinha a casa cheia de homens, filhos, parentes etc., que
acocorados em roda de nós nos divertitam com suas simplicidades e
conversas.

359
Hoje soubemos que o dono da casa quis matar um carneiro para
obsequiar-nos, foi disso dissuadido pelo Sr. delegado nosso companheiro,
dizendo-lhe que levávamos matalotagem.
Mandou-nos logo estender redes lavadas, em que nos estendemos.
Quando cessou a conversa conosco, foi com o subdelegado que conversei
até tarde, e então a conversa era quase sempre sobre prisões de criminosos,
sobre mortes e ferimentos. Há três ou quatro dias que em um samba
de casamento dois valentões, um deles criminoso de morte, brigaram,
esfaquearam-se e estão ambos à morte. Quando chegamos [f. 87] a Campo
Grande haviam morrido dois de ferimentos em Soure, tinha havido duas
mortes etc. etc. É triste isto por aqui, as mortes, as brigas, as facadas, os
processos se enfiam, e é o objeto de conversa geral desta gente.
Dormimos na sala aberta (rancho de palha velha, e com esteios fora
de prumo) e, bem que havíamos levado lençóis, o frio nos incomodou de
madrugada.
Quarta-feira, 28: Levantamo-nos às seis horas, e só às sete é que
partimos, sem tomarmos uma xícara de café.
Tínhamos à vista os penhascos da serra, que nos parecia deitar dali
um quarto de légua, mas andamos por montes e vales pedregosos, até o
Saco da Ibajara, e daí até abaixo do rochedo aí chamado de Arara, porque
dizem que em outros tempos aí se aninhavam as araras, já perto da entrada
da gruta; que a gente do país chama Furna da Ibajara, e havíamos gasto
mais de uma hora. Paramos e nos apeamos na choupana duma família, que
para ali vai no verão fazer salitre. Não tivemos curiosidade de informar-nos
do processo que seguem, vimos algumas fornalhas toscas ao pé da casa, cada
uma com dois ou três pequenos tachos cozinhando a terra vermelha, que
apanham no fundo das grutas (são alguns os que dão salitre), misturando-
lhes a cinza principalmente de guararema que já é rara nas vizinhanças,
coam e na água coada cristaliniza o salitre, que o vimos assim em umas
gamelas. Vendem o salitre a 108000 [dez mil-réis] a arroba. Os moços, creio
serem irmãos e cunhados que ali achamos, trabalhavam uns em preparar o
salitre, outros em fazer pólvora e foguetes para festas dos quais dirão alguns
à nossa vinham. [f. 88]
Um sujeito já idoso, mas lesto, pai e sogro desta gente (eram três
moços, duas senhoras e uma mocinha) nos fez o favor de acompanhar-nos

360
à gruta e ser nosso guia, sem o que lá se não entra. Deste estabelecimento
industrial para a gruta é a subida das mais ásperas, anda-se saltando de pedra
em pedra, sobre lajes rasas, pegando-se a gente pelas raízes das árvores, e
pelas arestas das rochas, anda-se como dependurado por ali. A entrada da
gruta é já no talhado da serra, acima do meio da altura total dela.
É como uma boca de forno, pela qual mal entra um homem em pé.
Há duas bocas, pelas quais entra alguma claridade nas primeiras escavações,
chamadas salas da furna.
Eu me contentei com ver só estas. Manoel e o subdelegado, o guia e
outros desceram até o riacho que corre por dentro da gruta. É um labirinto
de corredores que comunicam umas salas com outras, e penetra muito pelo
coração da serra; ainda ninguém chegou ao fundo. As estalactites nas salas
de fora que eu vi, sem terem a beleza em que me tinham feito acreditar, não
deixam de ter algum interesse. São formados em santos, e não em coluna.
Enquanto estava só na boca de forno, sentado numa pedra, senti-
me muito incomodado, e ameaçado de síncope, coberto de suor, disfarcei
andando um pouco e depois recostando-me sentado, e melhorou. Atribuo
isto ao excesso e emoções da subida, e a não ter tomado nem uma xícara
de café.
Enfim aparecem os explanadores e descemos para a casa do nosso
guia. Havia na boca da gruta e por fora algumas árvores de bálsamo com
fruta. O Manoel, cabra, [f. 89] subiu a uma delas e tirou um bom galho.
Em casa, digo, na fábrica de salitre fomos almoçar do que levávamos, e
café que a senhora da casa nos quis fazer. O ranchinho estava literalmente
cheio da gente da casa e nós almoçamos sobre malas, sentados em redes
ou em pé. Repartimos com as crianças queijo e doce, e a dois meninos
dei a cada um uma moeda de 500 réis em prata, com o que ficaram mui
contentes. Bebeu-se muita boa água do regato que corre bem ao pé da casa.
Às dez horas montamos a cavalo, desfizemos o mau caminho em outra
hora, e atravessando já com bastante sol as caatingas do sertão. Chega[mos]
meia hora depois do meio-dia à casa do Sr. Elias (pausa) onde estivemos ali
três [horas] e meia curtindo intenso calor, a casa era de telha e baixa, não
corria ar, e o abanar das redes não refrigerava. Havia na casa bastante gente
máscula e fêmea, e da porta nos olhavam dois belos olhos encravados no
rosto redondo. Era, creio, uma filha do senhor (pausa) e mãe duma gentil

361
menina, e mui arisca, que ali andava. Por algumas vezes comemos doce
de banana e bebemos água, até acabar-se a caxeta (caixão chamam aqui).
Eram três horas e meia, fazia ainda um sol ardente, e grande calma. Mas era
necessário sairmos com tempo de subir a ladeira com dia.
Atravessamos a caatinga, subindo montes e descendo quebradas,
até encetarmos as fraldas da serra ou lombadas, colhemos neste intervalo
flores de gonçalo-alves, subindo o Manoel na curva, flores de tingui-capeta,
flores do acendo-candeia (o chrisospuema) e outros. Às cinco horas e meia
chegávamos ao pé da escarpa ou ladeira da serra, que em grande parte subi
a pé e gastamos na subida um sexto de hora. Às seis horas nos apeávamos [f.
90] em S. Pedro, que estava festivo. Tinha havido um casamento, e à porta
dos esposos vimos um grupo de homens encasacados, e dentro de casa havia
um músico. Pouco depois rompe a música e as quadrilhas, que gozávamos
da nossa casa, depois cantoria.
Ao mesmo tempo que aqui se festejava, preparava[-se] o levantamento
do mastro para [as] novenas que começam amanhã. Às dez horas da noite,
enquanto eu escrevi este às carreiras, soavam as vozes e danças na casa dos
que se casaram. Sentimos chegar já um pouco tarde, porque não vimos a
marcha dos noivos acompanhados pelos convivas da casa à igreja, que lhes
fica fronteira. Zoava ali festança, repicava o sino, tocava-se tambor e pífano,
ao som de foguetes e roqueiras. Enfim seriam onze horas quando se fez
a procissão da bandeira, acompanhada de homens de tochas, de músicas
constantes ao som da rabeca e violão; precedentes pela infalível caixa e
flautim, a noite era de luar. O acompanhamento grande em proporção do
lugar, homens e mulheres entoalhados.
Quando cheguei chegou também de vila Viçosa um expresso
mandado pelo juiz de Direito dela, pedindo-me que fosse socorrer a vila,
cuja população estava aterrada com uma febre que ali está matando muita
gente. Respondi-lhe que lá iria amanhã o meu adjunto.
Jantamos às oito horas e jantou conosco o subdelegado.
Quinta-feira, 29: Ao amanhecer, não ventava, céu limpo, termômetro
na sala 18 graus e meio.
De manhã ocupei-me com o estudo [f. 91] de algumas das plantas
colhidas ontem. Manoel, que se preparava para ir para a Viçosa hoje, não
foi! Ou não quis ir! Jantamos quase [às] três horas e chegaram enquanto

362
jantávamos os dois irmãos Assunção, e o que mora em S. Benedito e o
que mora aqui estiveram conosco, [a] comer doce, beber vinho, tomar
café. O Sr. Assunção me trouxe a memória que ele escreveu a meu pedido
sobre o que ele chamava seitas dos índios e conversou aqui contando-nos
muitas coisas dos seus costumes, até tarde. Saímos às ave-marias, estivemos
na roda do subdelegado e daí subimos para a igreja quando começava a
novena. Havia bastante gente do mulherio, mas homens poucos. O trono
estava bem arranjado, bem iluminado e asseado, faltaram os músicos e fora
estrondavam as roqueiras.
Acabada a novena juntamo-nos ainda à porta do subdelegado, uns
poucos conversamos até nove horas e me retirei.
O subdelegado mostrou-me agora o lugar da casa onde estava
residindo o governador João Carlos, e onde fez as prisões.

S. Pedro de Ibiapina

Foi aldeia de índios muito antiga, de 1790 para cá tem se conservado


(segundo a lembrança do índio Serafim) com muito pouco aumento em
casas, que sempre foram cobertas de palha de palmeiras; e a princípio até
as paredes e portas eram da mesma palha, o chão é térreo, a telha e o tijolo
é aqui vasqueiro e vem de muito longe, não havendo aqui barreiras para
isso. Há aqui um só prédio coberto de telha, e não sei se ladrilhado, com
bom aspecto e a sala mobiliada com algum asseio, creio que é [f. 92] a
primeira que aqui se cobriu de telha, exceto a igreja que mesmo a antiga era
telhada. Uma prova de que isto vai prosperando é que se estão edificando
casas melhores, e que se propõem a cobri-las de telha. Lembrei aqui a um
sujeito que está fazendo uma casa paredes-meias com a em que estamos,
[Fazer] a coberta de tábuas, ele achou boa a lembrança e prometeu fazer
uma experiência.
Há porém uma coisa, que agrada aqui, e é que todas as casas que tem
frente para a quadra são caiadas com o que aqui chamam tabatinga, que
preparam juntando certa quantidade de goma de tapioca, ou grude.
E ficam tão alvas, tão bem caiadas, que eu teimei com um sujeito
daqui que me asseverava que era tabatinga, e não cal. É mesmo superior

363
à cal, segura melhor que ela, não tem os seus inconvenientes, e desperta-
lhe a alvura.
Há aqui algumas lojas e vendas, mais numerosas, melhores e mais
bem sentadas, que em S. Benedito e em Campo Grande.
Tem-se quase todos os dias carne fresca, há bolacha vinda de Viçosa,
há vinho sofrível, fruta melhor que em S. Benedito.
A água é a melhor que temos visto por estes lugares, é de fonte
corrente.
É menos ventoso e mais quente que Campo Grande e S. Benedito,
ao menos comparando com o que observamos nestes lugares.
Quanto à gente temos achado sempre a mesma coisa, tanto nos
brancos como nos baços.
Isto foi sempre um lugar habitado de caboclos e miserável depois
dos distúrbios da Balaiada de 1840. Ensinados os caboclos e serenados
os ânimos, é que entrou isto a povoar-se de melhor gente, e que se vai
tornando habitável. O clima é excelente, todavia há menos moléstias do
que o que se devia esperar, devidas ao mal passadio [e] à falta de tratamento,
e ao vírus sifilítico.
As moléstias de olhos não são raras.
[f. 93]
Na terça-feira, 27, acordamos eu, e principalmente Manoel
defluxados, a viagem ao sertão nos fez algum benefício. Na quarta-feira à
noite, logo que aqui cheguei reapareceu-me, e o conservo ainda. Ontem
quinta-feira o meu criado Francisco apareceu com febre. E quando
estávamos já agasalhados, nos bateram à porta pedindo que fôssemos ver
o Sr. E, pai da moça que se casou anteontem, que estava sem fala. Manoel
lá foi vê-lo, era um ataque nervoso, tínhamos apenas dormido o primeiro
sono quando nos bateram à porta de novo, era na mesma casa. À moça,
filha dele, que se tinha casado, estava a tossir desde a boca da noite e [a]
lançar escarros de sangue; lá foi Manoel, sangrou-a e medicamentou.
Isto é o que presenciamos no espaço de três dias, provavelmente
houve mais alguns casos, de que não tivemos noticia. Na vila Viçosa a saúde
pública não é boa. Quanto a mim, a mudança de estação é causa disto.
Há dias que a temperatura vai aumentando, o céu sempre mais ou menos
anuviado, chuveiros de vez em quando. São os pródimos do inverno.

364
Sexta-feira, 30: Amanheceu o dia com uma carranca, nuvens grossas
toldavam o céu e ameaçavam chuva. O termômetro na sala estava em 19
graus.
Enquanto nos preparamos para a partida, estudei algumas plantas
até quase uma hora. Então me vesti para fazer as minhas despedidas, fui
primeiro à casa do padre Domingos, que não achei, recebeu-me a senhora,
e me disse que ele fora a uma confissão, e apresentou-me uma filhinha,
Luiza, de nove a dez anos, bem gentil. Daí fui ao subdelegado, e daí à casa
do irmão, o Sr. Honorato, que também não achei; recebeu-me sua senhora,
que estava na sala bordando uma rede e conversou com desembaraço.
Chegando a casa tratei de banhar-me e aprontei-me [f. 94] para a partida;
veio jantar conosco o Sr. Alexandre Marques, que é nosso companheiro
de viagem, tendo de servir no júri que se vai abrir em vila Viçosa a 3 de
dezembro. Enfim deixamos S. Pedro, não sem alguma saudade, às três
horas e três quartos por uma bela tarde, mas um pouco quente, e às sete
horas e meia pousamos no lugar chamado Tapeba, ou Capeba, que fazem
e deve ser distante de S. Pedro quatro léguas: nesse trânsito passamos por
Moitinga, sem nada notável, [e] Jacaré, nome que tem de uma lagoa, que
foi grande em outro tempo, e é hoje insignificante, e que tem o nome de
lagoa do Jacaré. Este lugar oferece uma extensa baixada brejosa, que corre
por entre elevações do terreno, e que toda é cultura, e plantada de canas,
com bastantes casas ao pé, e creio que com três engenhocas que estavam
moendo, foi um lugar que achamos aprazível. Daí a pouco chegamos a outro
ponto, ou lugar, denominado Buriti, é também uma baixada, ou brejo,
todo cultivado, principalmente de canas, com engenho; e quando, saindo
da mata que fechava o caminho, descobrimos este sítio, pareceu[-nos] estar
no Rio de Janeiro, vendo algumas casas cobertas de palha e levantar-se no
meio dela, e no alto, uma casa boa, caiada, coberta de telha, e assobradada.
Chegamos a ela, encontrando a dona da casa com alguns meninos, que
vinham de passeio. Aí nos demoramos um pouco, esperando pela nossa
bagagem, ou comboio, e no entanto ela nos mandou dar água, que para
quem vinha de S. Pedro era intragável. Era já noite quando passamos por
Taperacima [f. 95] e às sete e meia, como já disse, nos apeamos em uma
casa, de uma pobre gente, em Tapeba. Casa bastante grande, coberta e
paredada de folhas de palmeira.

365
1º de dezembro: Ao romper do dia sentimos muito frio. Tendo tomado
uma xícara de café simples, às seis horas estávamos a cavalo. Marchávamos
por um belo dia, e por um terreno plano; mas de meia viagem em diante,
o calor se tornou intenso, o ar quieto, e o pó insuportável. E pior que
tudo tivemos de descer uma péssima e longa ladeira antes de chegarmos
a Quatiguaba, onde nos arranchamos às dez horas. Fazem e devem ser
quatro léguas de Capeba a Quatiguaba. Andamos primeiro por tabuleiros,
com pastos e vegetação solta, exceto em alguns lugares, mais ou menos
pedregosos e cobertos de caatingas. Chegamos depois a uma chapada
com vegetação de agreste, muito semelhante à do Araripe, bem que mais
acarrascada, e mais árida.
A vegetação destes lugares vai notada à parte. Notamos à beira do
caminho uma pedra, que chamam solamente Pedra Fina, e que é mui
curiosa, por apresentar a forma dum vaso, e da qual fiz ali mesmo um
debuxo. Em Quatiguaba fomos bem acolhidos pelo dono da casa, o Sr.
Aleixo Rodrigues da Costa, casado e com nove filhos, seis machos e três
fêmeas. Um dos filhos é já casado, tem mais em companhia duas irmãs
solteiras, uma das quais a mais moça, que poderá ter 18 a 20 [anos], fazia
uma figura brilhante, se se apresentasse bem trajada em qualquer reunião;
de proporcional altura, esbelta, alva, corada, bonitos e negros cabelos,
lindos olhos, formosa boca, gracioso riso. Mas trajava como todas as outras
senhoras e meninas uma simples saia amarrada à senhora, sobre uma [f. 96]
camisa, decotada, com gala de renda, que mal cobriam duas tentações, os
pés descalços, e mais nada.
Pareciam um pouco envergonhadas, o que a esta dava ainda maior
realce. Quatiguaba está numa grande baixada, ou depressão da serra, o calor
é aí mui forte às três horas (27 graus), a vegetação é caatinga (caatininga,
mata seca) e estava toda desfolhada. Assim já notamos aqui grande diferença
na gente de cima da serra, que é em geral pálida e adoentada (como nós
lá somos no Rio). Aqui tada a gente, homens, mulheres e crianças, todos
são vigorosos, corados, alvos e de cabelos loiros nas crianças, e negros nos
adultos.
Foi aqui que morou o ouvidor Luiz Manoel de Moura Cabral, de que
o Sr. Aleixo me fez a história, que escrevi; tendo sido seu avô o vaqueiro do
comandante da Viçosa, a quem o ouvidor deixou a fazenda. Este ouvidor

366
deixou aqui nomeado, e mesmo dizia-se dele que se havia retirado para aqui,
como para um desterro por haver desgostado ao governo português. Mas é
mais provável que andando por aqui em comissão, agradando-se deste lugar,
e oferecendo-se-lhe ocasião de boa compra da fazenda, resolveu-se a se fazer
lavrador, devendo sem dúvida ter havido para esta resolução motivo grave.
Fez grande estabelecimento, tinha muita escravatura. Cultivou algodão,
que ainda é hoje a cultura deste lugar, tinha várias oficinas e oficiais de
ofício, seus escravos, oratório de missa etc. etc. Retirou se daqui em 1811,
deixando tudo a um seu amigo.
Ainda se reconhece bem o lugar da casa, os baldrames e dois esteios
que inda existem.
[£. 97]
Fiz alguns mimos às mulheres e meninas de santinhos e dedais, com
que se mostraram muito contentes e partimos às três horas e meia. Com
sol muito quente, passamos pelo lugar da casa do ouvidor, e observamos as
suas ruínas, subimos uma ladeira terrível. Enfim chegando à mesma altura
de que tínhamos descido de manhã, nos achamos na assentada da serra, a
vegetação que hoje é de capoeiras foi a princípio de grandes matas, como
atestam algumas árvores, ou restos de matos, que ainda existem.
Ao aproximarmo-nos da vila, o terreno se tornou desigual e
montuoso, e ainda tivemos de descer e subir algumas pequenas ladeiras.
Eram seis horas, o sol entrava quando fizemos a nossa entrada em
Vila Viçosa, a antiga Sotavain dos selvagens. Logo em um largo, vimos um
grupo de homens sentados a uma porta, era o vigário e alguns moradores
da vila, aí nos apeamos e fomos recebidos mui amavelmente pelo vigário,
que já a pedido do Pe. João Crisóstomo de S. Benedito nos havia preparado
a antiga Casa da Câmara, para onde logo nos dirigimos. Aqui nos apareceu
logo o tenente João Domingos Torres, delegado de polícia, que nos fez mil
oferecimentos e mandou-nos logo pôr em casa um pote cheio de água,
moringa, copos, castiçais com mangas e quis que fôssemos cear com ele.
Ceia, que para nós era jantar, porquanto almoçamos em Quatiguaba ao
meio-dia. Descansamos [e] quando nos aprontávamos para ir cear em casa
do delegado nos entram pela porta [a]dentro dois moleques, cada um com
uma grande bandeja coberta de toalhas [f. 98] mui limpas; era o padre
vigário que nos mandou um banquete para cear, galinha, guisado de várias

367
formas, farofa, chá, biscoitos etc. etc. Isto nos pôs em algum embaraço,
mas estávamos comprometidos e fomos cear com o delegado, que é casado
com uma amável senhora de Granja. Voltando para casa ainda petiscamos
um pouco do que nos mandou o vigário, e o resto guardou[-se] para o dia
seguinte. O nosso companheiro de viagem, o Sr. Alexandre Marques, veio
a nosso convite comer conosco, e nos faz boa companhia.
Domingo, 2: Dormi muito bem esta noite; a madrugada não foi fria,
a manhá era bela. Almoçamos e nos vestimos para a missa, que foi às dez
horas.
Depois da missa, vieram visitar-nos o padre vigário, o Dr. juiz de
Direito Dr. Fernando Maranhense da Cunha, o Sr. major João Severiano, o
Sr. José Severiano Fontenele e o Sr. Augusto Pontes de Aguiar.
Quando estávamos almoçando entrou o delegado dizendo que nos
ia convidar para almoçar com ele; mas visto estarmos almoçando, contava
conosco para o jantar. Porém tivemos um bom presente do Dr. juiz de
Direito, um muito bom pão-de-ló, e uma bandeja cheia de abacaxi e de
excelentes bananas de santarém e da terra. Às duas horas nos veio o delegado
buscar para jantar, estava mais em casa dele o Sr. major João Severiano, que
é presidente da Câmara Municipal daqui, e que nos prometeu franquear-
nos o arquivo da Câmara.
A tarde foi muito quente, todavia o termômetro só subiu a 22 graus e
um quarto. De tardinha saí sozinho, fui ver o lugar onde foi o Colégio dos
Jesuítas, de que só existem os baldrames, e daí dei uma volta pela vila; e me
dirigi para a igreja a ver a$ novenas, mas sentado com outras pessoas à porta
do delegado aí fiquei. [f. 99]
Segunda-feira, 3 de dezembro: De madrugada caiu uma chuva forte,
que durou uns cinco minutos; amanhece o dia com denso nevoeiro. O
termômetro na sala estava em 18 graus.
Às nove horas está o céu carregado, caem chuveiros. Às dez horas
fazia bom [riscado “bom”] tempo, e fez sol, e mesmo algum calor durante
o dia. Às três horas o termômetro na sala a 22 graus e meio.
Ocupamo-nos com o estudo de plantas que Manoel colheu.
Temos tido sempre gente que se vem receitar. Ainda não podemos
formar juízo algum sobre a moléstia, que se diz grassa epidemicamente por
aqui e tem feito algumas vítimas. Ontem foi Manoel à cadeia ver um rapaz

368
que chegou de fora doente, mas por ora nada pode dizer sobre a natureza
de sua moléstia. Dizem que por fora da vila há algumas pessoas doentes.
Às ave-marias saí com Manoel, encasacado, e fui pagar visitas ao
vigário, ao Dr. juiz de Direito, ao capitão José Severiano Fontenele e ao Sr.
Augusto Pontes de Aguiar, que é aqui promotor. Era já tarde mas dirigimo-
nos para a igreja a assistir às novenas, mas com a infelicidade de chegarmos
ao patamar quando o povo saía e saiu muita gente, ao som de foguetes e
repiques.
Dali viemos para a casa do ex-delegado, onde estivemos sentados
à porta e conversando, sendo da companhia o tenente Felicíssimo, do S.
Benedito, que chegou hoje para servir no júri, que se não pode instalar hoje
por falta de número de jurados.
Terça-feira, 4: Amanhece o dia carregado de neblina, o termômetro
dentro e fora 18 graus, ontem à noite fuzilava muito a oeste em Piauí, que
está daqui seis ou sete léguas.
Estando a manhã sempre coberta, e fazendo algum calor, era meio-
dia quando escureceu mais, [f. 100] e caiu logo um grosso chuveiro, que foi
seguido dum trovão. À tormenta foi sempre crescendo, os trovões violentos,
e a chuva abundante, são quase duas horas e ainda não cessou de todo. A
casa em que estamos tem o telhado em mau estado, e chovia por toda a
parte. Manoel saiu com o Marques e apanhou a tormenta em cima da serra.
Três horas, 18 graus e meio e coberto, úmido frio.
Hoje me mandou o presidente da Câmara Municipal alguns dos
livros antigos da Câmara, que comecei a examiná-los.
De tardinha saí a ver a senhora do Sr. promotor.
Saí, fui assistir à novena, de volta estive um pouco em casa do tenente
Torres.
Quarta [riscado “Terça”] -feira, 5: Amanhece o dia fresco, termômetro
na sala 17 graus, o dia tem corrido sempre mais ou menos coberto, o
termômetro às três horas da tarde marca 22 graus.
Tenho hoje estudado algumas plantas e examinado alguns livros do
Arquivo da Câmara.
Acabávamos de jantar, ajustando um passeio ao tope da serra, o que
chamam céu, eram quatro horas quando começam a cair algumas gotas
d'água, e logo ventando nuvens grossas, baixas, vaporosas. Correm do sertão

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ou do lado do sertão, ou do leste, sobre a serra, toldam o ar, que escurece.
À chuva aumenta, e não tarda a se fazer ouvir um trovão longínquo, alguns
minutos depois era tormenta desfeita; chuva grossa, medonhos trovões, às
cinco horas ainda chovia, e se ouviam roncos de trovoada já longe. Todo o
resto da tarde foi coberto, e ao anoitecer fuzilava baixo é por grande extensa
do horizonte, para [0] Piauí.
Saíamos e estivemos conversando por algum tempo em casa do ex-
delegado, com um sujeito da Granja, que esteve [f. 101] alguns anos no
Maranhão, de que nos deu muita notícia.
Quinta-feira, 6: Amanhece o dia neblinoso alguma coisa ventoso,
termômetro interior 17 graus. Todo o dia foi o céu mais ou menos anuviado;
caíram por vezes alguns chuveiros, três horas da tarde, chuvisca. 20 [graus].
Ocupei-me com o estudo de algumas plantas, com a leitura dos livros da
Câmara, e com o desenho duma vista desta vila. À noite fui à igreja assistir
à novena, que esteve hoje mais concorrida e mais solene, com sacramento
exposto etc.; iluminam no adro da igreja e muitos foguetes e busca-pés.
Quando começaram a lançar, eu e muitas outras pessoas nos metemos na
igreja para nos livrarmos deles, mas foi pior porque começou[-se] a lançá-los
para ali, de sorte que vários estouraram nos degraus da porta, é alguns quase
penetraram no templo. Brincadeira brutal e perigosa de que gostam muito
no Ceará, como já se gostou no Rio. Vindo da igreja estive conversando
um pouco com o ex-delegado. Estando o céu carregado ao anoitecer, e
chovendo em alguns lugares, agora dez horas está o céu estrelado.
Sexta-feira, 7: Ventou muito toda a noite, e inda venta. Amanhece o
tempo neblinoso, termômetro dentro 17 graus.
Tendo almoçado, aparece-nos o vigário que vinha para acompanhar]-
nos] ao ato para que nos convidou o professor público de primeiras letras;
para lá fomos eu e Manoel. Era o ato o encerramento do ano escolar, é
o exame de dois meninos, que ele dá por prontos. Achamos na saleta do
exame o professor, pardo, filho de Pernambuco Marcelino Pereira das
Virgens; a professora pública, mocetona, casada, filha do Ceará, e uma das
mais bonitas caras que aqui tenho visto, e uma menina filha do professor,
e mais nada. Em outra sala contígua e comunada com a primeira estavam
uns sete e tantos [f. 102] rapazes, fazendo rumor. Faltou o inspetor, ou
o que quer que seja para assistir ao ato, e provavelmente para examinar,

370
por ter sido sorteado para julgamento do júri, que está trabalhando numa
casa ali próxima. E então nos convida o professor a mim e Manoel para
examinarmos. Com efeito fomos nós os mais examinado[re]s externos,
porque o vigário, que também assistiu, não perguntou nada, fazendo no fim
algumas perguntas o próprio professor, em doutrina cristá e em aritmética.
As crianças se embaraçaram e a pouco satisfizeram, mas foram cobertos com
o véu da nossa benignidade. Era meio-dia quando dela saímos e chegando
a casa, acompanhados pelo vigário, e chegando depois mais alguns sujeitos,
nos tomaram todo o tempo, até às três [horas] em que jantamos, jantando
conosco o Sr. Marques, e o Sr. tenente Felicíssimo de S. Benedito, que se
retira por ter a senhora doente.
Fazia bom tempo, e mesmo algum calor. Termômetro 21 graus e
meio. Depois do jantar mandamos vir os cavalos, saímos eu, Manoel e
o Alexandre Marques, para irmos ao alto da serra, que é sobranceiro à
vila, e a que chamam o céu.
Ao chegarmos lá apeamo-nos em uma palhoça, e estivemos por
algum tempo gozando do magnífico panorama que tínhamos diante de
nós. Embaixo se mostrava a vila com grande desenvolvimento, e boa
aparência, mas o belo era a vista das quebradas da serra e a do sertão,
eriçado de serras e serrotes, em todas as direções. Depois de admirar por
algum [tempo] esse painel, montamos a cavalo e andamos por cima da
serra obra de um quarto de légua até outra palhoça, onde bebemos água, e
onde estava só uma menina cosendo e rodeada dumas poucas criancinhas
choronas e de aspecto doentio, ou antes miserável. Todo o alto da serra
aqui é cheio de ondulações, e coberto de capoeiras rasteiras, onde já teve
belas matas. Voltamos, e chegando à [f. 103] vila inda com dia, demos um
passeio por uma rua que ainda não tinha visto. À noite não saí e assisti aos
foguetes da novena sentado à porta, estando aí também o ex-delegado e o
professor público. São mais de dez horas e o júri ainda está trabalhando. É
um processo de uma mulher acusada de haver morto o marido.
Sábado, 8, dia da [Nossa Senhora da] Conceição, e de uma festa
aqui. Amanheceu o tempo sereno, neblinoso, termômetro 17 grau e meio.
Estávamos almoçando quando começou a festa na Matriz, nem
eu tinha ainda feito a barba, de modo que não assistimos à festa da
Senhora da Conceição, não sem algum pesar. O único gozo foi ver sair

371
todo o povo que enchia a igreja. Fomos visitados pelo tenente-coronel
Vicente do Espírito Santo Magalhães, que nos foi apresentado pelo Sr.
Pacífico, presidente da Câmara atual, vindo também em companhia o
capitão Fontenele (este é descendente e neto dum francês, ourives, que
aqui se estabeleceu no tempo da fundação da vila, e a quem foi também
distribuída uma data de terras).
O Sr. tenente-coronel Magalhães é estabelecido aqui perto, e uma
das pessoas respeitáveis deste lugar.
Apareceu-nos o índio José Francisco da Silva, que diz ter mais de 60
anos, com quem desejei praticar sobre coisas antigas do lugar, o qual pouco
me adiantou.
Três horas o céu está anuviado e ameaçando, o termômetro em sala
21 graus e meio. Pouco depois roncos fortes de trovoada se fizeram ouvir
do lado do norte, o céu escureceu, e em alguns lugares dava chuveiros. Às
quatro horas chovia bastante no sertão, aqui embaixo ao nascente. Na vila
só caíram alguns chuviscos como ontem aconteceu.
São cinco horas e a procissão da Senhora da Conceição está fora. [f.
104]
Acabada a procissão aqui estiveram o vigário e o juiz de Direito.
Saímos depois eu e Manoel encasacados, a pagar visitas. Fomos à casa do
tenente-coronel Magalhães, que não achamos, fomos daí à casa do major
J. Severiano, que achamos sentado à porta, com o vigário, e o Sr. Érico
João de Oliveira Freire, professor público do S. Benedito; chegou depois
o professor público daqui, e aí, formando roda, conversamos por algum
tempo, daí fomos à casa do Sr. (pausa) que também não achamos. De volta
para casa passamos pela do tenente João Domingos Torres, ex-delegado,
onde se achava mais algumas pessoas, e vieram depois fazer sala a dona da
casa e a graciosa professora [riscado “da”] de meninos. Aí conversamos e
gracejamos por algum tempo e nos recolhemos.
Domingo 9. Manhã neblinosa, ventosa.
Termômetro na sala 17 graus. Fora desceu a 16 graus e três quartos.
Quando me ia aprontar para ir à missa, vi gente já de joelhos na
porta da igreja por haver principiado a missa, que perdi.
Vieram depois à nossa casa os índios Filipe Pereira e José Francisco
da Silva, para nos dar algumas informações sobre coisas antigas do lugar,

372
cujas informações escrevi e não adiantam muito. Nem se lembram do que
ouviam conversar sobre os padres da Companhia (o nome de jesuítas lhes é
desconhecido), sobre seu governo para com os índios e sobre sua expedição,
de nada se lembram do que deviam ouvir a seus pais e avós.
Três horas da tarde, bom tempo, céu com nuvens — termômetro 21
graus e meio.
[f. 105]
À noite saí e fui à casa do Sr. Augusto, o promotor, levar a receita
para sua senhora, que achei bem vestida, assim como uma filhinha gentil de
oito a dez anos, iam visitar a senhora do juiz de Direito. De lá saí, andei
medindo a passos as ruas da vila, que corre à esquerda e por detrás da praça.
Passei pela casa do tenente Torres, que estava sozinho com a mulher na sala,
aí me demorei pouco e recolhi-me; alguma coisa suado, tem feito algum
calor esta tarde.
Segunda-feira 10: Amanheceu o céu anuviado, ventando, o
termômetro na sala 18 graus.
Ocupei-me com o estudo das plantas, que Manoel trouxe ontem e
com a leitura dos livros da Câmara.
Às três [horas] o céu estava carregado em alguns lugares; o vento,
que havia soprado toda a manhã, estava calmo, fazia calor, o termômetro
na sala 22 graus.
Às ave-marias saí, fui visitar o Érico, na volta andei medindo a passos
a praça; e fui depois sentar-me na roda do tenente Torres, onde estava
Manoel e Guilherme, o Augusto, promotor, a gentil professora etc. etc.
As chuvas que têm caído aqui enquanto aquí estamos vêm sempre,
com trovoada ou sem ela, do nascente. E é o que me diz a gente da terra,
[que] as chuvas do oeste são aqui mui raras. Os ventos em toda a serra, e
em todo o sertão são sempre também da quadra de nascente. Há de manhã
aqui sempre mais ou menos nevoeiro; dizem que antigamente era muito
mais e mais duradouro.
[f. 106]
Terça-feira, 11: Amanheceu bom dia, com nevoeiros altos, sem vento
— termômetro na sala 18 graus.

373
Não tendo plantas para estudo, ocupei-me todo o dia em copiar dos
livros da Câmara.
Três horas da tarde — o céu está carregado de nuvens em alguns
lugares, o dia tem sido um tanto quente — o termômetro na sala 22 graus.
Às ave-marias saí, e fui para a casa do padre vigário José Beviláqua,
e sentamo-nos à porta na calçada, estava à janela D. Mariana Beviláqua,
a gentil professora, que é casada com um irmão do vigário, e moralm) na
mesma casa; estava mais O Érico, e outro sujeito de quem não sei o nome, aí
estivemos conversando até às oito horas. Saindo dali vim ainda sentar-me à
porta do tenente Torres, ex-delegado, onde se achavam mais outras pessoas,
daí nos recolhemos eu e Manoel, que também era da roda.
Estou decidido a fazer uma viagem até as fronteiras do Piauí, e temos
promessa dum companheiro.
Quarta-feira, 12: Amanheceu o dia bom, vento calmo, neblina alta,
termômetro na sala 17 graus e meio. Esta manhã estudei algumas plantas;
e extratei dos livros da Câmara.
Três horas faz alguma calma, e sol. Termômetro na sala 22 graus é
meio. O vigário mandou-nos alguns números do Pedro II que lhe chegaram
agora pelo correio, e que começamos a ler esta tarde; mandou-nos um dos
livros [f. 107] do arquivo da vila, que ele tem em seu poder, e que nos há
de fornecer documentos importantes.
Saímos a cavalo eu e Manoel, dirigimo-nos pela estrada da Granja,
famos com vontade de chegar até a ladeira do sertão; mas em meio
caminho caiu-nos uma chuva, da qual por fortuna nos pudemos abrigar
à varanda de uma casa, no sítio antigo das Bananeiras, mas a casa é nova
e de telha. Apareceu de dentro um moço e um menino branco que nos
deram cadeiras, e com eles conversamos enquanto chovia. Cessada a
chuva, sendo já tarde, e estando a tarde escura, voltamos.
Mudei de roupa e saí, fui até a casa do Sr. João Pacheco, que estava na
sua loja com mais uns poucos de sujeitos, sentei-me e estivemos conversando
até oito horas, dei volta, medindo as ruas a passos e passando pela porta do
tenente Torres, que estava na sala com a Sra. e o Maneco, estive [com eles]
um pouco, e recolhi-me.
Quinta-feira, 13: Neblina cerrada. Termômetro 18 graus.
Tenho me ocupado em copiar os livros velhos do arquivo. O dia tem
sido sempre um pouco coberto e mui maçoso.

374
Às três horas termômetro na sala 22 graus. Às quatro horas cai um
chuveiro.
Retirou-se hoje, por ter se encerrado a sessão do júri, para S. Pedro,
o nosso companheiro Alexandre Marques, boa pessoa, e que nos fazia
companhia agradável.
Às ave-marias saí, fui à igreja examinar o lugar do Colégio, e tomar
algumas medidas, vim a casa e logo saí a visitar o juiz de Direito, cuja
senhora vi hoje [f. 108] pela primeira vez; é filha de Pernambuco, bem
parecida e de agradável conversação. Está no oitavo mês de sua prenha, e
muito receosa do sucesso. Achei aí o padre Justino e mais um doutor que
acaba de chegar do Sobral. Onde, diz o padre Justino, chegou o Lagos no
dia 7 do corrente. Estivemos mais na companhia o Sr. Augusto promotor,
o tenente-coronel Magalhães, o tenente Torres; conversamos por algum
tempo, e retirei-me.
O padre Justino referiu-me que hoje teve a imprudência de chegar [à
boca] uma fruta da Gueirana [?] com o que se achou muito incomodado;
teve grande sentimento de aperto na boca, na garganta e no estômago, e por
muito tempo, com vômitos, e um mal-estar indefinível; tomou uma xícara
de café, que o aliviou e agora quase nada sente mais.

Sexta-feira, 14: Amanheceu o dia sem vento, neblina alta, termômetro


na sala 17 graus.
De manhá fiz algum estudo, depois ocupei-me com o exame do
caderno de assentos de batismos da aldeia em seu princípio, no tempo do
jesuítas.
O dia tem sido um pouco quente, o céu sempre mais ou menos
anuviado. Às três termômetro na sala 21 graus e meio.
De tarde saí, andei tomando medidas a passo do plano da vila,
depois sentei-me à porta do Sr. João Pacheco, onde se achavam alguns
outros sujeitos, que não conhecia, conversamos porém pouco, e recolhi me.
Disse-me o $r. João Pacheco que a [ilegível] teve casa junto ao armazém do
[ilegível] etc. na praça que fica ao lado esquerdo da igreja [f. 109]

375
Sábado, 15: Amanhece o dia neblinoso. Termômetro 17 graus e um
quarto.
Esta manhã tenho-me ocupado em estudar, e desenhar algumas
plantas.
Três da tarde, céu com grupos de nuvens, calor. Termômetro 22
graus. À tardinha saí a continuar o trabalho do levantamento do mapa da
vila, passei pela casa do João Pacheco, do juiz de Direito, fui ao professor de
primeiras letras, que não achei em casa, concluindo meu guia vim para casa,
tracei as ruas € praças que havia medido, e fui conversar em casa do vizinho
tenente Torres, onde chegou depois o Guilherme rábula, e estiveram na sala
a simpática Isidra e a graciosa Mariana Beviláqua.
Manoel esteve fora conversando com o marido desta.

Domingo, 16. Grande nevoeiro. Termômetro 17 graus e meio.


Depois do almoço fui à missa, e depois andei correndo a vila e
medindo-a para levantar-lhe o plano. Em casa ocupei-me com o livro dos
assentos de batizados dos jesuítas. À noite saí, fui à casa do Dr. juiz de
Direito Fernando Maranhense da Cunha, cuidando que ouviria a senhora
cantar ao piano (creio que é o primeiro destes instrumentos que veio à vila
Viçosa); achei a sala cheia de visitas — e depois que estes saíram, o padre
Justino, que é tio da senhora, pediu-lhe que cantasse para eu ouvir, mas
ela desculpou-se dizendo que cantaria em outra ocasião porque estava um
pouco [enjrouquecida, conversamos e de volta estive em casa do tenente
Torres e recolhi-me a preparar-me para a viagem de amanhã.

[E 110) |
Segunda-feira, 17: Termômetro 17 graus e meio -- céu anuviado.
Levantamo-nos, nos preparamos, almoçamos e montamos a cavalo, e
partimos passava de oito horas. Éramos eu, Manoel, o Sr. Antonio Marques
Viana, sobrinho dos senhores Pachecos, que ia como nosso guia, o Barreto
e Jacamim. Chegamos à fazenda denominada Retiro, seriam meia hora
depois do meio-dia. E nos arranchamos em casa do Sr. Nicolau Vieira
Passos, aparentado com o Sr. Viana; não o achamos em casa, e só vimos
algumas meninas e meninos; quanto às mulheres, ouvíamos conversar,

376
através do tabique de palha de palmeira, e delas uma me pareceu que gemia
de vez em quando. Chegamos bastante enfadados no fim da serra, e um
dos meninos nos estendeu logo uma rede; o cansaço e o agradecimento fez
que me lançasse nela suja como um pano de cozinha. Manoel foi para fora,
cortar ramos e estendeu-se embaixo das árvores, o Viana o acompanhou; e
quando se nos quis pôr o jantar, não havendo na casa nem mesa nem coisa
que a substituísse, mandei pôr o jantar onde estavam os companheiros,
embaixo das árvores; mandou-se pedir à dona da casa licença para nos
servirmos de algumas cangalhas que estavam na sala, como de assentos, o
que ela nos concedeu. Jantamos pois pela primeira vez no Ceará ao sabor
das árvores, e sentados em cangalhas, e que eram os únicos trastes que a casa
tinha; digo, mal havia mais uns alforjes de couro pendurados às estacas e
uns mocós. À casa é toda de palha, teto e paredes (exceto a do [ilegível], que
é barreada). O chão de areia.
[111]
[No dia seguinte) Fazia calma; o dia foi-nos favorável; sempre mais
ou menos coberto até meio-dia, andamos bem, daí em diante o calor e
cansaço nos incomodou. Partimos do Retiro eram talvez cinco horas, e
chegamos à fazenda denominada Brejo do Sr. José Joaquim Pacheco, que
estava prevenido por seu mano, o Sr. José Pacheco de Viçosa. Haviam [de]
ser sete horas mais ou menos, eu não levava relógio.
Fazem de Viçosa ao Brejo umas oito léguas, outras sete deve andar
entre esses dois extremos.
Calculamos da vila a Retiro quatro léguas, do Retiro a Porteiras
uma [légua], de Porteiras ao Brejo duas [léguas]. Essas sete léguas andamos
sempre aproximadamente de nascente a poente.
Saindo de Viçosa subimos sempre até a chapada, que tem na direção
em que a atravessamos mais de légua; daí em diante, à exceção de algumas
quebradas que passamos, a serra vai sempre descendo, já insensivelmente, e
já por pequenas ladeiras pedregosas, de sorte que Brejo está já muito inferior
ao plano de Viçosa. O seu aspecto e sua temperatura é tudo de sertão. Lá
mesmo dizem que em Viçosa todo o mundo treme de frio quando aqui
temos calor; e nós, as duas noites que passamos no Retiro, bem que as
madrugadas fossem mui ventosas, não tivemos frio, eu me cobri sempre
com um lençol de linho. O Sr. José Joaquim Pacheco, homem de 45 anos,

377
bem disposto, jovial, conversador, e contador engraçado é casado e tem só
dois filhos, já moços. A fazenda é sua própria, e está situada na fronteira do
Piauí, que fica uma meia légua distante da casa. Recebeu-nos muito bem e
nos deu boa ceia de galinha guisada, e café; mas daí em diante nós é que lhe
púnhamos a mesa; [f. 112] foi negócio do Barreto, e que eu estimei. Terça-
feira amanhece bom tempo, almoçamos e nos aprontamos para irmos até
Piauí.
Era isso que ali me levou, queria eu ver por meus olhos como do
Ceará se descia para Piauí e foi bem, porque eu estava muito enganado. O
Sr. Pacheco quis ser o nosso guia; fomos eu, Manoel e ele somente. Não se
incomoda muito [de] montar a cavalo em mangas de camisa, e em chinelos.
Entramos pelo território do Piauí, obra de uma légua, até o lugar chamado
Sítio, onde há duas ou três palhoças miseráveis. Fomos a uma cujo dono
é cunhado do Sr. Pacheco, e não o achamos, estavam só um menino com
uma camisa esfarrapada, a quem entregamos os nossos cavalos e fomos a
pé ver um olho-d'água, que nasce entre rochas, e que não tem nada que
ver. Estivemos aí em prosa à sombra de um juazeiro e um jucá, havia perto
um pé de trapiá com flores e mais outras árvores. Voltamos para o rancho,
dei alguns cobres ao pequeno, e montamos a cavalo. Desse sítio que está
em certa altura se avista grande porção da província do Piauí, coberta de
montes e serrotes. Mas diz-nos o Sr. Pacheco que isto é pé de serra (da serra
Grande) mas que [riscado “em a gente”) em se saindo deste e os ramos da
serra dá-se em chapadas de carrasco, que se estendem a grande extensão, ou
que vão até o Rio Parnaíba que nos ficava a umas 20 léguas, e divide Piauí
do Maranhão. Estávamos pois perto do Maranhão.
A província do Piauí porém é de superficie desigual, e mesmo do
alto da chapada víamos muito ao longe uma comprida serraria, que o Sr.
Pacheco disse ser a serra dos Matões, que tem chapada de mata e de [f. 113]
carrascos, mas em suas quebradas tem grandes matas.
As margens do Parnaíba do lado do Maranhão são mais montuosas
que rasas, e do lado do Piauí são baixas com alagadiços, buritizais, e
outras palmeiras, como carnaúbas. São esses lugares aromativos, e o rio
insuportável pela grande quantidade de muriçocas. É ainda a sola [o solo]
da província variada de carrascos, de tabuleiros, de morros, cobertos de
caatingas, de serrotes cujos pés e quebradas têm ricas matas, cheias de caças

378
várias e abundantes, como os rios são abundantes de peixes. Entre as árvores
do Piauí que não existem no Ceará notou ele o bacuri, cujas grandes árvores
dão excelente madeira, e sapucaias da grande e da pequena.
Isto nos contava ele enquanto viajávamos de volta; e chegando ao
alto de uma grande chapada, e passando por diversos caminhos [diferentes]
daquele por onde fomos. Chegando ao sítio do Sr. Manoel Bevilágua,
irmão do vigário da vila Viçosa, quis que nos apeássemos. Estendeu-me
uma rede, e deu-nos água ruim a beber em Sítio; o pequeno nos havia dado
água sofrível da fonte que visitamos. O Sr. Beviláqua estava talhando uma
calça, de curioso faz obras de alfaiate, de ferreiro, de flandoeiro etc., seus
irmãos são também mui curiosos. Tem andado por ceca e meca, [riscado
“no Marinho”] em Teresina no Piauí, em Viçosa; e filho da Fortaleza, agora
está outra vez no Piauí, e com desejos de ir para o Maranhão. É casado, €
vimos alguns dos seus pequenos. Despedimo-nos e chegamos a casa depois
do meio-dia, suados e empoeirados. A parte do Piauí que percorremos, [f.
114] estando ainda nas abas da serra Grande, nenhuma diferença mostrava
a respeito do Ceará. Eram chapadas, de carrasco, e morros da caatinga,
tudo seco, colhemos aí alguns ramos com flor da Terminalia, denominada
pelo Sr. Pacheco cascudo, duma vítex ou Torunean e não sei que mais, só
para trazer alguma coisa do Piauí.
Estava eu muito enganado a respeito da conformação da serra
Grande para o lado do Piauí. Dizia-me o Dr. Théberge, e outros me
confirmaram, que a serra Grande, tendo salinados para o lado do Ceará,
o do Piauí descia insensivelmente até à margem do Parnaíba, sendo tudo
de magnífico agreste, que eu [pensava ser] em figura como o do Araripe,
já meu conhecido. Esta ideia produziu-me mui grande desejo de observar
isto por mim, e foi o que me levou a fazer esta viagem. E fiz bem porque
estava em ideia muito falsa. A ribeira do Parnaíba do lado do Piauí, na
parte navegável do rio é chão, e estão na mesma altura que o chão do Ceará
no litoral: contra a ideia reinante de que o Piauí é mais alto que o Ceará.
A serra Grande, que tem de largura cinco a dez léguas, é em grande parte
abrupta do lado do nascente ou do Ceará, e também em parte do lado
do oeste para Pernambuco, no Exu, mas que pela parte que confina com
Piauí, a serra desce por socalcos muito irregularmente, desmanchando-
se, elevando-se em lugares, em serrotes, soltos, ou alinhados, às vezes

379
chegando a grande altura, formando como uma rede que deixa por entre
eles vales, ou chapadas, circundados de morros, onde estão situadas
fazendas de criar. [f. 115] Isto é ao menos o que presenciei nesta viagem,
além dos serrotes, áridos, pedregosos, improdutivos em geral, o terreno
ou alto da serra é ainda mais ou menos montuoso, oferecendo quebradas,
mais ou menos profundas; e [riscado] formando de espaço a espaço
pequenas descidas, ou ladeiras pedregosas, para o lado do Piauí, que todas
somadas darão sem dúvida a mesma altura que os talhados do Ceará.
Além destes socalcos, estende a serra ramos irregulares que vão morrer
em diversas alturas (distâncias) dentro do Piauí. Descendo das chapadas,
cuja vegetação é ora de campos, ora de carrascos, ora de agreste, com
coroas ou cintas de matas pelas quebradas, à proporção que o terreno se
abaixa a vegetação vai mudando até os últimos socalcos em que é toda de
sertão, carrascos, caatingas etc. O mesmo solo toma as feições do sertão, é
a mesma composição, a mesma aridez, o clima aumenta de temperatura e
de secura, a gente vai sendo mais bela, mais sadia.

Vegetação

Alto e chapada
Visgueiro, janaguba, mangaba (rara), acende-candeia, mororó, pau-
pombo, almécega [almecegueira], lacre, carvoeira (Qualea?), pau-terra
(Calisthene), murici (arbórea, e o da praia), ingá (feijão?), araticum (cagão),
cajuin, paraíba (branca, e rubra).
Angelim (de três a quatro espécies), Licania (uma espécie chamada oiti-
bravo), a costa-cavalo (Chrysobalanos), Qualea (?), tingui-capeta, carrasquinha
(Erythoxilma), caraíbas (aglabra e tomintosa), pau-d'arco (Anecelo), ameixa,
jatobá, jatobai, pau-d'óleo, marfim, conduru (Gatterea), Hisingera, Moanea,
pequi, cajueiro-bravo [f, 116] Merendia (as duas de drupa, e de fruto seco),
Garuphia, Novanita, Clusiacea (mangue ou gameleira), gameleira (Ficus)
louro, ou pau-pombo branco, (Tachigalcia) catanduba, pacoti, jurema-
branca, (arapiraca) guititorobá, aroeira, gonçalo-alves, jenipapo, marmelada
[marmeleiro] (rubiácea), grão-de-galo ou urucuruna (Tabernamontana),
Solanum (juripeba-brava ou fruta-de-lobo?), mania-de-cachorra, tarumá,
favela (Serguia), chichá, pita, tucum, palmeiras vazias.

380
Brejo e Algodões.
Pau-mocó (aqui sucupira-amarela), sucupira-branca (Sphipreto
labinum), catanduba, [pau-jvioleta, rabugem, ou coração-de-negro,
mutamba, pau-roxo, cascudo (Terminalia), marfim, ou tigipió, janaguba,
ameixa, imbura[na]-de-espinho, e [imburana-Jde-cheiro, trapiá, juazeiro,
pau-d'óleo, pau-d'arco roxo, aroeira, gonçalo-alves, sabiá, pereiro (preto e
branco), pau-de-piranhas (Pisonia), cansanção, pinhão-bravo, (Jathopha),
maniçoba (pequena), jucá, catingueira, cipaúba (Combretum), mufumo
(combreta), marmeleiros, crestis, ou Onephalobun, angico, jurema,
espinheiro, puxa-puxa, cedro, macambira, palmatória, mandacaru,
Convolulacea (Pharbites), cipó-branco (biguiniácea), tingui-da-praia
(joaquina).
De tarde passamos na rede ouvindo contar historias o Sr. Pacheco,
às cinco horas chegou também o Sr. Beviláqua e a conversa caiu sobre o
Piauí, onde ambos já estiveram, eles ambos cabeças-chatas, maldorados dos
espigas. Eis aqui o que disseram do Piauí. [f. 117] Quem viaja pelo Piauí
deve levar tudo, aí não se é recebido em parte alguma; não se dá água,
nem rede, nada; nem se vende coisa alguma (nisto deve haver exageração).
As mulheres nunca aparecem. Mesmo na Parnaíba elas não saem de casa,
senão para irem ao banho de noite. Não vão à igreja, não ouvem missa (os
homens, sim), não se visitam. Um homem branco, e trata[n]do que chegou
a uma casa não tem com quem conversar, mas um preto, ou gente dessa
laia, vai para a cozinha e é logo rodeado da família, que começa a conversar,
a falar, e a perguntar tudo, na maior familiaridade. Quase toda a gente
branca tem mescla de negro. Têm todos grande ojeriza aos cearenses.
Se ali se encontra agasalho, e bom trato em uma casa, pode-se estar
certo que os donos são cearenses, ou pernambucanos. Os piauienses são
indolentes, sem indústria. À farinha lhes vai da serra Grande, são todos de
cor mui baça, amarelos, e de aspecto doentio. Em tudo isto há de haver
coisa demais.
A respeito dos Balaios, ou dos Caboclos levantados em Maranhão e
Piauí, disse-nos o Sr. Pacheco, que esteve metido em dança, que nas duas
províncias os levantados deviam ser de 12 a 14 mil. No Piauí só estava livre
dele a cidade da Parnaíba, defendida pelo coronel Osório. Em Frecheiras
(Piauí) estiveram acompanhados talvez 1.000 rebeldes, destes saíram uns

381
200, que vieram à serra Grande, e aí causaram muitos estragos, roubos e
mortes. Estiveram aqui no Brejo, chegaram a S. Pedro, e estiveram perto de
Viçosa. [f. 118]
Foi um ano de calamidades (o de 1840) porque, além das mortes,
dos roubos, devastadas as fazendas, cujos donos haviam fugido, as que
eram ocupadas por eles, ou pelas tropas legais, ficavam limpas de gado,
como acontece[u] a esta do Brejo. Os senhores Pachecos, como todos
os habitantes obrigados a tomar armas, foram cercados em suas casas, €
estiveram em grande perigo. O Sr. João Pacheco, estando à mesa com sua
senhora e mais outra mulher, recebeu uma descarga de cinco tiros; a mulher
levou uma bala no peito, e disso veio a morrer, a outra foi também baleada
mas não morreu, e o St. Pacheco ficou ileso. Estava com uma pequena força
legal, e com ela sustentou um fogo, continuando até anoitecer, em que
pôde fugir. Os rebeldes faziam fogo por detrás duma moita de cajueiros, de
maneira que se não viam; e só se sabia que ali estava[m] pelo fumo do fogo
que faziam.
Andavam vestidos de roupa tinta de encarnado; tinham oficiais,
cujas fardas eram também tintas de vermelho (provavelmente para se
conhecerem). Tinham alguma disciplina, usavam de corneta. Quando
acometiam era gritando: “Viva o imperador”. E os da legalidade fazia[m]
o mesmo. Faziam fogo cantando. Enterralvajm ou conduziam os seus
mortos, de sorte que nunca se sabia se morriam de sua parte. Andavam
acompanhados de suas mulheres, e filhos. Conta-se que em certa ocasião,
vendo-se perdidos, mataram os filhos que os não podiam acompanhar.
Acossados pela tropa de linha, e guardas nacionais, foram-se retirando,
mas sempre fazendo-lhes emboscadas, e matando-lhe alguma gente até que
com- [f. 119] concentrados (estes que por aqui andavam) em Frecheiras, aí
foram atacados e derrotados, e se dispersaram. O tenente Torres, que era,
quando aqui chegamos, subdelegado, serviu nessa guerra e teve em uma
ocasião um cavalo morto.
De noite, que estava linda, enquanto conversávamos na sala,
estavam na varanda os rapazes, com viola e rabeca, divertindo-se, e não nos
desagradou.
Dia 19, quarta-feira: Tendo tomado café partimos seriam sete
[horas]. O Sr. Pacheco nos quis impor, acompanhando-nos até certa

382
distância, sempre em mangas de camisa e chinelos. O dia nos era favorável
por o sol era [ser] quase sempre coberto por nuvens, seria[m] onze horas
quando chegamos à casa do caboclo Serafim, e aí passamos a força do sol,
e almoçamos.
Este Serafim é aleijado de nascimento, do braço esquerdo só tem o
úmero, e acaba em ponte; do braço direito tem todo o úmero, parte do
antebraço, e alguns ossos da mão mas sem dedos. E com estes dois cotos
faz tudo, trabalho de enxada, de foice e de machado; o que, custando-nos a
acreditar, tomou uma machadinha que levávamos, e trabalhou com ela tão
bem como se tivesse seus braços e mãos. Saímos daí seriam duas horas e às
cinco estávamos em vila Viçosa.
Quinta-feira, 20: De madrugada caíram alguns chuveiros. Amanheceu
o dia neblinoso. O termômetro estava em 18 graus e meio.
À manhã esteve sempre coberta e chuvosa; às onze deu uma trovoada
forte com bastante chuva, às três caiu uma boa pancada, o termômetro
desce a 17 graus e meio.
[f. 120]
O resto da tarde foi sempre coberto e chuvoso; e faz frio úmido.
Ocupei-me com o estudo das plantas que trouxemos de viagem.
À noite, tendo recebido de presente um belo pão-de-ló, rodeado
de broinhas, mandado pela Sra. D. Isidra, fui fazer-lhe uma visita e
agradecer-lhe. Contando, ou escrevendo as notícias que colhi a respeito
dos Balaios, me esqueci de referir que o presidente do Ceará então era
o Dr. Souza Martins, sobrinho do visconde da Parnaíba, que se pôs à
testa da força legal, e esteve acompanhado [acampado] em Porteiras
e parte da força, senão toda ela teve seu acampamento na fazenda do
Brejo. A resposta do visconde da Parnaíba, tenho ouvido dizer que era
um perverso, mandava matar sem cerimônia e não tinha escrúpulos de
apoderar-se do alheio.
O Sr. Pacheco, que como já disse é conversador, e engraçado, tem
grande ojerizas às eleições, afirma que lá não vai, que seus filhos, enquanto
estiver em seu poder, não hão de votar, não aconselha a ninguém que vote
etc. etc.
Não cessa de charquear com as eleições, contando muitos casos
nelas acontecidos, e conversando sobre eles com muito bom senso, na

383
sua ignorância. Gostei muito de ele dizer-me: “Senhor, em uma eleição
os homens ficam amarelos, ficam feios de corpo. Homens verdadeiros, que
nunca mentiram, nessas ocasiões mentem. O pai desconhece a seu próprio
filho”.
[f. 121]
Sexta-feira, 21: Amanheceu grande cerração. Termômetro 17 graus.
Tem feito sol, e bom tempo. Tenho estado estudando as plantas
colhidas na viagem.
Três horas da tarde faz sol. Termômetro na sala 20 graus e meio.
À noite fui conversar com o vizinho Torres, havia na casa várias
pessoas e além de sua senhora, D. Mariana, e outra que não conheço. Entre
várias conversas referiu-me o tenente Torres, que tem sempre andado nestas
lutas, a do Pinto Madeira, a do Sobral, contra o presidente Alencar, e a dos
Balaios, onde teve, em um dos encontros, o cavalo baleado. Referiu-me,
digo, que os Balaios tingiam com efeito a sua roupa com urucu, camisa
e ceroula, para se reconhecerem, que não tinham disciplina alguma, nem
oficiais, o chefe que estava em Frecheiras era um fulano Veras, homem
do campo, e nesta partida que por aqui andava os comandava um negro,
bruto, mas audaz, e velhaco, o qual sendo mandado prisioneiro (ele se
apresentou a Alencar) para o Rio de Janeiro, durante a viagem o mataram
a calabrote! Que nunca faziam fogo em linha e descobertos, era sempre de
emboscada, ou em trincheiras, ou em fossos, ou por detrás de paus e pedras,
de maneira que seus tiros eram seguros, e eles nunca eram ofendidos. Se
acontecia fazerem fogo a peito descoberto [e] à vista, era só a primeira
descarga e fugiam. Deste modo a tropa legal era sempre sacrificada. Em
uma ocasião em que o Torres foi mandado explorar um lugar onde havia
alguns rebeldes, iam adiante quatro batedores, um cabo e três soldados,
e ele [ia] mais atrás com 16 soldados. Os rebeldes estavam por detrás de
umas pedras, deixaram-nos chegar a tiro, sem serem percebidos, e quando
gritava: “Quem vem lá?”, foi com uma descarga que derrubaram todos [os]
quatro batedores, o cabo morto, e os soldados gravemente feridos, que no
chão gemiam e rogavam que os não desamparassem porque seriam mortos.
Torres apeou-se [f. 122] e pôs-se atrás do seu cavalo; os soldados deitados
no chão faziam fogo, mas sem efeito, era só para os conter, até que chegasse
reforço, que mandou pedir, à pressa, o qual chegou já com dia claro, o

384
RE
a RR

ataque começou de madrugada. E os rebeldes se retiraram a salvo. Não


concebo que sem se recorrer a outro modo de guerra se sacrificava assim
a tropa, e gente que combatia contra homens invisíveis, e que as fazia à
ser salvo, com emboscadas, e com ataques repentinos mataram os rebeldes
muita gente.
Quando eles faziam fogo, era cantando:

Bem-te-vi é pássaro nobre


Que não canta em gaiola
Canta só nas trincheiras
Quando vê cabano fora

Bem-te-vi eram eles, e cabanos os da tropa legal.


Depois que foram dispersos em trincheiras é que apareceram os
grupos que chegaram a S. Pedro; mas os que andaram pelo Brejo, o
fizeram antes desse ataque.
Sábado, 22: Amanhece bom tempo, termômetro 17 graus.
Fez bom tempo. Às três horas o termômetro na sala [marca] 22 graus
e meio.
Ocupei-me com o estudo das plantas colhidas na viagem e hoje
ficaram concluídas; o padre vigário mandou-nos também outros livros
antigos, dos jesuítas e [do] vigário da vila, cuja leitura nos ocupou algo hoje.
Às ave-marias saí com Manoel e fomos à casa do Dr. Maranhense, juiz
de Direito, e estivemos sentados à porta, onde se achavam outras pessoas,
o Augusto promotor, o major João Mariano [Severiano], presidente da
Câmara etc.
Saí dali, fazia bom luar, dei uma volta para continuar o levantamento
da planta da vila, e voltei para onde chegou Manoel. O nosso chá estava
muito ruim e não o tomamos. Nesse tempo já andava a bandeirolas da
procissão e saímos, fomo-nos [riscado “a casa”] à porta do tenente [f. 123]
Torres para ver a festa. Foi hoje o levantamento do mastro para as novenas
da padroeira, que começa amanhã. A bandeira foi, como é costume,
conduzida em procissão pelas principais ruas, acompanhada de música, que
se mandou vir da Granja, de repiques e de foguetes. Quando se veio a içar a
bandeira era mais de dez horas. Notei que havia pouco povo acompanhando

385
a bandeira, quando em S. Benedito e S Pedro, terras mais pequenas, havia
grande afluência.
Agora quando isto escrevo anda a música tocando pelas ruas.
Domingo 23: Amanheceu bom dia com grande cerração. Termômetro
na sala 17 graus e meio.
Não fomos à missa por ocupados com os livros do arquivo da igreja.
Mandou-nos depois o Dr. juiz de Direito um maço de vários jornais do
Maranhão, cuja leitura nos ocupou até às cinco da tarde.
Às três horas caiu um chuveiro, na presença do sol o termômetro estava
na sala a 21 graus e meio, os chuveiros continuaram, por intervalos, e sempre
com sol. Às ave-marias os foguetes e repiques advertiram-nos que [riscado “ia
começar”) se preparava a novena, vestimo-nos e fomos para a igreja. É hoje o
primeiro dia da novena, e foi noitário um Sr. Herculano de tal, português aqui
casado e estabelecido que tem presunção de saber preparar uma festa; com
efeito havia defronte da porta principal um arco iluminado, com lanternas
de papel e de cores, que fazia bom efeito. Mas o melhor era dentro da igreja,
onde ele armou um arco, com forma [riscado “de frente”) de templo [f. 124]
com suas torrinhas, sobre a grade da igreja, que decorada com papel de cores,
e dourado, e bem iluminado com velinhas de cera; o corpo da igreja, o trono,
tudo estava bem iluminado e produzia uma vista agradável. Havia no coro
música de instrumentos de sopro, vindo da Granja, e fora no adro tocava um
pífano e uma caixa aqui da terra. Os repiques e os foguetes não cessaram.
Houve grande concorrência de homens e de senhoras* ; a noite era de luar.
Eu fui à função [gue] era brilhante para estes lugares.
Acabada a festa da igreja andamos eu e Manoel discorrendo pela vila,
enquanto se não abria a sala do cosmorama.
Um moço português, F. Leal, que atualmente mora em Sobral, é que
trouxe este divertimento,
Estávamos sentados à porta do tenente Torres, quando ouvimos
música na sala da Câmara Municipal. Principiava a festa; dirigimo-nos para
lá eu, Manoel e o Torres, a Sra. D. Isidra com pesar não foi, por não ter
pessoa de confiança que ficasse com seu filhinho.
Entramos na sala, guardada a porta por dois soldados, pagamos a cada
um 500 réis. Já lá achamos várias senhoras, e entre elas as duas mais bonitas

* [apagado]

386
que se acham na vila, D. Mariana Bevilágua, e a famosa filha do Sr. João
Severiano, moça de 15 anos, baixinha, de tez alva, corada e mimosa. As seis
vistas do cosmorama eram melhores do que eu supunha, e o Sr. Leal, por
intervalos, cantou algumas modinhas com bastante graça. À melhor gente
da terra ali estava; e era com- [f. 125] panhia agradável, passou o tempo sem
se sentir, e saímos dali depois das dez horas. A sala da Câmara é grande, no
fundo está ainda o cosmorama, na frente havia uma espécie de pano de boca,
pintado por fora, do qual estava a música, que tocava de quando em quando.
Passeando-se, conversando-se, vendo as vistas do cosmorama, ouvindo
música* , e canto, passava-se o tempo agradavelmente. Isto nos distraiu
um pouco, porém nestes últimos dias [andamos] saudosos, nos lembramos
continuamente da nossa gente; e ainda mais sem termos notícia alguma dela.
Segunda-feira, 24: Amanheceu o dia com grande cerração, o
termômetro na sala 18 graus.
Esta manhã tenho-me ocupado no estudo de algumas plantas
colhidas hoje por Manoel. Três horas da tarde, 22 graus, coberto, chuvisca.
Às ave-marias vesti-me, e pus-me de casaca, cuidando que teríamos
missa à meia-noite; mas há missa das duas às quatro da madrugada, e estou
resolvido a ouvir a missa das dez horas. Fomos para a igreja eu e Manoel,
assistimos à novena, irmã da de ontem, mas com maior concorrência. A
igreja ficou literalmente cheia de mulheres, que vieram de lugares longes e
do sertão. Acabada ela [a missa], estivemos um pouco à porta do tenente
Torres, daí fomos para casa, e tomamos café, eram nove horas. À casa
do cosmorama estava ainda fria, mas apesar disso dirigimo-nos para lá,
estavam com efeito poucas pessoas, o vigário Augusto, e pouco mais de
três senhoras; meia [f. 126] hora depois chegaram as famílias do tenente-
coronel Magalhães, do Augusto, do Beviláqua, e outros.
O divertimento foi o mesmo que o de ontem; somente hoje tivemos
mais ocasião de gozar da companhia e das conversas das senhoras, e
uma mocinha morena e desembaraçada tomou-me para seu cicerone, na
explicação das vistas do cosmorama, mas eu não sei o que lhe explicava,
[riscado 4 linhas].
Estávamos tão embebidos, que fomos os últimos e de senhoras, D.
Mariana Beviláqua, que saímos era quase meia-noite.

* Do ordenança, era um realejo, que toca dentro.

387
Terça-feira, 25, dia de Natal.
Amanhece o dia neblinoso, termômetro 18.
Esta manhá chegou o Dr. Gabaglia [com] os seus adjuntos
andando por Parnaíba.
Chegou também o Dr. Medeiros, médico militar mandado pelo
presidente para acudir a epidemia que dizia existir nestes lugares.
O Dr. Gabaglia veio almoçar conosco, Medeiros [ilegível] o tenente
Torres. Tivemos aqui de visita o Dr. juiz de Direito, o tenente-coronel
Magalhães, o promotor Augusto, o tenente Torres, e um moço, o Sr. F.
(pausa) tabelião e os doutores Gabaglia e Medeiros.
Seria uma hora quando se retiraram.
Três da tarde tempo calmoso, termômetro na sala 22 graus e meio.
Jantou conosco o Dr. Gabaglia.
Às cinco horas caiu um bom chuveiro, em presença do sol.

[f. 127]
À noite fomos à novena, que esteve hoje muito desmaiada, o noitário
parece inimigo das luzes, no instante houve grande concorrência e fora,
nem repiques nem arrancos de foguetes.
Conversamos um pouco em casa do tenente Torres, e às nove horas
fomos para o cosmorama eu, Manoel e o Dr. Gabaglia. Divertimentos
do mesmo gênero dos dias precedentes, saímos depois das onze horas.
Viemos para casa tomar chá, e nos separamos, isto é, o Gabaglia foi para
sua casa.
Quarta-feira, 26: Amanheceu bom dia, termômetro na sala 18 graus.
Ocupei-me no exame dos livros do Arquivo Municipal.
Ao meio-dia apareceu-me o índio Inácio José de Souza (músico e
arco verde [arcoverdense), quer ser descendente de D. Felipe Camarão).
Pouco tivemos que aproveitar dele. Disse-nos que se lembra bem do
governador João Carlos, que depois de prender os Feirosas em S. Pedro,
veio para Viçosa; aqui fez várias revistas e se aposentou na casa do vigário
Lelon, que era o antigo Colégio da Companhia.
Disse-me que o vigário Simeão* foi morto de um tiro em sua casa.
Deu-me mais algumas notícias de uma guerra de D. Felipe (não sei qual

* Fui informado depois que o vigário tinha outro nome

388
deles) contra os tapuias da serra, notícias muito confusas. Aprovei dele o
modo de pronunciar algumas palavras indígenas.
[f. 128]
Três horas céu anuviado; tem caído alguns chuviscos, termômetro
21 graus e meio.
Estava determinado a descer a serra depois de amanhã, mas aqui veio
o Dr. Maranhense, juiz de Direito, pedir-me que me demorasse mais um
dia, convidando-nos para uma reunião que dá em sua casa na sexta-feira à
noite. Como nessa demora não há prejuízo porque temos sempre que fazer,
assenti a isso, agradecido.
Às quatro horas forma-se uma trovoada sobre a serra, onde chove,
aqui apenas caíram chuviscos e se ouviram os roncos brandos.
Estávamos tomando café quando aparece na janela o Barbedo, o
Soares não tardará a chegar. À noite vestimo-nos, eu e Manoel, e fomos
visitar o Dr. juiz de Direito, daí saímos e fomos para a Casa da Câmara eu
e o Augusto, a ver o cosmorama, estando ainda fechado; eu fui para a casa
do Torres, onde apareceu o juiz de Direito; conversamos e deu nove horas,
que foi-nos anunciada pelo toque da corneta do quartel, nosso vizinho, por
repiques e foguetes, princípio da festa do noitário de amanhã, nos dirigimos
para o panorama. Havia ainda pouca gente, mas Jogo foram chegando
várias famílias, e entre elas as duas rainhas da festa, a bonita D. Mariana
Beviláqua, [riscado “e D. Maria”) e [a] gentil filha do Sr. João Severiano, D.
Mariquinha. Estas duas moças andavam sempre juntas, e sentadas tinham
as mãos dadas, todas as atenções se dirigiam para elas, e elas é que se faziam
corte; diante delas é que o Leal se sentava sempre para cantar.
Estivemos lá todos, eu, Manoel, Gabaglia e Barbedo; e saímos por
último, era quase meia-noite. Viemos para casa e inda tomamos chá.

[f. 129]
Quinta-feira, 27: Amanhece o dia com grande cerração. Termômetro
na sala 18 graus. Almoçaram conosco o Dr. Gabaglia e Barbedo. Tem feito
algum calor esta manhã, ocupei-me em copiar alguma coisa dos livros da
Câmara.
Três horas, trovoada, chuva. Termômetro 22 graus. Meia hora depois
não chove aqui ou apenas caem algumas gotas, mas os roncos de trovoada

389
são fortes, chove para o sertão. Às ave-marias saí com Manoel, fomos visitar
o Gabaglia e Barbedo, que não achamos em casa; fomos daí à casa do João
Pacheco, onde conversamos um pouco; e ouvilnldo foguetes e repiques
para a novena nos dirigimos para a igreja, e como era ainda cedo e fazia lua,
aproveitei para ir ver o cemitério. Assisti à novena, daí fui à casa do tenente
Torres, onde achei o Dr. Medeiros, incomodado.
O Dr. Gabaglia e Barbedo vieram a meu convite tomar chá em nossa
casa. Acabado o chá fui eu só assistir, digo, ver o cosmorama, por despedida
e foi despedida triste, porque de senhoras conhecidas estavam poucas, e a
flor delas, D. Mariana, retirou-se cedo por incomodada.
Eu sempre me demorei, triste e saudoso, servindo de cicerone a
algumas senhoras; até o Leal não cantou por doente da garganta. Eram
onze horas quando dei adeus a este divertimento, onde passei momentos
distraídos. Ainda agora me retiro da Viçosa saudoso desta boa gente.
Tenho o meu espírito tão próspero à melancolia que tudo me impressiona,
suscitando-me saudades e tristezas. Estamos na festa do Natal, que é ou foi
a nossa festa de prazeres no Rio de Janeiro, e de lá nem ao menos temos
notícias!

Sexta-feira, 28: Amanheceu o dia neblinoso, termômetro 18 graus.


Disse-me ontem à noite o Sr. tenente-toronel que [f. 130] o padre
Felipe, vigário, foi assaltado pelos índios, sublevados pelo seu chefe, creio
que o capitão-mor. Cercaram-lhe a igreja, o colégio onde ele [o vigário]
morava, ele refugiou-se na igreja, escondendo-se no trono. Entraram na
casa, e quebraram quanto acharam, e não o encontrando foram à igreja,
e o tiraram dali aos empurrões, causando-lhe contusões e feridas, e como
estava em ceroulas e embrulhado num capote, o puseram em cima dum
cavalo magro, e em sela velha, e o empurraram para fora da vila, fazendo
acompanhar por uma escolta, que a seu pedido foi tirada. Andou por fora,
e sossegadas as coisas voltou creio que em 1816, não quis mais ir para o
colégio, que desde então se arruína.
Estava agora há pouco [com] o padre vigário, e não me soube dizer
que povo tinha a freguesia nem quantas almas tinha a vila.
Quanto à ruína da igreja antiga disse-me que, quando ela se arruinou,
caindo uma porção de grande parede, ele não estava aqui, e que foi ele

390
quem empreendeu a reconstrução da igreja! Acredito mais no tenente-
coronel Vicente do Espírito Santo Magalhães.
Três horas da tarde, céu anuviado, termômetro 22 graus. Temos
estado aprontando-nos para a viagem, que está disposta para amanhã.
Às ave-marias vesti-me, andei trocando as pernas, até que foram horas
de novena, à qual fomos com o Dr. Medeiros e lá achamos o Gabaglia
e Barbedo; acabada a novena viemos nos vestir para o sarau que o Dr.
Fernando Maranhense [riscado — Gonçalves] da Cunha, juiz de Direito,
nos quer dar por obsequiar-nos. Eram oito e meia quando para lá fomos
(Manoel por não ter trazido roupa conveniente não foi). Achamos a casa
cheia do que há de melhor no lugar. Sendo a casinha pequena, eles a
aproveitam de modo que se estava bem a cômodo, estava bem iluminada,
a velas de estearina, e tudo bem asseado; havia [f. 131] além da saleta
principal, onde está o piano (que é o primeiro que vi em vila Viçosa),
destinado mais particularmente para as senhoras, aonde se dançavam as
quadrilhas, um gabinete ao lado, que serve de quarto de dormir, e onde
está armado o leito de casado, cama francesa de cortinados, bem asseada; e
o toucador da senhora, com bom espelho. Foi destinado particularmente
para os homens a alcova, onde o doutor pôs a sua livraria, e parece que
trabalha aí. Colocou a música (música instrumental, que veio da Granja
para tocar na festa e novenas de N. S. da Assunção) e um bofete coberto de
garrafas de cerveja e de vários licores, enfim na casa do jantar estava uma
grande mesa coberta profusamente de doces, bolos, pães-de-ló, pudins,
e mil qualidades de docinhos bem feitos; e bem iluminada [a sala]. Já
disse que as principais famílias se achavam ali, e entre as senhoras havia
umas seis moças bonitinhas, [e] brilhando sempre sobre todas a graciosa
Beviláqua e a interessante Mariquinha* que estava verdadeiramente
sedutora. Não havia riqueza, mas elegante simplicidade; começou-
se logo a dançar. Às dez horas serviu-se o chá; à meia-noite foram só
os homens conduzidos à sala de jantar para o champanhe, de que se
abriram bastantes garrafas; mastigando-se, bebendo-se, conversando,
e fazendo-se saúdes, gastamos aí bem meia hora, voltando para a sala
continuaram as danças, várias famílias se vão retirando, mas às três horas

* Filha do major João Severiano.

391
da madrugada ainda havia número suficiente para a dança. Retiramo-
nos quase às quatro horas, realmente penhorado por tanto obséquio,
cheio de saudade de tão amável companhia.
[f. 132]
Sábado, 29: Amanhece o dia com neblina, o termômetro 18 graus.
A função que deu ontem o Dr. juiz de Direito fará época nesta vila.
Há pouco criada cabeça de comarca, é o primeiro juiz de Direito que tem,
e que sem dúvida por suas maneiras, pelo seu trato praciano, como por aqui
se diz, há de concorrer para a prosperidade e civilização do lugar. Eu nem fiz
ideia de que cá por estes confins houvesse o que tenho presenciado, e o que
é verdade é que depois da capital é o lugar onde tenho achado trato mais
agradável, e onde passei momentos mais deleitosos, e de que levo muita
saudade. Não era debalde que no Rio de Janeiro, quando eu pensava em
me não demorar pelo Ceará mais de oito a dez meses, incluía sempre em
minhas viagens a da Ibiapaba. Adeus, Viçosa amável.

Santa Cruz, 30 de dezembro

Ontem de manhã, depois do almoço mais ligeiro de café com leite,


cuscuz e fatias de parida, tudo devido aos cuidados da simpática D. Isidra, e
à obsequiosidade de seu marido o tenente Torres, arranjei as minhas malas,
e saí a fazer as minhas despedidas, era já passado meio-dia; comecei pelas
vizinhanças fronteiras, o Maneco, o major João Severiano de (pausa) e seus
filhos, menos a gentil Maria, que parece ainda se desforrava da noite perdida.
Daí fui ao vigário, seus irmãos e cunhada, a graciosa Mariana, que também
não apareceu, e para a qual dei ao vigário um Manual de Orações como
uma lembrança ou sinal do agradecimento pelos obséquios que recebi e
amabilidade com que fui tratado. Daí ao mestre da escola, mas não estando
em casa recebeu-me sua senhora e filhos, a quem fiz os meus adeuses, daí à
casa vizinha do Sr. Augusto, o promotor; também o não achei, e despedi-
me da senhora, e meninos; daí ao capitão Fontenele, que estando deitado,
fui perfeitamente recebido por sua filha moça, desembaraçada, e que não é
feia. Ia à casa do subdelegado, Fontenele, e o encontrei na praça; fui à casa
do [f. 133] Sr. (pausa) tabelião, e não estando, fiz as minhas despedidas à

392
senhora; daí a uma casa vizinha, da Maria Joaquina, para quem eu havia
receitado. Despedi-me do tenente-coronel Magalhães, fui à casa do Dr. juiz
de Direito, e aí me disse uma sua escrava que ele estava em minha casa;
despedi-me do Sr. João Pacheco, do Gabaglia e Barbedo, e enfim do nosso
vizinho, e obsequioso tenente José Torres, a cuja Sra. D. Isidra foi também
[dado de] presente o outro Manual de Orações. Despedi-me aí do Dr.
Medeiros, que está aboletado em casa do tenente e recolhi-me, mandei pôr
o meu almoço mais sólido era já mais de uma hora; pouco depois chegou
o juiz de Direito, e mais outras pessoas, e tratamos de concluir os nossos
arranjos. Vesti-me, mandei aprontar os animais; eram duas horas e meia
quando montamos a cavalo, já então estavam aí algumas das pessoas mais
gradas do lugar, que nos queriam impor, o vigário pediu-me desculpas de o
não fazer por incômodos, e o tenente, impossibilitado de calçar-se, também
não pôde ser da companhia. Partimos, cheios de saudade, as portas e janelas
da praça estavam com gente que viam a nossa saída, e entre eles pude divisar
o semblante da mimosa Mariquinha. Dirigimo-nos para a casa do Augusto
passando pela do vigário. D. Mariana com outra senhora estavam a uma
janela baixa, o padre vigário apareceu, aí fizemos nossas últimas despedidas.
Chegamos à casa do Augusto, que não tendo [alinda animal pronto nos
fez apear; apareceu também o capitão Fontenele, pronto para impor-nos.
Enfim seriam três horas, o sol estava bem quente ainda, mas tínhamos a
fazer uma viagem de cinco léguas pelo sertão, não podíamos demorar mais
a partida e ao montar-nos a cavalo [alinda fizemos o último adeus à família
do vigário, que estava toda à janela.
A comitiva se compreende, além de mim e Manoel, dos Srs. Dr.
juiz de Direito, Gabaglia e Barbedo; do major João Severiano, do capitão
Fontenele, do Dr. Medeiros, do Augusto, de Beviláqua, marido de D.
Mariana, e outro Sr. (pausa).
[f. 134]
Começamos logo a descida da serra, não sem certa emoção da minha
parte: tivemos logo uma passagem de pedras de tal natureza que eu me fui
logo apeando, o mesmo fizeram mais outros da comitiva. Alguns tomaram
um desvio, mas o nosso Manoel quis mostrar-se afoito e desceu a cavalo;
mais adiante passamos por uma fonte, que nasce por baixo de uma grande
pedra, que forma teto, deixando por baixo um largo espaço, onde a água

393
forma vários poços. Estavam aí algumas mulheres pardas, ou caboclas, pela
maior parte nuas, que se lavavam, ou lavavam roupa, e quando nos viram, se
acachaparam e se cobriram como puderam. Chama-se esta fonte Tanguruçu,
e dá nome à ladeira. Mais algumas passagens difíceis tivemos, e tendo-as
passado, e estando quase em meia ladeira, os nossos obsequiosos amigos se
despediram, e nós seguimos a nossa viagem, eu, Manoel e o ordenança. A
nossa bagagem havia ainda ficado preparando-se quando partimos da vila.
Caminhando por lugares mais ou menos declives chegamos a um espigão
da serra, que talvez tem mais de um sexto de légua, e por cuja aresta ou
lombada marchamos, não sem algumas subidas e descidas, até que nos
achamos no vale do sertão, que é uma vasta bacia rodeada de serras, ou
braços da serra Grande. Antes de nos acharmos sobre este espigão da serra,
em altura provável de 500 [metros] sobre o chão do sertão, já a vegetação
havia mudado de caráter, era todo vegetação do sertão. Angicos, aroeiras,
sabiás, gonçalo-alves, salvestia etc. etc. capim agreste, e uma espécie de
amarílis de grandes flores brancas que a gente do país chama [ilegível].
Na parte rasa do sertão ainda notamos que uma cinta dele próxima à serra
estava com toda a sua vegetação verde; mas, a umas duas léguas de distância,
tudo estava seco e quase sem folha; e sem pasto.
[f. 135]
Anoiteceu-nos em caminho, e andamos ainda uma boa légua para
chegarmos à casa em que estamos em Santa Cruz, cujo dono é o Sr. Antonio
Luciano de Arruda, que nos recebeu perfeitamente, e sua senhora, sertaneja
ingênua e amável.
No sertão [por] que passamos esta tarde, vimos, além de outras
árvores que me não ocorre, coração-de-negro, muitos [pau-Jvioletas com
flor e uma leguminosa papiliona de for amarela, que me pareceu ser o pau
de mocó, oiticicas, juazeiros etc. etc. carnaúbas e as mais árvores do sertão,
menos a marizeira.
Domingo, 30: Esta madrugada não foi fria, a manhã e o dia anuviado,
toda a manhã foi muito quente, e o céu com nuvens dava algumas chuvinhas
pelas serras e serrotes. Seriam três horas quando caiu uma trovoada que deu
alguma chuva, e mandamos aparar água, porque a que se bebe em casa é
água suja. O termômetro está em 24 [graus], não ventou mais, antes da

394
trovoada houve algum vento. Esta manhã foi Manoel com o Sr. Florêncio
de Arruda ao lugar chamado Limáozinho, daqui a duas léguas ou mais, a
colher ramos da árvore do sebo, que felizmente achou folhada, e com fruta.
Tínhamos intenção de ir a Granja para colher esta planta, mas, sabendo
que a tínhamos em casa e não nos restando tempo, resolvemos não ir a
Granja [riscado “esta árvore que por aqui passamos”]. Encontrei também
de mistura uma sapucaia Licythis, primeira deste gênero que colhemos no
Ceará. Fiz os desenhos destas duas plantas e da amarílis, sentado na rede,
doente e atormentado pelo calor, pelo vento, pelas moscas, e por galinhas,
perus, patos, porcos, carneiros que a cada momento entrava[m] na sala em
que estamos a comer milho, que está em monte num canto. Direi agora
que logo que chegamos a Viçosa, digo, que quando chegamos a Viçosa,
estávamos eu e Manoel bem nutridos e bem dispostos; nos primeiros dias
que aí passamos, ainda engordamos mais, porém, [f. 136] começando as
chuvas e trovoadas, e de 8 [de dezembro] em diante, foi o ar se tornando
muito úmido. Por isto, ou por outra qualquer causa, começamos a sofrer
— Manoel mais do que eu; os meus incômodos foram irregularidades do
ventre, falta de apetite, defluxos e ligeiras anginas, de que mesmo agora
estou sofrendo. E notei logo perda de cor e algum emagrecimento.
De tarde houve ainda alguma chuva; passei o dia incomodado com
a minha bronquite, tossindo bastante. À noite conversamos com os nossos
hóspedes deitados na rede, e eles sentados. Ceou conosco o Sr. Arruda, e
mandamos doce para a senhora e seu filhinho. Depois estivemos juntos e
[nJisto fiz alguns presentinhos à senhora de rejeitos; tesourinha, tudo à sua
escolha. Ela nos presenteou também mandando-nos uma galinha assada
para o nosso almoço e umas belas bananas-da-terra.
Segunda-feira, 31: A noite não foi fria, amanheceu o dia bom, e céu
um pouco anuviado, o termômetro estava na sala a 18 [graus].
Tomamos uma xícara de café simples e partimos, com duas léguas
(para mais ou menos) de viagem passamos pela fazenda denominada S.
Isidro, pertencente a um Sr. Frota, tio dos senhores Arrudas. Aí bebemos
água péssima, nos informamos do caminho e seguimos; daí a uma légua
chegamos a Sta. Luzia, outra fazenda pertencente a um filho do Sr. Frota,
onde nos apeamos para esperar pelo ordenança, bebemos água ruim,
conversamos um pouco e seguimos. Duas léguas mais andadas estávamos

395
na fazenda denominada Enjeitados, pertencente ao Sr. capitão Antonio
Félix da Cunha; quando íamos chegando encheu-se a varanda de homens,
de todas as cores, e cheios de curiosidade. O filho do dono da casa, que
então estava fora, nos fez apear e levou-nos para a sala, onde achamos
redes estendidas, que nos foram oferecidas com instância; pouco depois
chegou o dono da casa, andava recrutando gente para a eleição da Granja.
É chimango, tinha já em casa uns 30 votos seguros, esperava mais gente à
noite, e contava que no dia seguinte, [f. 137] indo para a Granja, ajuntaria
mais pelo caminho, contando apresentar por sua parte uns 100 votos —
liberais! Ele pareceu boa pessoa, e tratou-nos bem; quando se pôs a mesa
para o jantar, quis que fôssemos para ela, mandou-nos vir a nossa galinha,
e a repartimos pela primeira mesa, em que fomos servidos. Houve segunda
e terceira mesa, e nessa última é que comeu o Sr. Antonio Félix, comida
farta, carne cozida à sertaneja, e escaldado; e muitos pratos de arroz, melado
por sobremesa. Jantaram 30 votantes, alguns descalços e camisa sobre as
ceroulas, quase todos comeram em pé, como é uso no sertão.
Deitados em nossas redes, éramos atormentados por perguntas dos
curiosos, e muitas vezes nossas respostas eram acolhidas com gargalhadas dos
circunstantes, muitos dos quais estavam de cócoras em roda. Apareceram
algumas mulheres, e vieram passar e enxugar a ferro [a] roupa dos votantes
da casa, provavelmente.
Havíamos chegado a esta fazenda ao meio-dia, tendo parada de Santa
Cruz pouco depois das sete [horas]. Fazia muito calor, e o céu anuviado
prometia mau tempo; com efeito eram quatro horas quando mandamos
aprontar o nosso comboio para a partida, e neste tempo me veio dizer o
Barreto que grande chuvão, tocado pelo vento, estava sobre nós; mas como
parecesse que seguia outro rumo, partiu o comboio e logo depois começou a
chover com bastante força, e durou cinco quartos de hora, e toda a apanhou
a nossa bagagem. Logo que melhorou o tempo montamos a cavalo eram
cinco horas e meia. A uma légua está a primeira errada, e o comboio seguiu
por ela; isto nos causou grande desprazer. Era já quase noite, resolvemos
seguir o verdadeiro caminho e dispostos a passar a noite pessimamente, sem
jantar, talvez sem rede, com a roupa do corpo, e a vermos nossos cavalos
passá-la à estrada por não levarmos peias. Isto me incomodou muito.
Achamos, talvez porque não íamos satisfeitos, o caminho muito mais longo

396
do que nos disseram que era. Anoiteceu-nos, andamos, [f. 138] andamos,
sem encontrarmos o rio, perto do qual está o pouso, de sorte que Manoel,
desconfiado, ouvindo voz de gente, meteu-se por uma trilha, às escuras,
mas com felicidade que encontrou um rapazinho que nos certificou que
íamos pelo caminho direito, que [levava para] o rio, e a casa estava ali perto.
Com efeito assim era. Chegamos pois eram talvez oito horas da noite à
desejada Embiguda, a duas léguas seguras dos Enjeitados. Achamos uma
janela aberta, falamos e gritamos de fora por muito tempo, quando enfim
apareceu no fundo da sala uma velhinha muito curva montada a seu bordão,
que nos saudou e permitiu que nos arranchássemos. Apareceu logo depois
um preto que nos deu luz, acendendo borra de cera de carnaúba, e água do
sertão. Enquanto se desarreiam os cavalos, Manoel saindo ao terreiro, nos
veio com a boa nova de que ouvia vozes, que eram seguramente da gente do
comboio; mandou-se ao ordenança gritar, e eles responderam e chegaram
logo; deram consigo em Juazeiro, e de lá voltaram tendo quase duas léguas
de errada. Estenderam-se as redes.
Jantamos, e seriam nove horas quando nos apresentou o jantar.
À roupa suja que vinha no saco se molhou, assim como o meu chapéu
de pelo que, apesar de vir em caixa de lata, apanhou água. A noite úmida,
e a minha tosse impertinente.
Ano de 1861
1º de janeiro: Amanhece bom tempo, sobre a serra da Meruoca que
tínhamos perto havia alguma chuva.
Tomamos uma xícara de café simples, e partimos seriam sete horas e
meia. O dia estava bonito, marchávamos por um terreno plano de tabuleiros,
cobertos de campos e de vegetação rasteira. Tínhamos em frente a serra da
Meruoca, que fechava o quadro, e logo de[pois de] meia viagem, de uma
pequena altura, e das janelas de uma casa uns meninos nos mostraram a
povoação da Vargem Grande. Tudo isto nos punha em boa disposição de
espírito; [f. 139] marchávamos alegres e não tardou que fizéssemos nossa
entrada triunfal pela primeira rua da povoação de Vargem Grande — era
dia festivo, e por todas as casinhas se via gente vestida de fresco, e olhando-
nos curiosa. Chegamos a um sujeito e lhe perguntamos a moradia do
subdelegado, e respondeu-nos que não se achava ali. “E o vigário? Onde
mora?” “Na quadra em frente da igreja”; para ali nos dirigimos, e nos

397
apeamos à porta do vigário que achamos na sala balançando-se em sua
rede. É ainda moço, mas completamente cego; é português, talvez ilhéu.
Recebeu-nos bem e indicou-nos uma casa, vizinha à dele, onde estava
uma família do sertão, que vindo passar as festas se retirava nesse dia de
tarde. Para lá fomos, mandou-nos logo dois mochos e água para beber
(água detestável). Apareceu-nos logo a família que estava na casa, uma
senhora viúva com duas bonitas filhas, verdadeiras sertanejas, alvas, rosadas,
magníficos olhos, belos dentes. A mais velha [era] Maria do Carmo, casada,
com um mocetão que ali estava também com um filhinho de ano e meio,
paralítico das pernas, e tendo já outro no ventre; a mais moça, Maria dos
Anjos, era um verdadeiro anjo, meiga, ingênua, modesta; e mais algumas
moças da família e outras senhoras que foram aparecendo, da amizade das
primeiras. Recebeu-nos esta gente tão familiarmente, que se misturaram
conosco e nossa comitiva, e tínhamos sempre a nossa sala cheia. Sentavam-
se mesmo pelo chão, e por mais que lhes oferecêssemos assentos e folhas de
papel pardo para sentarem-se, nada, lançavam[-se] no chão como crianças.
Das nossas comidas dávamos-lhes doces, vinho, café, e de vez em
quando bebia-se cerveja, que eu preferia à água. Era quase meio-dia quando
o vigário subiu para a igreja a dizer missa, já nós lá estávamos. Depois da
missa fomos visitados pelo Sr. Joaquim Rodrigues Moreira, [f. 140] homem
ancião e um dos notáveis da terra; almoçamos depois de uma hora. À nossa
saleta cheia de senhoras, as nossas malas abertas, as horas expostas, tudo
produzia ilusão aos simplórios sertanejos, que de vez em quando nos vinham
perguntar se vendíamos fazendas, e um desejava comprar um dicionário.
“Temos-lhe”, respondeu Manoel, “mas custa 300$000 [trezentos mil-réis)”;
o amigo voltou sem dizer palavra. Entretivemos as senhoras, mostrando-
lhes desenhos e figuras dos livros, mostrando-lhes um óculo de alcance
que nunca tinham visto. Mostrou[-se]-lhes alguma coisa ao microscópio,
os cabelos de Maria dos Anjos, a assentaram. Mas o melhor de tudo foi
que, pedindo nós que nos apresentassem uma pulga, ou um piolho, que
caçassem esses bichos por onde quer que fosse, a ingênua dos Anjos vai para
dentro com outros, apanha um piolho de sua cabeça, pede muito segredo
e o apresenta. Mas a gaiata que atrás vem logo dizendo de cuja cabeça
tirou[-se o piolho], a ingênua pôs as mãos no rosto e desapareceu. Mas
afinal tomou a cara de feição e veio observar o seu piolho; mas o piolho

398
foi objeto de muitos gracejos e galhofas. Assim passávamos o tempo nesta
e em outras inocências, com que pudemos distraídos disfarçar as saudades
das nossas famílias. Logo que as nossas amáveis se retiraram, nos vestimos
e fomos visitar o Sr. Joaquim Rodrigues Moreira, que já o não achamos,
tendo ido para sua fazenda; daí ao padre vigário, cujo nome soubemos
então ser o de Joaquim Alves Nóbrega, que cegou em 1840, estando no
Maranhão. Disse-nos mais que esta povoação é muito nova, que há quatro
anos e alguns meses que ele para aqui veio, e então não havia mais que a
igreja, ainda não concluída nem rebocada por dentro; e em roda da igreja
não havia senão latadas, em que as famílias vinham passar as festas, e que
ele orou em uma delas. [f. 141] A primeira casa de telha que se fez foi a em
que nós estávamos; e depois a dele, em que mora. Atualmente tem umas
40 casas de telha contadas por Manoel, algumas raras se estão fazendo, e há
também algumas choças
À igreja é nova, da invocação de N. S. da Piedade; e foi feita às custas
dos fazendeiros é proprietários mais abastados do lugar, mas sob a influência
e favor do Sr. José Gomes Damasceno, que é aqui muito respeitado.
A praça em frente da igreja é grande, e algumas ruas que se vão fazendo
são bem alinhadas; o terreno é uma larga planície, que se presta mui bem.
Infelizmente não tem água boa, e está à mercê da serra da Meruoca, que lhe
fornece farinha e legumes e alguma fruta.
Assistiram à missa tantas devotas (os devotos eram em muito menor
número, dizem que por terem ido ao voto) que a igreja ficou literalmente
cheia, as senhoras chegaram quase ao pé do altar. Estivemos junto a uma
porta travessa vendo entrar as famílias, e estando aqui tão perto de Sobral
cuidávamos que tudo aqui era bonito, mas qual! Todavia devemos confessar
que na igreja vimos duas senhoras que não estavam mal trajadas e que não
eram feias. Na turba algumas carinhas simpáticas, e algumas graciosas; mas
em geral assentavam sobre corpos desjeitosos, e mal ataviados. Sem dúvida
se houvesse mais gosto no trajo, e mais desembaraço nos modos, ficariam
bonitas.
Dia 2 de janeiro: Levantamos, aprontamos, almoçamos, e depois
fomo-nos despedir do vigário; e quando montamos a cavalo eram oito
horas. Andando pela vargem semelhante à de ontem, com carnaúbas,
quando [f. 142] entramos em caatingas; e às nove horas começamos a

399
subir um grande morro, que é como antemural da serra, ou [onde] a serra
acaba formando morros em roda de si, o que lhe aumenta a circunferência,
a qual deve ser de umas poucas de léguas. Enfim chegamos a uma vasta
lombada, ou espigão da serra, pela qual corre a ladeira em ziguezague, em
lugares íngremes, em lugares medonhamente pedregosos, onde só loucos
passam a cavalo; do flanco da montanha, gozávamos de extensa vista, do
sertão até a serra Grande, que tínhamos a oito léguas para mais ou menos,
e lá embaixo, no meio da vargem víamos os tetos da moderna povoação. Às
dez horas chegamos ao sítio chamado Tábuas, e que dá o nome à ladeira,
está sobre uma pequena esplanada, ou linha, a casa de telha, tendo ao
lado uma boa fábrica de farinha. Rodeamos a casa, que estava fechada, e
pudemos ver uma janela aberta; saudamos, gritamos, enfim apareceu lá
de dentro uma cabocla, ou mulata, que nos deu água, água excelente! —
como não bebemos depois que nos partimos da amável Viçosa. Pedimos-
lho licença para chupar uma laranja, que as havia pequeninas mas maduras
nos pés. “Pode tirar, mas estão secas”, nos disse ela. Com efeito eram leves
como se fossem vazias; estavam secas e azedas. Todavia chupei uma fazendo
maminha. É o que nos diz toda a gente do Ceará: as laranjas no primeiro
inverno amadurecem mas não ficam doces, e durante a seca perdem o
caldo; e com as chuvas primeiras de inverno seguinte enchem de novo e
então ficam doces.
Descansamos um pouco, e continua[mos) a viagem subindo mais
duas ou três pequenas ladeiras, nos achamos no alto, [f. 143] ou chapada da
serra, larga, plana, arenosa e semeada de morros, ou montanhas pedregosas,
e áridas.
Andamos por essa planície sem ver uma casa, e com poucas roças de
algodão, e de mandioca, que parecia[m] antes taperas, é que em toda esta
parte da serra não há água.
Enfim subimos um grande monte de ladeira íngreme e pedregosa, e
descendo-o nos achamos em uma depressão do terreno, chamada Caldeirão,
onde há olhos-d'água perenes, e onde há habitações. Dirigimo-nos para uma
casa, de palha, mas de boa aparência, e nos apareceu uma mulher cabocla
mestiça, de rosto alegre, e que convidou-nos a arranchar-nos; seu marido
foi ao voto, está em sua companhia um preto velho, e cego, e três filhinhos;
a mais velha de dez anos, e a caçula de oito, Vicência, viva e inteligente. Esta

400
mulher em todas as suas maneiras e até na figura nos fez lembrar das filhas
do nosso Adriano. Mandamos preparar uma galinha, que lhe compramos,
para nosso jantar, o qual nos foi apresentado quase às cinco horas, tendo
chegado ali ao meio-dia. Mas essas quatro horas não as passamos amuados,
a dona da casa e suas filhas nos entretiveram, assim como o velho cego.
Às quatro horas o tempo escurece, começa a chover e a roncar trovoada,
que durou até as cinco horas, e refrescou o tempo de modo a incomodar.
Também ontem choveu aqui, assim como na Vargem Grande, [um]as duas
horas de uma boa pancada. Estando nós ainda distante da Meruoca quatro
léguas, e o tempo de chuva, resolvemos dormir aqui. Logo que anoiteceu,
a mulher fechou as portas e veio para a sala com seus filhos e o cego, e nós
deitados nas redes [f. 144] conversamos até depois das sete horas. Dormi
bem esta noite, apenas tossi de manhá alguma coisa, apesar da umidade do
tempo.
Quinta-feira, 3 de janeiro. Levantamos, tomamos uma xícara de
café, despedimo-nos da boa gente e partimos dez minutos antes das sete
horas. Passamos o lugar chamado Algodões, e daí por diante as habitações
se tornaram frequentes e o país mais cultivado, por ser já mais fresco e
mais abundante de águas. Chegamos à Baixa Grande, onde se faz grande
mudança; na serra até aqui andávamos por baixadas arenosas, e por entre
montanhas pedregosas. Agora o aspecto é outro; o solo se torna argiloso,
e rubro, e largamente montuoso; as quebradas ou vales são profundos e
sem planuras, a vegetação é de matas enfolhadas e vigorosas. Subindo e
descendo chegamos enfim a um profundo vale, rodeado de montes, em
cuja baixa está situada a povoação de Meruoca, onde nos apeamos às onze
horas e dez minutos. Fazem do Caldeirão a Meruoca quatro léguas; mas
como fizemos esse trajeto em quatro horas e 20 minutos, andando muito
devagar, subindo e descendo, e tendo muitas paradas não lhe damos mais
de três léguas. Logo que entramos na povoação encontramos um senhor
a cavalo conversando na rua com uma senhora que estava à janela, a ela
nos dirigimos perguntando-lhe pelo subdelegado; disse-me que não havia
senão inspetor de quarteirão. E perguntando-lhe Manoel pelo capelão, nos
conduziu à casa deste, onde nos receberam duas mulheres, irmãs da senhora
e nos indicaram onde o podíamos achar, dirigindo as obras duma casa que

401
estão fazendo e para lá nos conduziu o senhor (pausa) O capelão nos [f.
145] recebeu contente, e logo com o nosso guia saiu a arranjar-nos uma
casa, para onde nos dirigimos, assim como a nossa bagagem, que já havia
chegado.
A serra da Meruoca pelo que temos visto e na sua chapada [mede]
de 1.200 a 1.500 pés de altura, e os picos mais altos de suas cabeças
devem chegar a 2.000 pés.
À primeira porção do lado do poente é, como já disse, no seu cume,
de planícies arenosas intermeadas de rochedos, e de montes pedregosos e
áridos, toda esta parte é seca e sem olhos-d'água, em tudo é de natureza do
sertão: o chão, os serrotes, a secura e a vegetação, de sabiás, de mufumbos, de
sucupiras do sertão e de capins próprios para pastos. Enfim: a temperatura,
[embora] em Caldeirão, e principalmente em Algodões, notasse alguma
diferença, há mais frescura, há algumas fontes; a natureza do terreno, sua
forma e sua vegetação apresentam caracteres indecisos. Em Baixa Grande
tudo muda logo, [a] natureza da terra forma nos montes grande e perene
vegetação de matas, [há] cultura de cana nos ipus, e de café, que começa
nos montes; o clima [é] mais úmido, mais chuvoso. A primeira cultura
da Meruoca é da mandioca, e da variedade chamada cruvela, depois a do
algodão e há porções da serra muito aptas para cana, café e legumes, que dão
bem como milho, feijóes, bananeiras, laranjeiras, mangueiras, mamoeiros,
carrapato [carrapateira] etc. etc. E pode dar tudo o que quiserem.
Logo que entramos no domínio das matas tudo nos lembrava o Rio
de Janeiro, os vegetais, os pássaros, muita sabiá e pombas-rolas das nossas.
[f. 146]
Não é inútil contar a anedota seguinte. Não longe da Meruoca
encontramos uma mulher branca, idosa carregando uma cesta cheia de
mamóões, de vez, com um rapazito que carregava algumas canas caianas;
sondei-a e perguntei-lhe para onde ia; disse-me que ia para não me
lembro que lugar, e não perto, que viera comprar aqueles mamões. Depois
perguntou-nos se famos ao voto. Manoel responde-lhe: “Nós não votamos,
andamos procurando votos”. “São chimangos ou caranguejos?”, gritou ela.
Respondi-lhe: “Somos caranguejos”.
Na casa em que pousamos em Caldeirão, cujo dono tinha ido ao voto,
como dizem aqui, perguntou Manoel à mulher. “Seu marido é chimango

402
ou caranguejo?”. “É chimango”, disse ela, acrescentando: “Como quer o
dono das terras. O pobre, meu senhor, é cachorro do rico”.
É um grande mal do Brasil a sujeição em que a classe proletária está
para com os senhores de terras, e potentados.
Esta pobre gente nunca conta com sua pequena propriedade segura;
está sempre à mercê do capricho e da brutalidade dos que possuem a terra,
e têm em suas mãos a ação do poder. E receosos sempre da perseguição,
não tomam assento em parte alguma, e estão sempre de mochila às costas
e sem futuro certo, não contando com o fruto de seu trabalho, entregam-
se à inércia ou ao serviço alugado, e ao pequeno negócio, tudo em grande
prejuízo do país.
Meruoca
Sexta-feira, 4 de janeiro: A madrugada [foi] fresca mas não fria, nem
ventosa, o termômetro na sala em que dormimos estava em 18 [graus].
Ontem às ave-marias vestimo-nos e fomos visitar o padre capelão João
José Mendes de Melo, que é aqui nosso vizinho; e apresentaram-se na sala
duas senhoras, que nos parecem pardas, filhas de Sobral, donde também é
natural o padre, são todas irmãs. Aí conversamos largamente e nosso padre
sermoniou-nos com um cinismo notável a respeito do celibato clerical.
Ouvimos sinal de oração e daí a pouco vozes, que rezavam na igreja que
nos fica perto. [f. 147] Tomamos a liberdade de pedir-lhe licença para ir
ver as moças. Fomos para a igreja, rezava-se o terço com vozes entoadas e
bem ajustadas; junto ao altar, ao lado de dois sujeitos que pegavam a reza,
estavam alguns moleques e cabrinhos em camisas por cima das ceroulas, e
que se ocupavam mais em rir que em rezar.
Em uma oração última, e cuja entoação não era desagradável, os
dois pegadores se atrapalharam de tal modo que julgamos dever nos retirar.
Viemos para casa, jantamos, escrevemos e dormimos.
Ao meio-dia o tempo escurece; às duas horas entra a chover e roncar
trovoada, sem vento. Agora três horas continua a chover, com trovoada; o
termômetro na sala indica 19 [graus].
Temos esta manhã nos ocupado com o estudo de plantas colhidas
por Manoel aqui perto da povoação.
Das três às cinco horas choveu fortemente, moderou depois mas
ainda agora sete horas da noite chove; e inda há pouco ouvimos roncar

403
trovoada. E enquanto isto escrevo ao som de chuva e dos sapos, estou
ouvindo o canto das rezadeiras na igreja.
Está
já o ar muito úmido e eu sentindo a minha garganta, e desgostoso
com a chuva que embaraça os nossos trabalhos. E aqui, se tivéssemos tempo,
havia muito que fazer. Continuou a chuva até além das dez horas.
Sábado, 5: Amanheceu bom tempo, ar calmo, termômetro 18
[graus].
Ocupei-me no estudo de plantas que Manoel vai colhendo.
Aqui chegou o Dr. Jaguaribe da Granja, onde esteve pleiteando sua
eleição; hospedou-se em casa do padre capelão, aqui defronte de nós. Ao
meio-dia começa o tempo a escurecer, a serra a cobrir-se de nevoeiros, e
pouco depois entrou a cair uma pequena chuva que durou até além das duas
horas. O Dr. Jaguaribe seguiu para Sobral quando [f. 148] inda chovia,
[desde] três horas não chove; mas o tempo está escuro, úmido e nós somos
atormentados pelas moscas (parece que de tempos imemoriais foi este lugar
asilo de moscas, pois assim o indica a palavra Meruoca). O termômetro na
sala está em 17 [graus] e meio.
Agora nos veio o padre João José Mendes de Melo convidar-nos para
irmos à casa de umas moças, que cantam modinhas.
Eram quase seis horas quando nos vestimos, e fomos para a casa do
padre, que nos devia conduzir à casa das moças; com efeito levou-nos para
uma casa fronteira, onde está uma família do sertão, da povoação de S.
Ana; são duas matronas, D. Constança e sua filha D. Ursulina, grandes,
gordas, conversadas; [estavam também] um sujeito, o senhor segundo
marido de D. Constança, de camisa e ceroulas, e uma mocinha bonitinha,
Maria, sobrinha de D. Constança [riscado “filha dela”), e que é a cantora
de modinhas. Conversamos por algum tempo com as chimangas (são do
partido) e rogou-se muito à Sra. Maroca, que depois de excusar-se por
várias formas se resolveu a mostrar a sua voz, que não é má, cantando
algumas modilhas, espécies de pequenos romances interessantes, metidos
em boa música, e cantados com expressão.* Notamos-lhe um defeito muito
comum no Ceará, o canto nasal.
Passamos algumas horas agradavelmente e nos recolhemos depois das
nove horas, para jantar.

* Era acompanhada por uma moça pardinha.

404
Domingo, 6: Manhá fresca, termômetro 17 [graus].
Às nove horas vestimo-nos para a missa, que estava muito concorrida
de senhoras, entre elas várias moças bonitinhas, e o que mais me admirou
foi ver boas cores aqui. E se já posso fazer um juízo é a gente aqui mais
bonita do que na serra Grande, e mesmo do que em Viçosa. Depois [f. 149]
[riscado “viemos almoçar”] pusemo-nos em trajos mais ligeiros e fomos eu
e Manoel correr toda a povoação, que estava animada pela concorrência
da gente dos sítios, e do sertão. Voltando para casa, Manoel saiu à cavalo,
e eu fiz um traçado do plano da povoação, fazendo para isso um novo
passeio por ela; e depois que chegou Manoel com plantas nos ocupou no
seu estudo até escurecer.
Foi o dia sempre coberto, e das onze horas até às duas caíram sempre
chuviscos. Às três horas o termômetro estava em 19 graus.
Estando convidado pelo capelão para assistirmos de noite a uma
função de Reis em sua casa, não saímos; e às nove horas da noite fomos
avisados que era tempo de nos apear, entramos. Estávamos em casa do
vigário com sua família e das duas senhoras de Sobral, suas irmãs e um
português, quando chegou o rancho de Reis, e alguma coisa de particular
observamos, que era a cantoria de dentro, também negando-se a abrir a
porta e de fora insistindo. Por exemplo [o canto] de dentro.

Não abro a minha porta


Nestas horas de dormir
Dirija-se a outra parte
Talvez queira abrir etc. etc.

Enfim abriu-se a porta e entraram várias famílias, em cuja[s] casa[s)


estivemos ontem, e mais outras; [havia] muitas senhoras e entre elas umas
cinco moças gentis, e desembaraçadas. Dançou-se o fado de um e de dois,
em que eu e Manoel figuramos, mas muito desjeitosamente. Ceou-se e
depois de cear dançou-se uma quadrilha, onde quase ninguém sabia marcar,
foi uma misturada em que mais se riram que dançaram. Enfim D. Maria, a
de ontem, cantou uma modinha e acabou-se a festa, devia ser meia-noite.
A música consistia numa viola tocada por um cabra que tinha sempre o seu
chapéu na cabeça: é costume do Ceará.
[f. 150)

405
Segunda-feira, 7: Amanheceu o céu anuviado; termômetro 17
[graus]. Tenho-me ocupado esta manhã com o estudo de plantas.
Três horas da tarde, céu anuviado, termômetro 19 [graus] na sala.
Às quatro horas cai um forte chuveiro, que durou perto de uma
hora; ainda chovia quando fui à casa onde mora uma velha de 75 a 76
anos, Cosma Damiana, que é nascida e criada aqui, para me dar algumas
notícias deste lugar e que transcrevo à parte. Saindo dali fui para a casa do
padre Melo, onde conversamos, também Manoel lá estava, até depois da[s]
ave-maria[s], em que nos recolhemos para jantar. Feita a refeição, vesti-me
para ir conversar um pouco em casa de D. Constança, cuja janela víamos
aberta, e luz na sala. Passamos por casa do capelão para o levarmos; não
estava em casa, e a mana nos disse que não o podia conter, apesar de sofrer
da garganta, e fazendo-lhe mal as umidades da noite. Dirigimo-nos para
o nosso destino, mas ficamos embaçados; havia luz na sala, mas nem viva
alma estava lá para dentro; Manoel ainda andou caçando o padre, mas nem
padre, nem moças, nem carapuça, e nos retiramos para a nossa ubi, tristes
e corridos; pus-me a escrever. Temos já as nossas malas meio prontas para
descermos amanhã para Sobral.
Terça-feira, 8: Amanhece o dia chuvoso, assim como o foi à noite,
termômetro 18 [graus], das sete às oito horas choveu bastante. Ontem
em casa da Cosma estava uma mulher fazendo renda [f. 151] e era um
entremeio de dedo e meio de largura, de linha fina. Perguntando-lhe por
quanto lhe pagavam, disse-me que a seis vinténs a vara, e dando linha o
comprador um tostão; e que levava quatro dias para fazer uma vara! Pobre
gente! Trabalham aqui também em labirintos,* rendas, fiam e tecem; os
tecelões levam pelo seu trabalho, quando o fio é o que chamam de três
varas, recebem seis vinténs por vara; quando o fio é de duas varas e meia,
recebem quatro vinténs por vara. Disse-me a mulher que me está dando
estas informações que o fio chamado de três varas é fino, que uma libra dá
quatro a cinco varas. O fio de quatro varas é mais caro, mas não me soube
dizer quanto.
O tecido fino de rede (como da minha, é de fio dobrado, tanto o de
urdiz, como o de tapar).

* Daí para baixo são informações que nos estão dando duas mulheres, que vieram se receitar, e o sacristão
que aqui está também.

406
Há aqui alguns tecelões, que tecem algodão para roupa ordinária
e pano para redes. As mulheres marcam de ramagens os panos de rede, e
fazem varandas, que fazem com cordões brancos, ou tintas. Ela, a informada
[informante] que é rendeira, diz que uma varanda de palmo de largo, tem
feito com cordões de cor a 800 réis a vara. Outra mulher que trabalhava
em casa da Cosma fazendo franja, para ornato de redes, me disse agora que
[riscado “se vende”) a fazem, dando o dono linhas, a três vinténs sendo
linha branca, quatro [vinténs] sendo de duas cores, e cinco [vinténs] de
três cores. As cores encarnadas e azuis, digo, o fio encarnado e azul, ou de
outra cor é tirado de fazendas riscadas; a ganga que desfiam, e depois levam
aos bilros e dobrando-as fazem linhas da grossura que querem, com que
marcam, e fazem os [f. 152] cordões para varandas e com as mesmas linhas
fazem as franjas intermeadas de cores. A plantação daqui é roça (mandioca),
milho, feijão, principalmente o branco e o mulatinho. O arroz dá pouco.
Os jerimuns que aqui se planta[m] são o caboclo, que é redondo e de gomos;
o jerimum de leite, que é grande e de várias formas; o jirandu ninguém o
come, nasce por toda a parte e ninguém o aproveita. Se alguém o planta
é para remédio. Ao mangalô chamam grugutuba, e o plantam e comem.
Quiabos há bastante. Há uma espécie de tomate miúdo, redondo [que]
nasce pelos matos; assim como a pimenta malagueta nasce espontânea. A
[pimenta] comarim não conhecem e a [pimenta] de cheiro planta-se.
Os trabalhadores ganham, dando-se comida (camurupim ou cará,
farinha e feijão), 14 vinténs diários; [n]o ano passado ganhavam 12 vinténs;
a seco paga-se este ano 500 réis, dão só duas comidas (informação do
sacristão).
Contou-nos ontem o padre que, desenterrando um cadáver de
mulher sepultado dentro da igreja havia mais de um ano, achou-se o cadáver
mirrado e as roupas perfeitas (mortalha de lilás, meias, sapatos etc.). Houve
grande rumor no povo tendo-a por excomungada, e foi necessário de sua
parte muita exortação, muita explicação para o apaziguar. Esta mulher
tinha pouco mais de 40 anos, e tinha por uso tomar todos os dias um clister
de pimentas malaguetas, e que às vezes tomava-o e ia para a igreja ouvir
missa, e demorava-se — voltando para casa é que o lançava [fora], lembrou-
se o frade de Sta. Cruz.
[f. 153]

407
A chuva impediu-nos de descermos hoje para Sobral. Agora três
horas não chove; apareceu o clarão de sol por entre as nuvens, o termômetro
conserva-se em 18 [graus].
Não tendo plantas a estudar, entretive-me em tirar uma vista da
igreja, aqui da nossa janela. Eram quatro horas quando estávamos para
jantar e vindo chegar à porta da igreja um casamento, vestimo-nos e fui
com o padre assistir ao casamento de pobres matutos, muitos cheios de
vergonha; mas a madrinha era tafulona, já nossa conhecida do dia de Reis
em casa do padre.
Voltamos para casa, jantamos, descansamos um pouco e fomos
conversar, primeiroà porta do Sr. Chico Bibi e daí para casa de D.
Constança, que estava incomodada; mas fez-nos sala a Sra. D. Ursulina,
D. Maria, e outra moça, D. Helena, sua prima; aí estava o padre e chegou
depois Manoel. Cantou algumas modinhas D. Maria e outra rapariga
pardinha (Faustina), que canta menos mal. Conversamos até talvez oito
horas e nos retiramos. São estas senhoras muito apaixonadas dos romances
do Dr. Macedo — e não só aqui, em outros lugares do Ceará observamos
isso.
Quarta-feira, 9: Amanheceu chovendo, termômetro 17 [graus] e
meio.
Deixamos de fazer viagem ontem pelas muitas chuvas, é hoje é
a mesma coisa; mas estamos resolvidos a descer hoje, apesar do tempo.
Cessando a chuva às onze horas, almoçamos e fomos fazer as nossas
despedidas da família da Sra. D. Constança; da do Chico Bibi, do capelão
e da velha Cosma; montamos a cavalo e partimos era quase uma hora da
tarde. [f. 154] Às três horas estávamos à beira da primeira ladeira, que é de
um barro vermelho seboso, e que molhado pelas contínuas chuvas se fazia
arriscado descer por eles; apeei-me, e desci grande parte da ladeira a pé,
felizmente havia um roçado ao lado de que me aproveitei descendo por ele,
e por entre paus queimados; Manoel desceu a cavalo. Descida esta ladeira
nos achamos na assentada chamada São Pedro.
Logo que saímos de Meruoca, primeiro subindo e descendo alguns
morros, depois começamos a achar alguns assentados, as bacias apenas
acidentadas e de boa terra lavradia, com bastantes plantações, e muitos
sítios; de sorte que pareciam povoações, ou arames. Descida pois a ladeira

408
de S. Pedro, entramos numa grande esplanada, bem cultivada, e que,
estendendo-se por entre montes, nos trouxe até a beira da segunda e última
ladeira, chamada da Mata Fresca, que desce por uma profunda quebrada da
serra e em cuja descida gastamos três quartos de hora. É também barrenta,
mas dum barro um pouco arenoso, e está muito consertado e melhorado,
esta a descemos todos a cavalo. Antes de chegarmos a esta ladeira começou
a chover, seriam três horas e meia e esta chuva nos trouxe até Sobral, onde
chegamos às cinco horas, ainda indo do sertão, da serra até a cidade pouco
mais de uma légua.
[£. 155]
Entrando na cidade, indicaram-nos a casa onde está o Capanema, e
aí fomos. Do Capanema, veio um sujeito mostrar-nos a casa em que está o
Lagos, onde nos apeamos e nos aboletamos, eu e Manoel.
Quinta-feira, 10: Amanheceu o dia coberto, mas sem chuva. O rio
Acaracu [Acaraú], que passa aqui perto, está de nado. O dia tem sido mais
quente que frio; o termômetro (de Fahrenheit) está aqui na sala quase em
79 [graus]. São duas horas e meia.
Fomos hoje visitados pelo senador Paula Pessoa e pelo Sr. Paula
Pessoa, seu filho, o qual nos convidou para sermos presentes ao casamento
de uma sua mana no sábado.
Aqui estava também o chefe de polícia, D. Gaioto.
Seriam mais de cinco horas quando convidei ao capitão Reis para
irmos ver o rio e a cidade; vestimo-nos e saímos. O céu estava muito
carregado em vários pontos, e fazia seu calor; fomos até a margem do rio,
que em lugares está majestoso, e de margem a margem, tendo de largura
muitas braças, todavia parece que hoje dá vau, porque vimos pessoas
atravessando-o a pé; e os meninos, que se banhavam em certos lugares, iam
guase até o meio do rio. Tendo-o contemplado por algum tempo, voltamos
para correr a cidade e nos dirigimos logo para a Matriz, que estava aberta;
mas estavam de guarda dois soldados [com] a urna eleitoral, que tinha
duas velas acesas em cima (foi hoje a primeira chamada para a eleição de
senador).
Os quais nos intimaram, [dizendo] que não podíamos entrar.
[f. 156]

409
Tocamos à porta vendo o interior do templo, mas pouco víamos
porque já era escuro; saímos, e então começavam a cair algumas gotas de
chuva, e nos apressamos para a casa, e quando chegamos já os chuviscos
eram mais amiudados, o tempo se foi sempre carregando mais, e começou
a fuzilar para lado do sul, sobre a serra da Meruoca. Agora são nove horas e
meia, e ainda cai alguma chuva, e choveu ainda pela noite em diante.
Sexta-feira, 11: Amanhece o dia coberto, termômetro (Fahrenheit)
na sala 75 [graus] às oito horas. Apareceu o sol.
Fomos visitados pelo Sr. padre Fialho e pelo Sr. Miguel do Monte,
chefe do partido chimango aqui. Veio depois o Dr. promotor João Alvez
Dias Vilela. Vieram também dous senhores convidar-nos para o baile que
dá domingo o Dr. Jaguaribe,
São três horas, o céu está carregado, ronco de trovoada, e faz calor. O
termômetro (Fahrenheit) está em 80 [graus] e meio; a trovoada continuou
sempre mais forte, e com maior chuva, que só diminuiu pelas ave-marias.
E eu, que tinha de visitar o senador Paula Pessoa, antes de assistir ao
casamento da filha, que terá lugar amanhã, saí assim mesmo chuviscando;
e quando voltei da casa dele, quase oito horas, estava a noite muito escura
e ainda caíam gotas d'água.
Asseverou-me hoje ainda o senador que vira pelo menos uma vez o
serrote chamado Pico em uma de suas fazendas, [que] depois de alguns dias
de chuva ardem em chamas por alguns dias. Disse-me também ontem o
mesmo senador, estando aqui conosco, que [f. 157] os jesuítas ajustavam a
administração de suas fazendas com os vaqueiros, de modo diverso do que
hoje se faz. Entrando por exemplo um vaqueiro para uma fazenda onde
achavam mil cabeças de gado, além do ferro da fazenda, punha-lhes uma
marca, que se chama giz. E no fim, por exemplo, de cinco anos, separando-
se as mil cabeças (preenchendo-se seguramente as faltas com o produto da
fazenda), todo o excedente se repartia igualmente pelo dono e pelo vaqueiro.
Sábado, 12: Amanheceu o dia sem chuva e o termômetro (Fahrenheit)
na sala estava a 75 [graus].
Esta manhá nos ocupamos em escrever para a família e em ofícios
para o governo.
De uma hora a duas caiu copiosa chuva com trovoadas, e vento. O
termômetro, estando antes em 80, desceu a 77 [graus]. Às três horas não

410
chove, mas está o tempo coberto e assim se conserva sempre; mas bastante
quente e úmido.
Estávamos convidados para assistir ao casamento de uma das filhas
do senador Paula Pessoa, às sete horas. A essa hora estávamos vestidos,
fomos para a igreja, e aí sabendo que o costume da terra era ir à casa dos
noivos para os acompanhar, dirigimo-nos para ali, e achamos defronte da
casa do noivo muita gente encasacada, e nos metemos no grupo. Defronte
é a casa do senador, de lá devia sair a noiva, com seus paramentos, e o
acompanhamento de senhores. Ambos os grupos eram precedidos
de rapazes armados de archotes; e quando saiu [f. 158] o préstito era
mais de oito horas. Na igreja havia já alguma gente para a novena, e o
acompanhamento de homens e senhoras ao casamento encheu a igreja.
Acabado o ato, deram-se os parabéns aos noivos, e tudo se dirigia para
a casa do senador, o qual foi comigo de braço. A casa, assobradada, é de
grande frente, onde tem duas grandes salas; os corredores espaçosos, e as
salas interiores também grandes, mas tudo de telha vá, e teto muito alto!
Serviu-se uma bela mesa de mimosos doces pastéis, vinhos etc. Havia
refresco de cerveja. As senhoras encheram a primeira mesa. Acabada essa
refeição todos foram para as salas, onde se conversa até o serviço de chá,
cujas bandejas de doces estavam primorosamente armadas e enfeitadas, de
noivos, torres, pirâmides, cesta, tudo feito com muito gosto [e] elegância.
À noiva não é bonita, mas na companhia das senhoras havia algumas bem
interessantes, e bonitinhas, mas sobretudo vestidas com muito gosto.
Eu me retirei um pouco mais cedo, por estar muito suado. Um dos
filhos do senador tratou-me com mil atenções, e muita amabilidade.
Domingo, 13: Amanheceu o dia coberto, termômetro de Fahrenheit
na sala 75 [graus]. Às dez horas fomos à missa na Matriz, que é um bom
tempo, e a capela-mor elegantemente ornada e dourada. Voltando de lá
fomos visitados pelos senhores major Ângelo José Ribeiro Duarte, João
Tomé da Silva, Gregório Torres de Souza e Vasconcelos, [f. 159] Casimiro,
nosso vizinho chapeleiro, Antonio da Silva Fialho Júnior, tenente-coronel
Saboia e Dr. Jaguaribe.
Três horas ronca trovoada e está o céu muito carregado a sudeste, e
prometendo grande tormenta. Termômetro (Fahrenheit) 81 [graus].

411
Estávamos jantando quando começou uma verdadeira trovoada de
foguetes, que com pequenas alternativas durou seguramente uma hora; e
soubemos que são os chimangos manifestando seu prazer pelo triunfo nas
eleições de Granja! Apesar da carranca do tempo estão as janelas da nossa
rua (quase tudo casas térreas) ornadas de muitas carinhas e caretas.
Hoje tendo aqui várias pessoas daqui da terra, que me vieram visitar,
e conversando-se sobre coisas do Ceará, entre outras disseram que o
inverno no Ceará, digo, neste lugar do Ceará vem sempre vindo do Piauí.
Começam as chuvas lá, e depois vêm pouco a pouco ganhando a serra
Grande, e enfim o sertão; e que, sendo as chuvas de ordinário de manhã
no litoral, aqui são ordinariamente de tarde.
Os cearenses, disse o Sr. Saboia, quando se aproxima o inverno,
estão sempre olhando para o nascente e ficam descangotados, a ver se veem
daquele lado uma nuvem, ou um relâmpago, que anuncia o inverno.
Às quatro [horas] entrou a cair uma chuvinha que durou até à noite,
hora mais hora menos, e bem estiada.
Quando mal esperava-se, saiu de uma casa um grupo de meninos de seis
a oito anos, espertinhos, vinha pela rua saltando, piruetando, [f. 160] rindo, e
vieram chegando-se à nossa casa, com muito disfarce chegaram, e muito a seu
salvo sacudiram algumas laranjinhas de cheiro* no Lagos; voltaram à carga,
e ainda puderam iludir-me, e sacudiram-me uma bem em cheio no peito. O
Lagos, que tinha já provimento, não deixa de vingar-se e sacudiu também
algumas, esparramando o gentil grupinho. Tudo isto com muita galhofa do
povo das janelas, e que durou até quase o anoitecer. Então nós fomos [nos]
preparar para o baile do Dr. Jaguaribe, para onde fomos, depois das sete horas,
e já estava a casa bastante povoada do sexo belo, e macho. À casa é uma sorte
de grande armazém, assobradado, ainda não de todo acabado, da qual [em]
duas salas da frente e duas mais interiores estavam dispostas três para danças
e uma para jogo; mais para dentro a sala dos refrescos, a sala do doce etc. etc.
Havia bastante concorrência, dançou-se bem; comeu-se doce delicado, e bem
acondicionado, bebeu-se cerveja, champanhe e vários vinhos; tomou-se chá,
com elegantes bandejas de doces etc. etc.
Recolhemo-nos depois das onze horas, ficando ainda a função em
ação.

* São cheias de água pura; nem as chamam de cheiro.

412
Hoje pude presenciar o que já me tinha dito o Lagos, isto é, a
familiaridade desenvolta das moças, das quais havia algumas bonitinhas,
e todas vestidas com elegância.
Segunda-feira, 14: A manhã [com] bom tempo, termômetro 76
(graus). Depois do almoço, e de ter recebido a visita do Sr. Alves, vesti-me
para ir ver o rio e a cidade; fazia sol, o dia era bonito mas o calor forte.
Fui até a ribeira e corria por ela observando o rio, que bem que já mais [f.
161] vazio que ontem, está ainda belo. Daí fiz um giro pelas ruas e praças
extremas da cidade, passando pelas principais, até à casa em que está o
Capanema, onde achei os doutores Saboia, médico, Vilela, magistrado, e
outras moças; pouco depois chegou o senador Paula Pessoa, com seus filhos
e genros, para se retratarem em grupo pela fotografia; lá os deixei, e vim
para casa, muito mais suado do que me aconteceria andando, pelo verão,
nas ruas do Rio de Janeiro!
Pude observar hoje a extensão da serra da Meruoca na direção de
norte a sul, que é bastante grande, se se considerar fazendo parte dela a
serra do Rosário. Esta Meruoca é o celeiro desta cidade, e já produz tanto
que se exporta farinha para Pernambuco, e outros lugares. As fábricas de
farinha que vi trabalhando naquela serra são pela maior parte movidas por
uma junta de bois. Ainda não há muito tempo, me diz a gente daqui, que a
serra estava coberta de grandes matas; e era muito mais abundante de águas.
Duas horas está o céu carregado para oeste (donde têm sempre
vindo as trovoadas enquanto aqui estamos); o termômetro (Fahrenheit) 81
[graus].
Três horas escureceu, muito roncos fortes de trovoada, pequena
chuva — o termômetro desce a 79 graus. Quatro horas continua a pequena
chuva; termômetro 78 [graus].
Estando jantando, [quando] chegou-nos uma bandeja com um
grande pão-de-ló e duas compoteiras de doce, que nos manda o senador; e
veio depois outra com um queijo para Manoel.
Às ave-marias vesti-me com tenção de ir à casa do senador; mas
dirigindo-se o Lagos para a igreja dos Inocentes, a ver a novena, fui com
ele; [f. 162] acabada a novena, rezada por senhoras, e cantada no fim com
acompanhamento de órgão, saí de lá já bastante suado, e estando o tempo
carregado, ameaçando chuva, resolvi a voltar para casa. O Lagos, porém,

413
conduziu-me até a casa do Sr. Saboia, que achamos fechada, e daí íamos
para a do Alves, mas encontrando o Capanema, este nos levou para sua
casa, onde nos demoramos algum tempo. À tabatinga com que se caia[vam]
as casas em S. Pedro e Viçosa é, segundo Capanema, verdadeiro caulim,
ou feldspato decomposto. Apareceu depois o Reis e, com ele, conduzindo
lanterna adiante, voltamos para casa, com chuviscos; agora (mais de nove
horas) ainda chovia, e ouve-se trovoada longe.
Terça-feira, 15: Amanhece chovendo, termômetro 74 [graus].
Reparei ontem na casa do senador Paula Pessoa, que já tem as
paredes rachadas: é um defeito de todas as construções do Ceará, poucos
templos têm as paredes sás; algumas ainda não concluídas, logo que
delas assenta o teto, abrem, assim [também em] quase todas as casas. É
isso pelo defeito dos materiais, maus tijolos unidos só com barro, ou com
muito pouco cal (que aqui como no Rio também a fazem masculina), e
pela ignorância dos carpinteiros (carapinas, como aqui chama), que não
travam o madeiramento; de ordinário são duas grandes paredes laterais [f.
163] que vão a uma grande altura no meio, onde recebe a cumeeira, e vão
recebendo para a frente e para o fundo um bom número de terças, que nas
casas grandes são grandes madeiros. Todas estas grandes vigas recebendo o
peso do telhado, carregam sobre as paredes separadamente nas partes de
apoio, donde resulta uma distribuição desigual de pressões, e daí a ruína
dos edifícios; o único templo, talvez, que não tem rachaduras é a Matriz da
capital.
Toda a manhã tem sido coberta, e com chuviscos de vez em quando.
Fomos visitados por três moços: o Dr. Paula Pessoa, filho do senador,
e outro irmão, estudante de Medicina no Rio; e o Sr. Barros, estudante de
Direito em Pernambuco.
Três horas tempo coberto, termômetro 77 [graus].
Quatro horas chuviscos, céu carregado a oeste.
Ão anoitecer vesti-me e saí com o Lagos, estava a noite escura e
caía um fino chuvisco. Fomos à casa da viúva Barros, pagar a visita que
me fez seu filho o estudante de Direito, que o achamos; mas as senhoras,
mãe e filhas, estavam [riscado “na igreja, onde se faziam novena”] fazendo
visitas (as duas moças, que já tive ocasião de ver, são interessantes, e uma
delas é a que se diz que casa com o Dr. Gabaglia). Saindo dali e não

414
havendo gente em casa do senador, onde tencionava ir, nos dirigimos
para a casa do tenente-coronel Saboia, que o achamos na sala, onde
estava já Manoel, e outro Sr. e duas de suas filhas, das quais uma a cujo
lado me sentei; é bem interessante, bem conversada e bem parecida, e
é casada. Chegaram mais várias pessoas, e apareceu [f. 164] mais outra
filha, creio que mais moça. Esteve o Dr. Capanema, o Dr. Saboia, filho,
que é opositor na Escola de Medicina no Rio. Conversou-se, tomou-se
chá, e nos retiramos seria[m] dez horas.
Quarta-feira, 16: A manhã [com] bom tempo, termômetro 76
[graus]. Ocupei-me de manhã a estudar o pau-branco louro. Ao meio-dia
caiu um chuveiro.
Três horas faz sol, termômetro 81 [graus]; pouco depois caiu um
forte chuveiro que continuou com grande força às quatro horas. Nova
chuva copiosa, com fortes trovões. Hoje têm vindo as chuvas da parte do
nordeste. Das cinco horas em diante melhorou o tempo. Esteve-se jogando,
ou sacudindo laranjeiras com as vizinhas defronte, sendo eu porém mero
espectador e às vezes também alvo deles. Fui visitado pelo Sr. Viriato de
Medeiros e ao anoitecer nos vestimos eu e Lagos e fomos para a casa da Sra.
viúva Barros, D. Luísa, onde fomos perfeitamente recebidos. Sala forrada,
bem tracejada. Encheram o sofá a Sra. Barros e suas duas filhas; chegaram
depois mais duas moças, creio que parentas, uma das quais, Maria Florência,
é bem bonitinha. A Sra. Barros, que tem duas filhas moças e dois filhos,
está muito bem conservada, e ainda bonita, bem conversada e amável; suas
filhas são graciosas, desembaraçadas, e de algum espírito. Estava também
presente um de seus filhos, que estuda na Academia de Pernambuco.
Conversamos até quase dez horas, entretendo [f. 165] com espírito o Lagos
a conversação; fomos servidos dum chá delicado, com profusão de doces
variados e bem feitos. Uma das filhas, D. Maria, é a que se diz que está para
casar-se com o Dr. Gabaglia.
Quinta-feira, 17: Amanhece bom dia, termômetro 74 [graus]; à
uma hora caiu um chuveiro, duas horas bom tempo, sol — termômetro
81 [graus]. Durante o resto da tarde, esteve o céu carregado, roncou
trovoada e choveu em vários pontos, mas não aqui. Hoje, dia de anos
do Dr. Capanema, convidou-nos para jantar com ele e estivemos os
membros da Comissão, e o Sr. Bandeira de Melo, moço pernambucano,

415
mas aparentado aqui, e cujo irmão chegou ontem para casar com uma das
filhas da viúva Barros, e que é sua prima.
Depois do jantar viemos para casa, onde entrando dá nossa casa para
as das vizinhas defronte, e vice-versa. Ao anoitecer fomos eu e Lagos fazer a
nossa visita de parabéns ao doutor (pausa) que casou com a filha do senador
Paula Pessoa. Q senador lá estava e mais alguns moços.
A salinha de visita da casa em que moram é pequena mas adornada
com gosto, teto de estuque, tapete de esteira, boa mobília, aparador de
marim etc. etc.
Aí nos demoramos até quase dez horas; não houve chá! Aproveitei
alguma coisa da [f. 166] conversa do senador. Disse ele que o coronel
Manoel Martins era pobre, e que havia um fazendeiro mui rico, cujo nome
me não ocorreu agora, o qual, morrendo sem herdeiros, e sem testamento,
ele com o escrivão Antonio Carlos arranjaram um testamento falso, com o
qual ficou senhor de toda a riqueza desse homem. Disse mais que Manoel
Ferreira Ferro, 0 terror do Ceará em seu tempo, era avô dos Mourões, e
que sua viúva ainda vive, assim como ainda vive um caboclo que foi seu
vaqueiro, e que ambos têm hoje mais de 100 anos; o caboclo parece que
tem 117, e ainda está vigoroso.
Com a viúva do Ferro, teve o senador ocasião de falar há alguns
anos, a qual teve esta conversa com ele: sua mulher, disse ele, é bonita, mas
nem é a sombra de sua sogra; esta, quando eu a via, menina ou moça, na
igreja, comparando-a com Nossa Senhora da Conceição, não sabia qual
delas era mais bonita. Esta moça foi roubada, ou quiseram-na roubar (não
me lembro do que o senador disse) para a casarem com um Feitosa, o pai
a escondeu embaixo de umas tábuas do soalho. Nessa diligência houve
algumas mortes, e entrou nela o valente e facinoroso Ferro.
[£. 167]
Disse-nos mais o senador, por notícias que trouxe de Pernambuco o
Dr. Figueira de Melo, que os Mourões foram ali tumultuosos, houve uma
morte, os soldados da cavalaria foram maltratados, com gritos e pedradas; e
um despertar do povo requereu ao governo que o mandasse retirar, porque
o povo estava disposto a se bater, ao que cedeu o presidente.
Que também corria em Pernambuco que na certa o governo
abandonara a eleição do município neutro etc. etc.

416
Sexta-feira, 18: Amanheceu bom dia, termômetro 76 [graus] mas
durante a manhã, o céu sempre com nuvens cúmulos, e cirro. Estratos
davam de vez em quando pequenas chuvas. Saí e visitei o padre Fialho e o
Sr. Antonio da Silva Fialho Júnior; o nosso vizinho chapeleiro, Casimiro; e
o Dr. juiz municipal, ou de Direito.
À uma hora deu um grande chuveiro.
Às duas horas ronca trovoada, e o céu se anuvia mais, chove em
diferentes lugares, ou parece chover.
Às três horas continua a trovoada; chuvas parciais, termômetro 82
[graus]; a trovoada continua a roncar até cinco horas, mas aqui não choveu
depois de uma hora (conta[-se] pelos jornais que as chuvas são gerais na
província, e que principiaram em dezembro). À noite saí e fui visitar o Sr. E
Alves, levei em companhia o Lucas, depois apareceu o Lagos. Conversamos
por algum tempo, o Alves é um grande sequista; e estando na sala suas três
filhas, apenas pude dirigir a uma ou a outra [f. 168] uma palavra; uma delas,
a mais velha, não é feia; as outras duas, baixinhas, trigueiras, conversadas,
mas não bonitas. O Lagos é quem se divertia com elas, e enquanto eu estava
amarrado à conversa do pai; desta conversa, porém, sempre colhi alguma
coisa, a saber:
A serra do Rosário faz corpo com a da Meruoca, mas é separada por
uma grande quebrada, por onde se passa dum lado a outro, com apenas uma
porção mais alta, cuja chapada teria légua e meia, e toda a passagem mais de
quatro léguas; nos títulos antigos estas duas serras se compreendem debaixo
do nome de Meruoca. A serra do Rosário é mais seca, muito menor que
a da Meruoca, sem grande chapada; mas muito própria para algodão, cuja
cultura tem desandado por causa do mofo; e para mandioca cuja farinha é
muito superior e mais estimada que a da Meruoca; mas a terra não conserva
a mandioca por mais de ano e meio; o que não acontece na Meruoca, onde
ela dura na terra muito tempo.
Na Meruoca, antes da seca de 1825, em que morreu ali muita
gente de fome — o que aconteceu também cá por Sobral — , só se tratava
da cultura da cana, e havia então nesse lugar 18 engenhocas, que faziam
principalmente rapaduras.
Ensinadas pelo desastre da seca, [as pessoas] mudaram de cultura, a
cana foi quase abandonada, havendo hoje ali poucas engenhocas, e se deram

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à cultura da mandioca, que hoje farta estes sertões e se exportam muitos mil
alqueires de farinha.
[£. 169]
Sábado, 19: Amanhece bom tempo, termômetro 75 [graus].
Depois do almoço saí a fazer minhas visitas e despedidas, e visitei
os Srs. Dr. João Alves Dias Vilela, o major Ângelo Júnior Ribeiro Duarte,
João Tomé da Silva, Gregório Torres de Souza e Vasconcelos, Dr. Jaguaribe,
Viriato de Medeiros, o velho [e] Miguel do Monte.
O Sr. Viriato de Medeiros, conversando sobre a salubridade de
Sobral, disse-me que este lugar foi em outros tempos mui salubre; mas que
depois que foi acometido pela febre amarela ficou sujeito a muitas moléstias,
de sorte que hoje é já um lugar pouco saudável; principalmente a parte
mais baixa da cidade, que é mais úmida. Também o Sr. Miguel do Monte
mostrou-me a sua casa que, em 1839 e em [18]42 lhe chegou água do rio
até o peitoril da janela; e uma cuja que fica no canto da mesma rua, na
praça (pausa) sendo então casa térrea teve água dentro e arruinou-se; hoje
é uma casa de sobrado e a calçada dela, como de todo esse lado da praça,
é muito alta, e sobe-se a ela por três ou quatro degraus. Devia ser uma
enchente medonha, ficando toda a vargem à beira do rio debaixo d'água.
Três horas da tarde faz sol, e calor — termômetro 83 [graus], não há
indício de trovoada; brinquedo de entrudo.
Esteve aqui um dos filhos do senador, chegou o Capanema, e saí com
ele e o Lagos. Íamos à casa do senador para despedir-me dele, mas achamos
a casa com as salas escuras; fomos daí visitar o Dr. Saboia (médico) que está
incomodado; [f. 170] feita a visita, e tendo conversado um pouco, na sala,
com a irmá letrada, saímos e fomos para a casa do Sr. (pausa) o padrasto do
célebre Mundola. D. Raimunda, a moça mais desembaraçada, requebrada
e garrida que aqui vimos, e que é por isso muito festejada, achamo-la com
uma irmã à janela, e por fora na calçada uma roda de homens, nesta nos
assentamos, e gozamos por algum tempo da conversa das duas; a irmã D.
Maria, que é a mais bonita delas, e talvez a menos requebrada, estava em
outra casa. O Capanema, que é apaixonado dela, safou-se logo, pretextando
que estava com frio; a noite era de luar e começou a correr um vento que
nos resfriava estando nós suados — mas a verdadeira causa era a ausência da

418
moça. Tendo-nos demorado um pouco, nos despedimos eu e o Lagos, e
quando íamos para casa vimos na porta do Sr. Alves um grupo de homens
e senhoras, e achamos que era conveniente lá chegarmos. Eram o Alves,
o Numa (competidor do Capanema) e o Lucas (também opositor dele e
um dos filhos do Alves), é que ambos faziam as suas cortes a seus ídolos;
e as moças eram as três filhas do Sr. Alves, a D. Maria, o que nos faltava
na outra casa, [e] a irmã do Mundola; detivemo-nos aí um pouco, mas eu
aborrecido, porque logo se me pregou no cachaço o séquito do Alves, enim
[nos] retiramos.
Domingo, 20: A manhã [com] bom tempo, termômetro 78 [graus].
Fomos à missa eu e Lagos na Matriz; saindo de lá fomos visitar as
duas freiras, que moram na Igreja do Menino Deus, irmãs e velhas de
80 ou mais anos. Mostraram-nos o seu pobre jardim, e lastimaram-se
de sua pobreza... dali fomos visitar o estudante de Direito, o Sr. Trajano
(Viriato de Medeiros?) que é [f. 171] casado com uma senhora [riscado
“pernambucana”] sobralense Saboia, moça bem parecida, e agradável;
havia mais em casa umas três senhoras de visita e algumas moças, daí fui
visitar o padre coadjutor Vicente Jorge de Sousa e enfim fui me despedir
do senador e seus filhos, que achei todos em casa, e muitas mais pessoas.
Em casa achei o Dr. Bandeira de Melo, professor substituto da Escola
de Direito de Pernambuco e que vem para casar com uma das filhas da
Sra. D. Luiza Barros; fui também visitado pelo Sr. Almeida, aqui nosso
vizinho.
O dia tem estado muito quente, à uma hora da tarde ronca trovoada,
o céu está carregado — termômetro 85 [graus] e meio.
Três horas coberto, muito quente, termômeiro 85 [graus].
São quatro horas, ferve o entrudo aqui pela rua, por ora, entre os
meninos. À trovoada ameaça muito e seguramente deu em outras partes;
à noite o céu esteve estrelado, fazia luar, mas fuzilando a oeste. Jogou-
se entrudo, e de noite fui com o Lagos despedir-me da excelente família
Barros; lá tomamos chá, e estivemos até dez horas, estava também o Dr.
Bandeira de Melo.
Segunda-feira, 21: Amanhece bom tempo — termômetro 78 [graus].
Estou me aprontando para partir.

419
Despedi-me de algumas pessoas; almoçamos, e logo depois
chegoram à nossa casa várias pessoas das principais desta cidade, para [n]os
acompanharem, ou imporem, até o embarque. Eram os senhores [f. 172)
senador Paula Pessoa e seus três filhos, e mais o Dr. Leocádio, seu filho
bastardo; era o Sr. Barros, estudante de Direito; os dois Bandeira de Melo, o
doutor e o estudante; e mais dois moços, cujos nomes ignoro; o Dr. Lagos, o
capitão Reis, é o Numa Pompílio. Viemos todos a pé até a beira do rio. Nós
éramos eu, Manoel e o Dr. Capanema, que vai até o Pajé; aí nos despedimos
pela última vez, não sem certa emoção e saudade, e muito penhorados por
tanto favor. E embarcados na canoa, fizemos a nossa cortesia e partimos;
eles também se retiraram. Chegados à outra margem do rio, que já está bem
vazia, dando vau em quase toda a largura, que calculamos ser de 100 braças,
no lugar da passagem; chegados aí, digo, onde já estavam os nossos cavalos
selados, montamos e nos pusemos em viagem, dando um último olhar às
terras e tetos de Sobral, eram dez horas menos um quarto; o sol estava
ardente, mas o céu nos prometia propícia viagem. Andamos por um terreno
apenas acidentado, e todo coberto de vegetação vestida e alegre, pequenos
lameiros, e alguns regatos cortados; pouco além de meia viagem caímos [n]
um pequeno chuveiro; e víamos para o nascente grandes cartelas de nuvens
cúmulos, que nos indicava trovoada.
Chegamos à fazenda denominada Sabonete faltando um quarto
para meio-dia; isto é, havíamos gasto [f. 173] na viagem duas horas justas,
andando devagar; e portanto damos ao caminho duas léguas e um quarto,
quando a gente do país lhe dá três léguas. À casa da proprietária situada
num alto, com grande campina na frente, cercada de árvores copadas e
algumas carnaúbas, tem em frente uma varanda comprida, alta e aberta.
Aí achamos uma senhora idosa descaroçando algodão, vestida de saia, e em
manga de camisa, pedimos-lhe pousada, e nos recebeu da maneira a mais
franca e hospitaleira; [porém] incomodando-se, e ralhando muito contra
uma escrava que hávia fechado a porta de um quarto exterior, onde ela nos
queria hospedar. Chegada a chave nos foi abrir a saleta, que é espaçosa;
armou-me logo uma rede limpa, mandou para ali um pote d'água fresca;
havia na sala uma mesa, banco, cadeiras, bofete com uma manga de vidro,
jogo de gamão e de damas; aí nos instalamos perfeitamente bem. A dona
desta fazenda é a Sra. D. Irene, que mora na cidade, e a mulher que aqui

420
achamos é uma pobre viúva, que aqui mora. Chegamos a este lugar com sol
muito quente, e muito enfadados.
Seria uma [hora] obra e meia, quando o tempo escureceu, a cair
uma forte trovoada com bastante chuva, trovões muito fortes; esta trovoada
passou sobre nós e foi cair sobre Sobral, com força, segundo nos parecia.
Logo que passou a tormenta a temperatura desceu, e sentíamos fresco,
como não havíamos sentido desde que descemos de Viçosa.
No Sobral o calor era sempre, incômodo mesmo durante as chuvas;
e eu suava de contínuo, e muito. [f. 174]
Eram cinco horas e meia quando nova trovoada se mostrou do lado
do lés-nordeste, por detrás da serra denominada Barriga, pareceu dar aí
com muita força, e com grandes estrondos; mas aqui não chegou. Aqui
achamos uns cocos formados de uma cabaça de forma particular — chamada
cabaça de coco, cuja forma é esta

(Esta manhã disse a mocinha filha do Casimiro, chapeleiro, ao Lagos:


ontem à noite andei-o pastorando (procurando) para lhe sacudir algumas
laranjinhas, o senhor não estava. O Alves conversando comigo empregou a
palavra — boiote — para significar um boi pequeno. Uma frase muito usada
aqui no Sobral é: fulano tem serviço, isto é, tem que fazer, tem para peras,
em qualquer negócio difícil).
Terça-feira, 22: Amanheceu bom tempo, 72 [graus]. Às sete horas
da manhã, depois de tomarmos uma xícara de cafe simples, partimos eu,
Manoel, e Capanema, andamos primeiro por vargens úmidas, lamosas,
de barro denegrido, cuja vegetação consistia principalmente em juremas,
paus-brancos e carnaúbas, atravessamos os leitos de alguns rios, (riachos)
que estão inteiramente secos.
Depois havendo passado além do Barriga marchamos já por
lugares montuosos e de pedregulhos, onde já vimos mais sabids, pereiros e

44
catingueiras. Chegamos à fazenda denominada Urubu às dez horas menos
vinte minutos, tendo gasto pois duas horas e quarenta minutos, andando
devagar; [an)damos pois quando muito três léguas; a gente do país faz
quatro. [f. 175]
Esta fazenda pertence ao Sr. (pausa) Frota, que mora no Sobral, o seu
vaqueiro é o Sr. Jaão Francisco Pimentel.
Quando chegamos à casa da fazenda, quem nos recebeu foram dois
meninos, um macho, talvez de quatro anos, estava nu, e nos disse quando
perguntamos por seu pai: “Meu pai anda longe”, menino inteligente, e
vivo; apareceu-nos logo depois uma linda menina, de talvez dez anos, que
nos fez apear e ofereceu-nos a casa: enfim apareceu a mãe, e quando já
havia chegado o nosso comboio, e estávamos já em nossas redes, chegou
o dono da casa, vestido de vaqueiro, e conduzia algumas vacas. Tratou-
nos muito bem, deram-nos coalhada etc. etc. Estamos entre as serras do
Barriga e do Pajé, que fica-nos quase norte e sul, e estamos mais perto do
Barriga, pouco mais de légua, e do Pajé talvez três léguas.
À uma hora, o céu está carregado em vários pontos; ronca trovoada
ao norte, chove a leste. Informa-nos o vaqueiro da fazenda que por aqui tem
chovido pouco; e mesmo ontem não deu trovoada aqui, e choveu pouco. As
chuvas e trovoadas correm de leste a oeste encostadas à Meruoca, e por fora
do Barriga. Às três horas chove de leste a oeste, correndo sobre o Barriga.
Às quatro horas chove e troveja a sudoeste.
Jantamos às cinco horas; e depois o céu se foi limpando, contrariando
muito o nosso vaqueiro que está suspirando por chuva, que lhe encha
os poços e cacimbas para o gado, que vai beber longe, e se tem por isso
esparramado. Para nossa ceia, que foi de café com leite, [f. 176] nos
apresentou o dono da casa um prato de coalhada para cada um de nós; e ele
tomou café conosco.
Em conversa disse-nos que, nas fazendas do senador Paula Pessoa,
para um queijo de meia arroba é necessário leite de 60 vacas, no dia, do
princípio do inverno até abril; e daí em diante bastava o de 50 ou 40. Diz
ele que não conhecem aqui o berne e que a varejeira é muito abundante
no princípio do inverno, e faz muito mal aos bezerros, assim como os
morcegos, que matam muitos deles. Há aqui duas qualidades de carrapatos,
o miúdo e o grande, este último atormenta mais o gado; e, assevera, que o

422
boi inteiro estando coberto de carrapatos, sendo capado fica limpo deles,
[mas] que para as vacas não conhecem remédio.
Quarta-feira, 23: Amanheceu o dia coberto (termômetro Reauu. [2]
18 [graus]), tomamos uma xícara de café simples e partimos de Urubu às seis
horas e meia; às oito horas passamos o rio Aracati Mirim [Aracatimirim],
que está seco; passado o rio o Dr. Capanema tomou o caminho do Pajé, e
nós seguimos para S. Antônio, onde chegamos às nove horas e meia, tendo
gastado três horas de caminho, a que nos dá quatro léguas, conforme a
avaliação da gente do país.
Fizemos excelente viagem, tempo sempre coberto, às vezes um
chuvisco; andando sempre por tabuleiros cobertos, rasos, enxutos, tapetado
de relva que brota com força, e por baixo de paus-brancos, sabiás, juremas,
pereiros, catingueiras etc. ora mais bastos, ora mais dispersos, e tudo
revestido de folhagem verde.
Disse nos o nosso hóspede Pimentel que o mata-pasto não é muito
antigo, que vai invadindo sempre os campos e que quando é muito embastido
[embastado] mata o pasto, qualquer que seja; [f. 177] outra planta, a que
chamam aqui hamborral [bamburral] (bamborral [bamburral]-de-cheiro,
alfazema-brava etc. em outro lugar) e que é uma espécie de Hyptos faz
também muito mal aos pastos; o ervanço é uma teleranlhera [?] ou outra
amaratheia que serve também de pasto ao gado. É crença aqui que o gado
ou vacas nutridas com a rama do mororô [mororó] dá muito bom leite para
queijo; o feijão-bravo também faz bom leite, e provavelmente a canafistula
— a vaca nutrida com rama de juazeiro dá um leite que não é saboroso).

S. Antônio
Quando chegamos chovia a nordeste, e com a mudança de vento
chegou a chuva também aqui; mas foi de meio-dia a uma hora que caiu
aqui uma forte pancada, entremeado, no fim, de roncos de trovoada — esta
veio de leste.
Chegando à povoação, que está assentada numa meia laranja,
fomos ao fundo duma casa onde se achavam duas mulheres, para que nos
indicassem uma casa para rancho; uma delas, cujo marido anda fora, e tem
a sua casa fechada, porque está em casa da vizinha onde a achamos, nos deu
a sua chave para arrancharmo-nos nela. É casa de bom tamanho, coberta

423
de telha e com a sala ladrilhada; é nova, e não acabada, paredes de tijolos
nuas; telhado mal feito, deixando chover dentro etc. etc. No entanto estamos
mui bem acomodados. Estive na casa primeira algum tempo, e apareceram
logo várias mulheres e meninos com quem estivemos conversando. Logo que
fomos para casa, andando o Barreto solicitando ovos, sem os achar, levaram-
nos logo alguns de presente. Perguntando se não havia na terra venda sólida,
respondeu uma rapariga: “Tem, mas só há nele rapadura, cachaça, e fumo”.
[£. 178]
À povoação é pequena, as casas são dispersas* pelo campo, e mais
condensadas junto à igreja. Esta foi feita com grande plano, mas só tem o
corpo da igreja coberto, a capela-mor não tem ainda madeiramento, tem
só rebocadas as cimalhas e o frontão triangular de frente, o resto está em
tijolo; as casas são cobertas de telha, algumas caiadas.* O capelão foi doente
para [em] Uruburetama o tratarem; o subdelegado mora no seu sítio, assim
como o inspetor do quarteirão; aqui está somente o escrivão, que agora
também está fora. Três horas da [tarde] trovoada, que parece forte ao sul; a
leste estão nuvens, que ameaçam, termômetro na sala 21 [graus].
Às quatro horas chove de novo, e nós a apanhamos em parte, porque
nos tínhamos vestido para ver a povoação, e visitar alguns doentes; estivemos
em casa do Sr. José Camilo de Negreiros, [riscado “do escrivão”] que o
achamos de camisa solta, e pés descalços. Sua casa é pequenina, tem uma só
porta, uma saleta, e outra interior, onde estava a mulher e filhinhos; destes
era uma filhinha de talvez três anos, carinha bonitinha, branca, e nua! Na
sala havia umas prateleiras e nelas algumas garrafas e outros gêneros de
pequenino negócio. Em menos dum quarto corremos toda a povoação.
Mostraram-nos uma casa de palha meio arruinada, que foi a primeira deste
lugar, e julgam ter mais de 30 anos, pertenceu ao proprietário da fazenda
de S. Antônio, do qual tanto havia um nichozinho feito por Antonio Alves
Cavalcante o qual se arruinou; e há quatro anos mais ou menos que se
começou a nova igreja, que ainda se está fazendo.
[f. 179]
De noite mandamos convidar o Sr. José Camilo de Negreiros, que nos
trouxe mais o St. Antonio da Mota Pereira, e o Sr. Luiz Rodrigues Gonzaga,

* Haja uns quatro ou cinco pequeninos em fileira; e estão hoje tornando-as mais regulares, e formando
quadro
* filegível)

424
atual sacristão, para obtermos algumas notícias sobre antiguidades deste
lugar; e o que obtivemos vai escrito em separado. As fazendas de S. João e
João Pereira, que foram dos Cavalcantes, são hoje possuídas pelos herdeiros
deles.
Quinta-feira, 24: Amanheceu bom tempo, nevoeiro baixo e
termômetro na sala 19 [graus]; tomada uma xícara de café simples,
despedimo-nos dos nossos conhecidos dum dia, e partimos eram sete horas;
andamos por tabuleiros cobertos como os de ontem, e às dez horas e um
quarto chegamos à fazenda e casa em que nos arranchamos quando subimos,
no Juá, riacho afluente do Aracaiaçu [Aracatiaçu], o qual passamos quatro
vezes, tendo água corrente de um dos seus afluentes. Chegamos à primeira
volta do Aracati, entre as fazendas Vargem Grande e Boa Vista, às oito horas
e 20 minutos, e a quarta passagem foi às nove horas e meia, passamos ainda
outra volta, mas sem o atravessarmos; enfim passamos ainda uma vez o leito
seco do Aracati, acima do afluente que lhe dá água atualmente.
Em Juá, pousamos em casa do Sr. Francisco José Pinto, já nosso
conhecido, e fomos recebidos excelentemente por sua senhora, ele chegou
depois. Às três horas o termômetro na sala estava em 23 [graus] e meio, o
céu carregado em vários pontos, e chove ao sul. Às quatro horas chove ao
sul; e uma cortina [f. 180] de nuvens denegridas corre de leste a oeste, e dá
chuva em vários lugares. Às cinco horas chove de leste a norte; a nordeste está
o céu denegrido, ronca trovoada, e chove a oeste e ao sul. Aqui, chovendo,
ou tendo chovido tudo em roda, apenas caíra chuvisquinhos.
Quando víamos que já não havia perigo de apanhar-nos [a] chuva,
saí eu e Manoel, fomos à vargem ver o açude, e daí fomos indo até uma casa
vizinha, onde estivemos vendo prenderem-se bezerros etc. Voltando para
casa, era noite, e nos puseram o jantar.
Nesta casa, vendo sobre a porta de dentro uma sorte de cabide com
prateleira, que já tenho visto em muitas casas do sertão, sem que soubesse
bem para o que servia, aqui soube, de Manoel, que servia para se pôr uma
sorte de reperteiro [reposteiro] que era o confessionário da família, quando
os padres ou vigários andavam em desobriga; ficava o padre de fora, e as
mulheres por dentro para se confessarem.
Conversando com o Sr. Pinto soube que a marca do gado era com
o ferro (marca da fazenda), com o carimbo (marca da freguesia) e com giz

425
(ferro simples com que imitam todas as marcas, ou lhe acrescenta alguma
diferença). Disse-nos mais que o filho da vaca de um a dois anos é bezerro;
de dois a três, novilhote; e de quatro, boi de ano; de cinco boi de dois anos etc.
Nós, eu, Manoel e o Sr. Pinto, deitados em redes na sala, e a Sra.
Rosa, mulher do Sr. Pinto, deitada na sua rede junto à porta, e da parte de
dentro, conversávamos, sendo ela talvez a que mais falava. Menina simples
do sertão, franzina, mas graciosa, talvez não tenha ainda 20 anos, tem já três
filhos, um de mama e duas meninas lindas como serafins.
[f. 181]
Sexta-feira, 25: Amanheceu o dia bastante coberto, e o termômetro na
sala estava em 20 [graus] e meio. Tomado o nosso café montamos a cavalo, e
partimos seriam sete horas. Às oito horas e meia entramos nas cabeceiras do
rio do Livramento, afluente do Castoré, e até às oito [horas] e 20 o passamos,
com água corrente seis vezes caminhando de oeste a leste. Às dez [horas] e
20 minutos chegamos à fazenda da Boa Vista do Padre; tendo passado várias
outras fazendas da ribeira do Juá de [borrado] que é povoada como a do
Aracati. Hoje caminhamos também por tabuleiros cobertos, de muito bela
pastagem mas o terreno mais acidentado, e entremeado de morros e serras,
o sol quase semicoberto, permitiu-nos excelente viagem. Quando chegamos
à Boa Vista fomos recebidos pela senhora mulher do vaqueiro da fazenda,
moça filha da serra da Uruburetama, clara, polida, de belo olho, simples e
simpática. O marido é o Sr. Jeremias Rodrigues Barbosa, moço, que já nos
tinha visto em S. Francisco quando subíamos. O dono da fazenda é o padre
Francisco Rodrigues Barbosa, de quem o Sr. Jeremias é filho, e acha-se por
doente em S. Francisco; a mulher do Sr. Jeremias chama-se Maria.
Às três horas estando o termômetro em 23 [graus], o céu se achava
muito carregado de grupos de nuvens densas, denegridas, formada de cúmulos,
estratos e nimbos; e chovia em redor chuveiros parciais. Às quatro horas chovia
bastante a leste e oeste. Às cinco [horas] grande escuro, trovoada forte, e chuva
à noite e noroeste; às seis horas corre aqui uma pequena chuva, que dura ainda,
e mais forte (são mais de oito horas) e ainda se ouvem roncos de trovoada.
Comprei aqui a uma mulher parda, vizinha, 12 terças [f. 182] e meia
de milho a pataca; a terça, que tem quatro tigelas. Oito terças fazem uma
quarta, e uma terça é uma ração de cavalo.

426
Disse-nos o Sr. Jeremias [que] o filho da vaca de um ano é bezerro,
de dois garrote, de três novilhote e de quatro boi dum ano. O tempo de
ferrar os bezerros é em maio, antes da solta; o preço dum bezerro varia de
seis a oito mil-réis.
Esta fazenda com razão se chama Boa Vista; está situada sobre uma
larga meia laranja e no meio do descampado, que agora está dum belo
verde. Tem algumas outras casas dispersas, com seus cercados ou currais,
que são de outros fazendeiros.
O rio Castoré passa por baixo da casa; mas está ainda seco, e nem
ainda correu este ano, bem que para baixo já tem dado nado. Na baixa
junto ao rio tem o Sr. Jeremias, aproveitando uma pequena nascente, feito
um açude, que já está sangrando; é de pequenas proporções, mas ele o via
sempre aumentando. Este sítio [apagado]
Toda a noite choveu uma chuva fina.
Sábado, 26: Amanheceu o dia coberto e chuvoso, termômetro 20
[graus].
Tomamos uma xícara de café com leite; despedimo-nos desta boa
gente, tendo feito um presente à senhora duma tesourinha à sua escolha, e
partimos havia [de] ser sete horas. Tendo havido alguma perda de tempo
em erradas, e andado devagar chegamos à Barbada quase às dez horas;
isto é, tivemos verdadeiro tempo de viagem menos de três horas. São pois
da Boa Vista à Barbada quando muito três léguas; a gente do país faz
serem quatro léguas; o tempo nos foi [f. 183] sempre favorável, porque a
chuvinha cessou logo, e foi o tempo sempre coberto, exceto uma meia légua
antes de chegarmos, em que apareceu o sol ardente. O caminho como o
de ontem [com] tabuleiros cobertos, ou caatingas, mas mais encharcado; e
atravessamos alguns riachos tributários do Curu, que todos corriam mais
ou menos.
O proprietário desta fazenda (Barbada) é o Sr. Pedro Barroso Valente;
sua mulher, a Sra. Francisca de Tal Barroso, que foi quem nos recebeu, é mui
obsequiosa, afável, conversadeira; tem vários filhos, mas está muito bem
disposta. O Sr. Valente é também muito tratável, conversador e noticioso.
Comprou esta fazenda há alguns anos mas está arrependido, diz ele porque
lhe morre muito gado, de comer barro! É a primeira vez que ouço isto.
Não só o gado vacum, mas cabras e carneiros comem também barro, e o

427
resultado é ficarem anêmicos ou opilados. Não emagrecem, diz ele; isto
é, tornam-sé inchados, ou hidrópicos; ficam tristes, bigueiros, com olhos
inchados, preguiçosos, trôpegos, e o sangue reduz-se a água. Os garrotes
que comem a terra morrem todos. As vacas, em se mudando de pasto,
por exemplo mandando-as para a ribeira do Aracati, restabelecem-se; se se
cerca o barreiro onde está costumado a comer vão logo procurar outro. Os
animais (cavalos etc.) não comem terras, e dão-se muito bem na fazenda.
Todo o dia não choveu; mas pelos arredores, principalmente
no quadrante de norte a nascente, em cujo espaço se compreende a
Uruburetama [f. 184] cujo frade (de S. Francisco) se avista daqui, deu uma
forte trovoada, parecendo chover muito desde as três horas até às cinco da
tarde; deram outros chuveiros para parte do nascente. Ao anoitecer, o céu
se tornou carregado e deu aqui um chuvisco, que durou menos duma hora.
Às duas horas desci a grota no meio do campo da fazenda, por onde corre
um pequeno riacho chamado da Barbada, por um leito de pedra gneiss,
formando cachoeirinha para tomar um banho; mas o sol estava muito
quente e não havendo abrigo, voltei, deixando para de tarde; com efeito
seriam cinco horas, estando o sol coberto fui a ele e tomei um meio banho;
a água estava morna, e as pedras mui quentes.
Fomos hoje, como o temos sido por toda a parte neste tempo, e
no sertão, atormentados pelas moscas, que são uma verdadeira praga;
devido principalmente ao grande desasseio das fazendas. Os currais são
verdadeiros lamaçais (lama quase só de bosta) onde os vaqueiros de manhã
cedo, às vezes com chuva, tiram leite, metidos na lama até as pernas. É
nessa lama que dorme o gado! O curral dos bezerros não é mais asseado!
A casa dos proprietários não peca por asseados! Os calangros andam pelas
paredes como as nossas lagartixas, que aqui não são muito comuns, ao
menos não tinha visto muitas. Formigas nas casas solapando-as são em
quantidade, morcegos muitos, muriçocas poucas, baratas muitas.
[£. 185]
Domingo, 27: Tendo tomado uma xícara de café com leite, e
despedidos dos nossos hóspedes, partimos às sete horas com bom tempo.
Às nove horas e um quarto passamos o riacho das Pedras, que corria bem;
fomos acima à casa para [nos] informarmos do caminho; apareceu-me
um moço, e dentro, na sala, vimos duas moças; todos três descorados e

428
de aspecto adoentado; já em Boa Vista, a mulher do Sr. Pinto nos pareceu
pálida demais para uma habitante do sertão. Enfim às onze horas e um
quarto chegamos à Feijão, avistando o Curu. Andamos hoje por terrenos
mais montuosos que rasos; mais de caatingas que de tabuleiros, muito
encharcados, e com todos os córregos, riachos e rios correndo; fazia sol, e
quente.
Estão os paus-brancos muitos florados, os sabiás começam a florescer,
assim como as catingueiras.
A casa do vaqueiro desta fazenda (Feijão) [é] pobre, alvergue, de
telha, com latada em frente; está sobre uma pequena altura, sobranceira
ao rio Curu, que corre em baixo outra; [riscado “2”] morros rasos, e em
campos, havendo em frente desta casa a beira do rio, sobre outra elevação
[havia] algumas outras casas de vaqueiros. Logo que chegamos, o Manoel
primeiro, nos dirigimos para o rio, que está com bastante água e corre
majestoso, tendo aqui talvez 20 braças de largo; ou um terço da largura
do Acaracu [Acaraú] no Sobral. Estavam alguns homens à beira do rio, e
dois nus dentro, folgando; o rio dá vau para gente a pé, e talvez muito para
cavaleiro, mas o fundo é desigual, e em lugares de areia mui fofa. Assim
um moço, o Dr. João Filipe, que vinha de Sobral, adiante de nós, passou
nos ombros de um deles; e estando do outro lado do rio, e ia a cavalo,
saudou-nos de lá, disse-nos quem era [borrado] que não [f. 186] [borrado]
dizendo-nos que passássemos com confiança, que era homem de força,
aquele que estava caçando; eu, porém, esperava pelo comboio, e vendo o
dia belo, não contando com chuva, entendi que podia esperar até amanhã
para o passar com menos água.
Viemos pois para a casa onde não tardou em chegar o comboio.
Depois de almoçarmos descemos ainda ao rio para o contemplar; então
chegava um sujeito que já o tínhamos visto em Rio Formoso, em Pacatuba;
trazia uma carga, que um homem que ali estava se lavando pousou-a na
cabeça e ele meteu-se a cavalo pelo rio, e pode-o passar, tendo agora até
quase o assento do selim [riscado “2”] mas sem molhar as pernas, que as
levantou. Ao passar dizia ele que o rio estava tomando água; mas eu, pelo
contrário, averiguei que ele descia. À beira do rio e do nosso lado estão
duas grandes oiticicas, de grossos troncos, e com as raízes já quase de todo

429
descobertas; há mais um pé de uma árvore que chamam ingá-bravo, e que é
o dos nossos guara-limos. Colhemos flor e fruta antiga de que fizemos um
ligeiro esboço.
Quando voltamos do rio, roncava já trovoada e chovia ao nascente;
o céu mostrava-se já bem anuviado de grupos de cúmulos e nimbos; chovia
em algumas partes mais, e o sol era muito quente. Eram talvez três horas e o
termômetro estava em 23 [graus] e meio, a tormenta marchou de nascente
para nós, e das cinco às seis horas caiu grossa chuva (chuvão, dizem os daqui)
intermeada de grandes trovões, e no meio ou já no fim da tormenta chegou
uma pobre mulher idosa, a cavalo, acompanhada dum rapazito [e] duma
rapariga, ambos a pé, literalmente ensopada, [entrelinha ilegível) e pedindo
agasalho, que lhe foi concedido, não sem galhofa dalguns maganões, que
estavam conosco; um dos quais temendo que o rio enchendo o privasse de
ir para casa, que é do outro [f. 187] lado do rio, saiu no meio da chuva,
e atravessou O rio, não sem algum cuidado dos que ficaram, que ansiosos
estendiam os olhos para o ver passar o rio, o que ele fez sem perigo.
O Curu já deu este ano uma enchente, como igual não têm visto
muitos moradores, há muitos anos. O inverno já tem causado males,
chegou muito antes que esperavam, de sorte que os roçados estavam quase
todos por queimar; e as chuvas continuadas, impedindo esse trabalho, não
se tem podido fazer a tempo a plantação de legumes. Estão já temendo
que se ele continuar assim pelo mês de fevereiro haverá grande prejuízo na
criação, nos mandiocais, etc. etc. A mulher do vaqueiro da fazenda tem uns
seis filhos, dois rapazes (muito malcriados) e quatro meninas (uma delas,
Cosma, nasceu gêmea com o diabrete, Damião); a mais velha, Francisca, vai
fazer no fim do inverno dez anos (costuma o povo do Ceará marcar o tempo
pela estação seca e invernosa; a mulher do Sr. (pausa) do Juá quando nos viu
de volta disse-nos: “Os senhores foram no seco, e vieram no verde” [riscado
“molhado”1). Todas estas crianças são lindas e cheias de saúde, uma delas,
Maria, de dois anos, é uma verdadeira alemã, clara rosada, de cabelos mui
loiros, todas de uma tez um pouco requeimada, coradas, belos olhos, e bons
dentes; são verdadeiros sertanejos. Foram [dados] presentes às meninas e
mulheres da casa de tesourinhas e dedais, com que ficaram contentes. A
Mariazinha me ofereceu, trazida pela mão, um pires com quatro ovos.

430
A chuva desta tarde nos contrariou muito, e talvez não possamos
amanhã passar o rio, se nas suas cabeceiras choveu como aqui. Foi bom
logro, bem me dizia Manoel que seria prudente ficarmos ali.
[f. 188]
Foi servido o nosso jantar às oito horas e oferecendo-o aos que se
achavam presentes na sala, o sujeito de Pacatuba não só não cerimoniou,
mas pediu-nos licença para chamar o filho que já dormia — e correu como
um gaudério. Os donos da casa mandaram-nos tigelas de coalhada, que
eu não comi mas o meu amigo apoderou-se duma tigela, ajuntou nata,
despejou farinha e açúcar, e fez uma tigela de angu que comeu com o filho.
Tomamos depois café com leite, que eu de propósito não ofereci ao tal
gaudério.
São mais de dez horas, e sentado na borda da minha rede, escrevo
sobre uma mala, atormentado de mariposas, que assentam no papel, dão-
me pelo rosto, onde dou muitas palmadas, em vão, ou bem empregadas,
mas ficando [tudo] emporcalhado. De dia são moscas, de noite mariposas e
outras sevandijas! Dizem os cearenses que é um prazer viajar no sertão pelo
inverno, e eu acho que é um verdadeiro inferno; são lamas, atoleiros, riachos
e rios cheios, chuvas, trovoadas, moscas, mutucas, meruanhas mariposas, e
não sei que mais. O que os embeleza é a clássica coalhada, que lhes não
invejo; até de águas se fica mais mal servido, o único bem que lhe vejo é a
verdura dos campos, e o leite. Se no verão as casas são porcas, no inverno
[são] porquíssimas.
Segunda-feira, 28: Manhã fresca, neblina, termômetro 18 [graus]; o
rio se acha mais cheio que ontem, talvez um palmo.
Antes do almoço, a menina Francisca me trouxe uma galinha, que se
aprontou para nosso almoço. Distribuí, talvez, um mil-réis em cobres com
os meninos, e nos aprontamos para seguir viagem.
[f. 189]
Descemos para o rio, a nossa gente e quatro da casa, donos ou
hóspedes; três moços fortes, para nos passar a nós e as nossas cargas,
andaram primeiro pelo rio, atravessando-o em diversos lugares para
escolher o mais raso, por onde todavia dava-lhes água pelo ombro; vimos
pois que não era possível passarmos escarranchados como pretendíamos.

431
Manoel despiu-se e pôs-se de ceroulas, e assim atravessou o rio pegando-
lhe pela mão um dos sujeitos; eu entendi que era melhor passar a cavalo,
ainda que o cavalo tomasse algum nado; mandei-lhe pôr um selim do
comboeiro, em vez de freio pôs nele um cabresto, que um dos homens
puxava adiante, indo outro atrás tocando-lhe na anca. Eu tirei as botas, as
calças e o paletó, e em ceroula e meias, colete e chapéu de palha montei
a cavalo; devia ser uma curiosa figura; lançou-se o cavalo ao rio, e logo
no primeiro introito tive água até o alto das coxas, com que estremeci.
Mas enfim segurado às crinas, tendo água até quase o assento, atravesso
o rio; toda a bagagem passou em cabeça; os cavalos de carga a nado por
pequena, e a gente com água quase pelos ombros e pescoço. Não houve
sinistro algum, e gastou-se meia hora nesta passagem, foi um pagode
presenciado por várias pessoas das dificuldades do rio. De passado o rio
mudei de ceroula e meia, e estando tudo já passado montamos a cavalo
eu, Manoel e um moço, dono ou filho da fazenda em frente da do Feijão,
que agora soube ser do Gouveia do Ceará, porém [pode] ser escravo e
vaqueiro, que nos conheceu e nos acompanhou por algum tempo; o moço
nos ia servir de guia até passar as lagoas que, estando cheias, necessitam
de prático para os desvios. Passadas as lagoas do Fidalgo e Funda, ele nos
deixou, e eu lhe dei 28000 [dois mil-réis]. Às passadas do rio dei 10$000
[dez mil-réis].
[f. 190]
Quando partimos, passado o rio eram onze horas e três quartos; ao
meio-dia e cinco minutos passamos a lagoa do Fidalgo, que está muito
cheia, rodeando-a; meia hora depois passamos a lagoa Funda, e à uma
hora e 40 minutos chegamos à fazenda denominada Mulungu, com
tenção de aí pousarmos; mas havendo no campo mesmo dessa fazenda o
riacho da Perdição, que de manhã esteve de nado, e que, se chovesse de
tarde como prometia, estaria amanhã de manhã outra vez de nado, por
conselho do dono da casa, que todavia nos ofereceu agasalho francamente,
entendemos [ser] mais seguro passarmos já o riacho. E como eram quase
duas horas, o homem tomou a sua enxada ao ombro para ir para sua roça,
que ficava em caminho, e nos foi acompanhando para nos guiar passando
o rio, que tinha nesse lugar seis a sete braças, e cuja água não chegou às

432
barrigas dos cavalos; guiou-nos inda por algum tempo, e nos inculcou
[indicou] a casa da Sra. D. Maria do Rosário, viúva, que ficava dali a meia
légua, e onde chegamos às duas horas e meia.
A fazenda da Sra. D. Maria é denominada Perdição. A casa, assentada
num alto, é de telha, ladrilhada e feita de madeiras lavradas, e tem varanda
de dois lados.
Fomos perfeitamente recebidos por esta excelente família. O Sr. Luiz
Antonio Martins da Paixão é seu genro, e a mulher, moça de rosto formoso,
simples, ingênua, está de ventre bastante crescido e anda vestida com uma
sorte de peignoir [penhoar], ou camisola de chita; [riscado “de gola”] e
inteira, muito solta. A segunda filha, Maria Joaquina, de dez a doze anos, é
linda e mimosa de feição, linda cor, belos olhos e dentes; mas o corpo, digo,
cintura larga [f. 191] não ajeitada pelo espartilho, tira-lhe a graça do corpo.
Se as moças do sertão se vestissem melhor e tivessem mais alguma educação
no trato e maneiras, seriam realmente belas. Essa beleza que mostram em
meninas passa logo que casam e entram a ter filhos, pelo abandono a que
se dão. O mesmo acontece com os rapazes, que, bonitos em meninos, pela
rudeza do trato ficam logo fearrões.
As duas meninas mais moças, Raimunda e Cândida, são gentis,
inteligentes e espertas. Há no sertão grande simplicidade de costumes; esta
gente quase nada tem visto, tudo lhe causa admiração, e são de excessiva
curiosidade.
Qualquer coisa as admira; quando tive necessidade de abrir a minha
carteira, vieram todas pôr-se à roda de mim, e mesmo em cima de mim,
até a casada; queriam ver tudo, queriam saber para que servia cada coisa!
Se se abre uma canastra, é coisa para elas muito natural vir ver o que a
canastra tem, e o desarrumar e arrumar a roupa. Acostumados a ver os
homens em ceroula e camisa solta por cima, se a gente não se refugia para
algum lugar mais escuso, e se vê na necessidade de mudar de roupa, é coisa
muito simples, não se retiram! São de uma grande facilidade de trato, e
se familiarizam com a maior presteza. Mas conversam bem, falam bem;
e são muito supersticiosos. O caso é que passamos um dia e noite mui
agradavelmente como se fôssemos da família, e a todos e a cada um fiz um
presentinho — de tesoura, dedal, alfinetes, cadarços, santinhos etc. etc.

433
A casa da Sra, D. Maria do Rosário é uma das melhores que tenho
visto no sertão. O moço, seu genro, nos parece também excelente pessoa,
e amável.
[f. 192]
De noite, logo que se acenderam velas, encheu-se a sala de
mariposas, de modo que para comermos era necessário ter os pratos e
copos cobertos, quando não caíam dentro; quando todos se retiraram e
que quis escrever [riscado “os nossos”] estes apontamentos, foi necessário,
antes, formar fachos de papel e queimá-los pelas paredes; mas eram tantos,
e vinha sempre reforço, que abandonei a empresa e pus-me a escrever
atormentado por elas; além das moscas, de dia há mais uma espécie de
mutuca, que se confunde com elas, que dão boas ferroadas. Tivemos
água má, como temos tido desde que entramos no sertão. É um martírio
no Ceará; no verão, só os grandes rios dão boa água de cacimba, mas é
necessário deixá-la dum dia para outro, para se tornar limpa e fresca. Os
cearenses só apreciam da água a frescura, e bebem água barrenta, leitosa
etc., sem repugnância. Quando me davam uma água grossa, branca,
toldada, e que eu lhes dizia que a não podia suportar, respondiam: “Pois
é uma água bem fresca!”. Só nas serras, onde há fontes perenes, se pode
achar [água] fresca; mas sempre é bom deixá-la dum dia para outro. O
solo tem temperatura elevada, que a comunica por toda a parte às águas;
enfim estão tão acostumados a beber má água, que nem uma diligência
fazem para a melhorar. Durante as invernadas, bebem águas turvas dos
tios, e das enxurradas, deixando de aparar a água das chuvas, que caem
em abundância, há até mesmo o preconceito de que a água da chuva é
nociva. À água das enxurradas turvas, barrentas, se tivessem vasilhas em
que as guardassem, se tornariam muito melhores, [f. 193] mas qual; é o
costume guardar água dum dia para o outro. Agora no Sobral, quando
nós tínhamos em casa excelente água apanhada de telhados, bebíamos
nas melhores casas da cidade água tomada no rio. Em alguns lugares até
bebem a água dos açudes, onde bebe o gado, se banham, lavam roupa etc.
etc. Não vi uma fonte de filtrar água no Ceará!
É mais outro inconveniente nas viagens pelo inverno; as águas da
seca são mais suporráveis, que as das chuvas!
Canindé

434
Terça-feira, 29: Amanheceu o tempo turvo, e ameaçando chuva; a
Sra. D. Maria do Rosário nos disse várias vezes: “Os senhores vão apanhar
chuva”. Com prazer ficaríamos ainda em sua casa; mas era necessário
[nos] apressarmos. Aprontamo-nos, pois, sempre à vista dos senhores, que
se puseram na meia porta da sala, de que se levantaram até que partimos.
Tomada uma xícara de café simples, nos despedimos desta excelente e amável
família, e partimos seriam seis horas da manhã. Às oito horas passamos o
riacho do Batoque, que tinha bastante água; chegamos à casa da fazenda para
nos certificarmos de que famos em bom caminho. Pouco antes das dez horas
fomos surpreendidos por um grosso chuveiro; mas felizmente achamos à beira
da estrada, em frente do açude do Salgado, uma casa abandonada, onde nos
abrigamos, assim como mais dois vaqueiros, que andavam em vaquejadas por
aqueles lugares; durou a chuva um quarto de hora; continuando o caminho,
às dez [horas] e três quartos, de uma altura avistamos as torres da Matriz e os
telhados das casas da vila de Canindé, muito maior do que cuidavam e daí a
dez minutos fizemos nossa entrada na vila.
[f. 194]
Fizemos a viagem hoje da Perdição a Canindé em menos de cinco
horas andando devagar. Cremos pois que não há de um lugar ao outro
mais de cinco léguas; a gente do país faz serem seis. O país que passamos
hoje é montuoso, pedregoso, e os caminhos, antes veredas, escavados pelas
chuvas, e cobertos de mato; quase todo é de caatingas ralas, que às vezes
tomam o caráter de matas. Reparei ainda hoje, como o tenho feito desde
que saímos do Sobral, ao menos aos lados do caminho os pastos cobertos
de mastervos, mata-pasto, bambuzal (hystis), fedegoso etc. etc. Estas ervas
inutilizam grandes porções dos pastos naturais; e é de recear que os vão
invadindo cada vez mais.
É pois necessário que os criadores vão quanto antes cuidando em
reformar a maneira bruta de criar, tratando de melhorar os pastos, de
preservar do mato, de os descobrir, destruindo as árvores e arbustos que
impedem o crescimento do capim; deixando-os somente de um lado e
outro das cercas, para terem melhorias para cercados, e seus reparos etc. etc.
Em Feijão, em Perdição e em Canindé tenho tido informações de que
nestas fazendas o gado tem o costume de comer a terra. Este mal provirá de
uma moléstia do gado (pico, ou depravar do apetite), onde [ocorre] ser o
terreno saboroso, ou salitroso como dizem.

435
Por todas as baixas dos morros correm grotas, riachinhos e riachos,
com mais ou menos água.
Observei que as moradias das fazendas são neste lugar de melhor
aparência; mais confortáveis do que para o lado de Sobral.
[£. 195)
Canindé. Logo que entramos na vila procuramos a morada do
vigário, que já era conhecido de Manoel, e este nos recebeu mui bem, e
mandou logo aprontar-nos um ligeiro almoço de café, cuscuz e queijo. E
pedindo-lhe que nos indicasse uma casa, para nós assistimos por algumas
dias, mandou logo procurar a chave de uma que está vazia, mui próxima
à sua, e aí nos aboletamos, para depois nos mandar quatro cadeiras de
palhinha americanas.
Estava em casa do vigário um Sr. Xavier de 82 anos, conversador
e patusco, e que, pobre, vive às sopas do vigário; apareceram logo mais
algumas pessoas.
De tarde (cinco horas) ronco de trovoada para o lado da
Uruburetama, e chovia; o céu estava carregado, chovia mais em alguns
lugares, fazia calor; e deu aqui um chuveiro depois do qual saímos eu,
Manoel e o Sr. Zacarias Vieira da Costa, fomos ver o rio Canindé, que
corre pelo outro lado da vila; agora está com pouca água, e terá seis
a sete braças de largura. Dali fomos à Matriz, que estava aberta, mas
não entramos porque estavam os eleitores, preparando-se para a eleição
amanhã; daí fomos até o cemitério, passando pela rua desse nome, onde
fomos ver um[a] doente, para a qual Manoel receitou. Como a tarde
estivesse chuvosa e calorenta, nos retiramos e fomos para a casa do vigário;
este estava para uma casa fronteira do Sr. Zacarias (pausa) onde estavam
vários sujeitos; creio que se tratava de eleições. Tendo conversando por
algum tempo, nos retiramos, trazendo alguns números d'O Cearense
do vigário; mandando-nos depois um maço do Diário do Recife o Dr.
Francisco Barbosa Cordeiro, estudante de Direito em Pernambuco.
[f. 196]
Quarta-feira, 30: Amanheceu o tempo turvo, alguma neblina, o
termômetro às sete horas na sala estava em 21 [graus].
Ontem à noite, estando já deitado, seriam onze horas [quando] ouvi
pela primeira vez o canto do saci-saperê, de que muito ouvi falar no Rio,
mas que nunca o vi nem ouvi; o canto é pouco mais ou menos [assim]:

436
“fafé” (alto) “fafefê” (baixo), principia a cantar pelo fundo da casa, e se foi
sempre afastando, até que não o ouvi mais; também na serra da Meruoca,
sítio do Caldeirão ouvi de manhã o canto do gavião chamado acauá; era
mais de um que cantava, com voz forte: “cauã, cauá”. Vim ver o pássaro em
Pacatuba, preparado pelo Vila Real.
Esta manhã fui visitado pelo delegado de polícia, o Sr. Vicente Ferreira
Gondim, cunhado do Bezerra [apagado]. Tivemos mais por algumas vezes
o velho Xavier, e vários sujeitos que se vieram receitar.
Ao anoitecer fomos eu e Manoel pagar a visita ao delegado, que parte
amanhã para a Fortaleza; dali fomos para a casa do vigário, que achamos
na casa fronteira do Sr. Zacarias (pausa) que estava na sala com a senhora,
e um filho doente do peito; duas meninas andavam pela sala, e trepam
pelas cadeiras — uma delas, que deve ter cinco para seis anos, em fralda
de camisa, passara muito senhora de si. Conversamos por algum tempo e
nos recolhemos; apenas chegamos a casa, que nos bateu à porta um rapaz
com uma bandeja em que vinha uma terrina cheia de excelente coalhada, e
coberta com uma magnifica toalha, toda aberta de lavarinto da casa do Sr.
Zacarias.
Temos aqui água má do rio; não há pão, nem manteiga; não se acha
uma galinha, nem um capote, a carne fresca não gostei dela.
Hoje não choveu aqui, nem ouvi roncar trovoada; mas houve chuvas
ao longe, e fez calor. Termômetro na sala em 23 [graus] e meio às três horas
da tarde.
[£. 197]
Quarta-feira, 31: Amanhece bom tempo, termômetro (na sala) 19
[graus].
Logo de manhã cedo vieram os dois importunos, o velho Xavier que
ainda participa do nosso almoço e o irmão da Sra. Antonia, mulher do
Bezerra, e do delegado daqui; este quer esmola.
Fomos depois visitados por dois estudantes de Olinda, digo de
Pernambuco, os Srs. Francisco Barbosa Cordeiro, cuja irmã é criada com
o Dr. Vicente Alves Paula Pessoa, e morador aqui; e o Sr. Firmino Barbosa
Cordeiro, primo do primeiro; este é do Ceará, e o Sr. Firmino de Baturité.
Passamos o dia lendo jornais do Rio, que aqui nos emprestaram, e
revendo papéis, e escrevendo.

437
Às duas horas da tarde fazia calor, céu carregado ao nascente,
termômetro 24 [graus]. Às três horas trovoada forte sobre a serra de
Baturité; aqui não choveu, e a trovoada foi com efeito violenta na serra;
mas não deu muita chuva, como nos asseveraram depois.
De tardinha saí com Manoel a dar um passeio; fomos até o
rio, passamos pelo açude e voltamos para casa, onde cheguei suado,
encontrando na casa da professora pública, nossa vizinha, o Sr. Zacarias
também nosso vizinho, o convidamos para a nossa, e aí pedindo-lhe
que me apresentasse ao Sr. procura[do]r da igreja ele prontamente se
presta para irmos à casa deste, e saindo o encontramos logo na rua.
Cumprimentei e convidei-o para a casa onde conversamos sobre coisas
desta vila e ele me prometeu mandar o único livro que há no arquivo
da igreja; assim como de mandar convidar um índio, ou coisa que o
valha, antigo, e que mora daqui a duas léguas para me dar alguma
notícia.
(Vou fazer aqui memória de algumas coisas de que me tenho
esquecido, em lugar mais competente). “Para carregar a terra, seja a
tirada das cacimbas, [f. 198] seja a conduzida para fazer paredes de
açude etc, usam dum coiro de boi, em cuja parte anterior ajuntam uma
travessa de pão, no meio da qual se prende uma junta de bois. Enche-
se quanto se pode o coiro de terra, e é isto arrastado, até onde se lança
a terra fora se cobre de cacimba ou se despeja no lugar do aterro; e o
modo de despejar é curioso: faz-se voltar a junta de bois por cima do
coiro e da terra, de modo que o coiro se volta e despeja a terra, no lugar
que se quer. Outra nota é sobre a maneira de se plantar a mandioca, na
serra da Meruoca; fazem as covas, como no Rio se fazem as covas soltas
para plantar cana. A terra levantada para trás aí forma um murundu; e
neste para o lado da cova se fincam duas toras de maneira obliquamente
sobre o horizonte. Outra nota é sobre o que observei em vila Viçosa,
a respeito da maneira de segurar o reboque em uma parede de taipa
(barreada sobre paus-a-pique) que é encherem a parede enquanto verde
de cacos de telha, metido perpendicularmente nela, e de sorte a ficarem
um a dois dedos de fora, e bem justos; e conservando por fora superfície
igual. Deste modo tuvioso [curioso devo] fazer as paredes da minha
casa, no Rio, que estão expostas ao sudoeste.

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Usam muito no Ceará das portas partidas pelo meio, e de postigos; e
de dobradiças, e fechos de ferro dum modo particular, que tenho desenhados
em outros lugares.
([Sobre] coronel Manoel Martins, disse-nos aqui o velho Xavier o
que já havíamos ouvido a outras pessoas, que ele na prisão, deixando crescer
a barba, e tendo sempre a cabeça caída sobre o peito, aí fizeram uma ferida.
Diz-se também que no Limoeiro era objeto de escárnio da plebe [f. 199] e
dos garotos de Lisboa, quando o viam nas grades).
Lendo os Mercantis achei aí na correspondência da Bahia. “Em
Lençóis ao flagelo da fome juntavam-se os ataques dos salteadores. De
Macaúbas escrevem: acima de 600 sobe o número dos mortos à fome, neste
termo somente os miseráveis têm procurado todos os meios para viverem,
e fazem farinha de tudo que encontram, a da raiz do coqueiro-dos-gerais,
da raiz de mamão-do-mato, da raiz da mucuná, da raiz do licurizeiro (o
que chamam bró), da raiz da mandioca-do-mato (que é a melhor, não só
pela sua semelhança, em gosto, e na goma à de mandioca comum, como
mesmo na qualidade), da raiz ou batata de umbuzeiro, da raiz da parreira
(que dizem ser venenosa), o da semente de jatobá, além de outras muitas.
Descobriram o arroz-do-mato, que nada mais é do que um capim do
tamanho e formato do chamado assu, a cuja semente chamam arroz do
mato, e só é encontrado nas serras, junto aos gerais. Atualmente está a
pobreza arrancando as bananeiras estragadas pela seca, e comendo-lhes as
batatas.
A farinha está a 2$000 [dois mil-réis] o prato, que vem a ser 160$000
[cento e sessenta mil-réis] o alqueire (uma quarta pois tem 20 pratos).
Sexta-feira, 1º de fevereiro: Amanhece bom tempo, termômetro na
sala 19 [graus] e meio.
À exceção de alguns importunos, não tivemos hoje visitas; depois
do almoço saí, e andei medindo a vila a passos para levantar-lhe a carta.
Recebi hoje do procurador ou administrador dos bens da igreja, o Sr.
Manoel Luiz de Magalhães, o livro de escrituras, inventário, lançamento
de terras etc., de que já copiei as duas escrituras de doação a S. Francisco
[£. 200] para patrimônio da sua igreja. Às três horas fazia sol e calor, o
termômetro na sala quase 24 [graus], não houve chuvas nem trovoadas
aqui nem nos arredores. Saímos de tarde eu e Manoel, e andamos vendo

439
a vila, medindo-a etc. Recolhendo-nos, estivemos conversando com várias
pessoas; e sentado à porta eu contemplava o lindo céu, sem uma nuvem,
e cravejado de estrelas, e a mancha do Sul me transportou com tristeza ao
meu querido Rio! Querendo informar-me se havia cerveja na terra, não
podendo suportar a água, fui à casa do vizinho Zacarias e o achei na sala,
com o vigário, a mulher, [e] duas filhas, uma delas mui moça e gentil, a vi
agora pela primeira vez o filho doente etc., aí me demorei conversando,
veio cerveja, e abri uma garrafa, da qual só eu e o Zacarias bebemos.
Disse-me Manoel que chegou hoje de Sobral o Dr. Vicente Alves
Paula Pessoa.
Sábado, 2 (dia santo): Amanheceu bom dia.
Aprontamo-nos e subimos para a igreja a ouvirmos missa; mas
como o vigário se demorou em casa do Dr. Vicente Alves de Paula Pessoa,
aproveitamos à ocasião e fomos também fazer a nossa visita ao doutor, que
havia chegado ontem do Sobral. Na sala achamos várias pessoas e entre eles
o Dr. João Felipe Bandeira de Melo, que volta para Sobral; é o que em Feijão
passou o Curu diante de nós. Às dez horas fomos para a igreja; o interior do
templo não desdiz da sua perspectiva exterior, o corpo da igreja é forrado, e a
capela-mor está bem ornada, o retábulo, o [f. 201] trono, o altar, o nicho de
São Francisco, o sacrário que está no trono, as quatro tribunas, tudo é de boa
escultura, pintado de branco, e com tarjas, frisos e filetes doirados, as paredes
forradas de papel de ramagem que não faz mau efeito. É mais pequena, mas
não sei se mais bonita [e] mais elegante que a do Sobral. Havia bastante
gente do amável sexo e entre as brancas alguns rostos bonitinhos e simpáticos.
Acabada a missa viemos para casa almoçar, e fomos visitados por um filho
do nosso vizinho Zacarias. Ocupamo-nos com a leitura de jornais do Rio
(Diário e Mercantil, [em] que constam hosanas ao triunfo da gente liberal), e
mais do livro que me emprestou o administrador da capela e do qual copiei
a escritura de doação que se fizeram à capela de S. Francisco das Chagas. À
tarde o padre vigário me mandou também dois livros dos mais antigos que
ele tem dos assentos de batizados e casamentos etc.
De tarde veio nos visitar o Dr. Vicente Alves. Anoitecendo, eu,
vestido à fresca, fui para a casa do vizinho Zacarias, onde achei na sala

440
ele com as duas filhas e outra moça jogando o dominó; ofereceram lugar
para entrar no jogo retirando-se aquela moça, que dizia não saber jogar, eu
ocupei o seu lugar entre as filhas do Zacarias, e jogamos por algum tempo,
muito bem entretidos até que chegou o vigário, e deu-se fim ao jogo, para
conversarmos. Algum tempo depois chegaram as três senhoras também
nossas vizinhas, uma das quais é professora pública de primeiras [f. 202]
letras, para meninas; fez-se roda e tagarelou-se até dez horas, em que se
separou a sociedade. Recolhi-me, tomamos o nosso café com leite.
Foi hoje o dia de sol, e bem quente, às três horas o termômetro na sala
estava em 25 graus e meio. Às quatro horas roncou trovoada, o céu cobriu-se
de nuvens negras, caíram chuveiros em alguns lugares, mas aqui nada. Noite
linda e estrelada.
Domingo, 3: Amanheceu bom tempo, termômetro (na sala) 21
graus.
Ao romper do dia roncava trovoada, disse-nos o Sr. Saldanha. Às dez
horas fomos à missa, que esteve bem concorrida; estava ali a for de Canindé,
tanto homens como mulheres. Depois da missa fomos visitados pelos Srs.
Manuel Barbosa Cordeiro, velho, e Joaquim José da Cruz Saldanha. Aqui
tivemos o pardo Antônio da Cunha Marreiros, que veio a chamado do Sr.
Manuel Luiz Magalhães, mas a pedido meu, para me dar notícias das coisas
antigas; é homem de 75 anos e filho deste lugar. As notícias que dele obtive
vão escritas em outro lugar. Depois fui para o largo da Matriz [até a] casa
do delegado, donde tirei a perspectiva da igreja, digo, os primeiros traços,
voltando de lá ainda andei medindo lugares da vila, a passos, para levantar-
lhe o plano. Passando pela casa do Zacarias, cujas filhas estavam na sala
com o vigário e outras pessoas, entrei e estive aí um pouco, recolhendo-me,
pus-me à fresca, e trabalhei no desenho da igreja; às três horas o céu tinha
suas nuvens, caíram [f. 203] chuviscos — o termômetro na sala estava em 24
graus. O calor e as moscas não me deixavam sossego para trabalhar.
Às ave-marias saí e fui para a casa do Sr. Zacarias; ele não estava,
mas tinha a sala bem povoada, a mulher e as duas filhas, das quais a mais
moça é interessante, [além de] outra moça, dois filhos e mais vários sujeitos;
aí estivemos conversando até quase nove horas e nos retiramos; em casa
achamos uma terrina cheia de coalhada, que de lá nos mandaram.

441
Não tendo concluído as minhas notas e desenhos sobre Canindé,
nem tendo a lavandeira me apresentado toda a roupa, não partimos amanhã
como havia determinado, para a serra de Baturité.
Segunda-feira, 4: Amanhece bom dia, termômetro 21 graus. Depois
do almoço, andei passeando, para acabar o plano da vila; de volta estive em
casa do Sr. Zacarias, onde estava o vigário, a mulher do Sr. Zacarias e uma de
suas filhas — a outra aparece depois, não sem o sorriso de algumas malinas,
vestidinha de fresco, e estava radiante — mais a filha doente e outros rapazes.
Conversamos aí um pouco, e vim para casa a concluir os meus desenhos
da vista da igreja e do plano da vila. Fui depois a minha vizinha professora
pública pedir uma nota sobre a frequência de sua escola etc.
Entre uma e três horas o tempo tem estado anuviado, e ronca
trovoada longe. Termômetro 23 graus.
Mandou-nos hoje um rico presente, de galinhas assadas, de frutas e
doces, o Dr. Vicente Alves Paula Pessoa.
Toda a tarde foi coberta, sempre roncando trovoada longe, e caindo
aqui chuviscos e fazendo calor.
[f. 204]
Jantou conosco o velho Xavier; acabado o jantar era já tarde, e chuviscava,
mas eu tinha de fazer as minhas visitas de despedidas, vesti-me e saí. Fui primeiro
à casa do Sr. Manoel Luiz de Magalhães, o administrador da igreja, e que me
confiou o livro da administração; ao Sr. Firmino Barbosa Cordeiro, estudante
de Direito, em cuja casa estava o Sr. Magalhães; ao Sr. Dr. Vicente Alves de
Paula Pessoa, que me apresentou a sua senhora e a sua cunhada, filhas do Ceará,
digo, da Fortaleza; ao Sr. Joaquim José da Cruz Saldanha, sendo recebido por
sua senhora e uma moça sua filha, depois apareceu o Sr. Saldanha; a minha
vizinha, professora de primeiras letras [riscadas duas palavras) D. Vicência
Ferreira Laura de Jesus, que mora com sua mãe e mais três irmãs, moças pobres
e honestas, mas que, não sendo favorecidas da natureza, ficarão para tias, exceto
uma delas que me parece a mais moça e que não é feia; ao Sr. Hermino Vieira
da Costa, que não achei; enfim estive em casa do Sr. Zacarias, conversando e
tomando os nomes das ruas da vila, [para] a vista do plano dela que levantei.
A filha mais moça estava sedutora, é uma menina de 13 a 14 anos, gentil,
ingênua, amável, e namorada. Daí me retirei.

442
Terça-feira, 5: Amanhece bom tempo, termômetro 20 graus.
Estamos nos arranjando para a partida. Fomos primeiro à casa
do vigário Ernesto José Cavalcante, a despedir-me dele, e entregar-lhe
os livros da igreja (assentos de batizados e enterros que ele me havia
emprestado, e outros livros e jornais); não o achei em casa, estava na
igreja; fui depois à casa da professora de primeiras letras, de meninas,
[f. 205] a pedir-lhe
uma nota dos discípulos, e fui à casa do Sr.
Hermino Vieira da Costa, que também não achei, e despedi-me da
senhora. Voltei para casa, a concluir os arranjos de viagem e almoçar,
no entanto recebemos a visita do Dr. Vicente Alves Paula Pessoa, que,
não tendo animal para impor-nos, foi nos dar o último adeus. Depois
de almoçarmos, fui despedir-me dos vizinhos, a professora pública, sua
mãe e irmás, daí fui ao Sr. Zacarias Vieira da Costa, onde também achei
o vigário; despedi-me desta estimável família e vinha para montar a
cavalo, quando me lembrei [de] que havia prometido ao velho Xavier
dar-lhe alguma coisa* e, não tendo ele aparecido, fui à casa do vigário;
[de lá] fui à casinha onde ele mora, e não o encontrando dirigi-me para
a casa do Sr. Zacarias para aí deixar o que tencionava dar-lhe; achei na
sala só as duas moças, e dei à mais velha uma nota de 5$ [cinco mil-
réis] para entregar ao velho; e por essa ocasião fiz ainda meus adeuses às
moças, que cheias de amabilidade me disseram: “O senhor deixa muita
saudades”. “Como é possível, minhas senhoras, se eu as levo?”, disse
eu. “Mas deixa mais de que leva”, disseram. Sem dúvida que eu saí
saudoso daquele lugar. Se acontecer que alguém leia isto, me tomarão
por bastante pueril nestas coisas. Mas são notas que faço para mim, são
recordações, para outros tempos. Tenho tanta necessidade de emoções
para fazer diversão à minha habitual tristeza, que tudo me impressiona,
e a cessação dessas impressões me deixa sempre saudade. Demais temos
sido recebidos por esta gente com tanta amabilidade, tão familiarmente,
que quando me separo, é como se me separasse da família.
[f. 206]
Voltando para casa, montamos a cavalo, cortejamos os vizinhos e
partimos, eram oito horas, o dia estava belo.

*Dei também cinco mil-réis ao irmão da mulher do Bezerra.

443
Passamos o rio Canindé, à beira do qual está a vila; com pouca
água, seriam cinco braças, e dois palmos de fundo, junto à passagem
estavam algumas lavandeiras, e no meio delas banhava-se uma menina, que
parecia de 10 a 12 anos brincando n'água com a maior ingenuidade; eu
por brinquedo dei de rédea ao cavalo aproximando-me dela, e ela, sem se
importar, continuou no mesmo folguedo! Isto que nós reparamos muito cá
para o norte é coisa muito normal. As crianças machos e fêmeas andam nus
até quatro anos e mais. Ainda agora a caçula do Sr. Zacarias, em Canindé,
que tem mais de sete anos, anda em fralda de camisa, não só em casa, saí
à rua, e ia a nossa casa, que éramos vizinhos, nessa toalete. Banhar-se nos
rios é coisa de que gosta muito a gente do Ceará, e seguramente das outras
províncias do Norte; há muita gente que nunca se lava em casa. Quando
chove muito as crianças de três, quatro e cinco anos, machos e fêmeas, saem
tudo para a rua nu a folgar, agora em Sobral ainda observamos isso. Assim
acostumados a andar nus em crianças, a se banharem em comum, torna
isso um ato muito natural, só as famílias mais recatadas é que se evitam, e
se banham às escondidas, mas nuas.
Mas sigamos nossa viagem, de vez em quando olhando para trás, até
que de todo desapareceram as torres da bendita Matriz de Canindé. Às dez
horas e 40 minutos estávamos em Longal, é uma grande aberta de campos,
com algum mato, onde vimos cinco ou seis casas de telha dispersas, e
algumas já abandonadas. [f. 207] Chegamo-nos a uma, onde achamos uma
mulher que trabalhava limpando uma pequena plantação de milho e mais
outras plantas dentro dum cercadinho; deu-nos água má, e ensinou-nos o
caminho. Às onze e meia passamos por Santa Ana, onde há também algumas
casas dispersas, e onde se passa um riacho, que está seco; informamos[nos]
do caminho, e seguimos, mas apesar disso logo adiante tivemos uma errada
de três quartos de légua, isto é, légua e meia de fazer e desfazer, gastamos
uma hora e quando nos pusemos em bom caminho, encontrando aí a nossa
bagagem, era uma hora; sol quente, e muito contrariados e aborrecidos,
tendo de fazer ainda duas léguas boas, para chegarmos ao rancho do Poço
da Égua; 20 minutos depois passamos a Furna, fazenda onde há um grande
açude e que está cheio. Chegamos ao suspirado Poço da Égua às três horas
bem amofinados e muito desapontados quando vimos o miserável casebre,
onde devíamos passar o resto do dia e a noite. Está situado ao pé da serra

444
de Baturité, e à esquerda do riacho, do Poço da Égua, é onde está feita uma
represa. É um rancho pequeno, tosco, coberto de telha, e com paredes de
pau-a-pique somente, sem portas que são canas penduradas, e todo cheio
de objetos toscos, com couros, pilões velhos etc. Não havia ninguém na
casa e só parecia habitada por haver dentro fogo aceso, umas malas, e umas
espigas de milho e cabras em redor. Fomo-nos assenhoreando do casebre,
e eu mandei armar a minha rede fora, para estar mais à fresca. Fra o calor,
eram as cabras a berrar e a entrar por toda a parte, era um ruído ou zoada
contínua de moscas, [f. 208] mutucas e meruanhas, que não só zoavam mas
mordiam, e punham em desespero a gente e os cavalos; e em cima de tudo
forma-se uma tormenta, e cai da serra sobre nós com trovões e ventania, e
entrando chuva por toda a parte, e o lote de cabras barafustando e metendo-
se por toda a parte a fugir da chuva, saltando por cima de tudo. Ainda mais
vem chegando mais gente viandante, debaixo da tormenta, agasalhando-se,
quando já pouco lugar havia: era um Dia de Juízo. Enfim, como não há
mal que sempre dure, serenou a tempestade; jantamos e nos acomodamos.
Esquecia-me de referir a chegada do filho do dono do miserável alvergue,
era um pardinho de 15 a 16 anos, criatura simples, e fácil de acomodar-se,
dormimos.
Quarta-feira, 6: Almoçamos cedo, ainda havia uma galinha assada,
do presente que nos mandou o Dr. Vicente Alves, e pão-de-ló. Às seis horas
e meia pusemo-nos em viagem, deixando o triste Poço da Égua, entramos
por uma garganta da serra, pela qual desce o riacho do Poço da Égua, o qual
atravessamos oito ou dez vezes, e por ela andamos, subindo insensivelmente,
obra de uma hora; começou depois a verdadeira ladeira, que é áspera e tem
passos difíceis, ou por íngremes, ou por pedregosos, ou por atoladiços, e
escorregadiços, em muitos dos quais eu me apeei. Eram oito horas e meia
quando paramos em mais de meia altura da serra, para a contemplarmos.
Era o ar fresco, e as matas de grandes madeiros; mas ainda havia plantas
do sertão [f. 209] como mororós, angicos, cajazeiras mui grandes, Alseis,
barriguda, maniçobas, camarás (lantanas e syninlheras). Enfim vi ali pela
primeira vez a caitacea [cactácea] (Pereshia [Pereskia]) que no Rio se chama
ora-pro-nobis etc.
Alguns minutos antes das nove horas nos achamos no alto da serra;
paramos aí em uma casa, onde pedimos água, e a boa dona da casa instou

445
para que nos apeássemos, deu-nos água como não tínhamos bebido depois
que descemos da Meruoca, e daí a pouco trouxe-nos uma laranja, que nos
ofereceu pela mão de um gentil menino que tinha nos braços, e ao qual dei
uma nota de mil-réis por não ter menor moeda. Apareceu logo o marido,
homem do Piauí, chamado Francisco Félix, do qual obtive a notícia dos
madeiros, que ele conhece, aqui em cima da serra, e são: maçarandubas,
pau-de-óleo, pau-d'arco de flor amarela e o de flor roxa nas quebradas,
cedro, jucá, coração-de-negro, jatobá, canela-de-veado, tatajuba.
Este sítio se denomina S. Gonçalo. Fiquei surpreendido ao ver o
alto da serra de Baturité, de que eu não fazia ideia exata É uma vastíssima
esplanada, toda eriçada de montes, bem semelhante à nossa grande serra
do Mar. Diz-se que esta de Baturité tem cinco léguas de largo sobre oito
de comprimento, isto é, 40 léguas quadradas! Tudo coberto de grandes
matas, comparáveis com as nossas do Rio; mas que vão sendo destruídas,
ou antes já estão em grande parte devastadas; [f. 210] com águas correntes
pelas quebradas, ar fresco e saudável, terra excelente para café. Chegando
Manoel, que havia ficado atrás, seguimos o nosso caminho, ora subindo,
ora descendo, ora andando pelas quebradas, e às dez horas e alguns minutos
passamos por uma pequena povoação chamada Mulungu, 20 minutos
antes das onze passamos pelo sítio do Quati, pequeno povoado, e ao meio-
dia estávamos na povoação da Conceição. Gastamos pois na viagem cinco
horas e meia, andando muito devagar, por subidas e descidas ásperas, e não
podemos dar ao caminho que fizemos mais de quatro léguas. No entanto
a gente do país faz de S. Gonçalo a Conceição, isto é, caminho só do alto
da serra, quatro léguas. Em Conceição informaram-nos que só o Sr. José
Fortunato nos poderá arranchar; Manoel o foi procurar, e voltou logo
com ele, que nos conduziu para um engenho e pôs a nossa disposição o
sobradinho, onde nos instalamos.
O dia havia sido de sol, ou apenas de algum chuvisco, mas depois da
meia-noite caiu uma forte tormenta, com chuva, trovoada e vento violento,
que durou até o amanhecer; vento do lado do nascente.
Quinta-feira, 7: Amanheceu o tempo chuvoso, ventoso, com grande
cerração, e frio, o termômetro na sala 16 graus. O Sr. José Fortunato
asseverou que é o maior frio que aqui se sente, mas o Sr. João Batista diz
que não, e que em junho faz mais frio de que fez hoje, o que acredito.

446
Mandamos hoje um homem daqui ao mato a colher algumas árvores.
Eu ocupei-me em estudar algumas plantas colhidas ontem, e outra que
Manoel tem colhido; hoje veio nos visitar o Sr. João, [f. 211] [que] ontem
foi ao mato, e cuja colheita não nos satisfez muito e lhe demos 1.640 [téis?).
Depois do almoço que foi tarde nos ocupamos com o estudo de algumas
plantas, fazendo desenhos toscos por estarmos na rede, e não ter outro
cômodo. Das duas às três horas o tempo escureceu mais e deu alguma chuva,
termômetro 19 graus. À tarde nos fomos despedir dos Srs. José Fortunato
e Batista, e de suas famílias, e deles ambos obtivemos algumas notas, sobre
este lugar, que vão escritas em outra parte.
Já dissemos que estávamos aboletados no sobradinho do engenho,
que pertence ao Sr. Francisco Pinto Brandão, irmão do Sr. José Fortunato,
que também tem sítio aqui e não sei se interesse no engenho. À fábrica é
grande, bem feita de madeiras lavradas, as moendas são de pau, e puxadas
por bois; agora está este moendo, para rapaduras.
Na construção da fábrica notei duas coisas: duas grandes tesouras
sustentam a cumeeira no vão do corpo do engenho, ou casa de moendas, e
vão imechados [enfeixados?] no meio dos esteios sobre os quais descansam;
já temos notado que o madeiramento das casas do Ceará é mal travado, e
por isso pouco seguro. Outra coisa é que o soalho não só do sobradinho, mas
da parte da casa das moendas, é de terra batida sobre barrotes unidos; como
em S. Benedito e S. Pedro, forram as casas de palha contra os incêndios.
Aqui em roda de casa a vegetação tem muita analogia com a do
Rio em roda das casas, são
oficiais-da-sala, guaxima, erva-de-santa-
maria, vassouras etc. etc. Assim como guaibeiras (plantadas?), laranjeiras,
bananeiras, cafezeiros etc. etc.; O aspecto do lugar é como o de Petrópolis.
Sábado, 9: De madrugada ventou muito, amanheceu [£ 212]
chovendo, ventando e fazendo grande nevoeiro, termômetro 17 graus.
Estávamos prontos para descer hoje, mas o dia continua chuvoso,
ventando e dando de vez em quando grandes pancadas d'água. Três [horas]
continua o mesmo tempo, termômetro 18 graus.
Desenganados que não podíamos hoje descer, pelo tempo chuvoso [e
o] estado das ladeiras, e mesmo porque aqui nos disse o Sr. José Fortunato
que muito naturalmente estariam os rios € córregos cheios, nas quebradas

447
e esplanadas da serra, mandamos aprontar o nosso jantar, € ficou a viagem
para amanhã. Depois das quatro horas cessou ou pareceu cessar a chuva e
o sol se mostrou.
O Sr. José Fortunato está sempre queixoso da vida que leva na serra,
do pouco proveito que tira, e da má gente que a povoa, bem entendido da
gente cabra. Diz que são indolentes, preguiçosos, e muito altanados, isto é,
tratam a toda a gente qualquer que seja como de igual a igual, e é necessário
viver com eles com muito cuidado, sendo muito ciosos de sua liberdade.
Custa a ter aqui um criado, porque entre eles não há quem queira servir, e
se se traz de fora um criado esse é logo aconselhado por eles que não sirva,
porque não é escravo. Tratam a todos de maneira mais familiar, chamando-
os Sr. Juca, Sr. Manoelzinho, Sr. Joãozinho etc. etc. Entram pelas salas de
chapéu na cabeça, vão se sentando sempre coberto, apertam mão etc. etc.
Se algum se quer tratar com mais alguma consideração, é logo olhado como
soberbo, fidalgo, rei etc. No entanto o Sr. Batista acomoda-se bem com esta
gente.
[f. 213]
Domingo, 10: Amanheceu bom tempo, termômetro 16 graus esta
madrugada e manhã, não tem ventado, ou ventou muito pouco. Estamos
nos aprontando para descer e fomos convidados pelo Sr. José Fortunato
para almoçarmos com ele. Seriam dez [horas] quando ele próprio desceu
e veio buscar-nos, e apresentou um bom almoço: galinha guisada, língua
ensopada picada em miúdos, carne assada, café simples, bolacha (que
chamam soda) e sofrível manteiga. Eram da mesa ele, sua senhora, duas
filhinhas, eu e Manoel. Acabado o almoço, chegou logo o Sr. Batista com sua
senhora e filhos, e todos subimos para a capelinha, onde já estava o padre.
Acabada a missa (que foi concorrida havendo na igreja algumas carinhas
bonitinhas, de meninas e senhoras brancas, além da cabraria cabroeira)
voltamos acompanhando-os e depois de conversarmos um pouco; eram
onze e meia, demos o nosso último adeus a essa excelente gente, e viemos
para o sobradinho, onde estava se aprontando os animais e bagagem. Era
meio-dia, e belo dia, quando partimos.
Tivemos logo de subir uma boa ladeira, descendo a qual andamos
sempre por entre grandes montes, com plantações de café; descendo
sempre seguindo o grotão, ou quebrada por onde desce o rio Aracauaba
[Aracoiaba], que atravessamos muitas vezes, até a cidade de Baturité, que

448
está a sua margem direita, e o rio sempre corrente, e que recebe uma grande
porção das águas da serra, não só do centro ou coração, mas as que descem
do tope do lado do Canindé.
[f. 214]
Eram onze e meia quando chegamos ao povoado [uma palavra riscada]
que se denomina Labirinto, que consta dum grupo de casas arruadas ao lado
do caminho, que lhe faz rua, e de muitos sítios dispersos; e é uma assentada
da serra, encharcada, ao menos agora, longe e sinuosa por entre os montes,
mas o rio Aracauaba [Aracoiaba] não passa por ela, fazendo rodeio por
detrás dum monte. Logo que saímos do Labirinto, e começamos de novo a
descer, descortinávamos, pelos abertos, porções do sertão, que visto do alto
das serras, e por entre montes, produz sempre uma sensação agradável, e
alguma coisa de maravilhoso. Continua[n]do a descer, sentindo já calor, e
por maus caminhos, cheios de ladeiras pedregosas, atravessamos ainda duas
vezes o Aracauaba [Aracoiaba], e o deixamos a deitar, seguimos uma ladeira
que corre por um espigão da serra, não muito íngreme mas penosa para os
ânimos por ser um continuado pedregulho. Enfim avistamos, com prazer,
a cidade de Baturité, e uns 20 minutos depois atravessamos pela última
vez o Aracauaba [Aracoiaba], e fomos logo subindo por entre palhoças; é a
entrada da cidade, onde nos apeamos quase às quatro horas [riscadas três
palavras], com bastante calor, em casa do Sr. Luiz José da Justa, que já o
tínhamos conhecido, em Pacatuba, em casa do capitão Justa, seu sobrinho;
aí estavam duas senhoras, uma delas, [de] fisionomia simpática, é casada
com o Sr. José Luiz da Justa, filho do Luiz José e também muito nosso
conhecido da Pacatuba. Manoel saiu, como já conhecido da terra, a [f. 215]
procurar-nos casa, e obteve uma do Sr. Antônio Fir [riscado] Francisco da
Silveira, que está ocupada por uma meia dúzia de eleitores, que voltam hoje
ou amanhá para seus sítios; e com os quais estamos juntos, porque a casa
tem muitos cômodos.

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Vegetação da serra de Baturité
As matas que antes cobriam todo o alto da serra, e de que ainda
se conserva uma boa porção, são, ou foram, magníficas. O terreno
montuoso, argiloso quase sem pedra, é semelhante aos altos da serra do
Mendanha, mas muito mais vasto. Árvores corpulentas, de espécies em
grande parte das que lá temos, são: maçarandubas, ipês (paus-d'arco)
da flor amarela e da flor roxa nas quebradas, copaíbas (pau-de-óleo),
Jetahys (jatobás), cedros nas quebradas etc. etc. Na pequena vegetação
notamos de passagem a flamelia patens, a Melanthera (synathen comum
no retiro do Campo Grande), a Vernonia de flores roxas (erva-preá ou
canicota), a Cordea (sócia da c. Curupavica), o Syphocampylus, a coerana
(certram), a cássia (canudo do cachimbo), o anil, a Seoparia dulcis, a
erva-de-são-joão (Ageratum), a Inga vera, a guaxima, a Trimpheta, a
embaíba etc.
Logo que nos instalamos na casa, e sem ainda termos alimpado,
começamos a ser visitados: pelos senhores promotor, o Dr. Leandro da
Silva Freire, o doutor em Medicina Joaquim Barbosa Cordeiro, cunhado
do Dr. Vicente Alves Paula Pessoa, Antônio Francisco da Silveira — [f.
216) negociante dos mais abastados aqui, espécie de anão, o que chamam
corrimboque, alcunha que já tinha o pai —, o Sr. Raimundo da Silveira Neto,
genro do precedente (casado com a menina com quem esteve para casar o
capitão Henrique da Pacatuba), o Sr. João Carlos de Oliveira Sacôto, o Sr.
Luis Francisco de Oliveira Brito, o Sr. João Carlos de Oliveira irmão do
precedente, Antônio Raulino de Moura, Raimundo Jerônimo de Freitas,
José Luiz da Justa etc.
Jantamos de noite, conversamos com os novos coinquilinos, e nos
deitamos.
Segunda-feira, 11: Ao romper do dia grosso chuveiro, manhã sempre
coberta, das oito às nove [horas] outro grosso chuveiro, às duas horas
grande chuva, no fim ronco de trovoada, [às] três horas tempo coberto,
termômetro na sala 21 graus.
Temos estado estudando algumas plantas colhidas ontem e hoje por
Manoel, e recebido algumas visitas. De tarde não saí porque o nosso Barreto
deu-nos jantar quase às oito horas da noite!
Terça-feira, 12: Amanheceu bom dia, termômetro 20 graus.

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Ocupamo[-no]s em estudar algumas plantas, com custo pelo calor, e
perseguição das moscas. Recebemos a visita do Dr. juiz de Direito Luiz de
Cerqueira Lima e escrevemos para a família.
Fez hoje bom tempo, e às três horas o termômetro estava em 23
graus na sala.
De tardinha saí com Manoel a fazer algumas visitas; fomos logo à casa
do Sr. Antônio Francisco da Silveira que não achamos, mas estava o pai,
velho respeitável, e ali também achamos o subdelegado, que se desculpou
por não ter-nos ainda visitado; daí fomos à casa do Dr. Cerqueira Lima, que
nos apresentou [f. 217] sua senhora, moça pernambucana, e três filhinhos;
daf à casa do Dr. promotor Leandro da Silva Freire, que estava com grande
roda à porta, entre outros eram o Dr. Barbosa Cordeiro e o vigário, que
também se desculpou por não ter ainda nos visitado; aí conversamos até às
oito horas, e retiramos. Disse-nos o padre vigário que a serra de Baturité
tem três léguas de largo, e nove de comprimento e que o ponto mais elevado
é o chamado Mundo Novo.
Quarta-feira, 13: Amanheceu bom tempo, termômetro (na sala) 20
graus e meio.
Quarta-feira de Cinzas, passamos os três dias de entrudo e a quarta-
feira como se fossem dias ordinários, nada nos lembrava o dia que era.
Ocupei-me de manhã com o estudo de algumas plantas, e fomos
visitados pelo Dr. Benício, Antônio Benício Saraiva Leão Castello Branco,
juiz municipal, e um mocinho, filho do Sr. Gurgel de Pacatuba.
Às quatro horas fazia sol e calor, o termômetro na sala 24 graus.
De tardinha saí com Manoel, e pagamos algumas visitas. Fomos à
casa do genro do Sr. Silveira, cuja salinha asseadinha tinha um bom piano;
e a mulher, que é uma das moças mais bonitas daqui, apenas a vimos na
sala interna penteando-se; daí fomos à casa do Sr. José Luiz da Justa, que
estava com a senhora, em casa do pai, onde nos recebeu; daí fomos à casa da
senhora mãe dos Freitas [riscado] Oliveiras, onde achamos dois dos filhos e
uma filha, mocetona bem parecida, e que creio ser também uma das flores
de Baturité; daí à casa do Dr. Benício, que não [estava] [f. 218] em casa; na
porta dele nos encontrou o padre vigário Raimundo Francisco Ribeiro, que
com o Dr. promotor ia a nossa casa visitar-nos. Deixando outras visitas para
depois viemos com eles, e despedidos, saímos ainda a fazer alguma visita, e

451
foi então que fomos à casa da senhora mãe dos Freitas; de lá saímos, a lua
ia quase entrando, e nos recolhemos. Quando estávamos sentados na roda
do Justa vimos um enterro de anjinho, acompanhado e conduzido só por
meninos, que levavam na mão uma vela com cartucho de papel. Achamos
a coisa singular, por ir o corpo só entregue a meninos, e nos dirigimos para
a igreja; mas quando lá íamos chegando já os pequenos saíam, e divertiam-
se à porta da igreja incendiando os cartuchos, eram quase tudo meninos
brancos, e bem trajadinhos com seus paletós, ou fraques. Está grassando
aqui uma moléstia com todos os caracteres do vômito negro, ou febre
amarela; Manoel viu um doente esta manhã, e agora veio de ver um menino
que está vomitando negro, e lançando fazes negras, e em estado comatoso.
Já no Sobral nos diziam que aparecia por ali a febre amarela.
Quinta-feira: Amanheceu bom tempo, termômetro 21 graus.
Antes do almoço saí e andei pela cidade, medindo as ruas a passo,
para tirar-lhe o plano, não sem reparo [f. 219] da gente que me viram
naquele exercício. Depois do almoço ocupei-me com o estudo de algumas
plantas, e por distração desenhei uma cearense no seu desalinho caseiro,
servindo-me de modelo uma vizinha e algumas que aqui vieram receitar-
se, uma das quais ficou muito contente, por me servir para desenhar os
cabelos. De tarde saí para tirar a vista da igreja, da casa do Luiz José da
Justa, mas pouco fiz por ser já tarde, conversei um pouco com as madamas,
e na volta para casa passei pela do Dr. promotor, onde havia roda, e meti-
me nela, até às sete horas, em que me recolhi. Esteve hoje o dia excelente, de
manhã um pouco anuviado, caíram mesmo alguns chuviscos; mas a tarde
foi bela, o termômetro às três horas na sala estava em 23 graus.
Sexta-feira 15: À meia-noite mais ou menos choveu bastante,
amanhece o dia anuviado, termômetro na sala 21 graus; aí antes do almoço,
andei medindo as ruas, para levantar o plano da cidade. Depois do almoço,
estudei várias plantas. O dia tem estado belo, de temperatura suportável,
termômetro na sala às três [horas] 23 graus.
Fomos visitados pelo João Pereira Castello Branco; e pelo Sr.
João Lourenço Viriato de Vasconcelos, que estando doente nos fez seus
cumprimentos por escrito, e pelo Sr. Luiz José da Justa. Às ave-marias
saímos eu e Manoel; e fomos visitar o Sr. Manoel Antônio de Oliveira,
comandante superior da Guarda Nacional; daí fomos ao Sr, Viriato de

452
Vasconcelos, fomos depois falar ao secretário da Câmara Municipal, [f.
220) o Sr. Simeão Teles de Sousa, pedindo-lhe o favor de franquear-nos os
arquivos da Câmara, o que nos prometeu; daí fomos à casa do Sr. Raulino
de Moura, não estando em casa falamos a sua senhora; enfim fomos à casa
do vigário, o padre Raimundo Francisco Ribeiro, saindo daí fomos sentar-
nos na roda do Dr. promotor, que mora paredes-meias com o vigário. Às
oito horas e meia nos retiramos, trazendo alguns jornais de Pernambuco
que me emprestou o vigário. Noite muito fresca, [com] luar.
Sábado, 16: Amanheceu bom tempo, ar quieto — noite fresca, manhã
fresca — termômetro 20 graus.
Vedoia: esperto, velhaco.
Velho: cabra velho, negro velho, caboclo velho; cavalo velho, modo
de descompostura; cabra velho, chamam as crianças a outros que querem
injuriar, ou descompor.
Depois do almoço fui correr uma parte da cidade que ainda não tinha
visto, voltei desse passeio bastante suado e incomodado. Ontem e antes de
ontem comi ao jantar feijão mulatinho, que é o comum no Ceará, e fez-me
mal, como já de outras vezes, e tenho estado o dia mofino e aborrecido.
Todavia fiz sempre o desenho e descrição duma plantinha colhida por
Manoel.
O dia estava sempre belo, às três horas termômetro 23 graus.
De tardinha vieram aqui o Dr. promotor e o Sr. Raimundo Antônio
[riscado “Jerônimo”] de Freitas, e o promotor ficou com Manoel, e o Freitas
convidou-me para passear; saí com ele, corremos boa parte da cidade,
vimos alguns doentes e estivemos descansando um [f. 221] pouco em casa
dele, antes disso tinha ele em uma pequena loja mandado vir cerveja, que
bebemos e em casa mandou buscar mais cerveja, de que ele só bebeu. Este
sujeito costuma a exceder-se em bebidas, e o caso é que se tornou um pouco
impertinente, e andou comigo, entrando em várias casas de conhecidos, de
comadres etc., enfim passando pela casa do Sr. Silveira, o moço casado com
a filha do cornimboque (Antônio Francisco da Silveira) e estando a sala com
senhoras introduziu-nos lá e fez que a senhora do Sr. Silveira, que é uma
mocinha de alguma educação para estes lugares, fosse para o piano, tocasse
e cantasse alguma coisa, o que ela fez passavelmente, estavam no mais uma
senhora e duas moças. O meu companheiro porém estava importuno, e

453
provocava o sorriso das moças, que perceberam logo o estado em que se
achava; e para nos tirarmos de vexames não nos demoramos muito, viemos
ainda para a casa do comandante superior, o Sr. Manoel Antônio de Oliveira,
que veio logo para a sala, e sua senhora, e filha; não tardou ele em pedir
a moça que fosse para o piano, o que ela fez e tocou alguma coisa, com
timidez, não sendo forte neste instrumento [entrelinha apagada].
São as duas casas onde há pianos aqui em Baturité, e pianos muito
bons. Assim o meu companheiro, tendo-me aborrecido bastante, fez
todavia que eu visse e ouvisse tocar e cantar ao piano as duas moças que
aqui em Baturité o fazem, o que bastante estimei. Tendo conversado um
pouco, saímos da casa do Sr. Manoel Antônio cra já perto de três horas e
viemos para casa, para onde me acompanhou [f. 222] e onde me deixou
o Sr. Freitas, prometendo-me voltar amanhã, para vermos outros lugares.
Domingo, 17: Amanheceu belo dia, termômetro 20 graus.
Missa às onze horas, cuidávamos achar mais povo na igreja,
principalmente famílias brancas, que apareceram poucas, no entanto pelas
portas e janelas havia aparecido gente enfeitada, e de bom parecer. Saindo
da igreja, vim até o extremo oposto da cidade para verificar certos pontos
do plano da cidade; chegando a casa aí achei o meu companheiro de ontem
à noite com o José Luiz da Justa, e mais uns pardos e pardas, e destes um
é de Piauí e outro do Rio Grande do Norte, bem gentil, depois tivemos
a casa sempre com visitas, de sorte que só pudemos jantar às ave-marias.
Veio-me também hoje a índia velha Rita Maria da Conceição, mandada
pelo subdelegado a meu pedido. Para me dar notícias das coisas antigas do
lugar; mas pouco colhi, e isso fica escrito em papel à parte.
Era noite quando saimo-nos eu e Manoel e fomos para a roda do Dr.
promotor e vigário, conversamos ao luar até além das oito horas, dissipou-
se a roda, e nos recolhemos.
Ontem ainda tivemos ocasião de observar como [se] emprega aqui
as palavras corno, corna, corninho, corninha nos próprios filhos. O Sr.
Raimundo (homem branco distinto do lugar), brincando com uma filhinha
de ano, [f. 223) dizia muitas vezes: “Esta corna, esta corninha”.
Em outras ocasiões tenho ouvido senhoras brancas chamarem
as filhas cunhã. “Vai ver aquela cunhá”, ou “aquela cunházinha que está

454
chorando”. Aos descendentes dos índios chamam cabras (os cabras, a
cabralhada, a cabraria, cabroeira, cabreirada etc.), ao homem branco que se
porta mal chamam cabra, ao inimigo, ao desafeto igualmente, cabra safado,
denominação de desprezo.
Segunda-feira, 18: Amanheceu a mais bela manhã e muito fresca, o
termômetro na sala a 17 graus e meio.
Tenho estado lendo e extraindo do antigo livro do arquivo da
Câmara, onde está o termo da sua criação, e que me foi benignamente
facultado pelo atual secretário o Sr. Simão Teles.
Fomos visitados pelo Sr. Marçal, subdelegado do lugar. O dia tem
sido magnífico.
Três horas o termômetro na sala está em 22 graus.
Ao anoitecer saí com Manoel a fazer visita, fomos primeiro aos nossos
vizinhos o Sr. João Pereira Castello Branco e o Sr. João Carlos de Oliveira;
daí à casa do Sr. José Pacífico da Costa Caraca, que não achamos em casa;
dirigimo-nos para a casa do subdelegado, o Sr. Marçal Gomes da Silveira,
passando pela casa dum sujeito que pediu-nos que lhe fôssemos ver um
menino doente; da casa do subdelegado fomos à do professor de latim; de
volta estivemos em casa do Justa, que não estava, mas estava uma mocetona
com sua mãe, não sei se parentes da casa, com as quais nos entretivemos
um pouco, e enfim estivemos na roda do Dr. promotor, até além das oito
horas, lindo luar.
[f. 224]
Terça-feira, 19: Amanheceu belo dia, termômetro 18 graus e meio.
Antes das oito horas veio aqui o secretário da Câmara, Simão
Teles de Sousa, como havia ajustado comigo para me ir mostrar o
Arquivo a ver se ainda havia algum livro que me servisse, lá fomos e só
achamos um livro que me podia aproveitar, e que ele mandou pôr-me
em casa por um menino; e pediu-me para ver sua senhora que estava
incomodada, e lá fui; daí fui à casa do sujeito onde está o menino
doente que vimos ontem; daí fui ao quadro, observar os detalhes do
frontispício da igreja para tirar o risco; estando aberta entramos, e a
observamos melhor por dentro. Há nela uma singularidade que vi pela
primeira vez: o altar, banqueta, credências, trono e retábulo, é tudo
feito de tijolo e os ornatos a reboque.

455
Voltando para casa o sol estava já muito quente; almocei, fiz o traço
da igreja, e pus-me a fazer extratos dos livros da Câmara. Eram três horas o
ar se tornou abafadiço, o calor forte, o céu anuviado e a casinha se encheu
de moscas e mutucas que me desesperou. Pelas quatro horas estando o
termômetro em 22 graus e meio caiu um temporal de chuva forte, com
vento do nascente, e roncos suados de trovoada.
Durou uma meia hora. Jantamos depois da tormenta.
[f. 225]
À tardinha saí só (Manoel saiu antes) e fui fazer algumas visitas de
despedida, e despedi-me do filho do Gurgel da Pacatuba e dos Srs. Luiz José
da Justa e José Luiz da Justa, que, não os achando, fiz as minhas despedidas
por intermédio das senhoras. Daí fui para a roda do vigário, onde estiveram
mais o Dr. Barbosa Cordeiro, e o professor de latim João do Rego Falcão.
Seriam oito horas quando me retirei.
Quarta-feira, 20: Amanheceu com nuvens, termômetro 19 graus.
Ocupei-me desenhando o frontispício da Matriz e arranjando-me
para a viagem, que portanto seja amanhã.
Entre dez e onze horas caiu uma copiosa chuva, que durou talvez
meia hora, apareceu logo o sol.
Às três horas da tarde fazia bom tempo — termômetro 21 graus €
meio.
De tarde saí com Manoel a fazer nossas despedidas; separamo-nos
depois: ele foi despedir-se de seus conhecimentos particulares. Eu, depois de
me despedir do vigário, [do] promotor, e [do] Dr. Barbosa Cordeiro, estive
em casa do Sr. João Carlos de Oliveira com sua numerosa e amável família
até depois de oito horas, e recolhi-me. Manoel chegou muito depois. Como
costume as nossas despedidas não foram sem saudades.
Quinta-feira, 21: Amanhece bom tempo, ar quieto, e fresco,
termômetro 19 graus.
Aprontamo-nos, almoçamos, estando presente o Sr. Brito e o irmão,
nosso vizinho; saí ainda e andei vendo lugares que ainda não tinha visto, [f.
226] uma rua projetada e o caminho da Candeia, guarnecido de algumas
casas e por onde descem as famílias para irem ao banho, como há pouco
havia feito a família do Sr. João Carlos de Oliveira. Enfim às oito horas e um
quarto montamos a cavalo, e saímos de Baturité, não tivemos imposição;

456
passando pela casa do padre José Jacinto Bezerra, que ainda não tínhamos
visitado, nos apeamos, e fizemos nossas despedidas. Passamos logo o rio
Putiú; e às oito horas e três quartos passamos o Aracauaba [Aracoiaba],
tendo já recebido o Putiú: às dez e meia passamos o Candeia. Às onze horas
estávamos em Canafístula, onde há um açude, à uma hora e um quarto
passamos o Ácarape, e pouco depois entramos na povoação do mesmo
nome. Dirigimo-nos para a casa do padre Ângelo Custódio que é aqui
capelão; ofereceu-nos a sua casa que não aceitamos para não incomodar, e
ele mandou por um sujeito procurar-nos uma casa, que logo se arranjou, e
para onde fomos, e já lá achamos a nossa bagagem.
Gastamos na viagem cinco horas; podemos, pois, considerar exata a
distância que se dá de Baturité a Acarape de seis léguas, pelo caminho novo,
que é em parte sofrível, ou bom, e em parte ruim pelos muitos tombadoiros,
e pela muita pedra miúda. O dia nos foi favorável, sol alguma coisa quente,
e alguns chuviscos. Em Boqueirão passamos uma boa porção de matas
virgens, inteiramente semelhantes à que vimos na vargem do Baú; pela
primeira vez encontrei atravessando o caminho uma cobra cascavel, teria
seis palmos, e um braço meu de grossura, estava atravessando, e quando
chegamos perto, [f. 227] foi andando tranquila e meteu-se no mato.
Logo que nos instalamos na casa que se nos ofereceu, que é espaçosa,
de telhas, ladrilhada — mas bastante suja e cheia de pulgas — o primeiro
cuidado foi mandar comprar uma garrafa de cerveja, de que bebi um copo,
comendo queijo. Manoel não a quis. Era curioso ver a gente da povoação,
brancos, cabras, negros, machos e fêmeas taludos e crianças, a observar-nos
embasbacados e cheios de curiosidade. As crianças nos rodearam logo e
perto. Vendo eu defronte uma menina, que olhava para nós, chamei-a, ela
desapareceu; mas daí a pouco estando na minha rede me apareceu ela bem
vestidinha, chegou para mim e conversou comigo, mostrando bastante
inteligência, chama-se Maria, tem seis anos, me disse, eu [riscado] fiz-lhe
presente dum rejeito colorido em vidro; e daí a pouco voltou trazendo-me
uns ovos num prato coberto com uma toalha; então estávamos comendo
doce, queijo e pão, porque já eram mais de quatro horas, e apenas havia
uma galinha morta para nosso jantar; recebido o presente pusemos no
prato goiabada, queijo e pão, com que a nossa amiguinha se foi contente,
Visto que não tínhamos jantar tão cedo, vestimo-nos para ir ver o sítio do

457
Sr. Antônio Severino de Vasconcelos, que nos havia convidado. Saímos pois
eu, Manoel e ele, e fomos à casa dum irmão, ao engenho de moer cana, que
tudo é aqui pertinho. O engenho é uma bela fábrica, grande, bem feita,
com moendas de ferro; visto o engenho fomos correr os canaviais e pomar,
que chegam à beira do Acarape, onde se limita o sítio, creio eu; voltamos
e cheguei-me a casa bastante suado. Apenas havia mudado de roupa, e me
posto à fresca, chega [f. 228] a visitar-nos o padre Ângelo Custódio de
Oliveira Castro, o Sr. Antônio Severino de Vasconcelos, o Sr. Professor João
Lourenço de Melo e mais outro sujeito; eu deitado na rede, eles e Manoel
sentados, conversamos até além das sete horas, retiraram-se e então é que se
nos pôs o nosso jantar.
Acarape é uma povoação insignificante e pobre, tem na praça uma
igreja que não é das piores que temos visto no Ceará; a praça é irregular
e bordada de casas ruins; apenas tem uma ou outra de melhor aparência
como é a em que mora o padre; corre por detrás da igreja uma rua, ou
carreira de casas também muito ordinárias, e é aqui que está a em que nos
aboletamos.

Acarape

Sexta-feira, 22: Amanheceu bom dia, termômetro 21 graus.


Enquanto se preparava o nosso almoço, saímos a despedir-nos
da gente da terra, eu e Manoel, do padre Ângelo Custódio de Oliveira
Castro (da família dos Feitosas), do senhor de engenho Antônio Severino
de Vasconcelos, do mestre público João Lourenço de Melo e do Sr. João
Duarte Franco (português) casado com uma irmã do promotor de Viçosa,
Augusto de tal. Tendo almoçado montamos a cavalo faltando pouco para
oito horas. Às nove e um quarto passamos o Riachão 20 metros. Antes das
dez horas passamos o Água Verde, onde se está fazendo uma ponte de ferro,
começando a chover nos abrigamos num telheiro, onde se estão fazendo
tijolos para os pregões da ponte, demoramo-nos dez minutos e partimos; às
dez [horas] e 35 estávamos no Baú, onde também se está assentando uma
ponte de ferro, que já está armada [f. 229] sobre pontaletos, esperando
os pregões, que já estão em boa altura; apeamo-nos, descemos ao rio e

458
estivemos vendo as obras da ponte e cinco minutos antes das onze horas,
montamos a cavalo. Ao meio-dia grande tormenta se aproximou, corremos
e nos abrigamos em uma miserável palhoça, caiu a chuva com força, e
nos reteve ali um quarto de hora; um quarto antes de uma hora chegamos
à povoação da Guaiúba, cujo rio passamos antes, apeamo-nos em uma
casinha de secos e molhados, e aí bebemos uma botelhinha de cerveja,
demora de dez minutos; seguimos por uma aborrecida légua, com grande
soalheira, e seriam duas horas [riscadas duas palavras) entramos na nossa
bem conhecida Pacatuba. Fomos direto à casa do capitão Henrique, que
estava em casa do João Pedro Villa Real, adjunto à seção da Zoologia, que o
Lagos deixou aqui; para lá nos dirigimos. Estava com o Villa Real o capitão
Henrique, o Sr. tenente Arcádio, subdelegado de polícia, e o português
Medeiros. Tínhamos tenção de nos aboletarmos em casa do Villa Real, mas
achamos a casa com poucos cômodos para isso, e fizemos logo tenção de
nos passarmos para a casa do capitão Henrique da Justa, que tem muito
cômodo, e é ele só. Resolvemos no entanto passar esta noite com o Villa
Real. À noite fomos para a casa do Sr. Valente, onde fomos recebidos com
grande contentamento e obsequiosidade; e começaram logo os presentes,
e mimos de frutas, de doces etc. etc. Apareceu mais além das senhoras da
casa uma outra D. Helena, que eu a tinha visto na Fortaleza em casa da
senhora D. Vicência [riscada uma palavra], e que se está propondo para
uma cadeira de meninas, [f. 230] digo, para uma cadeira de ensino primário
para meninas. Conversou-se, chalaçou-se, tomou-se chá e café, com vários
docinhos etc. etc., [riscada uma palavra] e nos retiramos quase às dez horas,
para a casa vizinha do Villa Real.
Sábado, 23: Almoçamos com o Villa Real, tivemos ainda acepipes
vindos das senhoras Valentes; fomos visitados pelo Sr. Crisanto, e nos
mudamos para o sobrado do capitão às onze horas.
Seria meio-dia quando formando-se grande escuridão a leste [e]
aumentando o calor, não tardou a chegar aqui uma forte tormenta de muita
chuva, entremeada de fortes trovões, o termômetro na sala estava em 24 graus.
Das duas para três horas caiu outro forte chuvisco, o termômetro
desceu a 23 graus. Ás cinco horas ainda choveu.

459
Ocupei-me com o estudo dum Hippocratum que colheu Manoel; e
cujo fruto havíamos estudado no Crato.
À tardinha chegou da serra (do sítio do Sr. João da Costa) o Sr. Dr.
Justa (José Antônio da), moço que chegou há pouco da França, e aí estudou
na Escola do Grignon. Eu saí e fui visitar a senhora D. Sabina, e depois fomos
para a casa dos amáveis Valentes donde nos recolhemos talvez às dez horas.
Domingo, 24: Amanheceu chovendo, e roncando trovoada, o
termômetro na camarinha (que é forrada, e envidraçada a janela) estava
em 22 graus e um quarto.
Não saí, esta manhã fomos visitados pelos Srs. José Francisco Albano
e Dr. Severiano [Vitoriano).
Três horas céu anuviado, sol por abertos, ar quente. Termômetro na
camarinha e na sala 22 graus e meio.
[f. 231]
Fomos jantar com o Villa Real, onde se achavam também os três
irmãos Justas, e o Juvenal,
Às ave-marias fomos para a casa Valente, onde conversamos até às
sete horas, em que nos fomos vestir para assistir em casa do Dr. Vitoriano
a um baile que os amigos do Sr. Arcádio lhe deram pelo seu regresso para
aqui, [riscado “da Granja”] onde é subdelegado, tendo vindo da Granja.
Esteve a reunião bonita, com muito mais moças do que eu pensava que se
pudessem ajuntar aqui, faltando ainda algumas do lugar, como as senhoras
Valentes e outras, dançou-se bem com música de Maranguape, e foi servido
um chá com uma variada, delicada [e] abundante mesa de doces, devido a
Sra. D. Maria Teófila.
Segunda-feira, 25: Amanheceu chovendo — termômetro na camarinha
fechada é 22 graus. Às nove horas choveu de novo. Era mais de meio-dia
quando pudemos sair, para irmos ao sítio Rio Formoso, do Sr. Domingos
da Costa; não estando ainda o tempo bem seguro, víamos grupos de nuvens
nimbus em várias partes, mas havíamos prevenido a família, e não nos
podíamos dispensar de ir; éramos eu, o capitão Henrique da Justa, o irmão,
o Dr. José Antônio da Justa, chegado há pouco da França; Manoel e Villa
Real fingiram não ter cavalos e se deixaram ficar.
Fomos [tão] depressa quanto permitia o meu cavalo estropiado e
chegamos a casa sem chuva (apenas apanhamos alguns chuviscos) mas o

460
caminho estava cheio d'água, era pouco mais de uma hora. Achamos o Sr.
Costa melhor do que o havíamos deixado o ano passado; [f. 232] bem que
gravemente enfermo, do fígado, ir doendo já as pernas; sua senhora cada
vez mais bela, mais amável e mais gorda; a filha mais velha D. Olímpia, que
vai se fazendo moça, está mui gentil. Eu cheguei muito suado, e assim estive
até a hora do jantar, que foi depois das quatro horas, e estendidos todos em
redes (bem entendido, os homens) e balançando-nos, conversamos até essa
hora; de vez em quando chupando cana, comendo milho cozido, bebendo
garapa ou caldo de cana picado, ou já vinho de caju excelente, e alguns até
dormindo, pois estávamos tresnoitados do baile de ontem, até que se pôs
a mesa.
Acabado o jantar era já tarde e tratamos de voltar para nossas casas.
Chegamos depois das sete horas, mudei de roupa e fui conversar com
a amável família Valente, donde me retirei depois das nove horas.
Hoje quando vínhamos de noite, ouvindo grande zoada de sapinhos,
me disse o capitão Henrique que há um desses sapinhos, da grandeza duma
polegada, de cor escura no dorso e ventre brancacento, o qual depois de
chover na véspera, se vai de manhã à borda dos riachos produzindo um som
longo, e penetrante, e estando então cheio de ar, e redondo como uma bola.
Terça-feira 26: Amanheceu sem chuva, termômetro 22 graus.
Era mais de meio-dia quando partimos para o sítio do Sr. José da
Costa, na Aratanha, eu, Manoel e o Sr. José Antônio da Justa; subimos a
péssima ladeira sem novidade alguma.
“[£ 233)
Estavam em casa o Sr. Costa; D. Maria Teófila, sua mulher; D. Joana,
caçula e solteira; e D. Liberalina com seu marido o Sr. Albano, e seus quatro
filhinhos mui lindos. O Sr. Juvenal o deixamos em Pacatuba, antes de jantar
bebemos bom vinho de caju, garapa de maracujá, comemos boas atas, até
às quatro e meia em que fomos chamados para o jantar, que como sempre
foi farto, e variado.
Pela primeira vez comemos cambica de muriá, e por essa ocasião
disse-nos o Sr. Costa que a Bysoninea arborea, de que há um pé à beira da
estrada em Tapuia, se chama murici-pitanga.
Vimos uma caxeta de doce de leite feito na Granja, que é leite
cozinhado e engrossado com açúcar, até formar uma sorte de marmelada,

461
que se guarda até mais de ano; e com ele D. Maria preparou-nos uma xícara
de café, que ficou perfeito café com leite.
Disse-nos ela que o doce do abio de que mandei sementes para o Rio
se faz limpando primeiro a fruta da película; depois com uma colher se tira
o miolo, no qual se vai botando a fruta assim limpa, deixando toda nesse
estado, mexe-se bem no próprio miolo para a clarear; e lava-se depois em
água; leva-se ao fogo em água para a ferver e lançada água fora, e escorrida
a fruta, mete-se na calda e se lhe dá o ponto. Este doce seco é muito bom,
diz ela.
[f. 234] Levantamo-nos da mesa quase [às] ave-marias e pedimos
que nos mandassem aprontar os cavalos; D. Maria convida-nos para
dormir, e descer de manhã, mas o Costa não a acompanhando nesse convite
desanimou-nos a aceitá-lo; com efeito eu estava com receio de descer a serra
aquela hora, mas como há lua ficamos para descer com ela. No entanto
chegou o Juvenal. Estivemos todos sentados no grande tabuleiro, que serve
de eira, e de terraço guarnecido de parapeitos, até que saiu a lua, e se pôs
em boa altura. Como eu dizia que desceria grande parte da ladeira a pé
por ter o meu cavalo estropiado, quando quisemos sair achei o cavalinho
do Juvenal com o meu selim, por ser cavalo seguro, e acostumado a esse
caminho, e mais um rapaz com um facho, que veio sempre alumiando-nos
e nos trouxe até Pacatuba, sendo talvez oito horas da noite.
Hoje D. Maria Teófila queixou-se do Capanema, por havê-la
maltratado de palavras à vista duma ou mais pessoas, por lhe dizerem
que ela havia dito ser ele irmão do imperador. Queixou-se também das
Valentes, que, diz ela, e eu acredito, não consentiram que [em] Villa Real
ir a sua casa e a quem já não pode fazer o menor presente para se não
expor ao desagrado e maledicência do povo. Sempre são gente do Aracati,
disse ela, julgam-se melhores que os outros; e logo que aqui [f. 235] sem
se quererem pôr em relação com a gente daqui, não perdiam ocasião de
falar de todos etc. etc. Também a mim me tem parecido isso as senhoras
Valentes, tem-se por brancas, e as senhoras daqui entendem que as não
igualam, a tudo chamam cabras e mulatas; e são pouco comunicativas, é
vício de sua terra.
Quarta-feira, 27: Amanheceu bom tempo, o termômetro na
camarinha fechada estava em 22 graus e, pondo-o fora da janela, antes de o
sol sair desceu a 20 graus e meio.

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Ocupei-me esta manhã com o exame de algumas plantas colhidas
ontem na Aratanha.
Entre uma e uma [duas] horas o céu toldou-se, caíram chuviscos pela
serra, aqui deu uma pequena chuva.
Três [horas] céu anuviado, sol fraco, o termômetro 23 graus e meio.
De tarde fomos eu e Manoel à Monguba, visitar a família Franklin,
estavam no engenho a senhora D. Brasilina, o filho Cícero, e a filha
apatetada por ataques epilépticos; o Sr. Franklin, D. Maria e D. Liberalina
estão na cidade, para onde também amanhã vão a assistirem ao embarque
do conselheiro Alencar, Lá estivemos até que saiu a lua.
Quinta-feira, 28: Amanheceu o céu anuviado, mas sem chuva, o
termômetro na camarinha 23 graus, apesar de eu deixar a vidraça suspensa.
Tenho passado mal de ontem para cá com desarranjo de ventre, moléstia a
que sou sujeito aqui em Pacatuba, e na cidade, tendo passado bem durante
toda a viagem pelo sertão. Em vila Viçosa também sofri alguma coisa.
Ontem nos mandou a senhora D. Maria Teófila um bom presente, duas
compoteiras de doce, uma caxeta de doce de leite, um cesto de laranjas e
limas. [f. 236]
Entre dez e onze horas caiu alguma chuva. Às três da tarde faz bom
tempo, e sol; termômetro 23 graus e meio,
Hoje me tenho ocupado com o desenho da carta da serra de Baturité,
Aratanha etc., em que representamos a nossa viagem.
De tarde saí para fazer algumas visitas, mas o Dr. Vitoriano não o
achei; o Sr. Crisanto o encontramos na porta do Justa com o doutor, irmão
do Arcádio. D. Sabina a achamos em casa de outra senhora, sua parenta, e
para a qual o ano atrasado ou passado receitei, estando ela sofrendo duma
mielite, de que se acha quase boa; aí entramos e estivemos conversando por
algum tempo; era ave-marias quando saí, e fui para a casa do Valente, onde
estivemos eu, Manoel e Villa Real, entretidos até além das nove horas.
Sexta-feira, 1º de março: Amanheceu dia bom, bem que o céu fosse
coberto de nuvens, termômetro na camarinha 22 graus e meio.
Esta manhã não saí ocupado em várias coisas, e aprontando-me para
amanhã descer paraa capital.
Três horas bom tempo, termômetro 23 graus e meio.

463
De tarde saí, fui-me despedir do Sr. Arcádio (subdelegado), do Sr.
Crisanto e do Dr. Vitoriano, que estava em Maranguape, e enfim da família
Valente, onde estive até perto das dez horas da noite.
[f. 237]
Sábado, 2 de março: Amanheceu bom tempo, termômetro 22 graus
e meio.
Estávamos aprontando para viagem.
Almoçamos em casa do Justa; tencionava sair logo, mas tendo o meu
cavalo doente (estropiado) e tendo pedido o do Villa Real para vir nele, não
foi achado, e por isso mandamos seguir o nosso comboio, e ficamos para
jantar com o Villa Real e vir de tarde. Jantaram conosco mais o capitão
Henrique e o subdelegado Arcádio Lindolfo d'Almada Fortuna. Depois
do jantar, não tendo ainda aparecido o cavalo do Villa Real, ele pediu
emprestado ao Sr. Antero o seu animal, no qual fiz viagem bem incômoda
por [este cavalo] estar pior que o meu. Partimos de Pacatuba às quatro
horas e meia, passamos o Genipabu às seis [horas] e 40 minutos e chegamos
à cidade às nove horas. Fomos direto à casa do capitão Oliveira, cujo filho
nos veio mostrar a casa, que foi alugada para nós [e] que é na praça do
Garrote, onde nos apeamos; veio logo visitar-nos o capitão Oliveira, que
não o havíamos achado em casa, e pouco depois mandou-nos sua senhora
uma bandeja com chá, ovos estrelados, pão, broas etc. etc. Aqui estamos
pois tendo concluído o nosso giro, com a maior felicidade, fazendo daqui
a sete dias (9 de março) cinco meses justos, que daqui partimos. Laus Deo.

[f. 238]
Fortaleza 1

3 de março de 1861
Cheguei ontem à noite, tendo concluído o giro que tínhamos a fazer
pelo noroeste da província. Domingo, 3 de março: Estamos em uma casa,
alugada por 16$000 [dezesseis mil-réis] mensais, com bastante cômodo
para nós, nova, limpa, com um sótão e quintal, na praça do Garrote.
Hoje amanheceu ventando bastante, o céu carregado de nuvens, que
vão dando chuveiros de quando em quando até às oito horas. O resto do

464
dia foi de sol, e de calor suportável; por ora só fomos visitados pelo Dr.
Santos Souza, membro da Comissão, o tenente-coronel Franklin andou
procurando a nossa casa, e não acertou com ela. Fomos eu e Manoel a sua
casa, à noite, aí estava toda a família, e conversamos até nove horas em que
nos recolhemos.
Segunda-feira, 4: Amanheceu o céu anuviado, o termômetro na
sala fechada e forrada [marcava] 22 graus e três quartos, das sete às oito
horas deram bons chuveiros. Tenho-me ocupado com o estudo de plantas
colhidas hoje por Manoel. Fomos visitados pelos Srs. Numa Pompílio, Dr.
Medeiros — Dr. Antônio Gonçalo da Justa — e o cônego Sucupira.
Três horas faz sol, céu carregado em vários pontos — termômetro 24
graus. Contou-nos o cônego Sucupira que um João Leite [f. 239] fizera
um sítio no meio da mata do mel bravo, assim chamada porque há aí uma
espécie de abelha, cujo mel em certa época do ano produz na pessoa que o
come bolhas de sangue pelo corpo, e que ainda ali se conserva o nome de
tapera de João Leite. Nesse sítio tentou ele fazer uma cacimba para obter
água, e cavou tão profundamente que já os trabalhadores temiam de estar
no fundo, e se pegaram com a senhora para dissuadir o marido de continuar
naquele trabalho, que já tão fundo ainda não dava esperança de se achar
água, nem a água da chuva ali durava; parece que ele mesmo começava
a desanimar, e abandonou o trabalho. Foi nessa espécie de fojo, em que
caía e morria caça, que caiu um tatu do chamado rabo de couro e que,
não podendo subir, fez um buraco em espiral e safou-se. Este sítio e mata
é em cima do Araripe, entre Crato e Exu. Disse mais que nessa mata, em
tempo de fruta-de-condessa (arronacea [anonácea]), há grande quantidade
de jacus, que ficam extremamente gordos.
De tardinha saímos, eu e Manoel, e fomos ao Palácio cumprimentar
o presidente; de lá voltei a casa a mudar a casaca, pus uma sobrecasaca,
saí de novo eu só; dirigi-me à casa da professora pública D. Francisca,
aí achei também o Sr. Luiz Viana, daí saí e fui à casa das senhoras
Guerras, chegaram depois de mim algumas senhoras [f. 240] fazendo-
se em roda de sete, duas das quais belas moças, desembaraçadas, e bem
conversadas, e isto uma qualidade geral das cearenses; fui enfim à casa do
Manoel Bezerra, que o achei mortalmente doente (hidropsia por ofício
do fígado) mas ainda com esperança de viver algum tempo; também

465
aqui estava a sala bem enfeitada de moças, além das três filhas havia de
fora mais quatro, e algumas meninas; aqui porém havia também alguns
homens, e entre eles um bacharel pernambucano, primo do Ovídio, o
qual sendo rogado tocou e cantou ao piano, que não há ainda muito
tempo soava ao toque dos dedos, e acompanhava a voz melodiosa da
infeliz Firmina. Não me agradou o canto do bacharel e o piano soava
desafinado, e parecia lamentar-se saudoso de outros tempos, e de outros
dedos.
Não esperei pelo chá, e vim para casa tomar o nosso café com leite, e
pão-de-ló. Aqui há vezes em que se passa assim.
Terça-feira, 5: Amanheceu belo dia, nem vento nem chuva,
termômetro na sala fechada 22 graus.
Ocupei-me com o estudo de algumas plantas; e comecei hoje a ler
a Corografia etc. etc. etc. do Império do Brasil, pelo Dr. Mello Morais, que
pelo que pude julgar acho-a escrita sem método, e com pouco critério.
De tarde nos visitou o tenente-coronel Franklin de Lima, que amanhã se
retira com a família para o seu engenho da Monguba. Eu saí, fui à casa do
Bezerra, que o achei na sala, e inda conversou bastante comigo sobre cousas
do [f. 241] Ceará, estava lá só de fora o Vitoriano Borges, saindo de lá fui
à casa do Sr. Franklin despedir-me das senhoras.
Quarta-feira, 6: Amanheceu bom tempo, sem vento nem chuva,
termômetro 22 graus e meio. De manhã estive estudando algumas plantas,
fomos visitados pelo padre Dr. Thomaz Pompeu de Sousa Brasil e pelo Sr.
Justa, o casado com a filha do José da Costa. À noite saí e estava em casa da
professora D. Francisca. O dia foi belo de algum calor da tarde, às três horas
o termômetro na sala estava em 24 graus.
Quinta-feira, 7: Amanheceu bom tempo, termômetro 22[grau] e
meio.
Ocupei-me com o estudo de plantas e lendo a Corografia de Mello
Morais. Visitou-nos o Dr. Pontes, médico, e o secretário do Governo.
Às três horas faz bom tempo, bem que quente, e o céu bastante
anuviado, o termômetro 24 graus e meio.

466
À noite saí, fuí à casa da professora, onde soube que o pai havia
passado mal de ontem para cá; desci até [lá] a vê-lo e voltei bastante suado.
Sexta-feira, 8: Amanhece bom tempo, céu anuviado, termômetro na
camarinha 22 graus.
Ocupei-me com estudar algumas plantas e ler o Jornal do Comércio.
Chegou o vapor Paraná do Sul, recebi ofícios do Governo e cartas da
família; visitaram-nos os senhores João Mendes Pereira, Mariano Machado
(do Sobral), o subdelegado da Pacatuba Arcádio, Teodorico (boticário), Dr.
José Lourenço, o padre Pompeu.
Às três horas fazia calor, termômetro na camarinha 24 graus e meio.
À noite fui visitar D. Vicência, daí fui à casa do Manoel Bezerra, que
vai mal.

467
[f. 242]
Fortaleza 2

Sábado, 9 de março: Esta manhã, pelas dez horas, e antes do almoço


fui à casa do Bezerra onde me esperava o Dr. Mendes, seu assistente, para
conferenciar-nos; feita a conferência o Dr. Mendes me trouxe a casa no seu
carrinho.
Ocupei-me com o estudo de algumas plantas e com ler o Jornal do
Comércio. Visitou-nos o Sr. major Vicêncio Viana. Às três horas faz grande
calma, o céu está anuviado, termômetro no quarto 24 graus.
De noite saí e estive em casa da professora, onde se juntaram várias
pessoas — noite calorosa. Esta noite continuou D. Francisca que no [ano] de
1832, estando seu pai com a família em Crateús, sendo ela muito menina,
e estando todos em uma fazenda distante da povoação ou vila uma ou
duas léguas, depois duma grande enchente do rio (cujo nome não lembra),
encheram-se as fazendas e casas de toda a sorte de serpentes, cascavéis
etc.; que de noite pelo terreiro, dentro de casa, encontravam-se a cada
passo, sendo necessário suspenderem-se nas redes muito cedo; e que daí,
conservando-se sempre luz acesa, viam-se as cobras andarem pelos telhados,
de 20 a 30!! Andando a seu salvo pelos caibros e ripas, brigando umas com
as outras, e brincando [de se] deixarem penduradas pelas caudas etc. etc.
Ela era menina, e é necessário dar-lhe descontos, ficando ainda muito para
causar terror! Outra senhora que estava presente confirmou dizendo que
antigamente era assim pelos sertões.
[f. 243]
Domingo, 10: Amanheceu bom tempo, termômetro 22 graus e
meio; ocupei-me com o estudo duma planta, e com a leitura do Jornal
do Comércio. Visitou-nos de manhã o Sr. Vitoriano Borges, e à noite o Sr.
Gustavo.
Houve hoje teatro, representou-se Antônio José ou o Potro e a
Inquisição, rematando com uma força engraçada, representado por um só
ator vestido de soldado; comprei um camarote, e fomos eu, Manoel e o Sr.
Arcádio Lindolfo de Almeida Fortuna, subdelegado de Pacatuba; custou-
me o divertimento 8$000 [oito mil-réis], o teatrinho estava cheio, e bem
adornado do belo sexo, mas fazia muito calor. Assistiu o presidente e sua
família.

468
Segunda-feira, 11: Caiu alguma chuva de madrugada, amanheceu
bom tempo, termômetro (na camarinha) 21 graus.
De manhã ocupei-me com o estudo de plantas, e leituras do jornal.
Visitou-me o Dr. Miguel Fernandes Vieira. Jantou conosco o tenente
Arcádio e foi depois com Manoel para Pacatuba.
À tardinha saí — fui visitar o Dr. Ratisbona, que chegou do Crato; daí
fui à casa da família Franklin, e daí à do Bezerra.
Foi o dia muito quente, às três horas o termômetro no quarto 23
graus e meio.
Terça-feira, 12: Choveu toda a noite, das onze (?) horas em diante,
amanheceu chovendo, o termômetro na camarinha 21 graus e meio;
continuou a chuva até oito horas.
Manoel foi ontem de tarde com o alferes Arcádio para Pacatuba.
Ocupei-me em alguns desenhos e leitura de jornais. Recebi da casa do Sr.
Franklin uma bandeja com duas compoteiras de doces, um queijinho e 12
atas. Há três dias me mandou D. Vicência um presente de laranjas; [f. 244]
visitou-me hoje o Sr. Thomaz Lourenço da Silva Castro.
Sai à noite, estive um pouco em casa da professora, um pouco à
janela das senhoras Guerras, estive em casa de D. Vicência, e enfim em
casa do Bezerra; aí ouvi ao Vitoriano Borges que houvera no Rio de Janeiro
alguma desordem, que houve movimento da tropa etc., por causa dos
Regulamentos do Governo. Dou quarentena a isso, mas não posso deixar
de afligir-me, visto o estado dos ânimos ali (agora vi pelos jornais do Rio
que foi mentira, 22 de março).
Estou em casa sozinho com o meu criado Francisco, que não me
inspira muita confiança; tendo-se já retirado o Manoel Francisco e o
Barreto, a cozinheira dorme em sua casa; e Manoel está em Pacatuba com
o seu jacamim.
Quarta-feira 13: Amanhece sem chuva; mas o céu carregado,
termômetro na camarinha 21 graus.
Às sete horas [a paisagem está] escura e má e entra a chover, até além
das oito choveu bastante. Visitou-me o Dr. Ratisbona, que me disse estar
com desejos de se ir estabelecer no Rio de Janeiro como advogado. Estive
hoje calculando e passando a limpo as minhas contas a respeito das despesas
feitas com a Comissão; felizmente não me achei em falta, e com o dinheiro

469
do ano passado pude fazer as despesas do corrente bimestre, passando ainda
2028 [duzentos e dois mil-réis] e tanto, em diante.
Três horas da tarde, faz sol, o termômetro na sala está em 22 graus e
meio.
Saí às ave-marias a fazer visitas. Visitei o Dr. Pontes, daí fui à casa
do Dr. José Lourenço, cujos filhos tocaram e cantaram ao piano, daí
passando pela casa de D. Vicência, estava a interessante menina filha do
Gurgel cantando ao piano, e eu parei e pus-me à janela [f. 245] que é de
peitoril, ouvindo-a, e conversando com D. Vicência e D. Helena [riscado]
— Guilhermina, até que a cantora levantou-se do piano, daí dirigi-me para
a casa do Franklin, e vendo a sala vazia, fui-me de volta e fui para a casa do
Bezerra, donde saí quase às nove horas e vim para casa.
Achei em casa bilhetes de visita do presidente, para mim e Manoel,
tendo ele vindo em pessoa.
Hoje impingiram-me a obra do Dr. Ovídio, que eu já tinha lido,
custou-me 5$000 [cinco mil-réis).
Recebi convite do presidente para assistir amanhã à inauguração do
Hospital de Caridade.
Quinta-feira, 14: Amanheceu belo dia, termômetro 21 graus e meio,
às sete horas choveu; veio visitar[-nos] o adjunto do [ilegível] geográfico
Barbedo, que chegou ontem a Fortaleza. Às duas horas caiu um chuveiro.
Três horas faz sol, termômetro na camarinha 22 graus e meio.
Às quatro vesti-me e me dirigi para o edifício que retomou o seu
primeiro destino, € nele se vai instalar o Hospital de Caridade. A função
esteve bonita e solene, com grande concurso da melhor gente da capital.
Saindo dela fui pata a casa do Bezerra, onde toda a gente estava trajada de
festa, e havia grande companhia. Daí fui à casa do capitão Antônio Joaquim
de Oliveira, onde achei igualmente tudo com ar de festa e famílias reunidas,
dali fui para a casa mudar de roupa porque também eu estava de casaca e
decorado; vesti-me mais à ligeira e fui para a casa do Franklin. [f. 246]

Fortaleza

Sexta-feira, 15: Amanheceu chovendo; manhã fresca, termômetro na


camarinha 20 graus.

470
Esta manhã estivemos com o capitão Oliveira escrevendo ofícios para
os diversos membros da Comissão.
Três horas da tarde faz sol, termômetro na camarinha 23 graus.
De tarde saí a pagar visitas, fui primeiro à casa do Sr. Antônio
Gonçalves da Justa, o genro do Sr. José da Costa, que não estava em casa, e
me receberam a senhora D. da Justa, sua irmã (uma das primeiras cantoras
da cidade) e o irmão, o Dr. José Antônio da Justa; conversamos por algum
tempo e fui depois visitar o outro irmão o Dr. Antônio Gonçalves da Justa
Araújo, que mora em casa da madrasta. Dali saí, fui para a casa do Dr.
Francisco Bezerra, onde chegou logo o Dr. Macário, que o vi pela primeira
vez, e depois o Sr. Luiz Antônio da Silva Viana, tagarelou-se até além das
oito em que me retirei.
Sábado, 16: Amanhece belo dia, termômetro na camarinha 20.
Chegou esta manhã o Dr. Gabaglia. Duas horas da tarde ronca
trovoada a oeste, faz sol e calor; o termômetro na camarinha está em 23
graus.
Veio visitar-me o Dr. Gaioso, que, tendo servido de chefe de polícia,
foi agora nomeado presidente de Piauí, e parte qualquer dia para o seu
destino.
Eu saí, fui à casa em que me dizia que morava o Barbedo, cuidando
que lá achava também o Gabaglia, mas achei-me logrado, a casa estava
vazia; dali fui visitar o Dr. Jaguaribe, que chegou [f. 247] com a família de
Sobral; de lá fui para a casa do Sr. Franklin que é paredes-meias, cujas filhas
achei mui bem vestidas, para irem ao Palácio despedirem-se da família do
presidente, pois estão para se retirarem para a Monguba; daí fui para a casa
do Bezerra, donde saí às nove horas, e me recolhi.
Domingo, 17: Durante a noite choveu bastante, amanhece o céu
anuviado, termômetro 21 graus, às nove horas ainda caiu grosso chuveiro.
Agora estando lendo a Corografia histórica etc. etc., do Dr. Mello
Morais, aí encontramos no tomo dois, página 448, o seguinte: “O
governo do Brasil, até agora, só se tem limitado a gastar com mãos largas,
e improficuamente os dinheiros públicos, não só com o fantasma da
colonização, como com outras coisas de nem uma utilidade como, por
exemplo, a viagem científica, aparatosamente decretada, que o resultado
provável que há de apresentar, é envergonhar-nos com o estrangeiro.

471
Não era mais proveitoso mandar-se colonos para o cultivo das terras,
que uma comissão a apanhar borboletas, e ossos de animais esbrugados
pelos urubus! Se a comissão científica fosse explorar as minas de metais
preciosos e diamantes para nos dar um verdadeiro conhecimento das
riquezas delas; demarcar topograficamente o continente brasileiro, para
facilitar aos geógrafos o conhecimento da nossa terra, mui proveitoso seria,
porém gastar-se tanto dinheiro com a classificação das plantas já por demais
estudadas, não só pelos naturalistas [f. 248) de uma dificuldade a toda a
prova, porque em parte não são conhecidos em todas as províncias, pelos
mesmos nomes; e assim deixando dúvidas, seria um grande serviço feito à
ciência, se alguém se propusesse a indicar-se pronúncia das plantas do Brasil
e a sua aplicação em relação usual à medicina e às artes”.
Não sei se esta tirada é do próprio Sr. Mello Morais; parece-me de
Ângelo Germon, porquanto a sua obra é um conjunto informe de tudo
quanto ele achou [riscada uma palavra] ou pode achar [riscada uma palavra]
escrito sobre o Brasil, e que todavia tem sua utilidade.
Também estamos lendo o Panorama [riscadas duas palavras] ano
de 1858 e aí achamos na bem escrita e chistosa viagem ao Minho, pelo
Sr. Gomes de Amorim, passagens que dizem respeitos às construções das
casas de Lisboa e do Porto, aos teatros, aos caminhos etc. etc., que parecem
escritos para o nosso Brasil.
Três horas da tarde sol um pouco anuviado, venta, termômetro na
camarinha 22 graus e meio.
De tardinha saí encasacado, fui ao Palácio, chegou depois o Dr.
Gabaglia; anoitecendo o presidente conduziu-nos para a sala interna, onde
estavam sua senhora, a cunhada, a enteada, e outra moça, a mulher do Dr.
Gaioso, ele, o secretário do Governo, um dos Machados, e o major Viana.
Conversamos por algum tempo e nos retiramos, eu ia para a casa das senhoras
Guerras, que não estavam.
[f. 249]
Saí porque as senhoras iam também sair; e andei pelo meio do
povo que enchia praças e ruas; estive no largo do Rosário, ou do Palácio,
algum tempo, e enfim me recolhi. Estiveram aqui à janela os Drs. Sinval
e Ratisbona. Às sete horas turvou-se o tempo, e caiu uma boa chuva que
aguou o resto da [ilegível] e fez andar o povo de carreira.

472
Em conversa com D. Francisca fez ela uma observação a que
eu não havia dado atenção, e é que as moças do Rio de Janeiro têm o
colo mais esbelto que as do Ceará e os ombros mais caídos, e pescoço
e rosto mais comprido. Assim têm elas os seios mais baixos e pode[m]
usar de vestidos bem decotados; o que não acontece no Ceará, que
com vestidos um pouco decotados mostram os seios. Observei exato
porque isso depende dos caracteres da raça que domina no Ceará. Os
caboclos têm cara curta, pescoço grosso e curtos, espáduas largas e
ombros altos.
Sábado 23: Amanhece bom dia, termômetro 21 graus e meio.
Almoçou conosco o Sr. Brito de Baturité. Ocupei-me depois com o
estudo de algumas plantas e com a leitura do jornal da Câmara. Três horas
faz sol e calor, termômetro (na camarinha) 24 [graus].
De tarde visitou-me o capitão Henrique Gonçalo da Justa — Manoel
partiu esta tarde com João Pedro, Villa Real (que tem estado aqui) para
Pacatuba.
Às sete horas vesti-me para ir ao baile [que] dá hoje o presidente Dr.
Antônio Marcelino Nunes Gonçalves, que deixa esta província e vai para
a de Pernambuco, como presidente. Era cedo, e fui fazer hora em casa do
Manoel Bezerra.
[f. 250]
Fortaleza (5)

Eram oito horas quando me dirigi para a casa do baile, que é a que
está alugada ao negociante João Antônio Garcia, para residência episcopal.
A casa é bastante grande e estava decorada e iluminada com gosto. À
chegada do presidente e sua família tocou-se o hino nacional, ou do Pedro
I, e soltou-se uma verdadeira tormenta de foguetes e rojões. Dançou-se em
duas salas; havia grande concorrência e elegantes toaletes, mas não havia
proporção entre os bailarinos e bailarinas, sendo o destas em maior número;
explicaram-me este fenômeno por estarmos em Quaresma.
Recitou-se versos, bebeu-se cerveja e licores; e às onze horas foi
servida uma rica mesa de doces finos, vinhos, champanhe etc., chá — [com]
saúdes, urras — etc. etc. E eu levantei-me da mesa, e vim para casa, estando
bastante suado, mas a festa continuou.

473
Domingo, 24 de março: Amanheceu bom dia, o termômetro na
camarinha estava em 21 graus e meio, o céu um pouco anuviado. Estudei
uma solanácea.
Três horas da tarde, faz sol, e calor, termômetro 23 graus e um quarto.
A ave-marias veio aqui o presidente da província com seu ajudante-
de-ordens. Trouxeram um folheto da legislação provincial, porque eu,
lendo a lei sobre o estabelecimento duma fazenda-modelo, apresentei-
lhe o meu parecer e observamos sobre ele etc. Logo que ele saiu, saí
também; estive um pouco com as Guerras à janela, fui daí à casa de
D. Vicência onde conversei um pouco, daí à casa do Bezerra, estavam
as senhoras sentadas fora da porta ao luar, mandou buscar cadeiras e
sentei-me na roda, em todas as casas vizinhas estão as famílias sentadas
fora, a frente [f. 251] das casas é para a grande praça do hospital, enfim
fui para a casa do Franklin, e seriam mais de nove horas quando me
recolhi; estou sozinho.
Segunda-feira, 25: Amanheceu bom dia, termômetro 20 graus e
meio.
Esteve aqui o Dr. Capanema, que chegou ontem de Maranguape.
Três horas, faz sol quente, termômetro na câmara 24 graus e meio.
De tarde estiveram aqui os Drs. Capanema e Gabaglia, para tratarmos
de negócios da Comissão; mas discuti[njdo resolveu-se que se esperasse
mais alguns dias, a ver se chegava o Lagos.
Fui visitado pelo Dr. Rodrigo, juiz municipal de Fortaleza. Saí de
noite e estive em casa do Manoel Bezerra, na roda dos costumados e mais
algumas outras pessoas machos e fêmeas, sentados à porta, donde nos
enxotou um chuveiro que caiu. Depois disso voltei para casa, eram quase
dez horas. Foi notável como refrescou o tempo depois do chuveiro, que
durou muito pouco estando antes fazendo calor, como tem feito estes dias.
Será que a temperatura começa a declinar? A noite foi fresca, assim como a
madrugada; bem que o termômetro não o indicasse. Outra coisa é que tem
[riscado “de manhã”) ventado estes dias de oeste.
Terça-feira: Amanheceu dia bom e fresco, vento de sudoeste,
termômetro 21 graus na camarinha.
Fui visitado pelo engenheiro francês o Sr. Berthot, que assistiu ao
meu almoço, visitou-me depois o Sr. Macieira.

474
Estava depois aqui comigo o Dr. Gabaglia. Hoje passei o dia bastante
melancólico, sem que eu possa dar a razão disso. De tarde saí cedo, fui
visitar o tenente Barbedo, daí fui ao Dr. Capanema, onde achei o padre
Pompeu e um português, creio que boticário; [f. 252] daí fui para a casa
de D. Vicência, onde achei as moças D. Helena e Matilde mui ociosas, e
prontas para fazerem visitas; aí me ofereceu a senhora do Lourenço uma
magnífica ata, que a comi todinha; daí fui para a casa do Bezerra, e aí
estivemos sentados fora da porta, com gente da família e visitas; as portas
em seguida estavam também com seus grupos; e as meninas e meninos
retoucando-se pela área, e fazendo jogos de infância, a um belo luar, me
deram ainda mais tristeza; ali me reteve uma como que força estranha, e
casmurro, até quase às dez horas.
Voltei para casa, estava já a cidade quase deserta; era a lua lindíssima,
e o ar fresco, e eu só, e pensativo? É aqui lugar de notar quanto esta linda
cidadezinha vai melhorando, e como há de vir a ser uma pérola do Brasil.
Quando aqui chegamos em fevereiro de 1859 eram as suas ruas todas de areia
limpa, fina, alva, e profunda; apenas se começava a calçar a rua que sobe do
mar e passa pela frente do Palácio. Hoje quase todas as ruas estão calçadas, de
pedrinhas irregulares do Mucuripe; as ruas são todas largas, tiradas a cordel,
e se cortam em ângulo reto, as casas são bordadas de calçadas, ou passeios,
largos, de oito a doze palmos, de tijolos artisticamente assentados, algumas
vezes de pedras em lascas, e de pedras calcares serradas vindas da Europa: há
praças largas — e a de Pedro II é plantada de arvoredo, e outras se estão agora
arvorando. É a cidade muito limpa, não há lamas. As chuvas quando caem
em torrentes, correm, empoçam, mas passada a chuva tudo está enxuto,
e aqui nunca ou raríssima vez se vê chover por um dia inteiro; e sempre
por pancadas, que deixam o resto do dia, ou os [ilegível] [f. 253] livres,
chove muito e grosso ao amanhecer, e às oito horas e das dez em diante fica
a cidade como se não houvesse chovido! Não se vê pelas ruas e cantos as
imundícies, e os charcos de urinas, como no Rio. Não se encontram nas ruas
negros, se não raros; não se vê despejos. Enfim respira-se sempre um ar puro
e saudável. A cidade tem um ar de asseio, que agrada. Agora só se encontram
grupos de crianças pelas calçadas folgando, e jogando ao luar.
À casa em que estou é mui quente, principalmente a sala que olha
para poente; no mais é boa, a sala e o corredor são forrados; as alcovas não

475
têm teto, tem um sotinho [sotãozinho], que ocupa Manoel. Desde que
aqui estou, e já faz 24 dias, tenho passado bem; ainda não sofri defluxos e
desarranjos de ventre, como sempre me tem acontecido habitando outras
casas. Há aqui algumas [alguns] mosquitos (muriçocas) da meudas, e pretas,
que perseguem de dia, principalmente na alcova; há poucas baratas, e há
dias vi um camundongo no quarto, que é coisa rara aqui, e tem também
alguma mosca na sala interior, em razão do pouco asseio da cozinha, e de
ter o cavalo no quintal.
Foi o dia sempre um pouco coberto, e pouco ventoso, e por isso
mormaçoso, o termômetro na camarinha chega a 23 graus, mas logo que
a lua, que é hoje cheia, chegou a certa altura, o céu se tornou puro e o ar
fresco; bem que não venta.
Quarta-feira de Trevas, 27: Amanhece chovendo, o termômetro na
camarinha 21 graus, faz fresco.
Visitou-me o Sr. Luiz Antônio Viana, e fez-me queixas graves sobre
suspeitas que tinha, digo, sobre calúnias que lhe chamou.

[f. 254]

Fortaleza (6)
Quarta-feira de Trevas, 27: Três horas da tarde, termômetro 23 graus.
Estive lendo Jornais do Comércio e Mercantis do Rio. À noite visitou-
me o Sr. Juvenal Galeno, o poeta de Aratanha.
À noite saí a fazer visitas, fui à casa do Sr. Thomaz Lourenço de
Castro, recebeu-me sua senhora, e apresentou-me suas duas filhas moças
(disse-me que tinha sete meninos e quatro rapazes, dos quais dois já [se
fizeram] homens), pouco depois chegou o Sr. Thomaz Lourenço com três
filhas do Sr. Távora Barbosa (do Juá), duas das quais já eu tinha visto no Juá,
mais dois moços e meninas, tudo encheu a sala, que estava bem iluminada,
e ornada de um bonito piano de encosto; as duas filhas e uma das senhora[s)
Barbosas cantaram, alternadas ao piano, e cantaram bem, ora árias italianas,
ora modinhas brasileiras. É pena que no Ceará faltem boas mostras de piano,
e de canto, porque há nas moças verdadeiro talento musical, para piano e
para o canto. Estava tão entretido que, quando dei fé, estava a lua alta, e

476
eram quase nove horas. Saí e fui à casa da D. Vicência, onde conversei um
pouco e segui para a casa do Bezerra, que também estava bem povoada. O
pobre do Manoel Bezerra acha-se muito mal, e bem que mostrou-se ainda [f.
255] animado, e com esperança de viver, parece todavia que na consciência
tem alguma dúvida a esse respeito. Faz cair muitas vezes a conversa sobre si,
sua vida, seus trabalhos, seus pais e parentes, como que está aproveitando
o que lhe resta a viver para relatar os fatos de sua vida, e justificar-se de
graves imputações que fazem cair sobre ele. Hoje então conversou comigo
longamente, contando-me o que já em outras vezes lhe tinha ouvido, que
estando não sei em que vila, Quixeramobim ou povoação do sertão, assistiu
aí a um assassinato em pleno dia, sem que ninguém socorresse a vítima;
antes lhe fechara/m] o portão de uma casa [riscado “quintal”] que dava
para um quintal para onde se refugiou, aí encostando à porta e, armado só
de uma faca, recebeu primeiro uma descarga de bacamartes (os assassinos
eram muitos) de que ficou ileso; mas os malvados carregaram as armas de
novo, chegaram à queima-roupa e o passaram de balas. Isto o intimidou a
ele Bezerra e resolveu-se a vir para a Fortaleza, onde chegou creio que me
disse em 1839. Aqui envolveu-se logo nos partidos políticos, então muito
mais brutalmente assanhados de que hoje, o que lhe granjeou muitos
inimigos. Em 1845 foi o Facundo assassinado em sua própria casa de sete
para oito horas da noite [f. 256] sentado a sua janela, com um tiro de
bacamarte (até pouco tempo existiam sinais de chumbo nas paredes, mas
hoje está tudo apagado). Como é costume levantou-se grande alarido, e
todos os homens de algum vulto no partido contrário foram envolvidos
em monstruosos processos, o então presidente general Coelho foi acusado
de mandatário, depois atribuiu-se à mulher, porque fora as suas mãos uma
carta de Facundo a um sujeito na qual ele injuriava gravemente a essa
senhora etc. etc. O Manoel Bezerra foi também envolvido nessa questão
e acusado, processado, e julgado pelo júri que o absolveu. Protesta ele pela
sua inocência, que não tinha queixa alguma daquele homem etc. etc. O
general Coelho escapou de ser assassinado, fizeram-lhe uma tocaia ao lado
da casa do comendador Machado, em uma noite em que lá esteve; quem
o salvou foi uma das filhas do Machado, e sem o pensar, porque todo o
tempo em que ele estava à janela do lado da espera estava ela sempre a seu
lado; e o assassino, tendo compaixão da moça, não atirou. O Bezerra teve

477
assassinos portados para o matarem por muito tempo, de sorte que esteve
durante quatro anos sempre rodeado de cautelas. Durante todo esse tempo
nunca teve vela [f. 257] acesa em sua sala; assevera que muitas vezes via
os matadores rondarem a casa; e uma vez, vendo que o não alcançava de
outro modo, subiram] ao telhado da casa e afastaram algumas telhas, para
dali o assassinarem; aconteceu que o buraco foi feito em cima da rede onde
dormia uma de suas filhas, D. Maria; a mãe pressentindo a bulha, acordou
a menina, e assim ficou ainda burlada essa tentativa. Desce algumas vezes a
Maranguape, mas sempre alta noite, e em dias incertos etc. etc. De [18]49
em diante os receios cessaram e então não se ocultou mais; sofrendo uma
hepatite antiga, esta se agravou agora por grandes desgostos que sofreu o
ano passado; despediram-no de procurador da Câmara Municipal, com
cujo ordenado sustentava sua família, morre-lhe no Pará uma filha, D.
Francisca, que havia casado com o Dr. Ovídio, secretário do Governo dessa
província, e creio que não irá muito longe.
Quinta-feira, 28: Depois da meia-noite caiu uma forte chuva com
vento e trovoada, amanheceu o dia chuvoso, termômetro 20 graus e meio.
Ocupei-me em ler jornais, o dia mais ou menos coberto, às três horas
o termômetro 23 graus.
Ao anoitecer saí conforme meu costume, bem que fuzilava e estava
o céu carregado a sudoeste; quando cheguei à porta do Franklin começa a
chover e voltei para casa; a chuva foi sempre a mais[...) [f. 258]

Fortaleza (7)
[...] e quando ia chegando à rua larga do Garrote caiu com força e
me molhou bastante.
Chegaram de Pacatuba Manoel e Villa Real. Às nove horas nova
chuva copiosa com trovoada.
Sexta-feira da Paixão, 29: Seriam quatro horas da madrugada quando
caiu uma forte chuva com roncos de trovoada, amanheceu sem chuveiros,
termômetro 20 graus e meio.
Ocupei-me estudando uma planta que trouxe ontem Manoel
(segenaria), três horas da tarde sol fraco, termômetro 22 graus e meio.
É de notar como custa aqui até a alimentação de cavalos, estou
gastando por dia com o meu cavalo 1.500 réis em média! Vendem aqui o

478
capim por arrobas, mas o que chamam arroba é um feixe que pesaria oito
libras, uma zarga [riscado “feixe”] de capim para uma noite ou um dia
custa 1.000 [mil-réis]!! Eu gasto com o meu sustento, estando só, 2.500 a
3.000 [réis] dias [2], sem falar no salário da cozinheira, que é de 10$000
[dez mil-réis] por mês; e isto é por ser uma pobre mulher preta. É verdade
que com a mesma despesa nos alimentamos dois quando Manoel aqui
está.
Hoje ouvi que se vendeu um cavalo por 16$000 réis! Estive em casa
do Bezerra à noite. Já compramos aqui para a casa ovos a 40 réis.
Sábado de Aleluia, 30: Ao romper do dia caiu alguma chuva,
termômetro 20 graus e meio.
Muito cedo rompeu a aleluia, e por aqui passou o Judas festejado e
laur[elado pelos rapazes e moleques [f. 259]
Duas horas [da] tarde, faz sol, vento de sudoeste, o termômetro na
camarinha 22 graus e meio;
É de notar que tem quase sempre em todos estes dias, de sudoeste.
À noite saí a minhas visitas, fui primeiro à casa das senhoras Guerras,
estavam na sala não menos de cinco mocetonas, uma das quais [riscadas
duas palavras] é um bela senhora, e mui bem conversada; daí fui à casa de
D. Vicência, e enfim à casa do Bezerra, onde estive até às nove e meia.
Domingo de Páscoa, 31: Caiu alguma chuva pela madrugada. Seis
horas, termômetro 20 graus e meio.
É hoje domingo de festa! E aqui o passamos insipidamente, e cheio
de tristeza.
Uma coisa notável no Ceará é que dá pouco, ou nenhuma traça
nos livros, ainda não vi aqui um livro traçado, e nos arquivos há grande
estrago do cupim, mas não de traça (a lepisma não é traça mas ainda não
presenciei seus estragos). Nos livros será isso porque os há poucos no Ceará,
e esses poucos andam sempre pelas mãos! Mas nos arquivos, que os há bem
antigos?!
Já manhã saí, fui à casa do Capanema e do Gabaglia a negócio da
Comissão.
Três horas da tarde faz sol, venta do sudoeste, termômetro 22 graus.
Mandou-nos D. Vicência um grande e excelente prato de canjica
(papa de milho verde).

479
À noite saí, passei pela casa de D. Vicência, fui à do Gabaglia e daí à
do Bezerra. Mas estou sempre embezerrado, voltei cedo para casa.
[f. 260]
Segunda-feira, 1º de abril: Amanheceu belo dia, termômetro 20
graus.
Tenho estado ocupado a fazer contas, minhas e da mesma seção.
Tem feito uma bela manhã de sol, e alguma coisa quente, termômetro
na camarinha 23 graus e um quarto.
De tardinha, estando a preparar-me para sair, chegou o padre
Pompeu, e demorou-se conversando comigo e Manoel até quase oito horas,
de maneira que não saí.
Terça-feira, 2: Pela meia-noite, ou pouco depois, caiu um bom
chuveiro, amanheceu o dia chuvoso, termômetro 20 graus e dois terços. Às
oito horas caiu uma grossa chuva.
Estive ocupado estudando algumas plantas.
Três horas faz sol, céu anuviado, termômetro 22 graus, vento de
sudoeste.
Agora (cinco horas) nos chegou aqui o Capanema muito aflito, porque
teve notícia de que o iate Palpite, que vinha do Acaracu [Acaraú], naufragou
na costa; e vinha nele a sua bagagem, roupa, dinheiro, coleções, notas
fotográficas etc. etc., disse ele que eram quatro malas e oito ou dez caixas!
Saí a fazer minhas visitas, fui à casa do Franklin de Lima, que amanhã
leva [o] resto da família para a Monguba; aí achei Manoel, e com ele me
dirigi para a casa de D. Vicência, deixei-o aí e fui para a casa do Bezerra,
onde conversamos até às nove horas.
Faz hoje um mês que estou habitando esta casa no Garrote, e tenho
passado sempre bem do peito [f. 261] e do ventre, o que nem me aconteceu
em outras casas que tenho habitado. Hoje porém ao amanhecer sinto umas
cólicas, e fui ao ban[heiro] duas vezes, mas sempre lançando poucas fezes,
mas estas mal cheirosas e acompanhadas de gazes.
Quarta-feira, 3: Caiu alguma chuva ao amanhecer, agora seis horas
faz sol — termômetro 20 graus.
Mandei hoje um próprio com carta ao Lagos em Sobral, ou onde
estivesse, cuja demora nos tem causado transtornos.

480
Chegou esta manhã o vapor do Rio, recebi carta do mano Antônio;
veio no vapor o Dr. Coutinho com sua senhora; fomo-los visitar em casa
do Joaquim Mendes, onde pousaram; não os achamos, [decerto] andando
fazendo visitas, mas os encontramos na rua e aí os cumprimentamos;
andavam com o Dr. Mendes no seu carrinho. O Coutinho me veio depois
visitar e Manoel foi jantar com eles, sendo convidado.
Às três horas fazia sol, e calor, o termômetro estava em 22 graus e
meio.
De tarde nos visitaram o Soares e Barbedo, adjuntos da seção
astronômica. Saí de noite e fui para a casa do Bezerra, onde estava também
o Dr. Gabaglia, chegou depois o Vitoriano Borges e o Gustavo. Depois das
nove horas me recolhi.
Tenho lido hoje jornais da Câmara trazidos pelo vapor, que nos
mandou o capitão Oliveira.
Quinta-feira, 4: Amanheceu chovendo — termômetro na alcova 20
graus e meio. Às sete horas chuveiro forte.

[f. 262]
Fortaleza (8)
Tenho me ocupado com o estudo de algumas plantas e, para descanso,
lendo jornal da Câmara.
Duas horas da tarde sol, céu com grupos de nuvens, termômetro 23
graus.
De tarde saí a pagar visitas, fui à casa do Sr. Joaquim Mendes [riscada
uma palavra] e filhos, que me recebeu no seu jardim, onde há um belo
pavilhão, e mui fresco; saí já noite daí, e fui à casa do cônego Sucupira,
que não achei; daí fui à casa do Gustavo, que não estava também, mas
receberam-me suas manas; daí fui à casa do tenente Pedreira (filho do Rio
de Janeiro); daí fui à casa do João Mendes que também não estava, nem
a família, enfim fui para a casa do Bezerra, onde estive até nove horas, e
recolhi-me. Conversando com o Bezerra disse-me ele que no Piauí bebeu
vinho de palmeira (a mesma do Ceará), que não é mais do que a seiva
da palmeira, colhida das palmeiras derrubadas nas queimadas; fazem um
buraco no tronco da palmeira deitada, cobrem-no, e no dia seguinte acham

481
o buraco cheio d'água, que é o vinho. Há no Piauí em certos lugares matas
condensadas só de palmeiras, onde não entra gado, por extensão de léguas.
O povo faz roçados ou derrubadas no meio, queima e planta; fica a roça
protegida [e] não nasce mato, e só volta lá quando as plantas estão em
ponto de se colher, seja mandiocas ou legumes.
[f. 263]
Sexta-feira, 5: Amanheceu sem chuva, o céu anuviado — termômetro
20 graus.
Depois do almoço montamos a cavalo, seriam nove horas, eu e
Manoel, passamos por casa do Capanema que já estava a cavalo, e por casa
do Dr. Pompeu, onde nos apeamos enquanto ele se aprontava e mandava
arrear o cavalo. Eram mais de dez horas que todos seguimos para Vila
Velha, que é daqui a duas léguas, chegamos lá ao meio-dia com bastante
sol. Apeamo-nos em casa do Gouveia, onde mora um seu filho que lhe
administra o sítio. Estava ele embaixo no serviço com um sujeito velho, e
caçando com uma espingarda de dois canos; acompanhou-nos até o rio,
lugar chamado Porto de Holandeses.
Tendo feito a colheita de plantas a que íamos, tornamos para casa,
era já mais de uma hora, e o sol estava ardente. Deu-nos sofrível aguardente
e apresentou-nos grande soma de enormes cocos-da-bahia, que chamam de
praia, para bebermos água de coco, que estava excelente.
Disse-nos o Pompeu que nasce ali uma fortaleza e que a fortaleza
tomada pelos holandeses é a da capital.
Montados a cavalo, seguimos adiante eu e o Pompeu, cujo cavalo,
de andadeiro, trouxe-me quase sempre a galope; chegamos à cidade eram
quase três horas, suados [e] queimados.
[f. 264]
Jantamos às quatro horas e conosco o Capanema. De tardinha saí,
estive em casa de D. Vicência, e depois em casa do Bezerra.
Sábado, 6: Durante a noite caíram alguns pequenos chuveiros,
amanheceu belo dia, termômetro 20 graus.
Ocupei-me com o estudo de plantas colhidas ontem. Três horas faz
sol, e calor, termômetro 23 graus.
Ao anoitecer saí, ia à casa das senhoras Guerras, mas quando eu
chegava à casa, elas saíam, iam também fazer visitas; desci passando pela

482
casa do João Mendes e estando ele à janela entrei, estava também o sogro,
o Sr. (pausa) aparece depois a senhora, e uma das irmãs, mui tafulas, e
vestidas de branco; daí fui à casa do Bezerra, onde estavam o Luiz Viana e
o Vitoriano Borges. Começou a escurecer no nascente, e prometer chuva,
despedi-me e saí com pressa, quando passava pela casa de D. Vicência
começou a chover, entrei, caiu a chuva com força; logo que cessou saí, com
chuveiros, e cheguei a casa a salvo. É uma grande vantagem desta cidade,
acaba de cair uma grande chuva, não há receio senão da goteiras; hoje já se
vão fazendo as casas com canos embebidos nas paredes, as ruas ficam logo
secas; há declive para o mar, e para a terra, por isso corre logo as águas, e
o chão arenoso absorve logo toda a água, e hoje a calçada conserva as ruas
limpas e secas, os passeios à beira das casas, largos e ladrilhados, são mui
cômodos. Depois que chegamos [f. 265] entrou logo a chover de novo.
Choveu toda a noite, e bastante trovoada.
Domingo, 7: Amanheceu chovendo, termômetro 20 graus.
Ontem, estando se descobrindo uma casa aqui de frente, observei
uma maneira fácil de descer as telhas, por meio de bicas de carnaúbas, pelas
quais se fazia que as telhas caiam embaixo em chão de areia funda.
De uma às três horas choveu bastante, termômetro 21 graus.
São cinco horas [e] faz tempo bom, estão todas as janelas da mesma
rua antes [da] praça do Garrote enfeitadas de moças, onde as há; por fora
pelas calçadas grupos de meninos folgando, e numa casa quase fronta soa
a música e giram na sala os dançarinos, e bem parece uma sociedade de
moços e moças, que se exercem nas quadrilhas; porquanto quase todos os
domingos e dias santos há ora numa, ora noutra casa das famílias, este
exercício, de manhã até a noite. Esta gente do Ceará gosta muito de dança
e de canto, e há nelas grandes propensões para isso; há muitos pianos, e
muitas meninas que, ainda com a falta de bons mestres, tocam e cantam
com gosto. Aqui na cidade anda-se de noite sempre ao som do piano e do
canto por toda a parte: e no tempo do presidente João de Souza, mais que
agora tocava a música do regimento todos os domingos de tarde, na praça
de Pedro II; e passavam muitas vezes pela cidade bandas de música.
Ão anoitecer saí a fazer visitas; fui pela primeira vez à casa do Sr. Elias
Martins de Sá, [...]

483
[f. 266)
Fortaleza (9)

[...] pai do Numa Pompílio; recebeu-me a senhora [e] vieram para


a sala duas filhas e a nova mulher do Numa; chegou depois o Sr. Elias,
que é homem muito noticioso. Da sua conversa conservo de lembrança
a seguinte: “O padre Manoel Martins (seu pai) esteve de capelão em 5.
Pedro na serra Grande, e contava que o índio que lhe davam para caçar
e pescar, ele o empregava em colher frutas silvestres em que abundava a
serra, entre outros eram o “ananás e o maracujá assu silvestres”. O Sr. Elias
esteve no Rio Grande do Norte, donde veio em 1817 e diz que há ali uma
árvore chamada golandin, cuja madeira é sem uso, mas é pau linheiro, e
por isso se servem dela para mostrar em novenas etc. Esta árvore tem uma
copa particular, forma primeiro uma copa redonda, cresce a haste e mais
acima forma segunda copa maior, € terceira etc.; floresce sem folhas, e suas
flores são encar[nJadas, de sorte que [0] florido produz um belo efeito, seu
fruto é pequeno, seco, estopento (será alguma Bombacea?). Há outra árvore
cascuda, chamada comixá, é sobre esta que cresce a baunilha.
Saindo da casa do Sr. Elias fui para do capitão Antônio Joaquim
de Oliveira que não estava; estive com a senhora algum tempo, e segui
para a casa do Bezerra, onde não me demorei muito tomando a chuva que
ameaçava. Chegando a casa achei aí o Dr. Capanema com Manoel, [f. 267]
o qual com[eu] conosco um magnífico prato de canjicas, que nos mandou
hoje a senhora do capitão Oliveira [riscado “D. Vicência”], acompanhado
de duas compoteiras de doce, de que ainda não provei nem sei de que são.
Segunda-feira, 8: Seis horas chove bastante, termômetro 20 graus,
são oito horas e continua à chover muito.
Estudei e fiz um esboço imperfeito do Assalus. A mãe do Numa me
mandou duas compoteiras de doce.
A chuva durou até além de nove horas, agora duas horas faz sol, e o
céu está anuviado, termômetro 21 graus.
Ao anoitecer fui conversar em casa de D. Francisca, a professora; aí
se foram despedir, estando de viagem para Pernambuco, um moço dali,
pianista, que aqui se casou com uma senhora que creio ser cunhada do

484
Varonil — ao menos eu a via muitas vezes em sua casa. Em conversa me
disseram coisas horrorosas do tratamento dos escravos por mulheres aqui
no Ceará, e mesmo com pessoas de servir livres, como também as temos
no Rio, e. g. [exempli gratia (poer exemplo)] a nossa vizinha do engenheiro
velho. Mas pelo que me contaram era isso muito usual no Ceará, e ainda
continua, bem que menos.
Terça-feira, 4: Amanheceu bom tempo (de noite não choveu),
termômetro 20 graus. Manhã fresca. É notável nesta província a marcha
do calor; o sol é muito quente, abrasador, mas dentro de casa a sensação
de calor não é tão desagradável como do Rio; bem que [f. 268] se sua
muito (eu aqui suo mais que no Rio, principalmente aqui na cidade, é para
mim um grande incômodo estar vestido, quer de dia, quer de noite, tenho
sempre a roupa ensopada, mas chegando a casa de noite suado, despindo-
me e deitando-me na rede, refresco e as noites passam melhor que no Rio.
Será isto devido à rede? E ao serem as casas de telha vá?* Esta noite por
exemplo esteve fresca, bem que o termômetro de Reaum não descesse de
20 graus. Há mais a vantagem de não se ser atormentado pelos mosquitos,
senão raramente, e aqui na cidade são mais importuna de dia que de noite.
Durante a manhá ocupei-me com o estudo de algumas plantas.
Duas horas da tarde faz sol, termômetro 21 graus e dois terços.
Agora olhando para o ladrilho da sala me ocorreu esta observação
que no Ceará é muito raro o emprego de tijolos grandes quadrados; usam
comumente tijolos de paralelograma, ou da forma dos tijolos de alvenaria,
e assentados de diversas maneiras, até mesmo nos passeios ou calçadas das
ruas (desenho) etc., ou de losangos (desenho) combinados de diversos
modos, mas estes são menos usados ou enfim de tijolos hexágonos famosos
— e são os mais comuns, ou também em quadradinhos.
Manoel partiu há pouco para Pacatuba e Maranguape.
À tardinha vesti-me para visitar o ex-presidente (o padre Cônego
Pinto tomou hoje conta da presidência). Cuidando achá-lo no sobrado de
D. Vicência, para onde se dizia que ele passava, mas achei-me [f. 269]
enganado; ele continua a habitar em Palácio e o cônego padre Pinto em sua
casa; à vista disso segui para diante, fui para a casa de D. Vicência, onde
estive até depois das sete horas; daí fui para a casa do Bezerra onde também

* É seguramente pelo vento continuado.

485
estava o Dr. Gabaglia, e dali saí às nove horas. Hoje o Sr. Luiz Viana
conversando comigo à janela do Bezerra referiu-me vários acontecimentos
daqui, e entre outros algumas particularidades da morte do Facundo. Há
em tudo ainda algum mistério, ou ele tem necessidade de o conservar.
Um sujeito do Icó, o major tal (não me lembro do nome, que creio ser
Agostinho) era membro da Assembleia Provincial quando os chimangos
envenenaram a talha d'água com tártaro emético (cujo autor foi o Dr. José
Lourenço, sem dúvida combinado com outros e com Facundo, que era o
presidente da Assembleia). Esse major Agostinho? Era homem adoentado,
o efeito foi nele mais violento, e seus achaques se foram desde então
agravando até que veio a morrer no Icó; mas a morte de Facundo foi ainda
em vida dele, que já era mal conceituado e avessado a crimes dessa ordem.
Assim o que mais se crê, ou não se quer declarar, é que foi ele o mandante.
Os chimangos levantaram grande alarido, e atribuíram a morte quase a
todo o partido caranguejo, principiando pelo presidente, que era o general
Coelho, e envolveram no processo todos quantos puderam, ao Coelho
fizeram esperas para o assassinarem; sendo os assassinos descobertos, caíram
com força sobre o Jacarandá, que era oficial de linha, indiciando[-0] como
o diretor dos assassinos. Não se sabe o que há de verdadeiro.

[f. 270]

Fortaleza (10)
Nesta ocasião diz o Sr. Viana: mas os indícios parece que eram
veementes porque, se no primeiro júri foi absolvido por espírito do
partido, no segundo foi condenado e anulado o processo, por terceiro júri
foi necessário grandes esforços de [ilegível] aos jurados para ser absolvido.
Este Jacarandá é tio, e não irmão do Gustavo; era irmão da mãe deste.
O Bezerra, como já em outra parte referimos, foi também processado e
absolvido. A secretária do presidente foi também envolvida nesta questão,
porque, apreendendo uma carta do Facundo a um seu amigo, era ela aí
maltratada, e denominada giganta adiniota, e sendo-lhe mostrado ela
indignada proferiu estas palavras: “Deixem-no que não há de isto de [ter]
outra”. Quanto ao presidente, foi ele inteiramente inocente neste negócio.

486
Estava em Palácio jogando o voltarete, quando lhe deram a notícia de
haverem matado o Facundo, atirou as cartas na mesa dizendo: “Perdi tudo
quanto tinha ganhado.” É provável que o furor dos parentes e amigos do
morto contra seus adversários tivesse também por causa não só desfazerem-
se deles, como desviar a opinião pública da história do envenenamento,
que fazia recair sobre eles a culpa do acontecido. Alta noite caiu um bom
chuveiro.
Quarta-feira, 10: Linda manhã, termômetro 19 graus e dois terços,
às dez horas caiu um chuveiro.
Três horas faz sol, o termômetro na camarinha 22 graus.
Agora estando à mesa ouvi ao criado Luiz e à Chica cozinheira o
preço de alguns comestíveis.
[f. 271]
A carne está barata, diz a cozinheira, vendem a 100, a 120, ea escolhida,
a 200 réis a libra; o açúcar refinado ordinário custa 320 [réis] a libra; e o
fino, chamado cristalizado, está a 400 [réis] a libra. Um queijo comprado aos
matutos tendo cinco libras custa 2$000 [dois mil-réis), e nas vendas a retalho
custa 400 [réis] a libra; uma libra de café em grão custa 240 réis, e torrado
limpo custa 640! a libra. Em Quixeramobim está a rapadura vendendo-se a
peso, e a 120 [réis] a libra. O pão aqui, que não é grande coisa, do tamanho
e forma do nosso pão de ralo antigo, custa 40 réis. Uma terça de milho, que
dá duas rações pequenas, custa 160 [réis], uma carga de capim, que equivale
a um dos nossos bons feixes na roça, custa 800 réis e às vezes 1.000 [mil-réis]!
Sustento o cavalo com 1.580 [réis] por dia (capim e milho).
Esquecia-me do vinho: o de sexta ordinário custa 800 réis, a garrafa;
o do Porto, se é que é tal, custa 2.000 a 2.500 [réis] a garrafa. Nós estamos
aqui bebendo dum, a que chamam do Porto, engarrafado, e que é apenas
tragável, e nos custa a 1.280 [réis] a garrafa.
De tarde vesti-me de casaca para visitar o presidente que saiu e o que
entrara. Fui primeiro ao Palácio, onde [estava] o Dr. Marcelino, Antônio
Marcelino Nunes Gonçalves, ex-presidente, e achei aí também o vice-
presidente padre Cônego Pinto, Antônio Pinto de Mendonça. Saindo daí
fui visitar os Vianas; daí à casa de D. Vicência e enfim à casa do Bezerra,
donde venho agora nove horas. Fuzilava muito ao sul.

487
[f. 272]
Quinta-feira, 11: Amanheceu o céu coberto, caindo chuviscos,
termômetro 20 graus. Toda a manhã estava coberta, e de vez em quando
chuviscava.
Estava estudando algumas plantas.
Três horas da tarde, faz sol. Termômetro no quarto 21 graus e dois
terços.
Quarta-feira conversa em casa da professora D. Francisca, onde
esteve também o Luiz Viana além da outra gente de casa. Às nove horas
me recolhi.
Sexta-feira, 12: De madrugada, depois de um forte trovão, caiu
um chuveiro, amanheceu o dia coberto, termômetro 20 graus. Tem sido
sempre o dia mais ou menos coberto. Seriam duas horas quando chegou o
Dr. Lagos de Sobral. Três horas, termômetro 22 graus.
De tarde estivemos juntos aqui eu, Lagos, Capanema e Gabaglia,
para consultar-nos sobre negócios da Comissão.
Às sete horas saí, fui à casa de D. Vicência e daí à casa do Bezerra,
onde estive até nove horas. Quando saí caía um chuvisco, em chegando a
casa choveu mais. Quando ceávamos eu e Lagos caiu um forte chuveiro.
Sábado, 13: Chuvisco de noite, amanheceu o céu anuviado,
termômetro 20 graus.
Preço dos comestíveis na Fortaleza, está-se agora vendendo o peixe
grosso a peso, comprou-se aqui o peixe a 400 réis a libra, e o da pescada
custa 640 [réis].
Os ovos estão a 30 réis, o vinho tinto, mesmo ordinário, a 400 [réis]
a garrafa, não há vinho branco; o que [f. 273] estamos bebendo, com o
nome de vinho do Porto, nos custa 1.280 [réis] a garrafa, e é quase só
aguardente; o de melhor qualidade do Porto custa 2.000 e a 2.500[réis]; o
vinho de caju da serra a 1.000 [réis] a garrafa.
E o outro dia, conversando com o pai do Numa Pompílio me
disse ele que os índios e caboclos do Rio Grande do Norte usam botar
na cabeça a polpa com sementes da baunilha, para depois catarem-se e
darem cafunés com as sementinhas.

488
Das sete às nove horas choveu bastante, agora duas horas faz sol e o
termômetro está em 22 graus.
Aqui esteve inda agora o tenente Lassance, que chegou de Russas.
Hoje oficiamos ao Governo Imperial a respeito da continuação ou
cessação dos trabalhos da Comissão.
De tarde estiveram aqui o Pompeu e Capanema. Às ave-marias saí,
e fui visitar o vice-presidente, padre Pinto de Mendonça; daí fui ao Dr.
Rodrigo, juiz municipal, que o não achei; daí me dirigi para a casa de
D. Francisca Bezerra, fui depois à casa de D. Vicência, visitei o tenente
Lassance em casa do Dr. Gabaglia, enfim fui à casa do Manoel Bezerra, e
antes das nove me recolhi — por estar o tempo ameaçando chuva.
Achei em casa Manoel, que chegou de Pacatuba.
Às dez horas caiu alguma chuva. Agora soa a música em uma casa de
frente, onde houve hoje casamento.

[£. 274]

Fortaleza (11)
Domingo, 14 de abril: De noite houve grande trovoada com bastante
chuva, amanhece o dia coberto, termômetro 20 graus e meio.
Chegou esta manhã o vapor do norte, e seguiu de tarde, escrevemos
para a família; vem nele o Dr. João Silveira de Souza, que acaba de ser
[nomeado] presidente da província do Maranhão, desembarcou e estava
em casa do comendador Machado, onde o fomos visitar ao meio-dia.
Estava a casa com muita gente, e foi chegando mais até uma hora, em que
chegaram o ex-presidente Antônio Marcelino e o vice-presidente Pinto
de Mendonça. Então fez suas despedidas, e meteu-se no carrinho com
os dois e o secretário do Governo, Dr. Sinval; foi acompanhado até o
embarque por muitos cavaleiros, eu que não tinha cavalo vim para casa
com Manoel.
Três horas da tarde sol toldado, calma grande, termômetro 21 graus
e meio.
Não indica o termômetro forte calor, mas a demasiada umidade
do ar produz copiosa transpiração. Eu tenho estendida na corda duas a

489
três camisas de meia, e de um dia para outro ainda as acho úmidas. É no
Ceará, mesmo no sertão, como observei em Viçosa e Sobral, os meses de
janeiro a abril, quando chove, minimamente úmidos. Saí à noite, visitei D.
Francisca, a casa das Guerras, mas não estavam em casa; segui para a casa de
D. Vicência, onde ouvi tocar piano; e daí fui para a casa do Bezerra, donde
saí às nove horas. Tencionava passar por casa do Thomaz Lourenço, onde
estava Lagos e Manoel, mas era tarde, e a noite não estava boa chegando a
casa, eles chegaram porém depois.
[f. 275]
Segunda-feira, 15: Da meia-noite em diante choveu muito com
trovoada. Amanheceu chovendo e inda roncando trovoada, termômetro
20 graus.
Ocupei-me de manhã com o estudo de algumas plantas. Tive de ir ao
Palácio falar ao vice-presidente (negócio da cadeira de Pacatuba).
Duas horas da tarde faz sol amanhecido; mas está quente,
termômetro 22 graus.
Às quatro estiveram aqui os Srs. Joaquim [riscado — Manuel]
Mendes, e seu filho doutor em Medicina, e o Manoel Bezerra, que se
acha muito melhor, e como nunca pensei. Às cinco horas nos reunimos
eu, Lagos, Gabaglia e Capanema, em sessão para tratarmos de negócios
da Comissão. Ao anoitecer saí e fui fazer minhas visitas; conversei à janela
com D. Francisca Bezerra, daí fui à casa das senhoras Guerras, daí à casa de
D. Vicência e enfim em casa do Bezerra. Voltei para casa tarde, já o Lagos
estava aí havia tempo, e agoniado; Manoel ainda não tendo chegado, sendo
mais de dez horas, ceamos nós.
Está a noite estrelada, e mais fresca que as passadas; mas começam já
a subir algumas nuvens, que prometem chuva.
Terça-feira, 16: De noite caiu alguma chuva, amanheceu bom tempo,
termômetro 20 graus.
Tenho-me ocupado com o estudo de algumas plantas, aqui estavam
os Dis. José Lourenço e Santo Sousa.
O ex-presidente Antônio Marcelino veio se despedir de nós, vai por
presidente para Pernambuco. Duas horas faz sol, e calor. O termômetro
quase 23 graus.
Manoel faz hoje [viagem] para Pacatuba.

490
À noite saí a fazer visitas, fui à casa do cônego Sobreira, que não
estava em casa; daí ia para a casa [de] [f. 276] D. Francisca Bezerra, que é
paredes-meias com a do cônego, não vi ninguém na sala, segui para diante;
em casa das Guerras estava só uma à janela, conversei um pouco e segui; em
casa de D. Vicência estava D. Matilde ao piano, e a sala sem mais ninguém;
segui para a casa de Manoel Bezerra, onde estava gente de casa e o Sr.
Varonil com a mulher, aí conversei atá mais de oito horas.
Tive agora ocasião de me certificar a respeito do grande número
de cobras de que me falou D. Francisca, estando a família creio que em
Crateús, o que eu achei sempre inverossímil. Hoje me repetiu D. Antônia,
dizendo que com efeito abrigando-se, por causa da enchente, em uma casa
que estava fechada, aí viu à noite um embrulho no telhado, que se [riscada
uma palavra] mexia; chamou um rapaz com luz e uma vara, e se reconheceu
que eram uns poucos de cobras, e se mataram seis. D. Francisca era então
menina, e a fantasia aterrada exagerava o que ouvia contar sobre esse
acontecimento a ponto de nos fazer a pintura que fez. Contou-me também
D. Antônia que via agora no Maranhão um animalzinho do Pará mui lindo
e mui manso, chamam-lhe quatituru, é uma espécie de caxinglé — creio que
[ilegível] e cuja cauda é um froco.
Saindo da casa do Bezerra vim para a de D. Francisca, onde estava ela
só e D. Guilhermina, e uma rapariga que a catava [assim] que eu cheguei,
aí conversamos até nove horas, então me retirei: achei já o Lagos em casa,
ceamos e cada um foi para seu aposento.
Quarta-feira, 17: Ao romper do dia caiu uma boa pancada d'água,
agora faz sol, termômetro 20 graus e meio; ontem, às dez da noite estava
em 21 graus e meio.
[£. 277]
Ocupei-me no estudo de algumas plantas.
Duas horas da tarde faz sol e calor. Termômetro 22 graus e meio.
De tarde reuniram-se aqui os Srs. Gabaglia e Capanema comigo e
Lagos, para consultarmos sobre negócios da Comissão, acabados os quais
ficamos conversando até tarde; o Capanema retirou-se às nove e meia e o
Gabaglia ficou até além das dez, e tomou chá conosco.
Quinta-feira, 18: Não choveu de noite, amanheceu belo dia, fresco,
termômetro na camarinha 20 graus e meio.

491
Ocupei-me no estudo de algumas plantas.
Duas horas faz sol e calor — termômetro 23 graus e meio.
A tarde foi muito [?] saí de noite a conversarmos, estava a noite linda
de luar, o céu estrelado; estive em casa de D. Francisca, daí estive na casa
de D. Vicência, onde esteve também o Lagos, daí fui à casa do Bezerra
onde conversamos até tocar nove horas (é a hora de recolhida nesta cidade).
Quando saí havia algumas nuvens no céu, e fuzilava ao sul. Logo que
chegamos a casa, fomos cear com Lagos e [riscado “cai”] e começou logo a
ventar e a chover, mas durou pouco.
Sexta-feira, 19: Choveu alguma cousa de noite, amanheceu bom
tempo, termômetro 20 graus e meio.
A respeito dos costumes cearenses devo fazer aqui menção de um,
principalmente das burlas de crianças, é o de se lavarem nos quintais —
embaixo das bicas dos telhados, quando chove, é para eles um grande prazer.
Duas horas da tarde sol, e calor, termômetro quase 22 graus.
À noite saí a conversar; estive em casa [...]

[f. 278]

Fortaleza (12)
[...] D. Francisca Bezerra, que estava em casa do pai; em casa estava O
marido e mais dois moços com que conversamos por algum tempo; daí fui à
casa de D. Vicência, que me fez entrar para comer uma ata; daí fui para a casa
do Bezerra, donde saí às nove horas. Estava linda noite de luar, mas fuzilava
a sudoeste, às nove e meia entra a chover e bastante, e dura por meia hora.
Sábado, 20 de abril: Bela manhã, termômetro 20 graus.
É notável como, sendo temperatura indicada pelo termômetro de 20
graus, se tem um sentimento de frescura agradável. Isto não é só de hoje.
Lê-se no Cearense de 5 de abril deste ano o seguinte:
“Naufrágio. Pelo último vapor do norte receberam-se cartas da
Granja por via de Maranhão noticiando a perda do iate Palpite que vinha
para esta capital e trazia a bordo toda a bagagem que o Dr. Capanema não
quis levar consigo para a serra Grande, onde tencionava fazer uma excursão
rápida, e em estação invernosa temia achar todos os rios cheios. Entre os

492
objetos perdidos vinham nas malas de roupa o livro de registro de todas as
observações meteorológicas feitas até Sobral, da mesma sorte as observações
astronômica, e a descrição geológica da província, todos os manuscritos; e
enfim as notas que serviam para passar o tempo quando alguma demora em
qualquer lugar [ilegível]
Perdeu-se igualmente toda a coleção fotográfica, uma série de vistas
de nossas cidades e povoações, tipos dendrológicos, utensílios usados pelo
nosso povo, mais cousas etc. assim como algumas fotografias de objetos
microscópicos.
[f. 279]
Alguns instrumentos, joias, objetos preparados para análise química,
entre eles os gases e águas do Pajé, várias plantas medicinais, € a maior parte
das coleções de Sobral e Meruoca.
Em um momento perderam-se trabalhos, que custaram tantas fadigas
ao Sr. Capanema, e seu adjunto o capitão Coutinho, e muitas vezes foram
eles eficazmente auxiliados pelo bom amigo e companheiro de viagem, o
Dr. Dias; ao todo 13 volumes.
Segundo notícias que correm apenas escapou a tripulação do navio”.
Tenho-me ocupado com o estudo de algumas plantas colhidas por
Manoel.
Três horas da tarde faz sol, e calor; vento do sudoeste? Termômetro
22 graus e meio.
De tarde fomos visitados pelo... Machado (o Taumaturgo) e pelo
vice-presidente, cônego Antônio Pinto de Mendonça. Logo que se retiraram
saí, estive em casa de D. Francisca, e daí fui para a casa do Bezerra, onde
logo depois chegou ele também; e estava ali uma moça vizinha, que eu não
conhecia. Às nove horas retirei-me, fazia lindo luar, e não havia sinais de
chuva mas fazia algum calor. E contudo às dez horas caiu alguma chuva.
Grande chuva de madrugada.
Domingo, 21: Amanhece bom dia, termômetro 20 graus e um
quarto.
Há no Ceará, ou ao menos aqui na capital, a opinião de que a ata
causa defluxo, e muitas pessoas me certificam por lhes ter isto acontecido

493
várias vezes; [f. 280] ainda anteontem em casa de Manoel Bezerra o
Vitoriano Borges, Manoel Bezerra e sua filha D. Maria me asseguraram
ter-lhes isso acontecido, e muitas pessoas não gostam, nem comem atas
por isso.
Também a respeito da água, em todo o Ceará é opinião corrente
que a água, principalmente a de cacimba, bebida no mesmo dia em que
se apanha, causa rouquidão, e cerramento de peito. O certo é que o solo
do Ceará, tendo sempre uma temperatura elevada, comanda as águas
quer de cacimba quer de fonte ou rio, que as torna pesadas e más; porém
guardadas dum dia para outro, refrescam, e se purificam. Há aqui grande
prevenção contra água de chuva, que desprezam, querendo antes beber a
de cacimba ou de rios, que nem sempre são boas. Sobre o gosto que têm os
cearenses, principalmente as senhoras, de se banharem e lavarem nas bicas
dos telhados, ainda ontem nos disse [riscado] D. Francisca Bezerra que se
achava incomodada, atribuindo isso a ter-se na noite anterior banhado-se
à bica durante a grande chuva que deu das nove para as dez, sendo a isso
convidada por D. Guilhermina, que fazia o mesmo.
Chegou o vapor do Rio de Janeiro, recebi uma cartinha do mano
Antônio.
Chegou Manoel de Pacatuba.
Duas horas da tarde faz calor, venta, termômetro 22 graus e meio.
Às sete horas saímos, o Lagos para seu lado, eu e Manoel fomos à
casa de D. Vicência, que estava só com o cego Valente, as moças tinham
saído. D. Vicência mandou trazer-nos à sala um prato com atas, [f. 281]
que agradecemos, e não comemos; mandou vir uma compoteira de doce de
coco, do qual comemos e bebemos água, e às sete e meia nos despedimos
e fomos para a casa da família do Numa Pompílio, que achamos cheia de
senhoras, [além djo Elias, pai, e outro irmão do Numa, conversamos até
oito horas e fomos para o teatro. Representação em benefício, os camarotes
da ordem superior estavam cheios. O calor estava suportável e saímos de lá,
[riscado “fomos”] assistimos de camarote, nós três, eu, Lagos e Manoel;
o Capanema também aí esteve por algum tempo, passou-se depois para o
camarote do Gabaglia. Acabou-se e fomos seria[m] onze horas. Choveu
alguma coisa de noite.

494
Segunda-feira, 22: Amanhece bom dia, termômetro 20 graus.
Ocupei-me de manhã com algumas plantas, que trouxe Manoel ontem
vindo de Pacatuba. E li Jornais do Comércio, vindos do Rio.
Três horas faz sol e calor, termômetro 23 graus.
Às quatro horas e meia vestimo-nos eu e Lagos, para ir ao bota-
fora do Dr. Antônio Marcelino, ex-presidente daqui, e atual presidente de
Pernambuco. Vai no vapor Jaguaribe.
Juntou-se em Palácio grande número de pessoas das mais gradas desta
cidade, e algumas senhoras, mais de 12; eram as famílias do Barateiro, do
Rocha Júnior, do João Machado, do João Severiano, do Thomaz Lourenço,
da família do presidente eram três senhoras. Descemos todos do Palácio a pé,
até a ponte de embarque. As senhoras iam muito bem vestidas, e com muita
elegância, [...] [f. 282]
Fortaleza (13)

[...] principalmente duas Barateiras: são meninas que, não tendo


formosuras, são esbeltas, alvas, coradas e graciosas; era uma procissão
de beldades. O acompanhamento dos homens, quase todos de casaca e
muitos oficiais fardados, era decente. O caminho não era curto, a tarde
estava bela, bem que alguma coisa quente, havia coros de música militar
e de artífices, quer em frente do Palácio quer na praia, junto à ponte; e
depois no mar, num batelão ou escaler, ao passar do préstito salvou a
Fortaleza. Era um bonito furor, bem que com alguma tristeza da parte das
damas, que estavam chorosas. O embarque a que eu e o Lagos assistimos,
de uma janela da ponte do embarque da Alfândega, foi como o que se
usa em cadeira, carregada aos ombros de quatro homens possantes, que
levam duas e mesmo três pessoas até os escaleres que ficam no mar, fora da
arrebentação da praia. Entravam aqueles homens até terem alguma [água]
até os peitos, atravessando as ondas por uma boa extensão, que a praia é mui
rasa. Os passageiros saltam da cadeira para o bote, não sem algum perigo,
pela agitação deste. Assim é um espetáculo a que se assiste com interesse
e às vezes com ansiedade. Foi assim que a primeira cadeira que levou uma
senhora, levando ao lado um cavalheiro para segurá-la; esta, apesar disso,
caiu no fundo do escaler. Era já quase noite quando embarcavam. Estava
a praia e os arredores cheios de gente, e estava alguma tropa formada,

495
tocava de vez em quando a música, havia no mar música que também
tocava e vários botes, que recebiam passageiros para o vapor, para algumas
ia a gente em jangadas; a agitação do mar, suas ondas que sacudiam as
embarcações, a vista pitoresca do lugar, a meia-luz do crepúsculo, [f. 283]
tudo formava um quadro vivo, e tocante, que seria digno de pintar-se.
Retiramos[-nos], que já quase todos se haviam embarcado. Voltei para
casa onde cheguei bastante suado, mudei de roupa e saí, fui à casa de D.
Francisca, onde estava o Luiz Viana, conversamos um pouco, saí e entrei
em casa de D. Vicência, onde achei Manoel, conversei um pouco e segui
para a casa do Bezerra, onde está a família Nunes, a saber: a viúva e duas
filhas mocetonas de encher a vista; estava também o Vitoriano, e mais
outras pessoas. Aí estive até nove horas, e retirei-me com magnífico luar;
caiu uma chuva de madrugada.
Terça-feira, 23 : Amanheceu belo dia, fresco, termômetro 20 graus
e meio.
Tenho-me ocupado com o estudo de algumas plantas. Três horas da
tarde faz bastante calor — termômetro 24 graus.
Esteve aqui de tarde » Dr. Pompeu.
De tardinha saí, passei por casa de D. Francisca, que não achei
senão o marido, [e aí] demorei-me pouco. Visitei o Macieira, daí fui ao
Capanema que se acha incomodado, daí fui ao Santos Souza, que também
está sofrendo dos olhos; daí fui à casa das senhoras Guerras, conversamos
por algum tempo e saímos; fomos à casa de D. Vicência, conversamos um
pouco e saímos; fui à casa do Bezerra, onde achei D. Francisca, conversamos
até nove horas e retirei-me. Noite quente.
Quarta-feira, 24: Amanhece bom dia, termômetro 21 [graus];
ocupei-me de manhã com estudos botânicos.
Duas horas da tarde, e calor grande, termômetro 23 graus e dois
terços.
Lagos partiu para Pacatuba. Visitou-nos [f. 284] o Sr. Antônio
Domingues da Silva. De noite saí e fui para a casa de D. Francisca, chegou
pouco depois o Sr. Viana, e logo a interessante senhora, que já aí a vi em
outra ocasião, com uma senhora idosa, que julgo ser sua mãe; que belo
porte de moça, alta, cheia, morena, meiga e timida!... Aí me demorei até
que tocaram nove horas.

496
Em conversa soube que a palavra égua aqui se usa como injúria, e
a respeito de mulheres devassas, e é talvez por isso é que chamam as éguas
bestas. Não choveu de noite. Noite quente.
Quinta-feira, 25: Amanhece bom dia, termômetro 20 graus. Ocupei-
me com o estudo de plantas.
Três horas da tarde sol, e calor — termômetro 23 graus e meio.
De noite saí a fazer visitas, conversar, e despedi-me, estando de
viagem para Maranguape.
Fui primeiro à casa de D. Francisca Bezerra, onde achei ainda
a mocetona de ontem, chegou depois outra mocinha da vizinhança,
aí conversamos um daí fui à casa das senhoras Guerras onde
pouco;
conversamos por algum tempo, e nos despedimos; daí fui à casa de D.
Vicência, onde conversamos por algum tempo, e nos despedimos; e daí fui
à casa do Manoel Bezerra, que tinha a sala bem guarnecida, as senhoras de
casa, a mulher do Varonil que também estava, e uma das senhoras Nunes,
bela moça; estava o Norberto, estava também o Gabaglia, o Vitoriano
Borges. Depois [f. 285] de termos estado na sala e fazendo muito calor,
saímos para a calçada, onde estavam já algumas pessoas e depois para aí
foram todos, é conversamos até que tocou nove horas e retirei-me; passei
por casa do Gabaglia, para despedir-me. Em casa estava ceando com o
Lagos, Manoel estava inda fora. Disse-me o Lagos que não há nada tão
bom para soldar louça quebrada, e mesmo copos, como uma mistura de
cal e clara de ovo.
Sexta-feira, 26: Da meia-noite ao amanhecer choveu bastante,
amanheceu o dia anuviado, termômetro 21 graus.
Tenho estado aprontando-me para partir amanhã para Maranguape.
Três horas da tarde, faz calor — termômetro a 23 graus. Lagos partiu
para Sobral. Eu saí às cinco e meia da tarde visitar o tenente-coronel
Vitoriano Borges, que não estava em casa, nem aí vi quem recebesse um

bilhete, que por obséquio uma senhora vizinha o recebeu, para entregar-lhe;
fui à casa do Berthot, engenheiro francês, que achei na sala com sua amásia
também francesa, conversamos, tomamos refrescos, e parti; chegando à
casa senti-me um pouco rouco, incomodado, e muito suado. (O Berthot
estava também com uma angina, e várias outras pessoas se têm queixado

497
de terem passado mal à noite e se acharem pouco boas: já disse que de noite
choveu muito, tendo sido os dias anteriores muito cálidos). Descansando
mudei de roupa e saí. Fui à casa de D. Francisca, que já tinha descido para
a casa do pai, desencontrando-se em caminho com as irmãs, que chegaram
à casa dela no mesmo tempo em que eu, eram D. Maria Bezerra (viúva), D.
Isabel (Bela) e D. Genu (Genoveva).
Deixei com o Lulu (marido de D. Francisca) umas gravatas de
seda para serem embainhadas pela gentil Filó (Filomena). Desci, passei
por casa de D. Vicência, onde me demorei algum tempo e segui para a
casa do Bezerra onde já achei as moças, de que falei acima. O Norberto, o
Vitoriano, [o] Luiz Viana, o Gustavo chegaram depois. Conversei até nove
horas, e despedi-me.,
Esta noite não choveu.
Sábado, 27: Amanheceu bom dia — termômetro 20 graus e meio.

[f. 286]

Título 13
Estada em Fortaleza — 27 de abril a 13 de julho de 1861.

Viagem a Maranguape
Maranguape, 27 de abril de 1861.
Saímos hoje pouco depois das onze horas da cidade de Fortaleza,
com sol bastante quente. Chegamos a Arronches ao meio-dia, para onde
nos guiou um moço F. Nunes, cujo pai tem sítio aqui perto, rapaz patusco
que já esteve cinco anos no Rio de Janeiro; estavam lá ainda alguns irmãos,
encontrando-se conosco; já [na] parte da grande lagoa de Arroches,
convidou-nos a passar antes pela povoação do que rodeando a lagoa,
chegando aí nos levou para uma taverninha, cuja taverneira, mameluca, de
belos olhos, com o riso sempre nos lábios, conversadeira, esperta, de olhar
lascivo, de maneiras petulantes nos entreteve ali por uma hora, durante a
qual abrimos duas garrafas de cerveja, pelas quais paguei 1.800 réis, que

498
ela mandou buscar em outra taverna. Enquanto ali estivemos, com o nosso
patusco, que inda lá deixamos, entraram na taberna mais alguns sujeitos;
enfim, ainda que instados para passar aí a força do sol, partimos despedindo-
me da minha simpática, assim me chamou ela, e do companheiro, eram
duas horas: o sol estava de matar passarinho. Chegamos a Maranguape
às quatro horas da tarde; antes de aí chegarmos encontramos uma grande
cavalcata: era o Dr. Miguel Fernandes Vieira que ia de Maranguape para
Fortaleza, com uma súcia de amigos que o impunham. À casa que nos
emprestou o Dr. Santos Sousa é fora da vila, nos arrabaldes, e pouco nos
agradou logo que nela entramos, e me entristeceu, principalmente por ver-
lhe os ladrilhos úmidos. Dirigiu-nos para ela o Sr. Araújo, filho do Rio
Grande do Norte, mas estabelecido há muitos anos no Ceará, e mandou-
nos logo ou que ele mesmo trouxe três cadeiras de [f. 287] palhinha; e
esteve conversando conosco até nos deitarmos, principalmente com
Manoel, porque eu, aborrecido, e incomodado (saí de Fortaleza um pouco
rouco), e moído da viagem, estendi-me numa rede que achei no quarto.
Cheguei com fome; mandei comprar algumas atas, de que comi uma e
meia, comi uma talhada de goiabada, bebi vinho de caju para poder esperar
pelo jantar, que nos deram às oito horas da noite: galinha guisada, como as
ventas do cozinheiro, arroz e quase uma xícara de chá que não pude tragar,
assim [como] meia garrafa de vinho que mandei buscar, por nos dizer o Sr.
Araújo que era bom! Era da cor e grossura de sangue de boi e dum gosto
inqualificável. Dormi, ou não dormi, passei mal a noite. À noite esteve
linda e não choveu. Também diz o Sr. Araújo que, na noite em que choveu
muito na cidade, aqui caíram chuviscos.
Domingo, 28: Acordei aborrecido, linda manhã, fresca. Não fomos
à missa, apesar de nos chamar muitas vezes o sino da Matriz, almoçamos
seriam nove horas, bife com farofa, bom café com leite, pão e manteiga (o
açúcar refinado custa aqui 400 réis a libra; a carne é em abundância e custa
100 réis, uma galinha 500 réis). Depois do almoço estudamos plantas que
se colheram ontem.
Chegou aqui o Cícero, filho do Franklin, disse-nos que sua mãe estava
com intermitência, e a maninha mais moça esteve gravemente doente de
febre amarela, tendo tido vômitos negros, mas vai melhor; prometemos-lhe
ir lá amanhã.

499
Duas horas da tarde — faz sol, aragem de leste, termômetro 23 graus
e meio, nuvens cúmulos sobre a serra da Aratanha.
De tarde não saí; Manoel foi a pé correr a vila, eu estive sentado à
porta conversando com o Sr. Manoel Félix de Araújo, e outros sujeitos; a
tarde esteve linda. De noite, estando aqui o Sr. Araújo, o aproveitamos, [f.
288] eu tomei notas sobre a plantação de café da serra de Maranguape.
Manoel tomou outras notas.
Dez horas, linda noite — termômetro 21 graus.
De noite caiu um ligeiro chuveiro.
Segunda-feira, 29: Amanheceu bom dia, termômetro 21 graus (é
notável conservar-se a mesma temperatura de ontem às nove horas).
Anteontem, quando vínhamos de Arronches para Maranguape, em
meio caminho vimos em uma pobre palhoça dois sujeitos acocorados junto
a um fogo; e havendo junto a casa uma frondosa cajazeira (há [pois] muitos
e estão todos carregados de frutas maduras), achamos próprio o lugar para
apearmo-nos e refrescar-nos. Chegados a casa vimos que os dois sujeitos
eram um crioulo raquítico, corcunda e entrevado das pernas, parecendo
robusto no mais, e moço; o outro quase branco, se divertindo em fazer
comida de cachimbo, e admirando nós o seu trabalho, disse-nos que se
divertia, e que o mestre de os fazer e que vivia disso era o crioulo, dono da
arruinada palhoça; com efeito tirou de dentro dum pote uma boa porção
de canudos preparados, e feitos com ramos de pequeá (Fazem-nos também
com ramos de tinguaciba, que eles chamam limãozinho). Achando eu o
trabalho curioso e mesmo para dar alguma coisa àquele miserável, comprei-
lhe uma meia dúzia, dando-lhe 1.000 [réis]; ele os vende a 120 [réis] cada
um.
Depois do almoço, e almoçou conosco o Sr. Manoel Félix de Araújo,
montamos a cavalo [f. 289] eu, Manoel e o Sr. Araújo, a quem demos
também cavalo; acompanhando-nos a pé, um sujeito daqui conhece[do]r da
serra e de suas madeiras, e nos dirigimos para o alto da serra de Maranguape;
ainda não havíamos chegado a meia ladeira, tendo já passado alguns lugares
perigosos chegamos a um onde era necessário que os cavalos saltassem um
algoz ou barroca profunda, e com três ou quatro palmos de largo; o meu
cavalo repugnou, e eu vendo o perigo de ele cair dentro da barroca, e ficar
perdido, decidi-me a não continuar, e voltei com o Sr. Araújo. Manoel fez

500
passar o seu cavalo, e continuou acompanhado pelo mateiro; chegou até o
alto, ou antes linha da serra, tendo avistado o sertão e terras do outro lado.
A subida da barroca para cima é muito mais áspera e difícil do que a porção
que havíamos passado.
Eu, com o meu companheiro, de volta descansamos no sítio chamado
Boa Vista, pertencente ao Sr. Manoel Marques do Nascimento, homem
acaboclado, ou mameluco, de mais de 60 anos, e plantador de café; as suas
colheitas regula por ano em 800 a 900 arrobas. Diz ele que no tempo da
apanha não lhe falta gente para esse serviço, a quem ele dá 400 réis por cada
alqueire, dando-lhes sustento — [f. 290]
Viagem a Maranguape
o café é despolpado, em um despolpador de que eu fiz um desenho,
que só esmaga o café, deixando passar o grão e a casca, assim O seca; e
para vender é pilado. Passa ao pé do sítio o rio Pirapora, ou Maranguape
em Cachoeira. Do terreiro da casa se goza de uma bela vista da serra da
Aratanha, vargem e tabuleiros, até os combros da areia de beira-mar. Fiz
um tosco debuxo desse prospecto. Tendo descansado, conversado, bebido
água etc., montamos a cavalo e continuamos nossa descida; antes de chegar
à vila quis eu ir ver a tão falada Pirapora e para lá nos dirigimos: o rio
forma ali um remanso de fundo de areia, onde cai em cachoeira e oferece
com efeito um excelente banheiro, sombreada por uma grande gameleira
e outras árvores. Eram quase duas horas, a sombra, a frescura, e a vista
da cachoeira, tudo convidava a estar ali. O meu companheiro despiu-se e
meteu-se na água; eu estando suado, e não tendo roupa para mudar, nem
com que me enxugar, [riscada uma palavra] somente pus-me em camisa e
ceroula, tirando as meias e lavei os pés. Enquanto ali estivemos chegaram
mais banhadores a cavalo, um antes do outro, e a primeira coisa que cada
um fez foi tirar a sela e freio ao cavalo e levá-lo para o rio, a um banheiro
abaixo do primeiro — e largaram-nos, os cavalos beberam água e lançaram-
se no rio banhando-se [f. 291] com grande prazer; um dos sujeitos mesmo
passou além do rio e daí a pouco apresentou-se com um braçado de capim
plantado que botou no rio, onde o cavalo, banhando-se, ia-o comendo. É
uma brutalidade, esta água corre para a povoação, e o rio dali para baixo
estava cheio de lavandeiras. Feito aquilo os sujeitos punham-se em pele,
ou em couro, como eles diziam, e com a maior sem-vergonha se banham.

501
Enquanto ali estive, tendo levado lápis e papel, fiz um debuxo a simples
traços deste interessante lugar. É ou são estes banheiros — porque há vários
descendo o rio do alto da serra por uma vasta quebrada pedregosa, e fazendo
muitas e variadas quedas, ou cachoeiras - como dizia são lugares muito
falados, e se alguém vem a Maranguape, a primeira pergunta que lhe fazem
é: “Foi a Pirapora?”. Da vila, dos arredores, mesmo de longe vem gente
banhar-se aqui. No Ceará nada se estima tanto como uma fonte, um rio, €
por mais forte razão em cascata. A gente do país gosta muito de banhos nos
rios; é um de seus maiores prazeres, pouca gente se lava em casa, exceto na
ocasião das grandes chuvas, em que aproveitam as galhetas, principalmente
as mulheres e meninos.
Tendo-nos demorado ali mais de meia hora descemos para a vila, ou
antes para a casa em qué estamos, que é um pouco excêntrica, chegando
mandei buscar uma garrafa de cerveja que bebi com o Sr. Araújo, que pouco
depois mandou-me um prato de atas [f. 292] de que comi uma, enquanto
esperava pelo jantar que foi depois das quatro horas, tendo Manoel chegado
às três [horas] e meia, com uma grande carregação de amostras de plantas,
trazida por ele e pelo mateiro. Dessas plantas ele dará conta. A serra de
Maranguape é pouco mais baixa que a da Aratanha; é separada por grandes
cabeças, e vastas quebradas, não tendo em cima chapada mas sim uma crista,
ou linha tortuosa, e sinuada, Há malho, diz Manoel, em terreno úmido, e
quase encharcado, e o rio, que vimos abundante d'água e que nunca seca,
desmentem a asserção dos que dizem que esta serra é seca. A quebrada por
onde andamos e o alto da serra oferecem uma vigorosa vegetação e já foi,
e é ainda em parte, povoada de grandes matas; dá excelente café, milho,
mandioca, feijão, arroz, até nas lombadas, excelentes laranjas, atas etc. etc.
São dez horas da noite, cantam os galos, e o termômetro 21 graus.
Logo que chegamos da serra (às duas horas) caíram aqui alguns chuveiros;
e parecia [que] chovera mais na Aratanha — a noite está linda.
Terça-feira, 30: Manhã bela, e fresca — termômetro 21 graus.
Ocupamo-nos hoje com o estudo de várias plantas colhidas ontem
por Manoel na serra de Maranguape. De meio-dia às duas horas as serras de
Aratanha e de Maranguape se cobriram de nuvens que deram alguma chuva.
Três horas fazia sol e calor, termômetro 23 graus e meio, a tarde foi
quente. Eu por aborrecido [f. 293] não saí e continuei com o estudo até

502
que fui interrompido por visitas dos Srs. Joaquim Favilla Prata (Sombra
por alcunha que adotaram) e seu irmão Antônio Favilla Prata (Sombra),
dos Srs. delegado de polícia Raimundo da Costa Tavares e Manoel Rufino
Jamacaru (que eu supus ser o vigário e assim o tratei sempre). Vieram
depois o capitão Henrique da Justa, e um seu primo, que estivera aqui até
anoitecer.
Estando ceando, e conosco o nosso vizinho Araújo, notando eu não
haver mosquitos (muriçocas) sendo lugar abundante de águas; disse-me ele
que há épocas em que aparecem em abundância, e que é principalmente
na seca.
Conversando com os Srs. Sombras sobre a cultura de café em
Maranguape, me disseram eles que atualmente se colhe aqui 30 mil
arrobas, anos mais, ou menos; que a cultura de café em maior escala data
de [18]45 para cá, mas que muito antes era cultivado por algumas pessoas
em pequena quantidade, como era Joaquim Lopes. Perguntando-lhes eu se
sabiam da história do caboclo que achou café no meio da mata no alto da
serra, disseram que ouviram contar essas histórias, mas que não acreditavam
nela. Dez horas da noite termômetro 21 graus e dois terços.
1º de maio: Depois das dez horas, até alta noite, caiu alguma chuva.
Amanheceu belo dia [ilegível] de leite com alguma força — termômetro 20
graus e meio.
[f. 294]
Viagem a Maranguape e Pacatuba
Ocupei-me de manhã com o estudo de algumas plantas.
À uma hora montamos a cavalo eu, Manoel e o Sr. Araújo; o rapaz
Jacomim levou roupa e toalha, para [nos] banharmos no célebre Pirapora.
Com efeito tomamos todos um banho excelente e ainda com a vantagem
de não ir lá mais ninguém à hora que era.
Voltamos e quando chegamos a casa eram quase três horas, o
termômetro estava em 23 graus; havia pouco, enquanto estávamos no
banho, caíra um chuveiro e durante a manhã por vezes havia chuviscado
aqui, e chovido na Aratanha e serra de Maranguape.
Às cinco horas [nos] vestimos para ir pagar as visitas que recebemos
ontem; passamos pela casa do Araújo, que devia ir conosco para mostrar-

503
nos as casas dos sujeitos, engravatou-se, encasacou-se, e seguimos.
Entramos na vila ia anoitecendo; fomos primeiro à casa do Sr. Manoel
Rufino Jamacaru, onde nos demoramos pouco. Fomos à casa do delegado
de polícia Raimundo da Costa Tavares, que achamos fechada, mas
uma senhora vizinha, creio que filha dele, recebeu um bilhete da visita;
continuamos para a casa do Sr. Joaquim Favilla Prata Sombra, apareceu-
nos a senhora, a quem também demos um bilhete, ele não estava; daí
seguimos para a casa do irmão Antônio Favilla Prata Sombra, que também
não estava, e demos um bilhete ao caixeiro do armazém, onde entramos.
Voltamos para casa já noite e aí cheguei suadíssimo. Dez horas da noite
termômetro 21 graus e meio.
Quinta-feira, 2: Amanheceu bom dia — termômetro 20 graus e meio.
[£. 295]
Levantando-me achei sobre a mesa um grosso maço de ofícios, quase
todos do Dr. Gabaglia.
Ocupei-me com o estudo de algumas plantas, e nos aprontamos para
irmos de tarde para Pacatuba.
Duas horas da tarde, tempo coberto. Termômetro 23 graus.
Jantamos cedo. Três [horas] e meia montamos a cavalo, para seguirmos
para Pacatuba. O Sr. Araújo nos acompanha até certa distância, passando
pela vila de Maranguape, andamos percorrendo-a, pelas ruas extremas, para
julgarmos o seu tamanho; assentada junto ao rio Maranguape, parte dela, e
onde está a Matriz é baixa, e úmida, outra parte está em lugar mais elevado e
seco, tem bastantes casas de sobrado, e algumas de boa aparência, tem casas
de comércio que não são más.
Saindo da vila, e passando pelo engenho dos Srs. Vianas, onde já
estivemos há dois anos, os fomos visitar. Um deles estava servindo no júri, que
inda trabalhava; estivemos cam o outro algum tempo e seguimos, a distância
[de] dois e um quarto de légua, mais ou menos, o Sr. Araújo despediu-se
de nós e voltou; daí em diante até Monguba o caminho tinha sua lama e
até leitos, chegamos a Monguba pouco antes das seis horas. Estava toda a
família e alguns deles adoentados; aí nos demoramos conversando até oito
horas; tomamos chá, e instaram para que dormissemos, mas agradecendo
seguimos nossa viagem estando a noite bem escura. Chegamos à Pacatuba
às nove e meia e nos dirigimos para a casa do Valente, onde achamos o Villa
Real, e algumas das senhoras na sala quiseram que tomássemos café e por

504
isso nos demoramos até além das dez horas; e viemos para a casa do capitão
Justa (Manoel dormiu na do João Villa Real).
Sexta-feira, 3 de maio: De noite caiu alguma chuva; mas amanheceu
bom dia. Estive lendo o Evangelho de são Mateus até que nos chamaram
para almoçar em casa do Villa Real.
Ocupei-me com o estudo de algumas plantas. [f. 296] Veio jantar
conosco o Villa Real, de tarde comecei a ler As mil e uma noites.
Às três horas fazia sol, e calor; o termômetro 23 graus e meio na
alcova.
De noite saí e fui para a casa das senhoras Valentes, aí estava o Dr...
que se casou no Icó com a filha do Geraldo. Às nove caiu um chuveiro, e
me pareceu ouvir roncar trovoada, quando nos recolhemos eram dez horas,
estava o seu anuviado, a noite escura.
O termômetro está em 22 [graus] aqui na alcova; na sala de fora
outro termômetro está em 23 [graus].
Sábado, 4: Amanheceu o céu anuviado, termômetro na alcova
fechada, forrada e vidraças descidas em 22 graus e um quarto, casa de
sobrado. Ocupei-me com o estudo de plantas.
Duas horas faz sol, venta de sudoeste? Termômetro na alcova 23
graus.
De tarde saí a fazer visitas; fui à casa de D. Sabina, e depois à casa do
Sr. ... e estive com ele e mais outro sendo à parte; dirigindo-me para a casa
do Valente, encontrou-me um expresso que vinha da capital trazendo-me
jornais e cartas do Rio de Janeiro, mandado pelo capitão Antônio Joaquim.
Li à pressa a carta e fui para a casa do Valente, antes das oito horas retirei-
me para ler os jornais. Chegou da serra o Dr. Antônio Gonçalves da Justa.
D. Maria Teófila devia descer também hoje para assistir a um casamento
que se faz amanhã em casa de D. Sabina. Tomei café com leite, lavei-me e
[me] pus a ler. Chegou e está hospedado aqui o secretário da polícia Dr. ...
São mais de dez horas e faz algum calor, termômetro na alcova 22
graus.
Domingo, 5: Parece que não choveu de noite — amanheceu o céu
anuviado, termômetro na alcova, [f. 297] vidraça um pouco levantada, 22
graus.
Estava lendo o Jornal do Comércio, que viera agora do Rio.

505
Estávamos aprontando-nos eu e Manoel para ir a Monguba eram
onze horas; tínhamos já os cavalos selados, e estávamos nos vestindo quando
começou o tempo a escurecer, e a chover na serra, no Jatobá, sinal de que
a chuva chegou aqui; e com efeito, alguns minutos depois caiu uma forte
pancada d'água, à vista do que mandou-nos desarrear os animais, deixando
a visita para de tarde; resolvidos a jantar com Villa Real, eram três horas
quando para lá fomos. O tempo estava coberto, e ameaçado, termômetro
22 graus.
Às quatro horas havíamos já jantado; e foram nossos companheiros
também o capitão Justa e o irmão Dr. José Antônio (o de óculos). Quando
saímos da mesa uma grossa cortina de nuvens escuras e baixas avançava
de leste e lés-sueste e não tardou em chegar e descarregar copiosa chuva
entremeada de alguns roncos de trovoada, durou até além das cinco horas.
Voltei para casa com uns sapatos grossos de Villa Real; li ainda alguns
jornais e às sete [horas] voltei para a casa da senhoras Valentes, donde me
retirei antes do chá,
São dez horas, o termômetro na alcova está em 21 graus e um quarto.
Segunda-feira, 6: Não choveu esta noite, amanheceu o céu com
algumas nuvens, termômetro 21 graus e meio.
Trabalhei estudando algumas plantas até meio-dia, em que
montamos à cavalo eu, o Dr. José Antônio Gonçalves da Justa, e o capitão
Henrique da Justa [...] [f. 298]

Viagem a Pacatuba
[...] e fomos para Rio Formoso, onde nos esperavam e aí chegamos
à uma hora. Achamos à casa do Sr. tenente-coronel Domingo da Costa
com bastante gente, que aí tratava de alguma coisa judicial. Recebeu-nos
o Sr. Costa e toda a sua família, como sempre. Foi-nos logo apresentado
excelente vinho de caju (feito em casa, o caldo do caju, fervido e limpo,
deixa-se esfriar e se ajunta um quarto de boa aguardente, engarrafada, e
guarda-se). Logo depois correu uma bandeja com copos de garapa (caldo da
carne [do caju] picado), enfim pratos de milho cozido, e de roletes de cana;
armaram logo três redes mui limpas e conversamos até quatro horas, em
que se pôs o jantar, sempre farto e variado; éramos da mesa o Sr. Costa e sua

506
senhora, sua interessante filha D. Olímpia; outra filhinha, Estrelina; outra
moça, que aí tenho visto várias vezes, dois meninos filhos; assaz... e nós três
os hóspedes. Acabado o jantar, tomado café, nos lançamos nas redes, como
verdadeiros mandriões. De vez em quando apresentavam-se vários sujeitos,
compadres e não compadres, que entretinham e animavam a conversação,
com pieguices, simplicidades e maledicências. Às cinco horas rogamos que
nos mandassem aprontar os cavalos; mas era o Sr. Costa, era a senhora, eram
os pequenos que instavam para que dormíssemos, e como eu percebia nos
companheiros desejos de ficar cedi também. Logo que anoiteceu armou-
se muito jogo, a valerem favas de mulungu, nós quatro jogamos o solo, e
senhoras e meninos rodeavam a [f. 299] a mesa. Isso foi até se pôr o chá,
depois da qual conversamos, já na mesa, e já [nas] redes até onze horas.
Depois da meia-noite caiu alguma chuva.
Terça-feira, 7: Amanheceu sem chuva, mas o céu carregado, ontem
foi o dia assaz quente, eu tive sempre a roupa suada no corpo. Logo que
nos levantamos pedimos que nos mandassem trazer os cavalos, mas não
consentiram que saíssemos sem almoço, e eram sete horas e meia quando
estava posta uma mesa com assados, guisados, coalhadas, queijos, tapiocas
(beijus), chá, café etc. Antes das três horas nos despedimos desta excelente
família e partimos; chegamos à Pacatuba depois das dez horas, fazia calor,
mas os termômetros, quer da alcova, quer o da sala mostravam 22 graus, e
22 graus e meio.
Ocupei-me ainda com o estudo deixado de ontem, concluí a leitura
dos Jornais do Comércio.
Três horas da tarde, faz calor, termômetro 22 graus e meio na alcova.
Agora dez horas está em 21 graus e um quarto.
Há pouco cheguei da casa das senhoras Valentes, onde estive
conversando.
Quarta-feira, 8: Não choveu esta noite, amanheceu o mais lindo dia;
corre aragem fresca — termômetro 21 graus na alcova, dormindo a vidraça
um pouco levantada 24 graus.
Ocupei-me com estudo de plantas. Foi o dia de sol, e de calor, às três
horas termômetro 23 graus na alcova.
Antes de irmos para a mesa recebemos um presente da casa da
senhoras Valentes, mandado por D. Lica (Maria) [riscada uma palavra] [f.

507
300) que me trata de padrinho: era uma bandeja em um prato de canjica
(papa de milho verde), rodeada de laranjas. Ao anoitecer recebi mais outro
presente da senhora D. Maria, mulher do Sr. Domingos da Costa; eram
dois capões, e um belo queijo de tijolo, de quatro litros. Estive de noite em
casa das senhoras Valentes.
São dez horas, corre aragem, a vidraça da alcova está um pouco
levantada; mas o termômetro está em 22 graus e um terço; e eu estava
suando.
Quinta-feira, 9. Não choveu de noite, amanheceu o céu anuviado,
termômetro 21 graus e dois terços, alcova de janela aberta.
É hoje dia de guarda à Assunção do Senhor. Depois de
almoçarmos fomos eu e Manoel passar o dia em Monguba, fazenda do
Sr. Franklin de Lima, quando lá chegamos eram quase onze horas, o
sol estava ardentíssimo, havia pouco que o Sr. Franklin tinha partido
para a cidade a negócio, estavam em casa seu filho Cícero, e todas as
senhoras. Passamos agradavelmente o dia, apesar de grande calor, ou
antes do contínuo suor, gozamos da companhia até oito horas da noite,
e nos retiramos depois do chá. A noite escura, € apanhamos na viagem
um ligeiro chuvisco, quando chegamos o termômetro na alcova estava
a 22 graus e meio.
Sexta-feira, 10: Amanheceu bom dia — termômetro 21 graus e dois
terços.
De noite, depois das quatro horas cai um forte chuveiro. Tenho
estado estudando algumas plantas. Tenho estado hoje pouco bom, e muito
melancólico.
Três horas faz sol, coberto por intervalos, termômetro na alcova
está quase em 23 graus, e na sala em 24 graus (este termômetro da sala
marca sempre meio grau mais do que o meu em circunstâncias iguais; é de
mercúrio, e o trouxe há pouco do Francisco o Dr. José Gonçalves da Justa).
[f. 301] Esta tarde recebi uma carta do Dr. Gonçalves Dias, datada
de Manaus em 8 de abril, e um ofício do novo presidente, Manoel Antônio
Duarte, comunicando-me haver tomado posse da presidência. De noite fui
conversar em casa das senhoras Valentes, donde voltei às nove horas. Fazia
bastante calor, o termômetro na alcova, [com] vidraça levantada está em 22
graus e um quarto.

508
Sábado, 11: Não choveu de noite, amanheceu uma linda manhã,
termômetro na alcova 21 graus. Ocupei-me com o estudo de algumas
plantas.
Três horas da tarde faz bom tempo; e de temperatura suportável,
termômetro na alcova 22 graus, na sala 23 graus.
De noite estive em casa dos Valentes, estão aí ele e a mulher, que
chegaram ontem à noite da cidade.
Um costume do Ceará que ainda não notei, é o de tomarem leite de
manhã antes do banho — o banho, o deleite dos cearenses. Hoje soube aí
que no Aracati se acham presos fulano Dias, que mora no grande sobrado,
em frente da casa em que estivemos em Aracati, e a mulher, por terem
matado um escravo, que enterraram no corredor da casa! É bom que assim
vá acontecendo! Os cearenses, e principalmente as senhoras (como em
quase todo o Brasil), são bárbaros para [com os] escravos. Contam-se aqui
coisas horríveis a esse respeito. A cada passo na conversação se observa o
desprezo que eles têm para [com] esses miseráveis; a arrogância com que
repreendem, censuram, ou falam por ocasião da falha mais ligeira dum
escravo, nem aqueles em que fala a natureza! É quase o mesmo a respeito
dos cabras!
[f. 302]
Viagem a Pacatuba
Às dez horas o termômetro na alcova estava em 21 graus e meio.
Domingo, 12: Amanheceu um dia bom e fresco, termômetro 20 graus
e três quartos. Fez uma bela manhã, ocupei-me com o estudo de algumas
plantas. Três horas da tarde faz bom tempo, e bastante calor, termômetro
22 graus e meio, na sala 23 graus e meio. Foi a tarde muito quente.
Estivemos em casa dos Valentes, donde chegamos agora dez horas. O
termômetro está em 21 graus e meio.
Segunda-feira, 13: Amanheceu belo dia, termômetro 21 graus e
meio.
Depois do almoço fui com Manoel à casa do Valente a vermos a
moça D. Vicência, que está com uma oftalmia a ponto de perder os olhos!
Que desgraça! O pai está cego; uma das filhas, moça de mais de 20 anos,
está cega; um filho de 12 para 13 anos; cegou este ano, repentinamente
agora está a infeliz menina em ponto de cegar!

509
Vim de lá e ocupei-me com o estudo de plantas.
À tardinha veio aqui o Sr. Juvenal Galeno (o poeta de Aratanha) e
estivemos de conversa até sete horas da noite; retirando-se ele, fui para a
casa do Valente conversar, donde cheguei agora. São dez horas.
A tarde foi muito quente, às três horas estava o termômetro em 23
graus — agora está em 22 graus e meio.
Terça-feira, 14: Amanheceu bom tempo, céu anuviado.
Termômetro na alcova 21 graus e dois terços.
De manhã [me] ocupei com o estudo de algumas plantas.
Três horas céu carregado de nuvens, casa aberta, chuveiros parciais,
faz calor, termômetro na alcova 23 graus, na sala 24 graus.
[f. 303]
De tarde fazia muito calor. Seriam cinco horas quando eu e Manoel
montamos a cavalo pata irmos a Monguba, onde chegamos às ave-marias,
aí achamos toda a família; conversamos e tomamos chá, e às oito e meia
voltamos; fazia algum luar, que se acabou em meio caminho. Chegando
a casa, e não achando ceia, comemos do excelente arroz de leite que nos
mandou hoje D. Maria Teófila. O presente foi um grande prato de arroz
de leite, uma compoteira de doce, uma porção de linguiças feitas em casa,
laranjas-de-umbigo — famosas em tamanho mas não muito doces por estarem
ainda verdosas, e limas, tudo enfeitado com papel picado, e boa porção de
flores. Sobre o prato de arroz se via um folhado em desenho e no meio a
palavra “amizade”, duas vezes em letra redonda, feito com canela em pó.
Esta gente do Ceará é ainda muito obsequiadeira e não se cansam
de fazer presentes, e D. Maria Teófila excede tudo. De madrugada grande
pancada de chuva.
Agora serão dez [horas], faz calor no quarto, bem que tenho a vidraça
meio levantada; o termômetro marca 22 graus e meio.
Quarta[-feira], 15: Amanhece o céu anuviado, termômetro 22 graus.
Depois do almoço fui com Manoel visitar a doente dos olhos, e cada
vez temos menos esperança de que cure!
Ocupei-me estudando algumas plantas, caíram durante a manhã alguns
chuveiros, recebemos de presente um prato de arroz de leite que nos mandou D.
Lica Valente e [f. 304] outro de D. Maria Teófila, um famoso prato de canjica
(papa de milho), uma compoteira de doce de goiaba inteira, e uma porção de

510
limas-da-pérsia, famosas, algumas tão grandes como uma boa laranja-da-china,
mas muito sucosas e pouco doces; também as laranjas aqui da serra são muito
grandes mas falta-lhes aquele [ilegível] das nossas do Rio.
Três horas céu anuviado sol fraco, termômetro 22 graus e meio.
À tarde sempre foi mais fresca que a de ontem.
De noite fui conversar em casa das senhoras Valentes.
São dez horas, o céu que estava limpo [e] estrelado quando saí;
quando voltei começava a turvar-se, o termômetro na alcova está quase em
23 [graus].
Quinta-feira, 16: Amanheceu bom dia, termômetro 21 graus e meio,
exposto à janela desceu a 21 graus.
Tem aparecido na Monguba uma praga de mucuins, as senhoras
andam cobertas deles, eu também — me parece que apanhei alguns.
Ocupei-me com o estudo de algumas plantas, comecei a aprontar-
me para voltar para a cidade, o que pretendo fazer amanhã de manhã. Deve
chegar por estes dias o vapor do Sul, no qual esperamos solução do Governo
a respeito dos trabalhos da Comissão.
Recebi esta manhã uma carta do cônego Sobreira da capital, pedindo
que apressasse a minha volta quando me fosse possível porque o Dr. Mendes
queria conferência comigo sobre a sua moléstia, que se vai agravando.
Hoje mostrando ao capitão Henrique um papel picado que veio
cobrindo o prato de arroz de leite mandado por D. Maria Teófila, e
perguntado como e quem fazia, disse-me que são feitos aqui [borrado] [f.
305] riscado o mesmo de fantasia, que lá na cidade [há] senhoras que os
fazem bem feitos: e que aqui em Pacatuba o padre Capelo [apagado] os faz;
e que este é seguramente feito por ele.
São três horas, faz sol, e calor para nascente, há nuvens mui boas que
dão chuva aí, o termômetro na alcova está em 23 graus e meio (está mais
alto que o meu meio grau).
De tarde caiu alguma chuva.
Concluí um bosquejo da vista desta povoação, tudo [tirado] da
janela do sobrado do capitão Henrique Gonçalves da Justa, onde estamos
hospedados.

51
Ao anoitecer fui me despedir da senhora D. Sabina; estava lá também
o Sr. Juvenal Galeno.
Daí fui para a casa dos Valentes, onde bastante nos entreteu D. Lica,
que estava hoje famosa para crítica, e não deixa de ter sua graça. D. Januária
estava amuada e o pior é o estado da infeliz Vicência, que receamos muito
fique cega!
Tomei café, e despedi-me destas amáveis.
Parte da conversa de D. Lica se prestava a um longe despertar sobre
costumes cearenses. Direi somente que aqui não pode um rapaz fazer corte
a uma moça, que está, e seus parentes e tudo quanto não a considere logo
requestada, enamorada para casar! À moça é a primeira que tem a coisa
ao sério, e comunica logo a suas amigas; € pela boca pequena o negócio
se espalha, as anedotas fervem, e o rapaz se acha, quando menos espera,
noleado.
Sexta-feira, 17: Amanhece bom dia, termômetro 21 graus e meio,
posto à janela desce a 20 graus e meio.
Hoje amanheci com outro desarranjo; ontem estiveram assim Villa
Real e Manoel, parece que é efeito da canjica que me mandou D. Maria
Teófila, na qual sempre ajunta o leite de coco.
[f. 306]
Fortaleza
Sábado, 18 de maio: Amanheceu bom dia, o termômetro no quarto
forrado — estou na vila, casa de Taumaturgo, onde já morei, alugado por
(pausa) — estava em 21 graus e dois terços.
Parti ontem de Pacatuba às sete horas e dez [minutos], depois de ter
almoçado. Às sete [horas] e três quartos estava no caminho que vai para a
fazenda de Monguba. Às oito horas e dois quartos estava em Pavuna. Às
nove e um quarto, Genipabu. Às nove horas e um quarto estava no lugar
onde há uma moita de tingui-capeta. Às dez horas menos cinco minutos
em Tapiri. Às dez horas e um quarto estava no Carnaubal. Às dez horas
e 35 minutos, Cruz do Arronches. Às onze horas menos cinco minutos
em Tauape, tendo gastado de Pacatuba a Tauape, andando na pequena
estrada de meu cavalo, três horas e três quartos; e dando 50 minutos para
cada légua, teremos quatro léguas e meia; de Tauape à cidade fazem meia
légua.

512
Pouco adiante de Tauape encontrei um portador do capitão
Antônio Joaquim que me levava cartas e jornais, chegados hoje do Rio.
Eu vinha para a cidade hoje, porque espero por este vapor determinações
do Governo sobre o destino da Comissão. Desej[andJo pois de saber o
que havia, meti-me numa sombra e abri o embrulho; e vendo só uma
carta do mano, vinda do Rio, e a do Antônio Joaquim em que me

dizia que não havia nada de ofícios, fiquei desapontado bastante. São
mais 15 dias perdidos, e de incerteza! Enfim segui viagem chegando à
cidade antes de meio-dia, e procurei a casa do Dr. Capanema, que achei
fechada; fui à do Dr. Santos Souza, que estava, e aí me apeei, e com ele
jantei, e descansei. Às cinco horas fui para a casa em que estou; apenas
chegava, me apareceram logo os Drs. Gabaglia e Capanema. Barbeei-
me e saí, fui à casa de D. Francisca Bezerra, onde achei o Viana; saí e
fui à casa vizinha do cônego Sobreira, que está doente e aí encontrei
o Dr. Manuel Mendes, saí e passando pela casa das senhoras Guerras
falei com elas à janela; fui para a casa do Manoel [f. 307] Bezerra, onde
além da família estava uma moça vizinha, o tenente-coronel Vitoriano
Borges e o Gabaglia. Chegou depois o Dr. Carvalho, médico militar,
que tendo estado na ilha do Fernando [de Noronha] me deu algumas
notícias sobre ela:
“Tem esta ilha três léguas de comprimento, e meia légua de largura.
É montuosa e rochosa; tem apenas uma fonte de água e essa má e salobra;
bebe-se água de cisterna, as estações regulam pelas de Pernambuco; as
trovoadas são raras. Nos invernos as árvores largam as folhas, e a ilha fica
dum aspecto triste, mas no tempo das chuvas reveste-se, e o clima se torna
ameno. O solo é muito produtivo, de mandioca, milho, feijão; não há terra
para arroz; muita coisa mais dará se plantarem, há algumas laranjeiras,
e ateiras, cujas atas são excelentes, os cajuais são silvestres e ótimos. Às

matas constam principalmente de mulungus, que são de grande porte, e


é a madeira de construção da ilha; há mais outra árvore que chama feijão
e outra que é a burra, cujo leite é um cáustico, sua folhagem é densa e
de um verde-escuro (Euphorbiacea). Há pouca caça, mas também não há
serpentes, os ratos são em grande quantidade.
Há boas fortalezas, as casas da povoação são em grande parte palhoças
e a povoação anda por umas 50 pessoas e entre elas algumas mulheres”.

513
Voltando da casa do Bezerra às nove horas achei em casa uma bandeja
com chá, ovos estrelados etc., que me mandou a senhora do capitão Oliveira.
Hoje de manhã, depois do almoço, às dez horas fui à casa do cônego
Sobreira para assistir a uma conferência sobre a sua moléstia; éramos o Dr.
Manuel Mendes (assistente), o irmão, o Dr. Carvalho e o Dr. Ribeiro e
eu. Voltando de lá ocupei-me lendo o [f. 308] jornal da Câmara, que me
mandou o capitão Oliveira.
De tarde vesti-me e me dirigi para o Palácio a cumprimentar o novo
presidente; mas não o achando aproveitei a ocasião para visitar o Dr. Ribeiro,
que também não estava, recebeu[-me] sua senhora D. Adelaide, filha do
Barateiro, com muita amabilidade, e estando aí sua mãe e suas manas (vestidas
para irem presumo eu ao concerto que dá no teatrinho um sujeito, creio que
pernambucano), ela me conduziu para a sala (havia me recebido no gabinete
do marido) e apresentou-me à senhora sua mãe e irmãs, três magníficas moças;
e são das mais belas desta cidade, uma delas foi para o piano e cantou com
muito gosto. Conversamos até que chegou o doutor, e que vinha com o Joáo
Machado. O doutor levou-me ao interior de sua casa, que é bem boa, e muito
fresca nos fundos, na sala fazia bastante calor. O presidente havia chegado do
seu passeio, dei tempo, depois despedi-me e me dirigi para Palácio, cuja entrada
é defronte da casa do Dr. Ribeiro; mas não achando o ordenança, entendi que
o presidente iria jantar ou preparar-se para o teatro, e voltei para casa. Larguei
a casaca, tomei sobrecasaca, é me dirigi aos meus entretenimentos ordinários;
cheguei à casa de D. Francisca, ela saiu com a família para a casa do pai; dirigi-
me para a casa das senhoras Guerras, muito amáveis é conversadeiras, aí demos
bem a taramela, enfim desci para a casa do Bezerra, onde conversei até nove
horas, e retirei-me; a noite é linda, de luar.
Domingo, 19: Amanhece bom dia, termômetro no quarto 21 graus
e meio; tenho estado a ler os jornais da Câmara e fui visitado pelo Dr. José
Lourenço, tem feito bela manhã, [f. 309] agora três horas faz sol e calor,
termômetro na alcova 22 graus e meio.
Às seis horas vesti-me e fui fazer a visita de cumprimento ao
presidente, Dr. Manoel Antônio Duarte de Azevedo, que me apresentou a
sua senhora, que é filha de São Paulo.
Voltando do Palácio mudei de roupa e fui para a casa do Bezerra,
ia com tenção de visitar a família do Thomaz Lourenço, mas vendo pelas

514
janelas que estavam as senhoras jogando cartas no meio da sala, e um pouco
em négligé (debochadas, como aqui dizem), não as quis incomodar [e] segui
meu caminho. Às nove horas voltei para casa, havia ainda várias famílias
sentadas na calçada, gozando do magnífico luar.
São nove e meia, estou escrevendo isto a suar, é verdade que acabo
de tomar o meu café com leite, que é aqui a minha ceia, o termômetro na
alcova está a 21 graus e três quartos.
Conversando sobre o Piauí, onde esteve o presidente, disse ele que o
país é muito quente durante o tempo seco, e muito úmido quando chove;
a roupa que se tira do baú está como se acabasse de ser passada a ferro; os
trastes, as portas, o soalho, tudo abre e empena, no tempo úmido tudo
mofa.
Teresina não é doentia, ele e a senhora passaram bem e mesmo os
lugares infectados de febres intermitentes estão hoje muito mais sadios.
Disse-me a senhora que a viagem pelo Parnaíba é bonita e divertida, tem de
um lado o Maranhão e do outro o Piauí; e essas margens são bem povoadas,
e que, [ao] passa[r] o vapor pelas povoações, corre a gente à ribeira a vê-lo
passar e nessa gente de carinhas bonitas. Do Piauí a Caxias por terra são 14
léguas.
[f. 310]
Fortaleza
Segunda-feira, 20 de maio: Amanhece bom dia, termômetro na
alcova 21 graus e meio. Tenho estado arranjando papéis, fazendo ofícios; e
desenhei um galho de sapoti. São três horas, faz sol, e calor — termômetro
22 graus e meio.
Estive gastando com o meu cavalo aqui 1.280 [réis] de capim e 80
réis de milho, e a minha despesa diária só para mim anda mais de 48000
[quatro mil-réis] diárias! É verdade que os meus serventes comem do
mesmo e mais do que eu, e não há meio de pôr cobro a isso sem tomar
sobre mim grande trabalho, e passar por sovina.
Saí de tardinha e fui visitar os tenentes Barbedo e Soares, que não
achei em casa; fui para a casa de D. Francisca, professora, aí estava também
o Luiz Viana, conversamos até depois das três horas, e recolhi-me pensando
achar Manoel em casa, mas até esta hora não é chegado.

515
Recebi hoje um presente de três magníficas atas que me mandaram
as senhoras Guerras.
Terça-feira, 21: De madrugada caiu uma boa pancada de chuva,
amanhece bom dia. Termômetro na alcova forrada — 21 graus e dois terços.
Tenho trabalhado hoje na paisagem de Pirapora.
Três horas faz sol e calor, termômetro na alcova 22 [graus] e meio.
Às ave-marias saí, tendo sido antes visitado pelos senhores tenentes
Soares e Barbedo; fui à casa de D. Francisca, que estava fora em casa duma
vizinha, estive com a Filó um pouco; quis visitar o cônego Sobreira, mas
não vendo ninguém na sala, não o quis incomodar. Passando por casa das
senhoras Guerras, falei com uma, que estava [f. 311] [à]'janela, a quem
perguntando se não ia à festa, porque passavam ranchos de famílias, e disse-
me que não, e que aqueles iam ao Rosário onde havia Mês de Maria; dirigi-
me pois para essa igreja, mas não vendo ainda preparativos para a oração,
segui para a casa do Bezerra, donde saí depois das oito horas, na volta visitei
o Dr. Gabaglia.
Cheguei a casa dava nove horas. O luar estava turvo, e o calor muito
grande; tinha a roupa ensopada. Cuidei achar Manoel, mas não acontece
assim.
São nove e meia, o termômetro na alcova marca 22 graus; mas tinha
as mãos gotejando suor, e molhando o papel.
Quarta-feira, 22: Não choveu de noite, amanhece bom dia,
termômetro na alcova 21 graus e meio.
Esta manhã estive retocando alguns desenhos de plantas, acabei a
paisagem da Pirapora e comecei a passar a limpo a vista de Pacatuba; mas
o calor, o suor não me consentia[m] trabalhar continuado, na rede mesmo
tinha o corpo como dentro dum formigueiro, no entanto o termômetro na
alcova só dava 22 graus e meio e corria vento.
Ao anoitecer saí, e fui primeiro visitar o cônego Sobreira; daí fui
para a casa de D. Francisca, que é paredes-meias com a do cônego, e aí
estava o Viana, e esteve outro sujeito, que não conheço; conversamos até
depois das sete horas, saí e passando por casa das Guerras está a mãe só à
janela, conversei um pouco e segui; fui para a casa do Bezerra, onde achei
a D. Genu (D. Genoveva, e não Januária) Nunes, é senhora bem parecida
e bastante alta; estava o Vitoriano, e outras pessoas; chegaram depois duas

516
mocinhas vizinhas, que tagarelam de fora da janela. Às nove horas me
recolhi. Cheguei a casa tão pouco suado, que não tive necessidade de mudar
a camisa de meia; está uma noite linda de luar, fresca, no céu correram
massas de nuvens cúmulos prateadas pela lua, e nos intervalos apareceu um
céu limpo, e azul-escuro. Chegando a casa achei o termômetro na alcova
em 21 graus e dois terços. Às dez horas caiu uma boa chuva, ontem às
mesmas horas chuviscou.
[f. 312]
Quinta-feira, 23: Amanhece bom dia, termômetro (na alcova) 20
graus.
Ontem à noite, conversando com D. Francisca Bezerra e o Viana
disseram eles que a canjica (papa de milho) se faz sempre com leite de
coco, ou com leite de gado; assim também o cuscuz, o arroz de leite e a
pamonha (a pamonha aqui é feita de pó de milho, e cozinha em saquinhos
de morim; há na Bahia, e creio que também em Pernambuco, uma espécie
de pamonha, ou massa de arroz que se desfaz r'água, e dá uma garapa
agradável, e se chama acaçá). Também a jacuba, (nossa) farinha [com]
rapadura, limão [e] água, se chama aqui no Ceará tiquara. No Maranhão o
arroz cozido em água e sal é o que serve de pão.
Tenho estado trabalhando na paisagem ou vista de Pacatuba. Aqui
veio o Dr. José Lourenço convidar-me para a partida que dá domingo a
sociedade de baile de que ele é sócio, e creio que diretor. Tem sido a manhã
sempre triste e anuviada, agora pouco mais de duas horas está chovendo e
ronca trovoada, termômetro 21 graus e meio.
Hoje tirei um bicho no dedo mínimo da mão esquerda, e ontem
à noite tirei outro no calcanhar do pé esquerdo; é a primeira vez que isto
me acontece no Ceará, dizem que são abundantes em certos lugares e
tempos, assim como as pulgas; é porém muito notável que percevejos são
aqui raríssimos; há pessoas que os não têm visto, muriçocas (meruçocas) ou
pernilongos não são também muito comuns, mesmo nos lugares frescos e
pantanosos.
Aqui na cidade há bastantes, mas não são dos nossos mais comuns
no Rio de Janeiro; são uns mosquitos pretos, todos dum voo incerto, sem
canto, e que perseguem mais de dia e com luz, e se acham principalmente
nos quartos; também há destes no Rio, mas não são tão comuns. À que será

517
devida a raridade ou ausência dos mosquitos nesta província? Creio que
pela secura dos estios longos e principalmente pelas secas, que de tempos
em tempos assolam o país. Abundam muito as baratas e de várias espécies
[f. 313] e os escorpiões e centopeias; são muito, muito comuns os cupins,
poucas casas os não têm e causam grande destroço nas roupas, e nos papéis,
são eles os que devoram os arquivos; os dermetes [dermetídeos], cuja larva
estraga tudo, livros, ou não existem aqui ou são raríssimos; os ratos também
não são muito abundantes, e raro é o camundongo que aparece em casa;
morcegos numerosíssimos. Carrapato, mucuins são abundantes, tenho
notado que não há tanto maribondo, nas suas diversas espécies, como no
Rio. As serpentes infestam todo o país, a cascavel, a surucucu, a jararaca etc.
etc., jiboias e outras inocentes.
De noite saí, estive em casa de D. Francisca, com ela, o marido e o
Viana; saí, desci para a casa do Bezerra, onde estava o Vitoriano. Seriam sete
horas quando caiu uma boa pancada d'água; esta chuva havia se arrumado
por um magnífico olho de boi — halo irisado em torno da lua, e depois da
chuva ficou o céu mui puro, e brilhando a lua. Às nove horas vim para
casa, são nove horas e meia, o termômetro está em 21 graus e no entanto
está fazendo mais calor que ontem a esta hora; às onze horas caiu uma boa
chuva.
Sexta-feira, 24: De manhã antes do sol caiu um chuveiro — às seis
horas faz bom tempo; nuvens pelos céu, termômetro 21 graus.
Entre nove e dez horas chove bastante, continuou por toda a manhã,
ou mais ou menos, e entre pnze e meio-dia roncou trovoada ao longe.
Duas horas não chove, sol desmaiado, termômetro na alcova 20 graus
e meio.
Veio visitar-me o Dr. Pontes.
Às três horas fazia sol, o termômetro subiu a 21 graus. Às três horas
e meia, estando eu jantando, chegou Manoel de Pacatuba.
De noite saí, estive em casa de D. Francisca, daí fui à casa do capitão
Oliveira e enfim à casa do Bezerra, donde saí depois das nove horas; são dez
horas, faz lua — o termômetro na alcova está em 20 graus e meio.
Seria meia-noite quando começou a chover, e bastante; e continuou
até ao amanhecer.
[f. 314] Sábado, 25: Amanhece chovendo, termômetro 20 graus e

518
um quarto, choveu toda a manhã, e bastante, com pequenos intervalos.
Tenho-me ocupado com o estudo de algumas plantas, que Manoel trouxe
ontem vindo de Pacatuba.
Três horas tempo coberto; chuvisco, termômetro na alcova 20 graus
e meio.
De tarde não choveu, mas esteve sempre o tempo úmido e coberto.
Esteve aqui o capitão Henrique Gonçalves da Justa. Saí de noite, fui à
casa do Dr. Santos Souza, que tem estado adoentado, daí fui ao sobrado
fronteiro, casa da madrasta dos Justas, onde está a família do Sr. Domingos
da Costa, que veio para assistir ao casamento de D. Maria Justa, que ficou
ainda transferido. Estavam na sala o Sr. Costa, os Drs. Justa Araújo e José
Antônio Gonçalves da Justa; e mais um sujeito de Pacatuba; vieram depois
para a sala as senhoras; tendo-me demorado algum tempo, conversado,
despedi-me e fui à casa do Dr. José Lourenço, estava ele em casa, apareceu
depois a senhora e um dos filhos, demorei-me alguma coisa, e saindo
fui à casa do Bezerra, onde estava também o Vitoriano Borges. Tocando
nove horas, segundo o costume, retirei-me. À noite está ameaçando; a lua
descorada, o céu toldado de nuvens de mau aspecto.
São nove e meia, o termômetro na alcova está em 20 graus, a gente
do país queixa-se de frio, eu estou suando. Todavia não choveu tanto esta
noite, como parecia; caíram alguns chuveiros das onze [horas] à meia-noite.
Domingo, 26: Amanheceu bom dia, termômetro 20 graus; estivemos
eu e Manoel estudando algumas plantas, visitou-nos o Sr. Domingos da
Costa e o Sr. Albano.
[£ 315]
São três horas, faz sol e calor, termômetro 20 graus e meio. Às quatro
horas montamos a cavalo eu e Manoel, e fomos a Tauape, sítio de D. Vicência;
fomos pela estrada de Pacatuba até a lagoa Porangabuçu, aí dois rapazes
que estavam pescando disseram a Manoel que havíamos já deixado atrás o
caminho, mas mostrou-nos uma vereda, por onde nos metemos, cerrado de
mato, andávamos deitados sobre o pescoço dos cavalos, em risco de rasgarmos
a roupa e de nos ferirmos; enfim demos numa palhoça, cujo dono nos indicou
o caminho, estávamos perto. Chegamos ao sítio; um mocinho, filho do Gurgel,
com parecenças de alemão, nos recebeu; pouco depois apareceu o Sr. Nogueira,
parente, e a quem as senhoras chamam Totonho, enfim apareceram as senhoras

519
D. Vicência, D. Helena e D. Matilde, que nos receberam mui alegres, e cheias
de amabilidades. Ao pé da casa vimos um pé de Pereheia (cactus rosa de vel)
mui frondoso; nunca vimos no Rio um deste tamanho; perguntado a uma
parda da casa pelo nome que aqui dão a esta planta, disse-nos ela que chamam
chora-chora. D. Matilde [riscada uma palavra] disse-nos que se chama também
rosa-madeira. Mal tínhamos descansado, foi-nos apresentado um prato com
laranjas tirada a casca de fora (do sumo), e furada no pé, para chuparmos, o que
no Rio chamamos maminha — e aqui disseram as senhoras que chamam pote.
Logo depois veio café. Logo que escureceu entramos para a sala, e D. Matilde
foi para o piano e cantou umas modinhas e tocou alguma coisa. Conversamos
até oito horas, esperávamos ou nos faziam esperar até a saída da lua; mas eu
tencionava ir à partida que dá hoje a sociedade de baile, apressei a partida, e
saímos; éramos eu, Manoel e o Sr. Nogueira, que mora também na cidade, [f.
316) onde chegamos às pito horas e meia; despi-me, tomamos café e, tendo
preguiça de vestir-me, não fui à partida.
Hoje ainda tive ocasião de observar a paixão que têm os cearenses pelo
banho, as meninas D. Matilde e D. Helena vão todos os dias banhar-se, no
açude que há aqui perto de casa. Assim [também] em casa do Sr. Franklin na
Monguba sempre que chegamos aí de manhã, as senhoras vinham do banho.
Não há maior prazer para os cearenses que o do banho, principalmente de
manhã, tendo antes tomado um copo de leite ainda quente do úbere da vaca.
A senhora D. Vicência contou-me cheia de saudades por seu marido, e tio,
morto há 13 anos, mostrou-me toda a casa e lugares onde ele jantava, onde
estendia a sua rede e lia (Saint-Claire e Carlos Magno); tinha ele grande
afeição a este sítio, gostava de ter sempre companhia, tinha missa em casa,
festejava os santos com novenas, fogueiras, fogos do ar, gostava muito de
ver dançar, cantar e tocar etc. etc. Nos domingos tinha sempre companhia,
e mandava varrer o chão embaixo de uns grandes cajueiros; aí se estendiam
esteiras, e conversando, bebendo leite de coco, passava alegremente o dia etc.
etc. Tinha também bons banheiros. São nove horas, o termômetro está em
21 graus.
Segunda-feira, 27: Amanhece bom dia, termômetro 20 graus e meio.
Esta manhã temos estado eu e Manoel estudando algumas plantas, e partes
anatômicas.
Mandei pelo vapor, que segue hoje, um requerimento ao Governo

520
pedindo três meses de licença para ir ao Amazonas, mandei ao mano publicar
os meus ofícios sobre não ter eu deixado a presidência da Comissão quando
fui ao Rio etc. etc.
Três horas da tarde faz sol, e calor, termômetro 22 graus.
À noite saí, estive em casa de D. Francisca; daí desci para a do Bezerra,
onde não tardou ela [f. 317] também a chegar, com o marido [?), estava lá o
Vitoriano, chegaram mais dois sujeitos que eu não conheço etc. etc. Às oito horas
e meia começou a cair uma pequena chuva, às nove horas fez uma estiada que
aproveitei, apanhando sempre alguma chuva em caminho; cheguei suado a casa.
Estou um bocadinho endefluxado, vieram agora pequenos defluxos;
mas a queixa mais geral é a da dor de dentes. São quase dez horas, o céu está
carregado e venta de leste, termômetro na alcova, 21 graus e meio.
Terça-feira, 28: Parece que inda choveu de noite, amanhece bom dia,
termômetro 20 graus e três quartos.
Temos estado estudando algumas plantas eu e Manoel. Três horas da
tarde faz sol, e calor, termômetro 22 graus.
De tarde continuamos nossos estudos. À noite saí, estive um pouco
em casa de D. Francisca. Daí fui à casa da viúva Justa, visitar o Sr. Domingos
da Costa; achei a sala cheia de moças e uma ao piano cantando, cantou
mas depois D. [riscado “Maria”] Justa acompanhando-a a [riscado “irmã”]
senhora, que cantava quando eu entrei; apareceu logo o Costa e sua senhora
que se estão aprontando para partirem esta madrugada para seu sítio do rio
Formoso; estavam mais dois irmãos Justas, o Antônio e Henrique, ouvimos
cantorias, conversamos, e despedi-me; fui para a casa do Bezerra, onde
estive mais o Varonil, o Vitoriano, e o Norberto, eram nove horas [quando]
retirei-me. Faz boa noite, o termômetro está em 21 graus e um quarto.
Quarta-feira, 29: Não choveu de noite; amanheceu bom dia,
termômetro 21 graus.
[f. 318)
Fortaleza
Temos estado estudando várias plantas, eu e Manoel. Tem feito boa
manhã, sempre mais ou menos anuviada, agora duas horas faz sol fresco —
termômetro 22 graus e um quarto.
De noite saí, fui à casa do cônego Sobreira, levar-lhe a minha opinião

521
escrita sobre a sua moléstia, conforme eu havia dado na conferência. Fle vai
um pouco melhor, mas duvido muito de seu restabelecimento.
Daí fui à casa de D. Francisca onde conversei por algum tempo; desci
para a do Bezerra, onde estive até às oito horas e retirei-me receando chuva.
Achei o Bezerra desanimado, com efeito não pode durar muito tempo.
Cheguei a casa bastante suado; a noite está escura, e quente. O termômetro
está em 22 graus.
Quinta-feira, 30: Não choveu de noite, amanhece bom dia,
termômetro na alcova, 21 graus e um terço. Começou logo o céu a toldar-
se, e agora nove horas está chovendo. Às onze horas cessou a chuva, Manoel
saiu a cavalo, a procurar plantas, eu ocupei-me com o estudo de algumas
plantas e concluí o desenho da vista de Pacatuba.
Três horas faz sol, o termômetro na alcova 22 graus.
De noite saí, linda noite; fui à casa de D. Francisca, estava mais D.
Guilhermina, o Sr. Norberto, mais duas moças, D. Francisca e seu marido,
e o infalível Luiz Antônio Viana. Saindo daí fui à casa do Bezerra, cuja sala
estava cheia de senhoras; além das três da casa, estava a mulher do Varonil,
e mais quatro moças, irmás ou parentes dela, estava Varonil, outro sujeito
e o Vitoriano. Estou um pouco constipado, quando voltei já a noite estava
turva, eram nove horas, termômetro na alcova 21 graus e três quartos, estou
suando.
Sexta-feira, 31: Não choveu de noite, amanheceu [f. 319] termômetro
20 graus e três quartos. Passei um pouco incômodo, endefluxado.
Temos estado estudando várias plantas, eu e Manoel.
Três horas faz sol e bom tempo — termômetro 22 graus.
Continuamos os estudos de tarde, acho-me incomodado,
endefluxado; e não saí esta noite.
O céu está estrelado, o ar calmo, termômetro 21 graus e dois terços.
Junho
Sábado, 1º: Depois da meia-noite choveu por algum tempo, e
menos mal, amanheceu sem chuva, termômetro 22 graus. Passei mal esta
noite, com o meu defluxo.
Tem feito sol esta manhã, e ventado muito de leste, pouco tenho
feito hoje por estar incomodado.
Três horas bom tempo, venta, termômetro 22 graus.

522
Por incomodado e aborrecido não saí.
São onze horas, termômetro 21 graus e dois terços, à meia-noite deu
um pé d'água bom (diz a cozinheira).
Domingo, 2: Amanheceu bom dia; [riscado “não choveu de noite”),
o ar está calmo, fresco, e faz sol; termômetro 21 graus.
Passei esta noite menos mal, o defluxo já me desceu para o peito.
Música militar, é a terra da música. À toda a hora se ouve tocar, e nós
estamos aqui perto do Palácio, dos quartéis e da casa dos educandos,
estamos sempre divertidos, e devemos confessar que tocam bem.
Tem feito bela manhã, tenho estado sempre em casa, doente,
aborrecido, revendo meus papéis.
Três horas faz sol, venta bastante, desde as dez horas que venta,
termômetro na alcova 22 graus.
De noite não saí, nem aceitei o convite, [f. 320] digo, o bilhete do
teatro hoje por doente.
Inda agora oito horas passou aqui pela minha porta uma procissão
da igreja do Rosário que está aqui vizinha, o andor era de Nossa Senhora
carregado por pardos e pretos; as tochas eram também levadas por pretos,
de opas brancas, iam rezando, cantando, o que não percebi; acompanhava
como de costume grande número [e] graus de mulheres de lençol, e algumas
de vestidos. Faz boa noite, o ar está calmo; termômetro 21 graus e um
quarto.
Estou com as mãos quentes, pulso febril, nariz a destilar, e abertas
assadas, rouquidão e alguma tosse; displicência, aborrecimento etc. etc.,
levo o tempo deitado na rede, lendo por intervalos, e parafusando...
A procissão de que acima falei é o terço do Rosário, que os pretos
fazem em todos os primeiros domingos do mês.
Segunda-feira, 3: Amanheceu bom dia, termômetro 21 graus, passei
a noite menos mal; amanheci mais bem disposto, e com uma tosse por
ora seca, e ligeiro desarranjo de ventre. Aqui me vieram visitar o pobre do
Manoel Bezerra e o Dr. Gabaglia.
Tenho estado lendo o Tratado de geografia botânica de De Candillé
[De Candolle]. Três horas faz sol e calor, termômetro 22 graus; o vento
começou hoje mais tarde, e sopra em rajadas mais fracas.
Ainda não saí esta tarde.

523
Nove horas faz calor, como fez toda a tarde, termômetro 22 graus.
É notável a diferença que se experimenta entre a sensação de calor e o
grau deste indicado pelo termômetro [f. 321] em diversos lugares; tendo a
indicação do instrumento o mesmo ou pouco mais ou menos, e a sensação
mui diferente. Assim na serra Grande, e pelo sertão sendo as madrugadas
mui frias, nunca dentro da alcova ou sala o termômetro desceu a mais de
16 graus, quando em outros lugares com essa temperatura o fresco não
incomoda. Na serra Grande tínhamos às duas horas o termômetro em 23
graus, mais ou menos, e a temperatura não era incômoda, aqui na capital
agora estando o termômetro dentro de casa a 21 graus e 22 graus, está se
suando, e o calor incomoda!
Nas madrugadas do sertão, o que causa o sentimento de frio é sem
dúvida o vento, que reina sempre mais ou menos nessas ocasiões. Aqui o
suor, e calor é seguramente efeito da umidade do ar.
Terça-feira, 4: Caiu alguma chuva pela meia-noite, amanheceu bom
dia, termômetro 21 graus. Passei a noite sofrivelmente, acho-me quase
restabelecido, e é notável que não tenho tido quase expectoração.
Às oito horas sentia-se já bem o vento geral.
Chegou o vapor do Rio e ofício do Governo, mandando que a
Comissão se retire à Corte, deixando todo o seu terém, entregue ao Governo
Provincial, para lá se deliberar sobre a conveniência da continuação ou não
de seus trabalhos.
Três horas da tarde faz sol e calor, termômetro 22 graus e um quarto.
Esta noite saí e estive em casa de D. Francisca, a professora, onde
esteve também o Viana.
São nove horas e meia, o termômetro está em 21 graus e três quartos.
Quarta-feira, 5: Amanheceu chovendo, termômetro 21 graus e três
quartos. Às quatro horas cai um forte chuveiro. Estou quase restabelecido
do meu incômodo. Tenho [f. 322] estado lendo os Jornais do Comércio,
que vieram ontem pelo vapor do Rio. A manhã tem estado ventosa, e o céu
mais ou menos anuviado; duas horas da tarde, termômetro 22 graus e um
quarto.
Saí e fui à casa do Bezerra, que estava só com a mulher, e tivemos
pois ocasião de conversar mais particularmente sobre várias coisas, por

524
exemplo: Vicente Alves, primo de D. Antônia Bezerra, foi casado com a
formosa moça de S. Quitéria, sogra do senador Paula Pessoa, que os Feitosas
tentaram roubá-la, sendo da empresa o célebre facinoroso Ferro.
A filha desse casal, moça mui alva, beiços vermelhos, olhos azuis,
cabelos louros, foi a mulher de Francisco de Paula Pessoa, hoje senador;
este casamento veio a ter lugar depois da morte da mãe, que se opunha
a ele, e no mesmo dia em que Paula Pessoa casou com ela, casou o pai,
Vicente Alves, com D. Irene, que vive hoje em Sobral, e que foi também
uma das mais bonitas moças de Sobral. A senhora do Barateiro é irmã dos
Mendes; foi também bonita moça, filha do Canindé, onde se estabeleceu
a família dos Mendes, vinda de Aracati, mas Joaquim Mendes, e não sei
se mais algum irmão, foi nascido no Aracati. Ontem conversando com
D. Francisca Bezerra, disse-me ela que o Moreira, português, que veio
para aqui da Bahia (onde, dizem as más línguas, foi casado com uma preta
Maria, rica, que ele ali abandonou, e veio com sua riqueza estabelecer-
se aqui no Ceará, onde nunca casou), sendo seus filhos aqui [f. 323]
todos bastardos (Domingos da Costa), foi aqui naqueles tempos homem
importante, fez a casa em que estamos aposentados, para negócio e casa de
vivenda em frente, que foi, com outros, comprada pelo presidente Pires da
Mota, para acomodações do Palácio da Presidência; nesta casa, que tinha
um sobradinho, talvez o primeiro que houve no Ceará, era da sua moradia.
Este Moreira foi assassinado por um cabra, seu escravo, na sua fazenda de
Canindé, em 1823. O Manoel Bezerra com sua família, que morou na casa
em que hoje estou, morou antes naquela de sobradinho; era nessa onde ele
[viveu durante] os quatro anos em que andou ameaçado de ser assassinado,
por ocasião da morte do Facundo.
Diz D. Francisca que a casa tinha embaixo muitos cômodos, e que
o sobradinho era pequeno; mas tinha alguns quartos, era construída e
fechada com grande segurança, as paredes de taipa (paus-a-pique) eram
todas de aroeira lavrada, e envarada a pregos, barreada, rebocada etc.; as
vigas, ou barrotes, do sobradinho, e mais madeiramento eram enormes
peças de aroeira; as portas e janelas, feitas com levantados painéis, eram de
amarelo (vindo da Bahia?) e de grande grossura e fechadas com enormes
fechaduras, que todos se fechavam com uma só chave, além de aldravas ou
ferrolhos que fechavam embaixo e em cima. Esta construção mostra não

525
só a abundância de madeiras, mas a pouca segurança com que se vivia. O
comendador Machado foi caixeiro da sua casa de [f. 324] negócio, casou
com uma de suas filhas, e daí lhe veio a sua riqueza.
São dez horas da noite: o céu está anuviado, faz calor, e o termômetro
em 22 graus.
Quinta-feira, 6: Termômetro 21 graus e meio, amanhece o tempo
carregado, da meia-noite em diante chove bastante; às sete horas deu um
chuveiro, às nove [horas] chove[u] bastante; das onze às doze novo chuveiro
forte. Aqui esteve o Dr. Gabaglia, que parte para Sobral.
Duas horas não chove, termômetro 21 graus.
De noite saí, passei pela casa das senhoras Guerras, estavam três à
janela, com quem conversei um pouco, e segui; fui à casa das senhoras
Justas, onde estão D. Maria Teófila, para visitá-la, e a senhora sua filha, que
teve há pouco um menino. Vieram para a sala D. Maria, a filha parida, e
mais três moças, uma delas a Justa, que cantou o outro dia em casa da viúva,
sua mãe; e as outras não as conheço, estava também o Sr. Justa, casado,
com a que teve há pouco a menina [o menino]. Chegou depois um sujeito,
que me pareceu matuto: tagarelamos um pouco e saí. Quis ir visitar o João
Brígido, que chegou do Crato; mas era tarde, a noite escura, a rua má, não
fui; e segui para a casa do Bezerra, onde havia boa companhia. Às oito horas
deu uma chuva, esperei que melhorasse, e vim para casa ainda chuviscando.
São nove horas e meia, chove, noite escura, termômetro 20 graus e meio.
Manoel foi dormir em casa do Dr. Santos Souza, que [f. 325] está
doente.
Sexta-feira, 7: Ao amanhecer choveu, termômetro 20 graus e meio.
Hoje recebi de presente das senhoras Guerras um prato de arroz
de leite, Há uns dez dias que a senhora do capitão Antônio Joaquim me
mandou duas compoteiras de doce, que se acabou ontem, ainda estamos
comendo excelente goiabada, presente de D. Maria Teófila em Pacatuba. Por
esta ocasião porei aqui os preços de vários comestíveis. A carne de vaca que
é agora abundante e boa custa 80 réis, e mesmo 60 réis a libra; a seca está a
140 ea 160 [réis]; a carne fresca sem osso é sempre o dobro da que vem com
osso; a farinha está a 100 réis e a 80 réis a terça; o milho a 160 [réis] a terça;
açúcar refinado, do melhor, a 320 [réis] a libra; manteiga 1.280 [réis] a libra;
o vinho, que bebíamos a 1.280 [réis], está a 1.000 [réis] a garrafa.

526
Diz o Bezerra que há muitos anos que se não tem aqui os gêneros da
terra tão baratos como agora.
Três horas da tarde, céu anuviado, termômetro na sala 21 graus e
meio [riscadas nove palavras).
De tardinha saí; passei por casa de D. Francisca, com quem falei à
janela; daí fui visitar o Dr. Santos Souza, que estando em curativo não lhe
pude falar; segui para a casa do Dr. Ratisbona, onde se acha o João Brígido,
que chegou do Crato, e o Teixeira do Crato; daí fui à casa do Luiz Vieira,
que é quase paredes-meias, falei com uma das filhas à janela, que me disse
estar ele doente, e fora da cidade no sítio; daí fui visitar o Albano, que
também não o achei, está no sítio da Aratanha; segui para a casa do Bezerra
com tenção de antes visitar o moço engenheiro filho do Rio de Janeiro
que aqui está em comissão, e que é casado com uma neta de Fernando
[f. 326] José de Mello (Mocha?) — cuja viúva vive ainda na mesma casa
junto à Misericórdia; achei-os sentados à porta com o Varonil, aí lhes foi
a minha visita, e depois fui para a casa do Bezerra, que é paredes-meias.
Hoje conversou o Bezerra mais largamente sobre a morte do Facundo, mas
sempre com incerteza, ou mistérios. Diz-lhe que a morte foi mandada pela
mulher do Coelho, presidente, em razão da carta que o Facundo escreveu
a um seu amigo em Aracati; a tal carta veio para a mão dessa senhora na
qual dizia Facundo: que ele [ela] antes de casar era mulher moça, e o Coelho
simples alferes. Mas dizendo-lhe eu que tinha ouvido outra explicação do
fato, disse-me que sim, também o coronel (2) Martins do Icó, recontado
pela dose d'água tartarinada que havia bebido, entrara também no negócio,
e que o Facundo foi morto com dois tiros de bacamarte, que Facundo em
[18]17 e [18]24 havia perseguido os liberais etc. etc., que ele Bezerra o
andaram vaguejando por quatro anos, para o assassinar, por ódios políticos;
que em [18]48 entregou-se à prisão para ser processado, e ficou absolvido,
e então o deixaram. Otra, a entrada pelo Jacarandá neste atentado faz crer
que com efeito alguma coisa de palaciano havia nele, mas o general Coelho
era alheio a toda essa trama, dizem todos.
Dez horas, noite estrelada, ar tranquilo, termômetro 20 graus e meio;
caiu alguma chuva depois da meia-noite.
Sábado, 8: Amanheceu bom dia, termômetro 20 graus, sente-se ar
fresco, dez horas fecha-se o tempo, e chove.

527
Acaba Manoel de receber uma carta do Villa Real de Pacatuba, em
que lhe diz que D. Vicência perigou outra vez dos olhos e que foi mandada
para Tauape, [à] casa de D. Vicência, a tia, provavelmente está cega a pobre
moça! [f. 327]
Esta manhã tenho estado estudando algumas plantas. Fomos
visitados pelo João Brígido.
Duas horas faz sol, e o tempo está fresco; termômetro 20 graus e três
quartos.
De noite fui à casa de D. Francisca Bezerra onde me demorei pouco,
estive em casa das senhoras Guerras e daí desci para a casa do Manoel
Bezerra, onde conversamos até oito e meia; estava fora à janela o Dr
engenheiro e sua mulher. Chegando a casa achei Manoel, que foi a Tauape
visitar a menina doente dos olhos, e diz que não está grave como disseram,
que por ora só há forma de belidas. São mais de dez horas; o céu está
anuviado, o termômetro 20 graus e meio.
Domingo, 9: Choveu esta manhã, termômetro 20 graus.
Estive de manhã estudando algumas plantas.
Duas horas bom tempo, termômetro 20 graus e três quartos.
De noite saí — estive em casa de D. Francisca Bezerra, onde estavam
mais cinco moças, uma das quais a simpática, que já lá tenho visto em
outras ocasiões; conversei por algum tempo e desci para a casa do Bezerra;
aí achei o vinho [?] engenheiro, sentado fora na calçada com outras pessoas,
e na sala as duas filhas do Bezerra e a mulher do engenheiro, pequena,
trigueira, simples até, quase... pouco mais faz que rir. É nossa vergonha
isto aqui no Ceará, onde as meninas sem nem uma educação conversam
com desembaraço, e com espírito; e o pior é que a maior parte das moças
que vêm do Rio faz aqui um triste papel, do que tiram toda a vanglória as
cearenses.
É um contraste bem triste para nós lá do [f. 328] Rio, donde ainda se
vem cheio de presunção, e cuidando vir para uma terra de tapuias! O caso
é que algumas fluminenses que aqui conheço não dão muito boa ideia do
Rio de Janeiro.
São nove horas, o céu está puríssimo, o ar calmo; o termômetro
marca 20 graus e meio. As senhoras cearenses e mesmo alguns machos se
queixam de frio, e de frio incômodo da noite; no entanto que eu apenas me

528
cubro com um lençol de linho. O que é verdade, porém, é [que] nunca as
noites no Ceará são muito quentes, mesmo no tempo dos maiores calores; a
gente estando vestido sua, mesmo em casa; na rede nem o calor incomoda.
Segunda-feira, 10: Amanheceu bom dia, termômetro 20.
Tem feito um belo dia, um pouco quente.
Três horas termômetro 20 graus e meio. Visitou-nos o Sr. Araújo de
Maranguape.
De tardinha saí e fui primeiro à casa do Sr. João Ferreira Rabelo, onde
fui recebido por duas de suas filhas, ele chegou depois, a moça mais velha
é ou pareceu-me ser de 18 a 20 anos, mui bem conversada, e mui discreta.
D. Mariana Beviláqua, de vila Viçosa, é filha do Sr. Rabelo. A minha visita
a esta casa foi de surpresa para o Sr. Rabelo e sua filha, quando eu lhes disse
que havia recebido um recado por uma pardinha escrava de casa, para que
eu aparecesse. Mas o que me disse a rapariga foi [riscado] que sua senhora
desejava ver-me, por ter D. Mariana escrito que lhe havia prometido de a
visitar; eu não deixei de estranhar aquele convite, mas se me representou
[convite] feito por uma senhora, que fiquem em casa mais que o marido [f.
329] e desembaraçada, como aqui muitas no Ceará; e acreditei no que me
disse a rapariga, que até me deu o nome da senhora, não podendo supor
que ela levantasse tal mentira. Pois era mentira! O homem é viúvo, e a
senhora da casa é sua filha! Que tal? Eu porém disse que a rapariga me tinha
levado o recado em nome do senhor. É uma maluca, uma doida! Diziam
elas. E tudo ficou nisto.
Conversamos por algum tempo e saí, passando por casa do Dr.
Pontes, quis o visitar; mas dizendo-me o ordenança que ele não estava,
deixei-lhe bilhete, fui à casa do Dr. Rodrigo, juiz municipal, pagar-lhe a
visita, daí desci para a casa do Manoel Bezerra, onde estava o Vitoriano, o
Dr. engenheiro e sua senhora etc.
Esta tarde tem feito calor, agora mesmo ainda não está o tempo
fresco, são dez horas, o céu limpo e estrelado, termômetro 21 graus.
Terça-feira, 11: Amanheceu bom dia, termômetro 19 graus e três
quartos.
Inda agora aqui esteve o capitão Oliveira, e nem uma notícia nos dá
dos ausentes! Tem-me isto mortificado bastante, mas é necessário que eu
leve a cruz até o calvário.

529
Aqui chegou esta manhã o Bordalo, de Pacatuba, diz Manoel que ele
veio buscar arranjos para casamento.
Três horas da tarde faz sol, dia lindo, um pouco quente, termômetro
21 graus e meio, a manhã foi fresca, agradável; hoje não tem ventado, há
apenas ligeira aragem.
Saí de noite; estive com o cônego Sobreira, que se acha melhor,
visitei o Dr. Santos Souza que está bem doente, daí vim para a casa de D.
Francisca e daí para a casa do Bezerra, até nove horas; o tempo está quente,
o céu toldado, termômetro 21 graus. [f. 330]
Fortaleza
Quarta-feira, 12: Amanhece bom dia, termômetro 19 graus e três
quartos.
Temos estado estudando algumas plantas, eu e Manoel.
Tem feito sol toda a manhã, algum calor, duas horas da tarde
termômetro 21 graus e um quarto.
Noite de S. Antônio, por toda a parte fogueiras, foguetes, rojões,
busca-pés, bomba, pistolas etc. Não se anda com muita segurança pelas ruas.
Estive em casa de D. Francisca com o Viana. Estive em casa do Bezerra, só
com a família, havia fogueira na vizinhança. O pobre do Bezerra vai mal,
tem o ventre com muita água. Ontem me disse ele: “Então sempre morro!”
— animei-o como pude.
Das oito para nove horas o céu toldou-se; caiu um ligeiro chuvisco,
está ventando, dez horas, termômetro 21 graus.
Às senhoras todas, [uma] a uma dizem que de manhã quase morrem de
frio! Os machos mesmo, o Sr. Viana me disse que esta noite passada cobriu-se
com cobertor! E que teve muito frio, o termômetro marcou ontem, € hoje de
manhã, 19 graus e três quartos! Eis aqui o grande frio do Ceará!
Quinta-feira, 13: Amanhece bom dia, termômetro 20 graus e meio.
Temos nos ocupado esta manhã com o estudo de algumas plantas.
Tem feito uma bela manhã, com algum vento, e quente; duas horas,
termômetro 21 graus e dois terços.
À noite fui visitar o Antônio Luiz Teixeira, que veio do Crato com
João Brígido, e morou em casa do Dr. Ratisbona; não o achei, segui para a
casa do Bezerra [e] encontrei na rua com os dois, Brígido e Teixeira. Teixeira
vai a Pernambuco, o Brígido está aqui regendo uma cadeira no Liceu.

530
[f. 331]
Em casa do Bezerra estiveram o engenheiro e sua senhora, D.
Francisca (ambos do Rio). Em conversa me disse o Bezerra que no sertão
eram muito comuns as apoplexias, por isso que aquela gente, não usando
de urinóis, levantava-se de noite, e vinha urinar fora nas manhãs frescas do
tempo seco. E perguntando-lhe eu se as mulheres também saíam a urinar
fora, disse-me que não, que se arranjavam com qualquer coisa, como com
um fundo de pote velho etc. etc.
Hoje a coisa vai mudando, já há urinóis pelo sertão. Em tempos
remotos, e no comum ainda hoje, não havia bacia de rosto, e era rara a
gamela de banho. Os trastes mui toscos; os assentos eram poucos e muitas
vezes fixos, ou bancos compridos, poucas ou nem uns mochos, ou cadeiras,
as mesas mui altas, e de ordinário comem de pé.
São quase dez horas, o céu está estrelado, termômetro 21 graus e
meio.
Sexta-feira, 14: Amanhece bom dia, termômetro 20 graus e meio.
Temos estado ocupados com estudos botânicos.
Três horas faz sol, venta, faz calor, termômetro 22 graus.
De tarde encasaquei-me para fazer algumas visitas, fui primeiro ao
chefe de polícia, que não achei em casa, deixei bilhete; daí fui ao Dr. Aires
(Miguel Joaquim Aires do Nascimento), juiz de Direito, que não estava em
casa mas recebeu-me perfeitamente uma sua filha rodeada de mais uns três
meninos; daí fui [f. 332] ao Bernardino Pacheco que também não estava;
fui ao Sr. José Francisco da Silva Albano, genro de D. Maria Teófila, o qual
está em Pacatuba; daí fui à casa de Thomaz Lourenço, que também não
estava e chegou depois, recebeu-me sua senhora, duas filhas e uma outra
moça, parente, que vi pela primeira vez; mui bem conversada. Daí fui para
a casa de Manoel Bezerra, onde estava, além da família, uma das senhoras
Nunes, e um moço, creio que irmão, estiveram mais o Vitoriano, o Viana,
e Gustavo; saí de lá eram quase nove horas, fazia lua, céu estrelado, ar calmo
e muito calor; andei sempre suado, desde o anoitecer que fuzila a sueste,
termômetro 21 graus e meio.
Hoje jantamos peixe, tainhas do Cocó, tão afamadas, hum! O que
aqui chamam tainhas são as nossas paratis (piratin?); às tainhas chamam

531
curimás, dizem que são muito grandes (de três palmos) e muito gordos; os
paratis, ou tainhas, chegam a palmo e meio.
Recebemos hoje um valioso presente, da parte da senhora D. Maria
Teófila. Dois queijos quadrados de seis a oito quilos cada um, seis caixetinhas
(caixões) de doce, que creio é goiabada, tudo rodeado de grande quantidade
de limas etc., gorjeta à portadora, que veio me cecear 2$000 [dois mil-réis).
Agora ao recolher-me, passando por diante de um armazém, ou venda,
na praça de D. Pedro II, um caixeiro português (que é coisa rara no Ceará)
entendia com uma mulher cabra, que me pareceu estar toldada, [f. 333]
a qual do meio da praça passava-lhe uma descompostura rasa: Marinheiro
relaxado. “Marinheiro safado... miserável...” No Rio de Janeiro ficaria
nisto a descompostura? É coisa notável no Ceará, mesmo entre a gente do
povo nunca se ouvem palavreados e ditos indecentes; safado, desgraçado,
miserável, eis aqui as maiores injúrias, que se dizem mutuamente quando
brigam.
Sábado, 15: Amanheceu bom dia, termômetro 21 graus, temperatura
tépida; é também notável quanto se experimenta de calor, para mais, ou
para menos, com pequeníssimas diferenças termométricas, meio grau de
termômetro de Rea... faz sentir mudança mui apreciável de calor (bem
entendido, estas minhas observações, próximas, são feitas com o termômetro
na alcova, que é forrada).
Temos estado ocupados com estudos botânicos.
Aqui esteve o Dr. Capanema que chegou ontem de Pacatuba.
Tem feito belo dia, ventoso, quente.
Duas horas termômetro 22 graus.
De tarde continuamos com nossos estudos.
À noite saí, estive em casa de D. Francisca onde esteve o Luiz Viana;
caindo a conversa sobre [a] imoralidade do clero, e seculares no Ceará,
contou-nos o Viana vários casos de irmãos amancebados com irmãs, e
de pais com filhas, a este mesmo respeito disse-me que há no Maranhão,
ou Pará, um doutor [f. 334] que é ali juiz de Direito há muitos anos, o
qual por sua vida escandalosa não tem sido promovido. Esse homem vive
amasiado com uma sua filha bastarda, sendo casado no Ceará, donde
creio que é filho, e se bem me lembro se chama F. Miranda, com uma

532
bonita e mui discreta senhora, a deixou para viver com a filha, de quem
já tem vários filhos.
Hoje nega que a moça seja filha e a apresenta como sobrinha; mas
antes da mancebia a teve como filha, e a trouxe para casa para dar-lhe
educação. É tala depravação deste homem, que uns amigos, vindo donde
ele está para o Ceará, pedindo-lhe um conhecimento para esta cidade, ele
inculcou a casa de sua mulher (ela vive aqui, e mui honestamente) como
casa de boa fortuna, e de prostituição!! Quanto ao clero, não será possível
achar-se em outro lugar onde sua devassidão exceda, ou mesmo iguale, ao
que se vê nesta província.
Tendo conversado bastante desci para a casa do Bezerra, onde, além
da família, estavam, ou foram chegando: o Vitoriano (tenente-coronel), o
Norberto, o Dr. engenheiro e sua senhora, o Varonil (que hoje me disse o
pai chamar-se José Varonil de tal Bezerra), e enfim chegaram D. Francisca,
sua filha, o marido e o Viana — e o Dr. Carvalho.
Conversando-se sobre a esperteza dos sertanejos do Ceará, disse o
Bezerra: “Oh, isso é gente que dá carta e joga de mão”.
[f. 335] Agora que me vinha recolhendo, passando pela praça junto
a uma venda, vi entrando para ela uma criancinha, a quem não pude dar
mais de três anos e que, respondendo a uma pergunta que lhe fazia de
dentro, disse: “Não fui [eu] que a recebi não, ele largou em cima do balcão”.
Esta linguagem em tal idade me surpreende, e bem mostra como a gente
aqui tem um desenvolvimento precoce. Aqui não há caixeiros portugueses,
são filhos da terra, mui crianças, e tão ladinos, como são os portuguesinhos
no Rio de Janeiro.
Eu nestas minhas recordações não deixo nunca de notar: o como as
moças aqui, sem grande educação, são desembaraçadas, conversadeiras; e
na ausência dos pais recebem visitas de homens e fazem sala perfeitamente.
O que não é comum no Rio de Janeiro, onde as moças, mesmo da cidade
e com alguma educação, são acanhadas, caladas, tímidas. Aqui temos
algumas moças do Rio, vindas de fresco, que me deixam envergonhado. As
de cá dizem com certo orgulho: “Não parecem moças da Cortel!!”.
Da casa do Bezerra recolhi-me às nove horas; o céu estava estrelado, e
com boa lua, cheguei a casa pouco suado; esteve a noite e tarde mais fresca
que a de ontem, no entanto o termômetro estava em 21 graus e três quartos.

533
Domingo, 16: Amanhece bom dia, termômetro 21 graus.
Estiveram aqui, e assistiram ao nosso almoço os Srs. Soares e Barbosa;
depois saiu com eles Manoel [f. 336] e foram à festa do Paço do bispo, a
qual foi tomada pelo padre visitador Pinto de Mendonça. Eu tive convite
pela presidência, e estava disposto a ir até ontem; mas ocorreram algumas
coisas que me desgostaram, e amanheci hoje aborrecido; não fui. Fiquei
aqui trabalhando com minhas plantas, e ouvindo os repiques, os foguetes,
as descargas; e agora a música dos batalhões que passam por aqui e vão fazer
a continência em frente da casa do vice-bispo.
Tem estado a manhã triste, e ventosa; ao menos triste para mim —
tenho-me ocupado com o estudo de algumas plantas.
Três horas da tarde, céu toldado, tempo ventoso; quente, termômetro
quase 22 graus.
Manoel foi jantar com o Capanema na Lagoa Funda. Às cinco horas,
estando eu bem aborrecido, e profundamente melancólico, recebi um
convite por escrito do cônego visitador, Pinto de Mendonça (vice-bispo),
para tomar chá hoje em sua casa. Tal era o meu aborrecimento que quase
dei parte de doente; mas já não tido ido à igreja, e não houve remédio.
Não me arrependi. Estava uma boa reunião máscula. Presidente, secretário,
chefe de polícia, juízes de Direito, promotor de órfãos etc. Oficialidade de
linha da Guarda Nacional, padres, negociantes, médicos, boticários etc. etc.
etc. Chá, bandejas de doces. Às nove horas e meia retirei-me. Ah, música à
porta dum batalhão, que tocava de vez em quando. Casas iluminadas, povo
na rua etc. etc.
Dez horas. Boa noite, termômetro mais de 21 graus.
Em conversa me disse o chefe de polícia que [f. 337] em Teresina
(capital do Piauí), onde esteve, o calor e a umidade são muito incômodos;
e o lugar não é muito salubre, mas nem lá chegou nem cólera-morbus, nem
febre amarela e mais, que nunca houve bexigas no Piauí; assim como era
Quixeramobim no Ceará, onde [hoje] nem a vacina produz efeito!
Segunda-feira, 17: Amanheceu bom dia, termômetro 20 graus e um
terço.
Ontem à noite em casa do visitador, o Dr. Barbosa Cordeiro, que
vive em Baturité, médico, formado nos Estados Unidos, e casado com
uma senhora americana, me disse que a moléstia dos cafezais, de que se

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queixavam os lavradores de Baturité, não foi mais que efeito da geada! Que
ele os observou bem.
Esta manhã tem feito belo tempo, ventoso e fresco. Três horas da
tarde termômetro 21 graus e três quartos.
O Dr. Capanema jantou conosco, e quando estávamos na mesa
chegou o alferes Arcádio, que veio do Sobral, onde estava como subdelegado,
creio eu; estiveram aqui até de tardinha. O Capanema trabalhando de
microscópio com Manoel.
Saí à noite e fui primeiro visitar o cônego Sobreira, que vai mal (fez
hoje outra conferência o Dr. Mendes com Manoel e o Dr. Rufino, que veio
há pouco do Icó). De lá fui para a casa de D. Francisca, onde chegaram
depois três moças, que lá as vi já em outra ocasião, conversamos por algum
tempo, e saí; fui para a casa do Bezerra, que também vai mal. Achei sentados
fora da porta as senhoras D. Maria, [f. 338] viúva, D. Bela e outra mocinha
vizinha, o Norberto, o nosso engenheiro do Rio e sua senhora; dentro
estava D. Antônia. Sentei-me, conversamos por algum tempo e fui para a
camarinha conversar com o doente até que deu nove [horas] e retirei-me.
Estava a lua lindíssima; venta e está a noite tépida, estão grupos de
famílias pelas calçadas, em várias casas toca-se piano e canta-se. Tudo isto
agravou a minha tristeza, que hoje ainda teve motivo de mais aumentar-se!
São destes acessos de hipocondria, a que sou sujeito, e que aparecem sem
causa, ou por coisas insignificantes! Há em mim uma disposição habitual
para ela.
São dez horas, o termômetro está em 21 graus e um quarto.
Terça-feira, 18: Amanhece bom dia, termômetro 20 graus.
Agora veio aqui o Sr. Pirão convidar-me para um jantar que dá no
seu sítio em 29 deste mês.
Chegou o vapor do Rio, estou lendo Jornais do Comércio, para
descansar dos estudos microscópicos que estamos fazendo.
Três horas da tarde faz sol, e venta, inda há pouco caiu um chuveiro,
temperatura suportável, termômetro 22 graus.
Estive trabalhando em algumas plantas e lendo o Jornal do Comércio.
Às ave-marias saí com Manoel para irmos visitar a menina, D. Vicência,
doente dos olhos; mas ela estava na alcova acomodada, e deixamos a visita
para outra ocasião; ia para a casa do Dr. Rufino, e encontrou comigo o

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capitão Oliveira, trazendo-me conhecimento dos objetos embarcados, e
dizendo. [f. 339]
Depois do almoço chegou o Dr. Gabaglia. Esteve aqui o João
Brígido, com quem nos divertimos a respeito de suas ideias políticas; ele é
muito Luzia.
Tínhamos sido convidados para jantar hoje em casa do Sr. José
Francisco da Silva Albano, gente de D. Maria Teófila, mas eu e Manoel
estávamos resolvidos a não ir ao jantar por estarmos moídos da viagem;
porém seria terça-feira que nos chegou recado de D. Liberalina, mulher de
Albano, [pedindo] que não faltássemos.
Não houve remédio; Manoel não quis ir, eu porém barbeei-me e
vesti-me e lá fui. Estava uma função bonita. O Albano levou-me para o
terraço, onde estavam umas 16 moças, algumas dentre elas bonitinhas, e
interessantes; havia também homens e rapazes, de sorte que não tardou
que eles fossem para a sala, onde dançaram quadrilhas ao som do piano
até a hora do jantar, que começou às cinco horas e acabou depois das seis
com luzes. Houve duas mesas, de 26 pessoas a primeira, e a segunda com
pouco menos; a mim colocaram numa cabeceira, e permaneci aí até o fim
na segunda mesa, quando já requestados de vinhos fazia-se grande algazarra
com saúdes e gracejos. A mesa era bem servida com fartura e muitos
guisados, vários vinhos, doces etc. etc.
Dali voltamos para a sala de fora que já se achava bem iluminada,
foram senhoras para o piano, tocaram e cantaram alternativamente algumas
moças, [entre elas] a senhora D. Maria Justa, que justamente é tida como
a primeira; [f. 340] fazia luar, e o ar fresco. Cheguei a casa, não suado, o
termômetro na alcova em 19 graus e meio.
Disse-me o Luiz, marido de D. Francisca, que lendo os documentos
da antiga sesmaria achei [achou] neles que o nome de Arronches era Caocai
[Caucaia], e o de Messejana, Paopina [Paupina]. Disse-nos o Bezerra que
quem primeiro fez aqui nesta província queijos para negócio foi o padre
Cavalcante, e depois o senador Paula Pessoa; e que os melhores queijos
são os de Quixeramobim. O Viana porém diz que são os de Canindé. A
carne do sertão é preparada fazendo-se mantos, pondo-lhe pouco sal, e
expondo-a ao tempo, sol e sereno; mas parece que a melhor é exposta à
sombra.

536
Quinta-feira, 20: Amanhece bom dia, termômetro 19 graus e dois
terços!
Visitou-nos o Sr. Raimundo da Costa Tavares, delegado de
polícia de Maranguape. Almoçou conosco o Sr. Araújo de Maranguape,
e também jantou conosco.
Três horas faz sol, calor, e venta, termômetro pouco mais de 21 graus.
Neste momento (seis horas da tarde) chega de Aracati o tenente
Lassance — adjunto da seção astronômica.
Recebi hoje uma carta do Sr. Gonçalves Dias, acompanhando um
ofício, em que participa que continua por sua custa nos trabalhos de sua
seção de Manaus.
De noite estive em casa de D. Francisca e do Bezerra — noite linda de
luar, tépida, termômetro 20 graus.
[f. 341]
Sexta-feira, 21: Choveu de madrugada, amanheceu sem chuva,
termômetro 20 graus e um quarto.
Aqui vieram dois filhos do Luiz Vieira, inspetor (?) de Alfândega, o
padre e outro mocinho; pediu-nos a mim e a Manoel para assistirmos a uma
conferência a seu pai, que se acha gravemente enfermo; às onze horas esteve
aqui o João Brígido, e diz-nos que já ontem se esperava pelo Gabaglia, que
deixou o seu casamento para outubro.
Às onze horas saí com Manoel, fomos à casa do Luiz Vieira onde
conferenciamos com o Dr, José Lourenço; saindo de lá fomos visitar o Dr.
Santos Souza, que vai melhor; aí achamos o Lassance, de volta passei pela
escola de meninas, a despedir-me da professora D. Francisca.
Desde que saímos, até que chegamos caiu uma pequena chuva, com
intervalos.
Duas horas está fazendo agora sol, o céu está limpo, e venta de leste,
termômetro 21 graus.
Era pouco mais de quatro horas quando montamos a cavalo, eu
e Manoel, vamos a Pacatuba despedir-nos de nossos conhecidos de lá e
assistirmos ao casamento do João Pedro Villa Real com a filha do Valente,
D. Januária, do qual [de cujo] casamento havemos de ser testemunhas eu
e o Lagos. Galopando quase sempre pela boa e arenosa estrada que fez

537
o Thomaz Lourenço, chegamos ao sítio de D. Vicência com 20 minutos
de caminho. Ele andava pelas roças, apareceu-nos a interessante Matilde,
rubicunda e rechonchuda, com ela gracejamos um pouco e seguimos nossa
viagem, anoiteceu-nos no rio Genipabu, eram sete horas mais ou menos;
daí em diante, o céu começou a anuviar-se, e a dar [f. 342] por intervalos
chuviscos finos, havia outro chuvisco mais forte, e os caminhos estavam
bem aguados, a lua pouco nos serviu. Chegamos a Pacatuba eram nove
horas, dirigimo-nos para a casa do Valente, aí achamos o Villa Real e pouco
depois nos apareceram as moças D. Maria (Lica) e Januária. Tomamos café
com docinhos e fomos para a casa do Villa Real. A noite foi fresca.
Sábado, 22, em Pacatuba.
Amanhece bom dia, o Henrique almoçou conosco; não saí de manhã.
De uma hora às três caiu bastante chuva. Antes do jantar recebi um ofício
do Dr. Gabaglia, que chegou ontem às cinco horas da tarde do Sobral (com
60 horas de viagem); ofício que me incomodou um pouco, mas... e uma
carta cheia de cumprimentos e dando-me parte do seu casamento, que teve
lugar no dia 15. Respondi a tudo com pressa. Melhorando a tarde fomos a
Monguba eu e Manoel, a despedir-nos da família Pranklin, estavam todos,
conversou-se muito e variadamente. D. Maria cantou ao piano, tomou-se
chá, e fizemos nossas despedidas saudosas às dez horas; fazia luar. Chegamos
à casa do Valente, estavam ainda as senhoras acordadas e nos deram café
com leite, bolinhos etc. D. Januária, a noiva de amanhã, está incomodada,
mal! Fomos para casa e dormimos noite fresca, sem chuva.
[f. 343]
Domingo, 23: Amanheceu bom dia, mas das dez horas ao meio-dia
choveu bastante. Não se pôde fazer o casamento hoje porque o incômodo
da moça não o permitiu. De tardinha saí e fui fazer minhas despedidas,
acompanhou-me o capitão Henrique; fomos primeiro à casa de D.
Sabina, depois à do Crisanto, e eu fui à do Dr. Vitoriano; já então estavam
acesas várias fogueiras e estrondavam por toda a parte bombas, roqueiras,
foguetes, traques, fogos da China etc. Na sala do doutor achamos várias
moças em roda da mesa a tirar sortes, aí nos demoramos um pouco, e enfim
nos despedimos, fomos para a casa do Valente, apareceu a noiva muito
sentida pelo fiasco. Instaram muito comigo para que voltasse para assistir

538
ao casamento, o que prometi mentindo, porque me é impossível lá tornar;
tomamos café e nos despedimos com quem tinha de voltar; mas eu senti
bastante saudade nesta separação.
Segunda-feira, 24: Levantamo-nos cedo, manhã fresca e boa; mas
só pudemos partir às seis e meia, bem que o dia não era ardente, e ventava
todavia, chegamos molestados à capital às onze horas.
Quando íamos chegando a casa, vimos grande quantidade de cavalos
magros à porta, e Manoel conheceu logo que era chegado o Lagos, com
efeito os achamos à mesa almoçando; almoçamos como estávamos. [f. 344]
[À noite] Uma outra mocinha, sobrinha de D. Maria Teófila, que canta
bem, e mais outras senhoras e meninas, dançaram e [fizeram] por intervalos
quadrilhas, e quando me despedi depois de nove horas, ainda lá ficaram
cantando e dançando.
A casa de Albano é um bom edifício, vai de rua a rua, com frente
também para a rua travessa; é de sobrado, toda forrada, com salas e alcovas
espaçosas, arejadas, pintadas, forradas de papel, tudo de muito bom gosto,
principalmente a de fora, cujo teto branco tem molduras doiradas, assim
o florão do centro donde pende um lustre, as paredes têm também filetes
doirados, boa mobília, de palhinha, aparadores com vasos de porcelana, e
bons castiçais, bom piano de encosto etc. etc., tudo novo, e bem luzido.
Esteve uma boa função. D. Maria Teófila não cabia em si de prazer
e mostrou-se muito satisfeita com a minha presença, e obsequiou-me a
não poder mais.
São dez horas, faz bela noite de luar, termômetro 21 graus.
Terça-feira, 25: Amanhece bom dia, termômetro 20 graus e meio.
Tenho estado esta manhã desenhando a aninga e aprontando
negócios para a volta da Comissão.
Três horas da tarde faz belo dia, venta com força a leste.
Termômetro 21 graus e três quartos. Depois de jantar partiram para
Pacatuba o Lagos, o Reis e Manoel, foram para o casamento do Villa Real,
que deve ter lugar hoje à noite.
Ao anoitecer saí, fui à casa da professora D. Francisca Bezerra,
onde pouco me demorei [f. 345] e onde soube que o cônego Sobreira
confessou-se e sacramentou-se hoje, e que o Sr. Manoel Bezerra havia

539
sofrido a operação do [ilegível]; saindo daí fui à casa do Santos Sousa,
que vai melhor; daí fui à casa dos senhores Justas, onde se acha D. Maria
Teófila, a despedir-me desta senhora, e das mais pessoas que ali moram.
Estavam além de Dr. José Gonçalves da Justa, do Sr. Antônio Gonçalves
da Justa, e sua senhora, filha de D. Maria, D. Maria Justa, a cantora,
D. Joana, filha de D. Maria e outra mocinha da família; que todas são
da família e de casa; estava mais outra senhora com seu marido e duas
filhinhas, chegava mais quando eu me despedi — um sujeito, Rocha
Júnior, negociante daqui, com sua senhora.
Daí fui à casa do Bezerra, que achei muito satisfeito com a sua
operação: “Agora se morrer”, diz ele, “morro aliviado! Antes 20 vezes isto,
que um cáustico!”, Estava a mulher, as duas filhas e Vitoriano Borges, aqui
estive até quase às nove horas. Noite um pouco escura, por estar o céu
anuviado e quente, termômetro 21 graus e meio.
Quarta-feira, 26: Amanheceu bom dia, termômetro 20 graus e três
quartos.
Observam na reunião do José Albano, onde como disse estavam
muitas meninas, algumas bonitinhas, mas em geral gordas demais, notei
era isso muito geral agora o uso de enormes balões, que produzem mau
efeito, principalmente quando as senhoras se sentam — duas só ou três delas
se achavam vestidinhas com gosto. Era uma reunião familiar, por isso os
trajes eram simples. Em outro dia, conversando com D. Francisca Bezerra,
disse-me ela que as senhoras do Icó se vestem melhor, com mais elegância
que as de Sobral, o que a mim me pareceu também. Disse ela que tinha
visto aqui duas moças do Icó vestidas, de sorte que pareciam figurinos
franceses. Acrescentou que, quando ela era menina, estando no sertão, [f.
346) as sertanejas trajavam com muito mais gosto, procurando sempre
cores as mais vivas para seus vestidos, xales etc., usavam muito de vestidos
vermelhos cor de tijolo, vestidos amarelos etc. etc. Hoje está isso mudado.
Tenho estado concluindo o estudo da aninga.
Tem feito bela manhã — [riscada uma palavra] duas horas faz sol,
venta; termômetro 21 graus e meio.
Depois das três horas chegaram de Pacatuba o Lagos e o Reis,
deixando casado o Villa Real.

540
Ao anoitecer saí a fazer despedidas; fui à casa do Dr. Ribeiro, que não
estava em casa, e fiz minhas despedidas à senhora; daí fui à casa do padre
vigário Alencar, que estava em casa; fui daí à casa dos senhores Mendes,
estava o pai e um dos filhos médicos, faltando o Dr. Manoel Mendes,
despedi-me de todas estas senhoras; daí fui à casa do Gustavo, quando eu
chegava saíam duas de suas meninas a passeio, o Gustavo não estava [e]
despedi-me dessas senhoras; fui logo à casa do tenente Pedreira, que estava;
fui daí à casa do Varonil, despedi-me da senhora, ele não estava. Era já
tarde, e eu estava bastante suado, segui para a casa do Bezerra; mas antes fui
visitar a nossa Auminense D. Francisca, mulher do Dr. Barbosa, que teve
seu parto no domingo com felicidade. Enfim entrei em casa do Bezerra
onde chegou logo o Varonil, depois o Vitoriano, e enfim o Luiz Viana com
um padre, que creio é vigário de Maria Pereira, e que vem doente tratar-se
aqui. Hoje me disse o Bezerra que no Piauí não há pau-branco, e que os
[f. 347] sertões do Piauí são mais bonitos (em quê[?]) do que os do Ceará.
Quando saí estava o céu anuviado, fazia calor, agora dez [horas]
aparecem estrelas; eu escrevendo estava suando, e o termômetro marca 21
graus e um quarto.
Disse o tal padre, em casa do Bezerra, que nos sertões de Maria
Pereira continua o inverno, que muito abundava de víveres, o gado está
muito bonito etc., mas que em Canindé, por onde ele passou, está tudo
seco, e parece que ali não choveu este ano!
Quinta-feira, 27: Amanheceu bom dia, termômetro 20 graus e meio.
Tenho estado ocupado com o estudo de algumas plantas.
Aqui estava o Dr. Pompeu, que chegou há pouco do sertão (Santa
Quitéria, seu lugar de nascimento).
Durante a manhã, que tem estado sempre coberta, tem chovido
mais ou menos, desde as oito horas até duas [horas]. Três horas não chove,
termômetro 20 graus e meio.
De tarde saí a despedir-me, fui à casa do tenente-coronel Vitoriano
Borges, que não estava, de volta despedi-me do engenhei francês, Sr.
Berthot, tornei para a casa suadíssimo; refresquei, mudei de roupa a sair
[novamente]; estive em casa de D. Francisca, onde estava o Viana; daí
desci para a do Bezerra, aí sabendo que a moça D. Francisca tinha passado

541
mal, fui visitá-la. Achei-a com alguma febre, ventre tripanolítico, mas por
ora não há perigo. Estavam no quarto D. Maria Bezerra, a senhora do
comandante Camilo de tal, uma filha, e uma sua nora. Voltei para a casa do
Bezerra onde apareceu uma preta africana, que é ventríloqua; [f. 348] veio
com o vigário de Maria Pereira, encheu-se a casa de gente da vizinhança
para ver a preta pôr em ação a sua prenda. Ela põe os braços nos ombros,
encruzando-os, e apertando então produz uma voz ou fala dentro do peito
imitando duas crianças com as quais ela conversa, fê-las chorar, e cantar; o
choro é o que ela faz de melhor. É uma espécie de ressonância, e ouve-se a
voz sair de dentro do peito, no lugar correspondente à espádua direita. Não
é a verdadeira ventríloqua, em que a voz do ventríloquo parece vir de fora
e a pronúncia é clara, mas aqui as palavras são mal pronunciadas — o que
ela faz é pedir dinheiro. Eu dei-lhe mil-réis. Conversamos até às nove ou
dez horas, o céu tem algumas nuvens. Termômetro 20 graus e um quarto.
Sexta-feira, 28: Amanhece bom dia, termômetro quase 20 graus.
De manhã ocupei-me fazendo ofícios para o Governo Provincial,
fui ao Liceu, fui ao Palácio falar com o secretário, fui à Tesouraria receber
dinheiro, voltei para casa, fiz estudos de algumas plantas que Manoel trouxe
de casa do Gouveia, que é curioso, a saber: pitangas (frutas), uma espécie de
pimentas denegridas, a madressilva europeia”, a Corape guiarenisis, o abricó-
do-pará que é um Clusiacea (Manica americana [Mammea americana]) etc.
etc.
Três horas faz sol e calor, termômetro 21 graus e meio.
De tarde ainda fiz alguns estudos.
Seriam cinco horas quando se anuncia a chegada do vapor Oiapoque
do Norte, que nos surpreendeu.
[f. 349] Estávamos preparando-nos para seguir viagem, mas
duvidando muito que ele chegasse amanhã, porque corria que ele fazia
água e ia consertar-se no Maranhão. Havia ainda muito que fazer, e isto
com três dias santos em frente, e mais que tudo nos punha perplexos o
estado duvidoso do vapor. Enfim, logo que soubemos de sua chegada,
fomos ao Palácio conversar com o presidente, que me asseverou estar o
vapor em bom estado e que daria todas as ordens necessárias para a nossa
partida amanhã; e que viéssemos conversar com o comandante, que devia

* Não é uma Lonicera, da China, dz Capanema.

542
ir a minha casa. Com efeito chegando a casa, aí achamos o comandante
Hipólito, que nos afirmava com certas reservas que o vapor podia fazer
a viagem sem comprometimento da carga. Mas os boatos anteriores, que
se diziam vindos dele mesmo, me puseram duvidoso, e os companheiros
Gabaglia e Lagos forcejavam por me tornarem mais irresoluto, e era sem
opinião que ficassem para este vapor, eram eles também a quem isto mais
convinha.
Enfim voltei ao Palácio, a expor ao presidente o negócio, o qual
aceitou as nossas razões e ficou de mandar sentar tudo. Assim aqui estamos
ainda por uns 15 dias.
São dez horas, há fogueira e cantorias na vizinhança, foguetes, busca-
pés etc., a noite está boa, termômetro 20 graus e um terço.
Sábado, 29: Amanheceu bom dia, termômetro 19 graus e três
quartos.
Dia de S. Pedro. Há hoje em casa do Pirão [f. 350] em Messejana,
um grande bródio, para o qual foram convidadas muitas personagens
daqui, como o presidente etc., e o Pirão me veio pessoalmente convidar.
Mas, chegado o vapor ontem, transtornou meus planos, e hoje achei-me
sem vontade de ir a tal festa, à qual também o presidente não foi. Tenho-me
ocupado com o estudo da flor e do fruto da andiroba (carapá), de ramos
colhidos do jardim do Gouveia por Manoel.
Três horas faz sol, venta, termômetro quase 22 graus.
Ao anoitecer saí; visitei o cônego Sobreira, que está mal, está agora
tomando homeopatia, e parece estar com algum esperança, vá porém! Daí
passando por casa das amáveis senhoras Guerras estive conversando com
elas à janela, desci e fui para a casa do Bezerra, mas de passagem visitei a
senhora do engenheiro Barbosa, que vai muito bem. Em casa do Bezerra
achei uma moça que não conheço, havia baile numa casa próxima para onde
foram algumas das senhoras. [Passei a noite] Em conversa com o Bezerra,
[de] que [participavam] as senhoras que aí estavam, com o Vitoriano, com
o Norberto, com o Garapa, e com o vigário de Maria Pereira; estava todavia
preocupado. E [apesar dJa música que se ouvia bem da casa vizinha, e a
concorrência das famílias que para ali ia, não me distraí, antes aumentava
minha tristeza. Em conversa disse Garapa que os caboclos preparam o peixe
duma maneira boa e fácil. Na praia mesmo onde se apanha o peixe fazem
fogo sobre a areia que, estando quente, enterra nela o peixe, fazendo novo

543
fogo em cima, até que o peixe esteja [f. 351] em termos de comer-se, o que
se faz com o simples molho de limão e sal. O peixe tirado da areia larga
toda a escama, e adquire um gosto que nem é de peixe cozido, nem de peixe
assado; e é muito saboroso. Retirei-me às nove horas, a noite estava alguma
coisa quente; o céu tinha algumas nuvens, durante a viagem ouvia música
em várias casas, eram bailes para S. Pedro. Termômetro 21 graus.
Domingo, 30: Amanheceu bom dia, termômetro 20 graus e meio.
Ontem à noite me disse o Manoel Bezerra que há a uma légua para
oeste de Soure uma pequena Lagoa chamada Parnamirim, que dizem não
ser funda, e que nunca aumenta nem diminui em tempo de secas, ou de
inverno; cuja água é perfeitamente transparente e ótima de beber-se e que
para este fim havia já sido examinada no tempo dos governadores. Ele
nunca lá foi, mas é o que conta.
Tem feito uma bela manhã, temos estado estudando algumas plantas.
Três horas da tarde faz sol, venta, termômetro quase 22 graus.
Tenho estado lendo as Meditações ou discursos religiosos, do Conselheiro
Bastos, que é obra primorosa.
De noite saí e estive em casa do Bezerra até nove horas; havia lá, além
da família (estava D. Francisca), o Dr. Carvalho, o Vitoriano que chegou
depois, e por im um moço que é duma cidade do sertão. Está linda noite,
termômetro 21 graus e um quarto.
[f. 352]
Julho, 1º: Amanhece bom dia — termômetro 20 graus e meio.
Estive trabalhando em utriculárias. Tivemos aqui visita de alguns
deputados, do Jardim e outros lugares.
Ao meio-dia fui para a Casa da Câmara, onde assisti à abertura da
Assembleia Provincial, que se fez com decência.
Três horas faz sol e calor, termômetro 21 graus e três quartos.
Às sete horas saí com o Lagos para o teatro, representação de gala, por
o ser dia de abertura da Assembleia Provincial, e o presidente apresentou-se
de gala, e as senhoras em grande tafularia. Houve Hino Nacional cantado
diante do retrato do imperador, e vivas dados pelo presidente. O teatrozinho
foi reparado, e está muito cômodo e asseadinho, mas sempre é uma estufa.
Nós fomos a cadeiras porque já se não achou camarote. Estava no teatro
boa parte das melhores famílias do Ceará, mas entre elas brilhavam pela

544
elegância as senhoras Barateiro, principalmente uma delas que é uma
bela moça, traja com muito gosto. D. Maria Teófila com todas suas filhas
etc. etc. À peça é portuguesa da moda e tem seus defeitos, mas foi bem
representada.
São onze horas, faz linda noite — termômetro 20 graus e meio.
Terça-feira, 2: Amanhece bom dia, termômetro 20 graus. Manoel
parte esta manhã com o Dr. [f. 353] Capanema para Iguape, e talvez Monte-
Mor. Eu ocupei-me esta manhã com o estudo de uma linda Utricularia,
colhida pelo Capanema. Duas horas da tarde faz sol e belo dia, termômetro
21 graus e meio. Ao anoitecer aqui estiveram dois moços do Sobral, um
deles filho de D. Irene; estiveram até quase oito horas. Fiz a barba a essa
hora e saí, e fui direto para a casa do Bezerra, estavam sentados fora D.
Antônia e dois sujeitos que não conhecia, chegou depois Vitoriano Borges,
depois o Dr. promotor do Crato, Gervásio, com outro sujeito, Quezado,
que vieram como deputados provinciais. Retirando-se todos, fiquei eu
sentado à janela com D. Maria Bezerra, e eram nove horas quando apareceu
o Dr. Gabaglia, mostrando no céu uma lista branca; saí para fora a observar;
era a cauda do cometa, que tem aparecido de madrugada. Não se vê o
núcleo, que está abaixo do horizonte, mas a cauda parte daí e chega até o
meio do céu, confundindo-se com a Via Láctea; é uma lista nebulosa, que
na aparência pode ser duas braças, e com igual largura em toda a extensão,
só varia um pouco quanto à intensidade da luz, que no alto é mais apagada,
e a sua direção é quase de norte a sul. O céu está sem uma nuvem, e muito
estrelado, faz temperatura tépida, o ar está calmo, termômetro 21 graus.
Quarta-feira, 3: Amanheceu bom dia — termômetro 21 graus e meio.
Aqui veio agora o Sr. Antônio Guimarães da Justa convidando [f.
354) a mim e Manoel para tomar chá em sua casa no sábado próximo, em
que se casa sua irmã D. Maria — a cantora. Chegou o Cruzeiro do Sul, no
qual devemos ir para o Rio.
Estive lendo o Jornal do Comércio. Duas horas e meia, céu anuviado,
calor, termômetro 21 graus e meio. Continuo a leitura dos jornais. De noite
estive em casa de D. Francisca, veio o Viana e outros sujeitos, daí fui para a
casa do Bezerra, onde se juntaram vários rapazes como o Quezado, matuto

545
de Barbalha, e que é deputado; matuto que não parece cearense. Fizeram-
no entrar no jogo do amigo para se rirem à custa do pobre homem.
Esta tarde e noite tem estado o céu anuviado e o ar quente, apenas se
via a cauda do cometa.
Dez horas, termômetro 21 graus.
Quinta-feira, 4: Amanhece bom dia, termômetro 20 graus e um
terço.
Tenho estado lendo os Jornais do Comércio. Duas horas da tarde faz
sol, belo dia, e venta, termômetro 20 graus e três quartos. Comprei agora
quatro lenços e lavarinto de puçá, três de 13$000 [treze mil-réis] e um de
12$000 [doze mil-réis], igual a 458000 [quarenta e cinco mil-réis; a soma
no entanto dá 518000, cinquenta e um mil-réis).
De tardinha, saí fui para a casa de D. Francisca Bezerra a fazer
horas para o teatro, aí estivemos vendo o cometa, que é belo. Tivemos o
teatro bem concorrido nos camarotes, e algumas mocinhas elegantemente
vestidas; estava o presidente com sua senhora, e lá a fizemos cumprimentos
[£. 355] no camarote, Lagos e eu. São mais de onze horas, o céu está lindo;
do cometa mal se vê a cauda, que chegou à Via Láctea, termômetro 20
graus e meio.
Sexta-feira, 5: Amanhece bom dia, termômetro 21 graus — das seis às
sete horas o céu se anuviou e deu alguma chuva.
Aqui estava o Dr. Pompeu. Disse-nos ele que próximo a Santa
Quitéria existe em um lugar descampado uma laje rasa, que não há muitos
anos que se quebrou no meio, e da fratura corre uma água salobra, que
embrejando ou estagnando em vários lugares tem dado lugar à formação
de pedras. A gente do lugar, que considera aquela laje larga como obra de
flamengos, tem aumentado a abertura que se fez no meio da laje, e com
longas varas tem reconhecido que embaixo dela há lago, ou água, lama,
e pedaços de árvores. Isto dá lugar a crer que houve ali uma lagoa antiga,
onde havia vegetação, e cuja água corre gorda de carbonatos de cal; deu
lugar à formação da tona de pedra, que cobre a antiga lagoa.
Três horas da tarde faz sol, e calor, venta; termômetro 22 graus.
De noite estive em casa de D. Francisca e, passando pela das senhoras
Guerras, conversei com elas à janela; estive em casa do Bezerra até além das
oito horas e meia. Via-se bem o cometa, a cauda junto ao núcleo era viva,

546
no resto, até a Via [f. 356] Láctea está já muito apagada. Cheguei a casa
suado, tem feito calor estes dias, e esta noite esteve quente, termômetro 21
graus e meio.
Sábado, 6: Amanhece bom dia, termômetro 21 graus.
À respeito do cometa que agora apareceu, diz o Sr. Liais... é um
cometa novo até aqui, invisível na Europa e na América do Norte... afasta-se
atualmente (meado junho?) do sol, porém aproxima-se consideravelmente
da Terra. Aos 25 deste mês (julho), atravessará o plano da eclíptica, e se
acharão então quase exatamente sobre a linha tirada da Terra ao sol. Sua
distância à Terra deve ser apenas 28 vezes a da lua, e como a sua cauda é
muito mais longe do que esse intervalo, o apêndice do cometa virá quase
roçar, e talvez mesmo tocar, a nossa atmosfera. No dia 15 de junho a cauda
tinha mais de cinco milhões de léguas de extensão, o núcleo em diâmetro
[tem] porém mais ou menos igual ao terço ali, do nosso globo. O cometa
vai a 25 deste mês cessar de ser visível pela manhã, mas depois desta data
aparecera à noite e tornar-se-á visível na Europa — Jornal do Comércio.
Duas horas da tarde faz sol, venta, termômetro 21 graus e três quartos.
De noite vesti-me para ir ao casamento de D. Maria Justa, fui fazer
horas em casa de D. Francisca, mas às sete horas saí, cheguei até a frente da
casa, e achei-me tão incomodado que voltei para casa. O céu estava muito
lindo, o cometa estava magnífico; dez horas, termômetro 21 graus e meio.
[£. 357]
Fortaleza
Domingo, 7: Amanheceu bom dia, termômetro 20 graus e meio.
Aqui estava há pouco o Sr. Thomaz Lourenço que se veio despedir de nós,
estando para ir com sua família para se sair de Tauape.
Tenho lido Discursos religiosos, do cônego Bastos e as Bucólicas e
Geórgicas, de Virgílio, em um livro de estudantes que aqui me caiu nas
mãos.
Duas horas e meia. Faz belo dia, vento geral, termômetro 22 graus,
a mesma leitura.
De noite fui à casa da senhoras Guerras, estavam só a mãe e uma
das moças, que estava com uma mão queimada. Daí fui à casa do Thomaz
Lourenço, que apareceu só, estando as senhoras vestindo-se para irem ao
teatro, e por isso não me demorei. Daí fui à casa do tenente Barbosa, visitar

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a senhora que já está restabelecida, mas mui pálida. Enfim fui para a casa
do Bezerra, onde estive até depois das nove horas. Contou D. Antônia
que várias vezes foi à lagoa Parnamirim, que está a duas léguas de Soure. É
próxima ao mar, do qual a separa um morro, ou combro de areia; o terreno
ao redor é tabuleiro de areia, a lagoa é redonda, de tamanho pouco maior
que a praça que fica defronte da casa em que moram aqui na capital, e que
tem seguramente o dobro do nosso Rocio do Rio de Janeiro. As margens
são limpas; não há um pé de junco, nem de golfo, a água é tão clara que
mostra a gente dentro até o pescoço parece nu; é fresca, de bom sabor, é a
melhor água que ela tem bebido. Há na lagoa uma espécie de peixe miúdo,
[f. 358] nem aumenta nem diminui; na seca de [18]25 em que todas as
águas secaram ela se conservou sempre na mesma altura, nem ela viu roupa
tão delicada como a lavada naquela lagoa. Há tradição de que os jesuítas
tinham casa ali perto, e ela via ruínas que dizem ser dela.
Voltando estava a noite lindíssima e fresca, via-se bem o cometa, mas
com a cauda já muito diminuída, termômetro 20 graus e três quartos.
Segunda-feira, 8: Bom dia, termômetro 19 graus e meio.
Comprei mais três lencinhos de lavarinto, um por 20$000 [vinte
mil-réis] e dois a 11$000 [onze mil-réis], cada um.
Agora esteve aqui o Dr. Gabaglia, e em disputa com o Lagos sobre o
número de caixas de bagagem e de carga; mostrou-se incrédulo que Lagos
pagasse o frete de grande número de caixas que leva,* isto depois da circular
que mandei a todos; o que quer dizer que essa circular [2] tudo com o
Lagos; e antes era para dar lugar maior para ela no vapor! É mais um desses
desgostos que tenho sofrido e estou sofrendo, tendo um corvo na boca!
Estava ainda na persuasão de que o Lagos, ou antes que[m] me havia pedido
dois lugares no vapor para o Lagos, quando este tomou outro lugar por sua
conta. É a premissa dessa gente, de todos eles, que eu estou por tudo o que
o Lagos quer; ainda que sejam coisas desarrazoadas! Até aonde pensa assim?
Duas horas da tarde, faz lindo tempo, com vento, mas faz calor;
termômetro 21 graus e um quarto. De noite fui me despedir da família de
Thomaz Lourenço, estava além da gente da casa a D. Helena, pretendente à
cadeira de primeiras letras do sexo feminino. Daí fui à casa do Dr. Rodrigo,
juiz municipal, e despedi-me. Fui depois à casa do Dr. José Lourenço, que
achei em sua casa, [f. 359] e todas as senhoras, mãe e filhas em grande

“Tenho razão, fui ainda [apagado] mais uma vez.

548
tafularia e com enormes balões, como é agora uso no Ceará, estavam
prontos a fazer visitas. Fiz minhas despedidas e segui para a casa do Bezerra,
onde estive conversando com a família até nove horas, aí chegou depois o
Vitoriano Borges.
Linda noite, vê-se bem o cometa, faz calor — o termômetro 21 graus
e meio na camarinha.
Terça-feira, 9: Bom tempo, termômetro 20 graus e meio. Chegou
Manoel da excursão que fizera com o Dr. Capanema, ocupei-me com o
estudo de algumas plantas que ele trouxe.
Três horas da tarde faz sol e calor, venta, termômetro 21 graus e três
quartos.
De tarde aqui esteve o capitão Henrique da Justa que se veio
despedir, o alferes Arcádio D. Às ave-marias saí, estive em casa de D.
Francisca. Despedi-me do Macieira, do Luiz Vieira, do João Brígido e
do Dr. Belarmino (do Jardim). Do Dr. Pompeu, da senhora do capitão
Oliveira, do Dr. Aires, juiz de Direito, e de sua estimável família. Enfim
fui para a casa do Bezerra, onde achei o Dr. Mendes, que é seu assistente,
chegou depois o Vitoriano Borges e o Norberto. Às nove horas me recolhi,
bela noite, quente, termômetro 21 graus e meio.
Quarta-feira, 10: Amanheceu bom dia, termômetro 21 graus.
Tenho-me ocupado com o estudo de algumas plantas aquáticas que colheu
esta manhã Manoel, na lagoa Carapeba, perto da Vila Velha, onde foi com
o Dr. Capanema.
Duas horas da tarde, céu um pouco toldado, vento de leste,
termômetro 22 graus.
Às quatro horas fomos para a casa do Dr. Santos Souza, [f. 360]
que deu hoje um jantar em obséquio ao Dr. José Lourenço e Manoel, que
o trataram na moléstia que acaba de sofrer. Esteve o jantar mui farto, e
variado: muitos doces, vinhos etc. etc., servido com doze talheres. Eram
os dez membros da Comissão e os Drs. José Lourenço de Castro e Silva e
Antônio Gonçalves da Justa Araújo. Logo depois do café me retirei, estando
muito suado, passando pela escola de meninas entrei e estive conversando
com D. Francisca, e gracejando com as meninas.
Vim para a casa e despi-me. Ao anoitecer saí e fui despedir-me do
comendador Machado; do Albano, que não achei, tinha ido para a Aratanha

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com D. Maria Teófila, falei com o irmão e fiz as minhas despedidas; despedi-
me do João Mendes que achei sentado à porta, com o Arcádio, e mais dois
sujeitos. Enfim fui para a casa do Bezerra, donde me retirei às nove horas.
Fazia boa noite, mas quente, venta bastante. O cometa vai diminuindo
muito, termômetro 22 graus.
Quinta-feira, 11: Bom tempo, termômetro 21 graus. De manhã
ocupei-me com o estudo de algumas plantas. Aqui me veio visitar o Dr.
Medeiros, que chegou há dias de Pernambuco. Tem feito bela manhã,
mas muito ventosa (o que já acontece há mais tempos) — duas horas tarde
termômetro 21 graus e meio. Às cinco horas saí a fazer muitas despedidas,
fui primeiro à casa do Gouveia, cônsul português, daí ao cônego Sucupira,
daí ao Dr. Pontes; daí à moça D. Vicência, filha do Valente, que já não
achei; daí à casa dos Vianas que não estavam, e fui [f. 361] recebido pela
gentil e bela filha do Dr. Viana; daí ao Dr. Sinval, que não achei em casa,
depois ao governador do bispado (cônego Pinto de Mendonça); daí ao
Elias e sua família (do Numa Pompílio); daí ao Dr. Antônio Gonçalves da
Justa Araújo, e enfim ao Teodorico (farmacêutico). Afinal fui para a casa do
Manoel Bezerra, onde estive conversando com as senhoras até às oito horas,
então fui para o teatro, onde se representa a peça Pedro, sem mais nada,
que sem seu merecimento, e não foi mal representada, e terminou por uma
farsa, a Guerra da Itália. Estive sempre [andando] desde às cinco horas, até
terminar o teatro ensopado em suor, tendo sempre a camisa molhada, o
teatro estava bem cheio, mas grande número de camarotes estava cheio de
homens.
Ao sair ventava bastante, o céu tinha suas nuvens, termômetro à
meia-noite 21 graus.
Sexta-feira, 12: Bom tempo, termômetro (na sala) 19 graus e meio.
Estamos aprontando-nos para a viagem, que deve ser amanhã.
Três horas da tarde ar embanado, quente, termômetro 19 graus (na
camarinha), 21 graus e dois terços [fora]. Estávamos jantando quando
apareceu o padre Verdeixa (Alexandre), tomou café conosco e conversou
bastante até às cinco horas, contando-nos muita coisa de sua vida.
Rogamos-lhe que escrevesse-a, e com efeito se [nos] ofereceu (e hoje creio
que o fazia imparcialmente); seria curiosa, há na sua vida fatos, e como

550
ele diz peripécias, de verdadeiro efeito romanesco. Tem ele corrido toda a
província, e tomado parte muito ativa em seus acontecimentos e em uma
época muito interessante, a de [18]24 e a de [18]40, [f. 362] isto muitas
vezes perseguido, escapando por várias ocasiões à morte. Tem memória
feliz, fala com muito desembaraço e com muita perspicácia. Foi um rapaz
e de muito menino dum gênio travesso e audaz... hoje está mais comedido,
e se ri de suas travessuras. Diz ele que muitas anedotas, que correm em seu
nome, são de pura invenção. Agora são quase seis [horas] veio visitar-nos o
presidente da província.
Às sete horas fomos ao Palácio despedir-nos do presidente. Eu,
Lagos, Capanema e Reis; Gabaglia não foi por ter ido encontrar sua
senhora, que chegou do Sobral. Em Palácio mostrou-nos o presidente, que
é pessoa muito amável, um macaquinho do Maranhão (que já esteve aqui
em nossa casa fugido), lindo animal, de cor preta, com pintas louras no
dorso, pelo mui fino e macio, e um pouco maior que os daqui, ou da
Bahia. Também [mostrou-nos]) uma araruna, a primeira que vi, e ainda
nova, de cor azul denegrida, com bico negro enorme, olhos amarelos em
roda, cauda como a dos papagaios. Aí nos demoramos mais de meia hora;
logo que apareceu a senhora, nos despedimos. Eu fui logo com Capanema
à casa do Dr. Medeiros, que é defronte e deixamos bilhetes por não estar
ele. Voltei para casa, mudei de colete e tomei sobrecasaca, e fui às minhas
últimas despedidas; despedi-me do cônego Sobreira, que achei teanimado,
mas duvido que se restabeleça; é o Dr. José Lourenço que o trata agora, não
tendo achado proveito na homeopatia.
Despedi-me da senhora D. Francisca Bezerra, e de seu marido e das
meninas, às quais fiz presentes de registros, tesourinhas etc. Despedi-me do
Bastos, boticário.
[f. 363]
Despedi-me das senhoras Guerras. Estavam todas cinco na sala,
com a mãe, achei lá Manoel, conversamos um pouco com estas estimadas
senhoras e nos despedimos. Despedi-me do engenheiro Barbosa, e sua
senhora D. Francisca.
Enfim fui para a casa do Bezerra; aí achei ele deitado no sofá (está
com o ventre outra vez cheio de líquido), a mulher, as duas filhas, o filho

551
Varonil e o Vitoriano Borges. Aí dizendo eu que pela primeira vez tinha
visto o padre Alexandre de tal Serbelon Verdeixa, e que havia gostado da
sua conversação, exclamaram todos a um tempo “é um perverso; mas sabe
insinuar-se e disfarçar a maldade de seu coração; é um assassino, difamador
e ingrato quanto se pode ser”. Então referem-se alguns casos de ações
abomináveis e de gracejos indecentes praticados por ele.
Soaram nove horas, e fiz as minhas despedidas, não sem alguma
emoção desta boa gente e desta casa, onde mais tempo passava nesta cidade.
Estava a noite mais linda, de luar; o cometa vai se sumindo. Ainda
suei bastante esta tarde e noite, termômetro 20 graus e meio.
Sábado, 13: Bom tempo, fresco, termômetro na sala 19 graus.
Temos estado toda a manhã apresentando-nos e esperando pelo
vapor, que se diz que chegou agora. Faz sol e calor, termômetro na sala 22
graus e meio.
Preparos para o embarque. Jantei às pressas, eu só, às duas horas vesti-
me; [ilegível] [f. 364] e às quatro horas saí de casa, sozinho e com o coração
apertado. Em caminho encontrei o Varonil, e depois o tenente Pedreira
com dois filhinhos, que me acompanharam até a ponte de embarque. Aí
havia grande lufa-lufa na praia, estava por ordem do presidente uma barcaça
recebendo a carga da Comissão, e um escaler, ou o que quem quer que seja
da Alfândega, para nos conduzir ao vapor.
Havia na praia, onde se achavam os membros da Comissão, muitas
pessoas, que nos vinham obsequiar, e eram segundo minha lembrança: o
guarda-mor da Alfândega, tenente-coronel da Guarda Nacional, Vitoriano
Borges, o Dr. Justa (Araújo), o Brígido. O Dr. ... do Crato, o Dr. José
Lourenço e seu irmão Thomaz Lourenço, o Varonil, o tenente Pedreira, e
mais outros de que não me lembro.
Embarquei às cinco horas com o Barbedo e Soares. Às oito horas
largou o vapor, e os nossos olhos se fixaram por algum tempo sobre a cidade
que nos fugia; depois lançávamos de vez em quando a vista para o farol até
que desapareceu.
[f. 365]

552
Viagem do Ceará para o Rio de Janeiro
13 — 24 de julho de 1861
I-28,8, 14

[£. 374]

Largamos do porto do Ceará às oito horas da noite do dia 13 de julho


de 1861. Era sábado. Domingo, 14: Às oito horas da manhã estávamos
em frente da barra do Mocoró, e avistávamos à sua direita e nos [ilegível]
pertencentes ao Ceará, que perdemos de vista às dez horas. Entrando no
canal de Trope (?) às três horas da tarde, passamos em frente e perto da
graciosa povoação de Caiçara, sitiada a borda do muro sobre um areal,
com algumas casas de telha e caiadas, e muitas palhoças sombreadas de
coqueiros. Logo que saímos do canal o mar se mostrou agitado, e o vento
era sempre contrário.
Segunda-feira, 15: Às duas horas da noite ao Rio Grande do Norte
[cinco linhas riscadas]. Partimos daí às dez horas, sempre com mar
agitado, vento fraco, contrário. Chegamos à barra do Paraíba às cinco
horas da tarde, e o vapor, não podendo seguir por falta de maré, fundeou
aí de frente da povoação, em fortaleza do Cabedelo; e como ainda havia
dia, deliberamos a ir a terra, quase todos os membros da Comissão.
Eu não querendo arriscar nos caminhos da terra por não estar o mar
tranquilo, o comandante do vapor, o Sr. [ilegível] (homem grave, e muito
atencioso), a quem dei aquela razão, por ele me perguntar se também não
desembarcava, mandou logo arrear um escaler e pôr a nossa disposição;
foi também no escaler o Dr. Gabaglia* com sua senhora. Logo que
saltamos em terra defronte da povoação [f. 375] o Dr. Gabaglia lembrou
que o melhor passeio era irmos à fortaleza, e para lá nos dirigimos;
quando chegamos ao portão, um militar que aí estava disse-nos que
era necessário, para entrarmos na fortaleza, licença do comandante. E

*Que não estando informado do que se passou, entendeu que o obséquio foi feito a ele.

553
quando voltávamos para o procurar vimos que ele já vinha para nós. Era
nosso conhecido do Ceará, o tenente-coronel Nicolau Tolentino, que nos
acompanhou mostrando-nos quanto havia que ver na fortaleza, e dando-
nos explicações etc. etc.
Saindo da fortaleza, já às ave-marias, levou-nos para sua casa, e
apresentou-nos a sua família, mulher e três filhos, que já conhecíamos.
Deu-nos refrescos, boa água, cerveja, doces etc. etc., e enfim quis por força
que recebêssemos um carneiro de presente, que mandou pôr no escaler,
e o qual, não tendo que fazer dele, o ofereci ao comandante do vapor.
Fomos para embarcar no escaler, acompanhados (éramos eu, o Gabaglia e
sua senhora) por toda a família; e quando chegamos à praia não achamos
o escaler, com surpresa nossa; soubemos depois que o prático do vapor que
tinha vindo conosco, e que tem casa naquela povoação, vendo que não
chegávamos, foi para bordo, para de lá mandar o escaler buscar-nos; com
efeito, enquanto se aprontava uma canoa para irmos para bordo, vimos
vir o escaler, nele embarcamos. Na subida do escaler para o vapor estava
exposto a um grande perigo.
Saindo primeiro, o Gabaglia para ajudar à senhora, e eu pegando-
lhe também pelo braço, na ocasião em que ela ganhava a escada o escaler
recuou, e eu largando-a perdi o equilíbrio, querendo agarrar-me à escada
[f. 376] já a não alcancei; apenas segurei no vestido da senhora que logo
larguei, ficando de bruços, com o corpo sempre dobrando-me sobre a borda
do escaler que me ficava pelas virilhas; nesta posição vi-me precipitado e
nem sei como pude suster-me, e erguer-me, fiquei apenas magoado em
uma cavilha, e com uma dor no braço esquerdo, que ainda hoje (28 de
julho) conservo. Mas o susto e o perigo não foi de brinquedo. Depois das
oito horas subi ao vapor pelo rio e foi fundear mais perto da cidade.
Terça-feira, 16: Amanheceu o dia coberto, e chuvoso. É notável,
três vezes tenho estado aqui, e sempre com chuva. Às onze horas chegou a
mala (foram alguns passageiros à terra, foi Manoel etc., vieram dele alguns
passageiros, e duas folgazonas, que ficarão em Pernambuco).
E logo largou o vapor, achamos mau mar e vento contrário. Às ave-
marias já se avistavam edifícios de Pernambuco, depois o farol; e às oito
horas da noite, que era de luar, ancoramos dentro do porto de Pernambuco.

554
Quarta-feira, 17: Desembarcamos às nove horas e nos dirigimos
para o Hotel Francês, já meu conhecido, eu, Manoel, o Lassance, e Santos
Souza. Almoçamos, e saímos; eu me dirigia para a casa de banho, encontrei
em caminho o Numa Pompílio, e depois o Lagos em companhia de...
Vasconcelos, que é redator, ou editor, do Jornal do Recife, este nos andou
mostrando várias coisas, e nos conduziu ao Gabinete da Leitura Português;
que tem uma sala no primeiro andar, e outra no segundo, bonitas
estantes etc. etc. Fui ao banho, na volta caía uma chuva fina, que muito
me incomodou e me aborreceu; cheguei pois ao hotel suado, molhadas as
botinas, estragado o meu chapéu, por não ter levado guarda-chuva, vinguei-
me esconjurando o tempo.
[£. 377] Passando porém por outro café e casa de hospedaria, onde
estavam Capanema, Soares, Barbedo e Lagos, aí ajustamos, ou antes fui
convidado para um passeio pela estrada de ferro às três horas da tarde.
Com efeito, não querendo Manoel certos companheiros serem do passeio,
jantei eu só mais cedo, aprontei-me e fui para aquela hospedaria, onde
me esperavam, malijs o Lagos, que tomou outro destino. Porém depois
chegou um carro, no qual nos metemos e nos dirigimos para estação da
estrada de ferro; antes porém de chegar nesse ponto, passamos por uma rua
estreita e em uma calçada estragada quebrou-se o eixo das rodas dianteiras;
[ilegível] de almofadas, mas felizmente os cavalos não se moveram, apeamo-
nos e nos dirigimos a pé para a estação que já estava perto. Pouco depois
chegaram mais dois carros, que conduziam dois engenheiros da estrada, o
Dr. Buarque e outro, que foi nosso discípulo de botânica na Escola Central,
o Dr. Barros, cunhado do Gabaglia; mais alguns moços, e o Gabaglia
com sua senhora e o Dr. Bandeira também com a sua; o Dr. Buarque,
que é conhecido do amigo do Gabaglia, quis obsequiá-lo, particularmente
fazendo sair um trem especial, para um passeio até o túnel. Ia também
conosco um engenheiro, vindo há pouco da Alemanha, filho de São Paulo
e do marquês de Valença, e que estava em Pernambuco, exercitando-se no
laboro das estradas de ferro. Eram quatro horas e meia quando entramos
no carro, que é o Wagon em que viajou a família imperial quando esteve
em Pernambuco: é um salão asseado, tapetado, com barris em redor, e com
um sofá no fundo, tudo acolchoado de veludo verde etc. etc. Tendo partido

555
primeiro o trem de carreira, segui depois [com...?] [f. 378] era já nosso
conhecido, tendo presidido a província do Ceará, daí segui para a casa do
Dr. João Silveira de Souza, que também havia sido presidente do Ceará, e
por quem fomos ali muito obsequiados. Daí fui à tipografia do Jornal de
Recife, onde achei o Vasconcelos, seu proprietário; estava aí um médico
baiano, que me confirmou o que se dizia a respeito do Dr. Rebouças, isto é,
que está perfeitamente alienado, e acrescentando que ele tinha queda para
isso! Comprei por 8$000 [oito mil-réis] um mapa da cidade e seus arredores.
Voltei para a hospedaria, onde cheguei cansado, e suado; mandei subir uma
garrafa de licor, com que nos regalamos. Estando em toda a liberdade com
os companheiros, e eu em ceroulas, recebemos visita dum médico baiano
que reside em Pernambuco muitos anos, e que se fez morar no Rio, tendo
sido [ilegível]; de um filho do Franklin de Lima, que aqui está estudando, e
que nunca o tinha visto no Ceará, de alguns oficiais de Marinha e enfim do
Dr. João da Silveira e Sousa, que me achou no mesmo desalinho mas à vista
dele mesmo cobria as calças, ficando porém em mangas de camisa, dizendo-
me ele que me não incomodasse porque também ele já fora estudante. Às
duas horas e meia jantamos, e às quatro horas embarcamos, e fomos para
o vapor, que já estava fora, no lamaráozinho. Bem que o mar não estivesse
demasiadamente agitado, e subido para o vapor embarquei era sempre
grave, e perigoso; antes da minha chegada, um escaler que levava alguns
soldados meteu-se embaixo das rodas do vapor, e maltratou a algumas
[pessoas], que saíram com cabeças quebradas etc. Das cinco às seis horas foi
o grande lufa-lufa, chegando ao mesmo tempo grande quantidade de botes
e escaleres; e o desembarque se fazia com grande barulho, gritaria e sustos,
principalmente no embarque das senhoras. Enfim às sete horas largou o
vapor. Mar cavado, vento contrário. Ainda se lobrigava o cometa.
Sexta-feira, 19: Amanhecemos em frente de Maceió — [f. 379] às oito
horas ancoramos. Esta baía de Maceió se denominava baía de Jaraguá, assim
chamada do nome de um grande crustáceo (caranguejo, ou siri) que é aqui
abundante, e se chama “jará”. Manoel foi a terra, e [mais] o Capanema,
a colher algumas plantas. Ao meio-dia partimos. Vinha de Maceió um
doutor em Medicina, T. Silva, que enjoou muito e aterrou-se tanto que nos
obrigou a passarmos a noite com ele no seu camarote, eu até duas horas da

556
madrugada e daí em diante Manoel. Disse-me que era parente do Candeia,
de Barral, filho da Bahia. Mar cavado, vento contrário.
Sábado, 20: Às dez avistamos terra, às três horas já se via alguns
edifícios da cidade da Bahia, às cinco horas ancoramos.
Pouco depois saltamos em terra; e eu fui direto para a hospedaria
do Figueredo, hoje tida por um francês, Mr. Fevrier. Havia teatro, mas em
três igrejas se faziam novenas. Os repiques dos sinos, e estalo dos foguetes,
o concurso da gente etc. etc., todo esse movimento festivo atraía o povo
de sorte que o teatro se achou deserto quase, o qual me informaram os
companheiros que lá foram. Eu, cansado, e gozando de tudo da janela,
deixei-me ficar em casa, às nove horas chegaram Lagos, Barbedo, Soares e
Lassance, e tomamos chá no nosso salão, no segundo andar.
Domingo, 21: Tendo tomado uma xícara de café saí a correr igrejas.
Fui primeiro à igreja do Convento de S. Bento (?) que me ficava perto; tem
esta um grande zimbório ou capela que se está em obra. Passei por outra
igreja, fronteira à hospedaria, e que estava fechada; segui no Hospital da
Misericórdia, havia festejo, entrei na igreja que é singela: tem um belo
teto apainelado, com altas molduras e pinturas, e no corpo da igreja há
uma larga barra de azulejos [f. 380] com pinturas representando atos,
ou ações de caridade cristá por confrarias etc. Daí fui para a catedral que
lhe é vizinha, e que está em obras por sua ruína. É um grande templo,
que nunca foi acabado, nem em suas decorações, e o teto da igreja está
por forrar. Tem seis altares laterais; alguns revestidos de tarja dourada,
outros nus; na cruz há três altares, o altar-mor, que provavelmente nunca
se fez, ou então se arruinou, de modo que hoje está outro principiado,
mas a obra parada, não sei desde quando; os laterais são ricos de motivos
dourados, e tem ainda cada um uma capelinha ao lado de cima. Seria um
belo templo se o concluíssem. Segui daí para o Colégio dos Jesuítas, que
atualmente serve de catedral, enquanto aquele se recupera; é um templo
grandioso, de mármore por dentro e por fora, de uma só nave, púlpitos de
mármore, choro e tribunas parecem não acabados, são de cedro, singelos,
e sem pinturas; o coro é de dois andares, a frontaria da igreja tem um
aspecto que não agrada muito pela sua simplicidade e pela estreiteza das
torres, e por não terem estes sido acabados. Saindo-se do Colégio está
ao lado esquerdo da praça a igreja de S. Pédro Novo, que é de aparência

557
mesquinha. Em frente, em fundo duma rua está o templo de S. Francisco,
que é de três naves, e todo revestido de molduras douradas, belo coro
etc. etc. É um dos mais belos templos desta cidade; ao lado dele está a
igreja de Terceiros, que é mais simples, porém bonito, e tem a frontaria
toda lavrada de ornamentos, na praça e ainda em frente do Colégio está
a grande igreja de S. Domingos, cujo interior [f. 381] é mais simples,
mas bem decorado o teto de painéis com altas molduras, pinturas etc.,
magnífico coro. Segui daí para o Rosário, mas estava a igreja fechada, a
qual tem bela frontaria. O Palácio do Governo é de aspecto mesquinho,
talvez mais que o do Rio; a Cadeia, o que não faz perfeita esquadria com
o Palácio, é grande, de sobrado, tendo por baixo uma grande colunata,
com arcadas; é de 1660 e seguramente a melhor de todo o Brasil. Voltei
para a hospedaria onde cheguei às nove [horas] e meia, bastante suado; aí
tivemos um farto e gostoso almoço, depois do qual nos preparamos para
o embarque. Descendo a ladeira da Conceição, entramos em uma casa de
uma Maria, mulher já idosa, onde comem e se abrigam muitos oficiais de
Marinha, que acham aqui comida baiana, e baianas. O amigo Lagos havia
já feito conhecimento com esta sujeita, e havia encomendado um almoço
de caruru; e bem que tivéssemos o estômago bem recheado, não havia
remédio senão acompanhá-lo e comer caruru, que é um guisado baiano
feito com peixes, camarões etc. etc., quiabo e outras ervas e comido
com papas de arroz. Estava realmente bom mas não tínhamos fome, as
chalaças de Maria porém davam apetite. Enfim seguimos nosso caminho
e chegando à igreja da Conceição da Praia, magnífico templo todo de
mármore, entramos na ocasião em que o arcebispo da Bahia, que vai ao
Rio de Janeiro, vinha de fazer a sua oração; quando o vimos vir saindo
nos retiramos — éramos eu e o Barbedo — para o não encontrar-nos na
roda de seus cônegos, e dos grandes da terra, que o cortejavam. Logo
que saiu o arcebispo entramos [f. 382] nós na igreja, cujo interior eu via
pela primeira; é coisa digna de ver-se, é um dos mais belos templos da
Bahia. Quando o iam fechar saímos; encontramos o préstito do arcebispo
que ia muito lentamente e o acompanhamos até o lugar do embarque.
Ele embarcava-se em rica galeota do governo, e nós o acompanhamos
em um escaler também do governo, por obséquio do seu comandante.
Chegados a bordo, eu me dirigi a cumprimentar o arcebispo, que já havia

558
perguntado por mim (nós nos conhecemos desde o seminário). Tomando
a mão para beijar o ane] ele recebe-me nos braços como amigo antigo.
O vapor largou cedo.
Navegamos por um mar de rosas, e com o mais lindo tempo que se
pode desejar até o amanhecer do dia.
Quarta-feira, 24: Mas nesse dia logo de manhã cedo ventava nordeste,
e o mar já não era o mesmo dos dias antecedentes. Seriam sete para oito
horas quando se divisou em um horizonte neblinoso o Cabo Frio. Quando
dobrávamos o Cabo pelas dez ou onze horas, ventou para sudoeste e o
horizonte desse lado estava anuviado e por terra via-se chover. Este mau
tempo foi sempre a mais, com o maior desgosto dos passageiros; e quando
às quatro horas da tarde entrávamos na barra, era com vento, chuva, no mar,
e muito mau humor. Às cinco horas ancoramos no Gamboa. Eu, Manoel,
Lagos, Lucas e Capanema metemo-nos num bote. Os dois saltaram no cais
da Imperatriz; eu, Manoel e Lucas viemos saltar no cais novo já com noite.
Chegamos à casa do Numa, aí achamos, além da mulher, os manos
Policeno e Joaquim. O Numa não tardou. Todos com boa saúde.
(Gastamos na nossa viagem ao Ceará dois anos e meio, mais dois
dias).

559
ANEXOS
1. N. 8º. da Conceição do Outeiro da Praia, capital do Ceará. Atual Seminário da Prainha.
2.N. 8º. do Ó., na Vila de Cascavel (1859).
/9S

'

K : x

Casa da Câmara e Cadeia na cidade do Aracati. Vê-se também um carro de bois transportando algodão (1859).
696

csbeiadteo mt
cr E gacnh, O tera

Moinho de vento, todo fabricado em carnaúba, Aracati (1859).


N. 82, do Rosário, na cidade do Aracati (1859).
E/S

e PÁ es O acpaçi

ne tuedado de e Mr nde f 6 dé. Fer Boss

NS APS

N. Sa, dos Prazeres na cidade do Aracati (1859).


AS

Serra do Areré, à margem esquerda do Jaguaribe, légua e meia da cidade do Aracati.


LLS

E daçoiã

Estação de carros no sertão.


625

E AE der Dna fs air a ss


SE mm Lo Hradao

Pesca das Piranhas em Russas (1859)


I86

Pedras russas.
AA

y
Ex j> Ra

Sem nota.
Povoado de Jaguaribe-Mirim. A capela pertence à freguesia do Riacho do Sangue (1859).
L8S

Lugar chamado Fortaleza, em Sobral (1861).


686

Barrig a. Serra Pedregosa, a leste de Sobral (1859).


v q Pta

a
a
Outros títulos reeditados pela Fundação Waldemar Alcântara
que fazem parte da Coleção Biblioteca Básica Cearense:

Ensaio estatístico da província do Ceará - TomosIe II (Thomaz Pompeo de Sousa


Brasil)
Varíola e vacinação no Ceará (Rodolpho Theóphilo)
Climatologia, epidemias e endemias do Ceará (Guilherme Studart)
Pathologia histórica brazileira: documentos para a história da pestilência da bicha
ou males (Guilherme Studart)
Memória sobre a capitania do Ceará e outros trabalhos (João da Silva Feijó)
Memória sobre a conservação das matas e arboricultura como meio de melhorar
ê

o clima da província do Ceará (Thomaz Pompeo de Sousa Brasil)


Documentação primordial sobrea capitania autônoma do Ceará (José de Almeida
&

Machado, Luís Barba Alardo Menezes, Antônio José da Silva


Botânica elementar (Garcia Redondo, Rodolpho Teóphilo)
Es

Libertação do Ceará: queda da oligarquia Acioly (Rodolpho Teóphilo).


O Ceará e os cearenses (Antônio Bezerra)
sr

Datas efactos para a história do Ceará - Tomos IL Ile II (Guilherme Studart)


Esboço histórico sobre a província do Ceará - Tomos L Ile III (P. Théberge)
História das sêcas - século XVIIa XIX (Joaquim Alves)
Botânica Médica Cearense (Francisco Dias da Rocha)
EEE

Algumas origens do Ceará (Antônio Bezerra)


O Cariri: seu descobrimento, povoamento, costumes (Irineu Pinheiro)
Fortaleza: revista litterária, philosophica, scientifica e comercial.
Índice alfabético da legislação provincial do Ceará: comprehendendo os annos
de 1835 a 1861 precedido de um resumo histórico das sessões da Assemblea e seus
trabalhos (José Liberato Barroso)
Promptuário da legislação republicana do estado do Ceará - de2 de dezembro de

1889 a 31 de dezembro de rgr4 (Cezídio d' Albuquerque Martins Pereira)


Scenas e typos (Rodolpho Theophilo)
é

Miscellanea histórica ou collecção de diversos escriptos deJ. Brígido (João Brígido)


s

Retalhos do passado: Tauá - Fortaleza (Joaquim Pimenta)


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FRANCISCO FREIRE ALEMÃO nasceu
no Rio de Janeiro em 1797. Formado em
Medicina pela Academia Médico-Cirúrgica
do Rio de Janeiro em 1827, obteve seu
doutorado na Universidade de Paris, em
1831. Eleito membro titular da Sociedade
de Medicina do Rio de Janeiro em 1832, foi
seu presidente no terceiro trimestre deste
ano. Foi também professor de Zoologia e
Botânica da Faculdade de Medicina, em
1834, e presidente da Academia Imperial de
Medicina em 1838-1839. Tornou-se um dos FUNDAÇÃO E
BIBLIOTECA BÁSICA CEARENSE WALDEMAR: ALCANTARA
naturalistas e botânicos mais conhecidos no
Brasil do século XIX. Catalogou e registrou
4
mais de 20 mil plantas que trouxe em
sua bagagem depois da viagem ao Ceará,
como Presidente da Comissão Científica
de Exploração, que visitou e estudou a
província. Foi sócio do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro e Diretor do Museu
Imperial. Patrono da cadeira nº 43 da
Academia Nacional de Medicina. Faleceu no
Rio de Janeiro, em 11 de novembro de 1874.

Fontes de referências:
ACADEMIA NACIONAL DE MEDICINA (Rio
de Janeiro). Acadêmicos. Disponível em:
<http://www.anm.org.br/membros detalhes.
asp?id=339>. Acesso em: 08 jul. 2011.
REDE DA MEMÓRIA VIRTUAL BRASILEIRA
(Rio de Janeiro). Francisco Freire Alemão
(1797-1874). Disponível em: <http://bndigital.
bn.br/redememoria /freirealemao.html>.
Acesso em: 08 jul. 2011.

ISBN 978-85-61865-13-9

9 788561
IN
865139

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