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Um currículo por competências: que desafios?

Maria de Lurdes Serrazina

Escola Superior de Educação de Lisboa, Portugal


Isolina Oliveira
Universidade Aberta

RESUMO:
As mudanças registadas nas sociedades contemporâneas, principalmente nas duas últimas
décadas, conduziram a um repensar sobre as tarefas da escola. A importância dada a uma
educação para todos, à aprendizagem ao longo da vida e a assunção da democratização da
escola, com a formação de indivíduos competentes, críticos (e confiantes nos aspectos da
sua vida que se relacionam com a matemática,) conferem à escola um papel em que já
não basta acumular o saber, é preciso ser capaz de o transferir, de o utilizar, de o
reinvestir e, portanto, de o integrar em competências, como sublinha Perrenoud (1997).
Seguindo as tendências internacionais, também no nosso país se procedeu a um debate,
iniciado em 1996, sobre os problemas da Educação Básica e que se traduziu numa
discussão alargada sobre várias questões que confluíram numa reflexão em torno do que
se entende por currículo e gestão curricular. Sob a perspectiva do currículo, já não
entendido como programa onde se apresenta um vasto leque de conteúdos e objectivos a
alcançar, bem como um conjunto de propostas metodológicas, professores de diversos
graus de ensino analisaram e reflectiram sobre as práticas educaticas. Desta reflexão
emergiu uma outra compreensão de currículo em que “o currículo nacional” constitui
uma referência teórica comum a um conjunto de situações e o “projecto curricular”
asume a forma particular como, num dado contexto, aquele currículo é apropriado.
Neste cenário e relativamente à Matemática, é explicitado o que se entende por
competência matemática, ser matematicamente competente e o que isso inclui,
apontando-se para a resolução de problemas como uma orientação geral. Destaca-se a
importância de envolver os alunos em diversos tipos de aprendizagem, tais como
actividades de investigação, realização de projectos e jogos, bem como a possibilidade de

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contactarem com aspectos da história, do desenvolvimento e da utilização da matemática
através do reconhecimento da matemática na tecnologia e nas técnicas e na realização de
trabalhos sobre a matemática e a sua história. Considera-se que nestes diferentes tipos de
experiências devem ser considerados aspectos transversais da aprendizagem da
Matemática, nomeadamente a comunicação matemática, a prática compreensiva de
procedimentos e a exploração de conexões.
Neste contexto, também o papel do professor vai-se modificando e pede-se-lhe, hoje, o
desenvolvimento de determinadas competências que o capacitem na resolução das
múltiplas situações com que se depara.

Introdução
A perspectiva de um currículo por competências, em Portugal, surge com o debate que
teve lugar a partir de 1996, quando o Departamento de Educação Básica (DEB) do
Ministério de Educação iniciou um processo a que chamou Reflexão Participada do
Currículo do Ensino Básico. Com esse debate, apontava-se a pretensão de fazer uma
reflexão sobre os principais problemas da educação básica (do 1º ao 9º ano de
escolaridade) e, nomeadamente, na Matemática.
Como sabemos, tradicionalmente os programas eram definidos centralmente pelo
Ministério de Educação, (como aconteceu com os programas em vigor desde 1991),
numa perspectiva prescritiva e para serem cumpridos em todo o país. O questionamento
desta tradição emerge, por um lado com a tendência para uma maior autonomia
administrativa das escolas e, por outro com a diversidade da população estudantil que
acedeu à escola nas últimas décadas.
Os comentários e as reflexões desencadeadas tiveram como pano de fundo as mudanças
registadas nas sociedades contemporâneas, onde se destaca o desenvolvimento da ciência
e da tecnologia e que levou a reconsiderar as funções da escola. A importância dada a
uma educação para todos, à aprendizagem ao longo da vida e a assunção da
democratização da escola, com a formação de indivíduos competentes, críticos (e
confiantes nos aspectos da sua vida que se relacionam com a matemática,) conferem à
escola um papel em que já não basta acumular o saber, é preciso ser capaz de o transferir,

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de o utilizar, de o reinvestir e, portanto, de o integrar em competências, como sublinha
Perrenoud (1997).
Seguindo as tendências internacionais, no nosso país o debate entre os decisores políticos,
os professores e os investigadores focalizou-se no currículo, termo até aí pouco utilizado
entre nós e, em especial pelas escolas e professores, (estando a palavra ‘currículo’ mais
associada a plano de estudos de um determinado nível de ensino). O conceito de
currículo, a forma como devia ser formulado em termos nacionais e o papel das escolas e
dos professores na gestão e organização do currículo estiveram no centro do debate.
Este movimento que, numa primeira fase, mostrou sinais de mudança, sobretudo nas
áreas curriculares não disciplinares1 (Porfírio e Brunheira, 1999), ao questionar conceitos
e práticas curriculares desafia professores e investigadores a colaborarem no sentido de
co-construirem um outro currículo.

Concepção (outra) de currículo/uma nova concepção de currículo


Apesar de, como se referiu no nosso país o termo currículo ser pouco utilizado entre nós,
nos últimos anos entrou já no discurso quer dos investigadores educacionais, quer dos
professores. Convém, por isso, determo-nos no seu significado.
Como refere Abrantes (1994) o termo currículo é usado com diversos significados. Pode
referir apenas os nomes e a sequência das disciplinas que constituem um curso e ainda os
assuntos que são leccionados nelas, ou num sentido mais alargado pode significar o leque
de acções educativas que a escola planeia com uma dada intenção, incluindo as
desenvolvidas fora das aulas, como por exemplo, as chamadas recentemente Áreas
Curriculares não-disciplinares. Pode ainda assumir um outro significado quando se
identifica com tudo o que os alunos aprendem, o que resulta do ensino formal (com a
ajuda de professores) e também de processos informais e não previstos.
Uma outra distinção que é habitual fazer-se tem em conta a perspectiva dos participantes,
surgindo, assim, três níveis: a) o currículo enunciado, segundo o ponto de vista dos
documentos oficiais; b) o currículo implementado, tem a ver com o modo como é

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Áreas curriculares não disciplinares são definidas no currículo nacional como áreas
transversais e são: Estudo Acompanhado, Área de Projecto e Educação Cívica.

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concretizado pelos professores c) o currículo adquirido, ou seja, aquilo que os alunos
efectivamente aprendem (Ponte, Matos e Abrantes, 1998).
Segundo Kilpatrick (1999), esta abordagem, embora muito usual nas análises que se
fazem aos currículos escolares, levanta algumas objecções, na medida em que supõe que
o poder curricular se desloca da administração central para o professor e deste para o
aluno, deixando a estes um papel de obediência. Se as intenções assumidas no currículo
enunciado são da responsabilidade dos decisores políticos, que papel ou que autoria
caberá ao professor? E aos alunos? Há, então, uma perspectiva de cima para baixo, onde
não é contemplado o papel de co-construção do currículo por professores e alunos. O
currículo enunciado é, então, um esquema de um currículo a concretizar, ou seja, “O
currículo enunciado está para o currículo real assim como o plano do arquitecto está para
o edifício” (Kilpatrick, 1999, p. 20). Neste sentido, o currículo não se encontra nos
documentos oficiais mas surge da sala de aula, da interacção entre o aluno e o professor,
partindo das tarefas propostas e conduzindo a uma reconstrução das experiências.
Importa ainda esclarecer que quando se identifica currículo com programa, então o
“desenvolvimento curricular” é perspectivado como a produção de novos programas
(Ponte, Matos e Abrantes, 1998). Neste contexto, o processo consiste, então, em elaborar
um produto e colocá-lo à disposição dos professores para a aplicação generalizada,
estreitando-se, deste modo, o papel do professor e das escolas.
Ao falar-se aqui em desenvolvimento curricular, interessa esclarecer os seus vários
significados. Habitualmente distinguem-se três tipos: a) o desenvolvimento que engloba
todas as iniciativas relativas a um país ou sistema de ensino; b) o desenvolvimento local
que abrange os projectos ligados a um pequeno leque de escolas ou turmas e que são
orientados por professores das próprias turmas; e c) o desenvolvimento individual
respeitante à actividade de um professor ou de vários professores que elaboram materiais
inovadores para as suas turmas.
Tendo embora abrangências diferentes, convêm tê-las presente quando se debatem
questões relativas ao desenvolvimento curricular.
O projecto nacional chamado “gestão flexível do currículo”, surgido em 1997, em que as
escolas foram convidadas a participar, apontava no sentido de atribuir às escolas e aos
professores uma maior autonomia sobre todos os aspectos do processo de ensino

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aprendizagem. O objectivo último era apoiar a criação gradual de uma nova organização
curricular onde os professores e os órgãos das escolas tinham uma maior autonomia, mas
também uma maior responsabilidade. Na verdade este movimento foi justificado pela
necessidade de promover uma nova concepção de currículo, quer no que se refere ao
currículo prescrito quer ao implementado.
Esta nova concepção procura integrar o desenho do currículo e a investigação, apontando
também para a criação de materiais curriculares e para a produção de novo conhecimento
sobre o ensino-aprendizagem (Gravemeijer, 1994). Neste caso o desenvolvimento
curricular vai ocorrendo de um modo gradual, tirando partido da interacção constante
entre a teoria e a prática. O processo inclui o próprio objectivo de alterar as práticas e a
implementação ocorre desde o princípio, ao contrário da concepção anterior.
A tendência é a de ver o currículo como:

um projecto, cujo processo de construção e desenvolvimento é interactivo, que


implica unidade, continuidade e interdependência entre o que se decide ao nível
do plano normativo, ou oficial, e ao nível do plano real, ou do processo de ensino-
aprendizagem (Pacheco, 1996, p. 20).

Nesta perspectiva, os professores são estimulados na procura de soluções para os


problemas que enfrentam nas suas escolas, assumindo-se como importante a tomada de
decisões a diferentes níveis e em diversos contextos, num processo de colaboração e de
parcerias. Valoriza-se a prática educativa e confere-se às escolas e aos professores a
capacitação para situar as decisões curriculares nos contextos locais. Esta possibilidade
assenta num (re)pensar do currículo e no modo de o adaptar tendo em conta os problemas
concretos das escolas. Deste modo, o currículo é entendido como um continuum que
inclui a vertente das intenções, levando os professores a assumir determinadas teorias,
convicções e valores e também o lado da prática, transformando-se num projecto
formativo (Pacheco e Paraskeva, 2000).
Neste quadro a escola assume-se como uma organização de aprendizagem que tem sido
largamente discutido na literatura (por exemplo Hargreaves e Fullan, 1992, Goodson,
1997), onde as crianças com diferentes capacidades e necessidades, dentro da mesma
turma, têm oportunidades iguais para aprender.

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Conceito de competência no currículo
O processo vivido nas escolas do projecto e as tendências internacionais levaram as
autoridades/decisores políticos a definirem um currículo nacional (DEB, 2001a) onde é
dada especial atenção ao desenvolvimento de competências nos alunos. O currículo
nacional do ensino básico assenta na ideia de competência, não no sentido behaviorista
do termo, mas como o processo de mobilizar recursos (conhecimentos, capacidades e
estratégias) numa diversidade de contextos, nomeadamente perante situações
problemáticas. Porquê usar o termo competência? Porquê a mudança de linguagem?
Porque se identificam competências essenciais e não conhecimentos essenciais, como era
hábito há uns anos atrás?
Não há um único significado para o conceito de “competência”. Em vários documentos
internacionais o termo competência surge associado à legitimação da participação activa
dos sujeitos no domínio ou na modificação de situações.
As competências mobilizam conhecimentos mas não se restringem a eles, manifestando-
se na capacidade de uma dada pessoa em utilizar os seus múltiplos recursos cognitivos
por forma a agir da melhor maneira em situações complexas e imprivísíveis (Perrenoud,
2002). Surge como uma nova proposta para uma escola que não se satisfaz com a ideia de
pedir aos alunos que acumulem conhecimentos, não se preocupando com a sua
mobilização para além das situações escolares.
No nosso país, no movimento gerado em torno do currículo e da gestão curricular, a ideia
de competência está relacionada com o uso intencional e reflectido do conhecimento e
implicando algum grau de autonomia (Abrantes, 2001). Ou, de outro modo, pretende-se
enfatizar a integração de conhecimentos, capacidades e atitudes, em que a ideia-chave é
a integração. Lembre-se que os programas das várias disciplinas, da reforma de 1990,
incluiam listas separadas de conhecimentos, capacidades e atitudes, tendo como
consequência uma interpretação generalizada, em que as capacidades e as atitudes eram
“juntas” aos conhecimentos (Abrantes, 2001).
O currículo nacional foi, então, definido em termos de competências essenciais e de
experiências de aprendizagem consideradas como sendo para todos os alunos (em cada
ciclo de escolaridade), em vez dos tradicionais programas indicando os tópicos de

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conteúdos e as sugestões metodológicas para cada ano. Por outro lado, os professores e as
escolas foram desafiados a tomar decisões adequadas aos seus alunos e ao seu meio
social e cultural, aos recursos existentes e às suas necessidades educacionais.
Nesta perspectiva, sob a orientação do currículo nacional, definido em termos gerais, o
currículo é visto como um projecto a ser concebido e desenvolvido pela escola – projecto
curricular de escola, e projectos mais específicos a serem desenvolvidos por cada classe
em particular – projectos curriculares de turma.

O currículo de Matemática
No que se refere à Matemática para além da especificicação do que se entende por
competência matemática, sublinhando que ser matematicamente competente envolve
hoje, de forma integrada, um conjunto de atitudes, de capacidades e de conhecimentos
relativos à matemática que todos devem ter e ser capaz de usar. Inclui numa segunda
parte o que isso significa no que se refere às principais áreas de um currículo de
Matemática – Números e Cálculo, Geometria e Medida, Estatística e Probabilidade,
Álgebra e Funções. A última parte aponta a resolução de problemas como uma orientação
geral e estabelece que todos os alunos devem ser envolvidos em actividades de
investigação, na realização de projectos e jogos. É ainda referido que os alunos devem ter
oportunidade de contactar com aspectos da história, do desenvolvimento e da utilização
da matemática através do reconhecimento da matemática na tecnologia e nas técnicas e
na realização de trabalhos sobre a matemática e a sua história. Considera-se que nestes
diferentes tipos de experiências devem ser considerados aspectos transversais da
aprendizagem da Matemática, nomeadamente a comunicação matemática, a prática
compreensiva de procedimentos e a exploração de conexões. É também recomendado que
os alunos devem ter oportunidades de utilizar recursos de natureza diversa como as
tecnologias – a calculadora e o computador – e os materiais manipuláveis e de explorar
conexões dentro da matemática e relacionando-a com outras áreas.
Como já foi dito este documento surgiu após algum debate e no âmbito de uma
perspectiva de evolução de uma grande rigidez curricular para uma maior diferenciação,
adequação e flexibilização, pressupondo que o professor não é apenas um simples
executor do currículo mas tem um importante papel na sua gestão. Neste quadro o

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currículo é considerado mais como um elemento de referência do que um elemento
normativo e o professor o principal responsável pela gestão e desenvolvimento do
currículo.

Contributos da investigação
A investigação realizada em Portugal evidencia dois tipos de problemas que afectam as
práticas curriculares no ensino básico, a saber: (i) uma visão do currículo como o
programa a dar mediado pelo manual escolar que o interpreta; (ii) uma visão do professor
como executor acrítico e consumidor do currículo.
Estas ideias têm vindo a ser referidas em várias investigações, nomeadamente no
Relatório 2001, que resultou de um estudo desenvolvido no âmbito da APM. Também
estudos de caso têm vindo a evidenciar esses problemas. No estudo realizado por Nunes
(2003) com professoras da 3º e 4º ano de escolaridade, sobre o papel mediador dos
manuais na concretização do currículo parece haver uma contradição, pois embora as
professoras reconheçam muitas limitações no manual quando comparado com o currículo
oficial, ele era nas suas práticas na sala de aula um instrumento fundamental e o principal
orientador. Referem, ainda, que apesar de discordarem com a forma como o currículo é
concretizado no manual, este é seguido à risca com a justificação que é isso que os alunos
têm e os pais querem.
As conclusões deste estudo apontam para o facto que as professoras envolvidas apesar de
diferentes concepções, idades, percursos profissionais, histórias de vida e de
desenvolverem o currículo de Matemática de forma diferenciada, com maior ou menor
incidência, maior ou menor dependência, com diferentes funções, em diferentes
momentos, todas utilizam o manual nas suas práticas. Para uma das professoras o manual
constitui um obstáculo ao desenvolvimento de modo coerente do currículo, uma vez que
o professor fica vinculado ao prescrito pelo manual, que pode não ser o mais adequado
para aquela turma. Apesar disso, as três professoras utilizam-no. Este facto pode ser
justificado pela carência, por vezes até, inexistência de recursos nas escolas do 1º ciclo e
de condições (formação, acompanhamento pedagógico, tempo, dinâmicas da escola, ...)
para ser o próprio professor com os seus alunos a construirem o seu manual, como
referem ser seu desejo as duas professoras com maior experiência profissional. Os

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manuais parecem assumir um papel importantíssimo para toda a comunidade educativa,
embora, por vezes, se constituam como fonte de bloqueio, pois afirmam que os pais os
utilizam como um indicador do trabalho do professor.
A propósito da gestão curricular, Patrício (2003) desenvolveu um trabalho colaborativo
com um grupo de professoras do 1º ciclo do ensino básico com o principal objectivo de
compreender como integrar a Matemática na gestão do currículo do 1º ciclo.
Neste estudo assume-se o professor como profissional competente e responsável com um
papel fundamental a desempenhar no desenvolvimento curricular e no seu
desenvolvimento profissional, isto é, parte-se do princípio que o professor detém uma
capacidade reflexiva e de acção quanto à sua prática e ao seu desenvolvimento
profissional. Relativamente ao conhecimento profissional das professoras as conclusões
do estudo apontam para que: (i) a gestão integrada ou até interdisciplinar do currículo do
1º ciclo só acontece pontualmente e envolve apenas algumas áreas; (ii) a gestão do
currículo de matemática é, em geral, estruturada por anos de escolaridade e em função
dos temas matemáticos que mais valorizam, influenciada pelo domínio que as professoras
têm desses temas, pelo seu gosto por eles e pela importância que lhes dão. Esta pode ter a
ver com a aprendizagem, mas também com a tradição ou com a pressão exterior; (iii) a
gestão curricular é condicionada pelo cumprimento do programa, pelas provas de aferição
e por pressões internas e externas à escola; (iv) o conhecimento curricular aparece
associado às concepções que as professoras têm sobre a Matemática e sobre o ensino e a
aprendizagem.
Neste estudo as professoras ao fim de algum tempo de trabalho colaborativo assumiram-
se como construtoras do currículo reorganizando, concebendo, planificando, dicutindo,
analisando, reflectindo e promovendo a ligação da Matemática com o dia a dia das
crianças.
Relativamente ao processo de ensino constatou-se que as professoras: (i) apresentavam
novos exemplos ou reformulavam as tarefas propostas nas aulas, davam pistas,
relembravam conhecimentos anteriores , questionavam os alunos, assumindo que as
tarefas escritas não eram suficientes para promover a aprendizagem e que reflectiam na
acção; (ii) encorajavam fortemente os alunos para a actividade matemática, sobretudo os
que consideravam mais fracos; (iii) utilizavam muito a comunicação oral e gestual na

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aula e muito menos a escrita; (iv) validavam os processos e os resultados, através do
diálogo, em regra, colectivamente no quadro.
O desenvolvimento profissional das professoras foi um processo árduo, continuado e com
uma forte ligação à reflexão sobre as práticas que promoveu o aprofundamento do
conhecimento matemático escolar, a partilha de perspectivas curriculares, e o
desenvolvimento de competências profissionais.
A este propósito é relatada a tomada de consciência do grupo (i) da forma limitada e
desconexa como a Matemática é apresentada nos manuais, (ii) de que quando se referem
competências essenciais em Matemática estas vão para além dos aspectos ligados ao
número e às operações e incluiem competências relativas à visualização espacial e
organização espacial. Um outro aspecto referido neste estudo refere-se à tomada de
consciência das professoras do seu fraco conhecimento matemático, concluindo que, só
na medida em que o aprofundaram (ao longo do trabalho colaborativo) conseguiram lidar
com algumas tarefas na sala de aula, afirmando:
Em relação à Matemática, evoluímos sobretudo no conhecimento didáctico que
pomos em prática, no conhecimento das potencialidades e características dos
materiais que usamos e da sua adequabilidade. Sobretudo, tomámos maior
consciência das nossas dificuldades neste domínio e quanto tem sido débil o nosso
investimento nesta área (p. 178).
A tradição portuguesa de um currículo nacional muito prescritivo e uniforme ainda
continua muito presente nas escolas e nos professores. Assim, há uma tendência da escola
para intervir por meio de práticas uniformes e homogéneas, com o falso argumento de
igualdade de oportunidades para todos. Durante o projecto de gestão flexível do currículo
definido anteriormente, a tendência foi de procurar modelos nas escolas com maior
experiência, mas como não havia um modelo único a situação não era fácil (Abrantes,
2001). Nessa altura, como nas escolas envolvidas no projecto o ambiente era propício ao
desenvolvimento de trabalho colaborativo, a questão dos modelos foi muitas vezes
aproveitada de modo positivo, sendo pretexto de discussão e de análise entre os
professores.
Outros estudos mostram também o papel fundamental do professor na concretização do
currículo. Por exemplo, Sousa (2003) realizou um estudo numa sala de aula da 4ª série

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onde, entre outros aspectos, se propunha compreender o papel dos projectos na
concretização do currículo e o papel do professor no desenvolvimento de projectos e no
desenvolvimento da competência matemática dos seus alunos. Os resultados deste
trabalho apontam para: (i) o envolvimento dos alunos em projectos permitiu o
desenvolvimento da competência matemática de acordo com as orientações curriculares
em vigor, assim como capacidades de ordem superior, nomeadamente a criatividade, o
pensamento crítico e autonomia; (ii) a metodologia de trabalho de projecto proporcionou
a integração de temas da matemática e entre várias disciplinas do currículo;
(iii) o trabalho cooperativo foi muito importante no modo como os trabalhos dos alunos
se desenvolveram e influenciou a qualidade dos produtos, tendo a interacção social
durante o desenvolvimento dos projectos promovido o envolvimento de todas as crianças;
(iv) o papel da professora da classe foi determinante durante todo o processo e portanto
no modo como os projectos nasceram da motivação dos alunos e se foram enriquecendo
com resultados da pesquisa. A exploração matemática e a oportunidade dessa exploração
foi um papel levado a cabo pela professora no acompanhamento que fez grupo a grupo.
As conclusões deste estudo apontam ainda que foram determinantes nos resultados
obtidos: (i) as concepções sobre o ensino e a aprendizagem da Matemática que a
professora revelou quer através das suas palavras, mas especialmente através da sua
prática; (ii) a forma como a professora trabalhava a Matemática, nomeadamente o
conhecimento dos conceitos básicos e da didáctica da matemática e o ambiente de
aprendizagem que gerava; (iii) o modo como dinamizou e orientou o trabalho de projecto.
O contributo para o próprio desenvolvimento profissional do professor quando leva a
cabo uma investigação sobre a introdução de aspectos curriculares inovadores na sua
prática é mencionado por exemplo por Olívia Sousa que desenvolveu um projecto sobre
investigações estatísticas no 6º ano (Sousa, 2002). Ao reflectir sobre a sua prática
compara a situação por si vivida no desenvolvimento da sua investigação com a vivida
pelos seus próprios alunos quando estão a desenvolver as suas actividades de
investigação. A propósito da forma como as actividades de investigação podem ser um
meio para a gestão do currículo afirma:
Durante esta experiência apercebi-me que as investigações estatísticas constituem
uma metodologia privilegiada para rentabilizar o tempo de aprendizagem,

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permitindo que os alunos estudem vários conteúdos em simultâneo (…) o treino de
cálculos e procedimentos pode ser feito ao mesmo tempo que os alunos aprendem
os conteúdos estatísticos (…) (p. 146).
No que se refere ao seu desenvolvimento pessoal e profissional afirma:
… é lícito inferir que as actividades investigativas favorecem o nosso crescimento
enquanto pessoas (…) não posso deixar de sublinhar que este trabalho me ajudou a
dar um novo significado às minhas opções metodológicas enquanto professora (p.
147).
Também Alexandra Rocha (2002) realizou uma experiência com alunos do 7º ano de
escolaridade que experimentaram actividades de investigação em Matemática,
concluindo que a sua forma de ser professora se tornou mais flexível quando reflectiu
sobre o que fez.
Ainda no âmbito das actividades de investigação em Matemática, o estudo de
desenvolvimento curricular apresentado por Brocardo (2001) representa um trabalho
pioneiro entre nós pois as actividades de investigação foram consideradas como
metodologia privilegiada de desenvolvimento de currículo. Este trabalho desenvolvido na
8ª série constitui um exemplo de uma investigação onde a investigadora e a professora
partilhavam interesses e métodos. O estudo centrava-se numa proposta curricular
desenvolvida cooperativamente e na prática ao nível da sala de aula, onde o objecto de
estudo era significativo para ambas. Como é referido no estudo
Este tipo de experiência pode ser importante para o seu [da professora]
desenvolvimento profissional porque exige uma maior reflexão e discussão com
outros – que a rotina da vida profissional de um professor tende a dificultar – e
permite aprofundar linhas de trabalho de acordo com determinadas orientações
teóricas (p. 584).
Conclui ainda que este tipo de estudos parece bastante adequado no domínio da inovação
curricular. O professor coopera num projecto que é significativo para si.

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Constrangimentos versus desafios
A transformação das práticas curriculares, todos sabemos, não se faz só porque se muda o
currículo oficial. Há constrangimentos de diversa natureza, que são também desafios,
que é preciso ultrapassar. Podemos agrupá-los em três tipos diferentes:
- Clarificar conceitos, como por exemplo, o conceito de competência que não é fácil de
explicar e surgem interpretações pouco correctas. No caso da competência matemática
termos como disposição (para pensar matematicamente), gosto (em desenvolver
actividades intelectuais) ou tendência (para procurar a estrutura abstracta) têm sido
especialmente criticadas com o argumento que é muito difícil tornar estes conceitos
‘operacionais’. Isto parece prender-se com a dificuldade em compreender e aceitar que a
integração das componentes cognitivas e não cognitivas são essenciais na aprendizagem
da Matemática.
Como é afirmado por Brocardo (2001),
Desenvolver um currículo é um processo contínuo de adaptação e melhoramento
que assenta na observação, reflexão e discussão e passa por diferentes fases de
melhoramento dos materiais de trabalho, de decisões relativamente ao ensino e de
reflexão sobre as ideias e as perspectivas iniciais (p. 579-580).
Esta perspectiva foi desenvolvida pelo Ministério da Educação (DEB, 2001a), realçando
a importância da interligação entre os princípios e as orientações gerais do currículo, a
produção de materiais de aprendizagem e que tanto o professor como o aluno têm um
papel fundamental em todo o processo de desenvolvimento curricular.
Importa que o professor não seja um mero consumidor de um produto acabado, devendo,
pelo contrário, participar activamente no seu desenvolvimento. Neste processo, é ainda
necessário integrar as características individuais dos alunos por forma a encontrar
caminhos que se mostrem mais adequados à sua experiência e que facilitem a sua
evolução.
- Desenvolver trabalho colaborativo entre professores e investigadores - Embora ao nível
das ideias o projecto tenha assentado numa forte ligação entre a investigação e o ensino
em que os professores e investigadores colaboram em equipa e em que é analisada a
interacção entre a teoria e a prática, a lógica seguida teve por base (i) considerar como
fundamental o papel do professor e da escola ao nível da gestão curricular tomando

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decisões sobre o modo de articular e desenvolver diversas componentes do currículo e (ii)
considerar como importante a investigação, tanto como suporte da filosofia curricular
seguida, como na avaliação das experiências realizadas ao nível das escolas.
Estas orientações teóricas são fundamentais, mas, neste momento parece-nos
fundamental fomentar o trabalho colaborativo dos e com os professores de modo a
encontrar respostas para os problemas surgidos nas suas práticas, aspecto que nem
sempre tem sido conseguido.
- Desenvolver conhecimento respeitante à avaliação de competências - parece ser um
aspecto com o qual não tem sido fácil lidar. Avaliar competências exige novos modos de
avaliar, embora progressivamente se tenham vindo a alargar os processos de avaliação
para além dos testes escritos e se tenham introduzido relatórios e outros, os estudos
comparativos internacionais e os seus rankings têm tido um efeito perturbador neste
processo. Curiosamente as provas de aferição no 1º ciclo (4ª série), realizadas pela
primeira vez em 2000, elaboradas tendo como referência diversos tipos de competências
essenciais, relativas aos temas que constam das orientações curriculares oficiais (DEB,
2001b), tiveram um forte impacto nas escolas e nos professores, na medida em que as
respostas aos seus itens não se obtinham fazendo um dos algoritmos das quatro
operações. Na verdade estas provas testaram vários tipos de competências consideradas
essenciais, relativas aos vários temas curriculares, de modo a evidenciar aspectos mais e
menos conseguidos das aprendizagens dos alunos. Um aspecto que teve algum impacto
junto dos professores foi o facto de para além da resposta a um determinado item, ter sido
pedido aos alunos para explicarem o seu modo de pensar por escrito. A ideia que também
faz parte da aprendizagem da Matemática o ser capaz de explicar o que se faz estava
afastada das práticas curriculares usuais no ensino básico. Podemos afirmar que, apesar
de o programa oficial, publicado em 1990, preconizar a aprendizagem da matemática
baseada na resolução de problemas, foi com as provas de aferição que os professores
questionaram, na maioria dos casos pela primeira vez, o que era um currículo baseado na
resolução de problemas e a leitura desse currículo feita pelos autores dos manuais. Uma
vez mais as autoridades educativas não souberam ou não puderam tirar partido da
inquietação criada nas escolas aproveitando este ambiente propício à inovação curricular.

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Começamos por afirmar que todos sabemos que a mudança não se faz por decreto e
desde há muito se concluiu que não há currículos ‘à prova de professor’. Como sublinha
Kilpatrick (1999, p.22), a mudança curricular é um esforço tanto pessoal como social.
Deste modo, é necessário que as autoridades educativas fomentem e apoiem a realização
de projectos cooperativos entre professores e entre estes e investigadores. A partir da
investigação realizada parece poder afirmar-se ser muito promissor o envolvimento dos
professores em investigações sobre a sua própria prática (Ponte, 2002), integrados em
grupos onde têm hipótese de discuti-la com outros professores e investigadores. Assim,
os professores podem desenvolver um conjunto de materiais que serão disponibilizados
para outros e discutidos em acções de formação, mas a formação qualquer que ela seja
tem de passar pelas práticas efectivas dos professores envolvidos.

Referências:

Abrantes, P. (2001). Mathematical competence for all: Options, implications and


obstacles. Educational Studies in Mathematics, 47, 125-143.
Abrantes, P.; Serrazina, L. e Oliveira, I. (1999). A Matemática na Educação Básica.
Lisboa: Ministério da Educação, Departamento de Educação Básica.
Brocardo, J. (2001). As Investigações na Aula de Matemática: Um Projecto Curricular
no 8º Ano. (Tese de doutoramento, Universidade de Lisboa). Lisboa: APM.
DEB (2001a). Currículo Nacional do Ensino Básico. Lisboa: Ministério da Educação,
Departamento de Educação Básica.
DEB (2001b). Provas de aferição do ensino básico 2000 – relatório nacional. Lisboa:
Ministério da Educação, Departamento de Educação Básica.
Fullan, M. G. e Hargreaves, A. (eds.) (1992). Teacher development and educational
change. Londres: Falmer Press.
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