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Paisagens Sonoras Radio Sentidos e Ident
Paisagens Sonoras Radio Sentidos e Ident
Filipe Reis
ISCTE/CEAS
filipe.reis@iscte.pt
I
O meu interesse pelo conceito de paisagem sonora liga-se ao facto de ter realizado uma
investigação sobre radiodifusão local em Portugal da qual veio a resultar a minha
dissertação de doutoramento (Reis 2006)1. No âmbito dessa pesquisa fui acumulando
leituras, referências e notas sobre história e teoria da rádio, bem como sobre o som
enquanto objecto de teorização e reflexão nas Ciências Sociais e, em particular, na
Antropologia. Na presente comunicação, procuro reflectir sobre as questões de natureza
epistemológica que a rádio – um meio sonoro – levanta aos teóricos da comunicação e
como essas questões se articulam com debates muito antigos sobre hierarquias
sensoriais e formas de construir e fixar o conhecimento. O meu argumento segue duas
linhas principais: 1) proporei que um entendimento antropológico da radiodifusão –
entendida como parte integrante das paisagens sonoras contemporâneas – exige uma
discussão crítica dos pressupostos que estão por detrás do que designo por matriz
visual-centrada da episteme ocidental; 2) proporei também que o reconhecimento de
que existem outras epistemes (onde, por exemplo, a audição desempenha um papel
central na construção do conhecimento sobre o mundo) pode ajudar a repensar o papel e
o significado da rádio (e das sonoridades) na vida quotidiana e na construção das
identidades pessoais e de grupo.
II
A rádio é um meio de comunicação sonora, ou, para usar uma definição de Eduardo
Medisch (1999), “uma tecnologia intelectual destinada ao ouvido”. Ou seja, a rádio usa
1
O presente texto retoma, parcialmente, em algumas das suas secções, partes do capítulo 1 da referida
tese de doutoramento (Reis 1996).
1
códigos sonoros (música, palavras, sons, ruído e silêncio) para comunicar com os
ouvintes. Como afirma um proeminente teórico do meio, na comunicação radiofónica
Crisell é conhecido entre os teóricos da rádio ter designado este meio de comunicação o
“meio cego” (“the blind medium”). O fascínio deste e de outros teóricos da
comunicação radiofónica pela metáfora da cegueira é, do ponto de vista epistemológico,
muito revelador do papel que a audição desempenha no seio de cultura letrada e
predominantemente visual-centrada. Eric Havelock (1996), um reputado estudioso da
poesia homérica, ajuda-nos a perceber o contexto dentro do qual a rádio pode ser
designada por “meio cego”. Este autor lembra-nos que a rádio surgiu e desenvolveu-se
em sociedades onde o texto e a imagem se haviam imposto – num processo que remonta
à descoberta da perspectiva e à invenção da impressa na Renascença – como formas
"superiores" ou "mais avançadas" ou ainda mais credíveis e legítimas, isto é, menos
ambíguas, de representação. Para o etnomusicólogo Murray Schafer (1977/1979) – a ele
voltarei mais adiante pois foi ele quem cunhou e desenvolveu o conceito de paisagem
sonora – na episteme do Ocidente o ouvido foi perdendo, de forma gradual, a sua
primazia funcional para o olho. Do ponto de vista epistemológico isto teve profundas
implicações, a mais relevante das quais, como vários autores têm assinalado, é o
ocularcentrismo que caracteriza a nossa definição de conhecimento (cf. Jones 1993
Stoller 1989; Hibbits 1992; Finnegan 2002). Culturalmente somos ensinados a
desconfiar do que “apenas” ouvimos. Em rigor, este debate epistemológico pode ser
situado em épocas ainda mais recuadas na história das ideias do ocidente: pode então
dizer-se que as observações de Crisell sobre a especificidade da comunicação e da
linguagem radiofónica estão em sintonia com os debates que, desde a Grécia Antiga,
2
vêm moldando a hierarquia sensorial da nossa cultura, nomeadamente o papel e o lugar
que a audição e a visão nela ocupam (vd. Classen 1993)2. O facto de a rádio se destinar
ao ouvido e o ouvido, como afirma Crisell, não ser considerado “o mais inteligente” dos
nossos sentidos – levanta problemas que os teóricos e didactas da comunicação
radiofónica continuam a discutir até hoje. Na comunicação radiofónica, ao que parece,
os riscos de ambiguidade são muito altos.
O uso da metáfora da cegueira na literatura sobre rádio ilustra, portanto, de forma muito
clara, as tensões, ansiedades, perplexidades e questões que a radiodifusão sonora – com
os seus códigos exclusivamente auditivos – despertaram e ainda despertam no contexto
de uma cultura predominantemente visual, letrada e literária. A legitimação cultural,
política, estética e académica da radiodifusão enquanto meio de comunicação, forma de
conhecimento, objecto de estudo e matéria de ensino foi no passado e continua a ser no
presente pensada recorrendo à imagem da cegueira e ao carácter evanescente do som
(para uma apreciação recente veja-se Lewis 2000). A "falta de confiança no ouvido”,
proverbialmente recordada por Eduardo Meditsch (Meditsch 1999:215)3 e o acentuado
pendor visual-letrado da cultura ocidental pós-renascentista parecem ter marcado
profundamente a forma como se ensina, pratica e teoriza a comunicação radiofónica.
3
O autor escreve: “Que tipo de conhecimento pode ser construído no “ar”, onde tudo se dissolve e
desfaz? Se este paradoxo também diz respeito a outras formas de informação electrónica, na rádio a
perplexidade ainda se torna maior pela limitação auditiva. (...) [A] falta de confiança no que é percebido
pelo ouvido está de tal modo incutida em nossa consciência colectiva que se tornou proverbial. (...) «o
que entra por um ouvido sai pelo outro» se contrapõe ao «ver para crer»...” (Meditsch 1999:215).
3
radiofónicos e continua a instigar radialistas e ensaístas (Beck s.d./B). Esta imagem algo
neurótica (Beck s.d./A) reflecte o lugar que o sentido da audição desempenha na
hierarquia sensorial de uma cultura visual-centrada. A visão desempenha um papel
dominante nas nossas definições comuns do que é conhecer e entender – dizemos “estou
a ver” como sinónimo de “estou a entender, estou a perceber”. A “limitação auditiva”
desafia a reflexão sobre as potencialidades da rádio enquanto forma de expressão num
mundo onde, diz-se, “uma imagem vale por mil palavras”. E no entanto, a rádio,
propõe-nos “dar a ver o mundo” (um conhecido slogan da TSF), um mundo feito de
palavras e sons.
Como é que, então, o que apenas pode ser ouvido pode reivindicar o estatuto de
conhecimento e representação do mundo? Para responder a esta questão parece ser
necessário, de alguma forma, ultrapassar a episteme visual-centrada que caracteriza a
nossa matriz cultural, desde os antigos gregos.
III
“ (...) nada é mais falso do que o verdadeiro e nada mais verdadeiro do que o construído.
(...) O som falso pode ser mais radiofónico do que o verdadeiro” (Ribeiro 1964:89 e 90)
Steven Jones (1993), num estimulante ensaio onde propõe reexaminar a história da
apreensão, consumo e produção da realidade através das tecnologias áudio, mostra
como os discursos contemporâneos acerca da “realidade virtual” tendem a ser
exclusivamente visual-orientados. Criticando o “ocularcentrismo” dominante na teoria
social e nos modelos filosóficos sobre o conhecimento e a comunicação, Jones reflecte
acerca do papel das tecnologias de registo, produção e difusão sonora na criação de
novas realidades. Que mudanças trouxeram as tecnologias de armazenamento,
tratamento e difusão de som no modo como apreendemos e representamos o mundo?
Qual é o papel das tecnologias de registo, produção e difusão sonora na criação de
novas realidades? Que mudanças e consequências têm espoletado na forma como
percepcionamos o espaço e o tempo?
4
expandir os poderes da voz humana muito para além da dimensão de uma audiência
fisicamente presente. A ideia de “encantamento oral”, ou a tão popular expressão
“magia da rádio”4 surgem, assim, como formas de no imaginário ocidental se explicar o
retorno, sobre forma de mediação electrónica, da oralidade (cf. Havelock 1997).
Por outro lado, como sustenta Jones (1993), a radiodifusão, bem como as tecnologias de
registo sonoro, na medida em que tornaram possível desincorporar, descontextualizar,
repetir, eternizar e manipular as sonoridades e as vozes, proporcionaram novas
possibilidades de imaginar e representar a realidade.
Deste modo, torna-se possível pensar a evolução das técnicas de registo e difusão
sonora e, em particular, as preocupações relativamente à localização espacial do som, a
partir de uma importante categoria do pensamento social: a autenticidade. Em termos de
percepção auditiva essas preocupações traduzem-se pelo termo fidelidade (ou realismo).
Uma vez que o som se propaga no espaço, registar uma determinada fonte sonora (uma
voz, o pingar de uma torneira, o trote de um cavalo, uma tempestade, etc.) implica
capturar o ambiente sonoro, ou seja, o som do espaço que rodeia essa fonte sonora.
Repare-se no seguinte exemplo (Álvares 1954:21):
[Quando a Emissora Nacional quis dar a sensação do que seria uma tempestade
na Boca do Inferno e se deslocou para lá para fazer uma transmissão] “o ouvinte,
em casa, apenas recolheu no ouvido um ruído insólito... (...) o ruído natural em
rádio resultou antinatural. (...) em Rádio, a verdade real pode muitas vezes não
ser a verdade radiofónica.”
O episódio contado por Álvares evoca o problema da autenticidade – e sua relação com
a localização espacial – inerente a toda a representação sonora da realidade. Aliás, o
caso da tempestade pode considerar-se verdadeiramente exemplar para ilustrar a
questão: de facto, radiofonicamente era mais eficaz e menos dispendioso produzir uma
4
Sobre isto vejam-se as observações de Adriano Vasco Rodrigues acerca daquilo que o autor considera
ser a excessiva importância atribuída aos conteúdos na maior parte das análises sobre a rádio descurando-
se a sua “função glossolálica”, isto é, o poder lúdico e encantatório do discurso radiofónico. Este poder,
para este autor, está associado a mecanismos de “higienização da linguagem”, o uso de frases curtas, etc..,
que visa transformar esteticamente a linguagem radiofónica em mercadoria. Seria então esta função
glossalálica que permitiria usar a rádio como ruído de fundo que acompanha outras actividades.
(Rodrigues, 1986:23).
5
“tempestade” em estúdio – pela oscilação de uma folha de metal, ou usando uma
“máquina de vento” – do que captar (sem o equipamento adequado) o som de uma
tempestade real. O desenvolvimento e evolução das técnicas de registo sonoro, que
aproveitaram tanto à indústria da rádio como à da produção fonográfica foram, de
acordo com Steven Jones, ditados pela combinação de factores que lhe imprimiram
dinâmica: custo, controle e fidelidade. Assim, a criação e construção de espaços
específicos de gravação e emissão – os estúdios – constitui uma forma de obter mais
controle sobre o todo o processo; é claro que a história da produção fonográfica oscila
entre a gravação/emissão localizada (como no caso da gravação de um concerto ao vivo,
ou um directo radiofónico) e a gravação/emissão no estúdio.
6
“O uso repetido de palavras como ‘cego’ e ‘cegueira’ para descrever a rádio
parece sugerir que os que escrevem sobre rádio consideram a sua falta de
visualismo como constituindo um problema em vez de uma vantagem: como
qualquer coisa a ser ultrapassada em vez de explorada”. (tradução minha)
6
http://interact.uoregon.edu/MediaLit/FC/readings/listentoradio.html
7
crer”, o mundo é experimentado e percebido a partir da ideia de “ouvir para crer”
(Thorn 1996).
A ideia de que todo o corpo, e não apenas o ouvido, está implicado no processo de ouvir
rádio constitui um importante contributo para reconceptualizar a especificidade da
comunicação radiofónica. Alan Beck destaca o facto de cada ouvinte poder visualizar
um rosto e um corpo para as vozes dos locutores, cheirar o odor da confecção de
alheiras descrito pelo repórter ou saborear uma iguaria regional, ou “ver o jogo a cores”.
Tomemos um exemplo: a apresentação promocional de um programa radiofónico como
o Feira Franca (Antena 1 aos domingos) diz a dado passo que “ao domingo a rádio tem
sabores e cheiros”7. O que faz com que esta frase não nos espante é o facto, não
negligenciável, de estarmos dispostos a aceitar que cheiros e sabores podem ser
comunicados através de palavras (é agridoce, é picante, é delicioso, etc.) e de acções
(percebidas enquanto ruídos como mastigar ou inspirar profundamente).
Um dos anúncios promocionais da estação TSF prometia-nos uma rádio que “dá a ver o
mundo”. Não achamos invulgar que o sentido da visão não diga unicamente respeito
àquilo que temos diante dos nossos olhos. Graças aos estudos sobre percepção visual e
estética, sabemos que a visão convoca sentidos como o tacto. A distinção entre “haptic”
e “optic” sugere, justamente, no campo da percepção visual, que as imagens, pinturas ou
fotografias, podem ser apreendidas em profundidade (a textura ou grão) e/ou pela leitura
das suas linhas e formas: ou seja, a visão raramente opera sem os restantes sentidos.
Partindo destas considerações, Beck lança a sugestão de que, tal como acontece na
visão, a sinestesia constituiria um dos aspectos da audição radiofónica (Beck pub.
electrónica: 14):
7
Para uma crítica desta forma de olhar para a especificidade da linguagem radiofónica ver Meditsch
1997.
8
“(…) ouvir pode também dividir-se em optic ( onde o sentido da visão é
transferido para o ouvido) e em haptic (onde o som é corporeamente e
sensualmente experienciado através do corpo, e do toque)...”
9
tratar-se de uma composição musical, um programa de rádio ou um ambiente acústico”
(Schafer 1979:21). Segundo Carlos Fortuna, de entre as Ciências Sociais, aquela que
mais atenção tem dado às sonoridades (ou a que tem sido menos afectada pela surdez
epistemológica) tem sido justamente a Geografia.
Para este autor isto deve-se ao facto de haver uma “intimidade entre o som, o
movimento e o espaço” (Fortuna 1999:106). Orlando Ribeiro, por exemplo, faz
múltiplas referências aos ambientes sonoros característicos das cidades islâmicas. Um
geógrafo como Paul Rodaway utiliza o trabalho Murray Shafer para distinguir entre
campo sonoro e paisagem sonora:
“…O campo sonoro refere (-se) ao espaço acústico gerado a partir de uma
determinada fonte emissora que irradia e faz distender a sua sonoridade a uma
área ou território bem definidos. O centro deste campo sonoro é um
determinado agente emissor, humano ou material, que, à medida que o som que
produz se propaga e mistura com outros, tende a ver obscurecida e
indeterminada a sua origem. Por isso, a expressão acústica que constitui o
campo sonoro é sempre uma expressão híbrida e, de certo modo,
desterritorializada”.( Fortuna 1999:107)
Geralmente dentro de determinados limites físicos e geográficos existe não um mas sim
vários campos sonoros que se sobrepõem; o resultado desta sobreposição constitui uma
paisagem sonora, isto é,
1
Nas cidades as paisagens sonoras estão próximas do que se considera ruído; Schafer
designava esta amálgama de fontes sonoras cacofónicas “bruma sonora”. Fortuna
propõe a distinção entre paisagens sonoras de tipo “low-Fi”, caso das cidades, e as de
tipo “hi-fi” – “as sonoridades ou as musicalidades próprias dos ambientes naturais, dos
espaços rurais ou das pequenas comunidades urbanas” (Fortuna 1999: 109).
Como sugere Fortuna, a decifração de uma paisagem sonora traduz sempre um acto de
atribuição de sentido. Pode assim falar-se em relação às sonoridades de significado
denotativo (relativo à singularidade da fonte que o emite) e conotativo (relativo à
combinação com outros sons).
Por outras palavras: as sonoridades ou as paisagens sonoras que nos envolvem podem
articular-se e ligar-se a formas pessoais e grupais de construção da identidade. Uma
conhecida canção do cantor português Rui Veloso expressa bem esta ideia quando, a
dada altura, diz “não se pode amar alguém que não ouve a mesma canção”. Mas
permitam-me voltar a Shafer e às considerações que teceu sobre o facto de a rádio se ter
tornado, “paisagem sonora natural no mundo contemporâneo”.
1
num mundo onde “as fábricas mataram as canções”, a rádio estaria a tornar-se a
paisagem sonora ‘natural’ do quotidiano. (Schafer 1979). Até certo ponto é possível
compreender as preocupações do etnomusicólogo canadiano pela degradação da
qualidade das paisagens sonoras no mundo actual. Mas, por outro lado, a sua posição
algo nostálgica em relação aos bons velhos dias da rádio coarcta a possibilidade de
pensar as dimensões contemporâneas de consumo e apropriação quotidiana da rádio.
Definir a rádio exclusivamente como “muro sonoro (...) que encerra o indivíduo” limita
drasticamente a possibilidade de pensar uma variedade de modalidades de
(re)organização e (re)invenção das sociabilidades experienciadas pelos radiouvintes.
Pense-se, por exemplo, no jovem que no seu quarto sintoniza, em altos berros, a sua
estação de rádio favorita. Provavelmente o volume sonoro impede-o de ouvir o que se
passa no resto da casa e ocasionalmente provoca os protestos do resto da família e
vizinhos; poder-se-ia dizer que estamos perante um “muro sonoro”erguido pelo rapaz
ou rapariga contra os outros que vivem na mesma casa ou nas imediações. No entanto,
esta interpretação apenas dá conta de um dos aspectos da questão: a sonoridade da rádio
poderá exprimir a vontade de sentir-se separado dos que estão imediatamente próximos;
mas, por outro lado, essa sonoridade liga esse rapaz ou rapariga a outros jovens que
partilham das mesmas preferências radiofónicas e experiências auditivas.
Vou terminar dando dois exemplos de etnografias recentes onde a rádio é pensada como
forma de estabelecer sociabilidades e (re)construir identidades.
O primeiro exemplo provém de uma investigação sobre os significados sociais dos usos
da rádio em contexto doméstico levada a cabo pela antropóloga Jo Tacchi. Tacchi
(1998) analisou, através de entrevistas com habitantes de Manchester, as funções que o
som radiofónico pode desempenhar na vida quotidiana das pessoas partindo das
seguintes considerações:
“O meu ponto de partida é a ideia de que o som da rádio cria uma ‘paisagem
sonora’ com textura dentro de casa, no interior da qual as pessoas se deslocam
e vivem as sua vida quotidiana (...). O som da rádio pode ser usado como forma
de preencher o tempo e o espaço. Pode funcionar como um ponto de referência
de memórias e sentimentos, de outros lugares e épocas. Pode servir para ligar
1
alguém ao presente. Pode ajudar a estabelecer e manter identidades, e é
frequentemente usado como marcador temporal” (Tachi 1998:26)
O artigo de Tacchi mostra duas coisas: em primeiro lugar produz uma interpretação
antropológica da ideia do senso comum segundo a qual a rádio providencia companhia e
conforto no quotidiano doméstico de ouvintes individualizados. Ela apresenta, entre
outros, o caso de um homem de 29 anos, fiel ouvinte de uma emissora especializada na
difusão de sucessos musicais dos anos 60. Tacchi sugere que a preferência deste jovem
habitante de Bristol por esta “classic gold station” permite-lhe criar em sua casa um
ambiente sonora evocador de um passado e uma sociedade imaginadas – os anos 60 –
do qual ele ouvira falar através das histórias contadas pelos seus pais. Além disso, o
homem em questão associava essa época a uma forma de sociabilidade experienciada
em campos de férias durante o seu tempo de estudante. Através da rádio sentia-se assim
em contacto com essa realidade e tinha oportunidade de idealizar um passado que, dada
a sua idade, apenas tinha experienciado de forma mediatizada ou indirecta, através das
histórias dos pais e das recriações dessa época nos campos de férias. (cf. Tacchi
1998:32-34). Articulando este exemplo com um estudo na área da etnomusicologia
sobre a recriação de um estilo musical particular entre os Yoruba da Nigéria, a autora
realça a importância que as sonoridades podem desempenhar nos processos de
construção e reinvenção da identidade nas sociedades contemporâneas. Para os músicos
Yoruba que cultivam e recriam a música popular na Nigéria contemporânea, a
diversidade de estilos dá-lhes a oportunidade de situar-se a si próprios face à mudança
nos gostos musicais em contextos sociais urbanos marcados pela heterogeneidade
cultural (cf. Tacchi 1998:32-34). O reconhecimento e consolidação de um novo estilo
musical como a escolha de uma determinada estação de rádio articulam-se aqui, de
modo evidente, com políticas da identidade.
O segundo exemplo que gostaria de vos apresentar provém da minha investigação sobre
um programa radiofónico (emitido em regime de antena aberta) intitulado Bom Dia Tio
João (é emitido por uma rádio de Bragança – RBA – desde 1990 e pode ser escutado
numa vasta área da região norte interior de Portugal e Espanha (pode por exemplo ser
escutado aqui, em Alcañices). O programa em questão é transmitido diariamente em
horário matinal (6-8 da manhã de segunda a sexta-feira; 6-10 da manhã aos sábados) e
1
tem como público-alvo a população rural e idosa que habita nas aldeias da regiãoO meu
estudo de caso ilustra a tangível dimensão de proximidade que se pode estabelecer entre
emissores e receptores num quadro comunicacional, social e territorial concreto.
Através da démarche etnográfica procurei dar a perceber o processo através do qual a
imaterialidade das ondas hertzianas se materializa tanto no espaço privado como no
espaço público, criando novas formas de interacção social para um vasto auditório. Ao
contrário do que acontece com o estudo de Jo Tachi acima referido, estas emissões não
se limitam a providenciar companhia, criando no espaço doméstico onde são ouvidas
uma “textura sonora” e uma ilusão de participação, percebida enquanto pseudo-
interacção social. No caso estudei, a rádio cria, de modo efectivo, novas formas de
interacção social e contribui até para re-orientar as sociabilidades dos ouvintes. Na
verdade, o programa “Bom Dia Tio João” vai mais longe, do ponto de vista
comunicacional: cria uma densa rede de relações sociais que vai para além do que
acontece em antena e o sucesso do programa passa, em grande medida, pela forma
como, cíclica e regularmente, os ouvintes alternam entre formas de interacção
mediáticas à distância e formas de interacção social cara-a-cara no contexto dos
encontros e das festas organizadas pelos e para os ouvintes.
O programa “Bom Dia Tio João” constitui uma paisagem sonora. Trata-se de uma
paisagem sonora discursivamente produzida no contexto das emissões, através das
conversas que ouvintes e apresentador mantêm dia após dia, manhã após manhã. O
programa organiza-se em torno da ideia de “família” sendo a sua audiência designada
por “família do tio João”. Esta designação, usada tanto pelo apresentador do programa
como pelos ouvintes que diariamente participam através do telefone nas emissões,
constitui o principal tropo ou metáfora que organiza e confere coerência aos discursos
feitos em antena (durante as emissões) e fora dela (nas festas e encontros do
apresentador com a audiência). Escutado sobretudo pela envelhecida, católica e pouco
alfabetizada população rural de Trás-os-Montes e regiões vizinhas, o programa “Bom
dia tio João” providencia uma família virtual a pessoas que por diversas razões –
viuvez, migração para as cidades, emigração para o estrangeiro, desertificação das
aldeias – vive relativamente isolada. A rádio e o telefone constituem para esta
população recursos tecnológicos que permitem activar redes de sociabilidade e
providenciar novas formas de entretenimento e de encontro virtual (no ar) e real (nos
encontros e festas). A “família do tio João” constitui nesta medida um espaço onde é
1
possível reinventar, reafirmar e reconstruir a identidade num contexto marcado pela
pós-ruralidade e pela dispersão imposta pelos movimentos migratórios.
VII
“ (...) vozes vindas do nada controlando tudo por dentro, convoluções de uma
história que flutua no ar e nos entra nos ouvidos para que o drama seja
apreendido bem atrás dos olhos, nessa taça que é o crânio, uma taça
transformada num palco, um globo sem limites, contendo inteiras criaturas
como nós. Quão fundo vai a nossa audição! Pensem em tudo o que significa
compreender algo que simplesmente ouvimos. A qualidade divina de ter
ouvidos!”
Este excerto de um livro do escritor americano Philip Roth (1999: 326) condensa, de
forma eloquente, o que procurei argumentar aqui. Numa tradição que remonta a
McLuhan (1964/ 1996) e que tem entre os seus actuais representantes o teórico dos
media Paul Levinson (1998), os media são vistos como “extensões do homem”. A
sobrevivência e evolução de certas tecnologias e o desaparecimento de outras são assim
explicadas por razões de natureza antropocêntrica. Se compararmos o caso da
sobrevivência da rádio na paisagem mediática contemporânea com o declínio do cinema
mudo, percebemos a importância que a audição tem na hierarquia sensorial da nossa
cultura visual-centrada, bem como a sua enorme relevância nos padrões de comunicação
humanos: mal se tornou possível juntar som à imagem, o cinema mudo entrou em
rápido declínio e extinguiu-se. No entanto, algo diferente aconteceu com a chegada da
televisão. Porque razão não se tornou então a rádio totalmente obsoleta? Ao contrário
do cinema mudo que não sobreviveu ao sonoro, a rádio sobreviveu ao seu “sonoro” – a
televisão. É como se estivéssemos dispostos a tolerar um “meio cego” – a rádio – mas
não um “meio surdo” – o cinema mudo. Para Levinson, tal mostraria que os meios de
comunicação tendem a evoluir no sentido de se aproximarem dos padrões humanos de
comunicação: o sonoro aproximou mais o cinema daquilo que é a nossa experiência
sensorial do mundo. Ver sem ouvir é de certo modo “estranho às relações sensoriais
humanas”, enquanto que ouvir sem ver corresponde a uma experiência que nos é bem
familiar: podemos sempre cerrar os olhos, cai a noite e deixamos de ver, mas não de
1
ouvir. Não temos pálpebras nos ouvidos, por assim dizer: o som envolve-nos e, mais do
que isso, somos também parte do ambiente acústico que nos rodeia. Podemos ouvir
ruídos, sons ou vozes sem necessidade de ver quem os produz, e mesmo sem
necessidade de ver/ler o que está a ser dito.
Entender a rádio como paisagem sonora no mundo contemporâneo implica, por isso,
compreender que as formas de estruturação e organização da experiência sensorial
variam, tanto ao longo do tempo como de cultura para cultura. Deveríamos por isso
estar atentos à diversidade de paisagens sensoriais que compõem o nosso mundo.
Tanto uma antropologia dos sentidos (Gell 1975; 1995; Hibbits 1992; Seeger 1981;
Stoller 1989; Feld 1990) como uma etnografia crítica dos usos e apropriações das
tecnologias intelectuais destinadas ao ouvido (Bull 2000; Finnegan;2002; Glevarec
1996; Manuel 1993) parecem constituir-se enquanto importantes contributos para
pensar o lugar do ouvido no mundo contemporâneo.
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