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Ludwig von Mises Acgao Humana QUIRIR A E WWW.M LUDWIG VON MISES ACAO HUMANA UM TRATADO DE ECONOMIA Tradugao de DONALD STEWART JR. 2* edigdo RIO DE JANEIRO, 1995 Titulo original em inglés HUMAN ACTION: A TREATISE ON ECONOMICS Copyright @ 1949, by Ludwig von Mises by arrangement with Contemporary Books, Inc. All Rights Reserved. Todos os direitos reservados para a lingua por- tuguesa: INSTITUTO LIBERAL Rua Professor Alfredo Gomes, 28 22251-080 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil Printed in Brazil / Impresso no Brasil 1* edicao, por Yale University Press, 1949 2° edicdo, por Yale University Press, 1963 3* edigao, revista, publicada por Henry Regnery Company, em convénio com a Yale University Press, 1966. Obs.:Esta edigio foi traduzida a partir da 3# edigao, ¢ conserva sua programacdo visual. ISBN - 85-85054-42-5 (ISBN edigdo original 0-8092-9743-4) Revisao de originais Alexandre Guasti Diagramacao Patricia Cralliez de Salles Digitagao Ana Marcia Melo da Cunha Rama Artes Grdficas e Editora Ltda Revisao Carmen Oliveira Vera Nogueira Ficha Catalogrdfica elaborada pela Biblioteca Ludwig von Mises do Instituto Liberal - RJ Responsdvel: Otdvio Alexandre Jeremias de Oliveira Mises, Ludwig von, 1881-1973. M678hP Acao humana: um tratado de economia / Ludwig 2. ed. von Mises; traducao de Donald Stewart Jr. — 2.ed. ~ Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1995. 890 p. Traducdo de: Human Action: a treatise on economics ISBN — 85-85054-42-5 1. Teorias econémicas. 2. Filosofia social. 3. Sociologia. 4. Agao social. 5S. Utilitarismo. 6. Escola Austriaca. I. Stewart Jr., Donald, trad. II. Instituto Liberal, Rio de Janeiro. III. Titulo. CDD. 330.157 PREFACIO A TERCEIRA EDICAO E com grande satisfagao que vejo este livro em sua terceira edigao, com uma bela impresso e por uma editora tio bem-conceituada. Cabem aqui duas observagdes terminolégicas. Primeira: emprego o termo “liberal” com o sentido a ele atribuido no século XIX e, ainda hoje, em pafses da Europa continental. Esse uso é imperativo, porque simplesmente nao existe nenhum outro termo disponivel para significar o grande movimento politico e intelectual que substituiu os métodos pré-capitalisticos de produgio pela livre empresa e economia de mercado; o absolutismo de reis ou oligarquias pelo governo representativo constitucional, a escravatura, a serviddo e ou- tras formas de cativeiro pela liberdade de todos os individuos. Segunda: nas ultimas décadas, o significado do termo “psicologia” tem ficado cada vez mais restrito 4 psicologia experimental, uma disciplina que emprega os métodos de pesquisa das ciéncias naturais. Por outro lado, tornou-se usual desprezar os estudos que anteriormente haviam sido chamados de psicolégicos, considerando-os “psicologia literdria” ou uma forma nao-cientifica de entendimento. Sempre que se faz referéncia a “psicologia” em estudos econémicos, tem-se em mente exatamente essa psicologia liter4ria, e, portanto, torna-se aconselhavel introduzir um termo especial neste sentido. Sugeri em meu livro Theory and History (New Haven, 1957, p. 264-274) o termo “temologia”, eo uso em meu ensaio The Ultimate Foundation of Economic Science (Princeton, 1962), recentemente publicado. Entretanto, a minha sugestdo nao teve a inteng4o de ser retroativa e de alterar o uso do termo “psicologia” em livros j4 previamente publicados; portanto, continuo a empregar o termo “psicologia” nesta nova edigdo da mesma forma como empreguei na primeira. Existem duas tradugées j4 publicadas da primeira edigdo de Agdo Humana: uma tradugio italiana feita pelo Sr. Tullio Bagiotti, professor da Universidade Boconni em Milao, sob o titulo L’Azione Umana, Trattato di economia, publicada pela Unione Tipografico-Editrice Torinese, em 1959; e uma tradugdo espanhola feita pelo Sr. Joaquin Reig Albiol, sob 0 titulo de La Accién Humana (Tratado de Economia), publicada em dois volumes pela Fundagao Ignacio Villalonga, em Valenga (Espanha), em 1960. Sinto-me em divida com muitos amigos pela ajuda e por conselhos que recebi durante a preparag4o deste livro. Antes de mais nada, gostaria de lembrar dois estudiosos j4 faleci- dos, Paul Mantoux e William E. Rappad, que — por me terem dado a oportunidade de ensinar no famoso Graduate Institute of International Studies em Genebra, Suiga—proporcionaram-me 0 tempo 0 incentivo para iniciar os trabalhos de um plano t4o a longo prazo. Gostaria de expressar meus agradecimentos ao Sr. Arthur Goddard, Sr. Percy Greaves, Dr. Henry Hazlitt, Prof. Israel M. Kirzner, Sr. Leonard E. Read, Sr. Joaquin Reig Albiol e Dr. George Reisman, pelas valiosas e lteis sugestdes. Mas, acima de tudo, quero agradecer a minha esposa pelo seu firme estimulo e ajuda. LUDWIG VON MISES Nova Torque Marco, 1966 SUMARIO Introdugiio 1. Economia € praxeologia oo... cceesenseiece esses ccnnenterseensenienteeeesice 1 2. O problema epistemoldégico de uma teoria geral da agio humana 3. Teoria econédmica e a pratica da ago humana 4, Resumo PRIMEIRA PARTE: ACAO HUMANA Capitulo I. O agente homem 1. Agio propositada e reagao animal 2. Os pré-requisitos da a¢do humana « Sobre a felicidade ... « Sobre instintos e impulsos 3. Agdo humana como um dado irredutivel 4, Racionalidade ¢ irracionalidade; subjetivismo e objetividade da investigagao praxeoldgica . . Causalidade como um requisito da ago 6. O alter ego ee «+ Sobre a utilidade dos instintos + O objetivo absolute. + O homem vegetativo w Capitulo II. Os problemas epistemoldgicos das ciéncias da agio humana . Praxcologia ¢ histéria . O cardter formal e aprioristico da praxeologia... . « A pretensa heterogeneidade légica do homem primitivo . . O apriorismo e a realidade . O principio do individualismo metodolégico Ne . O principio do singularismo metodolégico . . As caracter{sticas individuais e varidveis da agdo humana. 48 O escopo e o método especifico da historia . Concepgao e compreensio ............. » Histéria natural e hist6éria humana 9. Sobre tipos ideais 0.00... 10. O modo de proceder da economia .. 11. As limitagdes dos conceitos praxeoldgicos .. Capitulo IIL A economia e a revolta contra a razio 1, A revolta contra a razio 2. O exame légico do polilogismo 3. Oexame praxeoldgica do polilogismo 4. O polilogismo racista 5. Polilogismo ¢ compreensdo 6, Em defesa da razio Capitulo IV, Uma primeira analise da categoria agao 1. Meios e fins 2. Aescala de valores 3. A escala de necessidades 4. A AGB COMO EOCE eee ceeecee sss sesecueesecsaessessecuceecescnnensenneanes Capitulo V. O tempo 1. O tempo como um fator praxeolOgico ......cecessseesssesseeeseceseees 2. Passado, presente e futuro 3. A economia de tempo... 4. A relagao temporal entre agées . Capitulo VI. A incerteza 1. Incerteza e agao...... . O significado da probabilidade . Probabilidade de classe . Probabilidade de caso ... Avaliagdo numérica da probabilidade de caso. Apostas, jogos de azar e jogos recreativos . Apredigdo praxcolé gica....eesesee NNN PWHN Capitulo VII. Agaio no mundo 1. A lei da utilidade marginal 0... eccseseeesteseanessesneeiees 2. A lei dos rendimentos 3. Otrabalho humanc como um meio 100 103 « Trabalho imediatamente gratificante e trabalho mediatamente gratificante » O génio criador. 4. Produgio 136 SEGUNDA PARTE: ACAONA SOCIEDADE Capitulo VIII. A sociedade humana 1. Cooperagdo humana 2. Uma critica da visio holistica ¢ e S metafisica da sociedade 145 + A praxeologia ¢ o liberalismo » Liberalismo e religiao .. 3. A divisdo do trabalho .... 4. A lei de associagao de Ricardo « Erros comuns sobre a lei de associagéio 5. Os efeitos da divisio do trabalho.......... 64 6. O individuo na sociedade « A fabula da comunhdo mistica 7. A grande sociedade ...... 8. O instinto de agressdo e destruigio .. « Equivocos correntes da moderna ciéncia natural, especialmente do darwinismo «0.0... ete 174 Capitulo [X. O papel das idéias 1, Arazio humana 2. Visa&o de mundo e ideologia « A luta contra o erro. 3. Opoder ... » O tradicionalismo como uma a ideologia.. 4, O meliorismo ¢ a idéia de progresso Capitulo X. O intercimbio na sociedade 1. Troca autistica e troca interpessoal... 2. Vinculos contratuais e vinculos hegeménicos 3. A ago @ 0 CALCU cece ee tesecneeneeneerneeereaneerneneeneren TERCEIRA PARTE: CALCULO ECONOMICO Capitulo XL. Valoracao sem calculo 1. A gradagdo dos mei08 oo... eceescecesessssuesecseessssenensesvecessnvessntecees -200 2. A fiegao da troca na teoria elementar do valor e dos pregos .... 200 + A teoria do valor e 0 socialismo .... 3. O problema do caélculo econémico 4. O calculo econdmico e o mercado. Capitulo XII. O ambito do calculo econdmico 1. O significado das expresses monetérias 2. Os limites do c4lculo econémico ......... - 3. A variabilidade dos pregos 4. A estabilizagfo ........... 5. A base da idéia de estabilizagao Capitulo XITI. O cdtculo econémico como um instrumento da agio 1. O calculo monetério como um método de pensar 2, O calculo econémico e a ciéncia da agdo humana QUARTA PARTE: CATALAXIA OU ECONOMIA DE MERCADO Capitulo XIV. Ambitoe metodologia da catalaxia 1. A delimitagao dos problemas catalacticos. » A negacdo da economia ............. 2. O método das construgGes imaginarias. 3. A auténtica economia de mercado . » A maximizagio dos lucros . . A economia autistica......... . O estado de repouso ¢ a economia uniformemente circular.244 . A economia estaciondria . A integragdo das fungées catalacticas . - A fungao empresarial na economia estacionéria ................ 255 UAWS Capitulo XV. O mercado ] 2 3 4 5 6 7. 8. 9 10. 1h. 12. 13. 14, . As caracteristicas da economia de mercado . Capital e bens de capital . Capitalismo .. . . A soberania do consumidor » Oemprego metaforico da terminologia politica. . Competigao..... 274 . Liberdade ...._.... - 280 A desigualdade de riqueza e de renda . Lucro e perda empresarial . Lucros e perdas empresariais numa economia em desenvolvimento «A condenag4o moral do lucro. « Algumas observagées sobre o mito do subconsumo e sobre o argumento do poder de compra ... Promotores, gerentes, técnicos e burocratas O processo de selegio.. O individuo e o mercado A propaganda comercial . A Volkswirtschaft..... Capitulo XVI. Os precgos 1 2 3 1 14 . O processo de formagio dos pregos . Contabilidade de custo . Monopélio de demanda . Efeitos de pregos monopelisticos sobre o consumo .. 10. . A discriminagao de pregos por parte do comprado: 12. 13, . Pregos e produgdo 15. Valoragao e avaliagao . Os pregos dos bens de ordens SUperiOres 00... cece 335 « Uma limitagio a formagio dos pregos dos fatores de produgao . 340 Catalaxia légica versus cataléxia matemAatic: Pregos monopolisticos .... « O tratamento matematico da teoria de pregos monopolisticos ... Reputagio comercial A discriminagdo de pregos por parte do vendedor Aconexidade dos pregos Pregos e renda ... A quimera de pregos sem mercado . Capitulo XVII. A troca indireta . Meios de troca e moeda.... . Observagées sobre alguns erros freqientes . Demanda por moeda ¢ oferta de moeda ..... » A importancia epistemolégica da teoria da origem da moeda de Carl Menger.. 4, A determinagao do poder aquisitivo da moeda 5. O problema de Hume e Mill e a forga motriz da moeda....... 418 6. Mudangas no poder aquisitivo de origem monetaria e de origem material... « Inflagdo e deflagdo; inflacionismo e deflacionism: 7. O calculo monetério ¢ as mudangas no poder aquisitivo 8. A antecipagao de provaveis mudangas no poder aquisitivo .427 9. O valor especifico da moeda 10. As implicagdes da relagdo monetéri. 11. Os substitutos da moeda.... 12. A limitag&o da emissdo de meios fiduciérios . « Observagées sobre as discussdes relativas atividade bancéria livre 13. Tamanho e composigao dos encaixes 14. O balango de pagamentos 15. As taxas de cémbio interlocais 16. A taxa de juros e a relagdo monetiria . 17, Os meios de troca secundario: 18. A visio inflacionista da hist 19. Opadrao-ouro ..... » Cooperagdo monetéria internacional . wn Capitulo XVIIL A aciio na passagem do tempo 1. A valoragao dos diferentes periodos de tempo ... 2. A preferéncia temporal como um requisito essencial da agao ... « Observagées em torno da evolugao da teoria da preferéncia temporal 3. Os bens de capital .... 4. Periodo de produgao, periodo de espera e perioda de provisio .. eA prolongag&o do periodo de provisao além da expectativa de vida do ator .. 505 « Algumas aplicagées da teoria da preferéncia temporal oe 30S. 5. A conversibilidade dos bens de capital 6. A influéncia do passado sobre a aco .. 7. Acumulagdo, manuten¢do e consumo de capital . 8. A mobilidade do investidor 9. Moeda e capital; poupanga e investimento Capitulo XIX. Ataxadejuros 530 1, Ofenémeno do juro 2. Juro originario ..... 3. O nivel da taxa de juros 4. O juro originério numa economia mutavel. 5. 0 calculo do juro 532 538 539 S41 Capitulo XX. O juro, a expansio de crédito e o ciclo econémico 1. Os problemas 2. O componente empresarial na taxa bruta de juro do mercado 3. O prémio compensatério como um componente da taxa bruta de juros de mercad 4. O mercado de crédito... 5. Os efeitos das mudangas na relagdo monetéria sobre 0 juro originario 6. Os efeitos da inflacao e da expansfo de crédito sobre a taxa bruta de juros do mercado «A alegada auséncia de depressdes numa organizagdo totalitdria .., 7. Os efeitos da deflagdo e da contrag&o do crédito sobre a taxa bruta de juro do mercado .... A diferenga entre expansao do crédito e inflagao simples. 8. A teoria monetaria, ou do crédito circulante, relativa ao ciclo econémico.............. sececeeceeeeeeee STS 9. Efeitos da recorréncia do ciclo econémico 0 sobre a economia de mercado - O papel dos fatores de produgao disponiveis nos primeiros estagios do boom...... « Os erros das explicagdes nio-monetaérias do ciclo econémico 553 1 SSS 570 574 379 - 583 «985 Capitulo XXI. Trabalho e salarios - Trabalho introvertido e trabalho extrovertido . O trabalho como fonte de alegria ¢ de tédio - Osalario . Desemprego catalactico. . Saldrio bruto e sal4rio liquid Saldrios e subsisténcia ...... + Uma comparagio entre a explicagdo histori dos saldrios e o teorema da regressiio 7, Efeitos da desutilidade do trabalho sobre a disponibilidade de mao-de-obra . « Consideragao quanto a interpretagao popular da “Revolugdo Industrial” 8. Os efeitos das vicissitudes do mercado sobre os salério: 9. O mercado de trabalho... + O trabalho dos animais e dos escravos AuRuUNH Capitulo XXII. Os fatores de produgio originais de natureza nao humana 1. Observagées gerais relativas 4 teoria da rend: 2. O fator tempo na utilizagao da terra 3. A terra submarginal 4. A terra como local para se estar 5. O prego da terra... » O mito da terra Capitulo XXIIL. A realidade do mercado 1. A teoria e a realidade O papel do poder . O papel histérico da guerra e da conquista O homem como um dado da realidade . O periodo de ajustamento A limitagio do dircito de propri: relativos aos custos ¢ aos beneficios externos « As externalidades da criagdo intelectual .. « Privilégios ¢ quase-privilégios awaen Capitulo XXIV. Harmonia e conflito de interesses 1. A origem dos lucros e perdas no mercado .. 2. A limitagdo da progenitura ......c.... 3. A harmonia dos interesses “corretamente entendidos” 4. A propriedade privada .... 5. Os conflitos do nosso tempo QUINTA PARTE: A COOPERACAO SOCIAL SEM OMERCADO CapituloXXV. Aconstrugao imaginaria de uma sociedade socialista 1. A origem histérica da idéia socialista.. 2. A doutrina socialista 3. O carater praxeoldgico do socialismo Capitulo XXVI. A impossibilidade do cdlculo econémico no sistema socialista 1. O problema oo. ncscseeeeeeeeneceees 2. Erros passados na concepoaéo do problema 3. Sugestdes recentes para o célculo econémice socialista 4, Tentativa ¢ erro. 5. O quase-mercado 6. As equagdes diferenciais dae economia matematica SEXTA PARTE: A INTERVENCAO NO MERCADO Capitulo XXVILI. O governoeo mercado 1. A idéia de um terceiro sistema wo... esessssssseeececsccesereersenees 721 2. O intervencionismo 3. A delimitagio das fungdes governamentais 4. A probidade como padrio supremo das acées individuai 5. O significado de laissez-faire 6. A interferéncia direta do governo no consumo @COMUP GAO oe cesses essetecseessseeesneseseeseneesseeesnees Capitulo XXVIIE. O intervencionismo via tributagao 1. O imposto NEUtIO vee sees eseeeee 2. O imposto total 3. Objetivos fiscais e ndo fiscais da tributagio , 4. Os trés tipos de intervencionismo fiscal Capitulo XXIX. A restricdo da producao 1. A natureza da restrigfo 2. O prego da restrigao .... 3. A restrig&o como um privilégio 4. Arestrigéo como sistema econémico Capitulo XXX. A interferéncia na estrutura de pregos 1. O governo e a autonomia do mercado 2. Arcag4o do mercado 4 interferéncia do governo » ObservacGes sobre as causas do declinio da civilizagdo antiga 3. O salério minimo « Aspectos catalacticos do sindicalismo trabalhista Capitulo XXXI. Manipulagio da moedae do crédito 1. O governo e a moeda 2, O aspecto intervencionista da moeda de curso lega 3. A evolugdo dos métodos de manipulagao dos meios de pagamento 4. Os objetivos da desvatorizagao da moeda 5. A expansio do crédito......... « A quimera das politicas anticiclicas . 6. O controle de cambio e os acordos bilaterais. Capitulo XXXIL. Confisco e redistribuigéo 1. A filosofia do confisco 2. Areforma agraria . 3. Taxacdo confiscatéria « Taxagao confiscatéria e risco empresarial Capitule XXXII. Sindicalismo e corporativismo 1. O sindicalismo 2. As falacias do sindicalismo. 3. Influxos sindicalistas nas politicas econémicas populares 4. O socialismo de guildas ¢ 0 corporativismo .. Capitulo XXXIV. A economia de guerra 1. A guerra total 2. A guerra e a economia de mercado 830 3. Guerra e autarquia 4. A inutilidade da guerra 836 Capitulo XXXV. Estado provedor versus mercado 1. A acusagfo contra a economia de mercado .. 2. A pobreza 3. A desigualdade 4. A inseguranga... 5. A justiga social... Capitulo XXXVI. A crise do intervencionismo 1. Os frutos do intervencionismo... 2. Aexaustao do fundo de reserva .. 3. O fim do intervencionismo SETIMA PARTE: A IMPORTANCIA DA CIENCIA ECONOMICA Capitulo XXXVIL. O carater peculiar da ciéncia econémica 1. A singularidade da economia 2, Aeconomia e a opinido publica 3. A ilusdo dos antigos liberais . Capitulo XXXVIIL A importancia do estudo da economia 1, O estudo da economia 2. A economia como profissio 3. A previsdo econémica como profiss, 4. A economia e as universidades 5. Educago geral e economia ... 6. A economia € 0 cidadao... 7, A economia ¢ a liberdade .. Capitulo XXXIX. A economia e os problemas essenciais daexisténcia humana 1. A ciéncia e a vida 2. A economia c os julgamentos de valor ” 3. O conhecimento econémico e a ag&o humana... cece. .890 ACAO HUMANA UM TRATADO DE ECONOMIA INTRODUCAO 1. Economia e praxeologia A economia é a mais nova das ciéncias. E verdade que, nos ultimos duzentos anos, surgiram muitas ciéncias novas, além das disciplinas que cram familiares aos antigos gregos. Essas ciéncias novas, entretanto, eram apenas partes do conhecimento j4 existentes no sistema tradicional de ensino e que se tornaram aut6nomas. O campo de estudo foi melhor subdividido e tratado com novos métodos; foram, assim, descobertos novos campos de conhecimento que até ent@o nao tinham sido percebidos, ¢ as pessoas comecaram a ver as coisas por Angulos novos, diferentes daqueles de seus precursores, O campo mesmo nfo se expandiu. Masa economia abriu para as ciéncias humanas um dominio até entio inacessivel, no qual ndo se havia jamais pensado. A descoberta de uma regularidade na seqténcia e interdependéncia dos fendmenos de mercado foi além dos limites do sistema tradicional de saber, pois passou a incluir um conhecimento que nao podia ser considerado como légica, matematica, psicologia, fisica, nem como biologia. Durante muito tempo os filésofos ansiaram por identificar os fins que Deus oua Natureza estariam procurando atingir no curso da histéria humana. Tentaram descobrir a lei que governa o destino ea evolugdo do género humano. Mas mesmo aqueles cuja investigagao nfo sofria influéncia de tendéncias teolégicas tiveram seus esforgos inteiramente frustrados, porque estavam comprometidos com um método defeituoso. Lidavam com a humanidade como um todo ou através de conceitos holisticos tais como nagio, raga ou igreja. Estabeleciam de forma bastante arbitraria os fins que fatalmente determinariam o compor- tamento de tais conjuntos. Mas nao conseguiam responder satisfa- toriamente 4 indagagfo relativa a que fatores compeliriam os individuos ase comportarem de maneira tal que fizesse com que o suposto objetivo, pretendido pela inexordvel evolugao do conjunto, fosse atingido. Recorreram a artificios insensatos: interferéncia milagrosa da Divindade, seja pela revelagao, seja pela delegacdo a profetas ou lideres consagrados enviados por Deus; harmonia preestabelecida, predestinagfo; ou, ainda, influéncia de uma fabulosa e mistica “alma mundial” ou “alma nacional”. Houve quem falasse de uma “astticia da 2 ACAQHUMANA natureza”, que teria implantado no homem impulsos que o guiam involuntariamente pelos caminhos determinados pela Natureza. Outros filésofos foram mais realistas. Nao tentaram adivinhar os designios de Deus ou da Natureza. Encaravam as coisas humanas sob o Angulo do poder. Tinham a inteng4o de estabelecer regras de acdo politica, como se fossem uma técnica de governo e de condugio dos negécios publicos. As mentes mais especulativas formulavam planos ambiciosos para reformar ¢ reconstruir a sociedade. Os mais modestos se contentavam em coletar e sistematizar os dados de experiéncia historica. Todos estavam convencidos de que no curso de eventos sociais n&o existiam regularidades e invariancias de fenémenos, como ja havia sido descoberto no funcionamento do raciocinio humano e no encadeamento de fenémenos naturais. Nao tentavam descobrir as leis da cooperagao social, porque pensavam que o homem podia organizar a sociedade como quisesse. Se as condigées sociais no preenchessem os desejos dos reformadores, se suas utopias se mostrassem irrealizaveis, a culpa era atribuida a deficiéncia moral do homem. Problemas sociais eram considerados problemas éticos. O que era necessario para construir a sociedade ideal, pensavam eles, eram bons principios e cidadaos virtuosos. Com homens honrados, qualquer utopia podia ser realizada. A descoberta da inevitdvel interdependéncia dos fendmenos do mercado destronou essa opiniao. Desnorteadas, as pessoas tiveram de encarar uma nova visdo da sociedade. Aprenderam, estupefatas, que existe um outro aspecto, diferente do bom e do mau, do justo e do injusto, segundo o qual a ago humana podia ser considerada. Na ocorréncia de fenémenos sociais prevalecem regularidades 4s quais o homem tem de ajustar suas agGes, se deseja ser bem-sucedido. E initil abordar fatos sociais com a postura de um censor que 0s aprova ou desaprova segundo padrSes bastante arbitrérios e julgamentos de valor subjetivos. Devemos estudar as leis da agdo humana ce da cooperagio social como um fisico estuda as leis da natureza. Agdo humana e cooperagao social vistas como objeto de uma ciéncia que estuda relacdes existentes e néo mais como uma disciplina normativa de coisas que deveriam ser — esta foi arevolug4o com conseqiiéncias enormes para o conhecimento ¢ para a filosofia, bem como para a agdo em sociedade. Por mais de cem anos, entretanto, os efeitos dessa mudangaradical nos métodos de raciocinio foram bastante restritos porque se acreditava que s6 uma pequena parte do campo total da agdo humana seria afetada, qual seja, os fendmenos de mercado. Os economistas cldssicos, nas suas investigagSes, esbarraram num obstaculo que n4o conseguiram superar: o aparente paradoxo de valor. Sua teoria do valor cra defeituosa ¢ os forgou a restringirem 0 escopo de suaciéncia. Atéo final do século XIX a economia politica permaneceu uma ciéncia dos aspectos INTRODUCAO 3 “econdémicos” da agdo humana, uma teoria da riqueza e do egoismo. Lidava com a agdo humana apenas na medida em que esta fosse impelida pelo que era— muito insatisfatoriamente — considerada como motivagao pelo lucro, e acrescentava que existiam outras agdes humanas cujo estudo era tarefa de outras disciplinas. A transforma¢do do pensamento que os economistas classicos haviam iniciado sé foi levada as suas tltimas conseqténcias pela moderna economia subjetivista, que transformou a teoria dos pregos do mercado numa teoria geral da escolha humana. Durante muito tempo os homens nao foram capazes de perceber que a transi¢do da teoria classica de valor para a teoria subjetiva de valor era muito mais do que a substituigdo de uma teoria de mercado menos satisfatéria por outra mais satisfatoria. A teoria geral da escotha e preferéncia vai muito além dos limites que cingiam o campo dos problemas econdémicos estudados pelos economistas, de Cantillon, Hume e Adam Smith até John Stuart Mill. E muito mais do que simplesmente uma teoria do “aspecto econédmico” do esforgo humano e da luta para melhoria de seu bem-estar material. E a ciéncia de todo tipo de agao humana. Toda decisaéo humana representa uma escolha. Ao fazer sua escolha, o homem escolhe nfo apenas entre diversos bens materiais e servigos. Todos os valores humanos s4o oferecidos para op¢do. Todos os fins e todos os meios, tanto os resultados materiais como os ideais, 0 sublime e€ 0 basico, o nobre ¢ o ignébil s4o ordenados numa seq@éncia esubmetidos a uma decis4o que escolhe um e rejeita outro. Nada daquilo que os homens desejam obter ou querem evitar fica fora dessa ordenag4o numa escala unica de gradagao e de preferéncia. A moderna teoria de valor estende o horizonte cientifico e amplia 0 campo dos estudos econémicos. Da economia politica da escola classica emerge a teoria geral da agio humana, a praxeologia.' Os problemas econémicos ou 1. O termo praxeologia* foi empregado pela primeira vez em 1890, por Espinas. Ver seu artigo “Les origines de la technologie’, Revue philosophique, p. 114 - LIS, ano XV, vol. 30, e seu livro publicado em Paris, em 1897, com o mesmo titulo. * Praxeologta: do grego praxis ~ acdo, habito. pratica ~ ¢ logia - doutrina, leoria, ciéneia. Fa ciéneia ou a teoria geral da ago humana. Mises define agéo como “uma manifestagdo da vontade humana”; acdo como sendo um “comportamento propositado”. A praxeologia, a partir do conceito aprioristico da categoria ado, analisa as implicagdes plenas de todas as agdes. A praxcologia busca conhecimento que seja valido sempre que as condigdes correspondam exalamente aquelas consideradas na hipétese tedrica. Sua afirmacao e sua proposigéo nao decorrem da experiéncia: antecedem qualquer compreensao dos fatos hist6ricos. (xtratdo de Mises Made Easier. Perey L. Greaves Jr.. Nova lorgue., Free Market Books, 1974. (N.T.) 4 ACAO HUMANA catalacticos” esto embutidos numa ciéncia mais geral da qual nao podem mais ser separados. O exame dos problemas econémicos tem necessariamente de comegar por atos de escolha: a economia torna-se uma parte — embora até agora a parte elaborada — de uma ciéncia mais universal: a praxeologia. 2. O problema epistemolégico de uma teoria geral da agdo humana Na nova ciéncia, tudo parecia problematico. Ela era uma intrusa no sistema tradicional de conhecimento; as pessoas estavam perplexas e nao sabiam como classifica-la nem como designar o seu lugar. Por outro lado, estavam convencidas de que a inclusdo da economia no sistema de conhecimento nfo necessitava de uma rearrumacdo ou expansio do programa existente. Consideravam completo o seu sistema de conhe- cimento. Se a economia nao cabia nele, a falha sé podia estar no tra- tamento insatisfatério aplicado pelos economistas aos seus problemas. Rejeitar os debates sobre a esséncia, 0 escopo € o carater ldgico da economia, como se fossem apenas uma tergiversacdo escoldstica de professores pedantes, é prova de desconhecimento total do significado desses debates; ¢ um equivoco bastante comum supor que, enquanto pessoas pedantes desperdigavam seu tempo em conversas intiteis acerca de qual seria o melhor método de investigacdo, a economia em si mesma, indiferente a essas disputas fiteis, seguia tranqdilamente o seu caminho. No Methodenstreit,’ entre os economistas austriacos e a Escola Historicista Alema — que se auto-intitulava “guarda-costas intelectual 2. O termo cataldxia* ou a ciéncia das trocas foi usado primeiramente por Whately. Ver seu livro Introductory Lectures on Political Economy, Londres, 1831, p. 6. * Cataldxta — a teoria da economia de mercado, isto é, das relagdes de troca e dos precgos. Analisa todas as agdes baseadas no calculo monetdrio e rastreia a formulacgao de precos até a sua origem, ou seja, até o momento em que o homem fez sua escolha. Explica os precos de mercado como s4o e ndo como deviam ser. As leis da cataldxia nao sao julgameatos de valor; séo exatas, objetivas e de validade universal. (Extraido de Mises Made Easier. Percy Greaves Jr., op. cit. (N.T.) 3. Methodenstreit — disputa, argumento ou controvérsia sobre métodos; especificamente a controvérsia sobre o método e o cardter epistemotégico da economia na década de 80 do século XIX, entre os seguidores da Escola Austriaca de Economia, liderados por Carl Menger (1840-1921) e os proponentes da Escola Historicista Alema, liderados por Gustav von Schmoller (1838-1917). A Escola Historicista Alema sustentava que a histéria € a nica fonte de conhecimento sobre a agao humana e sobre assuntos econdmicos, e que sé no estudo dos dados e estatisticas histéricos a economia poderia formular suas leis e teorias. (N.T.) INTRODUCAO 5 da Casa de Hohenzollern” — bem como nas discussées entre a escola de John Bates Clark e 0 institucionalismo americano,* havia muito mais em jogo do que a simples questao sobre qual seria o melhor procedimento. A verdadeira questéo consistia em definir os fundamentos epistemoldgicos da ciéncia da ago humana e sua legitimagdo légica. Partindo de um sistema epistemoldgico para o qual o pensamento praxeoldgico era desconhecido e de uma ldgica que reconhecia como cientifica — além da logica e da matematica — apenas a historia e as ciéncias naturais empiricas, muitos autores tentaram negar a importancia ea utilidade da teoria econdémica. O historicismo pretendia substitui- la por histéria econémica; o positivismo recomendava substituf-la por uma ilusoria ciéncia social que deveria adotar a estrutura légica e a configura¢ao da mec4nica newtoniana. Ambas as escolas concordavam numa rejei¢4o radical de todas as conquistas do pensamento econémico. Era impossivel aos economistas permanecerem calados em face de todos esses ataques. O radicalismo dessa condenagio generalizada da economia foi logo superado por um niilismo ainda mais universal. Desde tempos imemoriais, os homens, ao pensar, falar e agir, consideraram a uniformidade e imutabilidade da mente humana como um fato inquestionavel. Toda investigacdo cientifica estava baseada nessa hipdtese. Nas discussdes sobre o carater epistemoldgico da economia, pela primeira vez na historia do homem, este postulado também foi negado. O marxismo afirma que a forma de pensar de uma pessoa é determinada pela classe a que pertence. Toda classe social tem sua logica propria. O produto do pensamento nfo pode ser nada além de um “disfarce ideoldgico” dos interesses egoistas da classe de quem elabora o pensamento. A tarefa de uma “sociologia do conhecimento” é desmascarar filosofias e teorias cientificas e expor o seu vazio “ideolégico”. A economia é um expediente “burgués”; os economistas so sicofantas do capital. Somente a sociedade sem classes da utopia socialista substituira as mentiras “ideolégicas” pela verdade. Este polilogismo, posteriormente, assumiu varias outras formas. O historicismo afirma que a estrutura légica da agio e do pensamento humano esta sujeita a mudangas no curso da evoluco historica. O 4. Institucionalismo americano — uma versao americana da Escola Historicista. Considera que as atividades bumanas sao determinadas por pressdes sociais irresistiveis, denominadas Instituigdes. Propde a intervengao politica como o melhor meio de mudar os hdbitos do homem e de aprimorar o género humano. Atribui o infortunio da humanidade ao capitalismo do tipo laissez-faire ¢ procura mudar as institui¢des pela adocdo de solucées coletivistas ¢ intervencionistas. (N.T.) 6 ACAO HUMANA polilogismo social atribui a cada raga uma ldgica propria. Finalmente, temos 0 irracionalismo sustentando que a razfo em si nado é capaz de elucidar as forgas irracionais que determinam o comportamento humano. Tais doutrinas vio muito além dos limites da economia. Elas questionam nfo apenas a economia e a praxeologia, mas qualquer conhecimento humano e o raciocinio em geral. Referem-se 4 matematica e 4 fisica, tanto quanto 4 economia. Parece, portanto, que a tarefa de refuta-las ndo cabe a nenhum setor especifico do conhecimento, mas a epistemologia e 4 filosofia. Essa é, aparentemente, a justificativa para a atitude daqueles economistas que tranquilamente continuam seus estudos sem se importar com problemas epistemoldégicos nem com as objegées levantadas pelo polilogismo e pelo irracionalismo. Ao fisico, pouco importa se alguém estigmatiza suas teorias como burguesas, ocidentais ou judias; da mesma maneira, o economista deveria ignorar a calinia e a difamagao. Deveria deixar os caes latirem e n4o prestar atengdo aos seus latidos. E conveniente que se lembre do ditado de Spinoza: Sane sicut lux se ipsamet tenebras manifestat sic veritas norma sui et falsi est. Entretanto, no que concerne 4 economia, a situagéo nado é bem a mesma que em relagdo 4 matematica e as ciéncias naturais. O polilogismo € o irracionalismo atacam a praxeologia e a economia. Embora suas afirmagées sejam feitas de maneira geral, referindo-se a todos os ramos do conhecimento, na realidade visam 4s ciéncias relativas 4 acao humana. Afirmam ser uma ilusdo acreditar que a pesquisa cientifica pode produzir resultados validos para gente de todas as épocas, ragas e classes sociais, e se comprazem em depreciar certas teorias fisicas e biolédgicas como burguesas ou ocidentais. Mas, se a solugdo de questées praticas necessita da aplicagdéo dessas doutrinas estigmatizadas, esquecem sua desaprovagido. A tecnologia da Unido Soviética utiliza sem escrupulos todos os resultados da fisica, quimica e biologia burguesas. Os fisicos e engenheiros nazistas nio desprezaram a utilizag4o de teorias, descobertas e invengées das ragas e nacdes “inferiores”. O comportamento dos povos de todas as ragas, religides, nagdes, grupos lingiiisticos ou classes sociais demonstra claramente que eles nao endossam as doutrinas do polilogismo e do irracionalismo no que concerne 4 matematica, a ldgica e as ciéncias naturais. Mas, no que diz respeito a praxeologia e 4 economia, as coisas se passam de maneira inteiramente diferente. O principal motivo do desenvolvimento das doutrinas do polilogismo, historicismo e 5. Em portugués, “Sem diivida que assim como a luz se manifesta a st mesma ¢ as trevas, da mesma forma a verdade €. ao mesmo tempo, a norma de sie do false”. (NLT) INTRODUCAO 7 irracionalismo foi proporcionar uma justificativa para desconsiderar os ensinamentos da economia na determinagio de politicas econdémicas. Os socialistas, racistas, nacionalistas e estatistas fracassaram nas suas tentativas de refutar as teorias dos economistas e demonstrar 0 acerto de suas doutrinas espurias. Foi precisamente essa frustragéo que os impeliu a negar os principios logicos e epistemoldgicos sobre os quais se baseia o raciocinio humano, tanto nas atividades cotidianas como na pesquisa cientifica. Néo é admissivel desembaragar-se dessas obje¢des meramente com bases nos motivos politicos que as inspiraram. A nenhum cientista é permitido presumir de antemao que a desaprovagao de suas teorias deve ser infundada porque seus criticos estao imbuidos de paixio ou preconceito partidario. Ele deve responder a cada censura sem considerar seus motivos subjacentes ou sua origem. Nao menos admissivel é silenciar face 4 freqtiente opinido de que os teoremas de economia so validos apenas em condigées hipoteticas que nfo se verificam na vida real e que, portanto, s4o intteis para a compreenso da realidade. E estranho que algumas escolas aprovem esta opiniao e, ao mesmo tempo, calmamente, desenhem suas curvas e formulem suas equagoes. Nao se importam com o significado do seu raciocinio e nem como este sé relaciona com o mundo real da vida e da ago. Essa atitude é, sem duvida, indefensdvel. O primeiro dever de qualquer investigagdo cientifica ¢ descrever exaustivamente e definir todas as condigdes e suposigées, com base nas quais pretende validar suas afirmagées. E um erro considerar a fisica como um modelo e um padr4o para a pesquisa econdmica. Mas as pessoas comprometidas com esta falécia deviam ter aprendido pelo menos uma coisa: nenhum fisico jamais acreditou que o esclarecimento de algumas condigées e suposi¢ées de um teorema da fisica esteja fora do campo de interesse da pesquisa da fisica. A quest4o central que a economia tem obrigagao de responder é sobre a relacdo entre suas afirmagées ¢ a realidade da acio humana, cuja compreensio é 0 objeto dos estudos da economia. Portanto, compete 4 economia examinar minuciosamente a afirmativa segundo a qual seus ensinamentos s4o validos apenas para 0 sistema capitalista, durante 0 curto e jd esvaecido periodo liberal da civilizagio ocidental. E dever da economia, e de nenhum outro campo do saber, examinar todas as objegdes levantadas de diversos Angulos contra a utilidade das afirmativas da teoria econédmica para a elucidagao dos problemas da agado humana. O sistema de pensamento econémico deve ser construido de tal maneira que se mantenha a prova de qualquer critica por parte do irracionalismo, do historicismo, do panfisicalismo, do behaviorismo e de todas as modalidades de polilogismo. E uma situacdo intoleravel a de que os economistas ignorem os argumentos que 8 ACAOHUMANA diariamente so promovidos para demonstrar a futilidade e o absurdo dos esforcos da economia. No se pode mais continuar lidando com os problemas econémicos da maneira tradicional. E necessério construir a teoria catalactica sobre a sdlida fundagdo de uma teoria geral da ago humana, a praxeologia. Este procedimento nao apenas a proteger4 contra inimeras criticas falaciosas, mas possibilitaré o esclarecimento de muitos problemas que até agora nfo foram adequadamente percebidos e, menos ainda, satisfatoriamente resolvidos. Especialmente no que se refere ao problema fundamental do calculo econdémico. 3. Teoria econémica e a pratica da agdo humana Ecomuma muita gente censurar a economia por ser retrograda. Ora, é obvio que a nossa teoria econémica nao € perfeita. Nao existe perfeigAo no conhecimento humano, nem em qualquer outra conquista humana. A onisciéncia é negada ao homem. A teoria mais elaborada que parece satisfazer completamente a nossa sede de conhecimento pode um dia ser emendada ou superada por uma nova teoria. A ciéncia ndo nos da certeza final e absoluta. Apenas nos da convicgao dentro dos limites de nossa capacidade mental e do prevalescente estado do conhecimento cientifico. Um sistema cientifico nfo é sendo um estagio na permanente busca de conhecimento. E necessariamente afetado pela insuficiéncia inerente a todo esforgo humano. Mas reconhecer estes fatos nao implica que o estagio atual da economia seja retrégrado. Significa apenas que a economia € algo vivo — e viver implica tanto imperfei¢4o como mudanga. A acusa¢ao do alegado atraso é levantada contra a economia a partir de dois pontos de vista diferentes. Existem, de um lado, alguns naturalistas e fisicos que censuram a economia por nao ser uma ciéncia natural e ndo aplicar os métodos e procedimentos de laboratério. Um dos propésitos deste tratado é demolir a falacia dessas idéias. Nestas observagées introdutorias, sera suficiente dizer algumas palavras sobre seus antecedentes psicolégicos. E comum, a quem tem mentalidade estreita, depreciar diferencas encontradas nas outras pessoas. O camelo, na fabula, desaprova todos os outros animais por nao terem uma bossa, ¢ os ruritanios criticam os laputAnios por nao serem ruritanios. O pesquisador que trabalha em laboratério considera este trabalho como a unica fonte valida para investigaco, e equacdes diferenciais como a tinica forma adequada de expressar os resultados do pensamento cientifico. E simplesmente incapaz de perceber os problemas epistemoldgicos da agdo humana. Para ele, a economia nao pode ser nada além de uma espécie de mec4nica. Ha outros que asseguram que algo deve estar errado com as ciéncias INTRODUCAO 9 sociais, porque as condig6es sociais sdo insatisfatérias. As ciéncias sociais conseguiram resultados espantosos nos ultimos duzentos ou trezentos anos e a aplicagdo pratica desses resultados foi o que deu origem a uma melhoria, sem precedentes, no padrdo de vida em geral. Mas, dizem esses criticos, as ciéncias sociais falharam completamente no que diz respeito a tornar mais satisfatérias as condi¢Ses sociais. Nao eliminaram a misériae a fome, crises econémicas e desemprego, guerra e tirania. Sdo estéreis e nio contribuiram para a promocao da liberdade e do bem-estar geral. Esses rabugentos nado chegam a perceber que o tremendo progresso da tecnologia de produgao e o conseqtiente aumento de riqueza e bem- estar sé foram possiveis gragas 4 adoc&o daquelas politicas liberais que representavam a aplicagdo pratica dos ensinamentos da economia. Foram as idéias dos economistas classicos que removeram os controles que velhas leis, costumes e preconceitos impunham sobre o progresso tecnoldgico, libertando 0 génio dos reformadores da camisa-de-forga das guildas, da tutela do governo e das pressdes sociais de varios tipos. Foram essas idéias que reduziram o prestigio de conquistadores e¢ expropriadores e demonstraram o beneficio social decorrente da atividade empresarial. Nenhuma das grandes invengdes modernas teria tido utilidade pratica se a mentalidade da era pré-capitalista nao tivesse sido completamente demolida pelos economistas. O que é comumente chamado de “revolugdo industrial” foi o resultado da revolucdo ideoldégica efetuada pelas doutrinas dos economistas. Foram eles que explodiram velhos dogmas: que é desleal e injusto superar um competidor produzindo melhor e mais barato; que é iniquo desviar-se dos métodos tradicionais de produg4o; que as maquinas sio um mal porque trazem desemprego; que é tarefa do governo evitar que empresarios fiquem ricos e proteger o menos eficiente na competicéo com o mais eficiente; que reduzir a liberdade dos empresérios pela compulsdo ou coergdo governamental em favor de outros grupos sociais éum meio adequado para promover o bem-estar nacional. A economia politica inglesa e a fisiocracia francesa indicaram o caminho do capitalismo moderno. Foram elas que tornaram possivel o progresso decorrente da aplicagdo das ciéncias naturais, proporcionando as massas beneficios nunca sequer imaginados. O que ha de errado com a nossa época é precisamente a difundida ignorancia do papel desempenhado por essas politicas de liberdade econémica na evolugdo tecnolégica dos ultimos duzentos anos. As pessoas tornaram-se prisioneiras da falacia segundo a qual o progresso nos métodos de produg4o foi contempor4neo 4 politica de laissez-faire apenas por acidente. [ludidos pelos mitos marxistas, consideram o estagio atual de desenvolvimento como o resultado da acdo de misteriosas 10 ACAO HUMANA “forgas produtivas” que nfo dependem em nada de fatores ideoldégicos. A economia classica, estdo convencidos, ndo foi um fator no desenvol- vimento do capitalismo, mas, ao contrario, foi seu produto, sua “superestrutura ideologica”, foi uma doutrina destinada a defender os interesses espurios dos exploradores capitalistas. Consequentemente, a abolig&o do capitalismo e a substituigdo da economia de mercado e da livre iniciativa pelo socialismo totalitdrio nio prejudicaria o ulterior progresso da tecnologia. Ao contrdrio, promoveria o desenvolvimento tecnoldgico pela remogio dos obstaculos que os interesses egoistas dos capitalistas colocaram no seu caminho. O trago caracteristico dessa era de guerras destrutivas e de desintegragao social é a revolta contra a economia. Thomas Carlyle denominava a economia de “ciéncia triste” e Karl Marx estigmatizou os economistas como sicofantas da burguesia. Charlatdes — exaltando suas pocdes magicas e seus atalhos para o paraiso terrestre— se satisfazem em desdenhar a economia, qualificando-a como “ortodoxa” ou “reaciondria”. Demagogos se orgulham do que chamam de suas vitérias sobre a economia. O homem “pratico” alardeia sua ignorancia em economia e seu desprezo pelos ensinamentos de economistas “teéricos”. As politicas econémicas das ultimas décadas tém sido o resultado de uma mentalidade que escarnece de qualquer teoria econédmica bem fundamentada e glorifica as doutrinas espurias de seus detratores. O que €é conhecido como economia “ortodoxa” nao é ensinado nas universidades da maior parte dos paises, sendo virtualmente desconhecida dos lideres politicos e escritores. A culpa da situagdo econémica insatisfatéria certamente n4o pode ser imputada a ciéncia que os governantes e massas ignoram e desprezam. E preciso que se enfatize que o destino da civilizagdo moderna desenvolvida pelos povos de raga branca nos ttlimos duzentos anos esta inseparavelmente ligado ao destino da ciéncia econdmica. Esta civilizagio péde surgir porque esses povos adotaram idéias que resultavam da aplicagdo dos ensinamentos da economia aos problemas de politica econédmica. Necessariamente sucumbird se as nagdes continuarem a seguir o rumo que tomaram, enfeiticadas pelas doutrinas que rejeitam o pensamento econémico. E verdade que a economia é uma ciéncia tedrica e, como tal, se abstém de qualquer julgamento de valor. Nao lhe cabe dizer que fins as pessoas deveriam almejar. E uma ciéncia dos meios a serem aplicados para atingir os fins escolhidos e ndo, certamente, uma ciéncia para escolha dos fins. Decis6es finais, a avaliag4o e a escolha dos fins, nao pertencem ao escopo de nenhuma ciéncia. A ciéncia nunca diz a alguém como deveria agir; meramente mostra como alguém deve agir se quiser alcangar determinados fins. INTRODUCAO ll Para muita gente pode parecer que isso é muito pouco, e que uma ciéncia limitada 4 investigagdo do é, e incapaz de expressar um julgamento de valor sobre os mais elevados ¢ definitivos fins nao tem qualquer importancia para a vida e a acdo humana. Isto também é um erro. Entretanto, o desmascaramento desse erro n4o é tarefa destas notas introdutorias. E um dos objetivos deste tratado. 4. Resumo Estas observacées preliminares se faziam necessérias a fim de explicar por que este tratado coloca os problemas econémicos no vasto campo de uma teoria geral da agio humana. No estagio atual, tanto do pensamento econdmico como das discussdes politicas acerca dos pro- blemas fundamentais da organizac4o social, nado é mais possivel isolar 0 estudo dos problemas catalacticos. Estes problemas s4o apenas um segmento de uma ciéncia geral da agdo humana, e s6 assim podem ser tratados. PRIMEIRA PARTE ACAO HUMANA 1.0 AGENTE HOMEM! 1. Acdo propositada e reacio animal A gio humana é comportamento propositado. Também podemos dizer: ac¢ao é a vontade posta em funcionamento, transformada em for¢a motriz; é procurar alcangar fins e objetivos; é a significativa resposta do ego aos estimulose as condi¢Ses do seu meio ambiente; é 0 ajustamento consciente ao estado do universo que lhe determina a vida. Estas parafrases podem esclarecer a defini¢io dada e prevenir possiveis equivocos. Mas a propria definigéo é adequada e nao necessita de complemento ou comentario. Comportamento consciente ou propositado contrasta acentuada- mente com comportamento inconsciente, isto é, os reflexos ¢ as respostas involuntarias das células e nervos do corpo aos estimulos. As pessoas tém uma tendéncia para acreditar que as fronteiras entre comportamento consciente e a reagao involuntaria das forgas que operam no corpo humano so mais ou menos indefinidas. Isto é correto apenas na medida em que, as vezes, nao é facil estabelecer se um determinado compor- tamento deve ser considerado voluntario ou involuntario. Entretanto, a disting4o entre consciéncia e inconsciéncia é bastante nitida e pode ser bem determinada. O comportamento inconsciente dos érgaos e células do organismo, para o nosso ego, é um dado como qualquer outro do mundo exterior. O homem, ao agir, tem que levar tudo em conta: tanto o que se passa no seu proprio corpo quanto outros dados externos, como por exemplo as condigdes meteorologicas ou as atitudes de seus vizinhos. Existe, é claro, uma certa margem dentro da qual o comportamento propositado pode neutralizar o funcionamento do organismo. E factivel, dentro de certos limites, manter o corpo sob controle. As vezes o homem pode conseguir, pela sua forga de vontade, superar a doenga, compensar 1. A cxpressdo acting man é freqiiente em toda esta obra de Ludwig von Mises. Por seu poder de sintese — que facilita a sintaxe sem trair a semadntica — preferimos traduzi-la literalmente por “agente homem™, em vez de utilizar as formas “homem em acao™ ou “homem que age”, como o fizeram as traducdes francesa e espanhola, (N.T.) O AGENTE HOMEM 13 insuficiéncias inatas ou adquiridas de sua constitui¢4o fisica, ou suprimir reflexos. Até onde isto seja possivel, estende-se 0 campo de acdo propositada. Se um homem se abstém de controlar reagdes involuntarias de suas células e centros nervosos, embora pudesse fazé-lo, seu comportamento, do nosso ponto de vista, é propositado. O campo da nossa ciéncia é a agéo humana e no os eventos psico- logicos que resultam numa agao. E isto, precisamente, que distingue a teoria geral da agéo humana, praxeologia, da psicologia. O objeto da psicologia s&o os fatores internos que resultam ou podem resultar numa determinada acgio. O tema da praxeologia é a agio como tal. E isto também que estabelece a relago entre a praxeologia e o conceito psicoanalitico do subconsciente. A psicandlise também € psicologia, e nao investiga a agdo, mas as forgas e fatores que impelem o homem a agir de uma determinada maneira. O subconsciente psicanalitico é uma categoria psicoldgica e nao praxeolégica. Quer uma ago provenha de uma clara deliberagdo, quer provenha de memérias esquecidas e desejos reprimidos que, das profundezas onde se encontram, dirigem a vontade, sua natureza no se altera. Estdo agindo tanto o assassino, cujo impulso subconsciente (o id) conduz ao crime, quanto o neurético, cujo Com- portamento aberrante parece sem sentido para o observador superficial; ambos, como todo mundo, procuram atingir certos objetivos. E mérito da psicandlise ter demonstrado que mesmo o comportamento de neurdéticos e psicopatas tem um sentido, que eles também agem com 0 objetivo de alcangar fins, embora nds, que nos achamos normais e s4os, consideremos sem sentido o raciocinio que lhes determina a escolha de fins, e inadequados os meios que escolhem para atingir esses fins. O termo “inconsciente”, como usado pela praxeologia, e os termos “subconsciente” e “inconsciente”, como aplicados pela psicanélise, pertencem a dois diferentes sistemas de pensamento e pesquisa. A praxeologia, néo menos que outros campos do conhecimento, deve muito a psicanalise. Portanto, é ainda mais necessério perceber bem a linha que separa a praxeologia da psicologia. Agdo nfo é simplesmente uma manifestagio de preferéncia. O homem também manifesta preferéncia em situagdes nas quais eventos € coisas sdo inevitdaveis ou se acredita que o sejam. Assim sendo, o homem pode preferir bom tempo a chuva e pode desejar que o sol disperse as nuvens. Aquele que apenas almeja ou deseja nfo interfere ativamente no curso dos acontecimentos nem na formag4o de seu destino. Por outro lado, o agente homem escolhe, determina e tenta alcangar um fim. Entre duas coisas, nio podendo ter ambas, seleciona uma e desiste da outra. Agio, portanto, sempre implica tanto obter como renunciar. Expressar desejos e esperangas ou anunciar uma ago planejada 14 ACAO HUMANA podem ser formas de agdo, na medida em que tenham o proposito de atingir um determinado objetivo. Mas ndo devem ser confundidas com as acdes a que se referem, nao so idénticas as agdes que anunciam, recomendam ou rejeitam. Ag4o é algoreal. O que conta € o comportamento total do homem e no sua conversa sobre agées planejadas, mas nao realizadas. Por outro lado, é preciso distinguir claramente agdo e trabalho. Agao significa o emprego de meios para atingir fins. Geralmente, um dos meios empregados € o trabalho do agente homem. Mas nem sempre é assim. Em circunstancias especiais, apenas uma palavra é necessaria: quem emite ordens ou proibigdes pode estar agindo sem que esteja realizando trabalho. Falar ou nfo falar, sorrir ou ficar sério podem ser ages. Consumir e divertir-se sdo agSes tanto quanto abster-se do consumo e do divertimento que nos s4o acessiveis. A praxeologia, portanto, nao distingue o homem “ativo” e enérgico do homem “passivo” ¢ indolente. O homem vigoroso que diligentemente se empenha em melhorar suas condigdes age tanto quanto o homem letérgico que indolentemente aceita as coisas como lhe acontecem. Porque nao fazer nada e ser indolente também s4o agdes-e também determinam o curso dos eventos. Onde quer que haja condi¢des para interferéncia humana, o homem age, pouco importando se o faz por meio de aco ou omissdo. Aquele que aceita o que poderia mudar age tanto quanto aquele que interfere no sentido de obter um resultado diferente. Um homem que se abstém de influenciar o funcionamento de fatores psicoldgicos e instintivos também age. Ago é nfo somente fazer, mas, ndo menos, omitir aquilo que possivelmente poderia ser feito. Podemos dizer que ag4o € a manifestagao da vontade humana. Mas isto ndo acrescentaria nada ao nosso conhecimento. Porque o termo vontade significa nada mais do que a faculdade do homem de escolher entre diferentes situagées; preferir uma, rejeitar outra, e comportar-se em conson4ncia com a decisao tomada, procurando alcangar a situagdo escolhida e renunciando a outra. 2. Os pré-requisitos da agio humana Chamamos contentamento ou satisfagdo aquele estado de um ser humano que nao resulta, nem pode resultar, em alguma agdo. O agente homem esta ansioso para substituir uma situag4o menos satisfatéria por outra mais satisfatéria, Sua mente imagina situagdes que the sfo mais propicias, e sua acdo procura realizar esta situa¢4o dese} ada. O incentivo que impele o homem 4 agio € sempre algum desconforto.~ > Um homem 2. Cf. Locke. An Essay Concerning Human Understanding, Oxford, Fraser, 1894, vol. 1, p. 334-333: Leibniz, Nouveaux essais sur Ventendement humain. Flammarion. p.119. O AGENTE HOMEM 15 perfeitamente satisfeito com a sua situagio nao teria incentivo para mudar as coisas. Nao teria nem aspiracdes nem desejos; seria per- feitamente feliz. NSo agiria; viveria simplesmente livre de preocupagoes. Mas, para fazer um homem agir, nfo bastam o desconforto e a imagem de uma situagdo melhor. Uma terceira condigao ¢ necessaria: a expectativa de que um comportamento propositado tenha o poder de afastar ou pelo menos aliviar o seu desconforto. Na auséncia desta condigiio, nenhuma ag4o ¢ vidvel. O homem tem de se conformar com o inevitavel. Tem de se submeter a sua sina. Estas sio as condigdes gerais da agdéo humana. O homem ¢ um ser que vive submetido a essas condigSes. E ndo apenas homo sapiens, mas também homo agens, Seres humanos que, por nascimento ou por defeitos adquiridos, sio irremediavelmente incapazes de qualquer acgio (no estrito senso do termo e nao apenas no senso legal), praticamente nfo sao humanos. Embora as leis e a biologia os considerem homens, falta- lhes a caracteristica essencial do homem. A crianga recém-nascida também no é um ser agente. Ainda nao percorreu o caminho desde a concepgio até o pleno desenvolvimento de suas capacidades. Mas, ao final desta evolugd4o, torna-se um ser agente. Sobre a felicidade Coloquialmente dizemos que alguém é “feliz” quando consegue atingir seus fins. Uma descrigdo mais adequada deste estado seria dizer que est4 mais feliz do que estava antes. Entretanto, néo hé nenhuma objegao valida ao costume de definir a agdéo humana como a busca da felicidade. Mas devemos evitar equivocos geralmente accitos por todos. O objetivo final da agéo humana ¢, sempre, a satisfagdo do desejo do agente homem. Nao ha outra medida de maior ou menor satisfagado, a nio ser ojulgamento individual de valor, diferente de uma pessoa para outra, € para a mesma pessoa em diferentes momentos. O que faz alguéem sentir-se desconfortaével, ou menos desconfortavel, é estabelecido a partir de critérios decorrentes de sua propria vontade e julgamento, de sua avaliacdo pessoal e subjetiva. Ninguém tem condigées de determinar o que faria alguém mais feliz. Estabelecer este fato de forma alguma o identifica com as antiteses de egoismo e altruismo, de materialismo e idealismo, de ateismo e religido. Ha pessoas cujo unico propdsito é desenvolver as potencialidades de seu proprio ego. Ha outras para as quais ter consciéncia dos problemas de seus semelhantes Ihes causa tanto desconforto ou até mesmo mais desconforto do que suas préprias caréncias. Ha pessoas que 16 ACAO HUMANA desejam apenas a satisfag#o de seus apetites para a relagdo sexual, comida, bebida, boas casas e outros bens materiais. Mas existem aquelas que se interessam mais por satisfagdes comumente chamadas de “ideais” ou “elevadas”. Existem pessoas ansiosas por ajustar suas agdes as exigéncias da cooperacdo social; existem, por outro lado, pessoas refratérias, que desprezam as regras da vida social. Ha pessoas para quem o objetivo final da peregrinacdo terrestre é a preparagdo para uma vida beata. Ha outras que nao acreditam nos ensinamentos de nenhuma religido e nio permitem que suas agdes sejam influenciadas por eles. A praxeologia é indiferente aos objetivos finais da ago. Suas conclusées sao validas para todos os tipos de agdo, independentemente dos objetivos pretendidos. E uma ciéncia de meios e ndo de fins. Emprega o termo felicidade no sentido meramente formal. Na terminologia praxeoldgica, a proposig4o “o Unico objetivo do homem é alcangar a felicidade” é tautol6gica. Nao implica nenhuma afirmagao sobre a situagdo da qual o homem espera obter felicidade. O conceito segundo o qual o incentivo da atividade humana é sempre algum desconforto e que seu objetivo é sempre afastar tal desconforto tanto quanto possivel, ou seja, fazer o agente homem sentir-se mais feliz, é a esséncia dos ensinamentos do eudemonismo e do hedonismo. A ataraxia epicurista € aquele estado de perfeita felicidade e contentamento que toda atividade humana pretende alcangar, sem nunca atingi-lo plenamente. Face 4 importancia desta percep¢do, tem pouco valor o fato de que muitos representantes dessa filosofia tenham falhado em reconhecer o caréter meramente formal das nogédes de “dor” e “prazer” e lhes tenham dado um significado carnal e material. As doutrinas teolégicas e misticas, bem como as de outras escolas de uma ética heteronémica, nao abalaram a esséncia do epicurismo porque nao puderam levantar outras objegdes além de sua negligéncia em relagdo aos prazeres “nobres” e “elevados”. E verdade que os escritos de muitos dos primeiros defensores do eudemonismo, do hedonismo e do utilitarismo sdo, em muitos aspectos, passiveis de mal-entendido. Mas a linguagem de fildsofos modernos e, mais ainda, aquela dos economistas modernos € tio precisa e direta que nado deixa margem a equivocos. Sobre instintos e impulsos O método utilizado pela sociologia dos instintos nfo favorece a compreensio dos problemas fundamentais da agdo humana. Essa escola classifica os varios objetivos concretos da ag¢do humana e atribui a cada classe um instinto especifico como seu propulsor. O homem é considerado um ser guiado por varios instintos e propensées inatos. Supde-se que esta OAGENTE HOMEM 17 explicagdo arrasa de uma vez por todas com os ensinamentos odiosos da economia e da ética utilitéria, Entretanto, Feuerbach ja observara corretamente que todo instinto é um instinto para a felicidade.” O metodo usado pela psicologia do instinto e pela sociologia do instinto consiste numa classificagdo arbitraria dos objetivos imediatos da agdo euma hipéstase de cada um deles. Onde a praxeologia diz que 0 objetivo de uma ago é remover algum desconforto, a psicologia do instinto o atribui 4 satisfagdo de um impulso instintive Muitos defensores da escola do instinto estéo convencidos de terem provado que a agio nfo é determinada pela raz4o, mas provém das insondaveis profundezas das forgas, impulsos, instintos e propensdes inatas que ndo sao passiveis de qualquer explicag&o racional. Estado certos de terem conseguido revelar a superficialidade do racionalismo e desacreditar a economia, comparando-a a um tecido de conclusdes falsas extraidas de falsas pressuposigées psicolégicas.* No entanto, racionalismo, praxcologia ¢ economia nfo lidam com as causas ¢ objetivos finais da agdo, mas com os meios usados para aconsecugdo do fim pretendido. Por mais insondaveis que sejam as profundezas de onde emerge um impulso ou instinto, os meios que o homem escolhe para satisfazé-lo sdo determinados por uma considerag4o racional de custos ¢ beneficios.” Quem age por impulso emocional também exerce uma agdo. O que distingue uma acdo emocional de outras ag&es é a avaliacHo do seu custo e do seu beneficio, Emogdes perturbam as avaliagées. Para quem age arrebatado pela paixdo, 0 objetivo parece mais desejdvel eo prego aser pago parece menos oneroso do que quando avaliado friamente. Ninguém contesta que, mesmo agindo emocionalmente, o homem avalia meios e fins ¢ dispSe-se a pagar um preco maior pela obediéncia ac impulso apaixonado. Punir de forma mais suave ofensas criminais cometidas num estado de excitagdo emocional ou de intoxicagao do que se punem outras ofensas equivale a encorajar tais excessos. A ameaga de severa retaliag&o nao deixa de frear mesmo as pessoas guiadas por uma paixdo aparentemente irresistivel. Interpretamos 0 comportamento animal com a pressuposi¢&o de que o animal cede aos impulsos que prevalecem no momento. Como 3. CE Feuerbach, Sammiliche Werke. Stuttgart. Bolin and Jodl. 1997, vol. 10, p. 231. 4. CE William McDougall. Am Introduction of Social Psychology. 14. ed. Boston, 1921, p. 11. 5. CF Mises, Eptstemological Problems of Economics, Prad. G. Reisman, Nova lorque, 1960, p.52 € segs.

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