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Otto Maria Carpeaux O Canto Do Violino e Outros Ensaios Inéditos 2016 Livraria Danúbio Editora Li
Otto Maria Carpeaux O Canto Do Violino e Outros Ensaios Inéditos 2016 Livraria Danúbio Editora Li
O noite,
regente do coro de S. Tomás morreu às 9 horas e 15 minutos da
no dia 28 de julho de 1750. Nos últimos tempos fora grande sua
solidão de cego. Tinham-no apreciado como o maior organista e pianista do
século. Ainda há pouco o rei Frederico II, da Prússia, interrompera uma
sessão do Conselho de Estado para receber “o velho Bach”. Mas o rei já não
gostava da arte contrapontística que os próprios filhos do mestre achavam
seca, matemática, “sem sentimento”. O velho Bach fora solitário como, no
seu Concerto n.º 1 em ré menor, a voz do pianoforte em meio das ondas do
acompanhamento que parece o próprio Universo, transformado em música.
Agora, 29 de julho de 1750, esses dedos tão admirados não tocarão mais.
Só ficarão uns ossos. O próprio túmulo em cima desses ossos será
esquecido; não puseram lá o nome. Ficou apenas uma palavra
incompreendida, um flatus vocis, o nome Bach.
Mas o nome B-A-C-H, igual a Si bemol-Lá-Dó-Si, é mesmo um tema
musical. Para reviver só precisa de um ritmo, talvez daquele ritmo de
marcha que caracteriza as invenções melódicas do mestre, símbolo da
caminhada do homem por esse vale de lágrimas e também da vida póstuma
de João Sebastião Bach.
A glória do virtuose Bach, como de todos os virtuoses, mal poderia
sobreviver à hora de morte. A do compositor nem tinha nascido, por
motivos musicais e outros. Aos alunos o mestre ditara no caderno: “A glória
de Deus é o único fim e objetivo da música e do baixo contínuo em
especial”. Mas junto com o regente de S. Tomás desapareceu também o
baixo contínuo18, esse recurso supremo da música barroca. Na nova arte
sinfônica de Haydn o tema cantabile já não precisava de contrapontos,
ficando os instrumentos livres para acompanhá-lo, desaparecendo o baixo
contínuo e com ele todas as obras que dele se serviram, caindo no abismo
do esquecimento revolucionário assim como o século XVIII inteiro foi
devorado pela Revolução. Outros tempos. Por pouco Bach, visitando o rei
em Potsdam, teria lá encontrado Voltaire. Anacrônica a idéia do mestre de
reformar a música eclesiástica. Em vez de renová-la tinha conferido
dignidade sacral à música profana da sala de concerto (v. os estudos de L.
Schrade, no Journal of the History of Ideas, VII/2,19 e de H. Keller, in:
Universitas, IV20). O herdeiro, muito dissemelhante, dessa Ars Nova dirá,
literalmente: “Baixo Continuo e Religião são coisas acabadas sobre as quais
não discuto” – disse isso o maior poeta musical, Beethoven.
A vida póstuma de João Sebastião Bach não é assunto para divagações
poéticas. Bach não foi poeta, antes um arquiteto que calculava suas
catedrais invisíveis. Para escrever-lhe a biografia post mortem é preciso
ficar tão sóbrio como ele mesmo na famosa carta a Erdmann (28 de outubro
de 1730), na qual, expondo suas atividades musicais, não se esquece de
calcular as gratificações que recebe por “serviços fúnebres ordinários” e por
“cadáveres extraordinários”. Seu próprio funeral foi apenas ordinário. Os
originais dos Concertos de Brandemburgo, então ainda inéditos, só foram
salvos pela intervenção de um esquisitão: tinham-nos vendido por 30
tostões como papel de embrulho.
Esquisitões também foram os que editaram, no começo do novo século, as
Variações de Goldberg e o Magnificat. “Enfin, Mendelssohn vint”, regendo
pela primeira vez, em 1829, a Paixão de São Mateus. Descobriu-se, no
“matemático seco”, um mundo de sentimentos. Alguns sub-românticos
honestos, Adolf Marx, Rochlitz e outros, dedicaram-se à edição das
Cantatas: depois das fugas vieram as árias, a dramaticidade do mestre. Esse
Bach do século XIX leva diretamente à dramaturgia sinfônica de Wagner. É
o Bach dos alemães.
Duvidaram se ele “estava consciente do seu gênio”. O Bach à maneira do
século passado é, como Hegel, um gênio universal vestido de filisteu
alemão, pequeno-burguês. Em 1894, destruindo o cemitério de São Tomás
em Leipzig para construir no lugar um edifício monstruosamente moderno,
descobriram o esqueleto. Peritos em medicina legal e menos peritos em
escultura fabricaram, conforme o crânio, um busto que serviu, por sua vez,
de modelo a um retrato. Surgiram retratos, esquecidos, da época. Pela
primeira vez desde o 28 de julho de 1750 o olhar intenso, “quase hostil”
(Manuel Bandeira) do gênio fitou o mundo. Acabara a época do
sentimentalismo.
Só no século XX o “velho Bach” começou a influenciar diretamente a
produção musical. O dinamismo dos concerti grossi21 barrocos renasceu em
Hindemith. Stravinsky mandou tocar os Concertos de Brandemburgo “com
a precisão de uma máquina de costura”. Até a grã-finagem ficou interessada
quando Huxley citou, em Contraponto, a Suite n.º 2.22 É o Bach dos
modernos.
Mais do que moderno, futuro, foi o jovem suíço Wolfgang Graeser, gênio
que acabou com 21 anos suicidando-se: coordenou e instrumentou a
esquecida Arte da fuga, a arquitetura imensa que termina com a fuga trina
sobre Si bemol-Lá-Dó-Si (B-A-C-H), interrompida no meio para ceder ao
coral: “Perante o trono de Deus apareço ...”.
Mas o assunto não é próprio para divagações poéticas. Bach é como
aquele disco da Columbia no qual estão gravadas, em um lado, a infinita
espiral gótica do coro Jesus, alegria dos homens e no outro a alegria
profana da Badinerie (Suite n.º 2). O Bach sacral também é o virtuose que
ele foi em vida, da Chaconne, das Variações de Goldberg. Virtuose sem
virtuosismo. Nosso Bach, além dos tempos, é o virtuosíssimo dos prelúdios-
corais quando os toca no órgão, congenialmente, o teólogo-médico Albert
Schweitzer. O Bach cujas complexidades contrapontísticas refletem a
complexidade do Mundo criado.
Então, o mestre está outra vez sentado no pianoforte, como no terceiro
movimento do Concerto n.º 1 em ré menor – a voz do homem solitário em
meio do acompanhamento; a vida póstuma de João Sebastião Bach,
continuando nas ondas do Universo.
Suplemento dominical do Diário Carioca. (N.E.)
Acompanhamento típico do período barroco, em que um instrumento grave realiza uma seqüência de
acordes (blocos de sons tocados simultaneamente), que acompanha uma melodia solo, geralmente
cantada ou tocada por um instrumento solista, o que gera a textura (combinação de sons) da melodia
acompanhada ou homofonia, invenção característica do período. (D.M.)
‘Bach: The Conflict between the Sacred and the Secular’, __ (abr. 1946), pp. 151-194; disponível
em: http://www.jstor.org/stable/2707070. (N.E.)
‘J.S. Bach und die Säkularisation der Kirchenmusik’, __ (Stutgart, ano 2, n. 12, dez. 1947), pp. 1425-
1434; disponível em: http://www.hermann-
keller.org/content/aufsaetzeinzeitschriftenundzeitungen/1947jsbach.html. (N.E.)
Plural de concerto grosso (literalmente, “concerto grande”): idéia concebida pelo músico italiano
Alessandro Stardella (1645-1682) e posta em prática em 1675, consiste em alargar uma sonata-trio
(sonata para três instrumentos) com vistas à inclusão de um diálogo musical com um grupo maior de
instrumentos de cordas. (D.M.)
“Ficou interessada”: no original, “virou interessada”. (N.E.)
Beethoven
Letras e Artes, 17 dez. 1950
O lembra
acaso da data – 17 de dezembro de 1770, dia do nascimento –
apenas um dever. A imensa popularidade de Beethoven, ao
lado de Chopin e Tchaikovsky (!), sugere imediatamente a profundidade
dos equívocos. “Gostar de Beethoven”, quer dizer, ficar comovido pelo
aspecto mais superficial de sua Obra, pela emoção romântica, não é a
homenagem devida ao grande homem: é uma ofensa ao grande mestre.
Todos os dias, e não só hoje, uma personalidade como a de Beethoven
exige, de nós outros, um exame de consciência e uma profissão de fé. Não
quero fugir da exigência.
Não quero dizer, sinceramente, que Bach me parece mais puro, mais
perfeito; nenhuma criatura humana jamais se aproximou tanto de Deus.
Também Mozart habita regiões de perfeição superior. Mas Beethoven,
menos puro, menos perfeito, está mais perto de nós, de todos nós. Cada um
tem de interpretar isso a seu modo. Quem escreve estas linhas nasceu na
cidade de Beethoven.23 Não consegue afastar certas associações de um
passado que ninguém nos pode roubar: o Teatro de Ópera de Viena,
escurecido depois da sinistra cena de cárcere, em Fidelio, a orquestra
começa grave, de repente a sala ilumina-se, sobem irresistivelmente os
violinos da Leonore n.º 3; as variações da Sonata de Kreutzer parecem
estilizar, sublimar velha canção vienense; em torno do túmulo, no Cemitério
Central de Viena, parecem soar os acordes líricos do Quarteto op. 132; mas
foi preciso abandonar tudo isso. Com Beethoven não se chora, nem no
Andante do Trio Arquiduque que só pode ter uma significação; depois
segue o Allegro final, uma despedida alegre, embora para sempre.
No dia do enterro de Beethoven pronunciou-se, perante aquele túmulo, o
discurso fúnebre, redigido pelo poeta Grillparzer, em que se destaca a frase
seguinte: “Artista, ele foi: e quem poderia superá-lo?” Essas palavras, de 29
de março de 1827, logo servem para destruir uma das muitas lendas
sentimentais: Beethoven não teria sido reconhecido pelos seus
contemporâneos incompreensivos. Na verdade, já em vida ele foi
considerado como o maior de todos. Os contemporâneos perceberam que
essa poderosíssima personalidade tinha realizado uma revolução como
nunca houve uma em qualquer outra arte: Beethoven tinha abolido o
domínio da voz, estabelecendo o primado da música instrumental,
infinitamente mais rica apesar de ou porque lhe faltam as palavras. Criou
novo Universo sonoro, o nosso.
Mas existem, hoje, adversários de Beethoven. Não sei se Stravinsky
continua obstinado, condenando a “emoção barata dos violinos”.24 Mas
ainda há quem condenasse toda a evolução musical do século XIX, o
romantismo, o emocionalismo, a arte sinfônica, tudo isso, como caminho
errado que levou a música ocidental ao esgotamento completo; e, embora
admirando-se a força sobre-humana do iniciador desse caminho, está
Beethoven sendo responsabilizado pelo desastre.
A acusação nos deixa perplexos. Ele poderia ser o maior de todos e no
entanto, sub specie historiae, errado. Miguel Ângelo, que é a única
personalidade artística comparável a Beethoven, também desgraçou um
século de sucessores e imitadores. Ao meu ver, só há um recurso para
aproximar-se da grandeza permanente do mestre: através do
reconhecimento franco do que há nele de relativamente fraco e imperfeito.
Antes de tudo seria preciso restabelecer a hierarquia dos valores,
perturbada por preferências pouco motivadas. Conforme opinião unânime
dos conhecedores, a IX Sinfonia não é a maior das beethovenianas:
preferem a V ou a VII; preferem, em geral, às sinfonias, as sonatas e os
quartetos; e a obra máxima desse compositor instrumental por excelência é
para vozes humanas, é a Missa Solemnis.
Já estamos longe de apreciar este último fato, estupendo, à maneira tola
dos wagnerianos que consideravam a música vocal do último Beethoven
como embrião, ainda “imperfeito”, do drama sinfônico do mestre de
Bayreuth; ao contrário, esse caminho que levou à dissolução da harmonia
no cromatismo de Tristão e Isolda, já se revelou como beco sem saída. Mas
tampouco teve futuro o caminho contrário, o de Brahms, que sacrificou a
inspiração a um formalismo rígido, apenas pseudo-beethoveniano.25 Mas
seria injusto responsabilizar Beethoven pelas dificuldades dos seus
sucessores. A conclusão tem de ser outra. O exemplo de Brahms apenas
revela a incompatibilidade entre as formas clássicas, haydnianas,
mozartianas, e a psicologia beethoveniana das emoções. O finale vocal da
IX Sinfonia apenas foi uma das muitas tentativas de Beethoven para fugir
daquele formalismo. Depois de ter dito tudo, num primeiro Allegro, num
Scherzo, num movimento lento, não foi possível, para Beethoven, voltar ao
état d’âme primeiro, assim como fizeram sem escrúpulo seus predecessores.
Em muitas grandes obras de Beethoven, o último movimento é a parte mais
fraca; às vezes, um Rondo que não suporta o peso dos movimentos
anteriores. Então, quis fugir do esquema. Na IX Sinfonia, escolheu o coro;
na Sonata op. 106, a fuga; na Sonata op. 3, variações. Os finais de
Beethoven, em sua última fase, viraram abstratos: representam uma
supermúsica que já não é deste mundo. Naquele discurso fúnebre de 1827,
o contemporâneo já o disse bem: “Beethoven exprimiu tudo, tudo. Seu
sucessor não poderá continuar; deverá começar de novo. Pois o mestre só
acabou no ponto em que acaba a arte”.
Sabemos que os sucessores não obedeceram a essa advertência. Em vez
de começar de novo, continuaram. Mas não tem culpa disso aquele cuja
Missa, últimas sonatas e últimos quartetos constituem um corpus musicum
metafísico, superior a tudo que o espírito humano já imaginou. Por isso,
parece-nos tão sinistra a frase seguinte de Spengler: “Virá o dia em que uma
página de Beethoven será mero pedaço de papel, tão indecifrável e
incompreensível como são os fragmentos de música grega”. Mas a
advertência é boa: até o maior dos homens ainda é criatura, com todas as
fraquezas humanas.
Embora Beethoven tenha nascido em Bonn, na Alemanha, Carpeaux se refere a Viena, onde ele
próprio nasceu, como a cidade de Beethoven porque o compositor ali viveu a maior parte de sua vida
e maturidade artística, onde também faleceu envolto em glórias de herói nacional. (D.M.)
Nove anos após a publicação deste ensaio de Carpeaux, Stravinsky admitiu em Conversas com Igor
Stravinsky (1959) que Beethoven foi o maior orquestrador de todos os tempos e sua principal fonte
de inspiração. (D.M.)
Hoje sabe-se que a obra de Brahms está acima desse “formalismo rígido”, julgamento impreciso em
grande parte difundido por wagnerianos que, alimentando polêmicas contra Brahms, reivindicavam a
herança de Beethoven para Wagner, já que muito os incomodava a crítica unânime de que a primeira
sinfonia de Brahms fora considerada a décima sinfonia de Beethoven quando de sua estréia triunfal
em 1876. (D.M.)
Música, doce música?
nm
Letras e Artes, 14 out. 1951
É a primeira vez, salvo engano, que nesta fase deste suplemento138 sai
um artigo sobre assunto musical. Será preciso justificá-lo? Desde os
tempos da Renascença, em que a música figurava obrigatoriamente no
programa educacional de quem pretendia ser homem culto, essa arte deixou
de fazer parte da chamada “cultura geral”. As “Histórias da Civilização”
para fins didáticos mencionam os nomes de estadistas, eruditos, poetas,
artistas plásticos, etc., mas não perdem palavra sobre Bach. Isto
especialmente a partir do começo do século XIX: do século de Beethoven,
em que a música conquistou uma ascendência sobre os espíritos como
nunca antes. A arte de Beethoven tem de ser reenquadrada entre os fatores
determinantes da evolução cultural, ao lado da literatura. Um estudo do
romantismo de Beethoven talvez possa contribuir para esclarecer melhor o
conceito do romantismo, de tanta importância em terreno literário.
Pois toda a literatura moderna, inclusive os modernismos com seus fortes
impulsos românticos, reage desta ou daquela maneira contra o romantismo
do século XIX. A música moderna acompanha esse movimento: é anti-
romântica. E, enquanto considera Beethoven como o protótipo da música
do século passado, é antibeethoveniana.
Muita gente experimenta um choque quando fica sabendo que há inimigos
de Beethoven. Mas há vários, alegando os mais variados motivos, opondo-
lhe ora o neo-realismo musical dos Hindemith, Toch, etc., ora a volta às
formas da música barroca, bachiana ou pré-bachiana. Assim houve no
século XVIII reação contra Miguel Ângelo, cujo titanismo, comparável ao
de Beethoven, tinha dominado o barroco. Mas foi Miguel Ângelo artista
barroco? Nossos avós consideravam-no como auge da Renascença; hoje,
antes é chamado precursor do maneirismo. Dúvidas semelhantes existem
com respeito ao romantismo de Beethoven.
A crítica musical francesa e, dependente dela, a italiana, nunca tiveram
dúvidas: para os latinos, Beethoven é romântico. Assim ele aparece nos
manuais e nas manifestações, sobre música, de escritores franceses. A
atitude antibeethoveniana de alguns críticos franceses, especialmente da
escola de Debussy, está ligada ao anti-romantismo dos neoclassicistas e
nacionalistas à maneira de Maurras: o romantismo seria importação
estrangeira, germânica.
Realmente, os germânicos são ou foram genuinamente românticos.
Adoram os grandes compositores do romantismo: Schubert, Weber,
Schumann; depois, o neo-romântico Wagner. A todos estes o anti-
romantismo alemão dos anos de 1920 opôs o neo-realismo e o neobarroco
musicais; mas, não a Beethoven. Pois se o próprio Beethoven já tivesse sido
romântico, qual seria a novidade dos Schubert, Weber, Schumann, Wagner?
Estes foram românticos, sim; mas Beethoven, não.139 Ao contrário, obras
como a V e VII Sinfonia, os grandes concertos, os quartetos Rasumovsky
aparecem nos manuais da história musical alemã como exemplos de
classicismo.
É extremamente difícil decidir-se entre essas duas teses antagônicas. Se
considerarmos a evolução histórica – Beethoven; depois Schubert, Weber,
Schumann; depois Wagner – então a crítica alemã tem razão: comparado
com aqueles mestres do mais autêntico romantismo musical, Beethoven não
é romântico. Mas se considerarmos a essência da arte beethoveniana – o
subjetivismo radical da grande personalidade, manifestando-se pela
reintegração intensamente pessoal das formas tradicionais – então é
Beethoven romântico e até o maior de todos os românticos.
A diferença entre a tese francesa e a tese alemã é conseqüência de duas
evoluções históricas, divergentes. Na França do século XVIII a fase final do
classicismo é racionalista; irracionalista é, no fim do século, o pré-
romantismo especificamente francês de Rousseau, que deve pouca coisa aos
ingleses e nada aos alemães; de origem alemã só é, pelo menos em parte, o
romantismo católico dos anos de 1820 (primeira fase de Lamartine,
primeira fase de Victor Hugo); foi logo superado pelo romantismo liberal
(e, depois, revolucionário) em literatura, ao qual corresponde em música a
obra de Berlioz; e este já se julgava discípulo de Beethoven.
Na Alemanha corresponde, grosso modo falando, Haydn ao classicismo
francês do século XVIII. Certas veleidades românticas só se observam nos
movimentos lentos das suas últimas obras, como do quarteto denominado
Largo (op. 76, n.º 5), do Quarteto op.77, n.º 2; da sinfonia denominada
London (n.º 104): obras evidentemente influenciadas por Mozart. Pois no
classicíssimo Mozart não se pode deixar de perceber a veia romântica
(Concerto para piano em ré menor, K. 466; Trio com clarineta, K. 498;
Quinteto para cordas em sol menor, K. 516, etc., etc.); mas muito antes de o
romantismo ter dado o menor sinal de vida na Alemanha. Esse Mozart
romântico, compositor internacional aliás, corresponde ao pré-romantismo
francês.
A influência de Mozart nas obras da mocidade de Beethoven é
estranhamente insignificante, sensível só em casos de importância menor;
ou limitando-se a elementos técnicos e formais (Trio para cordas, op. 3;
Concerto n.º 3 para piano e orquestra em dó menor, op. 37). O subjetivismo
tempestuoso do jovem Beethoven tem outras fontes.
Ao pré-romantismo corresponde na Alemanha o movimento Sturm und
Drang, revolucionário em matéria literária e em matéria social: exemplos
são o Werther, de Goethe, e Os bandoleiros, de Schiller. Depois, os dois
grandes poetas viraram neoclassicistas; época de Weimar. E contra esse
neoclassicismo rebelou-se, enfim, o romantismo alemão, medievalista,
católico ou catolizante, místico, fantástico e irônico no início, depois
deliberadamente popular. É o romantismo dos Brentano140, Tieck141, Novalis
e E.T.A. Hoffmann, dos Schubert, Weber, Schumann. Não é o romantismo
de Beethoven.
O pré-romantismo de Beethoven, entre 1795 e 1800 (Sonata para piano
em ré, op. 10, n.º 3; Sonata patética, op. 13; Quarteto op. 18, n.º 6),
corresponde exatamente ao Sturm und Drang de 1770, com aquele
característico atraso com que, conforme Nietzsche, a música costuma
acompanhar a evolução geral do Espírito. Depois, Beethoven é clássico
como os weimarianos; do seu pré ou ante-romantismo subsistem poucos
resíduos (Abertura Coriolano; Trio com piano em ré, op. 70, n.º 1). A fase
final do mestre, a das últimas sonatas para piano, da Missa Solemnis, da IX
Sinfonia, dos últimos quartetos, não tem nada que ver com romantismo nem
com classicismo. É música de um outro mundo.
Primeira conclusão: se o ouvido dos latinos percebe sons românticos em
todas as fases e obras de Beethoven, o motivo não é o romantismo inato do
alemão nem o classicismo instintivo dos franceses, mas o fato de que a
música é, intrinsecamente, uma arte mais romântica que a literatura. E a
música é para os alemães a preocupação principal; é para eles o que é a
literatura na França.
Segunda conclusão: o conceito do romantismo é relativo. Não tem a
mesma significação além e aquém do Reno. Muita coisa parece romântica a
um francês, que não se afigura assim a um alemão. Goethe, o grão-mestre
do classicismo alemão, também é classificado como romântico nos manuais
franceses...
Mas que adiantam as explicações históricas, se não fazem compreender o
presente, se não iluminam o caminho para o futuro? A influência de
Beethoven foi esmagadora; mas não fomentou o romantismo. Por isso os
movimentos antibeethovenianos, o neo-realismo musical e o neobarroco,
revelaram-se como becos sem saída; como tentativas de evitar decisões que
o próprio Beethoven já tinha superado. É a última fase beethoveniana que
indica o caminho para o futuro: quem enveredou por esse caminho, um
Bartók, podia continuar beethoveniano até o fim sem ficar esmagado pelo
mestre.
O suplemento Literatura. (N.E.)
Embora musicólogos o identifiquem como o primeiro dos românticos, Beethoven nunca abandonou
as formas estritamente clássicas, senão antes as elevou aos píncaros da expressividade musical,
fenômeno que é inclusive responsável pelo aparecimento das novas formas do romantismo,
porquanto fosse de senso comum que superar Beethoven no manuseio das formas clássicas se tornara
tarefa intransponível para a nova geração romântica. (D.M.)
Clemens Brentano (1778-1842), poeta e romancista alemão. (N.E.)
Ludwig Tieck (1773-1853), romancista e dramaturgo alemão. (N.E.)
O futuro da música
Diário do Paraná, 5 mai. 1957
O antiquado
público que freqüenta os concertos costuma queixar-se do repertório
dos teatros de ópera: sempre Verdi, sempre Puccini; quando
as coisas melhoram, são interrompidos por Mozart e Wagner. Realmente, é
um repertório histórico, de museu.
Mas tem o público dos concertos o direito de reclamar? De que se compõe
seu repertório preferido? De Bach e Mozart até, digamos, Brahms e
Debussy. Só vive a música de entre 1700 e 1900. Também é um repertório
histórico. Prova: a maior ampliação desse repertório até hoje não foi
conquista da música moderna, mas a redescoberta e reconquista da música
barroca.
Existe um abismo entre os interesses do público, dos concertos e da ópera
igualmente, e, por outro lado, os interesses dos compositores modernos. O
perigo é evidente: a música poderá petrificar-se como uma peça de museu.
Eis um dos assuntos principais do importante livro Music in American
Life142, de Jacques Barzun, crítico que entende igualmente bem de música,
de literatura e dos fenômenos sociais.
Barzun considera como um dos fatos fundamentais a democratização da
música, nos Estados Unidos, pelo disco e pelo rádio. Em 1954 os
americanos compraram discos long-play de música clássica no valor de
70.000.000 de dólares. Só da IX Sinfonia de Beethoven venderam-se
130.000 exemplares. Isto significa, evidentemente, forte comercialização da
vida musical, de modo que se podem empregar termos econômicos: apesar
de tudo, a oferta é maior que a procura. A música persegue o americano em
todos os momentos de sua vida e em todos os lugares. Um dia, acredita
Barzun, a gente se revoltará. A música antiga será radicalmente
abandonada; e então haverá lugar para a música nova; mas não pela
abolição da antiga, que seria uma catástrofe, a perda de um mundo. Os
motivos serão outros.
Para Barzun, crítico da vida musical americana, a história da música
começa por volta de 1900. Mas nenhum crítico da vida musical européia
poderá concordar com esse anacronismo. Nem aquele repertório histórico
data de 1900; o mal começou muito antes.
Paganini, Chopin e (em parte) Liszt foram os últimos grandes virtuoses
que tocavam, em concerto, principal ou exclusivamente suas próprias obras,
escritas para esse fim. Os grandes pianistas e violinistas de hoje só têm
repertório histórico. O único que fez composições próprias, Kreisler,
fantasiou-as de transcrições de música antiga. Mas até 1800 os virtuoses só
tocavam suas próprias obras, isto é, tinham de escrever permanentemente
obras novas para não cansar o público pela repetição das velhas.
Eis a mentalidade do século XVIII, do século musical por excelência: a
música é escrita para determinada ocasião, as mais das vezes para uma
única execução; depois, cai no esquecimento. Até uma obra tão excepcional
como a Missa de Benevoli para a consagração da catedral de Salzburgo
(1628), obra excepcional pela estrutura colossal e complicada (54 vozes
instrumentais, três coros, 16 solistas e órgão), só foi executada uma vez;
depois, dormiu nos arquivos durante três séculos. O desperdício de força
criadora foi imenso. Por isso, as cantatas de Bach não foram publicadas; por
isso, toda a música sacra e operística italiana do século XVIII foi
radicalmente esquecida.
Com uma única exceção que confirma a regra (o culto inglês pelos
oratórios de Haendel), ninguém teria no século XVIII pensado em repetir
periodicamente obras antigas.
A redescoberta da música antiga é um fato do romantismo de 1800:
E.T.A. Hoffmann e Thibaut143 entusiasmaram-se pela música sacra dos
velhos italianos; pouco depois, Mendelssohn inaugura o culto de Bach.
Salvou-se do esquecimento um mundo.
Sem dúvida: esse culto do passado é a raiz daquele mal. Mas na
“historificação” da vida musical também se encontra o remédio. O processo
então iniciado não admite limites. Os românticos de 1800 incorporaram
Bach e Pergolese ao repertório. Apesar de todos os esforços, não foi
possível reconquistar, para o repertório comum, as obras de Palestrina,
Orlandus Lassus e Victoria. Mas estamos hoje acostumados a ouvir
Monteverde e Schuetz, Vivaldi, Couperin e Domenico Scarlatti. A própria
música moderna está profundamente influenciada pela reconquista da
música barroca.
Essa reconquista é considerada, por muitos, como sinal de reacionarismo.
Thomas Mann, no Doutor Fausto, escreveu algumas páginas profundas
sobre o sentido reacionário desse barroquismo musical e suas relações com
a decadência da sociedade burguesa. Mas por que justamente o barroco (que
na música também compreende a primeira metade do século XVIII)?
Um dos “reconquistadores” foi Hindemith, então (por volta de 1925) o
líder da Gebrauchsmusik, isto é, da música escrita para determinados fins e
ocasiões. A volta para o barroco procura reconquistar também a função
vital da música.
O compositor dos séculos XVII e XVIII nunca escreveu obras pensando
na sua “eventual” execução no concerto ou no teatro. As óperas eram, todas
elas, encomendadas. Toda a outra música destinava-se para determinados e
bem definidos fins: para o uso litúrgico na igreja, para a diversão dos
monarcas na corte e da aristocracia nos palácios e castelos durante as
refeições, nos bailes e até para a caça. Os Concertos de Brandemburgo
também eram Gebrauchsmusik; e Bach não teria, provavelmente, escrito
cantatas se o seu contrato não obrigasse a tanto.
Mas o compositor moderno só escreve para edificar, ou para divertir um
público anônimo o possível, com a secreta esperança de suas obras ficarem,
um dia, incorporadas ao museu que é o repertório histórico.
O futuro da música reside na reconquista de funções vitais da arte. Mas
quando a música deixar, um dia, de servir à edificação e à diversão
indeterminadas, então poderá dispensar as cláusulas e cadências
harmoniosas que despedem em paz o ouvinte. Então o público também
redescobrirá a profunda tese de Nietzsche: que, em vez de ser a consonância
a regra e a dissonância a interrupção anormal, na verdade – na arte e na vida
– a dissonância é a regra e a consonância a exceção. Mas este também é um
dos princípios da música moderna, cujo dia terá assim chegado.
(Garden City, N.Y., Doubleday, 1956). (N.E.)
Anton Friedrich Justus Thibaut (1772-1840), jurista e músico alemão. (N.E.)
Quarteto Húngaro (III)144
Correio da Manhã, 10 set. 1957
P assada a casa dos 80 anos, Bruno Walter não levantará mais sua
batuta mágica para inspirar nova vida a partituras de Gluck, Haydn,
Mozart. Em compensação dá-nos de presente nova edição do seu livro
sobre seu mestre Gustav Mahler.157
Nascido em 1860 na Morávia, Mahler foi entre 1897 e 1907 diretor da
ópera então imperial de Viena e regente da Orquestra Filarmônica dessa
cidade. Saído desse posto de comando por graves conflitos pessoais que o
incompatibilizaram com a orquestra, os cantores e o público, assumiu, já
internacionalmente famoso, a regência na Metropolitan Opera em New
York. A doença incurável do coração mandou-o, em 1911, de volta para
Viena, onde morreu logo depois. Deixou, entre eles que o conheceram,
recordação que não se apagará nunca.
Mahler foi grande regente; afirmam que o maior de todos, opinião da qual
também foi Toscanini. No seu tempo o gramofone ainda não passou de
brinquedo, de modo que sua arte de reger está perdida para a posteridade.
Mas sua figura humana continua viva.
Foi o grande romântico E.T.A. Hoffmann que criou o personagem do
regente Kreisler158, apaixonado da música, afigurando-se louco aos que não
lhe compreendem o entusiasmo quase fanático, sofrendo profundamente
pelo antagonismo entre a Arte e o mundo da Prosa; humorista grotesco que,
desesperado, “acabou suicidando-se, cravando uma dissonância no
coração”. Gustav Mahler foi encarnação ou reencarnação desse personagem
Kreisler. Ouvi-o reger quando eu era menino: sem compreender-lhe nada da
arte, só vi um homem alto de magreza espantosa, gesticulando como um
possesso, fazendo as caretas mais burlescas; esse Paganini da batuta parecia
ora ator humorístico, ora louco demoníaco. Mas não era ator nem louco.
Apenas um servidor fanático de ideais inacessíveis.
Sua capacidade inédita de interpretação de obras alheias baseava-se em
imaginação criadora. Imaginava execuções tão perfeitas que não podia
deixar de irritar-se com a insuficiência material dos instrumentos e a
impaciência do material humano. Antes de uma estréia na ópera, antes de
um concerto, Mahler martirizou à gente. Os ensaios não terminavam: 20,
30, 60 vezes,159 durante noites inteiras, até cantoras desmaiarem e os
músicos se declararem em greve. O regente possesso sacrificou os outros e
a si mesmo. Criou inúmeros inimigos apaixonados e prejudicou de maneira
irremediável seu coração doente. Deu a vida pelo ideal inatingível da
execução perfeita. Mas aproximou-se dele na medida do seu gênio de
servidor fanático da arte. Criou um elenco e uma orquestra nos quais
sobrevive sua tradição até hoje: representações estupendas de Gluck,
Mozart, Wagner e uma tradição internacionalmente aceita da representação
de Fidelio160: em todas as casas de ópera do mundo segue-se-lhe o exemplo
de iluminar a sala, de repente, antes do último quadro da obra para
transformar o teatro em sala de concerto e executar a Abertura Leonore n.º
3. Nesses momentos, onde quer que seja, o espírito de Gustav Mahler está
entre nós, deixando-nos ouvir a harmonia das esferas.
Não está tão onipresente a Obra que Mahler criou como compositor.
Grandes regentes como Bruno Walter e o holandês Willem Mengelberg
foram servidores fiéis dessa Obra. Em tempos recentes, depois de certo
eclipse, percebe-se sinais de interesse maior na Itália e na França, na
Inglaterra e Holanda e, naturalmente, na Áustria.161 Admiram-se as artes
extraordinárias de instrumentação, de manejo de orquestras enormes (e de
coros) nas gigantescas sinfonias de Mahler; sobretudo na VIII Sinfonia, para
a qual se precisa de 1.000 executantes, e que é na verdade uma grande
cantata em dois movimentos: o primeiro, sobre o hino Veni, creator
Spiritus; o segundo, sobre a última cena de Faust, II, de Goethe. Mas os
críticos continuam a duvidar: se o aparato enorme é justificado pelos
resultados. A música sinfônica de Mahler, que raramente pode dispensar a
colaboração da voz humana, parece pertencer ao tempo em que a IX
Sinfonia de Beethoven passava pelo ponto mais alto da música, coisa em
que hoje já não se acredita. Os textos escolhidos por Mahler, homem de
vasta cultura, incomum entre os músicos, sempre são da mais sublime
qualidade literária; mas os temas musicais de Mahler nem sempre
correspondem às suas ambições. Só raramente se impõem. Às vezes,
embora elaborados com um máximo de emoção e arte, são de trivialidade
desconcertante. Em momentos desses até um admirador como o compositor
americano Copland apenas fala em “sinceridade comovente”. Mas também
há os momentos que fazem pensar em Bruckner e no próprio Beethoven.
Esse homem das vitórias fulminantes e das derrotas irremediáveis, esse
“Kreisler” de gestos grotescos e aparência demoníaca foi uma figura
trágica.
Apesar de admirá-lo profundamente, não penso em compará-lo aos
maiores. Seria exagero imperdoável. Só por outro motivo convém citar, a
respeito de Mahler, o nome de Beethoven: este e aquele não eram só
compositores, só músicos. Suas ambições chegaram a ser extra ou
superartísticas. Nenhuma obra de Mahler suporta, nem de longe, a
comparação com as últimas sonatas ou os últimos quartetos de Beethoven.
Mas o ponto comum é este: também são grandes documentos humanos.
Mahler é homem de 1900, de 1910. Com emocionalismo saturado de
neurastenia participou das convulsões espirituais de sua época:
neocatolicismo (do qual ele se converteu), a psicanálise (do seu amigo e
vizinho de casa, Sigmund Freud), simbolismo e esteticismo requintados e
bastante decadentes, e o sentir emocionado com os sofrimentos do povo
humilde, numa época do socialismo já combativo mas ainda meio lírico.
Talvez fosse este um dos motivos para Mahler preferir tanto a poesia
popular, ornamentando-a com as artes mais sutis e mais violentas da
orquestração maciça e da polifonia instrumental. Às vezes os temas são
deliberadamente triviais numa tentativa de aproximar-se da simplicidade.
Recordações da infância também contribuíram para as misturas estranhas de
ritmos de marcha militar, de dança campesina e de ladainha de igreja de
aldeia.
A música de Mahler sempre é autobiográfica; nesse sentido, o discípulo
de Bruckner foi o último romântico. Mas superou seu romantismo inato. A
polifonia da VI e da IX Sinfonia aproxima-se dos limites da tonalidade.
Prenuncia a arte do seu amigo e conterrâneo Schoenberg. Mas só chegou a
ver de longe a terra da promissão.
A ambição titânica de Mahler é capaz de lembrar o demoníaco Andreas
Leverkuehn, o personagem de Thomas Mann. Apenas: o pacto, Mahler não
o tinha concluído com o diabo, mas com Deus. Sobre seu exemplar do Te
Deum de Bruckner, escreveu: “Cantado pelos anjos para as almas
atormentadas”.162 A conversão desse judeu descrente ao catolicismo foi
profundamente sincera. Mas não encontrou na nova fé a paz. Natureza
pascaliana, irresistivelmente atraído pelo culto de beleza da sua época que
se julgava rica e feliz; e adivinhando, como ela, um fim próximo e terrível.
Os extremos de afirmação estética163 da vida e do pessimismo oriental
encontram-se na última e maior das suas obras: o Cântico da Terra, sinfonia
cantada ou cantata profana sobre versos nostálgicos do poeta chinês
Litaipo164, começando com uma frenética canção, À miséria da vida, e
terminando com elegíaco canto de despedida: “Eu vou para longe e não
voltarei – mas eternas são as nuvens brancas, eternas, eternas”. Eis o tema
permanente da arte de Mahler. Sua II Sinfonia já terminara com um
veemente apelo: “Ressurgir, sim, ressurgir!” Desmentindo todas as
explorações biográfico-psicológicas, tinha escrito as comoventes Canções
sobre uma criança morta muitos anos antes de morrer sua filhinha. Sofreu
de verdadeiro “complexo da morte”. A doença do coração o matou cedo.
Não chegou a ouvir a primeira execução do Cântico da Terra, regida por
Bruno Walter. Foi seu réquiem. Na voz do contralto vibra a despedida:
“...mas eternas são as nuvens brancas, eternas, eternas”, e o violoncelo
continua, sonoro, o tema ad infinitum, como para toda a eternidade.
Gustav Mahler: Ein Porträt (nova ed., Berlim, Fischer, 1957). (N.E.)
No conto Kreisleriana. (N.E.)
Acrescentamos a palavra “vezes” a este trecho. (N.E.)
São de Beethoven a ópera Fidelio e a Abertura Leonore n.º 3 (citada a seguir), estudadas por
Carpeaux em “Cervantes e Beethoven”, p. XXX. (N.E.)
Hoje, porém, a popularidade da obra de Mahler é muito maior. Tanto entre conservadores quanto
entre “progressistas” do gosto musical, é praticamente unanimidade que sua obra ocupe papel central
no repertório sinfônico mundial. (D.M.)
Alma Mahler, Gustav Mahler: Erinnerungen und Briefe [... Cartas e memórias] (Amsterdam, De
Lange, 1940). Citação de memória. (N.E.)
No original, “estática”. (N.E.)
Também chamado Li Bai ou Li Po. (N.E.)
Miséria e esplendor dos músicos
Diário do Paraná, 8 dez. 1957
É posteridade,
crença comum que os grandes compositores, glorificados pela
sempre foram maltratados pelos seus contemporâneos.
Alguns teriam morrido de fome, outros de falta de compreensão, e o
cadáver de Mozart foi jogado na vala comum.
O mesmo também se acredita quanto aos poetas e pintores, e a imagem
sentimental do artista genial e infeliz, uma das heranças do romantismo,
tem pouco apoio nos fatos históricos. Justamente na música, o caso mais
comum é o do pleno reconhecimento do gênio em vida.
Haendel só tinha encontrado dificuldades ao querer impor aos ingleses o
gênero alheio da ópera italiana; mas seus Te Deums, Anthems e Oratórios
elevaram-no à categoria de porta-voz da Nação; enfim, foi sepultado na
Abadia de Westminster, em face dos túmulos dos reis da Inglaterra. Haydn
já estava famoso antes do convite triunfal para Londres, de tal modo que os
cônegos da longínqua cidade de Cádiz, na Espanha, lhe encomendaram uma
obra; quando da execução do oratório A Criação, em Viena, a imperatriz da
Áustria quebrou a rigorosa etiqueta espanhola, quase abraçando o velho
mestre. Todo mundo sabe que Beethoven foi reconhecido em vida como o
maior compositor do tempo e um dos maiores de todos os tempos. Stendhal
achava que só um homem era comparável ao ídolo Napoleão, por também
ter subjugado a Europa inteira: Rossini. Só aos sucessos espetaculares dos
compositores de jazz de hoje foi comparável o triunfo do Freischuetz, de
Weber. Mas é preciso lembrar a alta posição que Chopin conquistou na
sociedade francesa; e Mendelssohn na inglesa. Reis, princesas e cardeais,
eis o cortejo habitual de Liszt. Três doutorados honoris causa, altas
condecorações, considerável sucesso financeiro: assim foi Brahms
recompensado. Dvorák conquistou dois continentes. Verdi, de milagrosa
capacidade de superar-se, renascer musicalmente, conseguiu impor ao
público suas mudanças de estilo.165
Alguns outros tinham de lutar contra hostilidades apaixonadas até vencer;
mas venceram: Gluck, reformando a ópera; Schumann, impondo um novo
romantismo ao estilo pianístico; Wagner, destruindo a tradição secular do
teatro musical para fundar outra;166 César Franck, reconhecido na velhice,
em ambiente parisiense que não lhe compreendera a arte sinfônica nem a
religiosidade; até Bruckner e Mahler, tão hostilizados, foram enfim
reconhecidos; Debussy, combatido no começo acabou idolatrado, como
“Claude de France”.167 A glória de Hugo Wolf foi póstuma só porque o
gênio afundou tão cedo na loucura. Se Alban Berg vivesse um pouco mais
do que os 50 anos que o destino lhe concedeu, teria assistido ao sucesso
mundial do seu Wozzeck. E Schubert, cuja biografia foi tão
lamentavelmente sentimentalizada? Morreu com 31 anos, numa idade em
que o maior gênio não pode esperar pleno reconhecimento; no entanto, sua
fama já tinha atravessado o perímetro urbano de Viena; na mesa do falecido
encontraram-se cartas de editores de Leipzig e Paris.
Apesar de todos esses fatos, aquela tese romântica do gênio
incompreendido continua tenazmente. Porque os casos contrários à regra
que acabo de exemplificar são poucos, são menos numerosos do que em
qualquer outra arte, mas são dos mais importantes: é a incompreensão total
e a miséria que foram o destino de Mozart, Berlioz e Schoenberg; e a arte
de Bach precisava ser ressuscitada.
São problemas especiais, que podem ser resolvidos sem fazer concessões
àquele romantismo biográfico-sentimental.
A música é uma arte especificamente iterativa, repetitiva. Nenhuma obra
de arte literária poderíamos reler tantas vezes com prazer como podemos
reouvir um quarteto ou uma sonata. Ao contrário: o prazer será cada vez
maior, a compreensão mais profunda. Mas, por outro lado, precisamos ouvir
mais que uma vez uma obra nova para conhecê-la realmente. Daí certas
dificuldades iniciais que obras de feitura inusitada encontram. Beethoven já
estava no auge da sua glória quando o Concerto para piano n.º 5 e a VII
Sinfonia foram recebidos com estranheza. O Barbiere di Siviglia foi vaiado
quando da estréia em Roma, em 1816, assim como La Traviata, em 1853,
em Veneza; mas o triunfo começou logo depois. Pelléas et Mélisande, em
1902, foi vaiado durante o ensaio geral e venceu, 24 horas depois, na
estréia. No Doutor Fausto, de Thomas Mann, um empresário parodia o
verso de Goethe, dizendo: “No início foi o escândalo”.
Realmente, a história da música é, em parte, uma chronique scandaleuse,
uma história de públicos que na sala de concerto ou no teatro de ópera se
revoltam contra obras novas. Mas há escândalos e escândalos. Tannhaeuser
foi vaiado em Paris, em 1861, porque o público das frisas estava
acostumado a ver, no segundo ato, um ballet, e Wagner não podia fazer
dançar os seus menestréis. Outros escândalos foram de natureza política: o
público de Leipzig vaiou em 1859 o primeiro Concerto para piano de
Brahms, porque o compositor era conhecido como adversário de Wagner;
em compensação, o público vienense, fortemente brahmsiano, vaiou em
1877 a III Sinfonia do wagneriano Bruckner. Escândalos autênticos porém,
dirigidos contra a própria música, foram aqueles que em 1913, em Paris,
recebeu o Sacre du printemps, de Stravinsky; e os sucessivos escândalos
que acompanharam toda a carreira de Schoenberg em Viena; sobretudo o
barulho imenso que em 1913 obrigou os músicos a interromper a execução
da Sinfonia de câmara. Temos o direito de indignar-nos? Consolo duvidoso
é o fato de que houve mais outros escândalos silenciosos e maiores: quando
os originais dos Concertos do Brandemburgo foram vendidos como papel
de embrulho e quando Wilhelm Friedemann Bach, o filho mais velho do
Kantor168, vendeu também assim uma centena de cantatas, perdidas para
sempre, para comprar cachaça.
Também é possível e compreensível o caso contrário, do gênio que fica
incompreendido porque corresponde demais ao gosto da época. Depois da
sensação que Mozart fizera na Europa inteira como menino-prodígio de
cinco anos, esperavam-se dele feitos revolucionários; em vez disso, a
música da maturidade de Mozart é a expressão mais perfeita da mentalidade
musical do século XVIII. E os contemporâneos ficaram decepcionados,
confundindo Mozart com um Cimarosa.
A chave do problema não se encontra, nesses casos, na obra mas no
público. Não pode solucioná-lo a pesquisa biográfica, mas só uma
disciplina até agora pouco cultivada: a sociologia da música. Ao estudo
sociológico dos fatos da história da música não será difícil explicar as
derrotas sucessivas de Berlioz: um compositor essencialmente sinfônico
estava perdido num ambiente que só conhecia e só quis reconhecer a ópera:
o ambiente de Paris em 1850, em 1860.
Mas não convém confundir sociologia com política. A música não teve
sorte, pelo menos em nosso tempo, com nenhum regime político.
Hindemith foi exilado da Alemanha nazista. Prokofiev estava sujeito a
humilhações indignas na Rússia soviética. A Atlântida de De Falla não
podia ser executada na Espanha franquista. E nos Estados Unidos
democráticos teve Bartók, não molestado por ninguém, o direito de morrer
na miséria.
São casos por assim dizer acidentais. Só resta um: o de Schoenberg. Não
se pode duvidar de sua importância como uma das grandes inteligências-
líderes deste século. Pode-se duvidar, sim, de sua espontaneidade criadora,
e concluir que sua maior obra foi seu discípulo Alban Berg. Mas não é por
esses motivos que o condenaram e condenam. Talvez a música de nenhum
outro compositor tenha menor semelhança e afinidade com a mozartiana do
que a de Schoenberg: no entanto, seu caso lembra muito o de Mozart. A
música de Schoenberg foi e continua sendo condenada porque reflete
fielmente demais a época. Conseguiu ele sobrepor-se aos elementos da
disciplina rigorosa do sistema dodecafônico.169 Mas não dissimula, não
esconde a presença do caos. Sua arte é insuportável aos contemporâneos
porque lhes diz a verdade. Conforme a bela expressão de T. W. Adorno, “a
música de Schoenberg tollit peccata mundi”.170
Verdi conseguiu mais do que isso: – foi um dos maiores responsáveis pelo processo de unificação da
Itália, culminado em 1871 por Garibaldi e as tropas sob o seu comando. (D.M.)
Wagner exerceu notável controle psíquico sobre Luís II da Baviera, influência a que se opunha a
corte e que resultou na deposição e morte prematura do Rei. (D.M.)
Ainda hoje Debussy é a maior referência em música genuinamente francesa. (D.M.)
Na tradição luterana, cargo eclesiástico eminente nas cidades, pelo qual lideravam-se cantores e
instrumentistas e ensinava-se música. (N.E.)
No original, “Conseguiu ele sobrepor aos elementos ...” (grifamos). (N.E.)
Neste ponto, Carpeaux é levado ao erro por Adorno, que também influenciou a própria teoria
dodecafônica de Schoenberg ao estimular a negatividade destrutiva da tonalidade e das formas
tradicionais, com o objetivo deliberado de afastar o público das salas de concerto. A música mais
radical de Schoenberg não é a expressão da verdade de um tempo, mas o público é que a rechaçou
por se afastar de seu universo e de suas aspirações, disposição que Adorno e a Escola de Frankfurt
consideravam essencial, como pretexto para incriminar o capitalismo, culpado de todos os males da
humanidade juntamente com a cultura ocidental. É fácil compreender as motivações dessa luta
estética sutil se tivermos em vista que o objetivo primordial da Escola de Frankfurt era destruir
ambos, isto é, a cultura ocidental e o capitalismo. Para servir à “revolução social” (a revolução do
gosto musical seria apenas uma etapa e força subsidiária), a arte musical deveria se tornar
propaganda ideológica e se esvaziar de seus conteúdos artísticos. Cf. Theodor W. Adorno, Filosofia
da nova música (trad. de Magda França, 3ª ed., São Paulo, Perspectiva, 2014). (D.M.)
O estilo de Gluck
Diário do Paraná, 19 jan. 1958