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Revista de Direilo Mercantil Industrial Economico Nova Sétie Ano XXIII e ee N.'53_Janeiro-Marco/1984 NAN CifO ae cae DOUTRINA SOCIEDADE ANONIMA: PODER E DOMINACAO JOSE ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO I — Delineamentos gerais 1. © pensamento socioldgico de Max Weber se insere essencialmente na realidade do mundo ocidental em que floresceu 0 capitalismo. Nesse sentido, & pertinente a observagio de Karl Jaspers, segundo a qual os interesses de Weber se dirigem para aquilo que é especifico do Ocidente, a ponto de se propor como questo bésica das interrogagées econdmicas weberianas a indagacdo sobre as causas da existéncia do capitalismo no Ocidente.* Parece ttl e estimulante, assim sendo, esbocar idéias capazes ‘de correlacionar certas construgdes importantes originais da sociologia compretAsiva “de Weber a experiéncia concreta de uma das instituigdes fundaméntais do regime capitalista, a saber, precisamente, @ so- ciedade andnima. 2. Um dado preliminar, necessério a estabelecer andlise ora proposta, esté em que @ estrutura e o funcionamento da sociedade anénima somente fazem sen- tido sob a dtica de um ordenamento jutidico racional ¢ & base do formalismo jurfdico que assegure ou propicie a previsibilidade e 0 célculo de decisdes espe- raveis, Se € verdade:que 0 risco constitui pressuposto indissocidvel da atividade empresarial em um.sistema de mercado e livre iniciativa, nfo & menos certo que as técnicas operativas.da sociedade andnima representam um dos mais marcantes momentos da racionalizagao do Direito, como se pode evidenciar, p. ex., por meio da verificagdo de que a responsabilidade limitada dos acionistas © a sepe- aco patrimonial acabam por citcunscrever a contingéncia econdmica da empresa, ‘solando a fortuna pessoal dos sécios de sua mé sorte eventual dos empreendi- ‘mentos organizados sob a forma societiria. O edificio juridico que dé nascimento ‘as companhias ¢ que justifica o seu desenvolvimento no mundo ocidental assenta exatamente sobre tais alicerces ¢ todo 0 regraniento positivo respectivo garante, basicamente, a funcionalidade de um instituto apto a permitir a afetagdo patri- monial Himitada & contribuigd0 dos acionistas ao capital social. Sob esse Angulo, © direito das sociedades andnimas exprime, de forma exemplar, a nogdo de racionalizagio que, sabidamente, ¢ nas palavras de Raymond Aton, faz a unidade do método, das pesquisas e da filosofia de Weber. ® 1. *Método ¢ visio do mundo em Weber”, in Sociologia: Para Ler os Clissicos, orgs nizagGo, introduggo ¢ notas de Gabriel Cohn, Livros Téonicos ¢ Cientificos, Editora Rio, 1977, p. 125. Afirma Jaspers, também, que "0 espirito da condusdo capitalista da economia, que ‘sustenta a nossa experiéncia presente, somente existiu aqui ¢ em nenhum outro Tugs da hist6ria” (ob, cit, p. 125). 2, La Sociologie’‘Ailemande Contemporaine, PUR, Paris, 4° ed., 1981, p. 125, DOUTRINA cz 3. Como técnica juridica de organizagio, a sociedade anénima viabiliza a acumulagéo do potencial econémico requerido ‘pela atividade empresavial.° Mas, inegavelmente, esse € apenas um dos aspectos do problema, ainda que, talvez, 0 de maior relevancia na hist6ria das instituig6es juridicas. O cardter instrumental da companhia, no contexto econémico, revela a conexao essencial entre os obje- tivos da atividade empresarial e a forma de sua realizagdo, expressa pela perso- nalidade juridica. * O exame dessa conexdo essencial traz 8 luz a realidade da empresa como meio de dominacdo, que se exacerba e se torna manifesta, princi- palmente, quando se verifica a expansio das macro-organizacOes que influenciam notavelmente a estabilidade dos mercados e que chegam a condicionar, de maneira ‘mais ou menos intensa, os proprios rumos do controle oficial sobre a economia. * 4. Uma outra abordagem do;assunto conduz a reflexdes interessantes acerca nio jé da empresa como meio de dominagéo mas dos meios de dominagio sobre 4@ propria empresa. Aqui nfo se alude & técnica de acumulacéo do potencial eco- nomico requerido pela atividade empresarial, mas a técnica de governo da em- presa, abrindo-se campo fértil a questionamentos em toro do modo como se exercem, na sociedade andnima, determinados poderes — entre os quais -o-de controle, objeto da festejada monografia de Fabio Konder Comparato.® Nessa ordem de idéias, ganha relevo a pesquisa em toro da dominagéo burocritica nas companhias. Parte-se, ento, segundo a andlise de Paillusseau para exame da sociedade como técnica que permite gouverner lentreprise, na medida em que ela fixa o procedimento de nomeagio das pessoas que governam a empresa, de- terminando-thes os poderes que podem exercer.? 5. Esse enfoque diplice necesita ser colocado em seus devidos termos. NZo se trata de segregar, em provincias absolutamente distintas e demarcadas, a exte- riorizagao ativa da’ empresa organizada como sociedadesandnimae a’ propria ‘organizacdo enquanto sistema de poder e objeto de dominacio. O que se afirma € antes a implicacdo recfproca de ambas as facetas do aparato societério “que serve como atcabougo juridico (ou, se se preferir, como forma ou técnica) do exercicio da atividade empresarial. Objetivamente, os esquemas de poder ¢ dominagdo sobre a sociedade andnima entendem, necessariamente, com o papel ou fungo que esta desempenha no meio econémico, social e politico, tudo por referéncia @ fins estabelecidos com maior ou menor precisio. Sob tal aspecto, vislumbra-se, na sociedade anénima, uma organizaggo de cardter instrunfental que, de um lado the condiciona a estrutura interna e, de outro, the permite 2 consecucdo de objetivos empresariais, projetados no espago e no tempo. Essa visio, por assim dizer unitdria do fendmeno societétio leva em conta uma con- sideragio de primeira importincia: os objetivos da sociedade, nem mesmo por forca da personalizacdo juridica, adquirem autonomia plena face &s intengdes dos 3. Of, a respeito, Jean Paillusseau, La Société Anonyme — Téchnique d’Organisation de VExterprise, Sirey, Paris, 1961, passim ¢ especiaimente, pp. 249 e ss. 4. Sobre a questdo. da_perconalidade juridica em suas mais modernas acoppbes_¢ respectiva problematica, ef. Fabio Konder Comparato, O Poder de Controle na Sociedade ‘Andnima, Bd. Revista dos Tribunsis, S. Paulo, 2" ed., 1977, pp. 247 e ss. e J. Lamartine Corréa'de Oliveira, A Dupla Crise da Pessoa Juridica, Saraiva, 8. Paulo, 1979, passi 5. Sobre o assunto, ef, Fabio Konder Comparato, Aspecios Juridicos’ da Macro- Empresa, Ed. Revista dos Tribunais, S. Paulo, 1. ed. 6. O Poder de Controle na Sociedade Anénima, cit 1. Ob. city p. 249, 4 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL — 53 sbcios, sendo hoje dificil, se ndo impossivel, contrastar conceitualmente 0 inte- resse da sociedade ¢ 0 interesse dos sécios. E claro que a referéncia feita a0 interesse dos sécios presume que haja um interesse dos sécios ut cocii, distinto dos meros interesses individuais desses mesmos sécios ut singuli. 6. A matéria ganha contornos polémicos na medida em que se afirma, de uum lado, a j@ eldssica distingdo entre propriedade e controle e, de outro, a progressiva institucionalizagéo da sociedade andnima. O reconhecimento de uma domina¢ao de natureza burocrética sobre a empresa, permitida pelos quadros formais do ordenamento acionério, tende a opor (mas apenas na aparéncia) a titularidade das ages ¢ 0 exercicio de fato do controle ¢ da administragao. A oposigdo é apenas aparente porque a dominacao da empresa, em étima andlise, sempre seré possivel ao acionista ou acionistas que retinam 0 maior coeficiente de direitos de voto, com a prerrogativa de compor a adminisiragao social. Tlus- trativo se mostra, a respeito, o conceito de acionista controlador ministrado pelo art. 116 da vigente Lei de Sociedades por Agdes brasileira, Lei 6404, de 15.12.76. Um dos elementos do conceito &, precisamente, a titularidade de di- reitos de sécio capazes de assegurar, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberagées da assembléia geral e 0 poder de eleger a maioria dos adminis- tradores da companhia (alinea a”). O segundo elemento, porém, enuncia-se, no texto legal, como sendo o uso efetivo do poder para dirigir as atividades sociais e orientar 0 funcionamento -dos Srgaos da companhia (alinea “*b”). Ora, ainda que, na experincia concreta e hist6riea, nem sempre o uso efetivo do poder tenha coincidido com a titularidede'da maioria dos direitos de s6cio, nao se pode negar que essa titularidade assegura, em tese, a possibilidade (c tio-s6 a possi- bilidade do poder — 0 que, alids, basta, em termos de modelo, para garantir seu uso efetivo). 7. Se isso é assim do ponto de vista de um modelo tedrico-juridico, a reali dade sociol6gica traz & baila contradigdes fundamentais que merecem ser explo- radas. Até certo ponto, desafia-se a realizagao pratica do modelo que, em tese, adjudica as maiorias aciondrias possibilidade de poder (e de dominegéo) sobre as sociedades anénimas. Admitese hoje, francamente (e inclusive sob a égide da lei brasileira) 0 denominado controle minoritério. A esse respeito, jé tivemos cocasido de escrever, com Egberto Lacerda Teixeira: “‘Nesse sentido, admitiu a lei 0 controle minoritério que se evidencia com particular intensidade nas com- panhias que tenham seu capital difundido em alto gray. entre grande nimero de investidores do mercado, Considerando-se a reduzida participacao desses acionis- tas nas assembléias gerais e sua falta natural de coesdo em termos de voto, nao ser dificil figurar hipétese em que as minorias ocasionalmente controlem as sociedades, mormente ¢ quando se leva em conta o no exercicio de voto pelas ages a0 portador, geralmente preferidas pelos investidores do mercado”. * Il — Poder de controle e dominagio burocrética 8. Mas a investigag#o que mais nos chama a atencAo, no presente estudo, voltase para uma modalidade de exercicio de poder, na sociedade anénima, que dissocia a titularidade dos direitos de sdcio e a conducdo efetiva da maquina 8, Das Socledades Andnimas rid’ Dirsito Brasileiro, Bushatsky, 8. Paulo, 1979, p. 296. © : > , DOUTRINA 6 corporativa, Jé deixamos assinalado que, pelo menos em linha de principio, 0 exercicio de voto € 0 micleo do poder na sociedade andnima — e 0 voto repre- senta emanagio da vontade do acionista, na medida em que configura atributo das agdes, ainda que de carter néo essencial. Para esse efeito, acrescentarfamos agora, os conceitos de maioria e minoria — e bem assim a nogéo de controle societério — referem-se necessariamente & capacidade de deliberar, na assembléia geral, 2 qual, nos termos do art. 121 da Lei 6.404, tem poderes para decidir todos os negécios relatives ao objeto da companhia ¢ tomar as resolugées que julgar convenientes 2 sua defesa e desenvolvimento. Assim, em teoria, a fonte do poder social repousaria na assembléia geral dos acionistas, cuja soberania, tal como explicitada pelo texto legal, constituiria o fundamento elementar de um modelo tracado pelo legislador para a normatizagéo da atividade empresarial organizada sob a forma socictaria. Fm suma, quem dominasse a assembléia geral teria 0 poder sobre a sociedade anOnima. 9. Serd valida essa assertiva sob o prisma sociolégico? A colocacio de se- ‘methante questo se mostra particularmente relevante quando se considera que 0 exereicio efetivo do poder empresarial, quer em suas projeges sobre 0 mundo exterior, quer em suas manifestacdes estruturais, atinentes & propria sociedade, muitas vezes se verifica fora dos quadros acionérios, aglutinando-se nas méios dos administradores sociais, que nem sempre necessitam ser acionistas. Delineia- “se, ai, a emergéncia do fendmeno burocrético, trago marcante das companhias modernas. Weber j4 notava, em perspectiva histérica, que toda a evolugdo do grande capitalismo moderno se identifica com a burocratizacio crescente das empresas. econdmicas. * 10. Sob a dtica weberiana, o conceito de dominagdo (que 6 um caso especial de poder) néo implica necessariamente a persecucio de interesses econdmicos, mas reconhece-se que o poder econdmico ¢ freqiientementé uma conseqiiéncia, e muitas vezes uma conseqiiéncia deliberada do poder, bem como um de seus mais importantes meios. # Assim, a forca do voto preponderante constitui o poder aciondrio, que, sob a qualificacio juridica de controle, institui, ao nivel adminis- trativo da companhia, um tipico quadro de dominagéo, na medida em que a administragao institucionalizada se apresenta erga omnes com os atributos neces- sérios a estimular a crenca em sua legitimidade. Formalmente, 0 poder de con- trole, tal como acima definido, nao implicaria, a rigor, a predeterminagao da conduta dos administradores. Eleitos estes, passariam a agit no ei fungdo dos interesses de seus eleitores-acionistas, mas sim em fungGo dos interesses da socie- dade. Assim, estaria completo 0 quadro legal do poder na sociedade andnima, sabendo-se, como se sabe, que “o administrador deve exercer as atribuiges que @ lei e 0 estatuto the conferem para lograr os fins ¢ no interesse da companhia, satisfeitas as exigéncias do bem publico e da funcdo social da empresa” (Lei 6.404, art, 154, caput) 11. Essa é, todavia, uma colocagéo puramente formal. Como os eleitores- -acionistas tém poder de vida e morte sobre a administragdo, podendo a qualquer tempo destituir qualquer administrador em carter discriciondrio, facil € de per- ceber que, do Angulo sociolégico, o poder de controle se projeta para além do 9. Economia y Sociedad, trad. mexicana de Wirtschaft und Gesellschaft, Fondo de Cultura Econémics, México, 1979, p. 708, caps. IX, I. 10. Idem, p. 688. 76 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL — 53 foro assemblear, impondose sobte a administrago como uma forga coativa de cardter permanente, condicionando a gestio dos administradoreseleitos. Infil- trase, dessa forma, o poder de controle pela propria tessitura organizacional da administraeo, influindo de facto nos rumos da empresa, como uma potestas efetiva. Tal ¢, pelo menos, uma possibilidade propiciada pelo sistema legal, ainda que de forma nao-explicita. O que se pode dizer, pois, considerando o poder de destituir, fnsito ao poder de controle acionério, € que a composi¢ao dos Grgios de gestdo social, no modelo juridico em exame, permite ou pode engendrar um esquema tipico de dominago, com uma fragmentacio apenas aparente entre a soberania da assembléia geral dos acionistas ¢ a liberdade e independéncia supos- tas dos administradores sociais. Por assim dizer, 0 potencial de influéncie do acionista controlador (ou dos acionistas controladores), nos termos expostos, re- presenta 0 rmieio pelo qual o poder de controle pode redundar, faticamente, em auténtica dominagao sobre a companbia. 12. O formalismo da buroctacia dirigente, na empresa, ¢ sobretudo na grande empresa, que se estrutura exatamente sine ira et studio '& base do profis- sionalismo ¢ dos deveres objetivos dos cargos de gestio, sem consideraciio da ‘pessoa, emerge sugestivamente, na economia moderna, como um tipo de domi- nagdo liberada, correspondendo exatamente 20 meio pelo qual se institui e dom nagao por Weber denominada. de legal. 13. O legislador brasileiro, de certa forma, trai sua prépria conviegio acerca do modelo administrativo da sociedade anénima como sistema de poder. Se certo, de um lado, que os administradores devem ser independentes, no interesse da companhia (art, 154, caput, da Lei 6.404), ndo é menos certo, de outro lado, que 0 ordenamento societério alude como jf dissemos, a0 uso efetivo do poder de controle para “dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos 6rgéos da companhia”. Ora, essas prertogativas do acionista controlador, de dirigir e orientar, traduzem uma fina fissura na proclamada separacdo de poderes que, & maneira ‘da construgéo de Montesquieu, deveria, em tese, embasar 0 modelo formal da sociedade anénima. Entre dirigir/orientar e influir decisiva- mente pode haver diferengas semanticas, ou, se se preferir, diferengas de grau. Todavia, na medida em que a propria lei admite e até afirma tal possibilidade de dirigir/orientar por parte do acionista controlador, resulta claro que, por trés da administragdo profissional ou burocrética, atua a eminéncia parda dos titulares do poder aciondrio. Essa possibilidade confirma que, pelo menos do ponto de vista da anilise sociolégica, a estrutura burocrética da administragéo social pode ser levada a atender nao o interesse da compenhia, como em prin- cipio quer a lei, mas a funcionar precisamente como o meio pelo qual se dé guarida aos interesses do acionista controlador, num tipico esquema de domi- nago no sentido weberiano. 14. Por af se observa que 0 modelo legislativo da sociedade andnima é permedvel & dominacao, restando (ou podendo restar) como enunciedo pura- mente formal o principio segundo o qual a representagio da companhia € priva. tiva dos diretores (Lei 6.404, art. 138, § 1.%, in fine). A mera exclusividade legal de representagio, outorgads aos diretores, confronta-se com: a) 2 demissibilidade ad nutum dos administradores, que representa uma permanente possibilidade de condicionamento coativo de stia conduta, na prética dos atos de gestio social; ¢ ) 0 reconhecimento de que 0 acionista controlador pode (e deve) usar efetiva- — DOUTRINA ce mente seu poder para dirigir as atividades sociais ¢ orientar 0 funcionamento dos drgios da companhia. O mesmo ocorre com relagio a0 postulado da inde- pendéncia dos administradores que, diante dos fatores por dltimo assinalados, perde seu caréter absoluto, ficando evidenciado que, em iltima anélise, ¢ como dissemos a principio, o interesse social pode se subordinar ao interesse dos acio- nistas, confundindo-se, no raro, com o interesse préprio do acionista controlador. 15. Aliés, dizer que o modelo legislativo da sociedade andnima & permedvel & dominagio é dizer pouco. Colocando 0 direito societério na sua jé apontada feigo de racionalidade (cf. item 2, supra), conclui-se, sem maior dificuldade, que o poder econdmico, centrado nas maos dos acionistas (€ mais especificamente nas mos do controlador) se transforma em auténtica dominagao deliberada, para usar da terminologia de Weber. E isso se dé, precisamente, através da modelagem do aparato burocrético dirigente, cuja legitimidade se impée & crenga dos desti- natérios do poder em fungdo das notacdes bésicas das competéncias Iegais ¢ estatutérias definidas, da hierarquizacdo das fungdes, da profissionalidade, da remunera¢do regular e da separagio complete entre a funcdo ¢ 0 homem que a ocupa, 16. Dessa forma, nas macto-estruturas empresariais contemporéneas, 0 fend- meno burocrético cumpre seu papel de instrumentalizar o exercicio efetivo do poder (Macht) com o propésito deliberado de realizar a dominacio (Herrschaft), no plano concreto. As resolugses isoladas e t6picas da assembléia geral de acio- nistas, em que se faz patente o poder de controle, se complementam por uma constante influéncia dominante do acionista controlador, senhor dos rumos da companhia, dirigente real das atividades sociais e orientador das deliberagoes dos érgéos de gestdo. Ai esté, em répidos tragos, a distoreio do modelo juridico da sociedade anénima. Impée-se considerar, neste passo, que a fenomenologia do poder de controle, nas companhias, pertence & Grbita da disciplina jurfdica, como, 2 saciedade, o demonstra a tese consagrada de Fabio Konder Comparato. ! Mas 2s repercussées mais profundas do poder de controle sobre o aparetho diretivo da empresa, 0 ponto de fazer exsurgir a auténtica dominacio de que tratamos, 46 incidem em um diverso campo de indagagbes: estaremos, aqui, nas paragens proprias da Sociologia do Direito. 17. Impende notar, por igual, que esse ensaio de andlise no tem cabimento se néo na macro-empresa, em que se dissociam conceitualmente a gestio © 0 controle, 0 controle © a propriedade aciondria. Nas empresas familiares, a que é geralmente estranho 0 fenémeno burocritico, a coincidéncia entre a administracao © 0 controle acionério é perfeita, sujeitando-se o organismo empresarial a0 tipo weberiano de dominacio patriarcal, " em que a autoridade dos dirigentes deriva, diretamente, de uma espécie de dignidade prépria, provinda da forca tradicional. Mesmo quando, na empresa familiar, se procura inaugurar um estilo profissional de administragio — com vistas alids nao a instrumentalizagio do poder (racio- nalidade), mas, simplesmente, a uma maior eficiéncia operacional — os quadros administrativos se mostram, quase sempre, deficientes de estrutura burocrética 11. Cf, Julien Freund, Sociologia de Max Weber, Forense-Universitéria, Rio, 3° ed. brasileira, 1980, pp. 170 e171 12." O Poder de Controle na Sociedade Andnima, city passim, e principalmente p. 5. 13. Cf. a respeito Jean Savatier, “Du domaine patriareal 4 Venterprise. socalisée”, in Mélanges Offerts & René Savatier, Dallor, Patis, 1965, pp. 863 a 881. 78 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL — 53 fundamentalmente dependentes da posigdo e da influéncia do dominus da em- esa. PZ 8. Do ponto de vista funcional, a instrumentalizagio do poder de controle para o exercicio da dominagdo compreende 0 fortalecimento dos. conselhos de administracdo (compostos, no Brasil, por acionistas), em razo da perda de pres tigio das assembléias gerais, cada vez menos soberanas.'* Paralelamente porém 0 declinio das reunides assembleares (de que é exemplo legislado 0 art. 103 da Aktiengesetz de 1965), os conselhos de administraggo concentram o poder aciondrio ¢ a racionalizam, com a pretrogativa de, como diz a lei brasileira, fixar a orientagio geral dos negécios da companhia (art. 142, I). Poderseia argumentar no sentido de que 0s conselhos so, por definicao legal, érgios de gesto-e que, portanto, seu poderio deliberante seria relativamente dissociado do poderio acionério, expresso nas resolugSes da assembléia geral. Nao colhe, entretanto, essa possivel objegao. Em primeiro lugar, porque o conselho de admi- nistragdo € composto pela assembléia geral e por ela demissivel ad nutum. Em segundo lugar, porque a exigéncia legal de serem os conselheiros acionistas (Lei 6.404, art. 146) demonstra que 0 conselho de administragéo se vocaciona a funcionar como érgGo politico, representativo das forgas acionérias existentes no quadro do capital social, algo assim como uma pequena assembléia, Nao seria exagero dizer, aliés, que 9 fortalecimento dos conselhos de administragdo corres- ponde @ uma etapa a mais no processo de racionalizago do poder na sociedade andnima, exatamente por essas duas apontadas razées. 19. N&o se pode deixar de considerar, por fim, fendmeno ainda incipiente no Brasil, mas largamente estudado na experiéncia corporativa norte-americana. Trata-se do que Berle & Means denominaram de management control, ou seja, a ocorréncia de um efetivo controle da empresa por administradores, dada a pulverizacao completa do poder de voto face a grande disseminagao das agGes da companhia (stock widely distributed). Exemplo cléssico da dissociagdo entre propriedade e controle, o chamado poder gerencial acentua, de maneira parti cularmente ilustrativa, a instituigéo de uma possivel dominaco burocritica em que a crenga na legitimidade, de forma mais intensa, depende da estrutura formal da sociedade anénima e dos mecanismos legais capazes de assegurar 0 dominio. Dentre esses iltimos, avultam os pedidos de procuragoes (proxy sollic- tations), formulados pelos administradores para se:manterem no poder, ¢ admi tidos por nossa lei de 1976 (art. 126, § 2°). Mas & imperioso reconhecer que < management control somente se estabiliza (€ propicia a dominagéo) quando tem © suporte das proxies, ou seja, quando nao Ihe falta o apoio dos acionistas. Além disso, como salientam Berle & Means, ‘Even here, however, there is always the possibility of revolt. A group outside the management may seek control. If the company has been seriously mismanaged, a protective committee of stockholders may combine a number of individual owners into a group which can successfully contend with the existing management and replace it by another which in turn can be ousted only by revolutionary action”. © 14. A. propésto, Paillusseau, ob. city p. 259 e ss 15. The Modern Corporation and Private Property, The MacMillan Company, N. York, 1950, p. 88 e ss. 16. Ob. eit, p. 88. DOUTRINA 79 20. A experiéncia indica quéo poderosa se mostra, por vezes, a influéncia politica dos administradores sociais & testa da gesto das companhias. A demissi Dilidade ad nutum e a sujeicao ao acionista controlador, nos termos expostos, no raro se aptesentam como possibilidades antes te6ricas que praticas, tendo em Vista que a estabilidade da administragdo se coloca, em determinadas instan: cias, como um verdadeiro imperativo empresarial. Considere-se, a titulo de exemplo, uma orgenizacio complexa, cuja atividade requeira uma equipe de administradores de grande niimero ¢ de elevadas qualificagdes teenologicas. Nessa hipotese, a mutagdo radicel dos quadros administrativos pode se revelar dificil ou mesmo impossfvel, face A inexisténcia, no mercado de trabalho, de outros tantos administradores com os mesmos predicados. Rupturas profundas na ge- réncia dos negécios sociais so, via de regra, altamente danosas para a atividade empresarial, podendo interrompé-la © prejudicé-la de forma bastante intensa, principalmente em mercados de concorréncia ativa, em que as decisbes do mana- ‘ement precisam ser répidas e seguras. 21. Adicionalmente, 0 conhecimento privilegiado de informagées internas, sobre 03 meandros e pormenores dos negécios e da organizagio, confere 20 managerial power uma relevancia de facto muito importante, no contexto da estrutura de poder da sociedade andnima. E freqiiente 0 caso de acionistas, mesmo controladores, que no conseguem se assenhorear por completo dessa espécie de inside information, cuja disponibilidade € vital para a empresa ¢ sta diregdo. Os meios legais de obter informagées, tais como o full disclosure dos fatos relevantes, a divulgacéo das demonstragdes financeiras ¢ a instalacao do conselho fiscal, io reconhecidamente insuficientes para revelar, de forma satis- fatéria, a enorme complexidade da gestdo das grandes companhias. 22. Assim, necessita ser recebida com reservas a afirmagio, getalmente feita, de que 0 management das macro-organizagGes se caracteriza por sua absoluta impessoalidade, A observago mostra, a0 contrétio, que 0 managerial power repousa, em grande parte, sobre 0 conhecimento pessoal, de certos administra- dores, acerca dos nexécios da estrutura da empresa, o que thes outorga uma ascendéncia natural sobre os escaldes subordinados da administragio e uma res- peitabilidade geral perante a comunidade. E isso é poder, na acepcio precisa do termo. E poder que contrasta, por vezes, com o proprio poder dos acionistas, ou que a ele resiste 23. Daf a facilidade com que podem os administradores se lancar & coleta de procuragées, jé que contam (ou podem contar) com um potencial de solidari- zacdo mais elevado do que os proprios acionistas. Nas sociedades abertas, com controle aritmeticamente minoritério, a proxy solicitation, por parte dos admi- nistradores tem virtualidade da maior significagéo, em razio da respeitabilidade dos gestores sociais, que se impoem por vezes de forma muito mais efetiva petante 0 piblico do que a figura do acionista controlador, 0 qual, embora de- tendo de direito a possibilidade de influir politicamente sobre as atividades da empresa, nem sempre logta obter a simpatia de pequenos acionistas para o efeito de pedirthes procuracies. 24. Essa peculiaridade dos tempos modernos, do ponto de vista sociolégico, altera o perfil do poder e as caracteristicas da dominacao sobre a sociedade and- nnima, na medida em que cresce a forga gerencial. Configura-se, na espécie, uma modalidade de dominagio burocrética que nasce da estrutura da companhia € 80 REVISTA DE DIREITO MERCANTIL — 53 do seu modus operandi na economia, dissociando-se e até mesmo distanciando-se do poder acionério, representado pelo voto preponderante nas assembléias gerais. Observa'se, assim, mais uma significativa distorgéo no modelo legal da sociedade andnima, © controle acionario é sempre possivel, de acordo com a lei, mas nem sempre é praticdvel, de acordo com a realidade da empresa. Essa 2 conclusio que se pode chegar, a0 cabo destas linhas, 0 que demonstra que o poder ¢ a dominagio, na sociedade andnima, apenas em principio representam emanagéo da vontade dos acionistas. O fenémeno burocritico se acentua cada vez mais como fonte de poder e como possibilidade de dominacao, colocando em xeque esquema formal das companhias.

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