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iNDIC Prefiicio & primeira edigao XI Preficio a segunda edigao XVII 1 DIREITO E NATUREZA 1 1 2. O ato ¢ 0 seu significado juridico 3. O sentido subjetivo e o sentido objetivo do ato. A sua auto-explicagao 3 4. A normal 4 a) A norma como esquema de interpre 4 b) Norma ¢ producio normativ 5 ©) Vigéncia e dominio de vigencia da norma n 4d) Regulamentagao positiva ¢ negativa: ordenar, confe- rir poder ou competéncia, permitir 16 6, ‘varia Maris Pontes Batre Lat @) Norma ¢ valor A ordem social fa) Ordens sociais que estatuem sancd b) Haverd ordens sociais desprovidas de sancao? 6) Sangdes transcendentes ¢ sangdes socialmente imanen- A ordem juridica a) O Direito: ordem de conduta humana b) O Direito: uma ordem coativa Os atos de coagao estatuidos pela or mo sangd 30 33 XVIII TEORIA PURA DO DIREITO damentais por ela definidos. Muitos destes conceitos podem revelar-se demasiado estreitos, outros demasiado latos, Estou ple- namente consciente deste perigo ao fazer a presente tentativa e, ‘por isso, agradecerei sinceramente toda a critica que sob este as. ecto meseja feita. Também esta segunda edigao da Teoria Pura do Diteito ndo pretende ser considerada como uma apresentaiio de resultados definitivos, mas como uma tentativa carecida de um desenvolvimento a realizar através de complementagoes e outros aperfeigoamentos. O seu fim terd sido alcaneado se for conside. rada merecedora de tal desenvolvimento — por ouiros que ndo © presente autor, jd a atingir o limite dos seus dias. Antepus a esta segunda edicao 0 prefiicio da primeira. Com efeito, ele mastra a situacdo cientifica e politica em que a'Teoria Pura do Direito, no periodo da Primeira Guerra Mundial e dos abalos sociais por ela provocados, apareceu, eo eco que ela entiio encontrou na literature. Sob este aspecto, as coisas ndo se modifi caram muito depois da Segunda Guerra Mundial e das convulsdes politicas que dela resultaram. Agora, como antes, wma ciéncia ju- ridica objetiva que se limita a descrever 0 seu objeto esbarra com 4a pertinaz oposicao de todos aqueles que, desprezando os limites entre ciéncia e politica, prescrevem ao Direito, em nome daquela, um determinado contetida, quer dizer, créem poder definir um Di- reito justo e, conseqiientemente, um critério de valor para o Direi- 10 positivo. E especialmente a renascida metafisica do Direito na- tural que, com esta pretensdo, sai a opar-se ao positivismo juridico. Oproblema da Justi¢a, enquanto problema valorativo, situa- se fora de uma teoria do Direito que se limita & andlise do Dire 10 positivo como sendo a realidade juridica. Como, porém, tal problema é de importancia decisiva para a politica juridica, pro: curei expor num apéndice® o que hd a dizer sobre ele de um pon- 10 de vista cientifico e, especialmente, 0 que hd a dizer sobre a doutrina do Direito natural. evo agradecer ao Sr. Dr. Rudolf A. Métall a elaboragao da lista dos meus escritas ¢ 0 valioso auxilio que me prestou na correcdo das provas Berkeley, California, abril de 1960. Haws KELSEN * Este apSndice — que consta da edo alma — foi publisado em port guds como tule Justia eo Dirito Natural por Arménio Ania Eat, bra. (do E) 1 Direito e natureza 1. A “purera” A Teoria Pura do Direito & uma teoria do Direito positivo — do Direito positivo em geral, nao de uma ordem juridica espe- cial, E teoria geral do Direito, ‘ndo interpretagao de particulares normas juridicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretacio. Como teoria, quer tnica e exclusivamente conhecer o seu pré- prio objeto. Procura responder a esta questo: 0 que € ¢ como 60 Direito? Mas ja nao the importa a questao de saber como de- ve ser 0 Dizeito, ou como deve ele ser feito. F citncia juridica ¢ nao politica do Direito. Quando a si prépria se designa como “pura” teoria do Di- reito, isto significa que ela se propde garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quan- to ndo pertenga a0 seu objeto, tudo quanto nao se possa, rigoro- samente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pre- tende libertar a ciéncia juridica de todos os elementos que lhe sao esiranhos. Esse é 0 seu principio metodologico fundamental. Isto parece-nos algo de per si evidente. Porém, um relance de olhos sobre a ciéncia juridica tradicional, tal como se desen- volveu no decurso dos sées, XIX e XX, mosira claramente quao longe ela esta de satisfazer & exigéncia da pureza. De um modo inteiramente acritico, a jurisprudéncia tem-se confundido com a psicologia ea sociologia, com a ética e a teoria politica, Esta con- fusdo pode porventura explicar-se pelo fato de estas cigncias se seferirem a objetos que indubitavelmente tém uma estreita con; xo com 0 Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar © conhecimento do Direito em face destas disciplinas, Fé-lo nao 2 TBORIA PURA DO DIREITO por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexdo, mas por gue intenta evilar um sineretismo metodoldgico que obscurece a esséncia da ciéncia juridica e dilui os limites que Ihe so impostos pela natureza do seu objeto. 2. Oatoeo seu Se se parte da distinedio entre cineias da natureza e ciéncias sociais e, por conseguinte, se distingue entre natureza ¢ socieda: de como objetos diferentes destes dois tipos de ciéncia, pde-se lozo a questo de saber se a cigncia juridica é uma ciéncia da natureza ‘ou uma cigncia social, se 0 Direito é um fendmeno natural ou social, Mas esta contraposicao de natureza e sociedade nao € pos- sivel sem mais, pois a sociedade, quando entendida como a real ou efetiva convivencia entre homens, pode ser pensada como parte da vida em geral e, portanto, como parte da natureza. Igualmen te 0 Direito — ou aquilo que primo conspectu se costuma desig. nar como tal — parece, pelo menos quanto a uma parte do ser, situar-se no dominio da natureza, ter uma existéncia inte mente natural. Se analisarmos qualquer dos fatos que classifica: ‘mos de juridicos ou que tém qualquer conexdo com 0 Direito — por exemplo, uma resolucao parlamentar, um ato administrati- vo, uma sentenca judicial, um negécio juridico, um delito, ete. —, poderemos distinguir dois elementos: primeiro, um ato que se rea- liza no espaco € no tempo, sensorialmente perceptivel, ou uma série de tais atos, uma manifestacdo externa de conduta huma- nna; segundo, a sua significacdo juridica, isto é, a significacao que (ato tem do ponto de vista do Direito. Numa sala encontram-se reunidos varios individuos, fazem-se discursos, uns levantam as maos e outros nao — cis o evento exterior. Significado: foi vota: da uma lei, criou-se Direito. Nisto reside a distineao familiar aos juristas entre o processo legiferante e 0 seu produto, a lei. Um outro exemplo: um individuo, de habito talar, pronuncia, de ci ma de um estrado, determinadas palavras em face de outro indi luo que se encontra de pé a sua frente. O processo exterior sig- nifica juridicamente que foi ditada uma sentenga judicial. Um co merciante escreve a outro uma carta com determinado conteti- do, & qual este responde com outra carta. Signilica isto que, do ponto de vista juridico, eles fecharam um contrato. Certo indivi duo provaca a morte de outro em conseqidéncia de uma determi- nada atuago. Juridicamente isto significa: homicidio. DIREITO E NATUREZA 3 3. 0 sentido subjetive eo sentido objetivo do ato. A sua auto-explicacio Mas esta significagio juridica ndo pode ser percebida no ato por meio dos sentidos, tal como nos apercebemos das qualidades naturais de um objeto, como a cor, a dureza, 0 peso. Na verdade 0 individuo que, atuando racionaimente, pde 0 ato, liga a este tum determinado sentido que se exprime de qualquer modo ¢ é entendido pelos outros, Este sentido subjetivo, porém, pode coin- cidir com 0 significado objetivo que 0 ato tem do ponto de vista do Dircito, mas nao tem necessariamente de ser assim. Se alguém dispde por escrito do seu patrimOnio para depois da morte, o sen- tido subjetivo deste ato € 0 de um testamento. Objetivamente, porém, do ponto de vista do Direito, nao 0 é, por deficigncia de Forma, Se uma organizagao secreta, com o intuito de libertar a patria de individuos nocivos, condena & morte um deles, consi derado um traidor, € manda executar por um filiado aquilo que subjetivamente considera e designa como uma sentenga de con- denacao 4 morte, objetivamente, em face do Direito, nao esta- mos perante a execuedo de uma sentenca, mas perante um homi- cidio, se bem que o fato exterior ndo se distinga em nada da exe cugdo de uma sentenga de morte. Um ato, na medida em que se expresse em palavras faladas ow escritas, pode ele proprio até dizer algo sobre a sua significa co juridica, Nisto reside uma particularidade do material ofere- cide ao conhecimento juridico. Uma planta nada pode comuni- car sobre si prépria ao investigador da natureza que a procura classificar cientificamente. Ela ndo faz qualquer tentativa para cientificamente explicar a si propria. Um ato de conduta huma- nna, porém, pode muito bem levar consigo uma auto-explicacdo juridica, isto é, uma dectaragdo sobre aquilo que juridicamente significa. Os individuos reunidos num parlamento podem expres: samente declarar que votam uma lei. Uma pessoa pode expressa: mente designar como testamento a sua disposicao de tikima von- ade. Duas pessoas podem declarar que concluem um negécio juridico. Assim, o conhecimento que se ocupa do Direito encon: Ira ja, no proprio material, uma auto-explicacdo juridica que to- ma a dianteira sobre a explicagdo que ao conhecimento juridico compete. 4 TRORIA PURA DO DIREITO 4. A norma a) A norma como esquema de interpretagao 0 fato externo que, de conformidade com o seu significado objetivo, constitui um ato juridico (licito ou ilicito), processando- se no espago € no tempo, , por isso mesmo, um evento senso- rialmente perceptivel, uma parcela da natureza, determinada, co- ‘mo tal, pela lei da causalidade. Simplesmente, este evento como tal, como elemento do sistema da natureza, nao constitui objeto de um conhecimento especificamente juridico — nao é, pura e simplesmente, algo juridico. O que transforma este fato num ato juridico (lieito ou ilcito) nao é a sua facticidade, no € 0 seu ser hatural, isto é, o seu ser tal como determinado pela lei da causa- lidade ¢ encerrado no sistema da natureza, mas o sentido objeti- vo que esti ligado a esse ato, a significaedo que ele possui. O sen- lido juridico especifico, a sua particular significagdo juridica, recebe-a o fato em questao por intermédio de uma norma que ale se refere com o seu contetido, que Ihe empresta a significa ‘0 juridica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma. A norma funciona como esquema de interpretagZo. Por outras palavras: o juizo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato juridico (ou antijuridico) é 0 resultado de uma interpretacdo especifica, a saber, de uma inter pretacdo normativa. Mas também na visualizacao que o apresenta como um acontecer natural apenas se exprime uma determinada interpretacdo, diferente da interpretago normativa: a interpre- tagdo causal. A norma que empresta a0 ato o significado de um ato juridico (ou antijuridico) ¢ ela propria produzida por um ato juridico, que, por seu turno, recebe a sua significagao juridica ‘de uma outra norma. O que faz com que um fato constitua uma execugao juridica de uma sentenga de condenagao & pena capital endo um homicidio, essa qualidade — que nao pode ser captada pelos sentidos — somente surge através desta opera¢ao mental: confronto com 0 cédigo penal e com 0 cédigo de proceso penal Que a supramencionada troca de cartas juridicamente signifique aconclusdo de um contrato, deve-se tinica ¢ exclusivamente a ci cunstancia de esta situaedo Fatica cair sob a algada de certos pre~ ceitos do cédigo civil. O ser um documento, um testamento vali- do, nao 86 segundo o seu sentido subjetivo mas também de acor- do com 0 seu sentido objetivo, resulta de ele satisfazer as condi- DIREITO E NATUREZA 5 ‘es impostas por este cédigo para que possa valer como testa: mento. Se uma assembléia de homens constitui um parlamento ese 0 resultado da sua atividade ¢ juridicamente uma lei vinculan: te — por outras palavras: se estes fatos tém esta significagaio —, isso quer dizer apenas que toda aquela situacao de fato corres: ponde as normas constitucionais. Isso quer dizer, em suroa, que 9 contetido de um acontecer fitico coincide com 0 contetido de uma norma que consideramos valida. b) Norma e produeao normativa Ora, 0 conhecimento juridico dirige-se a estas normas que possuiem o cardter de normas juridicas e conferem a determina: dos fatos o carater de atos juridicos (ow antijuridicos). Na verda de, 0 Direito, que constitui o abjeto deste conhecimento, ¢ uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de norms que regulam o comportamento humano. Com o termo “norma” se quer significar que algo deve ser ou acontever, espe- cialmente que um homem se deve conduzir de determinada ma- nieira, E este o sentico que possuem determinados atos humanos due intencionalmente se dirigem & conduta de outrem. Dizemos ‘que se ditigem intencionalmente & conduta de outrem nao s6 quan- do, em conformidade com 0 seu sentido, prescrevem (comandam) essa conduta, mas também quando a permitem e, especialmente, ‘quando conferem o poder de a realizar, isto é, quando a outrem E atribufdo um determinado poder, especialmente o poder de ele prdptio estabelecer normas. Tais atos so — entendidos neste set tido — atos de vontade. Quando um individuo, através de qual: quer ato, exprime a vontade de que um outro individuo se con: duza de determinada maneira, quando ordena ou permite esta conduta ou confere o poder de a realizar, o sentido do seu ato no pode enunciar-se ou descrever-se dizendo que 0 outro se con- duzira dessa mancira, mas somente dizendo que 0 outro se deve 4 conduzir dessa maneira. Aquele que ordena ow confere o po der de agir, quer, aquele a quem o comando ¢ dirigido, ou a quem a autorizagdo ou o poder de agir é conferido, deve. Desta forma 0 verbo ““dever"” € aqui empregado com uma significacdo mais ampla que a usual. No uso corrente da linguagem apenas ao or: denar-corresponde um “ever”, correspondendo ao autorizar um “estar autorizado a” € ap conferir competéncia um “poder” 6 TEORIA PURA DO DIREITO Aqui, poréi, emprega-se o verbo “‘dever” para significar um ato intencional dirigido 4 conduta de outrem. Neste “dever”” vo in- cluidos 0 “ter permissio” e 0 “poder” (fer competéncia). Com feito, uma norma pode no s6 comandar mas também permitir e, especialmente, conferir a competéncia ou o poder de agit de certa maneira, Se aquele a quem ¢ ordenada ou permitida uma determinada conduta, ou a quem é conferido o poder de realizar essa conduta, pergunta pelo fundamento dessa ordem, permis 40 ou poder (e nio pela origem do ato através do qual se pres- ‘reve, permite ou confere competéncia), apenas o pode fazer desta forma: por que devo (ou também, no sentido da linguagem cor- rente: sou autorizado, posso) conduzir-me desta mancira? “Nor- ma” & 9 sentido de um ato através do qual uma conduta é pres crita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de ad- judicada & competéncia de alguém. Neste ponto importa salien- iar que a norma, como o sentido especifico de um ato intencio- nal dirigido conduta de outrem, é qualquer coisa de diferente do ato de vontade cujo sentido ela constitui. Na verdade, a nor ma é um dever-ser eo ato de vontade de que ela constitui o senti- do é um ser, Por isso, a situagao fética perante a qual nos encon- tramos na hipotese de tal ato tem de ser descrita pelo enunciado seguinte; um individuo quer que o outro se conduza de determi- nada maneira, A. primeira parte refere-se a um ser, 0 ser fético do ato de vontade; a segunda parte refere-se a um dever-ser, a uma norma como sentido do ato. Por isso nao é correto dizer, como muitas vezes se diz, que o dever um individuo fazer algo nada mais significa senfio que um outro individuo quer algo — ‘ que equivaleria a dizer que o enunciado de um dever-ser se dei xa reconduzir ao enunciado de um ser ‘A distingdo entre ser e dever-ser nao pode ser mais aprofun- dada. I um dado imediato da nossa consciéncia!. Ninguém po- de negar que o enunciado: tal coisa é— ou seja, o enunciado atra- vés do qual descrevemos um ser fético — se distingue essencial mente do enunciado: algo deve ser — com o qual descrevemos uma norma — e que da circunstancia de algo ser nao se segue que algo deva ser, assim como da circunstancia de que algo deve ser se no segue que algo seja”. 'No entanto, este dualismo de ser ¢ dever-ser no significa que ser ¢ dever-ser se coloquem um ao lado do outro sem qual: {quer relac&o, Diz-se: um ser pode corresponder a um dever-ser, ‘0 que significa que algo pode ser da maneira como deve ser. Afir- DIREITO E NATUREZA 7 ma-se, por outro lado, que 0 dever-ser é “dirigido” a um “ser” A expressio: “um ser corresponde a um dever-ser" nio ¢ intei- ramente correta, pois ndo € 0 ser que corresponde ao dever-ser, mas € aquele “algo”, que por um lado *é"", que corresponde aquele “algo”, que, por outro lado, “deve ser” e que, figurati- vamente, pode ser designado como contetido do ser ou como con- teiido do dever-ser. Também podemos exprimir isto por outras palavras dizendo que um determinado quid, especialmente uma determinada condita, pode ter a qualidade de ser ou a qualidade de dever-ser. Nestas duas proposigdes: a porta sera fechada e a porta deve ser fechada, o “fechar a porta” €, no primeiro caso, enunciado como algo que € e, no segundo caso, como algo que deve ser. A conduta que € ¢ a Conduta que deve ser nao so iden: ticas. A'conduta que deve ser, porém, equivale & conduta que & em toda a medida, exceto no que respeita & circunstancia (mo- dus) de que uma €¢ a outra deve ser. Portanto a conduta estatul da numa norma como devida (como devendo ser) tem de ser dis. tinguida da correspondente conduta de fato. Porém, a conduta estatufda na norma como devida (como devendo ser), e que cons- titui o contetido da norma, pode ser comparada com a conduta de fato e, portanto, pode ser julgada como correspondendo ou nao correspondendo & norma (isto é, a0 contetido da norma). A conduta devida e que constitui o conteiido da norma nio pode, rho entanto, ser 2 conduta de fato correspondente & norma, ‘Apesar de tudo também costuma designar-se esta conduta correspondente a norma e, portanto, uma conduta que é (da or dem do ser), como uma conduta devida (que deve ser) — e com isso pretende significar-se que ela € como deve ser. A expresso “conduta devida” é ambigua, Tanto pode designar a conduta que, ha norma, enquanto contetido da norma, & posta como devida, fe que deve ser mesmo quando se no ponha em ser ou realize; como também a conduta que de Fato é ou se realiza e corresponde ‘ao contetido da norma. Quando se diz que o dever-ser é “dirigido” ‘a.um ser, a normia a uma conduta fatica (efetiva), quer-se signifi- car a conduta de fato que corresponde ao contetido da norma, ‘0 contetido do ser que equivale a0 contetido do dever-ser, a con: uta em ser que equivale 2 conduta posta na noma como devida (devendo ser) — mas que se nao identifica com ela, por forca da diversidade do modus: ser, num caso, dever-ser, no outro, (Os atos que tém por sentido uma norma podem ser realiza- dos de diferentes maneiras, Através de um gesto: assim, com um 8 TEORIA PURA DO DIREITO determinado movimento de mio, o sinaleiro ordena que paremos, com outro, que avancemos. Através de outros simbolos: assim uma luz vermelha significa para o automobilista a ordem de pa- rar, uma luz verde significa que deve avanar. Através da pala vra falada ou escrita: uma ordem pode ser dada no modo grama- tical do imperativo, v. g.: Cala-tet Mas também 0 pode ser sob ‘a forma de uma proposicio: Eu ordeno-te que te cales. Sob esta forma podem também ser concedidas autorizagdes ou conferidos poderes. Hé enunciadas sobre o ato cujo sentido é 0 comando, a permissdo, a atribuicao de um poder ou competéncia. O senti do dessas proposigées, porém, nao € 0 de um enunciado sobre uum fato da ordem do ser, mas uma norma da ordem do dever ser, quer dizer, uma ordem, uma permissdo, uma atribuicao de competéncia. Uma lei penal pode conter a proposicao: 0 furto sera punido com pena de prisdo. O sentido desta proposicao nto 6, como o seu teor verbal parece sugerir, a enunciagao de um acon: tecer fatico, mas uma norma: uma ordem ou uma atribui¢do de competéncia para punir o furto com pena de prisdo. O processo legiferante € constituido por uma série de atos, que, na sua tota~ Tidade, possuem o sentido de normas. Quando dizemos que, por meio de um dos atos acima referidos ou através dos atos do pro- cedimento legiferante’, se “produz” ou “poe” uma norma, is- to & apenas uma expressdo figurada para traduzir que o sentido 0u 0 significado do ato ou dos atos que constituem o procedi- ‘mento legiferante é uma norma. No entanto, é preciso distinguir © sentido subjetivo do sentido objetivo. “*Dever-ser” € 0 sentido subjetivo de todo © ato de vontade de um individuo que inten- cionalmente visa a conduta de outro. Porém, nem sempre um tal ato tem também objetivamente este sentido. Ora, somente quan- do esse ato tem também objetivamente o sentido de dever-ser & que designamos 0 dever-ser como “norma” A circunstancia de 0 ““dever-ser”” constituir também o senti- do abjetivo do ato exprime que a conduta a que o ato intencio nalmente se dirige € considerada como obrigatéria (devida), ndo apenas do ponto de vista do individuo que pac o ato, mas tam- bém do ponto de vista de um terceiro desinteressado — e isso mui- to embora o querer, cujo semtido subjetivo é 0 dever-ser, tenhia deixado faticamente de existir, uma vez.que, com a vontade, nao desaparece também o sentido, o dever-ser; uma vez que o dever- ser “vale” mesmo depois de a vontade ter cessado, sim, uma vez gue cle vale ainda que o individuo cuja conduta, de acorde com DIREITO E NATUREZA 9 © sentido subjetivo do ato de vontade, ¢ obrigatoria (devida) na da saiba desse ato e do seu sentido, desde que tal individuo ¢ havi- do como tendo o dever ou o direito de se conduzir de conformida. de com aquele dever-ser. Entdo, ¢ s6 ent2o, o dever-ser, como dever-ser “objetivo”, € uma “norma valida” (“vigente”>), vin: culando os destinatarios. E sempre este o caso quando ao ato de vontade, cujo sentido subjetivo é um dever-ser, éemprestado esse sentido objetivo por uma norma, quando uma norma, que por isso vale como norma “superior”, atribui a alguém competéncia (ou poder) para esse ato. A ordem de um gangster para que Ihe seja entregue uma determinada soma de dinheiro tem 0 mesmo sentido subjetivo que a ordem de um funcionario de finangas, a saber, que 0 individuo a quem a ordem ¢ dirigida deve entregar uma determinada soma de dinheiro. No entanto, s6 2 ordem do funcionario de financas, ¢ ndo a ordem do gangster, tem o senti- do de uma norma valida, vinculante para o destinatario; apenas © ato do primeiro, ¢ nio odo segundo, é um ato produtor de uma norma, pois 0 ato do funciondrio de financas é fundamentado nu- ‘ma lei fiscal, enquanto que 0 ato do gangster se no apéia em qual- quer norma que para tal Ihe atribua competéncia‘. Se o ato legis- Iativo, que subjetivamente tem o sentido de dever-ser, tem tam- bem objetivamente este sentido, quer dizer, tem o sentido de uma norma valida, é porque a Constituigao empresta ao ato legislativo este sentido objetivo, O ato criador da Constituigao, por seu tur no, tem sentido normativo, no sé subjetiva como objetivamen- te, desde que se pressuponha que nos devemos conduzir como o autor da Constituicao preceitua. Se um homem que se encontra em estado de necessidade exige de um outro que Ihe preste auxi- lio, 0 sentido subjetivo da sua pretensao é 0 que o outro the deve prestar auxilio, Porém, uma norma objetivamente vilida que vin cule ou obrigue o outro s6 existe, nesta hipétese, se vale a norma geral do amor do préximo, eventualmente estabelecida pelo fun dador de uma religido. E esta, por seu turno, apenas vale como objetivamente vinculante quando se pressupe que nos devemos conduzir como 0 fundador da religido preceituou. Um tal presst- posto, fundante da validade objetiva, sera designado aqui por nor- ma fundamental (Grundnorm)>. Portanto, nao é do ser fatico de um ato de vontade dirigido & conduta de outrem, mas é ainda e apenas de uma norma de dever-ser que deflui a validade — sem sentido objetivo — da norma segundo a qual esse outrem se deve conduzir em harmonia com o sentido subjetive do ato de vontade. 10 TEORIA PURA DO DIREITO ‘As normas através das quais uma conduta é determinada co: ‘mo obrigatéria (como devendo ser) podem também ser estabele~ cidas por atos que constituem o fato do costume. Quando os in- dividuos que vivem juntamente em sociedade se conduzem du- rante certo tempo, em iguais condigdes, de uma maneira igual, surge em cada individuo a vontade de se conduzir da mesma ma- neira por que os membros da comunidade habitualmente se con- duzem. O sentido subjetivo dos atos que constituem a situacao Fatica do costume nao € logo e desde 0 inicio um dever-ser. So- mente quando estes atos se repetiram durante um certo tempo surge no individuo a idéia de que se deve conduzir como costu mam condhizit-se os memibras da comunidade e a vontade de que também os outros membros da comunidade se comportem da mes- ma maneira, Se um membro da comunidade se nao conduz pela forma como 0s outros membros da comunidade se costumam con- duzir, a sua conduta é censurada por esses outros porque ele n20 se conduz como estes querem, Desta forma a situacao fatica do costume transforma-se numa vontade coletiva cujo sentido sub- jetivo € um dever-ser. Porém, o sentido subjetivo dos atos cons- titutivos do costume apenas pode ser interpretado como norma objetivamente valida se 0 costume € assumido como fato produ: tor de normas por uma norma superior. Visto 0 fato do costume ser constituido por atos de conduta humana, também as normas: produzidas pelo costume sio estabelecidas por atos de conduta humana e, portanto, normas postas, isto é, normas positivas, tal como as normas qué so o sentido subjetive de atos legislativos. ‘través do costume tanto podem ser produzidas normas morais como normas juridicas. As normas juridicas sio normas pro- duzidas pelo costume se a Constituigao da comunidade assume (© costume — um costume qualificado — como fato eriador de Direito. Finalmente deve notar-se que uma norma pode ser nao s6 © sentido de um ato de vontade mas também — como conteiido de sentido — 0 conteiido de umn ato de pensamento. Uma norma podle ndo s6 ser querida, como também pode ser simplesmente pensada sem ser querida, Neste caso, ela ndo é uma norma pos: ta, uma norma positiva, Quer isto dizer que uma norma nao tem de ser efetivamente posta — pode estar simplesmente pressupos- ta no pensamento™. DIREITO B NATUREZA n ©) Vigéncia e dominio de vigencia da norma Com a palavra “‘vigéncia’” designamos a existéncia especifi cade uma norma. Quando descrevemos o sentido ou 0 significa: do de um ato normativo dizemos que, com o ato em questan, uma qualquer conduta humana € preceituada, ordenada, prescrita, exi gida, proibida; ou entdo consentida, permitida ou facultada. Se, como acima propusemos, empregarmos a palavra “dever-ser™ hum sentido que abranja todas estas sienificagdes, podemos ex- primir a vigencia (validade) de uma norma dizendo que certa coisa deve ou nio deve ser, deve ou nao ser feita, Se designarmos a cexistencia especifica da norma como a sua “vigéncia"", damos des- ta forma expressio & maneira particular pela qual norma — diferentemente da ser dos fatos naturais — nos ¢ dada ou se nos presenta. A “existéncia”” de uma norma positiva, a sua vigen- cia, € diferente da existéncia do ato de vontade de que ela & 0 sentido objetivo. A norma pode valer (ser vigente) quando 0 ato de vontade de que ela constitui o sentido ja ndo existe. Sim, ela s6 entra mesmo em vigor depois de o ato de vontade, cujo senti- do ela constitui, ter deixado de existir. O individuo que, com 0 seu ato intencional dirigido a conduta de outrem, criou uma nor- ma juridica, nao precisa continuar a querer essa conduta para que a norma que constitui o sentido do seu ato valha (seja vigente). 5s individuos que funcionam como drgao legislativo, depois de fovarem uma lei que regula determinadas matérias ¢ de a po- rem, portanto, em Vigor, dedicam-se, nas suas resolugdes, a re- gulamentagao de outras matérias — ¢ as leis que eles puseram fem vigor (a que eles deram viggncia) podem valer mesmo quan- do estes individuos j tenham morrido ha muito tempo e, por- tanto, nem sequer sejam capazes de querer. E errGneo caracteri- zar a norma em geral e & norma juridica em particular como “von- tade" ou ‘‘comando” — do legislador ou do Estado —, quando por “yontade”” ou ““comando” se entenda o ato de vontade p: quica’ ‘Como a vigéneia da norma pertence & ordem do dever-ser, nao a ordem do ser, deve ambém distinguir-se a vigéncia da norma da sua eficécia, isto ¢, do fato real de ela ser efetivamente aplicada ¢ observada, da circunstancia de uma conduta humana conforme & norma se verificar na ordem dos fatos. Dizer que uma norma vale (¢ vigente) traduz algo diferente do que se diz quan- do se afirma que ela é efetivamente aplicada e respeitada, se bem 2 TEORIA PURA DO DIREITO ‘uc entre vigéncia e eficicia possa existir uma certa conexiio. Uma norma juridica é considerada como objetivamente valida apenas quando a conduta humana que ela regula Ihe corresponde efeti- vamente, pelo menos numa certa medida. Uma norma que nun- cae em parte alguma € aplicada e respeitada, isto é uma norma {que — como costuma dizer-se — no é eficaz em uma certa me dida, nao serd considerada como norma valida (vigente). Um mi- nimo de eficdcia (como s6i dizer-se) & a condigdo da sua vigén cia, No entanto, deve existir a possibilidade de uma conduta em desarmonia com a norma. Uma norma que preceituasse um cer- to evento que de antemao se sabe que necessariamente se tem de verificar, sempre e em toda a parte, por forca de uma lei natural, seria tio absurda como uma norma que preceituasse um certo fato que de antemtio se sabe que de forma alguma se podera verili- car, igualmente por forga de uma lei natural. Vigencia e eficaicia de uma norma juridica também nao coincidem cronologicamen te, Uma norma juridica entra em vigor antes ainda dese tornar eficaz, isto é, antes de ser seguida ¢ aplicada. Um tribunal que aplica uma Iei num caso concreto imediatamente apés a sua pro- miulgacéo — portanto, antes que tenhia podido tornar-se eficaz — aplica uma norma juridica valida, Porém, uma norma juridi cca deixard de ser considerada valida quando permanece duradou- ramente ineficaz, A eficdcia é, nesta medida, condicao da vigen- cia, visto ao estabelecimento de uma norma se ter de seguir a sua eficdcia para que ela nao perca a sua vigencia. E de notar, no entanto, que, por eficdcia de uma norma juridica que liga a uma determinada conduta, como condigao, uma sanedo como conse giiencia, — e, assim, qualifica como delito a conduta que condi- ciona a sangao —, se deve entender nfo s6 0 fato de esta norma set aplicada pelos 6redos juridicos, especialmente pelos tribunais — isto 6, 0 fato de a sangdo, num caso concreto, ser ordenada © aplicada —, mas também 6 fato de esta norma ser respeitada pelos individtios subordinados & ordem juridica — isto é, 0 fato de ser adotada a conduta pela qual se evita a sancao. Na medida em que a estatuicdo de sangdes tem por fim impedir (prevengao) a conduta condicionante da sancao — a pratica de delitos —, encontramo-nos perante a hipdtese ideal da vigéncia de uma nor- ma juridica quando esta nem sequer chega a ser aplicada, pelo fato de a representaso da sangdo a executar em caso de delito se ter tornado, relativamente aos individuos submetides & ordem juridica, em motivo para deixarem de praticar o delito. Nesta hi- ) j DIREITO B NATUREZA B pétese, a eficacia da norma juridica reduz-se a sua observancia. No entanto, a observaneia da norma juridica pode ser provoca- da por outros motivos, de forma tal que 0 que é “eficaz”” nao € propriamente a representacéo da norma juridica mas a repre- sentacao de uma norma religiosa ou moral. Mais tarde voltare- ‘mos ainda a falar desta to importante conexdo entre a vigencia ¢ a chamada eficdcia da norma juridica®. ‘Se, com a expresso: a norma refere-se a uina determinada condata, se quer significar a conduta que constitui 0 conteiido da norma, entdo a norma pode referir-se também a fatos ou si ‘tuagdes que niio constituem conduta humana, mas isso so na me- dida em que esses fatos ou situagdes sao condigdes ou efeitos de condutas humanas. Uma norma juridica pode determinar que, fem caso de um cataclismo da natureza, aqueles que por ele 180 forem imediatamente atingidos estao obrigados a prestar socor~ ro as vitimas na medida do possivel. Quando uma norma juridi- ‘ca pune 0 homicidio com a pena capital, o tipo legal da iicitud assim como as conseqiiéncias do ilieto, ndo consistem apenas nu- ma determinada conduta humana, ou seja, no comportamento de um individuo dirigido & morte de outro, mas também num efei- to especifico desta conduta: a morte de um homem, que é um processo fisioldgico, e no uma acao humana. Visto a conduta Ihumana, assim como as suas condigdes ¢ efeitos se processarem 1no espaco € no tempo, 0 espaco € © tempo em que os fatos des- critos pela norma decorrem devem ser fixados no contetido da mesma norma, A vigeneia de todas as normas em geral que regu- lam a conduta humana, ¢ em particular a das normas juridicas, € uma vigéncia espaco-temporal na medida em que as normas tém, por contetido processos espago-temporais. Dizer que uma nor~ ma vale significa sempre dizer que ela vale para um qualquer es ago ou para um qualguer periodo de tempo, isto é, que ela se refere a uma conduta que somente se pode verificar em um certo lugar ou em um certo momento (se bem que porventura nio ve- nha de fato a verificar-se), ‘A referencia da norma ao espago ¢ ao tempo é o dominio da vigéncia espacial ¢ temporal da norma. Este dominio de vi- géncia pode ser limitado, mas pode também ser ilimitado. A nor- ma pode valer apenas para um determinado espaco e para um determinado tempo, fixados por ela mesma ou por uma outra nor- ‘ma superior; ou seja, regular apenas fatos que se desenrolam den- tro de um determinado espaco e no decurso de um determinado 4 TEORIA PURA DO DIREITO periodo de tempo, Pode, porém, valer também — de harmonia Com o seu sentido — em toda a parte e sempre, isto €, referr-s 4 determinados faros em pera, onde quer que e quando quer que Se possam verficar,E ese o stu sentido quando ela nfo cpntém qualquer determinagio espacial etemporal e nenhuma outra nor- tha superior delimitao seu dominio espacial ou temporal. Neste aso, ea nao vale a-espacialeintemporalmente, mas apenas su Cede que nao vigora para um espago determinado e para um pe- Fiodo de tempo determinado, isto é, os seus dominios de vig Gia espacial e temporal nao sao limitados, O dominio de vigencia de uma norma é um elemento do seu costed, e este contedido pode, como mais adiante vremas, ser predterminado até cto Pont elatvamente a0 domino da vaidade temporal de uma nor- ma positiva, deve distinaur-seo perfodo de tempo posterior € 0 periodo de tempo anterior a0 estabelecimento da norma. Em geral, 2s normasreferem se apenas a condutas futuras. No en tanto, podem referrse tambérna cond passadas. Asim, uma norma jurdica, que ga a produgao de determinade fato un ato Coercitivo como sancio, pode determina que um individuo que tena adotado determinada conduta, antes ainda de a norma ju rica ser editada,seja punido — e desta forma tal conduta vern {ser qualifieada somo det, Dz-s eno que a norma tem for- Ga retroativa, Mas também quanto a0 a(o coeritivo que, como Sonseqiéncia, éestatuido pela norma juridce, pode esta visar nfo $8.0 futuro como tambemn o passada. Com efeito, ela pode de terminar nao s que, sob certas condicdes,verificadas antes da bun entrada em vigor, se devera — no futuro —executar um ato Ge coersao, mas tambern quem ato de coers80 que, no passe- do, foi efetivamente exceutado sem o dever sr, isto é, sem fr o arater de uma sangao, devera te sido realizado (nesse mesmo passado), de forma que, de agora em diante, cle valerd como se fora devido, isto & como sanyo. Assim, por exemplo, sob o re gime nacional-sociaista, na Alemanha, certo atos de cosredo qu, 80 tempo em que foram exeeutados,constiulam juridicamente homicides, foram posteriornente leetmads retroatvamente cO- mo sangdes eas conditas que os detcrminaram foram posterior mente qualificadas como defitos. Uma norma juridica pode ret Fer, com forea retroativa,validade a uma outra norma juridica Ge fora eaitada antes da sua entrada em vigor, por forma a que Os atos de coergao, executados, como Sancdes, sob o dominio da eT Uae: tits meme mpm semen, _setiinetttnn mame, DIREITO F NATUREZA 18 norma anterior, percam o seu carter de penas ou execugdes, € os fatos de conduta humana que os condicionaram sejam despi- dos posteriormente do seu carater de delitos. Assim, por exem: plo, pode a lei de um governo que conquistau o poder pela via revolucionaria retirar a validade, retroativamente, a uma lei edi {ada pelo governo anterior e segundo a qual certas agoes pratica- das pelos sequazes do partido revolucionario foram punidas co- ‘mo crimes politicos. EE verdade que aquilo que jd aconteceu nao pode ser transformado em nao acontecido; porém, o significado normativo daquilo que ha um longo tempo acontecen pode set posteriormente modificado através de normas que sao postas em vigor apés o evento que se trata de interpretar. Além dos dominios de validade espacial e temporal pode ain- da distinguir-se um dominio de validade pessoal e um dominio de validade material das normas. Com efeito, a conduta que pe- Jas normas € regulada € uma conduta humana, conduta de ho- mens, pelo que sao de distinguir em toda a conduta fixada numa norma um elemento pessoal e um elemento material, 0 homem, que se deve conduzir de certa maneira, e © modo ou forma por que ele se deve conduzir. Ambos os elementos esto ligadlos en- te si pot forma insepardvel. Importa aqui notar que nio é o in- dividuo como tal que, visado por uma norma, Ihe fica submeti- do, mas o ¢ apenas e sempre uma determinada conduta do indi- viduo. O dominio pessoal de validade refere-se ao elemento pes- soal da conduta fixada pela norma, Também este dominio de v: lidade pode ser limitado ou ilimitado. Uma ordem moral pode manifestar a pretensdo de valer para todos os homens, isto é, a conduta determinada pelas normas deste ordenamento é a con- duta de todos os homens e nao simplesmente de determinados homens qualificados pelo mesmo ordenamemto. Exprime-se ha- bitualmente esta idéia dizendo que este ordenamento se dirige a todos os homens. A conduta fixada pelas normas de um ordena: ‘mento juridico estadual é apenas a conduta de homens que vi- vem no territério do Estado ou — quando vivem em outra qual- quer parte — sao cidadaos desse Estado. Diz-se que a ordem ju- ridica estadual apenas disciplina a conduta de individuos por es- ta forma determinados, que apenas estes individuos esto sub. ‘metidos & ordem juridica estadual, ou seja, que o dominio pessoal de validade € limitado a estes individuos. Pode falar-se ainda de um dominio material de validade tendo em conta os diversos as. pectos da conduta humana que s40 normados: aspecto econdmico, 16 TEORIA PURA DO DIREITO i080, politico, etc. De uma norma que disciplina a conduta evo- n6mica dos individuos diz-se que ela regula a economia, de uma norma que disciplina a conduta religiosa diz-se que ela regula a re- ligido, etc. Falamos de diferentes matérias ou objetos da regula- mentagao ¢ queremos traduzir com isso os diferentes aspectos da conduta fixada pelas normas. O que asnormas deum ordenamen- to regulam é sempre uma conduta humana, pois apenas a conduta humana € regulavel através das normas. Os outros fatos que nao so conduta humana somente podem constituir conteiido de nor- ‘mas quando estejam em conexo com umaconduta humana — ou, ‘como ja notamos, apenas enquanto condigio ou efeito de uma con dua humana. O conceito de dominio material de validade encon- tra aplicagao, por exemplo, quando uma ordem juridica global ‘como no caso de um Estado federal — se desmembra em varias cordens juridicas parciais cujos dominios de validade sao recipro- camente delimitados com referéncia as matérias que Ihes cabe re gular; por exemplo, quando as ordens juridicas dos Estados- ‘membros apenas podem regular matérias bem determinadas, ent meradas na Constitui¢o ou — como também se costuma dizet — quando apenas a regulamentagao destas matérias se enquadra na competéncia dos Estados-membros, ¢ a regulamentacao de todas as outras matérias ¢ reservada a ordem juridica do Estado federal (que também consticui apenas uma ordem juridica parcial), ov, por outras palavras, cai sob a algada ou no dominio de competéncia do Estado federal. O dominio material de validade de uma ordem juridica global, porém, €sempreilimitado, na medida em que uma tal ordem juridica, por sua propria esstncia, pode regular sob qual: quer aspecto a conduta dos individuos que lhe estao subordinados, ) Regulamentagao positiva e negativa: ordenar, conferir poder ou competéncia, permitir A conduta humana disciplinada por um ordenamento nor- mative ou é uma acdo por esse ordenamento determinada, ou a omissao de tal aco. A regulamentagdo da conduta humana por lum ordenamento normativo processa-se por uma forma positiva por uma forma negativa. A conduta humana é regulada positi- vyamente por um ordenamento positivo, desde logo, quando a um individuo € prescrita a realizagQ0 ou a omissiio de um determinado DIREITO E NATUREZA ” ato. (Quando € preserita a omissi0 de um ato, esse ato & proibi do.) Ser a conduta de um individuo prescrita por uma norma ob: jetivamente valida ¢ equivalente a ser esse individuo obrigado a essa conduta. Se o individuo se conduz tal como @ norma pres reve, cumpre a sua obrigacdo, observa a norma; com a conduta oposta, “viola” a norma, ou, o que vale o mesmo, a sua obriga- 20. A conduta humana é ainda regulada num sentido positive quando a um individuo é conferido, pelo ordenamento normati- vo, 0 poder ou competéncia para produzir, através de uma de terminada atuacao, determinadas conseqiiéncias pelo mesmo or- denamento normadas, especialmente — se o ordenamento regu- Jaa sua propria criacio — para produzir normas ou para inter- vir na produedo de normas. O caso € ainda o mesmo quando 0 ordenamento juridico, estatuindo atos de coercao atribui a um individuo poder ou competéncia para estabelecer esses atos coer- citivos sob as condigdes estatuidas pelo mesmo ordenamento ju- ridico. A mesma hipdtese de regulamentacao positiva se verifica também quando uma determinada conduta, que ¢ em geral proi- bida, € permitida a um individuo por uma norma que limita o dominio de validade da outra norma que proibe essa conduta Tal sucede, por exemplo, quando uma norma proibe, de forma absolutamente genérica, 0 emprego da forca por um individuo contra outro, e uma norma particular o permite em caso de legi- ‘ima defesa. Enquanto um individuo pratica as ages para que ‘uma norma the confere competéncia, ou se conduz tal como lhe & positivamente consentido por uma norma, aplica a norma. Com- ppetente por forga de uma lei, que € uma norma geral, para deci- dir 0s casos concretos, o juiz com a sua decisio — que represen- ta uma norma individual — aplica a lei a um caso conereto. Com- petente, por forca da decisto judicial, para executar uma deter- minada pena, o érgao de execucao aplica a norma individual da decisao judicial. Ao fazer-se uso da legitima defesa, aplica-se a norma que positivamente permite o emprego da forea. Aplica- ‘edo de uma norma, contudo, é ainda o juizo através do qual e) primimos que um individuo se conduz ou se nao conduz tal co- mo uma norma lho prescreve ou positivamente consente, ou que ele age ou nao age de acordo com o poder ou competéncia que uma norma Ihe atribui Num sentido muito amplo, toda a conduta humana que & fixada num ordenamento normativo como pressuposto ou como cconseqiiéncia se pode considerar como autorizada por esse mesmo 18 TEORIA PURA DO DIRELTO ordenamento e, neste sentido, como positivamente regulada. Ne- gativamente regulada por um ordenamento normativo é a con- duta humana quando, nao sendo proihida por aquele ordenamen: to, também néo é positivamente permitida por uma norma deli itadora do dominio de validade de uma outra norma proibitiva — sendo, assim, permitida num sentido meramente negativo. Essa fungdo meramente negativa da permissao deve ser distinguida da fungdo positiva, pois esta consiste num ato positive. O carter positive de uma permissao sobressai especialmente quando se ope- ra uma limitagdo de uma norma proibitiva de determinada con- duta, através de uma outra norma que permite a conduta proibi- da sob a condigdo de esta permissdo ser concedida por um érga0 da coletividade que para tal tem competéncia. A fun¢o — tanto negativa como positiva — da permissao esta, assim, essencialmen- teligada com a da prescri¢ao. Somente nos quadros de um orde- namento normativo que prescreve determinada conduta humana pode ser permitida uma determinada conduta humana, ‘A palavra “permitir” € também utilizada no sentido de ferir um direito”, Quando, numa relagao entre A e B, se prescre- ve a Ac dever de suportar que B se conduza de determinada ma- neira, diz-se que a B é permitido (isto é, que ele tem o direito de) conduzir-se dessa maneira, E quando se prescreve a A o dever de prestar a B um determinado guid, diz-se que a B € permitido (isto é, que ele tem 0 direito de) receber aquela determinada pres- lagao de A. No primeiro caso, a proposicao: € permitido a B conduzir-se de determinada mancira, nada mais diz que esta ou- tra: é prescrito a A o dever de suportar que B se conduza de de- terminada maneira. E, no segundo caso, a proposicao: € permi- tido a B receber aquela determinada prestagio de A, nao signifi- ca sendo 0 mesmo que esta: é imposta a A a obrigacao de prestar a Bum determinado guid. O “ser permitido” da conduta de B apenas um reflexo do ser prescrito da conduta de A. Este “per- mitir"” nao é uma fungao da ordem normativa diferente do “pres- ©) Norma e valor Quando uma norma estatui uma determinada conduta co- ‘mo devida (no sentido de “*preserita’”}, a conduta real (Fatica) pode corresponder & norma ou contrarié-la. Corresponde & norma iSO 5 : DIREITO E NATUREZA 19 quando é tal como deve ser de acordo com a norma; contraria @ norma quando nao € tal como, de acordo com a norma, deve ria ser, porque € 0 contrario de uma conduta que corresponde i norma. O juizo segundo o qual uma conduta real é tal como deve ser, de acordo com uma norma objetivamente valid juizo de valor, e, neste caso, um juizo de valor positivo. ea que a conduta real é “boa”. O juizo, segundo o qual uma con. duta real nao é tal como, de acordo com uma norma valida, de- veria ser, porque é © contrario de uma conduta que corresponde norma, ¢ um juizo de valor negativo. Significa que a conduta real é “ma. Uma norma objetivamente valida, que fixa uma con- uta como devida, constitui um valor positive ou negative. A con- uta que cortesponde a norma tem um valor positive, aconduta que contraria a norma tem um valor negativo. A norma conside- Fada como objetivamente valida funciona como medida de valor relativamente & conduta real. Os juizos de valor segundo os quais uma conduta real corresponde a uma norma considerada objeti- vamente valida e, neste sentido, & boa, isto é, valiosa, ow contra ria (al norma e, neste sentido, é mi, isto é, desvaliosa, devem ser istinguidos dos juizos de realidade que, sem referencia a uma norma considerada objetivamente valida — o que, em iitima and- lise, quer dizer: sem referéncia a uma norma fundamental pr suposta — enunciam que algo € ou como algo é!) A.conduta real a que se refere 0 juizo de valor € que consti- tui 0 objeto da valoracdo, que tem um valor positivo ou negati- vo, é um fato da ordem do ser, existente no tempo e no espaco, um elemento ou parte da realidade. Apenas um fato da ordem do ser pode, quando comparado com uma norma, ser julgado valioso ou desvalioso, ter um valor positivo ou negativo, E a rea- lidade que se avalia!2, Na medida em que as normas que consti- tuem o fundamento dos juizos de valor so estabelecidas por atos de uma vontade humana, e nao de uma vontade supra-humana, 08 valores através delas constituidos silo arbitrarios, Através de ‘outros atos de vontade humana podem ser produzidas outras nor- mas, contrétias as primeiras, que constituam outros valores, opos- tos aos valores que estas constituem. O que, segundo aquelas, é bom, pode ser mau segundo estas, Por isso, as norms lesisladas ppelos homens — e ndo por uma autoridade supra-humana— ape- nas constituem valores relativos. Quer isto dizer que a vigéncia de uma norma desta espécie que prescreva uma determinada co1 duta como obrigatéria, bem como a do valor por ela constituido, 20 TEORIA PURA DO DIREITO no exclui a possibilidade de vigéncia de uma outra norma que prescreva a conduta oposta e constitua um valor oposto. Assim, norma que proibe o suicidio ou a mentira em todas e quaisquet circunstiincias pode valer o mesmo que a norma que, em certas cir ‘cunstincias, permita ou até prescreva o suicidio ou a mentira, sem que seja possivel demonstrar, por via racional, que apenas uma pode ser considerada comio valida e nao a outra. Podemos consi derar como valida quer uma quer outra — mas ndo as duas a0 mesmo tempo. Quando, porém, nos representamos a norma constitutiva de certo valor e que prescreve determinada conduta como procedente de uma autoridade supra-humana, de Deus ou da natureza cria- da por Deus, cla apresenta-se-nios com a pretensio de excluir a possibilidade de vigéncia (validade) de uma norma que prescreva a conduta oposta. Qualifica-se de absoluto 0 valor constituido por uma tal norma, em contraposiga ao valor constituido atra- vés de uma norma legislada por um ato de vontade humana. Uma tcoria cientifica dos valores apenas toma em consideraco, no en- tanto, as normas estabelecidas por atos de vontade humana ¢ os valores por elas constituidos, Se o valor € constituido por uma norma objetivamente vali- da, o juizo que afirma que um quid real, uma conduta humana efetiva, é “boa”, isto é, valiosa, ou “ma”, isto & desvaliosa, ex- prime e traduz que ela é conforme a uma norma objetivamente valida, ou seja, que deve ser (tal como €), ou que contradiz uma norma objetivamente valida, quer dizer, ndo deve ser (tal como 8). O valor, como dever-ser, coloca-se em face da realidade, co- mo ser; valor e realidade — tal como o dever-ser ¢ 0 ser — per- tencem a duas esferas diferentes! Se chamarmos & proposiclo que afirma que uma conduta humana ¢ cogforme a uma norma objetivamente valida, ou a con- tradiz, um juizo de valor, entao o juizo de valor deve ser disti- guido da norma constitutiva do valor. Como juizo, pode tal pro: posigio ser verdadeira ou falsa, pois refere-se & norma de um or- denamento vigente. O juizo segundo o qual é bom, de acordo com a Moral crista, amar os amigos e odiar os inimigos, ¢ inveridico se uma norma da Moral crista vigente exige que amemos ni s6 (08 amigos como também os inimigos. O juizo, segunda o qual € conforme ao Dircito punir um ladrao com a'pena de morte é falso quando, de conformidade com o Direito vigente, um ladraio deve ser punido com a privagao da liberdade, mas no com a pri- DIREITO F NATUREZA 21 vagio da vida, Pelo contrario, uma norma nao é verdadeira ou falsa, mas apenas valida ou invalida, chamado “juizo” judicial nao €, de forma alguma, tam: pouco como a lei que aplica, um juizo no sentido légico da pala ra, mas uma norma — uma norma individual, limitada na sua validade a um caso concreto, diferentemente do que sucede com a norma geral, designada como “lei” Devemos distinguir do valor constituido através de uma nor- ma considerada objetivamente valida o valor que consiste, nao na rela¢do com uma tal norma, mas na rela¢ao de um objeto com (© desejo ou a vontade de um ou de varios individuos a tal objeto irigida. Conforme 0 objeto corresponde ou niio a este desejo ou vontade, tem um valor positivo ou negativo, & “bom’? ou “‘mau’". Se designarmos como juizo de valor 0 juizo através do qual determinamos a relacao de um objeto com 0 desejo ou von- tade de um ou varios individuos dirigida a esse mesmo objeto e, desse modo, considerarmos bom o objeto quando corresponde Aquele desejo ou vontade, ¢ mau, quando contradiz aquele dese. jo ou vontade, este juizo de valor nao se distingue de um juizo de realidade, pois que estabelece apenas 2 relagao entre dois fa tos da ordem do ser ¢ nao a relacao de um fato da ordem do ser com uma norma da ordem do dever-ser objetivamente vilida Constitui apenas um particular juizo de realidade, Sea afirmacao de alguém de que algo é bom ou mau consti tui apenas a imediata expressio do sew desejo desse algo (ou do seu contrario), essa afirmagio nao é um “juizo" de valor, visto nao corresponder @ uma funeao do conhecimento mas a uma fun 40 dos componentes emocionais da consciéneia. Quando aque: Ja manifestacao se dirige & conduta alheia, como expressio de wma aprovasao ou desaprovacdo emocional, pode traduzir-se por ex clamagdes como “bravo!” ou “piu” O valor que consiste na relacao de um objeto, especialmente de uma conduta humana, com o desejo ou vontade de um ou véi- rigs individuos, Aquele objeto diigida, pade ser designado como valor subjetivo — para o distinguir do valor que consiste na rela ‘¢40 de uma conduta com uma norma objetivamente valida e que pode ser designado como valor objetivo. Quando o juizo segun- do o qual uma determinada conduta humana é boa apenas signi- fica que ela ¢ desejada ou querida por uma outra ou varias ou- tras pessoas, e 0 juizo segundo o qual uma conduta humana é mé apenas traduz que a conduta contraria é desejada ou querida 2 TEORIA PURA DO DIREITO Por uma outra ou varias outras pessoas, entao 0 valor “bom” € 0 desvalor ‘‘mau”” apenas existem para aquela ou aquelas pes soas que desejam ou querem aquela conduta ou a conduta opos- la, € no para a pessoa ou pessoas cuja conduta ¢ desejada ou querida. Diversamente, quando o juizo segundo o qual uma de- terminada conduta humana € boa traduz que ela corresponde a uma norma objetivamente valida, e 0 juizo segundo 0 qual uma determinada conduta humana € ma traduz que tal conduta con- aria uma norma objetivamente valida, 0 valor “bom” ¢ 0 des- valor ‘mau’ valem em relacdo as pessoas cuja conduta assim & apreciada ou julgada, e até em relacdo a todas as pessoas cuja conduta ¢ determinada como devida (devendo ser) pela norma objetivamente vélida, independentemente do fato de elas deseja- rem ou queretem essa conduta ou a conduta oposta. A sua con- duta fem um valor positive ou negativo, nao por ser desejada ou quetida — cla mesma ou a conduta oposta —, mas porque ¢ con- forme @ una norma ou a contradiz. O ato de vontade cujo senti- do objetivo a norma nio entra aqui em linha de conta. valor em sentido subjetivo, ou seja, 0 valor que consiste na relagdo de um objeto com o desejo ou vontade de uma pes- soa, distingue-se do valor em sentido objetivo — ou seja do va- Jor que consiste na relagao de uma conduta com uma norma ob- jetivamente valida — ainda na medida em que aquele pode ter diferentes graduagdes, pois o desejo ou vontade do homem é sus- ceptivel de diferentes graus de intensidade, 20 passo que a gra- duacao do valor no sentido objetivo nao é possivel, visto uma conduta somente poder ser conforme ou no ser conforme a uma norma objetivamente valida, contrarié-la ou ndo a contrariar — mas nao ser-Ihe conforme ou contrarié-la em maior ou menor sraul4 Quando designamos os juizos de valor que exprimem um va- Jor objetivo como objetivos, e os juizos de valor que exprimem uum valor subjetivo como subjetivos, devemos notar que os pre- divados “objetivo’” e *'subjetivo”” se referem aos valores expres- 808 € no ao juizo como funcao clo conhecimento. Como funga0 do conhecimento tem um juizo de ser sempre objetivo, isto 6, tem de formular-se independentemente do desejo ¢ da vontade da su- jeito judicante. Isto é bem possivel. Podemos, com efeito, deter- minar a relagdo de uma determinada conduta humana com um ordenamento normativo, ou seja, afirmar que esta conduta esta de acordo ou ndo esti de acordo com o ordenamento, sem a0 DIREITO E NATUREZA 2B ‘mesmo tempo tomarmos emocionalmente posisao em face dessa ordem normativa, aprovando-a ou desaprovando-a, A resposta a questio de saber se, de acordo com a Moral crista, é bom amar © inimigo, ¢ 0 juizo de valor que dai resulta, pode e deve dar-se sem {er em conta se aquele que tem de responder e formular 0 juizo de valor aprova ou desaprova o amor dos inimigos. A res- posta a questdo de saber se, de acordo com o Direito vigente, um assassino deve ser punido com a pena capital, ¢, assim, se a pena de morte para o homicida & valiosa de acordo com esse Direito, pode e deve verificar-se sem ter em conta se aquele que deve dar 2 resposta aprova ou desaprova a pena de morte, Enido, e so- mente entao, € objetivo este juizo de valor. Quando 0 juizo traduz a relagdo de um objeto, especialmente de uma conduta humana, com o desejo ou vontade de uma ou varias pessoas dirigidas a esse objeto, ¢ exprime, portanto, um valor subjetivo, esse juizo de valor ¢ objetivo na medida em que © sujeito judicante formula tal juizo sem atenc&o ao fato de ele proprio desejar ou querer determinado objeto ou o objeto opos: to, de ele proprio aprovar ou desaprovar tal conduta, mas sim: plesmente enuncia 0 fato de que uma ou varias pessoas desejam fou querem um determinado objeto ou o objeto oposto, parti- cularmente o fato de que essa ou essas pessoas aprovam ou desa: provam determinada conduta, Contra a distingdo aqui feita entre juizos de valor que expri ‘mem um valor objetivo enquanto enunciam a relagio de uma con. duta humana com uma norma considerada objetivamente valida pelo que se distinguem essencialmente dos jufzos de realidade « juizos de valor que expressam um valor subjetivo, enquanto tra- duzem a relagdo de um objeto, e particularmente da conduta hit ‘mana, com o fato de que uma ou varias pessoas desejam ou que rem esse objeto ou 0 seu oposto, especialmente com fato de que aprovam ou desaprovam determinada conduta humana — pelo que so apenas uma espécie particular dos juizos de realida- de —, objeta-se que os juizos de valor em primeito lugar referi dos também sao juizos de realidade. Com efeito — diz-se —, a norma que constitui o fundamento do juizo de valor € fixada atta: vvés de um ato ou imperativo humano ou produzida através do costume — ¢, portanto, através de fatos da realidade empirica, Arrelacdo de um fato, particularmente de uma conduta real efe tiva, com uma norma também representaria, assim, apenas uma relagdo entre fatos da realidade empfrica. # i | | 4 TEORIA PURA DO DIREITO Esta objegdo esquece que 0 fato, que & 0 ato de comando ou imperativo, ou 0 costume, ¢a norma, que através destes fatos € produzida, sdo duas coisas diferentes: um fato e um conteiido de sentido; ¢ que, por isso, a relagio de uma conduta real com uma norma, ¢ a relacao desta conduta com 9 fato da ordem do ser cujo sentido & a norma, constituem duas relagées diferentes. O enunciado da relacao de uma conduta com a norma que a es tatui como devida (devendo ser) ¢ inteiramente possivel sem to- mar em consideracdo 0 fato do ato imperativo ou do costume através do qual anorma é produzida. E esteclaramente 0 caso quit do se trate de normas cuja estatuigao se verificou jé hd muito tem: po, normas que foram estatuidas por atos de homens ja hd mui- to falecidos ou esquecidos, e, particularmente, de normas que vie- ram a luz através dos usos e costumes de geracdes passadas, de tal forma que ja apenas so consciencializadas, por aqueles cuja conduta regulam, como contetidos de sentido. Quando uma de- terminada conduta é considerada como moraimente boa ou ma — por ser conforme a uma norma moral considerada valida ou por a contrariar —, na maior parte dos casos nao se tem de mo- do algum consciéncia do costume através do qual foi produzida norma que constitui o fundamento de tal juizo. Mas interessa especialmente ter em conta que os atos através dos quais so pro- duzidas as normas juridicas apenas s4o tomados em considera io, do ponto de vista do conhecimento juridico em geral, na me- dida em que séo determinados por outras normas juridicas; e que norma fundamental, que constitui © fundamento da validade destas normas, nem sequer & estatuida através de um ato de von- tade, mas é pressuposta pelo pensamento juridico". Como valor designa-se ainda a relacdo que tem um objeto, c particularmente uma conduta humana, com um fim. Adequa- cio ao fim (Zweckmassigkeit)é 0 valor positivo, contradica0 com 0 fim (Zweckwidrigkeit), 0 valor negativo. Por “fim” pode en- tender-se tanto um fim objetivo como um fim subjetivo. Um fim objetivo é um fim que deve ser realizado, isto é, um fim estatuido por uma norma considerada como objetivamente valida. E um fim posto a natureza em geral, ou 20 homem em particular, por uma autoridade sobrenatural ou supra-humana. Um fim subjetivo € um fim que um individuo se poe a si proprio, um fim que ele deseja realizar. O valor que reside na correspondéncia-ao-fim é, portanto, idéntico ao valor que consiste na correspondéncia norma, ou ao valor que consiste na correspondéncia-2o-desejo, DIREITO & NATUREZA 25 Se se deixa de parte a circunstancia de aquilo que o fim re. presenta, aquilo que se visa (escopo), ser objetivamente devido (obrigatério) ou subjetivamente desejado, a relacio de meio a fim apresenta-se como relacao de causa a efeito. Dizer que algo € ade- quado ao fim (zweckmssig) significa que € apropriado a reali zar o fim, isto é, a produzir, como causa, o efeito representado pelo fim. O juizo que afirma que algo é adequado ao fim pode, conforme o carater subjctivo ou objetivo do fim, ser um juizo de valor subjetivo ou objetivo. Um tal juizo de valor, porém, € ‘apenas possvel com base numa viswalizacao da relaciio causal que existe entre 0s Fatos a considerar como meio ¢ como fim. Sé.quan- do se sabe que entre A e B existe a relacdo de causa e efeito, que A Ea causa de que B & 0 efeito, se alcanca 0 juizo de valor (sub- jetivo ow objetivo): se B é desejado como fim ou € estatuido nu- ma norma como devido (como devendo ser), A é adequado 20 fim (€ producente). O juizo relativo a relacao entre Ae Bé um juizo de valor — subjetivo ou objetivo — apenas na medida em que B é pressuposto como fim subjetivo ou objetivo, isto é, co- mo desejado, ou estatuido por uma norma", 5. A ordem social ) Ordens sociais que estatuem sangées ‘A conduta de um individuo pode estar — mas nio tem ni cessariamente de estar — em relacao com um ou varios indivi duos, isto é, um individuo pode comportar-se de determinada ma- neira em face de outros individuos. Porém, uma pessoa pode ainda comportar-se de determinada maneira em face de outros objetos que nao individuos humanos: em face dos animais, das plantas € dos objetos inanimados. A relacao em que a conduta de uma pessoa esti com uma ou vatias outras pessoas pode ser imediata ou mediata. O homicidio é uma conduta do homicida em face a vitima. uma relagao imediata de homem a homem. Quem desiréi um objeto valioso, atua imediatamente em face de uma coisa e mediatamente em face de uma ou varias pessoas que es- ‘iio interessadas nessa coisa, especialmente se ela é propriedade ddessas pessoas. Uma ordem normativa que regula a conduta hu- ‘mana na medida em que cla esta em relacdo com outras pessoas €uma ordem social. A Moral ¢ 0 Direito sao ordens sociais deste 18 TPORIA PURA DO DIREITO ue as concepedes sobre o que é moralmente bom ou mau, sobre © que é 0 que nao é moralmente justificavel — como, v. g.. © Dircito — esto submetidas a uma permanente mutacao, e que uma ordem juridica ou certas das suas normas que, ao tempo em. ue entraram em vigor, poderiam ter correspondido as exige cias morais de ento, hoje podem ser condenadas como profun. damente imorais. A tese, rejeitada pela Teoria Pura do Diteito ‘mas muito espalhada na jurisprudéncia tradicional, de que o Di- Icito, segundo a sua propria esséncia, deve ser moral, de que uma ordem social imoral nao é Direito, pressupoe, porém, uma Mo- ral absoluta, isto é, uma Moral valida em todos os tempos e em toda a parte. De outro modo nao poderia ela alcancar o seu fim de impor a uma ordem social um critério de medida firme, inde- pendente de circunstincias de tempo ¢ de lugar, sobre 0 que é direito Gusto) € 0 que € injusto. A tese de que 0 Direito é, segundo a sua prépria esséncia, moral, isto é, de que somente uma ordem social moral ¢ Direito, € rejeitada pela Teoria Pura do Direito, niio apenas porque pres supde uma Moral absoluta, mas ainda porque ela na sua efetiva aplicagdo pela jurisprudéncia dominante numa determinada co munidade juridica, conduz a uma legitimacdo acritica da ordem coercitiva estadual que constitui tal comunidade. Com efcito, Pressupde-se como evidente que a ordem coercitiva estadval pro pria € Direito. O problemético critério de medida da Moral ab. soluta apenas é utilizado para apreciar as ordens coercitivas de outros Estados. Somente estas so desqualifieadas como imorais , portanto, como nao-Direito, quando nao satisfagam a deter minadas exigencias a que a nossa propria ordem dai satisfacao, ¥. g., quando reconhegam ou nao reconhegam a propriedade pri vada, tenham eardter democritico au nao-democratico, etc, Co. mo, porém, a nossa prépria ordem coercitiva é Dircito, ela tem de ser, de acordo com a dita tese, também moral. Uma tal legit macdo do Direito positivo pode, apesar da sua insuficiéncia loei ca, prestar politicamente bons servigos. Do ponto de vista da cién- Cia juridica ela é insustentavel. Com efeito, a ciéneia juridica nao (em de legitimar 0 Direito, no tem por forma alguma de justifi car — quer através de uma Moral absoluta, quer através de uma Moral relativa — a ordem normativa que the compete — t@0- somente — conhecer e deserever iy Direito e ciéncia tcia juriiea mas juridicas como objeto da ci Na afirmagao evidente de que o objeto da ciéncia juridiea €0 Direito, esta contida a afirmacao — menos evidente — de que so as normas juridicas 0 objeto da ciéncia juridica, e a conduta bbumana s6 0 é na medida em que ¢ determinada nas normas juri- dicas como pressuposto ou conseqiiéncia, ou — por outras pala- vyras — na medida em que constitui contetido de normas juridi- cas. Pelo que respeita & questo de saber se as relagies inter humanas sao objeto da ciéncia juridica, importa dizer que elas também $6 so objeto de um conhecimento juridico enquanto re lagGes juridicas, isto é, como relagdes que so constituidas atra- ves de normas juridicas'. A ciéncia juridica procura aprender 0 seu objeto “‘juridicamente”, isto &, do ponto de vista do Dir to. Apreender algo juridicamente nao pode, porém, significar do aprender algo como Direito, o que quer dizer! como norma Juridica ou contetido de uma norma juridica, como determinado através de uma norma juridi jen dinimica 2. Teoria juridica estatiea ¢ teoria jurie Conforme 0 acento € posto sobre um ou sobre o outro ele- mento desta alternativa: as normas reguladoras da conduta hu- mana ou a conduta humana regulada pelas normas, conforme 0 conhecimento é dirigido as normas juridicas produzidas, a apli- car ou a observar por atos de conduta humana ou aos atos de produeao, aplicagdo ou observancia determinados por normas ju- ridieas, podemos distinguir uma teoria estdtica e uma teoria dina. 80 TEORIA PURA DO DIREITO mica do Direito®. A primeira tem por objeto Direito como um sistema de normas em vigor, o Diteito no seu momento estitico; 2 outra tem por objeto 0 processo juridica em que o Direito é produzido e aplicado, o Direito no seu movimento. Deve, no en. fanto, observar-se, a propésito, que este mesmo processo é, por sua vez, regulado pelo Direito. E, com efeito, uma caracteristica muito significativa do Direito o ele regular a'sua prépria produ- edo e aplicacao. A producao das normas juridicas gerais, isto é, © processo lexislativo, ¢ regulado pela Constituigéo, e as leis for mais ou processuais, por seu turno, tomam sua conta regular a aplicacdo das leis materiais pelos tribunais ¢ autoridades admi- nistrativas. Por isso, 08 atos de producdo e de aplicagao (que, ‘como veremos, também é ela propria produsio)! do Direito, que representam o proceso juridico, somente interessam ao conhe- cimento juridico enquanto formam o contetido de normas juri- dicas, enquanto s40 determinados por normas juridicas. Desta forma, também a teoria dindmica do Direito ¢ dirigida a normas juridicas, a saber, aquelas normas que regulam a produgio ¢ a aplicagéo do Direito. 3. Norma juridiea e proposieao juridica Na medida em que a ciéncia juridica apenas apreende a con: duta humana enquanto esta constitui contetido de norma jut cas, isto &, enquanto ¢ determinada por normas juridicas, repre- senta uma interpretaedo normativa deste fatos de conduta. Des- creve as normas juridicas produzidas através de atos de conduta humana e que hao-de ser aplicadas e observadas também por atos de conduta e, consequientemente, descreve as relagdes constitui das, através dessas normas juridicas, entre os fatos por elas de- terminados. As proposicées ou enunciados nos quais a cigncia ju- ridica desereve estas relagSes devem, como proposigdes jurdicas, ser distinguidas das normas juridicas que so produzidas pelos 6rgaos juridicos a fim de por eles serem aplicadas e serem obser- vadas pelos destinatérios do Direito. Proposi¢des juridicas so juizos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de conformi- dade com o sentido de uma ordem juridica — nacional ou inter- nacional — dada ao conhecimento juridico, sob certas condigses u pressupostos fixados por esse ordenamento, devem intervirc tas conseqiiéncias pefo mesmo ordenamento determinadas. As DIREITO E CIENCIA 81 normas juridicas, por seu lado, no so juizos, isto é, enuncia: dos sobre um objeto dado ao conhecimento. Elas s2o antes, de acordo com 0 seu sentido, mandamentos e, como tais, coman dos, imperatives. Mas ndo sao apenas comandos, pois também so permissdes ¢ atribuigdes de poder ou competéncia. Em todo $0, no so — como, por vezes, identificando Direito com ciéncia juridica, se afirma — instrugdes (ensinamentos). O Direi to prescreve, permite, confere poder ou competéncia — nao “en- sina’” nada. Na medida, porém, em que as normas juridicas 40 expressas em linguagem, isto ¢, em palavras © proposicoes, po- dem elas aparecer sob a forma de enunciados do mesmo tipo da- queles através dos quais se constatam fatos. A norma segundo ‘a quall o furto deve ser punido ¢ freqiientemente formulada pelo legistador na seguinte proposicdo: 0 furto ¢ punido com pena de prisao; a norma que confere ao chefe de Estado competéncia pa- ra concluir tratados, assume a forma: o chefe de Estado conclui Lratados internacionais, Do que se trata, porém, nao é da forma verbal, mas do sentido do ato produtor de Direito, do ato que pde a norma. E o sentido deste ato & diferente do sentide da pro: pposigdo juridica que descreve o Direito. Na distingao entre propo- sigdo juridica e norma juridica ganha expresstio a distingSo que existe entre a fungdo do conhecimento juridico e a funeo, com- pletamente distinta daquela, da autoridade juridica, que é repre sentada pelos dredos da comunidade juridica®, A cigneia juridi ca tem por misao conhecer — de fora, por assim dizer — 0 Di- reito e descrevé-1o com base no seu conhecimento. Os érgaos ju- ridicos 1m — como autoridade juridica — antes de tudo por mis so produzir o Direito para que ele possa entao ser conhecido © descrito pela cigncia juridica. E certo que também os drgios apli cadores do Direito tém de conhecer — de dentro, por assim dizer primeiramente o Direito a aplicar. O legislador, que, na sua atividade propria, aplica a Constitui¢ao, deve conhecé-1; ¢ igual mente o juiz, que aplica as leis, deve conhecé-las. O conhecimen: to, porém, nao é o essencial: é apenas o estidio preparatdrio da sua funce que, como adiante melhor se mostrara, é simultanea ‘mente — no s8 no caso do legislador como também no do juiz producdo juridica: o estabelecimento de uma norma juridica geral — por parte do legislador — ou a fixacdo de uma norma Juridica individual — por parte do juiz®. ‘Também é verdade que, no sentido da teoria do conhecimen- to de Kant, a cigncia juridica como conhecimento do Direito, 82 TEORIA PURA DO DIREITO assim como todo o conhecimento, tem cardter constitutive e, por conseguinte, “produ” o seu objeto na medida em que o apreen. decomo um todo com sentido, Assim como o caos das sensayoes 86 através do conhecimento ordenador da ciéncia se transforma em cosmos, isto é, em natureza como wm sistema unitatio, assitn também a pluralidade das normas juridicas gerais e individuals ostas pelos éredos juridicos, isto é, 0 material dado & ciéncia do Direito, s6 através do conhecimento da ciéncia juridica se tans forma num sistema unitario isento de contradigdes, ou seja, nu. ‘ma ordem juridica. Esta “produeao”, porém, tem um puro ca- rater Leorético on gnoscoldgico. Ela é algo completamente dife. rente da produeao de objetos pelo trabalho humano ou da pro- dugao do Direito pela autoridade juridica E freqiiemtemente ignorada a disting3o entre a fungao da cién- cia juridica ea funeao da autoridade juridica, e, portanto, a dis. lingo entre o produto de uma e de outra, Assim acontece no uso da linguagem em que 0 Direito e cigncia juridica aparccem como expressdes sindnimas’, Fala-se, por exemplo, do “Direito inter: nacional clissico’’, querendo significar-se com isso uma deter minada teorja do Direito internacional, ou chega mesmo a falar. se na concepsdo segundo a qual a ciéneia juridica seria uma fonte de Direito no sentido de que se poderia esperar dela a decisio vin culante de uma questao juridica. A cincia juridica, porém, ape. has pode descrever o Direito; ela no pode, como o Direito pro. duzido pela autoridade juridica (através de normas gerais ou ins dividuais), prescrever seja 0 que for’. Nenhum jurista pode ne sara distinedo essencial que existe entre uma lei publicada no jor hal oficial e um comentario juridico a essa lei, entre o cédigo penal € um tratado de Direito penal. A distingaio revela-se no fato de as proposiedes normativas formuladas pela cigncia juridica, que descrevem o Direito e que nao atribuem a ninguém quaisquer de veres ou direitos, poderem ser veridicas ou inveridieas, ao paso que as normas de dever-ser, estabelecidas pela autoridade juricl ca — e que atribuem deveres e direitos aos sujeitos juridicos — nao sio veridicas ou inveridicas mas validas ou invalidas, tal co- ‘mo também os fatos da ordem do ser nao so quer veridicos, quer inveridicos, mas apenas existem ou nio existem, somente as afir. mages sobre esses Fatos podendo ser veridicas ou inveridicas. A proposigao contida num tratado de Direito civil em que se afir. 'me que (em conformidade com o Direito estadual que forma ob- jeto do tratado) quem nao cumpre uma dada promessa de casa DIREITO E CIENCIA 83 mento (esponsais) tem de indenizar pelo prejuizo que por tal fa to cause, caso contrat deverd procederse a execusao forcada noseu pitrimonio, éinveridica se no Diretoestadual que consti tuto objeto deste tatado — tratado que se propoe descrever 0 Direito ~ se no presereve tal deve, j que se nlo prevé essa exeougo Foreada. A resposta&questao de saber se uma al nr ‘na juridica vigoraou nao dentro de determinada ordem juriica Eno deta mas indretamente ~ verifiedvel, pols uns al nor mmatem — para vigorar~ de ser produria ataves de um ato em: piriamente verificvel, Contudo. a norma estatuida pela autor Gade Juridica que presreve a indenizagao do prcjtzo causado e aeiecusto foreada, na hipdese de conduta discordant, nao pode ser veridiea ou iverdic, pos ea ndo umn enuncado, nao ma descrgdo de um objeto, mas uma presericao e, como tal, Objlo a descrever a dssrever pela ceniajuriica, A nor. iat pelo pad ue pee xed do painon9 daquele que nao indenizao prejuizo causado pelo ndo-cumpr mento dasa promssaesponsalia, a propocii deseiva 4 ta norma, formulada pela cignca juridca: quando alguémn no indetza o prejuzo eatsido pelo ndo-cumprimento de una pro messaexponsalicia deve proveder-se a exetucto forsada no seu palrimonio ~ tém cardtrlopicamente diverso. Po sso ¢ acon Scthivel dstnguir também terminologieamente estas das formas deexpressdo chamando-ihes, respetivamente, norma juridica€ proposiedo Juridica, As proposigdes juridieas formuladas pel Siena do Dirito nfo slo, pois simples repeigao das noras juriicas postas pela autoridade Juridica. A objecao de que sto Supéfuas, porém, no € to pathtementeifundada con que considerase superiva uma Cnc natural lad da natures E que a naturezando se manifesta, como o Dirito, em palavras faladascesritas A esa objego de que uma proposigao judi ca, formulada pela ciéncia do Direto, € supéflua ao lado da nor tna urdiea — que a autoridade juridicaestabelece eaquea cin- Gia descreve — pode apenas faerse face mostrando que ela con duza afiemar gue supérlua, a lado de uma lei penal, una des: crigdo jurtdic-cientifie da mesma, que € supérflua, a0 lado do Direito, uma ciéniajuridica Dado gue as noriasjurdicas como prescrigdes, sto &,en- auanto comandos,permisses, atribulgbes de competénda, 0 posden ser verdadeias nem falas, poe-se a quetao de saber Co. mo & que os principio Idseos, paricularmenteo principio da nao ss TORIA Pea Do bieeiro contradiio eas regras da consludncia do tacocnio, podem ser anlicados elagao ene norma omo desde sempre tom Tato 2 Teoria Pura do Diteto) quando, segundo a coneepoto tad direta,indietamente, aplicados 38 norma juriicas, na medida em ae podem ser apicados ts proposioes juris que dere falzes. Duasnormas jriicascontradiem see nao podem, por tari poe ser dedsida de uma ula quando ss prop gis jus gue a dessreven pve ‘slo ___Aisto no s¢ opde fata de estas proposiaesserem eterem asd deerser A propose que deste added falsa se afirmasse que, segundo tal norna o furto¢punido com 6 furto nao éefeivamemtepunido, v8.» quando oladrao se sub apenas poderd radu que, aleve cometefurto,deverd se Dunido, Porem, o dever-ser da proposicao juries no tern, oo. tn sentido desertivo. Eta ambivalncin da palava “dever™ (Sol len, devr-se) exquecica quando se dentifcam propostes nor. mativas (Sollsatze) com imperativos?. 4, Ciencia causal ¢ Determinando 0 Direito como norma (ou, mais exatamen- te, como um sistema de normas, como uma ordem normativa) ¢ limitando a ciéncia juridica ao conhecimento e descricao de nor- ‘mas juridicas e is relagdes, por estas constituidas, entre fatos que as mesmas normas determinam, delimita-se o Direito em face da natureza ¢ @ ciéncia juridica, como cigncia normativa, em face de todas as outras ciéncias que visam o conhecimento, informa- do pela lei da causalidade, de processos reais. Somente por esta DIREITO E CIENCIA via se alcanga um critério seguro que nos permitira distinguir uni vocamente a sociedade da natureza e a ciéncia social da ciéneia natural ‘A natureza é, segundo uma das muitas definigdes deste ob- jeto, uma determinada ordem das coisas ou um sistema de ele rmentos que estdo ligados uns com as outros como causa efeito, ‘ou se)a, portanto, segundo um principio que designamos por cau- salidade. As chamadas leis naturais, com as quais a cigncia des: creve este objeto — como, ¥. g., esta proposicao: quando um me: tal & aquecido, dilata-se — so aplicagdes desse principio. A re lagao que intercede entre o calor ea dilatagao é a de causa e efeito, Se hé uma cigncia social que € diferente da ciéncia natural, ela deve descrever o seu objeto segundo um principio diferente do da causalidade, Como objeto de uma tal ciéncia que é dife- rente da cigncia natural a sociedade é uma ordem normativa de conduta humana, Mas nao ha uma razdo suficiente para nao con: ceber 2 conduta humana também como elemento da natureza, isto é, como determinada pelo principio da causalidade, ou seja, para a nao explicar, como os fatos da natureza, como causa € efeito. Ndo pode duvidar-se de que uma tal explicacio — pelo menos cm certo grau — 6 possfvel efetivamente resulta. Na me- dida em que uma cigncia que descreve ¢ explica por esta forma ‘a conduta humana seja, por ter como objeto a conduta dos ho- mens uns em face dos outros, qualificada de ciéncia social, tal ciéncia social ndo pode ser essencialmente distinta das ciéncias naturais. Quando, contudo, se procede analise das nossas afirma- ces Sobre a Conduta humana, verifica-se que nds conexionamos (98 atos de conduta humana entre si ¢ com outros Fatos, nfo ape- nas segundo o principio da causalidade, isto é, como causa e efei- to, mas também segundo um outro principio que é completamente diferente do da causalidade, segundo um principio para o qual ainda nao hé na ciéncia uma designacao geralmente accita. So- mente se € possivel a prova de que um tal principio esta presente rno nosso pensamento e € aplicada por ciéncias que tém por obje- toa conduta dos homens entre si enquanto determinada por nor- mas, ou seja, que tém por objeto as normas que determinam es- sa conduta, é que teremos fundamento para considerar a socie- dade como uma ordem diferente da da natureza e para distinguir das ciéncias naturais as ciéncias que aplicam na descri¢éo do seu objeto este outro principio ordenador, para considerar estas como 86 TEORIA PURA DO DIREITO essencialmente diferentes daquelas. Somente quando a socieda- de € entendida como uma ordem normativa da conduta dos ho- mens entre si ¢ que ela pode ser concebida como um objeto dife Fente da ordem causal da natureza, s6 entéo é que a ciéncia so. cial pode ser contraposta a cigncia natural. Somente na medida em que o Direito for uma ordem normativa da conduta dos ho ‘mens entre si pode ele, como fendmeno social, ser distinguido da hatureza, ¢ pode a ciéncia juridica, como ciéncia social, ser sepa- rada da ciéneia da natureza. 5. Causalidade ¢ imputacio; lei natural e lei juridica Na descrigao de uma ordem normativa da conduta dos ho- ‘mens entre si é aplicado aquele outro principio ordenador, dife rente da causalidade, que podemos designar como imputagdo. Pe- la via da andlise do pensamento juridico pode mostrat-se que, »nas proposigdes juridicas, isto é, nas proposigées através das quais a ciencia juridica descreve o seu objeto, o Direito — quer se} um Direito nacional ou o Direito internacional —, é aplicado e ‘vamente um principio que, embora andlogo ao da causalidade, ho entanto, se distingue dele por maneira caracteristica. A ana. logia reside na circunstancia de o prinefpio em questdo ter, nas Proposiges juridicas, uma funcdo inteiramente andloga a do prin. cipio da causalidade nas leis naturais, com as quais a ciéneia da ‘aturcza descreve o seu objeto. Proposigées juridicas s40, por exemplo, as seguintes: Se aleuém comete um crime, deve ser-Ihe aplicada uma pena; se alguém nao paga a sua divida, deve proce der-se @ umia execucdo forgada do seu patriménio; se alguém é atacado de docnea contagiosa, deve ser internado num estabele cimento adequado. Procurando uma formula geral, temos: sob determinados pressupostos, fixados pela ordem juridica, deve efe tivar-se um ato de coercao, pela mesma ordem juridica estabele cido. E esta a forma fundamental da proposicao juridica, j4 aci- ‘ma posta em evidéncia. Tal-qualmente uma lei natural, também uma proposicdo juridica liga entre si dois elementos. Porém, ligagao que se exprime na proposicao juridica tem um significa do completamente diferente daquela que a lei natural descreve, ou seja, a da causalidade. Sem diivida alguma que o crime nao éligado & pena, o delito civil a execugao foreada, a doenea con. ‘agiosa ao internamento do doente como uma causa & ligada a0 DIREITO E CIENCIA a7 seu efeito. Na proposicao juridica nao se diz, como na lei natu- ral, que, quando A ¢, B é, mas que, quando A é, B deve ser, mes- mo quando B, porventura, efetivamente nao seja. O ser 0 signi- ficado da cépula ou ligagao dos elementos na proposigao juridi- ca diferente do da ligagao dos elementos na lei natural resulta da circunstancia de a liga¢ao na proposi¢ao juridica ser produzida através de uma norma estabelecida pela autoridade juridiea —atra- vés de um ato de vontade, portanto —, enquanto que a ligacl0 de causa ¢ efeito, que na lei natural se afirma, independente de qualquer intervencao dessa especie. Esta distingdo desaparece nos quadros de uma mundividén: cia metafisico-religiosa. Com efeito, por forga dessa mundividen- cia, a ligacdo de causa e efeito é produzida pela vontade do divi no Criador. Portanto, também as leis naturais deserevem normas nas quais se exprime a vontade divina, normas que prescrevem, A:natureza um determinado comportamento. E, por isso, uma teo- ria metafisiea do Direito cré poder encontrar na natureza um Di- reito natural. No entanto, nos quadros de uma mundividéncia cientifica, dentro dos quais apenas pode achar lugar uma teoria positivista do Dircito, a distingdo entre lei natural e proposicao jjuridica deve ser sustentada ¢ acentuada com firme decisio. Quan- do a proposicéo juridica € aqui formulada com o sentido de que, sob determinados pressupostos, deve realizar-se uma determina da conseqiiéncia, isto €, quando a Tigagio, produzida por uma norma juridica, dos fatos estabelecidos como pressuposto e con- seqiiéncia é expressa na proposicao juridica pela cépula “deve ser)” (Sollen), esta palavra nao ¢ empregada no seu sentido usual — como ji notamos acima” ¢ deve uma vez mais ser bem acen: tuado. Com *dever-ser” exprime-se usualmente a idéia do ser~ prescrito, néo a do set-competente (ser-autorizado) ou a do ser-permitido, O dever-ser juridico, isto é, a cpula que na pro: posigdo juridica liga pressuposto e conseqiéncia, abrange as trés sSignificagdes: a de um ser-prescrito, a de um ser-competente (ser- autorizado) € a de un ser-(positivamente)-permitido das conse. aiiéncias. Quer isto dizer: com 0 “dever-ser’” (Solfen) que a pro. posigdo juridica afirma so desienadas as trés fungdes normati vas, Este “dever-ser”” apenas exprime o especifico sentido com que entre si sao ligados ambos os fatos através de uma norma juridica, ou seja, numa norma juridica, A ciéneia juridica ndo pode exprimir esta conexo produzida através da norma juridi ca, especialmente a conexao do ilfeito com a conseqiiéncia do if 88 TEORIA PURA DO DIREITO cito, sendo pela eépula *deve-ser”, Para traduzir o sentido espe- cifico com que a norma juridica se endereca aos drgaos e sujeitos juridicos, aquela nao pode formular a proposicao juridica senao ‘como uma proposigo que afirme que, de acordo com determi- nada ordem jutidica positiva, sob certos pressupostos deverd in tervir uma determinada conseqiéncia, Se se afirma que a ciéncia Juridica nada mais diz seniio que uma norma juridica entrou “em Vigor"” ou passou a estar “em vigéncia”, em uma determinada data, numa determinada ordem juridica, ¢, portanto, que nao ex prime — diferentemente da norma juridica — um “dever-ser”, ‘mas um ser, isso no é verdad, Uma vez que a afirmagao de que esta “cm vigor’? ou tem “vigéncia”” uma norma que prescreve determinada conduta, a autoriza (para ela confere competéncia) ou a permite (positivamente) nao pode significar que essa condu- ta efetivamente se realiza; ela apenas pode signifiear que tal con: duta deve realizar-se!'. Em especial, a ciéncia juridica ndo pode afirmar que, de conformidade com uma determinada ciéncia ju ridica, desde que se verifique um ilicito, se verifiea efetivamente tuma conseqiiéncia do ilicito. Com uma tal afirmagio colocar- se-ia em contradiedo com a realidade, na qual muito freqiiente- ‘mente se comete um ilicito sem que intervenha a conseqiiéncia do ilicito estatuida pela ordem jurfdica. Por outro lado, esta rea- Hidade nao ¢ 0 objeto a descrever pela ciéncia juridica. Em nada altera a questao o fato de as normas de uma ordem juridica a descrever pela ciéncia do Direito somente valerem, ou seja, 0 fa- to dea conduta por elas fixada somente ser devida (obrigatéria), ‘num sentido objetivo, quando tal conduta efetivamente corre Ponda, numa certa medida, & ordem juridica, Esta eficdcia da ordem juridica é — como sempre tem de ser acentuado — ape- nas pressuposto da viséncia e ndo a propria vigencia. Quando a ciéncia juridica tem de exprimir a vigéncia da ordem juridica, isto é, 0 sentido especifico com que a ordem juridica se dirige aos individuos que the esto submetidos, ela apenas pode afirmar qu de harmonia com uma determinada ordem juridica, realizado 0 Pressuposto que consiste na prética de um ilicito pela mesma or- dem juridica determinado, se deve verificar a efetivacdo de uma determinada conseqtiéncia do ilicito, também por aquela ordem juridica fixada. Com este “dever-ser”” abrange-se tanto a hipdte- se dea execucio da conseqiiéncia do ilicito ser apenas autorizada ‘ou permitida (positivamente), como também a hipdtese de ela ser prescrita. As proposigdes juridicas a serem formuladas pela cigncia DIREITO E CIENCIA 89 do Direito apenas podem ser proposigdes normativas (Soll-sitz). Mas — e ¢ esta a dificuldade Idgica que se nos depara na repre- sentacdo desta realidade —, com 0 emprego da palavra “dever- ser’”, a proposicao juridica formulada pela ciéncia do Direito niio assume a significagao autoritéria da norma juridica por ela des crita: o “dever-ser” tem, na proposigao juridica, um carater sim- plesmente descritivo. Porém, do faio de a proposigio juridica des- crever algo, ndo se segue que esse algo descrito seja um [ato da ordem do ser, pois nao s6 os fatos da ordem do set mas também as normas de dever-ser (Soll-Normen) podem ser descritos, Par ticularmente, a proposigao juridica nao é um imperativo: & um juizo, a afirmacdo sobre um objeto dado ao conhecimento!?, E também nao implica qualquer espécie de aprovacao da norma ju ridica por ela descrita. O jurista cientifico que descreve o Direito nao se identifica com a autoridade que poe a norma juridica. A proposigao juridica permanece descrico objetiva — nao se tor na prescrigio. Ela apenas afirma, tal como a lei natural, a liga- eo de dois fatos, uma conexio funcional Se bem que a cigncia juridica tenha por objeto normas uridicas €, portanto, os valores juridicos através delas constituidos, as suas proposigdes sao, no entanto — tal como as leis naturais da cigncia danatureza— uma descri¢ao do seu objeto alhcia aos valores (wert- Freie). Quer dizer: esta descrigo realiza-sesem qualquer referencia ‘aum valor metajuridico e sem qualquer aprovacio ou desaprova- ‘elo emocional. Quem, do ponto de vista da cidncia juridica, afirma, nna sua descticdo de uma ordem juridica positiva, gue, sob um pres- suposto nessa ordem juridica determinado, deve ser posto wm ato decoacdo pela mesma ordem jurfdica fixado, exprime isto mesmo, ainda que tenha por injusticae desaprove a imputaciio do.ato coer civo ao seu pressuposto. As normas constitutivas do valor juridico devem ser distinguidas das normas segundo as quais é valorada a constituicdo do Direito, Na medida em que a cigncia juridica em geral tem de dar resposta d questio de saber se uma conduta con- creta € conforme ou € contraria a0 Direito, a sua respasta apenas pode ser uma afirmacao sobre se essa conduta é prescrita ou proi- bida, cabe ou ndo na competéncia de quem a realiza, 6 ou nao per- mitida, independentemente do fato de 0 autor da afirmaco con- siderar tal conduta como boa ou ma moralmente, independente- mente de ela merecer a sua aprovacdo ou desaprova Visto a proposicao juridica, tal como a lei natural, exprimir uma conexao funcional, ela pode — segundo a analogia com a lei : 90 TEORIA PURA DO DIREITO natural — ser também designada por lei juridica. Como jé se no. tou e deve acentuar-se, com a palavra “dever-ser” tal proposi cio apenas exprime o sentido especifico com que so entre si li- zados, pela ordem juridica, o pressuposto e a conseqiigncia e, es pecialmente, o ilicito e a conseqiiéncia do ilicito. Desta forma, essa conextio descrita na Ici juridica é, na verdade, andloga a co. nnexao de causa e efeito expressa na lei natural — sendo, no en: tanto, diferente dela. Assim como a lei natural é uma afirmagao ou enunciado di ctitivo da natureza, © nao 0 objeto a descrever, assim também «lei juridica € um enunciado ou afirmagao descritiva do Direito, a saber, da proposicao juridica formulada pela eiéncia do Direi 0, € nao o objeto a descrever, isto é, 0 Direito, a norma juridi- ca, Esta — se bem que, quando tem carter geral, seja designada como “lei"” — nao é uma le, isto €, nao é algo que, por qualquer espécie de analogia com a lei natural, possa ser designado como “lei”. Ela nao é, com efeito, um enunciado pelo qual se descre- va uma ligagao de fatos, uma conexto funcional. Nao é sequer uum enunciado, mas o sentido de um ato com o qual se prescreve algo e, assim, se cria a ligagao entre fatos, a conexao funcional que é descrita pela proposigao juridica, como lei juridica. Acste propdsito deve notar-se que a proposiedo juridica, que assim se apresenta como lei juridica, tem — tal como a lei natural — um cardter geral, isto €, desereve as normas gerais da ordem juridica eas relagdes através delas constituidas. As normas juridi- cas individuais, que sdo postas através das decisées jurisdicionais e das resolugdes administrativas, so descritas pela eiéncia juridi- cca de maneira andloga aquela pela qual a ciencia da natureza des- creve uma experiéncia concreta, remetendo para uma lei natural que nesta lei se manifesta, Um tratado de fisica contera, por exem- plo, o seguinte passo: Visto que, segundo uma lei natural, um cor- po metilico se dilata quando é aquecido, a esfera de metal utiliza da por certo fisico e que este, antes do aquecimento, faz passar através de uma argola de madeira, poderd ja nfo passar na argola depois de aquecida. Num tratado de Direito penal alemao pode- ria, por seu turno, encontrar-se esta passagem: Visto que, segun- do uma lei juridica a formular com referéncia ao Direito alemao, um individuo que pratique um furto devera ser punido por um tri- bunal com a pena de prisdo, o tribunal X, de Y, apds ter verifica- do que A praticou um furto, estatuiu que A deve ser compulsoria. mente internado, por um ano, na priso Z. Com a proposicao que afirma que A, que praticou um determinado furto, deve ser comput DIREITO E CIENCIA 1 soriamente interado na prisdo Z, pelo espago de um ano, descteve-se a norma individual fixada pelo tribunal X, de Y. Se se designa como “imputacio”” a ligagdo de pressuposto € conseqiténeia expressa na proposi¢ao juridica com a palavra “dever-ser’’, de modo algum sc introduz, com isso, uma nova palavra numa disciplina que j de ba muito opera com o coneei- to de “imputabilidade”’. Imputavel & aquele que pode ser punido pela sua conduta, isto & aquele que pode ser responsabilizado por ela, ao passo que inimputivel € aquele que — porventura por ser menor ou doente mental — nao pode ser punido pela mesma conduta, ou seja, nao pode por ela ser responsabilizado. Diz-se, na verdade, que a um, e j4 nao ao outro, Ihe & imputada a sua agdo ou omissio. Porém, a agdo ou omissdo em quest2o € preci samente imputada ou nao é imputada pelo fato de, num dos ca- sos, a conduta ser ligada a uma conseqiiéncia do ilfcito ¢, assim, ser qualificada como ilicito, enquanto que, no outro caso, tal ja ndo acontece, pelo que um inimputavel n€o pode cometer tum ili- cito, Isso, porém, significa que a imputagao nao consiste noutra coisa senio nesta conexdo entre o ilicito ¢ a conseqiléncia do ili- cito. A imputacao que é expressa no conceito de imputabilidade 6, portanto — como pressupde a teoria tradicional — a liga. a0 de uma determinada conduta com a pessoa que assim se con- duz. Para tal ndo seria preciso qualquer ligagao através de uma norma juridica, pois a conduta de modo algum se deixa separar do homem que a realiza, Também a conduta de um inimputavel €a sua conduta, a sua a¢3o ou omissdo, se bem que nio seja um ilicito imputavel. A imputacao que se exprime no conceito de im putabilidade é a ligagdo de uma determinada conduta, a saber, de um ilicito, com uma conseqiiéncia do ilicito, Por isso pode dizer-se: a conseqiiéncia do ilicito é imputada ao ilfcito, mas nao é produzida peto ilicito, como sua causa. E evidente que a cién- cia juridica nao visa uma explicagZo causal dos fendmenos juri- dios: ilicito conseqiiéncias do ilicito. Nas proposicdes juridi cas pelas quais ela descreve estes fendmenos ela ni aplica 0 prin. cipio da causalidade mas um principio que — como mostra esta analise — se pode designar por imputagao, 6. O principio da imputago no pensamento dos primitives Uma investigacdo das sociedades primitivas ¢ da especifici- dade da mentalidade primitiva mostra que o mesmo principio es

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