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Travis Wilkerson/Acervo do fotógrafo

exercer autocontrole; e é esse poder sobre si que permite


a alguém regular o poder que exerce sobre os outros e
construir práticas de liberdade.
Para Foucault, o sujeito não é algo dado, mas algo cons-
truído. Cada ser humano é uma construção que se faz ao
longo da vida. Por isso, não tem sentido afirmar que a liber-
dade é uma característica desse sujeito. Nós não somos
simplesmente livres ou não livres. Vivemos em meio a outros
seres humanos e, como você verá na próxima Unidade, as
relações entre os sujeitos são relações de poder. Não somos
livres permanentemente, mas em nossas relações com os
outros podemos construir práticas de liberdade, formas de
relação nas quais possamos ser nós mesmos, enquanto cada
um dos outros é também ele mesmo. Segundo Foucault,
esse é o objetivo de uma ética contemporânea.

Mike Prysner, soldado norte-americano e veterano da Guerra do Iraque,


participando de marcha antiguerra em Washington D.C., Estados Unidos,
em setembro de 2007. Mike se tornou mundialmente conhecido por denunciar
os abusos e as atrocidades cometidos pelo exército
norte-americano aos civis iraquianos.

TRaBalHaNdo com TeXTos


Os dois textos a seguir foram escritos por filósofos da An- porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o
tiguidade. O primeiro é uma carta do filósofo grego Epicu- aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando
ro, que traz no título o tema abordado: “Carta sobre a feli- presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado.
cidade”. O segundo, do pensador romano Sêneca, corres- Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não
ponde a trechos de um tratado denominado “Sobre a significa nada para nós, justamente porque, quando estamos
brevidade da vida”. vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando
a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, por-
texto 1 tanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já
que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão
Você vai ler trechos de uma carta escrita por Epicuro para mais aqui. E, no entanto, a maioria das pessoas ora foge da
um discípulo, Meneceu. Nela, Epicuro expõe os princípios morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como
gerais de sua filosofia, segundo a qual a verdadeira felici- descanso dos males da vida.
dade reside no prazer do sábio. O sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de
viver; para ele, viver não é um fardo e não viver não é um mal.
Carta sobre a felicidade Assim como opta pela comida mais saborosa e não pela
[...] Pratica e cultiva então aqueles ensinamentos que mais abundante, do mesmo modo ele colhe os doces frutos
sempre te transmiti, na certeza de que eles constituem os de um tempo bem vivido, ainda que breve.
elementos fundamentais para uma vida feliz. [...] afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida
[...] Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é feliz. Com efeito, nós o identificamos como o bem primeiro
nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações. A e inerente ao ser humano, em razão dele praticamos toda
consciência clara de que a morte não significa nada para nós escolha e toda recusa, e a ele chegamos escolhendo todo bem
proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar- de acordo com a distinção entre prazer e dor.
-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade. Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem
Não existe nada de terrível na vida para quem está perfei- por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evi-
tamente convencido de que não há nada de terrível em deixar tamos muitos prazeres, quando deles nos advêm efeitos o
de viver. É tolo portanto quem diz ter medo da morte, não mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos

CAPÍTULO 3 | A vida em construção: uma obra de arte 177


muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer tes, e nunca mais te sentirás perturbado, quer acordado, quer
maior advier depois de suportarmos essas dores por muito dormindo, mas viverás como um deus entre os homens. Por-
tempo. Portanto, todo prazer constitui um bem por sua pró- que não se assemelha absolutamente a um mortal o homem
pria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; que vive entre bens imortais.
do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem EPICURO. Carta sobre a felicidade (A Meneceu). São Paulo:
ser sempre evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os pra- Ed. Unesp, 1999. p. 19-51.
zeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e
dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem como se Intemperante: aquele que não tem medida das coisas,
fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem. a quem não importam os limites.
Consideramos ainda a autossuficiência um grande bem; Vicissitude: variação; aquilo que muda, que se alterna
não que devamos nos satisfazer com pouco, mas para nos ao acaso, podendo ser um infortúnio.
contentarmos com esse pouco caso não tenhamos o muito,
honestamente convencidos de que desfrutam melhor a abun-
Questões sobre o texto
dância os que menos dependem dela; tudo o que é natural é
fácil de conseguir; difícil é tudo o que é inútil.
1 Por que, segundo o texto, não precisamos temer a mor-
Os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer
te? Você concorda com essa afirmação? Explique.
que as iguarias mais requintadas, desde que se remova a dor
provocada pela falta: pão e água produzem prazer mais pro- 2 Como Epicuro define o prazer?
fundo quando ingeridos por quem deles necessita.
Habituar-se às coisas simples, a um modo de vida não 3 Qual é o papel da prudência na busca da felicidade?
luxuoso, portanto, não só é conveniente para a saúde, como
ainda proporciona ao homem os meios para enfrentar cora- texto 2
josamente as adversidades da vida: nos períodos em que
Leia a seguir dois trechos de um tratado de Sêneca. O pri-
conseguimos levar uma existência rica, predispõe o nosso
ânimo para melhor aproveitá-la, e nos prepara para enfren- meiro faz a crítica daqueles que são impacientes e não con-
tar sem temor as vicissitudes da sorte. seguem viver os momentos, esperando sempre alguma
Quando então dizemos que o fim último é o prazer, não realização futura. O segundo convida à busca da tranquili-
nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que dade da alma.
consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pes-
Sobre a brevidade da vida
soas que ignoram o nosso pensamento, ou não concordam
com ele, ou o interpretam erroneamente, mas o prazer que é XVI
ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma. 1. Muito breve e agitada é a vida daqueles que esquecem o
Não são, pois, bebidas nem banquetes contínuos, nem a pos- passado, negligenciam o presente e temem o futuro. Quando
se de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes ou de outras chegam ao fim, os coitados entendem, muito tarde, que estive-
iguarias de uma mesa farta que tornam doce uma vida, mas ram ocupados fazendo nada. 2. E porque invocam a morte, não
um exame cuidadoso que investigue as causas de toda esco- se pode provar que tenham vivido uma longa existência. Sua
lha e de toda rejeição e que remova as opiniões falsas em imprudência atormenta-os com sentimentos incertos, os quais
virtude das quais uma imensa perturbação toma conta dos direcionam para as próprias coisas que temem: desejam a mor-
espíritos. De todas essas coisas, a prudência é o princípio e o te porque ela os amedronta. 3. Não é argumento para nos levar
supremo bem, a razão pela qual ela é mais preciosa do que a a pensar que desfrutam de uma longa vida o fato de, muitas
própria filosofia; é dela que originam todas as demais virtu- vezes, acharem que os dias são longos, ou reclamarem de que as
des; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem pru- horas custam a passar até o jantar, pois, se estão sem ocupação,
dência, beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e sentem-se abandonados e inquietam-se com o ócio sem saber
justiça sem felicidade. Porque as virtudes estão intimamente como dispor do mesmo ou acabar com ele. Assim, desejam uma
ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas. ocupação qualquer, e o período de tempo entre dois afazeres é
[...] cansativo. E, certamente, é isso que acontece quando o dia do
Entendendo que a sorte não é uma divindade, como a combate dos gladiadores é marcado, ou quando se aguarda
maioria das pessoas acredita (pois um deus não faz nada ao qualquer outro evento ou espetáculo: desejam pular os dias que
acaso), nem algo incerto, o sábio não crê que ela proporcione ficam no meio. 4. Toda a espera por alguma coisa lhes é penosa,
aos homens nenhum bem ou nenhum mal que sejam funda- mas aquele momento a que aspiram é breve e passa rápido,
mentais para uma vida feliz, mas, sim que dela pode surgir tornando-se muito mais breve por sua própria culpa, pois tran-
o início de grandes bens e grandes males. A seu ver, é prefe- sitam de um prazer a outro sem permanecer em apenas um
rível ser desafortunado e sábio a ser afortunado e tolo; na desejo. Seus dias não são longos, mas insuportáveis. Ao contrá-
prática, é melhor que um bom projeto não chegue a bom rio, muito curtas lhes parecem as noites que passam nos braços
termo do que chegue a ter êxito um projeto mau. das prostitutas, ou entregues a bebedeiras! 5. Talvez daí resulte
Medita, pois, todas essas coisas e muitas outras a elas o delírio dos poetas que alimentam os erros dos homens com
congêneres, dia e noite, contigo mesmo e com teus semelhan- histórias nas quais se mostra Júpiter, embevecido pelo desejo do

178 UNIDADE 3 | Por que e como agimos?


coito, duplicando a duração da noite. De que se trata, senão de lhores. Encontrarás, neste tipo de vida, o entusiasmo das ciências
exaltar os nossos vícios, já que os encontramos nos deuses e úteis, o amor e a prática da virtude, o esquecimento das paixões,
vemos na divindade um exemplo de fraqueza? Podem estes não a arte de viver e de morrer, uma calma inalterável. 3. Certamen-
achar muito curtas as noites pelas quais pagam tão caro? Perdem te, miserável é a condição de todas as pessoas ocupadas, mas
o dia esperando a noite; a noite, com medo da aurora. ainda mais miserável a daqueles que sobrecarregam a sua vida
XIX de cuidados que não são para si, esperando, para dormir, o sono
1. Refugia-te nestas coisas mais tranquilas, mais seguras, dos outros, para comer, que o outro tenha apetite, que cami-
mais elevadas! Pensas que é a mesma coisa cuidar para que o nham segundo o passo dos outros e que estão sob as ordens
transporte do trigo chegue livre da fraude e da negligência dos deles nas coisas que são as mais espontâneas de todas – amar
transportadores, que seja armazenado com cuidado nos arma- e odiar. Se desejam saber quão breve é a sua vida, que calculem
zéns, de modo que não se aqueça ou que não se estrague pela quão exígua é a parte que lhes toca.
umidade e não fermente e, por último, que a medida e o peso se SÊNECA. Sobre a brevidade da vida. Porto Alegre: L&PM Pocket,
encontrem de acordo com o combinado; pensas que tais cuida- 2010. p. 70-71; 80-81.
dos possam ser comparados com estes santos e sublimes estudos
que te revelarão a natureza de Deus, seu prazer, sua condição,
sua forma? Irão te indicar o destino reservado à tua alma, onde
Questões sobre o texto
nos colocará a natureza quando formos libertos dos corpos? O
1 Por que Sêneca critica os poetas? O que você pensa a
que sustenta os corpos mais pesados no meio deste mundo, o
respeito dessa crítica?
que suspende os mais leves, leva o fogo às regiões mais elevadas;
indica aos astros a sua rotação e, assim, muitos outros fenôme- 2 Por que deveríamos nos refugiar nas coisas tranquilas?
nos ainda mais maravilhosos? 2. Queres, uma vez abandonada
a terra, voltar a mente a essas coisas? Agora que o sangue ainda 3 Em que sentido a condição daqueles que não cuidam
aquece e que está pleno de vigor, devemos tender às coisas me- de si mesmos é uma condição miserável?

em BUscA do conceito
Agora é a sua vez. Com base no que foi estudado neste capítulo, vamos tornar viva a prática filosófica.

ATividades
1 Em que sentido podemos afirmar que os cínicos desen- rante um mês, anote todos os dias aquilo que você
volveram uma “ética prática”? pensa e sente. Compartilhe seu caderno ou blog com
outros colegas. Após esse período, releia tudo o que
2 Analise e comente as diferenças teóricas entre o epicu- você escreveu e reflita sobre isso. Compartilhe suas
rismo e o estoicismo no que diz respeito à ética. conclusões com os colegas de sua sala e conversem
3 Explique, com suas palavras, a afirmação de Deleuze de
sobre a experiência. Será possível conhecer mais sobre
que as filosofias helenísticas constituíram uma “arte das você mesmo e sobre eles a partir desse exercício?
superfícies”. Continue a escrever enquanto julgar interessante.

4 Explique por que, segundo Foucault, nos dias de hoje 8 Leia o texto e o poema a seguir.
é difícil construir uma “ética do eu” (ou ética de si [...] o ser humano busca a felicidade porque ele é de-
mesmo). sejo (e desejo consciente) e porque, sempre capaz de re-
flexões, está sempre em condições de contestar seu pre-
5 Por que, segundo Foucault, o cuidado de si propicia a
sente por seu futuro e de visar nesse futuro a plenitude
liberdade? de seu desejo.
6 Explique como os “exercícios espirituais” foram usados Mas a vida espontânea do desejo desdobra-se na maio-
pela filosofia. Cite exemplos e comente-os. ria das vezes como séries de conflitos e frustrações, ou, se
quisermos, como sofrimento. Não se vá por isso renunciar
7 Vamos praticar um “exercício espiritual”. Experimente ao desejo como nos propõem as religiões ascéticas, mas com-
a escrita em forma de diário. Você pode usar um cader- preender que esse desejo, sendo também liberdade, deve sair
no ou fazer um blog – nesse caso, decida se será um de suas crises de modo excepcional e radical. Só uma trans-
blog público ou com acesso restrito. Preste muita aten- mutação de nosso olhar sobre as coisas nos permite alcançar
ção naquilo que você vai escrever e em como vai escre- realmente nosso desejo, isto é, o que há de preferível em
ver, pensando nas pessoas que lerão seus textos. Du- nosso desejo: satisfação e justificação, plenitude e sentido.

CAPÍTULO 3 | A vida em construção: uma obra de arte 179

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