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07/03/2023, 20:23 MANIFESTO AFRO-SURREAL: PRETO É O NOVO PRETO — UM MANIFESTO DO SÉCULO XXI | by yuri costa | Medium

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Gabriel Salazar
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gabriel salazar
Nov 11, 2019 · 8 min read
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MANIFESTO AFRO-SURREAL: PRETO É O


NOVO PRETO — UM MANIFESTO DO SÉCULO
XXI
de D. Scot Miller.

Publicado originalmente em 19 de maio de 2009, no número 34 do volume 43 do San


Francisco Bay Guardian, sob o título de Call It Afro-Surreal. Tradução feita para o TCC
“Egum: Um filme de terror negro”, por Yuri Costa. Para o texto original em inglês, clique
aqui.

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Eu não sou uma surrealista. Eu apenas pinto o que eu vejo.

— Frida Kahlo

O passado e o prelúdio
Em sua introdução da novela clássica Homem Invisível (1952), o ambíguo ícone negro
e literário Ralph Ellison diz que seu processo de criação foi “bem mais
desarticulado do que parece… tal era o processo subjetivo-objetivo interno-externo,
de pele manchada e coração surreal”.

Ellison se refere ao mais impressionante personagem de seu livro, Rinehart the


Runner¹, um dândi, cafetão, apostador, traficante, profeta e padre. O protagonista
de Homem Invisível assume a identidade de Rinehart para que “eu possa não ver a
mim mesmo da mesma forma que os outros não veem”. Usando uma máscara de
tons escuros e um grande chapéu, ele é alertado pelo homem conhecido como o
cara com uma arma: “Escute, Jack, não deixe ninguém te fazer agir como Rinehart.
Você precisa ter uma língua sedutora, um coração sem-coração e estar pronto para
fazer tudo”.

E o protagonista de Ellison entra num mundo de prostitutas, dependentes químicos,


policiais corruptos e paroquianos masoquistas. Sobre Rinehart, diz: “Ele estava anos
à minha frente, e eu era tolo. O mundo em que vivemos é fluido, e Rine, o Patife,
estava em casa”. A marquise da loja de Rinehart, em frente à igreja, declara:

Contemple o Invisível!
Seja feita a tua vontade, ó Senhor!
Eu vejo tudo, Sei de tudo, Conto tudo, Curo tudo
Você verá as maravilhas desconhecidas.

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Ellisson e Rinehart haviam visto, mas não tinham nome para elas.

Na introdução do livro Ark Of Bones and Other Stories (1974), do profeta Henry
Dumas, Amiri Baraka cunha um termo para descrever a “habilidade de criar um
mundo completamente diferente, organicamente conectado com o nosso… a
estética negra em sua vivência, atual e contemporânea”. Esse termo é
Expressionismo Afro-Surreal.

Dumas o viu. Baraka o nomeou.

Isto é o Afro-Surreal!

Isso não é Afro-Surreal


a) Surrealismo:

Leopold Senghor, poeta, primeiro presidente do Senegal e Surrealista Africano, fez


a seguinte distinção: “O Surrealismo Europeu é empírico. O Surrealismo Africano é
mítico e metafórico”. Jean-Paul Sartre disse que a arte de Senghor e o movimento do
Surrealismo Africano (ou Negritude) “é revolucionário porque é surrealista, mas ele
próprio é surrealista porque é negro”. O Afro-Surrealismo entende que todos os
“outros” que criam de sua própria experiência vivida são surrealistas, segundo Frida
Kahlo. O prefixo “Afro” é o mesmo que pode ser encontrado em “Afro-Asiático”, o
que significa uma linguagem comum entre pessoas pretas, marrons e asiáticas do
mundo todo — o que outrora era chamado de “terceiro mundo”, até que os outros
dois entraram em colapso.

b) Afrofuturismo:

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Ghostface Killah

Afrofuturismo é um movimento intelectual e artístico da diáspora que se volta para


a ciência, a tecnologia e a ficção científica para especular sobre as possibilidade
negras no futuro. Afro-Surrealismo é sobre o presente. Não há necessidade para
especulações na língua do amanhã sobre o futuro. Campos de concentração,
cidades bombeadas, a fome e castrações forçadas já aconteceram. Para o Afro-
Surrealista, os Tasers estão aqui. Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse cavalgaram há
tempo demais para nos lembrarmos. O que é o futuro? O futuro está por aí há tanto
tempo que agora é o passado.

Afro-Surrealistas expõem isso a partir de um “futuro-passado” chamado AGORA


MESMO.

AGORA MESMO, Barack Hussein Obama é o primeiro presidente negro dos Estados
Unidos.

AGORA MESMO, Afro-Surreal é a melhor descrição para as reações, as genuflexões,


as voltas e reviravoltas que esse “escurecimento” da civilização do Homem-Branco-
Heterossexual-Ocidental produziu.

O presente, ou AGORA MESMO


São Francisco, a cidade mais liberal e artística da nação, passa por um dos maiores
declínios da população negra urbana do país. Esse é um sinal de um problema
maior que está perseguindo todos os artistas, os renegados, os inconsequentes e os
párias. Se não há pessoas negras, significa que não há artistas negros, e todos vocês,

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aberrações ainda não-vitimadas, serão os próximos. Apenas a arte negra aberrante


— arte Afro-Surreal — nos museus, nas galerias, nas casas de espetáculos e nas ruas
desta cidade (ligeiramente) justa podem nos salvar!

Obra de Kara Walker.

São Francisco, a terra do poeta laureado Afro-Surreal Bob Kaufman, pode estar na
linha de frente da criação de uma estética emergente. Nesta terra de palavras da
moda e frases de efeito, o Afro-Surreal é necessário para transformar a maneira que
vemos as coisas hoje, a maneira como olhamos para o que aconteceu antes e o que
podemos esperar ver no futuro.

Não é nenhuma coincidência que Kool Keith (sob o pseudônimo de Dr. Octagon)
gravou o hino Afro-Surreal Blue Flowers na rua Hyde², em 1996, ou que Samuel R.
Delany baseou grande parte de seu livro Afro-Surreal Dhalgren, de 1974, em suas
experiências em São Francisco.

Uma estética Afro-Surreal se volta para esses legados perdidos e reivindica as almas
de nossas cidades, desde Kehinde Wiley pintando o homem invisível (e seus motivos
invisíveis) em Nova Iorque até Yinka Shonibare decapitando turistas sexuais da
Europa do século XVII (e do XXI, também). Das soundsuits de Nick Cave no Yerba
Buenas Center for the Arts até as palavras que você está lendo agora, a mensagem é
clara: São Francisco, o mundo está pronto para um movimento de arte Afro-Surreal.

O Afro-Surrealismo está navegando pela cultura contemporânea numa canoa sem


nenhum remo, adentrando a cidade para caçar pistas que levem à cura de sua

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doença antiga e incurável chamada “civilização ocidental”. Ou, como Ishmael Reed
diz, “Nós somos detetives místicos prestes a fazer uma prisão”.

Um manifesto do Afro-Surreal
Contemple o invisível! Você verá maravilhas desconhecidas!

MF Doom.

1. Vimos esses mundos desconhecidos emergirem nos trabalhos de Wifredo Lam,


cujas origens afrocubanas inspiram trabalhos que falam de velhos deuses com
novos rostos, e nos trabalhos de Jean-Michel Basquiat, que nos deu novos
deuses com velhos rostos. Ouvimos este mundo na trompeta-ebó de Roscoe
Mitchell e nas letras de MF Doom. Nós o lemos nas palavras de Henry Dumas,
Victor Lavalle e Darius James. Este mosaico emergente de influências radicais
vai de Frantz Fanon a Jean Genet. Os sussurros sobrenaturais de Reed e Nora
Neale Hurston se misturam com o estilo árido de Chester Himes e William S.
Burroughs.

2. O Afro-Surreal pressupõe que, além deste mundo visível, há um mundo invisível


lutando para se manifestar, e é nosso trabalho revelá-lo. Como os Surrealistas
Africanos, Afro-Surrealistas reconhecem que a natureza (inclusive a humana)
gera mais experiências surreais do que qualquer outro processo poderia
produzir.

3. Afro-Surrealistas recuperam o culto ao passado. Nós revisitamos tradições com


novos olhos. Nós nos apropriamos de símbolos da escravidão no século XIX,
como Kara Walker, e da colônia do século XVIII, como Yinka Shonibare. Nós re-
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apresentamos a “loucura” como visitas dos deuses e reconhecemos a


possibilidade da magia. Nós assumimos as obsessões dos antepassados e
incitamos o des-conforto, clareando a névoa da inconsciência coletiva enquanto
este se manifesta nesses sonhos chamados de cultura.

4. Afro-Surrealistas usam o excesso como única maneira legítima de subversão, a


hibridização como forma de desobediência. As colagens de Romare Bearden e
Wangechi Mutu, a prosa de Reed e a música de Art Ensemble of Chicago e
Antipop Consortium expressam este extravasamento.
Afro-Surrealistas distorcem a realidade em favor do impacto emocional. Que se
danem 50 Cent e sua voz fria e monótona e Walter Benjamin e suas calmas
estratégias de choque. Chega! Queremos sentir alguma coisa! Queremos chorar
em público.

5. Afro-Surrealistas se esforçam pelo rococó: o belo, o sensual e o caprichoso. Nós


buscamos Sun Ra, Toni Morrison e Ghostface Killa. Voltamo-nos para Kehinde
Wiley, cuja observação sobre o corpo negro masculino se aplica à toda cultura e
à toda arte: “Não existe imagem objetiva. E não há maneira de observar
objetivamente a imagem em si”.

6. A vida Afro-Surrealista é fluida, cheia de pseudônimos e classificações que


desafiam os censos. Ela não tem endereço nem número de telefone, nenhuma
disciplina em particular ou vocação. Afro-Surrealistas são commodities
altamente remunerados a curto prazo (em oposição àqueles de longo prazo e
baixa remuneração, também conhecidos como escravos).
Afro-Surrealistas são ambíguos. “Será que sou preto ou branco? Será que sou
hétero ou gay? Controvérsia!”
O Afro-Surrealismo rejeita a servidão silenciosa que caracteriza os papéis
existentes para afrodescendentes [African Americans], descendentes de
asiáticos, latinos, mulheres e pessoas queer. Apenas através da mistura, da fusão
e da troca [cross-conversion] entre essas supostas classificações poderá haver
esperança de libertação. O Afro-Surrealismo é intersexual, afro-asiático,
afrocubano, místico, tolo e profundo

7. O Afro-Surrealista usa uma máscara enquanto lê Leopold Senghor.

8. Ambíguo como Prince, negro como Fanon, literário como Reed, dândi como
André Leon Tally, o Afro-Surrealista busca definição no absurdo de um mundo
“pós-racial”.

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9. Na moda (John Galliano; Yohji Yamamoto) e no teatro (Suzan Lori-Parks), o Afro-


Surreal escava os remanescentes deste pós-apocalipse com um gosto
dandificado, uma língua sedutora e um coração sem-coração.

10. Afro-Surrealistas criam deuses sensuais para destruir belos ícones em ruínas.

Obra de Kehinde Wiley.

Afro-Surrealismo em ação

Prince.

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O Museu de Arte Moderna de São Francisco e o Museu da Diáspora Afriacana


apresentam os trabalhos de Mutu, William Pope L., Trenton Doyle Hancock, Glenn
Ligon, Wiley, Shonibare e Walker conjuntamente, com Lam’s Jungle como pela
central. O Teatro Lorraine Hansbury encena The Blacks, de Genet, e The Dutchman,
de Baraka, enquanto a Ópera de São Francisco adapta Caliban de Aimé Césaire e o
Auditório Fillmore conta com uma retrospectiva Afro-punk. Adaptações Afro-
Surreais de Mumbo Jumbo (1972), de Redd, Tell My Horse (1937), de Hurston, e
Pantera Negra da Marvel vão agraciar a tela grande.

Esses serão os primeiros passos de uma ilustre e fantástica jornada. Quando


finalmente chegarmos àquelas margens desconhecidas, diremos, com sangue sob
nossas unhas e lama em nossas botas:

Isto é Afro-Surreal!

Notas
¹ Nota da tradução: Nome do personagem no original em inglês.

² Nota da tradução: Alusão a O Médico e o Monstro, livro de Robert Louis Stevenson,


originalmente chamado de The Strange Case Of Dr. Jekyll And Mr. Hyde.

Afrosurrealism Afro Surrealismo Arte Negra Cinema Negro

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