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Silvia Balestreri Nunes - Carmelo Bene e As Instituições Culturais Italianas
Silvia Balestreri Nunes - Carmelo Bene e As Instituições Culturais Italianas
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O artigo trata de um artista muito original, Carmelo One of the most interesting artistic figures of the
Bene, que desenvolveu por mais de quarenta anos Italian 20th century, Carmelo Bene created works
uma profícua carreira nas artes da cena e em outras across various disciplines (theater, cinema, literature,
artes correlatas, e sua relação com as instituições theory, radio and TV) for over 40 years. The article
culturais de seu país, a Itália da segunda metade do discusses Bene’s tormented relationship with Italian
século XX. Em pesquisas realizadas sobre diferentes cultural institutions through an analysis of different
aspectos da vida artística de Bene, frequentemente aspects of his artistic and personal life. This was
apareceram tematizadas diretamente ou através de at the same time very imbricated and ambiguous,
relatos de pessoas que lhe eram próximas, ao mesmo since, while openly disdaining cooperation with go-
tempo seus conflitos e suas demandas aos poderes vernmental institutions, throughout his entire career
constituídos em instituições vinculadas ao Estado e Bene seeked both their financial and public support
ao mercado das artes italianos. Demonstra-se que in order to give expression to his creative impulses.
tais relações foram ao mesmo tempo muito imbrica-
das e ambíguas, pois, na mesma medida em que
desdenhava do funcionamento dessas instituições,
Bene expressava o desejo de receber seu suporte,
principalmente financeiro, para poder dar vazão a
seus impulsos criativos.
Palavras-chave Keywords
Carmelo Bene. Teatro italiano. Vanguar- Carmelo Bene. Italian theater. Avant-
da teatral. Cinema italiano. RAI. garde theater. Italian cinema. RAI
cena n. 40
1. Carmelo Bene, uma Introdução políticas relativas à cultura, na Itália de então, permi-
Carmelo Bene (1937-2002) é considerado um tiram a um maldito criar tão intensamente? Esse arti-
dos maiores artistas do teatro italiano do século XX, go não pretende oferecer separadamente respostas
e pode ser inserido na lista dos maiores do teatro a cada uma dessas questões, mas enriquecer esses
europeu no mesmo período, dada a originalidade questionamentos com exemplos de como Bene, em
de suas criações para a cena e as imprevisíveis va- sua artevida, se relacionou, provocou e elaborou
riações em seu percurso. Além de artista de teatro, suas ideias no tocante a elas.
destacou-se como cineasta, poeta, tendo também O texto que mais diretamente introduziu Bene
importantes atuações na rádio, na televisão, além aos brasileiros foi Um Manifesto de Menos, do filó-
de criações como romancista e em discos. Chama sofo Gilles Deleuze, publicado no Brasil em 2010,
a atenção a variedade e grande quantidade de suas mais de trinta anos após sua publicação na Itália
produções em seus mais de quarenta anos de car- (1978) e na França (1979). Nesse ensaio, original-
reira e, com igual força, destaca-se o modo como se mente publicado junto ao texto do Riccardo III de
relacionava com as instituições, seja com as mais Carmelo Bene, em um livro de nome Sovrapposi-
reconhecíveis como os poderes constituídos e su- zioni (Superposições) (BENE; DELEUZE, 1978 e
bordinados ao Estado, seja com aquelas invisíveis BENE; DELEUZE, 1979), Deleuze fala de um pro-
como tais, porque naturalizadas em práticas que cedimento do artista italiano sobre textos clássicos,
Bene não cansava de apontar, com sua arte ou com como os de Shakespeare, a que chama de subtra-
suas declarações públicas, como cheias de limita- ção ou minoração: Bene retira os elementos dos tex-
ções. tos que fazem poder, por exemplo, retira os reis e a
Uma característica importante em seu modo nobreza do Ricardo III original, subtraindo o poder
de criar é a liberdade que sempre experimentava e, de Estado, deixando em cena Ricardo e as mulhe-
de um modo particular, propiciava a quem conse- res; subtrai a personagem Romeu da peça Romeu
guia trabalhar com ele. No exercício dessa liberda- e Julieta, fazendo crescer a personagem de Mercú-
de, não usava meias palavras para dar a ver, geral- cio. Conforme Deleuze, nessa “operação cirúrgica”,
mente com um humor todo seu e sem piedade dos junto a outros procedimentos, algo importante se
interlocutores, manipulações e jogos de poder de movimenta, nas peças e no próprio teatro, deixando
instituições. Assim, são vários os exemplos em sua Shakespeare, por exemplo, vivo novamente. Nes-
carreira em que se confrontou – a palavra é precisa se texto, Deleuze destaca uma forma singular de
– impiedosamente1 com poderes e valores estabele- Bene se relacionar com o poder e com instituições
cidos. de poder, como o próprio teatro, favorecendo e sus-
Artista raro, exemplo incomum em que vida e citando o que chamou de devires-minoritários, que,
arte estão amalgamadas, como escreveu Piergior- simplificadamente, são um movimento constante de
gio Giacchè (2007, p. 1), manteve a fama de enfant criação e consequente destituição dos poderes cen-
terrible, mesmo após se tornar um monstro sagrado tralizadores vinculados ao Estado, mesmo nas Artes.
do teatro italiano. Em que o desenvolvimento de sua Numa notável coerência entre sua arte e sua
carreira e os obstáculos que enfrentou revelam e se vida, a grande liberdade criativa de Bene, que ca-
tramam com modos específicos de funcionamento racterizou toda a sua produção artística desde o co-
da sociedade italiana da segunda metade do século meço, frequentemente ia de encontro às limitações
passado, especialmente suas instituições culturais e impostas pelas instituições com as quais, no curso
as redes que sustentavam um mercado de artes cê- de seus mais de quarenta anos de carreira, ele teve
nicas e suas imbricações com uma carreira tão múl- que se relacionar. Curiosamente isso se deu desde
tipla como a de Carmelo Bene? Em que medida o o início das suas atividades, pois precisou abando-
modo como estavam organizadas a economia e as nar a Accademia d’Arte Drammatica “Silvio d’Amico”,
devido à sua estreia em teatro no Caligola de Ca-
1 Em conversa com U. Artioli, Bene cita alguns tra- mus (1959), já que a Accademia não permitia que
balhos seus, invoca a crueldade artaudiana e menciona seus estudantes participassem de produções que
o que G. Deleuze e outros destacaram como um arco não estivessem diretamente vinculadas à instituição
cirúrgico e impiedoso presente neles (ARTIOLI; BENE, (V. C., 1959) Desde a estreia, Bene chamou a aten-
2006, p. 108), que pode ser relacionado às críticas que ção da crítica e de um público seleto de artistas e
Nietzsche faz às pessoas piedosas ou compassivas (p. intelectuais, tanto pela força de sua atuação quanto
ex., NIETZSCHE, 2000, pp 117-119). pelo fato surpreendente de terem obtido, ele e seu
parceiro Alberto Ruggiero, diretor do espetáculo, No entanto, houve mais uma relação articulada dele
autorização de Albert Camus para montarem o Ca- com as instituições do que faria supor uma aparente
ligola, pois eram ambos estreantes e muito jovens conflitualidade.
(CAMUS, 1959). Por exemplo, nomeou em testamento a Funda-
Em um país como a Itália, em que os recursos ção L’Immemoriale di Carmelo Bene como sua her-
públicos eram e são indispensáveis ao sustento de deira universal, para ser constituída quando morres-
uma expressão artística como a das artes cênicas, se. Ela teria por objetivo a “conservação, divulgação
Bene não é o único artista que teve uma relação e promoção nacional e internacional de toda a obra
ambivalente no confronto das instituições. No caso, de Carmelo Bene, concertística, cinematográfica, te-
além de ser um artista, Bene foi também, desde os levisiva, teatral, literária, poética, teórica, mediante a
primeiríssimos anos de suas atividades, o adminis- organização e realização de concertos, espetáculos,
trador de sua companhia, produzindo seus espetá- seminários, congressos, publicações, pesquisas de
culos, e se encarregando pessoalmente, além da linguagem, experimentações tecnológicas, musicís-
sua efetiva realização, do cumprimento de todos os ticas e vocais.” (apud VIGLIETTI, 2020, p. 13) Curio-
trâmites burocráticos a eles vinculados2. Se por um samente, para uma pessoa que repetidamente re-
lado ele se mostrava estranho a uma dimensão pú- clamava de ser esquecido pelas instituições, e como
blica e cultivava o mito do artista maldito apartado prova de que, para além das provocações superfi-
das coisas do mundo, por outro, buscou continua- ciais, ele buscava uma espécie de reconhecimento
mente visibilidade e suporte, inclusive econômico, público das suas atividades, Bene definiu que, do
por parte das instituições, para poder financiar as conselho administrativo de sua fundação, fizessem
suas atividades. Isso é também lembrado por Salva- parte o prefeito de Otranto, na Puglia, o presidente
tore Venditelli, cenógrafo e colaborador de Bene até da provincia3 de Lecce e o presidente da Região da
o início dos anos setenta do século XX, que, em um Puglia. Infelizmente, a Fundação foi declarada extin-
texto dedicado a sua colaboração com o ator, decla- ta pelo Tribunal de Roma, mediante a apresentação
rou: do inventário dos bens nos prazos legais, e cessou
Toda a sua atividade, desde o princípio, era suas atividades em 2005 (VIGLIETTI, 2020, p.13).
baseada em uma relação precisa com o pú-
blico: ações e reações entre ele e os espec- 2. Estreia e Teatro nos Anos 60
tadores, para assustar, combater e conquis- Sobre essa reconhecidamente turbulenta rela-
tar. Lembro que um dia ele me disse: “Uma
ção de Bene com as instituições culturais italianas,
coisa me é absolutamente clara: as minhas
produções eu devo conduzir sozinho. Nin- públicas ou não, entre as provocações, o escândalo
guém me quer, eu assusto. Sabe, aquele e a lenda, encontram-se frequentemente diferen-
escantear disfarçado de falta de confiança. tes versões para fatos que obtiveram destaque nas
Devo maquiar as coisas, fazer um barulho narrativas sobre sua carreira. Por exemplo, as afir-
aqui e ali. Pratico e ostento um pouco de mações que apontam uma ojeriza de Bene a uma
exibicionismo, tenho que ganhar a vida” educação formal para o teatro. Já tendo terminado
(VENDITTELLI, 2015, p. 111. Tradução nos- seus estudos secundários, o artista foi para Roma e
sa). matriculou-se na Academia de Arte Dramática, onde
permaneceu por um ano, tempo suficiente, segun-
Em várias das áreas que frequentou durante do ele, para aprender “o que não se deve fazer no
quatro décadas de atividade - em teatro, cinema, li- teatro”:
teratura, rádio e televisão -, Bene se confrontou com Para alguém que quer ser ator, mais vale
instituições públicas. Ainda que em numerosas oca- um ano na prisão que um ano nessa escola
siões sustentasse o contrário, ele lamentou muitas - na prisão a gente pode aprender mais e se
vezes a falta de suporte das instituições à sua arte. aborrecer muito menos (apud HERRY, 1977,
p. 109. Tradução nossa).
abruptamente do curso, mas uma matéria jornalísti- trições econômicas, o artista não se deixou condi-
ca sobre sua estreia traz a versão apresentada mais cionar por isso e conseguiu convencer um produtor,
acima da impossibilidade de conciliação entre uma Giorgio Patara, a financiar três curtas-metragens
produção independente e as exigências dessa es- seus sobre o barroco, utilizando, entretanto, esses
cola. recursos para filmar Nostra Signora dei Turchi, seu
Após essa estreia, contam-se, até 1968, mais primeiro longa-metragem.4 Ao longo de cinco anos,
de trinta estreias de espetáculos em diferentes te- Bene realizou quatro curtas-metragens - A proposito
atros nas cidades de Florença, Gênova, Pisa, Bo- di “Arden of Feversham” (1967), Hermitage (1968),
lonha, Roma e em um festival em Spoleto, algu- Il barocco leccese (1968), Ventriloquio (1970) - e
mas das quais são novas edições de espetáculos cinco longas-metragens - Nostra Signora dei Turchi
anteriores, algo bastante comum em suas criações. (1968), Capricci (1969), Don Giovanni (1970), Sa-
Bene alterna teatros conhecidos - Teatro delli Arti, lomè (1972) e Un Amleto di meno (1973). O seu pri-
Teatro Eliseo, em Roma - com salas preparadas de meiro filme, Nostra Signora dei Turchi, participou do
modo improvisado (ver PETRINI, 2021, p.23). Den- Festival de Veneza, recebendo o Prêmio Especial
tre essas, contam-se três ocasiões em que Bene do Júri. Muitos de seus filmes foram apresentados
teve um espaço próprio, alugado, os dois primeiros na Quinzena dos Realizadores e Un Amleto di meno
chamados de cantine ou depósitos, todos em Roma: participou da seleção oficial do Festival de Cannes.
o Teatro Laboratorio (1962 a janeiro de 1963), no Também nesse caso, a contribuição das instituições
bairro de Trastevere e o Beat ‘72 (1966-1967), no foi fundamental para possibilitar a circulação inter-
número 72 da Via Belli, no bairro de Prati, e, por nacional de seu cinema.
alguns meses, em 1968, ocupou um antigo teatro Prova da absoluta liberdade criativa de Bene,
rebatizado de Teatro Carmelo Bene. que frequentemente tinha que ceder ante os limites
As “cantine” eram depósitos no térreo ou no impostos pela burocracia, seu último projeto cinema-
subsolo de prédios antigos, prática no teatro de que tográfico seria a respeito da vida de San Giuseppe
Bene se disse precursor e se tornou depois reco- Desa da Copertino (São José Desa de Copertino),
nhecida como um movimento de vanguarda, do qual um santo que, durante o êxtase religioso, levitava e
reiteradas vezes negou fazer parte: começava a voar. Bene gostaria de filmar algumas
cenas, em particular aquela do voo do santo, utili-
Ainda não se falava da vanguarda ou da zando duas câmeras e fazer as tomadas tanto do
"escola romana", bobagens, mal-entendidos, alto quanto de baixo. Nos seus propósitos, também
paparicados por uma crítica ávida de clas- a projeção do filme seria feita em duas telas, uma
sificar e relativizar tudo e todos. O meu, já das quais deveria estar inclinada sobre o público,
então, era um teatro degenerado. Não se
para dar impulso ao voo do santo. Entretanto, dian-
parecia com nenhum outro. Eu nunca teo-
rizei os depósitos, nunca tive vocação para te da impossibilidade técnica de realizar um proje-
ser um herói artrítico (BENE; DOTTO, 2015, to com essa concepção - pois demandaria que, em
p. 98. Tradução nossa). cada cinema que desejasse projetar o filme, fossem
instaladas duas telas -, o projeto foi imediatamente
Uma particularidade das cantine era se loca- deixado de lado (cf. MASINI, 2020, pp. 33-34).
lizarem em prédios em grande parte residenciais, Mesmo abandonando o cinema em 1973 para
situação sobre a qual Carmelo Bene oferece bem- retornar ao teatro, a experiência de Bene com os
-humorados relatos em sua segunda autobiografia meios tecnológicos e sonoros, adquirida na elabo-
(BENE; DOTTO, 2015, p. 100). ração das músicas e da trilha sonora de seus filmes,
permanecerá útil nos anos sucessivos, quando ele
se dedicará a produções radiofônicas e à direção de
3. Cinema suas obras teatrais para a televisão.
No final dos anos sessenta, Bene fará uma Um episódio extremamente indicativo da sua
pausa provisória no teatro, para se dedicar integral- relação ambivalente com as instituições se deu no
mente ao cinema. Foi encorajado por Luigi Chiarini,
então diretor da Mostra de Cinema de Veneza, e por
Ennio Flaiano, escritor e intelectual, já naquele mo- 4 Para cumprir ao menos em parte os compromis-
sos firmados com Patara, Bene fez algumas tomadas da
mento roteirista de alguns filmes de Fellini (BENE;
Basílica de Santa Croce que depois se tornaram o curta-
DOTTO, 2015, p. 181). Embora fossem anos de res- -metragem Il Barocco Leccese (MASINI, 2020, p. 24).
centraria em um trabalho inspirado no Tamerlano notam “a instituição prostrada aos pés do altar dos
de Marlowe, do qual participariam diversos artistas consumos” (BENE, 1990a, p.14-15) .
sob a coordenação de Bene, enquanto a edição de
1991-1992 inauguraria um projeto sobre o Bafomet- 6. Direção de produções para a TV e o Rádio12
to de Pierre Klossowski. Entretanto, apesar do entu-
siasmo ligado à nomeação de uma figura de exce- A Itália possui uma forte e extensa rede públi-
ção como Bene, logo surgiram incompreensões com ca de rádio e televisão, a RAI. Criada em 1924 como
a direção da Bienal. O orçamento inicialmente pre- organização privada de radiodifusão, foi estatizada
visto para as duas produções foi sucessivamente re- em agosto de 1927, sob o nome Ente Italiano per
duzido e, devido às crescentes divergências, Bene le Audizioni Radiofoniche (EIAR), e serviu, durante
se demitiu da função de diretor do setor teatro em 03 quinze anos, aos interesses do governo de Musso-
de fevereiro de 1990. O projeto sobre o Tamerlano lini - no início de 1943, com o país dividido, surge
foi confiado a outras companhias e aquele sobre o também, paralelamente à rádio controlada pelo go-
Bafometto foi abandonado. De sua experiência em verno, um serviço radiofônico da Itália liberta (ITÁ-
Veneza restaram até hoje os dois volumes publica- LIA. RAI, n.d.). Com a queda do regime fascista, o
dos pelo grupo de estudiosos que participou dos se- antigo EIAR passou a se chamar RAI (Radio Audi-
minários: Il teatro senza spettacolo (O Teatro Sem zioni Italiane) em outubro de 1944; e, com a nova le-
Espetáculo) (BENE et alii, 1990) , uma publicação gislação a partir da instauração da República, ficou
promovida pelo próprio Bene, e La ricerca impossi- sob o controle do partido hegemônico durante as
bile (A Pesquisa Impossível) (VENTIMIGLIA, 1990), décadas seguintes, a Democracia Cristã. Em 1952,
publicado sob os auspícios da entidade autônoma A uma nova convenção entre o Estado italiano e a RAI
Bienal de Veneza. substituiu aquela de 1927, na qual o governo italiano
Nesse livro “oficial” da Bienal, Bene publica concedeu à estatal os direitos exclusivos de rádio e
uma espécie de texto-manifesto, em que, dentre teledifusão na Itália por vinte anos. Em 1954, com o
muitas torções linguísticas, bem ao seu estilo, faz início das transmissões televisivas, a sigla RAI pas-
uma crítica ácida às relações do Estado com a pes- sou a se referir à Radiotelevisione Italiana (Radiote-
quisa e com a audiência - de um povo - aos resul- levisão Italiana).
tados de pesquisas financiadas pelo poder público,
critica também a espetacularização desses mesmos Em janeiro de 1961, sob a presidência do li-
resultados, que é feita mesmo quando há consequ- beral N. P. dei Carraresi, foi nomeado diretor geral
ências fatais, como no caso da bomba de Hiroshima. da RAI Ettore Bernabei, que ficou no posto até 1974
O título do texto já dá o tom das provocações que e em cuja gestão, ao se dar conta do controle dos
aporta: La ricerca teatrale nella rappresentazione di democratas cristãos na administração, passou a
Stato (o dello spettacolo del fantasma prima e dopo dar espaço a alguns socialistas na instituição, poder
C.B.), isto é, A pesquisa teatral na representação de esse logo adiante distribuído também a integran-
Estado (ou o espetáculo do fantasma antes e de- tes do PRI (Partido Republicano Italiano). Em 1972,
pois de C.B). Seu texto parece ser uma resposta às com o fim do monopólio de transmissão estatal, sur-
críticas que recebeu por ter feito, na Bienal, um la- giu a primeira rede de televisão privada, fenômeno
boratório a portas fechadas - vetado ao público e à que se multiplicou no ano seguinte, precisando ser
imprensa - com artistas, técnicos de som e estudio- controlado pelo governo. Em 1975, o controle da
sos convidados por ele. RAI passou do Governo Italiano para o Parlamento,
Mais adiante no mesmo texto, que é o pri- ocorrendo o que ficou conhecido como “loteamen-
meiro capítulo do livro organizado por um membro to” das redes da TV estatais entre os partidos com
do Conselho Diretivo da Bienal e responsável pelo representantes eleitos, assim, a RAI1 ficou sob o
seu Setor de Teatro, Bene nomeia e critica o artigo controle do partido Democracia Cristã, a RAI2, cria-
9 de uma resolução do então Ministério do Turis- da em 1961, sob o poder do Partido Socialista e a
mo, que elenca os “pressupostos para a admissão RAI3, criada em 1979, sob controle maior do Partido
às subvenções previstas” para produções teatrais. Comunista Italiano (SABA; MENCARELLI, 1981 e
Bene denuncia a relação explícita entre Produção e ITÁLIA. RAI. n.d.).
Pesquisa subentendida nessas exigências, que de-
Os laços entre Bene e a televisão pública se versão de um espetáculo sobre os poetas russos,
desenvolveram em paralelo a suas atividades no ci- levado à cena pela primeira vez em 1960. Em 1978,
nema e no teatro e remetem a 1970, ano em que, foi feita a transmissão de sua direção do Amle-
graças ao apoio da RAI, ele realizou o curtametra- to (Hamlet)18, a qual se seguiram as filmagens do
gem Ventriloquio, baseado em um capítulo de À Re- Otello19. Ainda que tenham sido realizadas no Cen-
bours, de Karl-Joris Huysmans, e que se encontra tro de Produção da RAI de Turim, em 1979, a edi-
atualmente perdido. ção montada foi finalizada proximamente à morte
Naquele momento, a RAI ainda tinha o mo- de Bene, em 2001, a mais de vinte anos de distân-
nopólio tanto das transmissões radiofônicas quanto cia20. Sucessivamnente, foram transmitidas depois
televisivas italianas, e é provável que, no curso dos versões televisivas do Riccardo III21, do Manfred, do
anos, os contatos de Bene com o pessoal da empre- Adelchi, dos Canti (Cânticos) de Giacomo Leopardi
sa tenham facilitado sua participação em numerosas – à qual se seguirá uma segunda edição em 1998
produções promovidas pela instituição pública nes- -, de Hommelette for Hamlet, Macbeth Horror Suite,
ses dois campos. Pinocchio e Achilleide.
Bene inaugurou sua participação em produ- Dentre as várias produções para a televisão,
ções radiofônicas emprestando sua voz a algumas houve também um projeto, jamais realizado, devido
das “Entrevistas Impossíveis” – Le Interviste Impos- à relutância da RAI, para um Don Chisciotte (Dom
sibili era o nome da produção de 1973 - , uma série Quixote) televisivo, que seria dirigido por Bene, com
de entrevistas imaginárias com grandes persona- a participação de Eduardo De Filippo no papel de
gens da história, escritas por alguns dos protagonis- Dom Quixote e do clown russo Popov no papel de
tas da cultura italiana do século XX, como Alberto Sancho Pança e cujas cenas seriam pintadas por
Arbasino, Oreste del Bueno, Italo Calvino, Umberto Salvador Dalì (BENE, DOTTO, 2015, pp. 299-300)22.
Eco. Bene participou depois como intérprete princi-
pal de uma versão do Tamerlano, de Marlowe, com
18 Amleto, de Carmelo Bene (de Shakespeare e La-
direção de Carlo Quartucci13, e, ao longo dos anos,
forgue). Produção RAI, 1974 [transmitido pela RAI2 em
foram realizadas também edições radiofônicas das 22/04/1978].
suas obras já encenadas no teatro, como Salomé14,
Romeo e Giulietta15 e Pinocchio16. 19 Otello, o la deficienza della donna, de William
Depois de encerrada sua experiência no cine- Shakespeare segundo Carmelo BeneFilmagens de 1979.
ma, dedicou crescente atenção ao meio televisivo, Montagem realizada por M. Fogliatti com a supervisão de
seja em produções realizadas expressamente para C. Bene. Rai Educational, 2001 [Projetado pela primeira
vez no Teatro Argentina, em Roma, exclusivamente para
a televisão, seja através da direção para a televisão
as manifestações “Em honra de Carmelo Bene”, organi-
de seus espetáculos teatrais. zadas pelo Comune em 18-03-2002].
Sua primeira produção televisiva foi Bene!
Quattro diversi modi di morire in versi17, uma nova 20 A montagem de Otello é uma questão que gera
debate. Se, segundo Roberta Carlotto, responsável pela
Radiofonia Rai 3, a assistente de direção Marilena Fo-
13 Produção Rai, 1975.
glietti supervisionou a montagem baseando-se nas indica-
14 Salomè, de O. Wilde. Leitura radiofônica de C. ções de Bene, submetendo a ele o trabalho regularmente,
Bene [Trasmitido no III programma Rai em 15/02/1976]. tanto que, poucos dias antes de morrer, o ator aprovou
Ver também D’AMICO, 2019. essa versão (cf. CARLOTTO, 2019), Sergio Ariotti, jor-
nalista da RAI de Turim que participou das gravações,
15 Disponível em: https://www.youtube.com/wat- sustenta, ao contrário, que “Carmelo o teria montado de
ch?v=Il37G5oq4UQ (1º ato) e https://www.youtube.com/ modo totalmente diferente” e que a montagem “é fruto de
watch?v=fONz1AzeLVI (2º ato), acesso 10/11/ 2022. uma reconstrução bastante arbitrária.” (ARIOTTI, 2019, p.
321)
16 Edição radiofônica de 1974, disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=1IIn7KOYwsA, aces- 21 Riccardo III, de Shakespeare segundo Carmelo
so 10/11/2022. Bene. Produção RAI, 1977 [transmitido pela Rai 2 em 7
dezembro 1981].
17 Bene! Quattro diversi modi di morire in versi. Ma-
jakovskij-Blok-Esenin-Pasternak. Adaptação dos textos 22 Bene depois tomou parte em Tre nel mille, um ro-
por C. Bene e R. Lerici, direção de C. Bene. Produção teiro produzido pela Rai. Tre nel Mille, de F. Indovina. Itá-
Rai, 1977 [transmitido em duas partes pela RAI 2 em 27- lia, 1970 [Transmitido pela RAI em seis episódios com o
10-1977 e em 28-10-1977]. título Storie dell’anno mille em janeiro-fevereiro de 1973].
A última produção televisiva de Bene foi Quat- e talvez também se encontre aí a singularidade de
tro momenti su tutto il nulla , uma série de quatro uma personalidade dentre as mais relevantes do
programas de cerca de meia hora cada nas quais século XX italiano.
Bene enfrenta, também através de estratos do seu
trabalho, quatro temáticas que interessaram à sua Referências
atividade: a linguagem, o conhecimento/consciência,
eros e a arte23. ARIOTTI, S. L’Otello mai terminato di Carmelo. In:
Como se buscou evidenciar, a relação de MAENZA, Rino (org.). Il sommo Bene. Calimera,
Bene com as instituições apresenta mais dubiedade LE, IT: Kurumuny, 2019
do que um simples antagonismo ou contraposição.
Além das numerosas críticas que Bene sempre en- ARTIOLI, Umberto; BENE, Carmelo. Un dio assen-
dereçou à figura do Estado, se deve, no entanto, re- te: monologo a due voce sul teatro. Milano: Medu-
cordar que, também através de suas contínuas pro- sa, 2006.
vocações, Bene buscasse um tipo de legitimação
pública - dedicou, por exemplo, seu livro L’orecchio BALESTRERI, Silvia. Carmelo Bene: uma máqui-
mancante (1970) ao então presidente da república na de guerra gaguejante. Rev. Bras. Est. Presen-
italiana Giuseppe Saragat e manteve relações com ça. Porto Alegre, 8 (1), Mar 2018. Disponível em:
Sandro Pertini, que foi também presidente da repú- https://www.scielo.br/j/rbep/a/8qf3z8LWhh9FDqK-
blica italiana de 1978 a 1985 -, o que se deduz de cM3XpZdK/?lang=pt . Acesso em: 8 jan. 2023.
sua vontade de incluir as instituições na sua Funda-
ção. BENE, Carmelo et al. Carmelo Bene: dramaturgie.
Alguns anos mais tarde, Bene foi contatado Paris: Dramaturgie/José Guinot, 1977.
pelo Comune de Roma. O mandato de Luca Ron-
coni como diretor do Teatro Argentina, um dos mais BENE, Carmelo et al. Il teatro senza spettacolo.
importantes da capital, findava em 1998 e o governo Venezia: Marsilio, 1990.
do Comune sondou Bene, para saber se teria inte-
resse de substituí-lo. Bene se mostrou disponível, BENE, Carmelo. La ricerca teatrale nella rappre-
mas, depois de algum tempo, o encargo foi confia- sentazione di stato (o dello spettacolo del fantas-
do a Mario Martone. Recordando o episódio, Luisa ma prima e dopo C.B.). In: VENTIMIGLIA, Dario
Viglietti (2020, pp 129-130), última companheira do (org.) La ricerca impossibile- Biennale Teatro ’89.
ator, sustenta que, para-além do reconhecimento Venezia: Marsilio, 1990a.
que adviria de uma função como essa, seria difícil
para ele se adaptar a um cargo com tantas implica- BENE, Carmelo. L’orecchio mancante. Milano: Fel-
ções de caráter administrativo. trinelli, 1970.
No panorama italiano, existem numerosos
exemplos de personalidades que tiveram relações BENE, Carmelo; DELEUZE, Gilles. Sovrapposizio-
mais tranquilas com a administração pública, como ni. Feltrinelli, Milano, 1978 [Macerata, IT: Quodlibet,
Luigi Ronconi (que dirigiu o Teatro Stabile di Tori- 2012].
no, o Teatro Argentina e o Piccolo Teatro), Gabriele
Lavia (Teatro Eliseo) e Romeo Castellucci (que diri- BENE, Carmelo; DELEUZE, Gilles. Superpositions.
giu a seção Teatro da Bienal de Veneza), o próprio Paris: Minuit, 1979.
Vittorio Gassman, que fundou la Bottega teatrale
de Florença (uma escola para formar atores), diri- BENE, Carmelo; DOTTO, Giancarlo [1998]. Vita di
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preendente, desde a estreia que assinala sua saída CAMUS ha concesso "Caligola" a giovani attori sco-
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