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( 1) I» Presença de Villa-Lobos, Rio de Janeiro, MEC, Museu Villa-Lobos, vol. 4, pág. 98.
(2) ldc»n, vol. 3, pág. 175.
" 0 povo é. no fundo, a origem de todas as coisas belas e nobres, inclusive da boa
inúsica. O que é unia sinfonia/senão a expressão rtiusical dos sentimentos de um povo
expressada por um indivíduo?/ 0 compositor genfuno, por mais cosmopolita que seja,
-é-mais-dtrque nirdaTTexpressão de um povo, de uma ambiente” (1) ' >’;W! ■
Mas é preciso que se diga que Villa-Lobos não precisou esperar pela eclosão do
modernismo e pela definição por Mário de Andrade do novo nacionalismo musical para
começar a construir sua obra. Como se viu, desde mais ou menos 1917 já estava traçada
a linha que deveria orientar a-sua-concepçao, musical de caráter nacional: e o fato do
movimento modernista encontrar nele um compositor já maduro (e portanto mais imper
meável às influências exteriores, menos moldável ao gosto do grupo) mostra a sua inde
pendência com relação à nova escola.
Villa-Lobos foi um chorão em sua juventude, e quando ele declarou uma vez a um
jornalista francês que tinha se formado no Conservatório de Cascadura - subúrbio da
zona norte carioca, onde o choro sempre predominou - talvez ele tivesse querido dizer
que seu aprendizado musical se deu no meio de compositores e instrumentistas da música
popular, do choro. ,
0 fato de ter participado ativamente de conjuntos de choro, de. ter vivido esta
experiência de música popular, deu a Villa-Lobos condições de fazer a transposição
erudita deste gênero popular, ao qual ele acrescentou elementos tomados ao folclore
de diferentes regiões (e mesmo certos temas indígenas), criando um clima sonoro que é
ao mesmo tempo o reflexo da música popular urbana brasileira e um imenso painel de
toda a sensibilidade musical de seu povo. Luiz Heitor mostra bem o que representam
estas obras: “ ... os grandes choros sinfônicos representam a sublimação da melodia seres-
teira, violentamente transportada de sua indigência semipopularesca para a prodigalidndo
milionária dessas partituras de gênio, em que ela domina soberanamente, muito embora
não raro se acotovelando com os mais dispares elementos, que constitue nesse mundo
primário, disconforme, excessivo, quase heróico, criado por Villa-Lobos em sua fase dc
mais violenta erupção artística, os anos.de 1922 a 1930”. (4)
UFRN-ESCOLA DE MÚSICA si
A eacolhu de Villa-Lobos do espírito do choro popular para unificar esta enorme
sifile dn obras pode ser explicado, em parte, pelo fato justamente deste gênero popular
iiAu lei urna forma estável. Tomando como ponto de partida um gênero musicai até
.oito ponto Indefinido, o compositor podia permitir-se muito maior liberdade quanto
A MtruturaçKo formal de suas obras e quanto aos recursos técnicos a empregar, recursos
quo o compositor modifica segundo as exigências da construção das obras. Em geral,
potlc nc dl/er que a série dos “Choros” mostra-nos um Villa-Lobos muito próximo da
iiiidlçtio popular c um compositor que conhece e sabe empregar técnica de composição
qno, sondo pessoal, não recusa as conquistas recentes da técnica européia. Mas apare
cem, ve/, por outra, fragmentos que relembram a pastosidade melosa e algo acadêmica
do post -romantismo, que refletem o gosto pela sonoridade impressionista ou pela insis
tência rítmica primária do Stravinsky do “Sacre”.
O exame desta série de obras mostra de modo evidente o seu sentido estrutural
marcado ospcdalmente por sua complexidade crescente. O “Choros n.° 1” para violão
(drvc-tic grafar sempre no plural para mostrar que cada obra é apenas parte da série),
<í umi reflexo simples e direto da música popular urbana do Brasil e está composto à
mnnelrii do Sátiro Bilhar e de Ernesto Nazareth; a partir dele e afastando-se progressi-
v»mento do modelo popular, Villa-Lobos emprega os conjuntos instrumentais os mais
dlvciso», dentro de clima que não deixa de refletir a sensibilidade musical por tomar-se
innii c mais complexo. Como determinar qual o mais importante, nesta série de obras
que oxplora caminhos tão diversos e apresenta soluções sempre originais e eficazes?
('nda um dos “Choros” tem seu charme especial e mostra-se único por uma razão precisa:
o nspccto sintético e puro do “Choros n.° 2”, o trabalho sobre temas Pereci autênticos
(recolhidos por Roquete Pinto) do “Choros n.° 3”, a construção formal do “Choros
n.° 4", o lirismo scresteirodo“Choros n.° 5” (que lembra tanto a velha música popular
para piano, sobretudo a de Nazareth), a liberdade harmônica do “Choros n.° 6” , a lingua
gem estrita e sintética do “Choros n.° 7”, a grandiosidade e a riqueza dos “Choros n.° 8
e n,° 9", a perfeita transfiguração da música popular que é o “Choros n.° 10” (que
termina com uma longa citação de uma canção de Catulo da Paixão Cearense e Anacleto
do Medeiros), o vigor e o dinamismo dos “Choros n.° 11 e n.° 12”, ou o caráter sintético
dos “Dois Choros Bis” , para não citar senão os mais importantes (as três outras partituras
são a “ Introdução aos Choros”, espécie de grande síntese temática e instrumental de
todos os “Choros” , e os “Choros n.° 13 e n.° 14” , que estão desaparecidos). Mas não
há dúvida dc que somente estas obras justificariam toda a atividade musical de Villa-
Ixrhos, gnrnntindo-lho a privilegiada posição que ele ocupa na história da música brasileira
o mesmo no panorama da música universal. Mais do que em outras obras o compositor
brasileiro refleto aqui as impurezas e contradições da formação da música brasileira,
como o definiu o nmsicólogo Andrade Muricy.
Isto nau drve ter sido especialmente importante para o compositor, que confessa
lei sido vaiado n u muitas das grandes cidades do mundo, que tinha “uma coroa de vaias”
( que, n propósito de uma reação especialmente desfavorável do público, dizia ter a
Impresslo de (cr atingido o ideal...
Mas se parte do público francês assim recebeu as obras de Villa-Lobos, olr irvr
da crítica esclarecida o apoio de que necessitava e do qual tinha muitas razflei dr «
orgulhar. Leia-se, por exemplo, algumas das críticas escritas por Florent Schmitt mn
“Le Temps” , nas quais o compositor brasileiro é apresentado como uma das figmns
fundamentais da música contemporânea, tanto pela riqueza de seu mundo interior como
pelo seu domínio da técnica compoácional e pelo vento de liberdade que sacode todas
as suas obras. Como Florent Schmitt, Henri Prunieres soube compreender a múslni .1.
Villa-Lobos, inclusive a aparente falta de organização formal que a caracteriza o que nflo
é senão a aplicação de outros critérios de equilíbrio e de proporção.
Mas o estilo dos “Choros” , esta síntese maravilhosa da música tradicional Inaslleiia
em estruturas composicionais livres e modernas, daria logo lugar a posicionamento catd11
_coJçratrtténte_dimsõT- T p 'iS r de 1930, Villa-Lobos é tocado pela febre do neocla.asii r.
mo. É interessante notar que esta conversão coincide com o período de ideologia popu
lista do compositor e com stta_aceitação oficial pelo regime de Getúlio Vargas, com o
qual o compositor vai colaborar em muitas circunstâncias (ainda que pessoas que i onvl
veram e trabalharam com o mestre neste período afirmem que ele não se engajara pmlun
damente com o regime, conservando-se sempre apolítico) e do qual ele tiraria o apulo
para a sua campanha cm prol da educação musical universal (é bem verdade que em um
conceito de educação, suas finalidades primeiras eram a disciplina e o civismo!.,.) r pum
a criação do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico (do qual ele foi o chele ald
a sua morte). Na base desta conversão está o gosto de Villa-Lobos pelo classlctsmo,
sobretudo pelo Haydn dos Quartetos, e a idéia de que a estruturação clássica pcrmltliln
a construção de obras mais facilmente aceitável pelas massas (o populismo de todos os
países tenderá fatalmente, como se pode observar, para os retornos às estruturas clávil
cas). Como razão declarada pelo próprio compositor, está a constatação de que Imvmla
um grande parentesco entre os temas e as formas usadas porTJãclTeirfolclõfe brnsllrnu
Deste ponto de partida teórico nascerão muitas obras, dentre as quais destacam se
por sua importância a grand.e série d^s.LBachianas Brasileiras”, cujo título mesmo prclrn
de mostrar a conjugação possível entre o espírito dãlnusica'de Bach (edos pré-clásslcou)
e a música típica brasileira. Em texto explicativo;sobre esta série de nove grandes peças,
Villa-Lobos diz considerar Bach*‘fonte folciórica jniversal. rica ê profunda, com todos os
materiais popuraresde todos os jraíses, intermediária de todos os povos”. Está claro
que não se "pode lèvarTriüito a sério todas as fantasias de Villa-Lobos, sob pena de In
que rever muitos conceitos científicos sobre folclore... Neste mesmo texto Villa-Lobos
diz que “a música de Bach vem do infinito astral para se infiltrar na terra como música
folclórica e o fenômeno cósmico se reproduz nos solos, subdividindo-se nas várias purtes
do globo terrestre, com tendência a universalizar-se” ...
(1) in Presença de Villa-Lobos, Rio de Janeiro, MEC, Museu Villa-Lobos, vol. 3, pág. 84.
De concreto, há a própria sensibilidade do compositor, barroca em todas as suas
formas; há a escolha prévia e precisa dos elementos “bachianos” a serem empregados:
lul a voga das “voltas ao antigo” , cristalização de um processo que se vinha operando
hd tempos, como tão bem o observou Adhemar da Nóbrega. E fica o mistério ainda
não explicado do parentesco evidente que Villa-Lobos encontrou: seria o caráter triste,
solene, quase místico de certas melodias do folclore? seria o estilo contrapontístico
iiltumcnte elaborado do choro, sobretudo entre a melodia principal e o baixo sempre
cantante?
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