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CONSULTAS E PARECERES

VÍNCULO.

DA CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE

SUMARIO: Especificidade do problema do Direito pátrio – Cláusula de


inalienabilidade sobre a legítima e o disponível - Seus efeitos – Da necessidade de
causa justa e expressa – pressupostos doutrinários não raro olvidados – Da
revogação da cláusula e suas condições - Em que hipótese pode o cônjuge
supérstite extinguir o vínculo.

PARECER.

1 – Para se determinar, com o devido rigor dogmático, se, como e quando


seja suscetível de revogação uma cláusula modal aposta a uma doação, mister é
fixar, preliminarmente, alguns de seus pressupostos teóricos, segundo as linhas-
mestras de uma experiência jurídica que, tanto no plano legal como no
doutrinário, apresenta características peculiares ao Direito pátrio.

Com razão adverte o mestre Francisco Morato que inútil seria, no tocante à
possibilidade de gravar-se a legítima do herdeiro, buscar precedentes e lições no
Direito peregrino (Das clausulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e
impenhorabilidade, na revista Direito, vol. XX, 1943, pág. 429). Verdade é, porém,
que, mesmo sob outros prismas que não o apontado, o emprego de cláusulas
restritivas da propriedade, quer por disposição de última vontade, quer por atos
inter vivos, atingiu entre nós tal elastério, que não será exagero sustentar ter
surgido algo de novo e de próprio nos quadrantes do Direito brasileiro para
atender sobretudo, a exigências e precauções relativas à economia familiar.

Compreende-se que assim tenha ocorrido. Se alhures, outros institutos


parecem corresponder melhor ao desejo de uma projeção da vontade para além
da vida do disponente, graças a fundações, corporações ou trustes, a tendência
mais personalista, ou menos institucionalista, de nossa gente, prefere valer-se de
cláusulas que, no dizer preciso de Josserand, têm como efeito criar um status real
de um estatuto jurídico determinado para os bens objeto de doação ou de legado
(V. Josserand, Cours de Droit Civil Positif Français, 3ª Ed., 1940, n. 1.534).

2 – Sobre as razões determinantes das cláusulas restritivas da propriedade,


basta lembrar que seu uso é tanto mais frequente quanto mais aumentam as
preocupações e as incertezas da vida econômica, gerando no espírito dos pais a
natural precaução de cercar a prole de amparo legal contra as mutações bruscas
da fortuna.
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O meio brasileiro, dada a carência de uma estrutura econômico-financeira


estável: exposto como é a mutações violentas e descontínuas, e também em
virtude de grave tendência ao desperdício - que só uma sábia política educacional
lograria coibir, orientando o povo segundo as salutares diretrizes de prudência
econômica e da poupança - não podia ser senão propício ao desenvolver-se de
medidas que, em outras nações, só se admitem em caráter excepcional, por
respeitar-se normalmente a plenitude do direito de propriedade, segundo as suas
finalidades sociais e econômicas.

Pode-se dizer, todavia, que mesmo atentando à peculiaridade de nossas


circunstâncias, já estamos passando do uso para o abuso das cláusulas restritivas,
impostas tanto sobre a legítima como sobre o disponível sem nem mesmo se
ponderar que, nesta segunda hipótese, constante ensinamento dos reinícolas,
deve a disposição estribar-se em causa justa e expressa. Não sendo manifestas as
razões do preceito, deveria ser havido como simples conselho, Simplex
praeceptum consilium que, embora oponível validamente contra terceiros, nem
por isso privaria o donatário da faculdade de alienar.

3 – As considerações ora feitas, não obstante a sua aparente generalidade,


visam a situar o problema no âmbito do Direito comparado, a cuja luz poder-se-ia
perguntar se já não teremos avanço em demasia no sentido de fazer prevalecer a
exceção sobre a regra, pagando excessivo tributo a uma interpretação puramente
formal da vontade do testador ou do doador, a ponto de causar dano a quem se
visará proteger.

A tendência de alguns de nossos juristas, contrariando a regra normal da


livre disponibilidade, é sempre pela prevalência das cláusulas restritivas em sua
acepção, mais rigorosa, como, por exemplo, quando afirmam que, não sendo
expressa a limitação do tempo, deve ser estendida como sendo vitalício e não
apenas temporário o vínculo imposto, ou então, ao considerarem clausulado
também o disponível, apesar do testador só se referir à legitima. Deve, por isso,
merecer encômios a lição contida em decisão de nosso Conselho Superior da
Magistratura no sentido de que todas as limitações da propriedade, tendentes a
embaraçar ou obstar a livre circulação das riquezas, precisam ser entendidas da
maneira menos nociva possível para a economia geral. Vale dizer que as cláusulas
de inalienabilidade não prevalecem senão em casos excepcionais, extremes de
qualquer dúvida sendo preferível não admiti-las diante da mais ligeira obscuridade
dos contratos e da lei (Rev. dos Trib. , vol. 166/162).

4 – Não será necessário, todavia, recorrer a tais normas no caso da


consulta. Mesmo um rigorista impenitente, apegado que seja à literalidade dos
textos, não poderá contestar, dadas as circunstâncias que cercam o caso
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submetido a meu exame, a plena juridicidade do ato pelo qual o doutor Juiz do
Direito da Comarca de Santos houve por bem deferir o pedido feito por D.
Leonilda Sarti Fraccaroli e outros para considerar cancelada a cláusula de
inalienabilidade imposta pelo comendador João Fraccaroli e sua mulher sobre a
metade ideal do conhecido conjunta imobiliário denominado Parque Balneário
Hotel.

Quando um ato jurídico sucede a outro, não apenas cronologicamente, mas


por uma razão de ordem lógica (por ser o segundo, por exemplo, a retificação ou
a revogação do primeiro, a sua consequência ou complemento, etc.) é intuitiva a
impossibilidade de se dissociarem os dois fatos: Exigem as regras cautelares de
hermenêutica que ambos os atos seja objeto de compreensão unitária, a fim de
captar-se a autêntica intenção das partes.

Na hipótese ora considerada, mister é indagar dos propósitos dos doadores,


em 1955, à luz do que haviam eles determinado em 1941, a escritura lavrada
nesta data tento sido objeto de alteração parcial.

Estatuíra a escritura de 1941, com riqueza e apuro de gravames:

a) Ser a doação apenas relativa a nua propriedade, dada a


reserva de usufruto vitalício a benefício dos doadores, subsistindo íntegro
em favor do sobrevivente;
b) Com inalienabilidade vitalícia;
c) Impenhorabilidade extensiva aos frutos;
d) Livre administração;
e) Incomunicabilidade.

No entanto, por consistir a doação da metade ideal de um conjunto


imobiliário manifestante insuscetível de divisão econômica, os próprios doadores,
tão minuciosos na explicitação de cada cláusula, fizeram desde logo a seguinte
ressalva no tocante a de inalienabilidade: Cláusula esta que poderá ser dispensada
em vida pelos doadores ou por um deles, se o outro for morto e que depois de
mortos, só impedirá a alienação a estranhos e não entre os condôminos do imóvel
ou seus herdeiros.

É indiscutível, como se vê, a preocupação dos doadores pelos problemas


emergentes do condomínio, prevendo os prejuízos que viriam a sofrer os
donatários, na hipótese de poderem dispor do imóvel os demais condôminos ou
seus herdeiros.

5 – Passados 15 anos, reúnem-se novamente doadores e donatários e, de


comum acordo, assentam:

a) declarar extinto o usufruto


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b) converter em temporária a inalienabilidade, vigorando apenas pelo


tempo de vida deles outorgantes e extinguindo-se pela morte de ambos, para que
os outorgados venham a ter a livre disponibilidade;

c) revogar as cláusulas de incomunicabilidade e de livre administração

d) manter a cláusula de impenhorabilidade, extensiva aos frutos e


rendimentos.

Poder-se-á inferir daí ter sido implicitamente revogada a faculdade que


tinham ambos os doadores, ou um deles, se o outro fosse morto, de dispensar por
inteiro a cláusula da inalienabilidade, tal como se continha na escritura de 1941?

Não me parece que essa fosse a intenção das partes, pois naquela data,
tanto como agora, continuava o bem em condomínio, já havendo condôminos com
o direito de exigir-lhe a venda (Código civil, art. 632). Requerida a venda de todo
o imóvel, por ser a coisa indivisível ou se tornar, pela divisão, imprópria ao seu
destino, e não sendo, de outro lado, lícito subordinar ao vínculo um consorte
capaz de dispor livremente do que lhe pertence (eis aí uma hipótese não prevista
no art. 1676 da lei civil, mas que decorre da possibilidade legal de se declarar
inalienável uma parte ideal de um bem juridicamente indivisível – v. Carvalho
Santos, Código Civil Comentado, vol. 23, pág. 358), é claro que, subordinada a
hipótese ao que dispõe o art. 1.676, o produto da venda deverá se converter em
outros bens, sub-rogados nas obrigações dos bens clausulados. Nem é demais
advertir que, em se tratando de inalienabilidade em parte ideal, a sub-rogação só
poderá ser feita por hasta pública ... (Rev. dos Trib., vol.276/348).

6 - Se, por conseguinte, os doadores se limitarem a converter a


inalienabilidade de vitalícia em temporária, parece-me que não se privaram da
possibilidade de a extinguir por completo, tais fossem as circunstâncias.

De mais a mais se quando a cláusula era vitalícia se previra a sua


revogação, por que se haveria de considerá-la intangível quando convertida em
temporária?

Foi, pois, no uso de uma prerrogativa inerente ao próprio ato de doação,


que o cônjuge sobrevivente, D. Leonilda Sarti Fraccaroli, em 1958, julgou de bom
alvitre promover a extinção total do vínculo: era o terceiro momento de um
encadeamento de disposições, de cujo exame global resulta límpida a licitude do
praticado.

7 - Em se tratando de cláusula de doação, equiparável as de última


vontade, do ponto de vista da hermenêutica jurídica, deve o intérprete procurar
sempre a causa real impulsiva e determinante do ato, não só da doação em si,
mas das obrigações e encargos que envolve, pois a causa, telle que l’entend la
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jurisprudence, au lieu de rester toujours identique, changera d’une espèce àl’autre


suivant la nature du motif qui a inspirè le disposant (Marguerite Bouyssou, Les
libéralités avec charges de Droit Civil Français, Paris, 1947, pág. 267).

Só mesmo pela indagação da causa da liberalidade em cada caso


específico, atendendo-se ao complexo de seus elementos e peculiaridades, ou
seja, à finalidade que determinou cada cláusula, é que se poderá cumprir os
mandamentos do art. 1666 do código civil, para assegurar a observância da
vontade do doador.

Analisando o art. 3º da chamada Lei Feliciano Pena (lei sucessória n. 1.839,


de 31 de dezembro de 1907), o professor emérito José Ulpiano Pinto de Souza na
melhor monografia nacional sobre o assunto, já nos dava o rigoroso sentido do
termo condições de inalienabilidade empregada pelo legislador de então e mantida
no art. 1.723 da lei civil, como equivalente a circunstâncias, caracteres,
qualidades, requisitos, motivos, causas.

A lei aí quer dizer que o ascendente determinará os motivos, as


circunstâncias, as hipóteses, ou em suma, a causa pela qual o ascendente terá a
faculdade de alienar os bens herdados ou fora da qual não poderá aliená-los
temporária ou vitaliciamente.

E acrescentava que a causa devia ser expressa, isto é, causa vestita,


segundo os Reinícolas, sem o que valeria como mero conselho, sem
obrigatoriedade.

O testador não precisa dar a causa de sua liberalidade ou disposição


testamentária; mas se esta visar à Inalienabilidade, grandíssima restrição à
propriedade precisa para ser respeitada, que determine a sua causa ou as suas
condições, importando a falta da expressão da causa, a nulidade do encargo ou
modo da inalienabilidade (Das cláusulas restritivas de propriedade São Paulo,
1910, págs. 91 a 96, Grifos do autor).

Mesmo sem chegar a tal extremo - pois a cláusula não justificada seria
sempre oponível a terceiros - no caso em exame, dada a circunstância especial de
se ter gravado com inalienabilidade um bem em condomínio, fazendo-se a este
significativa e expressa referência, tenho como irretorquível a intenção dos
doadores de poderem dispensá-las a qualquer tempo. É o que resulta da análise
teleológica de disposição da causa do ato, essencial na interpretação das
literalidades, para respeito real da vontade do disponente (sobre a moderna teoria
da causa nos atos de liberalidade, V.Hamel, La notion de cause dans les
libéralités, Paris, 1920).
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8 - Ainda, porém, que se preferisse considerar prejudicada a faculdade de


revogar a inalienabilidade, tal como originariamente haviam se reservado os
doadores, não se poderá contestar ao cônjuge supérstite o direito de suspender
dito encargo visto ter sido instituído para vigorar apenas pelo tempo de vida deles
doadores, extinguindo-se pela morte de ambos.

Em primeiro lugar, pode considerar-se superada a teoria segundo a qual,


sendo a doação um modo de adquirir domínio, uma vez solenizada em forma
legal, não teria mais o transmitente qualidade para mudar a condição jurídica da
coisa doada ou dispensar encargo licitamente prescrito. Prevalece, ao contrário, o
entendimento de que, como contrato, a doação está sujeita a todas as normas
reguladoras dos atos jurídicos dessa espécie, podendo mesmo ser distratada. Se
as mesmas partes que avençaram a doação continuam na mesma situação jurídica
anterior, nada impede que desfaçam ou modifiquem a liberalidade, estabelecendo
novas condições (Rev. dos Trib., vol. 203/163)

Desnecessário é dissertar aqui sobre o acertado fundamento desse aresto,


máxime quando não nos cabe examinar uma doação pura e simples, mas uma
doação sub modo. Como observa Antão de Moraes, com apoio em ensinamentos
de Aubry et Rau, Bretonneau e Manuel Inácio Carvalho de Mendonça, quanto ao
cumprimento das cláusulas impostas, malgrado a transferência do domínio, o bem
doado continua a sofrer o influxo da vontade do doador, sendo-lhe, pois,
permitido aceder ao desejo do donatário, autorizando a alienação (Antão de
Moraes, Cláusula de inalienabilidade, na Rev. dos Trib., vol. 52/344. Cf.Paul
Bretoneau, Étude sur les clauses d’inalienabilité en dehors du contrat de mariage
et des substitutions permises, 1902, pág. 294).

E a doutrina dominante, limpidamente consagrada em acórdão de nossa


segunda instância, in verbis:

E’ questão pacífica que os vínculos com que o doador gravou o imóvel


podem ser por ele cancelados, uma vez que não firam direitos de terceiros e haja
acordo dos interessados. (...) Cancelada a cláusula de inalienabilidade, nada
impede que os donatários alienem o imóvel doado, ainda que doadores tenham
estipulado que por morte dos donatários, o bem passaria aos respectivos filhos
(Rev. dos Trib., vol. 201/195). CL também vol. 263/221.

Compreendem-se, porém, as dúvidas surgidas sobre a natureza da doação,


pois esta, consoante justa ponderação de Messineo, participa de duas ordens de
princípios jurídicos, pois, de um lado, attesa il carattere di negozio di liberalitá,
intrínseco alla donazione, réecheggia (con le dovute varianti) regole che sono
proprie nel testamento; mas, ao mesmo tempo, attesa La sua indubbia natura
contrattuale la donazione risente di questo carattere, partecipando allá disciplina
generale Del contratto, oltro che essere disciplinata da regole, di stampo
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contrattuale, peculiari allá materia (Manuale di Diritto Civile e Commerciale, Milão,


1947, vol. III, pág. 1).

Poder-se-ia dizer mais, ainda que, segundo a infinita gama dos motivos e
circunstâncias determinantes dos atos de liberalidade, pode a doação ir de um
mínimo (quase perde de seu caráter contratual, revestindo-se de características do
negócio unilateral, como ocorre na hipótese de doação a pessoa ainda não
concebida, na hipótese previstas no art. 1.173) até a um máximo (doação com
tais encargos que assume as características dos contratos onerosos).

Em havendo modus, por conseguinte, não obstante a transferência do


domínio, acentua-se a contratualidade do ato, devendo-se concluir pela afirmação
que em princípio, os vínculos devam ser considerados suscetíveis de distrato.

9 - Na presente hipótese, a questão está em saber se, morto um dos


cônjuges doadores, pode o supérstite abrir mão da cláusula de inalienabilidade –
imposta, aliás, como vimos, de forma resolúvel – por se consignar que deveria
subsistir pelo tempo de vida deles doadores, extinguindo-se pela morte de ambos.

Também nesse passo não vale argumentar com a mera acepção aparente
dos vocábulos, sendo indispensável perquirir a causa do preceito.

Nota-se, desde logo, que, por força da mesma escritura de 1955, ambos os
doadores renunciaram ao usufruto, passando, dessarte, a fruição dos bens
incontinenti aos donatários, e transformaram a inalienabilidade de vitalícia para
temporária.

A inalienabilidade temporária, isto é, pela duração da vida dos doadores


quando desacompanhada de quaisquer outros modus, não traduz nenhuma
reserva de benefício econômico a favor do autor da liberalidade: tem significado
puramente moral ou sentimental representando, muitas vezes, a afeição pessoal
do doador por um determinado bem que ele não quer ver alheado do patrimônio
familiar.

Embora não me pareça plausível a teoria de Josserand, segundo a qual


todas as cláusulas de inalienabilidade seriam liberalités avec affectation spéciale, e
não propriamente encargos (v. Josserand, Évolutions et actualités, conferences
de Droit Civile, Paris, 1936, pág. 149); e apesar de não concordar com Pontes de
Miranda e Carvalho Santos quando sustentam que o que o código denomina
cláusula de inalienabilidade não é senão uma limitação de poder; não constitui
modus (Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro interpretado com. Ao art. 1.676,
vol. XXIII; pontes de Miranda Tratados dos testamentos, n.687), a mim me
parece que, no caso particular de pura inalienabilidade temporária, o que
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sobreleva é o caráter pessoa do modus, sub-existente até e enquanto em vida


cada um dos doadores.

Se assim não fosse, se fizermos abstração do elemento puramente efetivo,


como se compreenderia a renúncia ao usufruto e a inalienabilidade temporária,
uno in acto?

10 - Em caso absolutamente idêntico, já decidiu o Egrégio Tribunal de


Justiça de São Paulo que:

É válida a revogação da cláusula de inalienabilidade imposta em ato inter


vivos, pouco importando o falecimento de um dos outorgantes, se o termo final do
vínculo era exatamente a data da morte dos doadores (Rev. dos Trib., vol.
166/361).

A tal conclusão se chegou graças ao exame de causa ou da intenção real do


doador.

O termo final da cláusula de inalienabilidade, imposta pela primeira


escritura, era exatamente data da morte dos outorgantes doadores. Nessas
condições, não me estava violando a vontade do contratante pré-morto: tudo
quanto ele desejou foi realizado, suposto que o vínculo foi respeitado durante todo
o tempo de sua vida (loc. cit).

Pretender restringir a validade de renúncia da viúva apenas a metade dos


bens doados pelo casal, para conservar-se inalienável apenas a cota oriunda do
defunto, enquanto ela viver - quando o objeto de doação, de conformidade com o
que já acentuamos, são bens em condomínio - é um absurdo que entra pelos
olhos.

Na realidade, quando a inalienabilidade for estipulada pela duração da vida


de ambos os ascendentes, ela durará até e enquanto não houver renúncia
expressa de um deles, pois não se pode entender, obviamente, o vínculo, a
pessoa do consorte. Removido o vínculo por um deles, estando o outro morto, não
subsiste mais o modus: de outra forma, teríamos, como consequência, um único
bem alienável por metade, e inalienável por outra, com todos os inconvenientes e
transtornos antieconômicos acima por mim aventados.

11 - Nem se diga que o acórdão acima referido é isolado.

Dele não discrepa o inserto à pág. 252, vol. 202, da Rev. dos Trib.
confirmatório de sentença que impediu o levantamento da cláusula de
inalienabilidade sem a anuência expressa do cônjuge sobrevivente.

Ora, lê-se na sentença, dos doadores faleceu tão somente e cônjuge-varão,


achando-se ainda viva sua mulher. Esta não compareceu ao presente pedido de
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remoção parcial dos vínculos. Logo, não é facultado aos donatários, motu proprio,
pretender a desvinculação parcial requerida. Se a doadora tivesse intervindo no
feito, por certo, o caso mudaria de figura. (loc.cit.).

Desde se desprende que, a contrario sensu, os dois arestos aqui lembrados


coincidem no entendimento da plena retratação de encargos por ato do cônjuge
supérstite, quando não se trata (nota-se) do vínculo vitalício, mas tão somente
temporário. Quando o modus é imposto em caráter vitalício, mesmo com a morte
de um dos doadores, ao outro não é dado removê-lo, constituído que foi em
benefício exclusivo do donatário, inexistindo a causa pessoal determinante, sobre
cuja permanência, como na hipótese sub judice, é o consorte sobrevivo o único
em condições de decidir.

Há a recordar, outrossim, uma decisão mais recente de nossos Egrégio


Tribunal e que se ajusta plenamente a hipótese da consulta, nestes termos:

Será, porém, nula a venda do imóvel doado pelo réu e pela falecida D.
Ismênia, uma vez que eles só se reservarem o usufruto, vincularam a liberalidade,
como já esclarecido? A inalienabilidade imposta por D. Ismênia, quando a sua
parte, desapareceu com sua morte? E foi bem cancelado o vínculo pelo doador,
quanto à sua, de acordo com os donatários que isso anuíram?

E este um ponto pacífico, na doutrina e na jurisprudência. A propósito


dessa controvérsia o Juiz decidiu com indiscutível acerto, ficando acordados os
fundamentos que expendeu (Rev. dos Trib., vol. 263, pág. 227).

Começando pela segunda questão, entendeu a Turma Julgadora que não


havia nenhum óbice ao cancelamento das cláusulas restritivas pelo próprio
doador, uma vez que as donatárias concordaram.

12 - Em conclusão, quer se repute subsistente na escritura de 1955 a


possibilidade de cancelamento da inalienabilidade e tal como fora previsto em
1941; quer se a considere revogada, sou de parecer que assistia à doadora, com o
assentimento dos donatários, livrar completamente os bens dos vínculos que o
gravaram, para que os filhos deles pudessem dispor sem qualquer restrição ou
reserva.

É o meu parecer, s.m.j.

São Paulo, 2 de julho de 1959.

MIGUEL REALE.

(Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.)

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