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DESCRIÇÃO

Os aspectos simbólicos da alimentação e sua importância para o profissional da área da Nutrição.

PROPÓSITO
A compreensão dos aspectos simbólicos da alimentação e do significado dos alimentos nas diferentes culturas é importante para sua
formação, pois facilitará sua atuação na clínica e sua compreensão em relação ao seu público-alvo em outros contextos no exercício da
profissão.

OBJETIVOS

MÓDULO 1

Identificar os aspectos reais, simbólicos e imaginários da alimentação

MÓDULO 2

Relacionar a identidade cultural e a comensalidade às dimensões simbólicas da alimentação

MÓDULO 3

Reconhecer os significados simbólicos nas práticas de alimentação


INTRODUÇÃO
Neste tema, você vai aprender a identificar os aspectos simbólicos, reais e imaginários da alimentação. Esta carreira que você escolheu se
situa no âmbito das ciências da natureza. Nossas crenças, nossos valores e conceitos sobre alimentação se constroem desde a mais tenra
idade e fazem parte da nossa vida. Por esse motivo, para mudar comportamentos, o profissional da área da nutrição não pode ignorar os
múltiplos significados que os indivíduos atribuem aos alimentos e às suas práticas alimentares.

No módulo 1, após uma introdução à disciplina e à importância na sua formação acadêmica, vamos discutir os aspectos reais, simbólicos e
imaginários da alimentação. O corpo-máquina construído pelo modelo mecanicista da ciência biomédica será pensado no âmbito do real da
alimentação. Depois, na vertente simbólica da alimentação, através dos múltiplos aspectos simbólicos. Em seguida, o imaginário da
alimentação será explorado através das angústias dos comedores contemporâneos em relação à comida.

No módulo 2, falaremos da construção da identidade cultural a partir da alimentação e sobre a comensalidade e seus múltiplos significados
socioculturais.

No módulo 3, vamos discutir os significados das práticas de alimentação em diferentes momentos. Começamos falando sobre a importância
das comidas afetivas e das memórias gustativas, depois sobre a construção do gosto e como questões de gênero estão associadas à
alimentação, assim como as relações existentes entre comida e sexo, estes dois polos da sensibilidade e do prazer humano.

MÓDULO 1
 Identificar os aspectos reais, simbólicos e imaginários da alimentação
POR QUE ESTUDAR HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA DA
ALIMENTAÇÃO?
Você, como aluno(a) do curso de Nutrição, deve estar se perguntando que disciplina é esta e por que ela é importante para você. Então,
antes de mais nada, vamos refletir juntos sobre isto? Para entendermos primeiramente o que é a Antropologia da Alimentação, vamos
começar falando sobre Antropologia: o que vem a ser Antropologia?

 RESPOSTA

A Antropologia é uma ciência social que surge no século XIX e que é fruto do Neocolonialismo. O Neocolonialismo, isto é, o novo
colonialismo, está diretamente relacionado à Revolução Industrial e foi a expansão imperialista das potências europeias no século XIX em
direção à África e à Ásia. Diante da crise de superprodução na Europa em função da descoberta da utilização da eletricidade e do petróleo,
estes países saíram em busca de novos mercados, matérias primas e mão de obra. Segundo Laplantine (2000), os colonos e viajantes
começaram assim a acumular informações sobre os povos considerados exóticos destes países e assim se organiza a disciplina que se
propõe a estudar estes povos, a Antropologia.

A Antropologia significa literalmente o estudo do homem (a palavra vem do grego anthropos, que significa homem e logos, que significa
razão, pensamento). A Antropologia surge assim, com o intuito de compreender este homem exótico de forma global, ou seja, sua arte,
economia, religião, pensamento, parentesco, alimentação, cultura material etc.

A Antropologia Cultural pode ser definida como a ciência que está interessada nos aspectos culturais dos grupos e sociedades e em suas
consequências no comportamento individual e coletivo. Sendo assim, ela reflete sobre o homem, principalmente, a partir do conceito de
cultura.

Fonte: Joa Souza/Shutterstock


 Índios Pataxó, Porto Seguro, Brasil.

Já a Antropologia da Alimentação, o que ela estuda?

 RESPOSTA

Ela se ocupa justamente das dimensões culturais da alimentação. Para melhor compreender este ponto, vamos refletir primeiramente sobre a
centralidade da alimentação em nossas vidas a partir de algumas questões. Por que comemos? O que comemos? Como comemos e como
preparamos os alimentos? Esta última ideia de modalidade inclui também questões como: a que horas comemos? Com quem comemos?
Onde comemos?

A primeira coisa que nos vem à cabeça quando pensamos sobre o porquê de nos alimentarmos, é que o ato de se nutrir é uma necessidade
fisiológica primordial. Não é surpreendente que a metáfora bíblica para a sobrevivência seja “o pão nosso de cada dia”. A alimentação
também está diretamente ligada à saúde humana, como nos diz a ciência nutricional. Comer é uma necessidade, mas, diferentemente de
respirar, o homem precisa buscar seus alimentos.

No entanto, este não é o único motivo que nos leva a comer. Podemos refletir também sobre a questão do gosto. Conforme Carneiro (2003),
a alimentação está diretamente ligada ao prazer; às associações que encontramos entre a comida e o sexo nas mais variadas culturas,
pensando somente no vocabulário, confirmam esta relação entre comida, desejo e prazer.

É interessante observarmos que, se o homem em algum momento de sua história precisou lutar para encontrar alimentos, atualmente, ele
enfrenta a balança: ele luta para não comer. A obesidade já é um problema de saúde pública maior que a desnutrição. Se hoje produzimos
tantos alimentos quanto jamais o fizemos, também convivemos, muitas vezes, com o desperdício e o consumo pletórico de alimentos, a fome
e a desnutrição.

Toda a arte da Gastronomia é desenvolvida a partir do prazer e do desejo. Por outro lado, a alimentação está ligada de outras formas à
dimensão psicológica dos homens. Muitas vezes comemos, por exemplo, por estarmos ansiosos ou tristes.

Quem nunca “assaltou” a geladeira exageradamente depois de um mau dia? Esta conexão entre alimentação e a psicologia humana também
pode ser percebida nos transtornos do comportamento alimentar, tais como a anorexia, a bulimia e a alimentação compulsiva.

Ainda temos outros motivos para comer.

Se não vemos algum amigo há muito tempo, o que fazemos?

Se queremos comemorar, festejar, o que fazemos?


Fonte: Drazen Zigic/Shutterstock

Partilhamos a mesa com outros comensais em refeições que podem ser mais ou menos festivas, a dita comensalidade, ou o ato de
comermos juntos. Na Antropologia da Alimentação, falamos em função social da refeição.

Se pensamos no que comemos, alguns podem responder: comida!

Mas será que todos consideram aquilo que é potencialmente ingerível como comida?

Um bife suculento é um horror para um hinduísta e para um budista, já que, para os hinduístas, a vaca é um animal sagrado e para os
budistas não devemos comer nenhum animal. Um punhado de larvas fritas pode parecer repugnante para alguns, mas é uma iguaria para
orientais, muitos indígenas brasileiros, peruanos e mexicanos, entre outros. Os insetos são muito apreciados por alguns, inclusive aqui no
Brasil, com as farofas de tronco da formiga saúva tanajura, também conhecida como içá, mas são considerados nojentos para outros. Os
americanos nunca se decidiram a comer os fofinhos coelhos, enquanto os franceses adoram esses animais e ainda comem carne de cavalo
crua no Steak Tartare, assim como em alguns lugares da Itália, onde não se dispensa um bom ragout de cavalo. Todos estes exemplos
demonstram que aquilo que é considerado comida varia enormemente de acordo com o grupo dos indivíduos.

 ATENÇÃO

Os indivíduos se distinguem através daquilo que comem. Nós nos diferenciamos de outros povos neste quesito; em sociedades divididas em
classes como a nossa, as diferenças entre estas classes são criadas e mantidas através do que se come, de como se come. A alimentação
funciona a favor deste mecanismo de distinção, deste modo de distinguir pessoas de classes sociais distintas. Resumindo: o que comemos
depende de muitos fatores.

Em relação à última questão, como comemos e como preparamos os alimentos?

Comemos todos do mesmo jeito?

Evidentemente, não. Comemos certas coisas com garfos, facas ou colheres e outras com as mãos. Comemos sentados em uma mesa com
amigos ou familiares em nossa casa, ou em um restaurante, mas também comemos solitários andando pela rua ou de frente para a TV ou
para o computador. Muitos orientais usam o hachi para comer e, em alguns lugares da África, todos comem com a mão no mesmo prato. Em
algumas sociedades, come-se no chão; em outras, homens, mulheres e crianças não comem juntos, nem ao mesmo tempo. Já em alguns
momentos e situações na Antiguidade, comia-se recostado.

Come-se também de forma diferente nos diferentes estratos sociais. Podemos ter uma mesa simples onde todos comem com colheres
somente, ou com a mão e uma outra com inúmeros talheres, pratos e copos de todo os tipos somente para uma refeição. Toda esta parte
relacionada à alimentação na Antropologia da Alimentação é chamada de modos à mesa, que variam enormemente entre os povos e
sociedades.

Fonte: Santhosh Varghese/Shutterstock


 Menina indiana comendo com a mão.

Podemos ver então que a alimentação é um ótimo caminho para pensarmos sobre o ser humano, uma vez que ela engloba dimensões
fisiológicas, psicológicas, socioculturais e econômicas.

Por este motivo, é que falamos em Antropologia da Alimentação. A nutrição refere-se aos aspectos fisiológicos da alimentação, mas a
alimentação vai além destes aspectos. Os fenômenos ligados à alimentação vão além dos nutrientes, mesmo que sempre seja estabelecido
um diálogo entre as dimensões culturais e a nutrição. E a História da Alimentação? Não é necessário falar tão longamente sobre a disciplina
de história, pois você já a conhece bem, desde os seus primeiros anos de estudo. Por que estudar tudo isso?
 RESPOSTA

Quando você estiver diante de seu paciente, ou quando você for planejar o menu semanal de uma escola, empresa ou hospital, você não
estará diante de um aparelho digestivo, e sim diante de uma pessoa que possui uma história de vida, além do seu histórico médico, que
possui crenças e valores acerca dos alimentos e da sua saúde, ou seja, uma pessoa que é um universo único.

Para que você seja eficiente como um profissional da área da saúde, você deve compreender que quem está no centro deste processo é o
seu paciente ou seu público-alvo. As ações devem se adaptar aos pacientes para que haja uma efetiva mudança de comportamento no
sentido da promoção da saúde. A postura do nutricionista deve ser sempre de orientar, respeitando as particularidades culturais e pessoais
dos indivíduos. O olhar sobre as diferenças deve ser generoso e ético.

Por exemplo, uma paciente vegetariana foi a um nutricionista procurando auxílio na fase de transição, porém a nutricionista a desaconselhou
a se tornar vegetariana. Ela foi embora bem chateada e procurou um outro profissional. Cabe a um nutricionista aconselhar seu paciente a
não seguir uma determinada filosofia alimentar pela qual ele já havia decidido? De modo algum! Nesse caso, ele também deveria aconselhar
sobre qual religião ou namorado a pessoa deveria escolher. O paciente vegetariano pode ser um desafio para o nutricionista, mas cabe a ele
orientá-lo dentro da sua escolha de maneira ética e comprometida.

O REAL, O SIMBÓLICO E O IMAGINÁRIO NA PSICANÁLISE DE


LACAN
Quando falamos em real, simbólico e imaginário da alimentação, estamos na realidade fazendo referência a uma classificação que é oriunda
da psicanálise de Lacan. Vamos explorar de forma bem suscinta e simplificada o significado destes termos no pensamento do ilustre doutor.
Grosso modo, de acordo com Macarini (s.d.), que trata o assunto de modo compreensível, o real seria aquilo que descrevemos com palavras,
aquilo que existe antes de nós e que não depende de nós.

O simbólico será resultado da maneira como construímos e como isto vai moldar a forma com que nos relacionamos com os demais.
Interpretamos o mundo, as palavras, os sons, o que vemos, transformando-os em símbolos que lhes atribuem significados. Estes termos são
amplamente discutidos pela filosofia e por outras ciências, como a Antropologia e a História, além da Psicanálise.

O REAL DA ALIMENTAÇÃO
O real da alimentação refere-se a todos os aspectos relacionados à ciência da nutrição, ou seja, qual é a composição nutricional deste
alimento, como é obtido no processo de produção e suas consequências na saúde da população e dos indivíduos. Mas o real também se
refere às características ditas organolépticas do item alimentar ou da preparação, ou seja, tudo aquilo que diz respeito aos nossos sentidos,
aparência, odor, textura e sabor.

Preparação

Quando falo em preparação, refiro-me a um prato preparado, que pode tanto ser uma salada com um coelho à caçadora.


Item alimentar

Já quando falo de item alimentar, pode ser uma fruta, um chocolate ou um legume.
Há quem vá se manifestar e dizer que comida real ou comida de verdade são alimentos in natura ou levemente processados, como os que
são adeptos do Real Food (Real, s.d.), uma tendência alimentar que preza por uma alimentação saudável e pela sustentabilidade ambiental.
Mas, de acordo com o significado que estamos discutindo aqui, uma lata de sardinha ou um pacote de batatas fritas é tão real quanto uma
fruta.

Fonte: Elenadesign/Shutterstock

Vamos dar alguns exemplos sobre o real da alimentação. Uma salada é uma preparação que pode variar nos seus ingredientes, mas a nossa
salada é feita de folhas verdes como alface e rúcula, pepino sem casca e pimentão verde cru e um molho caseiro de iogurte natural comum.
É uma comida com poucas calorias, as verduras e legumes têm algumas proteínas, fibras, sais minerais e vitaminas e poucas calorias. O
iogurte pode ser integral ou desnatado e contém várias vitaminas e nutrientes. Outro exemplo é o de algumas sardinhas de uma lata em
molho de tomate. A sardinha não é muito calórica e possui vários nutrientes entre vitaminas e minerais.
O SIMBÓLICO DA ALIMENTAÇÃO

A ALIMENTAÇÃO E OS SEUS ASPECTOS SIMBÓLICOS: A


EXPERIÊNCIA DE UMA HISTORIADORA ESPECIALISTA NA ÁREA
DE ALIMENTOS
Segundo Lenclud (1992), o simbólico é uma característica de todas as culturas, que é atribuir significado ao mundo. Já o simbólico da
alimentação refere-se justamente a todos os significados que atribuímos aos alimentos. É importante sinalizar que esses significados variam
de cultura para cultura.

Vamos aos nossos exemplos anteriores. Para alguém que quer ficar em forma e que vive em um grande centro urbano, dependo da pessoa,
vai pensar que a salada é um ótimo alimento, pois é leve e saudável e não engorda. Além disso, faz bem para o intestino, pois o iogurte
contém probióticos. Neste caso, ela já atribui vários significados a esta preparação. Vimos que o significado real fica no registro da ciência da
Nutrição. Por outro lado, o pepino, ainda mais sem casca, assim como o pimentão verde cru, dependendo da sensibilidade da pessoa, não
são leves e podem dificultar a digestão e provocar azia. E somente alguns iogurtes contém probióticos, pois possuem os organismos que
sobrevivem aos ácidos do estômago e chegam vivos aos intestinos. A maioria não tem essa caraterística.

Outros já dispensariam a salada. Em algumas ocasiões, nos churrascos, podemos ver pessoas questionando o fato de que se tem tanta
carne disponível, por que alguém comeria uma salada em uma situação destas?

 RESPOSTA
Nesse caso, o significado atribuído à salada é que ela é algo menos importante que a carne. E, efetivamente, alguns trabalhadores do
campo, ou mesmo pessoas nos centros urbanos, consideram as saladas como uma comida que não tem sustância e não dá força para o
trabalho (ZALUAR apud ALVES; BOOG, 2008) e são desvalorizadas (ALVES; BOOG, 2008).

Portanto, observamos diferentes valores simbólicos que foram dados a uma mesma preparação. E quanto às sardinhas em lata? Elas tanto
podem significar um alimento saudável como também podem ser descartadas por ser um produto enlatado, não considerado um alimentado
natural ou de verdade.

Você pode observar então que os valores simbólicos que conferimos aos alimentos são culturalmente determinados e um alimento pode nem
significar comida, ou seja, não fazer parte da categoria comida, como comentamos acima.

Aqui, é preciso sua atenção para uma diferença estabelecida pelo antropólogo Roberto DaMatta (1986) entre alimento e comida.

Alimento

É toda e qualquer coisa que pode ser ingerida pelos seres humanos.


Comida

É aquilo que comemos dentro de casa, a comida de mãe, comida caseira, que comemos na rua, mas é como se fosse a comida de casa.
Com a comida, temos proximidade.

O alimento está na prateleira do supermercado; a comida está no prato, quentinha, gostosa, aconchegante. Em uma viagem, se ficamos
comendo só lanches, depois de algum tempo, nos dá vontade de comer uma “comida de verdade”. Isso porque a comida é aquele prato que
comemos sentados, que está quente, que nos é familiar.
O IMAGINÁRIO DA ALIMENTAÇÃO
Vamos agora refletir sobre o imaginário na alimentação. Para Baczko (apud ESPIG 2003/2004), o imaginário refere-se a ideias e imagens
que são coletivamente construídas.

Quando pensamos em termos de alimentação, o imaginário comporta construções simbólicas sobre os alimentos que são amplamente
difundidas entre os membros de uma população ou entre os membros de um grupo específico. O que isto significa? Significa que, em grupos
ou populações, os significados que fazem parte do imaginário são comuns e frequentes.

A partir de Perez (1996), falemos de alguns exemplos relativos a um grupo indígena amazônico que pertence ao tronco linguístico Tupi, os
quais são conhecidos como Cinta-Larga. Esses índios eram originariamente guerreiros e antropófagos, como costumam ser os Tupi.

 VOCÊ SABIA

O nome Cinta-Larga refere-se a uma armadura feita com a casca de uma árvore que os homens usavam nas guerras para proteger seus
órgãos vitais de flechadas dos inimigos.
A pesquisa em questão trata do tema da Antropologia da Saúde e da Doença, ou seja, como estes indivíduos enxergam, do ponto de vista
tradicional, a doença, o mal, o infortúnio, como eles diagnosticam as enfermidades e como as curam. Neste trabalho, também pretendia-se
compreender como os profissionais não índios da área da saúde que trabalhavam com saúde indígena viam os hábitos e costumes dos
Cinta-Larga. Pois bem, esses colaboradores tinham um imaginário preconceituoso em relação aos hábitos alimentares e de higiene
tradicionais deste povo. Eles acreditavam que a comida dos indígenas era estranha e preparada sem nenhuma limpeza. Também pensavam
que eles eram sujos, que não cuidavam nem limpava bem suas crianças etc.

Fonte: ESB Professional/Shutterstock

Para estes agentes, o problema da saúde indígena era a falta de higiene e seus hábitos bizarros. Enquanto o que ocorre efetivamente é que
a saúde desta população se deteriorou, sobretudo por conta das doenças trazidas pelos não índios e pelos hábitos que eles adquiririam com
o contato: consumo de açúcar e carboidratos simples, como o arroz. Você pode observar desta forma que o imaginário das populações que
estão próximas a estes indígenas é extremamente preconceituoso.

 ATENÇÃO
Os indígenas também têm um imaginário específico em relação aos não índios e seus hábitos. No que concerne à alimentação, antes mesmo
do contato, os agentes da Funai jogavam dos aviões sacos de arroz, farinha e açúcar para os Cinta-Larga. Esta era uma prática comum na
época.

No início do contato e até antes mesmo de ocorrer, houve grande mortalidade desta população devido à rubéola, uma doença que, para os
não índios, é praticamente incipiente. Os relatos assemelham-se ao Apocalipse, pois eram aldeias inteiras mortas pela doença e crianças
chorando no colo de suas mães mortas deitadas na rede. Aos que sobreviviam, cabia enterrar a enorme quantidade de mortos.


SAIBA MAIS

Sabemos que estes povos isolados não possuem anticorpos para uma séria de doenças comuns entre os não índios. Este é um dos motivos
que a política da Funai em relação aos índios isolados era de não entrar em contato com eles.

Difundiu-se entre os Cinta-Larga a ideia de que os sacos de comida que lhes eram lançados pelos aviões da Funai estavam com comida
envenenada, que tinha como objetivo espalhar a doença entre os índios. Esta teria sido a causa da grande mortandade. Isso vai ao encontro
de um imaginário entre os indígenas de que os “brancos” só querem destruí-los e se apossar de suas terras. Infelizmente, isto não está longe
da realidade, mas, no caso, não era absolutamente a intenção da Funai.

Ao mesmo tempo em que os não índios os enxergam como sujos, os Cinta-Larga também têm um imaginário de sujeira e coisas nojentas
que estão relacionadas às práticas sexuais dos “brancos”. Por exemplo, beijo de língua e sexo oral são considerados atos nojentos e
incompreensíveis.

Para que você possa ver como este assunto é importante para eles, temos um mito destes indígenas que remete ao porquê de os “brancos”
terem metal, armas de fogo e avião, e os índios terem arco e flecha, canoa e machados de pedra. Na origem de todos os povos, um deus
perguntou aos homens qual deles estaria disposto a fazer sexo oral nele. Os que aceitaram tornaram-se os brancos e ganharam presentes
como armas e avião. E os indígenas que se recusaram ganharam arcos, flechas e canoas. Este mito demonstra a aversão a estes hábitos e
como são constitutivos do que significa ser “branco”.

Um exemplo mais próximo é em relação aos hábitos higiênicos de franceses e brasileiros. O imaginário sobre limpeza é bastante diferente
entre estes povos. Enquanto no Brasil o pão é colocado em um saco de papel, lá os franceses levam sua baguette debaixo do braço, algo
que, para nós, entende-se que vai sujar o pão e contaminá-lo com a sujeira do corpo.

Fonte: Stockfour/Shutterstock
 Franceses têm o costume de colocar o pão

embaixo do braço e pegá-los com as mãos.

A quantidade de banhos que tomamos também é vista como um exagero, pois eles afirmam que esse hábito destrói a camada de gordura
necessária à saúde da pele. Existem os pressupostos científicos de higiene e contaminação, mas a limpeza e a sujeira são, antes de tudo,
imaginários culturalmente construídos. Os franceses não deixam de ter um pouco de razão em relação à pele. Os pediatras brasileiros
insistem com as mães de recém-nascidos que o banho com sabão só deve ser dado uma vez ao dia. Caso contrário, a mãe poderia
prejudicar a saúde da pele do bebê por excesso de lavagens.

No artigo de Espig (2004), o que a autora nos traz é que a oposição entre real e imaginário é questionável. A ideia é que, mesmo o que
chamamos de real, é de certa maneira construído pelo imaginário. As fronteiras entre estes não são rígidas, e sim flexíveis. O real da
alimentação é como ela se baseia também na ciência da nutrição, em que a ciência também é uma construção.

Os carboidratos e as calorias são construções abstratas a partir de dados e observações. Não se está dizendo que eles não existem, nem
invalidando a ciência, mas, sim, que eles somente existem na cabeça de homens que inventaram uma ciência. Além disso, as verdades
científicas são provisórias, e não definitivas. Você pode ver isso claramente na ciência da Nutrição, onde os itens alimentares passam de
vilões a heróis e vice-versa constantemente.

O REAL: O CORPO-MÁQUINA
Antes de falarmos sobre a forma como o corpo e a doença têm sido caracterizados pela medicina na contemporaneidade, vamos
compreender uma oposição clássica da Antropologia, aquela entre natureza e cultura. Isto porque o corpo e as doenças são vistos por essa
medicina como algo que faz parte da natureza. E o que se está defendendo aqui é que ele é também uma construção cultural.

Sobre esta oposição, os antropólogos preocuparam-se primeiramente com tentar compreender em que momento o homem teria deixado de
ser um ser natural e teria “inventado” a cultura. Para Lévi-Straus (2002), um renomado antropólogo francês, o homem teria se separado do
mundo natural quando ele inventou uma regra que é exclusivamente humana. E que regra seria essa? Pois bem, Lévi-Strauss diz que é a
proibição do incesto.

Todos vocês que têm algum animal de estimação sabem muito bem que este tipo de proibição não existe entre eles. Para ser um parceiro
sexual, a única coisa necessária é que o indivíduo tenha maturidade sexual e que, no geral, a fêmea esteja disponível. O que você pode ver
neste caso é que, em um domínio extremamente natural, que é aquele da sexualidade, o homem diz que existem regras. Quais parentes são
considerados incestuosos? Isto varia de sociedade para sociedade, mas na esmagadora maioria das vezes, pais, irmãos e filhos são vetados
à relação sexual. E outros membros da família podem entrar nessa proibição também.

Mas por que com a proibição do incesto o homem “inventa” a cultura?

 RESPOSTA

Porque ele diz que as relações incestuosas são erradas, são sujas, levam ao caos e, eventualmente, à morte. A partir daí, inventa-se um
juízo de valor sobre os mais variados eventos. Ao contrário dos animais, os homens criam um ordenamento onde existem coisas que são
certas e erradas, puras e impuras, sujas e limpas, justas e injustas etc. Estes valores são uma invenção exclusivamente humana. Os animais,
até onde se sabe, não têm esta visão da existência.

Podemos dizer que o tubarão é mau porque comeu o peixe ou que o coelho é bonzinho porque só come plantas, mas esses animais não se
julgam bons nem maus, nem certos ou errados. Eles seguem os seus instintos.

Entre algumas sociedades tradicionais (povos nativos que mantiveram formas tradicionais de organização social, de produção e de
exploração da natureza), o consumo de carne crua também é proibido, podendo levar à loucura, como afirmam os Cinta-Larga (PEREZ,
1996). Nesta circunstância, também é questão de natureza e cultura. A carne da caça deve ser passada pelo filtro da cultura e ser
transformada em comida através do cozimento. O consumo de carne crua é característico dos animais.

E o corpo humano, ele faz parte da natureza ou da cultura?

 RESPOSTA
De ambos, pois ele também é culturalmente construído. Você deve estar se perguntando, como assim? Nosso corpo passa por um processo
de desenvolvimento que é natural, mas também é fabricado pela cultura.

Aqui no Brasil, por exemplo, recentemente, foi proibido que as orelhas das meninas fossem furadas na maternidade, mas, em muitos casos,
elas o são logo depois. As mulheres usam salto alto, os homens, terno. Isto também vai no sentido de fabricar um corpo feminino e
masculino. A busca pelo corpo magro é uma forma cultural pela qual ele é manipulado baseado em certos padrões, que também são
construções socioculturais.

A forma com que nos higienizamos, aquilo com o que o alimentamos, tudo isso constrói o corpo. As dietas, as cirurgias plásticas, as
tatuagens, os brincos, colares, pulseiras, anéis, igualmente. Vemos uma foto de uma mulher-girafa, um exemplo muito pertinente de como a
cultura molda o corpo.

Fonte: D-VISIONS/Shutterstock
 As chamadas mulheres-girafas da etnia Karen e da tribo Kayan usam anéis de bronze no pescoço. As argolas são parte da identidade
cultural da tribo e são associadas à beleza das mulheres.

Agora que vimos como o corpo é culturalmente construído, vamos continuar pensando no jeito como ele é visto e construído pela medicina
contemporânea, e qual o papel da Nutrição neste processo.

Já mencionamos que a ciência também é uma construção. Ela vem também se transformando com o decorrer do tempo e é importante
enfatizar que não é produzida “do nada”, a partir de uma realidade natural que observa e descreve fielmente. Não existe percepção do mundo
natural que não seja influenciada pela maneira como se dá uma sociedade e uma cultura determinada (QUEIROZ, 1986). Portanto, a ciência
também atende a interesses diversos e não é tão neutra assim como você pode supor.

 ATENÇÃO

Com o surgimento da ciência moderna no século XVII, formulou-se um modelo mecânico para a realidade. Este modelo tem a influência da
vários pensadores, como Descartes, que formulou uma separação entre o corpo e a mente, e Galileu e Newton, este último tendo elaborado
uma visão mecanicista do Universo. Como consequência disto, as ciências biomédicas, muito influenciadas por essas concepções científicas,
adotam com toda força a visão do corpo-máquina (KRAEMER et al., 2014).

Este modelo mecanicista que considera somente aquilo que pode ser medido objetivamente desconsidera as dimensões simbólicas,
psicológicas, sociais, que são decisivas não somente na construção do corpo, como vimos acima, mas também na compreensão de como
este corpo adoece e se cura.

A medicina científica desenvolveu-se muito depois da Segunda Guerra, sobretudo do ponto de vista tecnológico. Se, por um lado, pensava-se
que a cura de quase todas as doenças seria descoberta, por outro, a intervenção nos corpos os tornava mais aptos para a produção
(QUEIROZ, 1986).
 COMENTÁRIO

Conforme Morais (2011), entende-se que estes princípios mecanicistas e este grande desenvolvimento tecnológico, ao invés de promover a
satisfação da população como um todo, pelo contrário, geraram uma crise na medicina moderna. Isto já era apontado por Queiroz, em 1986,
e continua sendo um objeto de reflexão até hoje.

As queixas vão no sentido do alto custo dos tratamentos, o atendimento frio dos médicos, do fato de se dedicarem muito mais tempo à
saúde, e os males antigos não apenas continuarem, como ainda serem somados a outros novos. Há uma elitização da saúde e um
distanciamento cada vez maior entre pacientes e terapeutas (ibid.).

E no caso da Nutrição?

A Nutrição, como uma ciência biomédica, repete este modelo mecanicista. Para Kraemer et al. (2014), quando se constituiu, a Nutrição teve
necessidade de se colocar junto aos saberes biomédicos para poder se legitimar. Consequentemente, isto a levou a uma maneira de
enxergar os alimentos de forma descontextualizada de imaginário social e de seus vários significados socioculturais.

Fonte: RYGER/Shutterstock

Para promover uma alimentação saudável, a ciência da Nutrição dita o que se deve comer, as quantidades e quando os itens alimentares
devem ser ingeridos. Não levando em consideração os aspectos descritos anteriormente, tampouco as conjunturas políticas e econômicas
nas quais se desenvolvem os comedores e a indústria alimentar, a ciência reduz seu alcance explicativo (ibid.).

Somente os corpos jovens e magros são considerados saudáveis. Para manter estes atributos, a alimentação deve ser controlada, as
calorias devem ser contadas e os indivíduos se tornam responsáveis pela sua própria saúde ou pela falta dela. Se você está acima do peso,
ou obeso, é porque você não se cuidou o suficiente (ibid.), porque você é fraco, sem força de vontade. Esta forma de ver as coisas, que é
comum entre os nutricionistas, não leva em conta elementos sociais, psicológicos entre outros.

SAIBA MAIS

Este modelo mecanicista acaba por se difundir em toda a população que tem acesso a alguma informação nutricional. Barbosa (2007) fez
uma ótima enquete sobre alimentação no Brasil do ponto de vista dos comedores e que se dá em um contexto urbano. Ele constatou que, em
todos os extratos sociais, os indivíduos sabem dizer exatamente os alimentos vistos como saudáveis e aqueles que são prejudiciais à saúde.

Evidentemente que a ciência da Nutrição tem demonstrado a estreita relação entre doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) e a
alimentação. A busca pela saúde deve intervir sobre todo o nosso comportamento alimentar como se existisse um único modelo que é válido
para todos as situações, como uma verdade absoluta e inquestionável (ibid.). Conforme Azevedo (2017), questiona-se a visão da comida
considerando somente seus aspectos bioquímicos que determina uma dieta específica para uma pessoa, desdenhando os aspectos culturais
e sociais.

A comida e o comer têm múltiplos significados em todas as sociedades, é exatamente disto que trata este tema. E o que se pretende aqui é
que você seja um profissional que vá além dos nutrientes, além do modelo mecanicista e além do corpo-máquina, de forma a enxergar seu
paciente ou seu público-alvo como uma totalidade, e não como um aparelho digestivo ambulante.

Existem outras formas de comer que, mesmo do ponto de nutricional, podem nos surpreender. Ribeiro (1995) afirma que a dieta dos
indígenas amazônicos corresponde a, aproximadamente, 80 a 85% de mandioca, seja na forma de cerveja, na variedade “doce”, seja na
forma de farinha e seus derivados, na variedade “brava”. Os 15% a 20% restantes equivalem ao consumo de proteína animal e a todos os
outros produtos da agricultura e da coleta.

Fonte: SL-Photography/Shutterstock
 Indígena Kichwa preparando a tradicional bebida chicha, feita de mandioca, típica da Bacia da Floresta Amazônica, no Parque Nacional
Yasuni (Equador).

Por outro lado, até as dietas e o peso ideal têm caráter ideológico. Belasco (2009 apud CULTURA, 2015) nos diz que o modelo nutricional
ocidental que se tornou padrão considera a carne um alimento fundamental. Sendo que, dentro desta visão, os hindus e os chineses não se
alimentariam de forma adequada. O Índice de Massa Corporal é bastante útil, mas ele tem como base o padrão da sociedade americana. Até
que ponto isto é válido para todos (KRAEMER et al. 2014)?

Uma dieta pobre em frutas, legumes e verduras (FLV) é o contrário do que determina a Organização Mundial da Saúde e os nutricionistas.
Todavia, no geral, os indígenas amazônicos têm uma saúde muito boa, ficando doentes justamente quando mudam seus hábitos e regimes
alimentares em decorrência do contato com não índios.
Coimbra (1985), analisando quimicamente a cerveja feita de mandioca doce, atestou que devido à fermentação que é provocada pela saliva
das mulheres, esta preparação contém açúcares mais complexos que aqueles presentes na mandioca in natura.

 ATENÇÃO

Refletimos nesta seção sobre o aspecto real visto acima a partir da construção do corpo e da saúde no modelo mecanicista e como isto
também influencia a ciência da Nutrição. O que vimos é que este corpo não é uma máquina onde a doença é um defeito. Este corpo, com
seu estado de saúde ou doença, é construído no centro das relações sociais e do imaginário simbólico que envolve as práticas alimentares e
as diferentes maneiras de adoecer e curar.

O SIMBÓLICO: OS MÚLTIPLOS SIGNIFICADOS DOS ALIMENTOS


Já foi comentado acima sobre alguns dos significados simbólicos dos alimentos.

OS ALIMENTOS NÃO SÃO APENAS COMIDOS, MAS TAMBÉM PENSADOS. EM


OUTRAS PALAVRAS, A COMIDA POSSUI UM SIGNIFICADO SIMBÓLICO – ELA
FALA DE ALGO MAIS QUE NUTRIENTES (GRIFO DO AUTOR).

(WOORTMANN, 2006).

Fonte: LoulouVonGlup/Shutterstock

Vamos pensar em alguns itens que são passíveis de serem ingeridos, qual é a diferença existente, do ponto de vista nutricional, entre um bife
de carne de boi, um bife de carne de cachorro, um bife de carne de cavalo e um bife de carne humana?

Só de falar nisto, talvez você já esteja sentido náuseas, mas a resposta à pergunta é: nenhuma. Talvez alguma diferença no percentual de
gordura, ou de fibras. Mas todas elas irão nutri-lo quase da mesma maneira.

Então, por que nós humanos desprezamos todas estas carnes que poderiam resolver uma porta do problema da fome no mundo?
Pensando assim, não seria necessário tanto gado e tudo aquilo que eles precisam para viver: terra, água etc. Seria ótimo, não? O consumo
de carne humana é um tabu enorme, sem falar no fato de que os cadáveres devem ser respeitados. Já os cães são como pessoas da família,
impossível, para nós, pensarmos em comê-los. E os cavalos, que são comidos em vários lugares, para nós são como nossos empregados,
que têm um nome, uma função; eles também não podem se transformar em comida.

No entanto, não temos problema algum em comer carne de vaca, de porco, eventualmente, de carneiro, de coelho ou avestruz. Porém, em
alguns casos, essas carnes são consideradas sagradas, sujas, ou impuras por questões relacionadas a aspectos religiosos, ou não.

Uma anedota conta que perguntaram a um biólogo o que ele diria sobre Deus segundo suas observações da vida na Terra. Ele respondeu
que Deus, certamente, tinha um grande amor por insetos, sobretudo por besouros. Isto porque eles representam o maior número de espécies
e de indivíduos em todo Reino Animal. Surpreendente, não? Mas, por que falar de insetos? A entomofagia, ou seja, o consumo de insetos, é
um assunto apaixonante. Afinal, os insetos são muito numerosos, como nos esclareceu o biólogo, extremamente fáceis de serem capturados,
muito nutritivos e, segundo aqueles que os comem, muito saborosos.

Por que, nesse caso, nós dispensamos toda uma quantidade de proteínas que tão generosamente a natureza nos oferece?

 RESPOSTA

Precisamente, por conta do significado que atribuímos a esses potenciais alimentos. Mesmo se aqui no Brasil comemos farofa de içá, como
foi dito anteriormente; se no Norte do país tem-se o costume de comer formigas aladas, e se restaurantes famosos e estrelados servem
insetos em pratos gourmets em São Paulo, na maior parte das vezes, os insetos são considerados repugnantes.

ESTRELADOS
Um restaurante estrelado é aquele que recebeu Estrelas do Guide Michelin, um Guia Turístico e Gastronômico muito famoso na França
e no mundo.

Fonte: CK Bangkok Photography/Shutterstock


 Inseto frito comestível. Iguaria popular na Tailândia.

Como vimos acima, aquilo que é considerado comida para uns não é para outros. Cada cultura determinará as diferentes possibilidades que
lhe são ofertadas. A categoria comida é culturalmente construída:
SE O HOMEM NÃO COME TUDO QUE É BIOLOGICAMENTE INGERÍVEL, É
PORQUE NEM TUDO QUE É BIOLOGICAMENTE COMESTÍVEL É
CULTURALMENTE COMESTÍVEL.

(FISCHLER apud COELHO, 2015)

Como salienta Flandrin (1998), desde a pré-história, os homens têm acesso aos mais variados itens alimentares nos lugares por onde
passam, mas nem tudo o que estes ambientes lhes oferecem é escolhido para fazer parte da categoria comida. Essas escolhas são feitas de
acordo com regras impossíveis de serem decifradas na maioria das vezes. Você pode perceber que essas escolhas não são baseadas em
critérios pragmáticos nem racionais. Caso contrário, todos comeríamos insetos, pois eles existem em quase todos os lugares do mundo.


SAIBA MAIS

Na Europa, o ambiente oferece os mesmos recursos, mas somente os franceses comem caramujo, os famosos escargots, e rãs. Temos
tartarugas também em muitos locais, mas a sopa feita dela é uma especialidade inglesa (Id.). Poderíamos multiplicar os exemplos, mas já
ficou claro que não é o ambiente que determina as escolhas alimentares, mesmo se é partir dele que elas são feitas.

É evidente que um esquimó não pode ser vegetariano, pois morreria de fome, mas, mesmo em uma região com recursos tão limitados, os
homens fazem escolhas culturais diferentes. Laraia (2007) fala sobre os esquimós que constroem suas casas de gelo e usam trenós puxados
por cães e os lapões, que vivem no mesmo ambiente, são pastores de rena, constroem suas casas com a pele delas e se locomoviam
tradicionalmente com raquetes de neve.

Fonte: Piotr Piatrouski/Shutterstock

Outro ponto interessante sobre o significado dos alimentos é o simbolismo associado à carne. Carneiro (2003) comenta que a Europa sempre
valorizou a alimentação carnívora. Desde a Antiguidade Grega, a caça e o consumo de carne são considerados importantes para preparar os
homens para a guerra, tornando-os mais ferozes e cruéis. Sem falar no fato de que a propriedade de rebanhos confere prestígio e riqueza.

Fonte: Mehmet Cetin/Shutterstock

Os países ocidentais valorizam muito o consumo de carne. Aqui no Brasil, o churrasco é uma verdadeira instituição, sendo muito comum na
Região Sul, mas também no Sudeste e no Centro-Oeste, onde, no geral, o único acompanhamento da carne é a mandioca cozida. Flandrin
(1998) nos ensina que nas refeições festivas de todos os tempos sempre foi necessária a presença da carne fresca; e, é claro, das bebidas
fermentadas.

Se falamos em consumo de carne, não podemos deixar de lado a antropofagia. De acordo com Bueno (2012), este costume de muitos
povos indígenas brasileiros foi o que mais espantou os europeus. Alguns rituais antropofágicos entre os Tupinambá foram descritos com
precisão por alguns cronistas, sobretudo por Hans Staden (1998), que foi capturado por estes indígenas e viveu entre eles por alguns anos.
ANTROPOFAGIA

É a prática na qual um ser humano se alimenta de partes de outro ser humano.


SAIBA MAIS

A este propósito, veja o filme Hans Staden (Brasil/Portugal, 1999. Direção Luiz Albert Pereira).

Mesmo se os homens já comeram carne humana para matar a fome, em momento de penúria extrema ou na pré-história, o canibalismo do
qual se tem notícia tem sempre um significado ritual. Pode-se consumir os inimigos para se vingar deles, para recuperar sua força ou para
aniquilá-la, mas, no caso, também pode ser uma obrigação consumir a carne de seus parentes mortos para desumanizá-los, uma vez que
são comidos como presas e para que sua substância fique entre os membros da família.

 ATENÇÃO

Para fecharmos esta seção, vamos falar sobre uma outra dimensão simbólica da comida: o fato de que ela constitui uma linguagem. Quando
convidamos alguém para comer em nossa casa, a comida que vamos servir vai falar sobre nós, vai expressar nosso cuidado, nosso carinho,
nossa consideração.
Os diferentes tipos de ingredientes são as letras e as preparações das palavras. Com uma letra, você pode fazer inúmeras palavras se
combiná-las com outras letras, assim como, podemos fazer um monte de receitas diferentes misturando os ingredientes-letras. E a fase é a
refeição, onde tudo deve ser combinado de uma forma específica para ter sentido (MONTANARI, 2008).

É claro que a forma como a frase-refeição é construída depende da cultura, da disponibilidade econômica do responsável, da ocasião.

BRASIL

Cotidianamente, não costumamos comer entrada, colocando a salada no prato principal. No final da refeição, sobremesa e café. Esta ordem
é imutável.

EUA

Nas cafeterias, toma-se café durante toda a refeição. Este café é bem fraco para os nossos padrões: é o famoso “chafé”, de tão aguado.

FRANÇA

Os franceses comem salada verde e queijo no final das refeições, e só depois vem a sobremesa e o café. Eles consideram que a salada
limpa o paladar.

A frase é diferente e pode até se tornar um texto em uma refeição festiva, como um banquete de casamento. E mesmo a gramática da
refeição é diferente nos dias da semana e no fim de semana. Através das palavras, damos sentido ao mundo, criamos categorias, e a comida
faz a mesma coisa. Ela fala de nós, dos nossos hábitos, valores, crenças, origem, classe social. A comida fala!

O IMAGINÁRIO: AS ANGÚSTIAS DO COMEDOR MODERNO


Como diz Ferrières (2002), além do medo de que falte comida, existe o medo de comer uma comida que esteja contaminada ou apodrecida e
possa afetar negativamente a saúde. A autora traz no livro A História dos medos alimentares um histórico desde a Idade Média das angústias
relativas àquilo que vamos incorporar ao nosso corpo. Por conta disto, no Ocidente, desenvolveu-se pouco a pouco um controle sanitário
sobre o processo de produção dos alimentos.

Fischler (1990) afirma que o ato de comer é muito íntimo e mesmo se for fonte de prazer, ele também traz medo e ansiedade no tocante à
ingestão dos mais variados itens.

 ATENÇÃO

Na realidade, a ciência e todos os processos controlados da produção de alimentos nas granjas e fazendas, nos abatedouros e nas
plantações, nas indústrias e na distribuição geraram uma sensação de segurança no consumidor.

No entanto, essa confiança foi quebrada com a Doença da Vaca Louca (Encefalopatia Espongiforme Bovina), que surge na Inglaterra por
volta de 1985 (POULAIN apud DÓRIA, 2015). Esta doença ataca o Sistema Nervoso Central e mata os animais. A origem da doença se deu
por conta dos restos de carcaças de mamíferos que entravam na composição da ração que era dada aos animais, submetendo os herbívoros
a uma espécie de canibalismo.
Na França, essa suspeita recaiu sobre todos os tipos de carnes bovinas e seus derivados. Para conter a doença, milhares de animais foram
sacrificados. Temia-se que a doença fosse transmitida aos humanos e a outros animais. A utopia da segurança em relação ao que comemos
foi abalada e gerou ansiedade e medo em relação à qualidade dos alimentos (id.).

Por outro lado, por conta da globalização que permite uma circulação sem precedentes de mercadorias e pessoas, os fatores de risco se
multiplicam, como declara Proença (2010). Os riscos são de contaminação por microrganismos, problemas na manipulação e na conservação
dos alimentos, introdução acidental ou voluntária de substâncias tóxicas, excesso de agrotóxicos etc.

Fonte: Gavin Baker Photography/Shutterstock


 Avião pulverizando plantação com agrotóxicos.

Aqui no Brasil, vimos leite contaminado com formol (ILHA, 2013), suco à base de soja com soda cáustica (VIGILÂNCIA, 2013) e um aumento
no número de agrotóxicos liberados para utilização em 2020 (LEITE, 2020). Isso sem falar nos transgênicos que são uma grande ameaça à
biodiversidade (OLIVEIRA, 2016). Também nos preocupamos com a quantidade de hormônios que os animais consomem e que efeitos isto
pode ter na nossa saúde, e o assombroso consumo de antibióticos pelo gado bovino.

Você viu que existem riscos reais à nossa saúde causados pelos alimentos nas mais variadas fases da produção, mas se somam a estas
outras questões que só aumentam a ansiedade do comedor. Além desses riscos biológicos, questões de ordem ética nos preocupa. Nós nos
preocupamos se a forma como os alimentos que comemos foram obtidos, isto é, se houve agressão ao meio ambiente, ou aos trabalhadores
envolvidos no processo. Nos dizem respeito questões de sustentabilidade ambiental e econômica. Pelo surgimento de uma solidariedade
entre espécies, não queremos que os animais que nos servem de comida sejam tratados com violência ou desprezo.

Por conta disso, surgiram novas ideologias alimentares, como, por exemplo, o Slow Food. Este movimento fundado pelo italiano Carlos
Petrini em 1986, acredita que o homem ao comer afeta seu meio ambiente e social e que é necessário se conscientizar disto e agir em
consequência, para que estes impactos sejam benéficos. Para isso, ao contrário do Fast-Food, é necessário ter prazer ao comer degustando
o alimento com consciência, consumir produtos artesanais, de preferência que sejam fruto do trabalho de produtores locais e que, nesse
processo, se respeite o meio ambiente e os trabalhadores envolvidos na produção (MOVIMENTO, 2007).

Fonte: Tinxi/Shutterstock
 Símbolo do movimento Slow Food.

Não podemos esquecer do medo de engordar, de desenvolver doenças mesmo que os alimentos não estejam contaminados: somente sua
composição já pode nos assustar. Tudo isto levou a uma medicalização da nutrição, como já comentamos acima. Diante disso, um outro
dilema que o comedor enfrenta é aquele da escolha do que comer. A quantidade de opções de itens, de ideologias alimentares, de produtos
light, diet, orgânicos, sem glúten, sem lactose, fat free, disponíveis hoje para o comedor são enormes (VERTHEIN; MEDINA, 2015). Em
busca do corpo perfeito e, sendo agora o responsável pela saúde e pelas decisões sobre o que comer para atingir estes objetivos, o comedor
tem cada vez mais angústias, medos, preocupações e culpas.
VERIFICANDO O APRENDIZADO

1. NA ESPANHA, DESDE SEMPRE, O VINHO É CONSIDERADO UM ALIMENTO NUTRITIVO, TANTO QUE ELE É
DADO ATÉ PARA AS CRIANÇAS NA FORMA DE UM REFRESCO DE VINHO FEITO COM ÁGUA E AÇÚCAR.
VEJA UMA CONVERSA ENTRE ESPANHÓIS:

- MAS ELA ESTÁ SEMPRE DOENTE.

- CLARO, ELA COME POUCO, NÃO TOMA UM COPO DE VINHO, NORMAL QUE SUA SAÚDE SEJA FRACA.

QUAIS DOS ASPECTOS DOS ALIMENTOS ESTUDADOS ACIMA FAZ REFERÊNCIA AO TEXTO?

A) Reais, pois o vinho é considerado nutritivo por conta de polifenóis presentes na bebida que, segundo pesquisas na área comprovam,
protegem a saúde do coração.

B) Imaginário, pois o vinho é considerado nutritivo por este povo, já que nutre o organismo.

C) Simbólicos, pois a Espanha é uma grande produtora de vinho.

D) Psicológicos, pois o vinho altera o estado de consciência, causando embriaguez.

2. LEIA O TEXTO ABAIXO:

“CHINCHULIN, TALVEZ O MAIS INTERESSANTE E MENOS CONHECIDO PRATO DA CULINÁRIA DOS NOSSOS
PRIMITOS DO SUL (“HERMANITOS” É EXAGERO, TENHA DÓ!). SE VOCÊ FOR PROCURAR PELO GOOGLE,
ENCONTRARÁ MUITAS REFERÊNCIAS AO QUITUTE, QUASE TODAS EM ESPANHOL, MAS NENHUMA EM
BOM PORTUGUÊS. CHINCHULIN É O CHURRASCO PREPARADO COM O PRIMEIRO TERÇO DO INTESTINO
DELGADO DE UMA VITELA. E VITELA, PARA QUEM NÃO SABE, É UMA VACA TEEN. (...)
CHINCHULIN –
COPROFAGIA À ARGENTINA.”

(DISPONÍVEL EM MESAPRA1.)

QUAIS OS ASPECTOS SIMBÓLICOS QUE LEVAM OS BRASILEIROS A REJEITAR ESTA PREPARAÇÃO?

A) Os chinchulines são muito apreciados pelos argentinos, pois dentro deles o leite ingerido pelo vitelo é como um creme de queijo.

B) Nós, brasileiros, consideramos intestino uma comida nojenta, independentemente de o recheio ser o início da digestão do leite.

C) No intestino delgado, ocorre a maior parte da digestão e absorção dos nutrientes. Esse órgão divide-se em: duodeno, jejuno e íleo.

D) Uma xícara de cubinhos de chinchulines tem 118 kcal, 16,76 g de proteínas e 587 gramas de sódio.

GABARITO

1. Na Espanha, desde sempre, o vinho é considerado um alimento nutritivo, tanto que ele é dado até para as crianças na forma de
um refresco de vinho feito com água e açúcar. Veja uma conversa entre espanhóis:

- Mas ela está sempre doente.

- Claro, ela come pouco, não toma um copo de vinho, normal que sua saúde seja fraca.

Quais dos aspectos dos alimentos estudados acima faz referência ao texto?

A alternativa "B " está correta.


Os aspectos imaginários da alimentação atribuem significados aos alimentos que são amplamente compartilhados por um grupo cultural.

2. Leia o texto abaixo:

“Chinchulin, talvez o mais interessante e menos conhecido prato da culinária dos nossos primitos do sul (“hermanitos” é exagero,
tenha dó!). Se você for procurar pelo Google, encontrará muitas referências ao quitute, quase todas em espanhol, mas nenhuma em
bom português. Chinchulin é o churrasco preparado com o primeiro terço do intestino delgado de uma vitela. E vitela, para quem
não sabe, é uma vaca teen. (...)
Chinchulin – coprofagia à Argentina.”

(Disponível em Mesapra1.)

Quais os aspectos simbólicos que levam os brasileiros a rejeitar esta preparação?

A alternativa "B " está correta.

Os aspectos simbólicos da alimentação são aqueles que se referem aos significados que os diferentes grupos culturais atribuem aos
alimentos, além dos seus aspectos nutricionais. Aqui no Brasil somos muito céticos em relação a tudo que é produto da digestão.

MÓDULO 2
 Relacionar a identidade cultural e a comensalidade às dimensões simbólicas da alimentação
ALIMENTAÇÃO E IDENTIDADE CULTURAL

A CULTURA E SUA INFLUÊNCIA NA ESCOLHA DOS ALIMENTOS


Diante de tantas mudanças em relação à forma de comer, ao que comer, quando, onde, sozinho ou acompanhado, se estabelecem questões
relativas às identidades culturais individuais e coletivas.

O que é a identidade cultural, como podemos definir este conceito?

Cultura

É algo que está dentro e fora de nós, pois, quando nascemos, já existe uma sociedade, mesmo se ela está em constante transformação.


Identidade cultural

É um sentimento de pertencimento que é construído pelo indivíduo com base nos aspectos culturais de dada sociedade.

Se pensarmos, por exemplo, em um indivíduo que pertence a uma sociedade tradicional, a sua identificação afirma seu pertencimento àquela
etnia, ao seu gênero e à sua posição na família: pai, mãe, filho, todas estas sendo identidades culturais que variam de acordo com a
sociedade. As obrigações e funções de pais e filhos são culturalmente construídas. O gênero também é uma construção cultural, ser mulher
ou homem não significa a mesma coisa para todas as culturas. Mesmo na nossa própria sociedade, a forma como uma mulher e um homem
constroem seus pertencimentos de gênero varia no tempo. Logo, a identidade cultural é algo que se transforma.

Fonte: Kinga/Shutterstock

Como uma mulher se sentia mulher há 50 anos? Através da maternidade, das prendas domésticas e do cuidado com a família, a dita “mulher
de cama e mesa”. E como as mulheres ocidentais se constroem hoje em dia? Através do estudo e da sua carreira profissional. Elas têm
menos filhos, os têm mais tarde, e isso quando os têm, pois a maternidade não é mais necessária para a construção do feminino. Expressões
machistas como “encalhada” e “ficou para titia” não fazem mais nenhum sentido atualmente.

Fonte: Aleksandra Suzi/Shutterstock

E quanto ao homem? Ele deixou de ser o provedor e o chefe de família e, consequentemente, perdeu seu poder sobre o destino de sua
companheira. Hoje, temos inversões dos papéis tradicionais: mulheres que trabalham e sustentam a família, enquanto os seus maridos
cuidam da casa e dos filhos. Essas mudanças identitárias não são fáceis de serem absorvidas e alguns homens e mulheres ainda se
questionam e ficam incômodos com essas novas atribuições.

Nas sociedades contemporâneas, a questão da identidade cultural tem novas dimensões. Já não criamos pertencimentos com os membros
das sociedades tradicionais, em uma sociedade complexa e fragmentada como a nossa, pertencemos aos mais variados grupos cultuais e
temos múltiplas identidades (HALL, 1999).

Por exemplo, pertencemos a uma etnia, temos um gênero, uma religião, uma determinada ideologia política, um hobby, como dança de
salão, pertencemos a um lugar, a uma classe social etc. Criamos uma identificação com cada um destes grupos culturais. A identidade atual,
além de subjetiva e, consequentemente, construída, é também fragmentada, múltipla e, muitas vezes, até contraditória. Quem nunca foi à
missa pela manhã e comungou, depois recebeu um passe em uma sessão de espiritismo à tarde e incorporou um Orixá em um terreiro de
candomblé à noite? As identidades culturais também não são fixas, pois não só mudamos nossos pertencimentos, como também alegamos
diferentes identidades em diferentes situações. Em alguns casos, é possível enfatizar mais o gênero, mais a classe social ou o pertencimento
étnico. Em uma situação de violência contra a mulher, sua identidade de gênero vai prevalecer. Já em caso de injúria racial, será o
pertencimento étnico e, diante de injustiças sociais, prevalecerá o pertencimento de classe e/ou sua ideologia política.

Mas você deve estar se perguntando: e o que a alimentação tem a ver com tudo isso?

 RESPOSTA

Pois bem, como você se sente brasileiro? Pelo fato de ter nascido no Brasil, pela nacionalidade? Com certeza, mas também porque fala
português e tem um código corporal diferente dos europeus, por exemplo, nós nos tocamos o tempo todo. E à mesa, como você sente
brasileiro? Comendo feijão com arroz, algo que se come no Brasil inteiro (BARBOSA, 2007), do Oiapoque ao Chuí.

Aquilo que comemos é uma fonte de pertencimento muito importante. Como nos ensina DaMatta:

COMIDA NÃO É APENAS UMA SUBSTÂNCIA ALIMENTAR, MAS É TAMBÉM UM


MODO, UM ESTILO E UM JEITO DE ALIMENTAR-SE. E O JEITO DE COMER
DEFINE NÃO SÓ AQUILO QUE É INGERIDO, COMO TAMBÉM AQUELE QUE O
INGERE.

(1986).

E as comidas típicas? Se pensamos no Sul do Brasil, logo nos vem à mente um suculento churrasco e um chimarrão. Já o Norte nos remeta
a comidas como pato no tucupi e tacacá. O Nordeste, tanto nos faz pensar em carne-de-sol com baião de dois, como todas aquelas comidas
de origem africana e com uma conotação religiosa, as comidas de santo caraterísticas da Bahia: acarajé, vatapá, caruru, xinxim de galinha,
bobó de camarão etc.

Fonte: Jaboticaba images/Shutterstock


 Vatapá de camarão, prato típico da culinária baiana.
Mas essas comidas são consumidas no dia a dia?

 RESPOSTA

De maneira alguma, são no geral comidas que se come em ocasiões festivas ou especiais. São preparações que foram escolhidas, de uma
certa forma, para representar a identidade cultural daquele lugar. Então, come-se feijão - das mais variadas cores, segundo o local - com
arroz, porque se é brasileiro, mas o pato no tucupi representa o pertencimento da região Norte.

Mais do que hábitos e comportamentos alimentares, as cozinhas implicam formas de perceber e expressar um determinado modo ou estilo
de vida que se quer particular a um determinado grupo. Assim, o que é colocado no prato serve para nutrir o corpo, mas também sinaliza um
pertencimento, servindo como um código de reconhecimento social (MACIEL, 2005).

A identidade alimentar, assim como as demais, se constrói por oposição. Sou brasileiro por que como feijoada e não insetos fritos. Assim
como falo português, e não chinês. Pensamos sobre nós mesmos e nos reconhecemos como diferentes a partir do outro, daquele que
pertence à outra cultura (SILVA, 2015).

Chamamos de alteridade esta percepção que temos de nós mesmos como diferentes a partir da visão que temos dos outros. Ou, como
dizem os antropólogos, do outro, que representa aquela sociedade que não é a minha. A alteridade se opõe à identidade cultural, ao mesmo
tempo em que é fundamental na sua construção.

O discurso da identidade não se confunde com o discurso das origens ou uma suposta autenticidade. Vamos pensar na feijoada, um prato
que é reivindicado como um dos maiores representante da nossa identidade cultural alimentar. O feijão preto e a mandioca da farofa são
nativos das Américas, mas o porco, a couve, o arroz e a laranja são todos ingredientes exóticos no sentido literal da palavra, ou seja, aquilo
que é estrangeiro, que não é nativo, mas isso não faz da feijoada um prato menos brasileiro. Assim como pimentões e os tomates são
característicos da cozinha mediterrânea, mas são nativos das Américas e somente após as Grandes Navegações apareceram por lá
(MACIEL, 2005).
A este propósito, é curioso o papel da feijoada na construção da identidade nacional. Reza a lenda que a feijoada é uma invenção dos
escravos a quem eram deixadas somente as partes menos nobres. Esse mito é difundido mesmo entre pesquisadores importantes sobre o
tema.

Câmara Cascudo (2004) já exalta a origem portuguesa da feijoada, comparando-a com pratos europeus feitos de carnes, legumes e favas,
como os cozidos, o puchero e o cassoulet, este presente desde a Antiguidade. Ele também sinaliza na mesma obra que os escravos comiam
de acordo com as posses do seu senhor, e que muitas das vezes nas fazendas eram um punhado de farinha de mandioca com o caldo e
uma laranja espremida por cima. Entretanto, foi Dória (2009) quem trouxe o tema ao debate recentemente.

Fonte: Page frederique/Shutterstock


 Cassoulet, especialidade culinária de origem francesa.
Ele argumenta que os escravos, assim como os indígenas, eram povos subalternos, considerados coisas, como cabeças de gado, que,
inclusive, viajavam de forma muito mais cômoda que os escravos nos navios negreiros, ou tumbeiros, como também eram chamados. Eles
não escolhiam o que iam comer, e muito menos criavam pratos. Classificar as carnes da feijoada com menos nobres também pode ser um
equívoco, já que elas são consideradas iguarias em muitas culturas. Na França, existe um restaurante chamado Au Pied de Cochon (aos pés
de porco, em tradução livre) que só serve pés de porco das mais variadas maneiras.

Esse mito é muito interessante e defende uma causa muito nobre, que é a importância dos negros na formação da identidade cultural do
Brasil. Entretanto, ele é construído com esse propósito e nega, dessa forma, as verdadeiras origens da feijoada, que são europeias. Mas,
como vimos acima, a identidade cultural, por ser construída, é manipulável, que é o caso aqui. Elas são mutáveis, como já vimos acima, bem
como são produtos históricos, produzidos também no contato com culturas diferentes.

COMENSALIDADE
O que é a comensalidade?

 RESPOSTA

Certamente, você tem pelo menos uma ideia do que isso significa. Segundo Maciel (2011), o fato de comermos juntos é o que faz com que o
ato de se nutrir se torne um evento social. A palavra companheiro vem do latim cum panem, que significa compartilhar o pão. Já a comensal
vem de cum mensa, que significa compartilhar a mesa. A comensalidade refere-se àqueles que comem juntos.

No entanto, mesmo se não existe uma mesa, existe comensalidade. Câmara Cascudo (2004) nos conta que, assim como os indígenas, com
esteiras no chão, os mais pobres também comiam no Brasil Colonial. Luccock (1997), um cronista inglês, chama a atenção para o fato de
que, mesmo em famílias mais abastadas, mulheres e crianças comiam da mesma forma nas alcovas, a parte íntima da casa. Os orientais
também comem em tapetes sentados no chão (LIMA; NETO; FARIAS, 2015).

Desde a pré-história, os homens já se sentavam em torno de um fogo comum para comer e conversar. Desde então, sentar-se junto à mesa
sempre foi sinal de boa paz. Durante a Idade Média, quando ainda não existiam estruturas políticas centralizadas, as refeições tomadas em
conjunto e os banquetes que ocorriam, tanto entre os nobres, mas também entre os aldeões, eram a melhor forma de se comunicar decisões
e mudanças (ALTHOFF, 1998). Também servia para fundar e reafirmar laços sociais, através das trocas de refeições festivas. Os grupos
formavam alianças de comprometimento mútuo que regulavam suas vidas em vários aspectos (Id.). Estamos falando da função social da
refeição.

Até hoje, em torno de uma mesa ou em um coquetel, como os coffee breaks, se faz todo o tipo de acordo, de aliança e de celebração. São
estabelecidas relações de amizade, amorosas, mas também se fecham negócios e acordos políticos, nem tão diferente do que acontecia na
Europa na Idade Média.

O clima mais descontraído das refeições festivas e banquetes, no geral, regados à bebida alcoólica, facilita a conversa mais sincera. Daniel e
Cravo (2015) acreditam que os conchavos políticos se dão também nos banquetes ou nos coquetéis, e não só nas câmaras ou nos palácios
dos governos. As tribos germânicas discutiam questões importantes durante os banquetes, mas somete tomavam as decisões no dia
seguinte, quando estavam sóbrios (ALTHOFF, 1998).

Fonte: Alexandros Michailidis/Shutterstock


 Bruxelas, Bélgica. 9 de dezembro de 2019. Ministros das Relações Exteriores no início de uma reunião com café da manhã.

No entanto, existem exceções a essa regra de estreitar relações sociais em torno da comida. Os balineses, descritos por Geertz, associam o
ato de se alimentar a algo próximo da animalidade e, para evitar constrangimentos, comem somente sozinhos.

 ATENÇÃO

Sentar-se à mesa também pode ser uma forma de demonstrar poder e afirmar hierarquias. Os lugares à mesa demonstram isso. Quanto
mais perto se está do anfitrião, maior a importância do convidado. Em muitas casas, cada membro da família tem um lugar específico e
imutável, que também afirma a hierarquia dentro da família, com o pai e a mãe sentados nas cabeceiras da mesa.

Mesmo se a generosidade e paz são pontos importantes quando comemos juntos, acontece de as festas e os banquetes darem errado por
conta de rixas entre seus membros. Elas podem ser frutos de problemas que se pretendia justamente resolver com o banquete ou, como
muitos de nós já vimos, brigas e desentendimentos que ocorrem nas comemorações familiares. Quem nunca teve o peru de Natal amargo
por uma discussão entre aqueles primos que não se cruzam?

O compartilhamento da comida é tão importante que, mesmo em ocasiões nada festivas, é preciso pensar no cardápio que será oferecido.
Aqui no Brasil, onde ainda se velam os mortos em casa, café e guloseimas para os presentes são obrigatórios. Nos Estados Unidos, após a
cerimônia de sepultamento, a família sempre oferece uma refeição aos que estavam presentes.

Fonte: Makistock/Shutterstock
Atualmente, a comensalidade vem se transformando. Você consegue fazer refeições com a sua família com frequência? Você consegue
sentar-se à mesa para fazer suas refeições? Quantas vezes comemos na frente do computador ou da TV? Ou no transporte público e mesmo
na rua? Nós, brasileiros, valorizamos o momento da refeição em família. Conforme Barbosa (2007), é a hora de pais e filhos conversarem e
dos laços familiares se estreitarem. Mas será que conseguimos fazer refeições diariamente em família? Muitas vezes, aos domingos, sim.
Outras somente no aniversário de alguém ou no Natal.

Há também uma tendência da alimentação contemporânea, que é a individualização. Por conta das rotinas diferentes, do enfraquecimento da
instituição familiar e de uma ideologia individualista, os membros de uma família, mesmo estando juntos em casa, comem de forma separada
(BARBOSA, 2007). Haveria uma individualização do momento da refeição, mas também do seu conteúdo. Na realidade brasileira, mesmo se
não se come junto, pois os horários de cada um são diferentes, a comida é a mesma para todos, no geral. Isso porque, como já vimos, no
geral, os brasileiros gostam do momento da refeição em família.

Já não almoçamos em casa com a família, mas a comensalidade pode ocorrer também de vez em quando em casa, com amigos e familiares,
na casa dos outros, em restaurantes, nos churrascos etc (LIMA, 2015). Nosso estilo de vida, sobretudo nas grandes cidades, nos faz estar
sempre correndo, mas a comensalidade toma novos formatos, mantendo sua função social.

As formas de se comportar à mesa também são muito importantes. Mesmo se estas regras sociais não fazem parte das leis, não as respeitar,
ou não as conhecer pode causar muitos problemas. Vamos supor que você vai sair com uma pessoa que está interessado(a). Vocês decidem
jantar fora e percebe rapidamente que essa pessoa não só mastiga com a boca aberta, como também arrota na mesa. Bom, ela pode ser
muito interessante e atraente, mas com certeza esse comportamento vai esfriar o seu interesse, ou mesmo acabar com ele. Resulta que, se
alguém não sabe se comportar à mesa, certamente, será colocado em uma situação de isolamento social.

 ATENÇÃO
Quando nos sentamos para comer em algum lugar fora de casa, estando ou não acompanhados, involuntariamente, observamos o
comportamento dos outros durante a refeição e fazemos julgamentos de valor sobre sua educação, seu grau de instrução e seu
pertencimento de classe. Vimos que as diferentes classes sociais criam e afirmam suas diferenças através do que se come e de como se
come.

A HISTÓRIA DAS REGRAS DE COMPORTAMENTO À MESA ESTÁ


ESTREITAMENTE LIGADA À DAS BOAS MANEIRAS EM SOCIEDADE.

(ROMAGNOLI, 1998).

Se hoje, somente comemos com as mãos sanduíches, lanches, frutas e algumas preparações como frango à passarinha, comer com as
mãos foi a única forma de comer até pelo menos o século XIV, quando os talheres eram usados em algumas cidades italianas. Somente no
século XVIII, os talheres vão se popularizar na Europa (Id.) e aqui no Brasil quase só no século XX.

 VOCÊ SABIA

No Brasil, era comum - ainda é em alguns locais - o capitão, um bolinho feito de feijão de corda amassado com farinha. Originário do
Nordeste, era uma comida fácil de ser carregada em pequenas ou grandes viagens ou levada para a roça. Como foi dito acima, em muitos
lugares do mundo, ainda se come com a mão (CÂMARA CASCUDO, 2004).
Os modos à mesa na durante os meados da Idade Média na Europa seriam considerados por nós hoje apavorantes. Os convivas urinavam
na sala de jantar, assoavam o nariz na toalha e não se constrangiam com suas flatulências, como diz O Livro do Homem Civilizado, de Daniel
de Beccles, um dos primeiros livros sobre etiqueta que data de aproximadamente o final do século XII.

Os pratos, que podiam ser uma fatia de pão, eram compartilhados, assim com os copos. Não existia sequer um local apropriado para a
refeição nos castelos. Uma mesa sobre cavaletes era trazida para o local escolhido, o que deu origem ao que falamos hoje “botar a mesa”
(Id.). A preocupação com as boas maneiras à mesa iniciará por volta do século XII, em um caminho que durará vários séculos.

Estas formas de comer, a ordem dos pratos, aquilo que é considerado importante ou trivial para a refeição, variam de acordo com as
diferentes culturas. No Japão, o que caracteriza a refeição é o arroz, enquanto no sul da Índia é o pão que cumpre este papel. Até a
temperatura pode ser importante na definição de uma refeição. Quantas vezes comemos uma salada, que pode até ser feita de massa, e
chegamos ao fim do dia sem a sensação de ter comido de verdade?

O processo de consumo e até de preparo dos alimentos obedece a certas regras. Já comentamos acima como os pratos têm certa ordem
durante a refeição segundo os significados que lhes atribuímos. Podemos dizer também que esse processo é altamente ritualizado. O ritual
remete a um conjunto de ações que devem ser feitos de uma maneira específica para que se atinja um dado objetivo.

O QUE, QUANDO, ONDE, PORQUE, A SEQUÊNCIA DOS PRATOS SERVIDOS, O


TEMPO, O MODO DE PREPARO, QUEM PREPARA, OS ACOMPANHAMENTOS E
OS COMENSAIS. ESTES SÃO ELEMENTOS QUE CONSTITUEM A RITUALIZAÇÃO
À MESA E DÁ OS SIGNIFICADOS A ESSA PRÁTICA SOCIAL.
(STEFANITTI et al., 2018).

Os rituais religiosos, como, por exemplo, uma missa católica ou uma iniciação no candomblé, devem seguir um passo a passo
minuciosamente para que na missa o indivíduo saia purificado, ou iniciado no candomblé. O mesmo ocorre à mesa. Para que o comensal
esteja ao final da refeição bem alimentado e feliz, os gestos, a sequência dos pratos, sua combinação, devem ser colocados nos seus
devidos lugares. Como falamos acima sobre a comida como linguagem, a frase e o texto serão incompreensíveis se as letras e palavras não
estiverem no lugar certo.

Fonte: Joa Souza/Shutterstock


 15 de janeiro de 2015: Baianas lavam as escadas da Igreja do Bonfim, durante tradicional festa para católicos e candomblecistas.
VERIFICANDO O APRENDIZADO

1. LEIO O TRECHO DA MÚSICA DE GONZAGUINHA O PRETO QUE SATISFAZ (FEIJÃO MARAVILHA)

DEZ ENTRE DEZ BRASILEIROS PREFEREM FEIJÃO

ESSE SABOR BEM BRASIL

VERDADEIRO FATOR DE UNIÃO DA FAMÍLIA

ESSE SABOR DE AVENTURA

O FAMOSO PRETÃO MARAVILHA

FAZ MAIS FELIZ A MAMÃE, O PAPAI

O FILHINHO E A FILHA.

ESTA ESTROFE FAZ ALUSÃO A QUAIS CONCEITOS RESPECTIVAMENTE?

A) Comensalidade e modos à mesa

B) Comensalidade e identidade cultural

C) Identidade cultural e modos à mesa

D) Identidade cultural e comensalidade


2. COMEM MUITO E COM GRANDE AVIDEZ E, APESAR DE EMBEBIDOS EM SUA TAREFA, AINDA ACHAM
TEMPO PARA FAZER GRANDE BULHA. A ALTURA DA MESA FAZ COM QUE O PRATO CHEGUE AO NÍVEL DO
QUEIXO; CADA QUAL ESPALHA SEUS COTOVELOS AO REDOR E, COLOCANDO O PULSO JUNTO À
BEIRADA DO PRATO, FAZ COM QUE, POR MEIO DE UM MOVIMENTO HÁBIL, O CONTEÚDO TODO SE
DESPEJE NA BOCA. POR OUTROS MOTIVOS ALÉM DESTE, NÃO HÁ GRANDE LIMPEZA NEM BOAS
MANEIRAS, DURANTE A REFEIÇÃO; OS PRATOS NÃO SÃO TROCADOS, SENDO ENTREGUES AO COPEIRO
SEGURANDO-SE O GARFO E A FACA EM UMA MESMA MÃO; POR OUTRO LADO, OS DEDOS SÃO USADOS
COM TANTA FREQUÊNCIA COMO O PRÓPRIO GARFO.

EXTRAÍDO DE LUCCOCK, J. AS REFEIÇÕES NO RIO DE JANEIRO, PRINCÍPIO DO SÉCULO XIX. IN CÂMARA


CASCUDO, L. ANTOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO NO BRASIL. RIO DE JANEIRO: LIVROS TÉCNICO E
CIENTÍFICOS, 1977.

O TRECHO CIMA REFERE-SE:

A) À relação entre gênero e alimentação

B) Aos modos à mesa

C) À construção social do gosto

D) Às comidas afetivas

GABARITO

1. Leio o trecho da música de Gonzaguinha O Preto que Satisfaz (Feijão Maravilha)

Dez entre dez brasileiros preferem feijão

Esse sabor bem Brasil

Verdadeiro fator de união da família

Esse sabor de aventura

O famoso Pretão Maravilha

Faz mais feliz a mamãe, o papai

O filhinho e a filha.

Esta estrofe faz alusão a quais conceitos respectivamente?

A alternativa "D " está correta.

Os dois primeiros versos falam sobre a preferência dos brasileiros em relação ao feijão e como ele é “um sabor bem Brasil”, o que faz
referência à importância do feijão na construção da identidade cultural do brasileiro. Já a terceira estrofe fala sobre a união da família ao
comerem juntos o feijão, logo refere-se à comensalidade.

2. Comem muito e com grande avidez e, apesar de embebidos em sua tarefa, ainda acham tempo para fazer grande bulha. A altura
da mesa faz com que o prato chegue ao nível do queixo; cada qual espalha seus cotovelos ao redor e, colocando o pulso junto à
beirada do prato, faz com que, por meio de um movimento hábil, o conteúdo todo se despeje na boca. Por outros motivos além
deste, não há grande limpeza nem boas maneiras, durante a refeição; os pratos não são trocados, sendo entregues ao copeiro
segurando-se o garfo e a faca em uma mesma mão; por outro lado, os dedos são usados com tanta frequência como o próprio
garfo.

Extraído de LUCCOCK, J. As refeições no Rio de Janeiro, princípio do século XIX. In CÂMARA CASCUDO, L. Antologia da
Alimentação no Brasil. Rio de Janeiro: Livros Técnico e Científicos, 1977.

O trecho cima refere-se:


A alternativa "B " está correta.

O cronista está claramente falando da forma como os brasileiros se comportam à mesa.

MÓDULO 3
 Reconhecer os significados simbólicos nas práticas de alimentação

COMIDA AFETIVA E MEMÓRIA GUSTATIVA


OS SENTIMENTOS ATRELADOS AO ALIMENTO
O que são as comidas afetivas?

De acordo com Garcia (1997), sabemos que a comida, por ter como ponto de partida o universo doméstico de cada um, tem significados
afetivos. Mesmo os mais desgarrados têm lembranças relacionadas a momentos de refeições em família e/ou de pratos para ocasiões
especiais ou para o almoço de domingo que eram feitos por uma tia ou uma avó.

A história pessoal ilustra bem a questão das comidas afetivas e da memória gustativa. Esta memória é aquela que surge muitas vezes
involuntariamente quando sentimos um gosto ou um cheiro que nos remete ao passado (CORÇÃO, s.d.). Por um instante, aquela sensação
nos faz voltar a um momento familiar e promove uma verdadeira viagem no tempo. Viagem para o acolhimento que proporciona uma refeição
em família ou o carinho doce gostoso que foi feito só para agradar.

Fonte: Formatoriginal/Shutterstock

Na atualidade, podemos nos perguntar que memórias serão guardadas das comidas afetivas no futuro e quem vai saber fazer as receitas de
família. Com a correria do dia a dia, a mãe ou a avó não têm mais tempo para cozinhar para a família. Então, elas lançam mão de todo os
aparelhos eletrônicos, de comidas prontas e semiprontas, comidas delivery e tudo que possa facilitar suas vidas e alimentar as famílias. Ora,
sabemos que, em um país como o Brasil que tem uma desigualdade enorme, muitas mulheres passam seu tempo de folga cozinhando o
trivial para a família se alimentar quando ela está ausente.

Nestes casos, aquela receita especial da família será talvez perdida. Se considerarmos que as tradições culinárias de um povo são
fundamentais para a sua identidade cultural, esse saber fazer torna-se um patrimônio imaterial daquela sociedade. Já temos desde o ano de
2000 um livro de Registro de Patrimônios Imateriais do IPHAN, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Até então, somente se
podia tombar patrimônios culturais materiais (Id.)
O modo tradicional de fazer o acarajé baiano foi o primeiro inscrito neste livro em 2005. O esforço para cozinhar e transmitir receitas para os
seus descendentes é uma maneira de preservar as tradições e a identidade cultural não somente de uma família, mas de um povo.

Fiquem atentos às receitas da família e, se puderem, façam um livro de receitas. Um membro da família que vem a falecer sem ter
transmitido esses saberes é como um livro de receitas afetivas que se queima.

 ATENÇÃO

Por outro lado, essa perda de receitas vem se juntar a uma outra teoria sobre a alimentação contemporânea, a homogeneização do gosto
(Id.). Esta teoria diz que, em um contexto de alto consumo de produtos industrializados e comidas prontas, há uma tendência à pasteurização
ou à homogeneização do gosto. Todas as salsichas de uma lata têm o mesmo gosto, assim como todos os iogurtes daquele sabor e marca e
todos os biscoitos de um pacote. As lasanhas e pizzas prontas, as latas de feijoada, igualmente.

Esta realidade não se aplica ao caso brasileiro. Mesmo se há um aumento no consumo de produtos industrializados, ainda temos o hábito de
comprar os ingredientes e fazer a comida em casa, na medida do possível (Id.). Nós, no sentido contrário da pressão que a indústria e suas
publicidades fazem, ainda temos uma gramática tradicional da refeição: arroz, feijão, alguma proteína e algum legume ou verdura. Mesmo se
comemos fora, vamos buscar na maior parte das vezes um PF – prato feito – em um botequim ou uma comida mais caseira em um
restaurante a quilo.

A CONSTRUÇÃO DO GOSTO
O gosto é algo bastante complexo. Já houve diferentes teorias sobre como ele funciona fisiologicamente. A tese do mapa de língua durou do
século XIX até o século XX. Segundo ela, diferentes regiões da língua sentiam diferentes gostos, mas ela já foi desacreditada.
O gosto se dá em uma interação entre as substâncias do que estamos comendo e os botões gustativos que cobrem a língua e o palato mole.
Além dos sabores que já conhecemos, doce, salgado, amargo e azedo, temos o umami e o alcaçuz.

Fonte: Jeanne Emmel/Shutterstock


 Doces de alcaçuz.

O umami, um sabor definido pelos japoneses, está presente no peixe, no tomate e no queijo parmesão, mas ele não tem uma equivalência na
nossa cultura alimentar, o que faz com que ele seja muito difícil de descrever (MARQUES, 2015). Já o alcaçuz é uma raiz de sabor forte com
a qual se faz um doce comum na Europa, que, na verdade, é um outro nome da planta, regaliz.


SAIBA MAIS
No Portal Umami, há um passo a passo que ensina como reconhecer o sabor do umami.

Atualmente, já se sabe que o sabor envolve o gosto, mas também os estímulos do cheiro, a percepção das formas e a sensação tátil na boca
(Id.). Comemos com os olhos também. Além de ser o principal determinante das escolhas alimentares, o gosto também tem uma
determinação genética. Há estudos que falam que até 40% do paladar seria geneticamente determinado. Então, sim, a couve é mais amarga
para uns do que para outros, e o gosto do alho e do café também mudam (DONAHUE, 2018).

 ATENÇÃO

O gosto vai além do dado fisiológico. Ele é culturalmente construído. Aprendemos a comer determinadas coisas, certas misturas, desde
pequenos, e vamos nos habituando a elas, mas o gosto também tem um componente que é totalmente pessoal.

GÊNERO E ALIMENTAÇÃO
As relações entre gênero e alimentação são velhas conhecidas de todos nós. A mulher sempre foi aquela, desde a pré-história, que cuida e
prepara o alimento. Entre dois e quatro milhões de anos atrás os homens teriam inventado a divisão sexual do trabalho. Enquanto os homens
caçavam, as mulheres coletavam, cozinhavam e cuidavam das crianças (CARNEIRO, 2003).

Mesmo se muita coisa mudou desde então, as mulheres continuam sendo as detentoras dos saberes sobre as práticas culinárias. Já falamos
sobre as receitas, um patrimônio imaterial, e como são transmitidas sobretudo entre mulheres. Durante muito tempo, a cozinha foi
considerada, e continua sendo atualmente, um território feminino.
As tarefas domésticas cotidianas das mulheres foram durante muito tempo a maior fonte de construção das identidades de gênero femininas.
No entanto, este trabalho ainda é desvalorizado e visto como algo repetitivo e monótono. Mesmo nos dias de hoje, com as mulheres
trabalhando em tempo integral, elas ainda realizam a maior parte das tarefas domésticas. Demerteco (2015) analisa livros e cadernos de
receita de Curitiba na primeira metade do século XX. Ela comenta que as próprias mulheres consideravam esses trabalhos como pouco
importantes, mas se sentiam orgulhosas de preparar comidas saborosas para sua família.

Assunção (2013) fez seu trabalho sobre alimentação e relações familiares no Morro do Caixa, uma comunidade que fica na cidade de
Tubarão, em Santa Catarina. Em um primeiro momento, as mulheres não conseguiam compreender o porquê do interesse da pesquisadora
em um tema tão banal. O que sugere a princípio de que este assunto não é importante, a mesma forma de pensar de outras mulheres 50
anos antes. Para as mulheres deste lugar, o cozinhar só faz sentido se a comida é feita para outra pessoa. Conhecer as receitas e as
preferências alimentares dos membros da família confere a estas mulheres certo poder.

No entanto, enquanto as mulheres ficam com a barriga no fogão, o glamour da cozinha fica para os grandes chefs, que são, na sua maioria,
homens. Quando o assunto é cozinhar para a família cotidianamente, a tarefa é monótona e repetitiva, mas, quando se trata de usar a
criatividade, aí é a vez dos homens.

Dória (2012) nos conta que, já na Idade Média, a divisão tradicional do trabalho vai mudando. Na França, a preparação de alimentos vai
sendo passada para os homens. Claro, que eles trabalham na rua vendendo seus produtos, como os padeiros, os que fazem frios como
presunto etc.

No século XIX, surge a figura do chef, profissão destinada aos homens, obviamente. Se hoje temos chefs mulheres famosas, os maiores
entre eles seguem sendo homens. Na Idade Moderna, os homens são os cozinheiros dos nobres, e são os que vão trabalhar nos
restaurantes que surgem. Até os livros de culinária são escritos por eles.

 ATENÇÃO
Contudo, o profissional da área de Nutrição deve ficar atento e sempre procurar ter interlocução privilegiada com as mulheres da família, pois
ainda são elas que, na maior parte das vezes, ocupam-se da alimentação da família.

Outra questão relativa ao gênero é que as mulheres são as que tomam as decisões em casa sobre o que se vai comer. Mas, no poder
público, são sub-representadas, sendo os homens que tomam todas as decisões sobre as políticas relacionadas aos alimentos, que dizem
respeito diretamente às mulheres (COELHO, 2005).

Fonte: Krakenimages.com/Shutterstock

Vamos terminar esta seção falando de enfermidades que são culturalmente localizadas e que afetam sobretudo as mulheres: os
Transtornos do Comportamento Alimentar (TCA).

Estes transtornos estão ligados à autoimagem e se traduzem pelo medo excessivo de engordar. Eles se desenvolvem sobretudo em
mulheres jovens. Mesmo se estas doenças já existiam, sua incidência tem aumentado muito (OLIVEIRA; HUTZ, 2010).
Há uma perversão em relação aos padrões de beleza do corpo feminino.

Idade Média

Na Idade Média e na Renascença, a opulência corporal era sinônimo de opulência econômica, e o corpo mais robusto é o mais belo (Id.).
Nesta época, os mais pobres tinham muitas dificuldades em comer de forma conveniente, logo eram magros e considerados feios.


Atualmente

Hoje, quando há excesso de alimentos, pelo menos, em uma grande parte da população, o corpo belo é o corpo magro. A mulher magra é
disciplinada, sabe se cuidar; enquanto as obesas sofrem preconceito e são consideradas relaxadas, sem força de vontade.

Como vimos antes, o sujeito é responsabilizado pela sua doença, em desconsideração a todos os demais fatores, e “só é gordo quem quer”
(KRAEMER et al., 2014). Enquanto a indústria da beleza impulsiona a um ideal corporal que sequer existe, pois muitas das imagens são
manipuladas, a indústria alimentar faz produtos cada vez mais calóricos, gordurosos e deliciosos.

 ATENÇÃO

Os TCA são doenças graves, muitas vezes, fatais e que podem deixar sequelas. Podem fazer adoecer toda uma família, tal qual a
dependência química. São problemas que têm um componente cultural muito forte e que são muito influenciados pela mídia.
COMIDA E SEXO
Em muitas línguas, o vocabulário relativo ao sexo e à alimentação se assemelha. Desde a inocente Lua de Mel até o se lambuzar no ato
sexual, as associações são muitas. Aqui no Brasil, o verbo comer refere-se também à cópula, passando pelo “gostoso (a)”.

O VOCABULÁRIO AMOROSO SE ENTRELAÇA CONSTANTEMENTE COM O


GASTRONÔMICO [...] IMPLÍCITO NAS EXPRESSÕES “PELE DE PÊSSEGO”,
“OLHOS AMENDOADOS” OU “COR DE AVELÔ, “BOCA DE CEREJA”, “LÁBIOS
POLPUDOS”, “FORMAS APETITOSAS”, SEM ESQUECER A “LUA-DE-MEL” QUE,
TANTAS VEZES, ACABA COM O “CALDO ENTORNADO".

(NASCIMENTO apud AZEVEDO, 2017).

Não podemos esquecer as mais variadas mulheres frutas aqui no Brasil, que reforçam a associação entre sexo e comida, o primeiro é
fundamental para a sobrevivência da espécie e o outro imprescindível para a sobrevivência do indivíduo. Duas necessidades banais e
essenciais que estão do lado da reprodução biológica. Os dois polos do prazer e do desejo. Talvez por isso mesmo tenhamos inventado um
enorme edifício simbólico para significar ambos com uma séria de regras, valores, crenças, preferências, rejeições, medos.
VERIFICANDO O APRENDIZADO

1. SABORES DE INFÂNCIA: A COMIDA QUE LEMBRA OS TEMPOS DE CRIANÇA.


QUANDO LEVOU À BOCA A
PRIMEIRA GARFADA DE “RATAOUILLE” – UM REFOGADO DE VEGETAIS TRADICIONAL DA FRANÇA – O
CRÍTICO GASTRONÔMICO ANTON EGO ATÉ SE ESQUECEU DE QUE ESTAVA ALI, À MESA, PARA AVALIAR O
RESTAURANTE QUE ACABAVA DE LHE SERVIR AQUELE PRATO. DE REPENTE, AQUELE SABOR FEZ O
MUNDO PARAR, E ELE PÔDE SE SENTIR NOVAMENTE O MENINO QUE, DEPOIS DAS BRINCADEIRAS,
CHEGAVA EM CASA PARA A REFEIÇÃO, GANHAVA UM AFAGO DA MÃE E COMIA O “RATATOUILLE” FEITO
POR ELA COM AMOR. DE REPENTE, ELE NÃO ERA MAIS UM ADULTO RANZINZA; ERA O GAROTO
PROTEGIDO PELOS CARINHOS CULINÁRIOS DA MÃE.

FONTE: ACERVO MUSEU DA PESSOA.

O TEXTO ACIMA FAZ REFERÊNCIA A QUAL CONCEITO?

A) À construção social do gosto

B) À função social da refeição

C) À memória gustativa

D) Ao real da alimentação
2. OFÍCIO DAS BAIANAS DE ACARAJÉ:

“ESTE BEM CULTURAL DE NATUREZA IMATERIAL, INSCRITO NO LIVRO DOS SABERES EM 2005, É UMA
PRÁTICA TRADICIONAL DE PRODUÇÃO E VENDA, EM TABULEIRO, DAS CHAMADAS COMIDAS DE BAIANA,
FEITAS COM AZEITE DE DENDÊ E LIGADAS AO CULTO DOS ORIXÁS, AMPLAMENTE DISSEMINADAS NA
CIDADE DE SALVADOR, BAHIA. DENTRE AS COMIDAS DE BAIANA, DESTACA-SE O ACARAJÉ, BOLINHO DE
FEIJÃO FRADINHO PREPARADO DE MANEIRA ARTESANAL, NA QUAL O FEIJÃO É MOÍDO EM UM PILÃO DE
PEDRA (PEDRA DE ACARAJÉ), TEMPERADO E, POSTERIORMENTE, FRITO NO AZEITE DE DENDÊ
FERVENTE. SUA RECEITA TEM ORIGENS NO GOLFO DO BENIM, NA ÁFRICA OCIDENTAL, TENDO SIDO
TRAZIDA PARA O BRASIL COM A VINDA DE ESCRAVOS DESSA REGIÃO.” FONTE: IPHAN.

O OFÍCIO DAS BAIANAS DE ACARAJÉ FOI O PRIMEIRO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL A SER
INSCRITO NO LIVRO DOS SABERES. POR QUE ELE TEM ESTE STATUS?

A) Porque o acarajé é uma comida afetiva para a maior parte dos baianos

B) Porque o acarajé é uma comida religiosa para a população da Bahia.

C) Porque o acarajé faz parte das tradições e constrói a identidade cultural dos baianos.

D) Porque o acarajé faz alusão à construção do gênero feminino.

GABARITO

1. Sabores de infância: a comida que lembra os tempos de criança.


Quando levou à boca a primeira garfada de “rataouille” – um
refogado de vegetais tradicional da França – o crítico gastronômico Anton Ego até se esqueceu de que estava ali, à mesa, para
avaliar o restaurante que acabava de lhe servir aquele prato. De repente, aquele sabor fez o mundo parar, e ele pôde se sentir
novamente o menino que, depois das brincadeiras, chegava em casa para a refeição, ganhava um afago da mãe e comia o
“ratatouille” feito por ela com amor. De repente, ele não era mais um adulto ranzinza; era o garoto protegido pelos carinhos
culinários da mãe.

Fonte: Acervo Museu da Pessoa.

O texto acima faz referência a qual conceito?

A alternativa "C " está correta.

A memória gustativa é justamente quando um sabor nos traz alguma lembrança forte.

2. Ofício das Baianas de Acarajé:

“Este bem cultural de natureza imaterial, inscrito no Livro dos Saberes em 2005, é uma prática tradicional de produção e venda, em
tabuleiro, das chamadas comidas de baiana, feitas com azeite de dendê e ligadas ao culto dos orixás, amplamente disseminadas na
cidade de Salvador, Bahia. Dentre as comidas de baiana, destaca-se o acarajé, bolinho de feijão fradinho preparado de maneira
artesanal, na qual o feijão é moído em um pilão de pedra (pedra de acarajé), temperado e, posteriormente, frito no azeite de dendê
fervente. Sua receita tem origens no Golfo do Benim, na África Ocidental, tendo sido trazida para o Brasil com a vinda de escravos
dessa região.” Fonte: IPHAN.

O ofício das Baianas de Acarajé foi o primeiro Patrimônio Cultural Imaterial a ser inscrito no Livro dos Saberes. Por que ele tem este
status?

A alternativa "C " está correta.

O que faz com que algo que faça parte da cultura material ou imaterial seja considerado um Patrimônio Cultural, é sua importância nas
tradições e na identidade cultural de um povo.

CONCLUSÃO

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste tema, vimos os aspectos simbólicos da alimentação e como não podemos pensar os alimentos somente em termos de nutrientes, fora
do contexto social e cultural no qual eles se encontram. O nutricionista deve sempre estar atento aos múltiplos significados que seus
pacientes ou seu público-alvo dão aos alimentos, sob pena de não ser um profissional ético e competente.

Vimos no módulo 1 que, além do aspecto real, que diz respeito às caraterísticas nutricionais e organolépticas dos alimentos, os grupos e
indivíduos moldam seus hábitos alimentares segundo o imaginário simbólico construído pela sua sociedade. O que comer, quando, com
quem, antes de que, depois de que, preparado por quem são consequências destes significados simbólicos que os homens atribuem aos
alimentos.

Vimos também que a nutrição repete o imaginário do corpo-máquina, paradigma científico das ciências biomédicas e que isso reduz sua
compreensão da complexidade do tema e dos determinantes socioculturais dos hábitos alimentares. Refletimos sobre como as escolhas
alimentares também são condicionadas pela ordem simbólica que os mais variados povos atribuem aos diferentes alimentos.

No módulo 2, observamos como a alimentação é fonte de pertencimento e de identificação. Discutimos também sobre como o fato de se
sentar junto à mesa estabelece e reforça os mais variados vínculos entre os comensais. Discutimos igualmente sobre as mudanças que
estão ocorrendo na comensalidade atualmente e como os modos à mesa são regras muito importantes que regem a forma de se abordar o
alimento e de se comportar em uma refeição.

No módulo 3, vimos os significados das práticas de alimentação sob vários aspectos. Falamos sobre como o ato de comer desperta em nós
diversos afetos; como certas comidas nos remetem a situações e memórias, como elas enfim são parte da nossa história. As receitas e os
modos de fazer comida de uma família são parte do Patrimônio Imaterial daquele povo, por isso, deveríamos tentar não perder as receitas de
família e o hábito de cozinhar juntos. Nestes tempos, onde corremos tanto e mal temos tempo de comer, quanto mais de cozinhar e ensinar, é
necessário um esforço para mantermos este patrimônio.

Seguimos com a construção do gosto e suas variadas facetas e depois, tratamos da discussão sobre gênero e alimentação e o quanto é a
mulher que efetivamente se ocupa da alimentação e da saúde da família, sendo assim, a melhor interlocutora do nutricionista.

Fechamos discorrendo sobre as associações entre comida e sexo e como esses dois polos do prazer humano tão necessários à nossa
sobrevivência deram origem a tantos significados distintos.

AVALIAÇÃO DO TEMA:

REFERÊNCIAS
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São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p. 300-310.

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CARNEIRO, H. Comida e Sociedade: Uma História da Alimentação. 6 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.

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Pesquise na internet e assista aos seguintes documentários:

Programa Multiponto Alimentação, Cultura e Identidade, que se encontra no site do repositório digital da UFRGS.

Comida e Afetos reunidos em um documentário, produzido pelo portal de jornalismo da ESPM.

Comida como cultura, uma reportagem especial que faz parte de um projeto desenvolvido no município de Peritiba, que resgata culturas
e modos de vida.

Leia as indicações:
DÓRIA, C. Flexionando o gênero: a subsunção do feminino no discurso moderno sobre o trabalho culinário. Cadernos Pagu (39):251-
271, 2012.

KRAEMER, F. et al. O discurso sobre a alimentação saudável como estratégia de biopoder. Rio de Janeiro: Physis Revista de Saúde
Coletiva, 24 (4): 1337-1359, 2014.

CONTEUDISTA
Laura Eugenia Perez Freitas

 CURRÍCULO LATTES

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