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O Espaço Romanesco em Hotel Atlântico (2012)
O Espaço Romanesco em Hotel Atlântico (2012)
Introdução
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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Goiás.
Bolsista Capes. marcelaferreirasantana@gmail.com.
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Outro aspecto para essa desestabilização, apontado por Tânia Pellegrini (2008),
é a decadência da crença utópica de que a literatura, por meio da palavra, possui uma
força potencial de transformar as estruturas sociais da realidade brasileira, para dar
lugar, a partir da década de 70, a uma literatura pressionada pelas forças de uma
indústria cultural em vias de consolidação. Desse modo, não há mais sentido falar na
dicotomia localismo e cosmopolitismo, porque, hoje, vive-se numa sociedade que dá
passos largos em direção ao mundo globalizado, em que as fronteiras geográficas e
cartográficas são, aceleradamente, diluídas, colocando em xeque as tópicas que
consolidaram a Modernidade.
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Todas as citações dessa obra, no presente trabalho, serão retiradas da publicação de 2004.
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Ver mais sobre isso no livro Espaço e Romance de Antonio Dimas.
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manhã e o cortiço acordava, abrindo não os olhos, mas a sua infinidade de portas e
janelas alinhadas.” (AZEVEDO, 1997, p.30).
Dito de outro modo, a ambientação franca é feita por meio do olhar do narrador
e a ambientação reflexa consiste na construção do relato por meio do olhar de um
personagem: “as coisas, sem engano possível, são percebidas através da personagem”.
(LINS, 1976, p. 82). Em ambos os casos, seja o narrador em terceira pessoa ou
personagem, a voz narrativa faz uma pausa no relato da ação para se ocupar de dados do
contexto, da moldura do espaço, no qual a personagem se insere.
Exemplo emblemático de pausa pode ser lido no décimo capítulo da primeira
parte do romance Senhora de José de Alencar. Quando Aurélia aparece pela primeira
vez a Fernando Seixas, após herdar a fortuna de seu antepassado. Ela aparece na porta
do salão e o narrador faz uma pausa na ação por seis parágrafos seguidos para fazer uma
longa e exuberante descrição do ambiente, do vestido de seda, do espírito altivo de
Aurélia e de sua entrada triunfal no salão.
Além disso, essa ambientação é reflexa porque quem vê essa exuberância do
ambiente é a própria Aurélia. “Atravessou a sala com o brando arfar que tem o cisne no
lago sereno, e que era o passo das deusas. No meio das ondulações da seda parecia não
ser ela quem avançava; mas que ao outros que vinham ao seu encontro”. Seixas vê a
mesma entrada de Aurélia de forma diferente: “Se Aurélia contava com o efeito de sua
entrada sobre o espírito de Seixas, frustrara-se essa esperança, porque os olhos do
mancebo [...] não viram mais que um vulto de mulher atravessar o salão e sentar-se no
sofá.” (ALENCAR, 1997, p. 47).
O terceiro tipo de ambientação é a mais complexa e de difícil apreensão. Ao
contrário das outras duas supracitadas, a ambientação dissimulada não suspende o relato
para emoldurar o ambiente, “exige a personagem ativa: o que a identifica é um enlace
entre espaço e ação.” (LINS, 1976, p. 83). Trata-se de uma reciprocidade harmônica
entre seres e coisas, entre personagens e espaço, “como se o espaço nascesse” dos
próprios gestos das personagens. Não há pausas na ação para emolduração do espaço.
Ambos, personagem e espaço, constituem-se numa relação dialética, um no outro.
Talvez um exemplo que Osman Lins não traz em sua análise, mas que merece
ser lembrado é a descrição inicial do romance Mrs. Dalloway de Virginia Woolf.
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Mrs. Dalloway disse que ela própria iria comprar as flores. Quanto a Lucy,
já estava com o serviço determinado. As portas seriam retiradas dos gonzos;
em poucos em pouco chegaria o pessoal de Rumpelmayer. Mas que manhã,
pensou Clarissa Dalloway – fresca como para crianças numa praia! Que
frêmito! Que mergulho! Pois sempre lhe parecera quando, com um leve
ringir de gonzos, que ainda agora ouvia, abria de súbito as vidraças e
mergulhava ao ar livre, lá em Bourton. Que fresco, que calmo, mas que hoje,
não era então o ar da manhazinha; como o tapa de uma onda; como o beijo
de uma onda; frio, fino, e ainda (para a menina de dezoito anos que ela era
em Bourton) solene, sentindo, como sentia, parada ali ante a janela aberta
que alguma coisa terrível ia acontecer; (WOOLF, 1980, p. 07).
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reveladores, “pois tais objetos são bem mais ligados à nossa existência do
que comumente admitimos”. Continua: “descrever móveis, objetos, é um
modo de descrever os personagens, indispensáveis.”. (LINS, 1976, p. 97).
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[...] o leitor de apropria daquele olho ágil que focaliza o personagem e passa,
com este, a deslocar-se prazerosamente nesse cenário móvel, desenraizado
de tudo, esvaziado de subjetividade, privado de objetivos e de referenciais
que pudessem servir de norte, jogo de uma representação em crise,
igualmente partilhada por leitor e escritor.
Em suma, o percurso que o personagem faz pode ser sintetizado num esquema:
Rio de Janeiro – Florianópolis – Viçoso – Arraiol – Porto Alegre – Pinhal. O relato se
inicia com o personagem em um hotel no Rio de Janeiro, o qual decide partir. Do hotel
de Copacabana até a rodoviária, ele vai de táxi e, então, fica claro que ele não tem
itinerário, porque diz ao taxista que irá para Minas Gerais. Contudo, “um luminoso em
cima do guichê” (NOLL, 2004, p. 22) o faz decidir comprar uma passagem para
Florianópolis.
Todo o percurso é marcado e direcionado ao acaso. Segue de ônibus pela
rodovia Sul-Sudeste até Florianópolis. Durante essa viagem, senta-se ao lado de uma
americana que se suicida dentro do ônibus, ingerindo algum tipo de medicação. Com
medo de que lhe façam perguntas, o narrador-personagem sai pela cidade sem rumo e
encontra, ao acaso, dois rapazes que vão de carro para o Rio Grande do Sul e ele segue
viagem com os desconhecidos. Eles fazem duas paradas: a primeira em um bordel, no
qual passam a noite, a segunda parada é em uma fazenda próxima à rodovia, na qual, os
desconhecidos matam uma pessoa. Numa fuga prodigiosa, o narrador-personagem
encontra um homem com uma carroça que o leva até Viçoso, uma pequena cidade quase
na fronteira entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Dessa cidade, segue caminhando
para Arraiol, no estado do Rio Grande do Sul.
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Portanto, o autor:
Não quer ser enquadrado como escritor intimista, mesmo reconhecendo suas
preocupações com a subjetividade. Essa decisão é ditada pelo acervo
literário acumulado pelo tempo, já que reconhece ser impossível, hoje,
retroceder ‘às longas peregrinações dos heróis balzaquianos ou flaubertianos
do século 19’. [...] Sua opção, portanto, é reconhecer as limitações da nossa
época e deixar-se seduzir pela instantaneidade. (DULCLÓS, 2004, Orelhas).
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espaço, então, por que emoldurá-lo? São lugares fugidios e transitórios, sem
significados profundos ou afetivos para o personagem, muito diferente do que ocorre
com Clarissa Dalloway ao lembrar Bourton. A relação do homem com o lugar em Hotel
Atlântico é mais superficial e não demonstra nenhuma intimidade ou afetividade. O
espaço não tem a mesma representação que tem para Clarissa.
Porém, quando o personagem-narrador chega ao hotel Atlântico, lugar que dá
nome ao romance, a descrição do espaço se faz pela ambientação reflexa. Pela primeira
vez em todo o relato, o espaço é revestido de alguma subjetividade. Embora sejam
sutilmente inseridas no relato, há algumas pausas para descrição do ambiente:
Eu tinha me sentado numa cadeira que havia ao lado de uma pequena mesa.
Tirei o casaco, não que me sentisse acalorado, mas só pelo prazer de jogar o
casaco sobre a cama onde eu ia dormir, como se estivesse em casa. E eu
realmente me considerava em casa pela primeira vez, depois de tanto tempo.
(NOLL, 1976, p. 106).
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O termo “desterritorialização” é, inicialmente, definido pelos filósofos franceses Deleuze e Guattari, no
texto Anti-Édipo, mas, nesse projeto, ele assume o significado empregado por Flora Süssenkind, no texto
“Desterritorialização e forma literária”, e em outros autores como Renato Cordeiro Gomes.
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Passei com folga entre dois arames da cerca. Rasguei a calça num galho
rasteiro sem folhas. Depois tropecei alguma coisa, caí. O sol muito forte.
Levantei com certa dificuldade. Tirei a jaqueta e a joguei no chão. Alem de
me fazer suar ela me pesava demais. Abandonei-a sem que me desse a
menor vontade de me virar e olhá-la mais uma vez. (NOLL, 2004, p. 56).
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Considerações finais
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Referências bibliográficas
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