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Revista Ícone

Revista de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Linguística e Literatura


Volume 09 – Janeiro de 2012 – ISSN 1982-7717

O ESPAÇO ROMANESCO EM HOTEL ATLÂNTICO DE JOÃO GILBERTO


NOLL

Marcela Ferreira da Silva Santana∗

Resumo: Este trabalho discute a temática da cidade e do trânsito na literatura brasileira


contemporânea por meio da análise do espaço no romance Hotel Atlântico de João
Gilberto Noll, o qual constrói uma tensão entre homem e lugar. A obra em questão se
constitui sob uma perspectiva que não se preocupa em construir uma identidade
nacional dicotômica. Problematiza a relação do homem com os espaços e insere, na
economia do texto ficcional, a desarticulação das tópicas estéticas da Modernidade no
tratamento da cidade.

Palavras-chave: literatura contemporânea, espaço romanesco, trânsito.

Introdução

Flora Süssenkind (2005)constata que dentre os possíveis caminhos da produção


literária contemporânea, a imaginação brasileira é, predominantemente, urbana. A
estudiosa atribui esse fator a dois aspectos pertencentes à realidade sócio-cultural do
país. O primeiro se relaciona ao fato de que a população tem se tornado, sobretudo,
urbana nas últimas décadas, permanecendo apenas 30% deste contingente no campo, e o
segundo aspecto aponta para uma reconfiguração artística das tensões entre localismo e
cosmopolitismo.
Essa tese é defendida por Antonio Candido (2000) quando observa que é
possível identificar um movimento pendular entre localismo e cosmopolitismo na
tradição literária brasileira, no qual predomina a dicotomia campo/cidade para constituir
as fronteiras do território nacional.
Em outras palavras, Renato Cordeiro Gomes (1994) afirma que, no Brasil, criou-
se uma geografia literária de base euclidiana, fundando os traçados dos campos e das
cidades. Abrange desde José de Alencar, passa pelas propostas modernistas e
regionalistas de 30 e chega até a literatura documental da década de 70, numa tentativa


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Goiás.
Bolsista Capes. marcelaferreirasantana@gmail.com.
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de se construir uma identidade nacional, principal preocupação da intelectualidade


brasileira.
Contudo, a partir da década de 70 do século XX, alguns fatores vieram
contribuir para a desestabilização do topoi dicotômico (campo/cidade) favorecendo a
transição dos elementos temáticos e estruturais da narrativa brasileira contemporânea,
por não mais se organizar em torno de um projeto ideológico comum que precisa criar
ou recriar uma identidade para o país, como no Romantismo ou no Modernismo,
respectivamente.
Exemplo disso é o esmaecimento do tom de protesto contra o regime militar, a
literatura contemporânea deixa de se organizar em torno de um projeto estético-
ideológico concebido a priori, perdendo a consciência de grupo das vanguardas do
século XX, como era presente no movimento Antropofágico ou mesmo no regionalismo
de 1930. O crítico Ítalo Moriconi (2002) identifica essa característica na literatura
contemporânea e afirma que a mesma passa por um processo de “dramática
reorientação”, não apenas no plano dos temas, como também no plano dos
procedimentos narrativos.

[...] um aspecto crucial da alegada crise do final do século é o fato de que os


escritores emergentes se veem perdidos, não sabendo muito bem em que
valores ancorar suas obras. Cada escritor se vê diante da circunstância de ter
que criar seu próprio projeto individual, o qual deve incluir uma definição ao
menos implícita do tipo de destinatário, do tipo de leitor que quer, pois este
também perdeu sua nitidez e homogeneidade. Se no paradigma modernista
escrevia-se para construir a literatura brasileira, no final do século essa
justificativa ética da literatura já não é suficiente, e não há na verdade, por
enquanto, uma vontade tão grandiosa quanto aquela para ocupar o lugar
meta-formativo. (MORICONI, 2002, s/p).

Outro aspecto para essa desestabilização, apontado por Tânia Pellegrini (2008),
é a decadência da crença utópica de que a literatura, por meio da palavra, possui uma
força potencial de transformar as estruturas sociais da realidade brasileira, para dar
lugar, a partir da década de 70, a uma literatura pressionada pelas forças de uma
indústria cultural em vias de consolidação. Desse modo, não há mais sentido falar na
dicotomia localismo e cosmopolitismo, porque, hoje, vive-se numa sociedade que dá
passos largos em direção ao mundo globalizado, em que as fronteiras geográficas e
cartográficas são, aceleradamente, diluídas, colocando em xeque as tópicas que
consolidaram a Modernidade.

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Assim como à Modernidade, a literatura contemporânea atribui às cidades


significados que denotam a falência do conceito de progresso. Segundo Renato
Cordeiro Gomes (2000), há, nessa produção, a necessidade de inserir a impossibilidade
de representar uma geografia à Balzac. Dito de outro modo, a contemporaneidade se
constitui por meio de outros paradigmas, menos territorialistas, que valorizam a
diversidade e a multiplicidade dos temas e dos procedimentos estéticos.
Dessa forma, a cidade é construída por signos que configuram o não-
pertencimento, o não-enraizamento e o não-compartilhamento do homem com o lugar e
isso é refletido também na estrutura da obra por meio da relação entre a literatura e
outras mídias, da crise da representação do real e da fragmentação do enredo, entre
outras particularidades.
No geral, trata-se de uma literatura da subtração, que se ocupa das ausências e
perdas, daquilo que foi impossibilitado de alcançar na cidade e também no campo:
“Essa literatura é, dessa forma, produto de um tempo pós-utópico em que o presente
desaloja o futuro enquanto “terra-prometida”, pondo sob suspeitas as certezas que a
Modernidade anunciava.” (GOMES, 2000, p. 03). A visão baudelairiana da cidade pelo
flâneur, que a concebia pelo signo da fascinação, não existe mais, tampouco há a
eleição do campo como refúgio para as mazelas do espaço urbano, como fizeram os
neoclássicos.
Nesse sentido, Hotel Atlântico1, o romance de João Gilberto Noll publicado,
pela primeira vez em 1986, insere como temática a cidade e o trânsito, mas,
diferentemente do tratamento desse tema em outros movimentos literários como, por
exemplo, no Realismo do século XIX, que se preocupava em organizar o caos urbano
por meio de uma linguagem descritiva, essa narrativa se organiza para representar
também na estrutura os signos da instabilidade, do móvel e do efêmero.
Entretanto, antes de analisar o problema do espaço no interior do romance
supracitado, faz-se necessário uma breve introdução teórica sobre o espaço romanesco,
a fim de precisar alguns pressupostos imprescindíveis para a compreensão da
organicidade do espaço na narrativa de João Gilberto Noll.

1 Espaço e romance: um pouco de teoria

1
Todas as citações dessa obra, no presente trabalho, serão retiradas da publicação de 2004.

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Quando se pretende estudar o espaço no romance, o estudioso da literatura


esbarra em uma lacuna teórica, porque não encontra uma quantidade satisfatória de
estudos sobre o assunto, como é o caso das outras categorias narrativas. Sobre o espaço,
não são encontradas teorias consistentes como os estudos de Gerard Genette, Norman
Fridman ou Mieke Ball a respeito da problemática do narrador, por exemplo.
Sobre o espaço, enquanto categoria narrativa não é possível enumerar muitas
contribuições teóricas. E, geralmente, quando são encontradas, essas teorias tendem a
relacioná-lo com o espaço exterior à narrativa, pouco contribuindo para os estudos
literários, sendo mais úteis às ciências sociais. Como é o caso do estudo de Miécio Táti,
O mundo de Machado de Assis, no qual se preocupa apenas em reconstituir a paisagem
do Rio de Janeiro a partir do texto ficcional2.
Numa veia contrária a essa, pode-se destacar a obra de Osman Lins, Lima
Barreto e o espaço romanesco, em que, no seu estudo sobre o autor de Triste de fim de
Policarpo Quaresma, aborda a categoria narrativa do espaço a partir de uma observação
teórica interessante para a literatura. No presente trabalho, os pressupostos teóricos de
Osman Lins serão retomados para analisar o espaço que emerge da obra de João
Gilberto Noll:

A narrativa é um objeto compacto e inextrincável, todos os seus fios se


enlaçam entre si e cada um reflete inúmeros outros. Pode-se, apesar de tudo,
isolar artificialmente um de seus aspectos e estudá-lo – não, compreende-se,
como se os demais aspectos inexistissem, mas projetando-o sobre eles: neste
sentido, é viável aprofundar, numa obra literária, a compreensão do seu
espaço e do seu tempo, ou, de um modo mais exato, do tratamento
concedido, aí, ao espaço ou ao tempo: que função desempenham, qual sua
importância e como os introduz o narrador. Note-se ainda que o estudo do
tempo ou do espaço num romance, antes de mais nada, atém-se a esse
universo romanesco e não ao mundo. (LINS, 1976, p. 63-64).

O objetivo desse trabalho, então, é observar como o espaço se constitui no


universo romanesco para conferir-lhe uma tensão única: enquadrar a personagem e
caracterizá-la. Em Hotel Atlântico, o espaço serve para constituir um eu-em-trânsito que
não consegue estabelecer vínculos afetivos ou políticos com os lugares por onde passa.
Osman Lins (1976) diferencia espaço e ambientação. O primeiro relaciona-se
com a cartografia, a realidade empírica e é, portanto, denotativo e explícito. O segundo

2
Ver mais sobre isso no livro Espaço e Romance de Antonio Dimas.

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está ligado à atmosfera do ambiente, aos significados simbólicos, conotativos e


implícitos que deflagram de determinada situação no espaço físico, como a alegria, a
angústia ou o medo.

Por ambientação, entenderíamos o conjunto de processos conhecidos ou


possíveis, destinados a provocar, na narrativa, a noção de um determinado
ambiente. Para aferição do espaço, levamos nossa experiência de mundo;
para ajuizar sobre a ambientação, onde transparecem os recursos expressivos
do autor, impõe-se um certo conhecimento da arte narrativa. (LINS, 1976, p.
77).

Dessa forma, o espaço é o palpável e a ambientação é o sentido. O estudioso


desenvolve o conceito de ambientação a partir de três possibilidades gerais de realização
nos textos narrativos: franca, reflexa e dissimulada. A ambientação franca: “se
distingue pela introdução pura e simples do narrador”. (LINS, 1976, p. 79). Para
fundamentar a ambientação franca e diferenciá-la da reflexa, o autor retoma a teoria de
Philippe Hamon sobre a temática vazia e a plena, sendo, respectivamente, descrição
pura ou denotativa e narração conotativa ou carregada de significados simbólicos. A
ambientação franca consiste na descrição do espaço pelo olhar do narrador, por isso,
vazia de subjetividade e a reflexa, por sua vez, está próxima da temática plena, em que
o espaço descrito é impregnado pelas impressões subjetivas de uma personagem.
Para explicitar o que foi dito, Osman Lins (1976) apresenta como exemplo um
trecho de Madame Bovary em que Emma recebe a carta de Rodolfo anunciando o
rompimento entre eles e ela se dirige ao sótão para lê-la. O sótão é descrito por signos
que revelam um ambiente de angústia e isolamento da personagem. O ambiente é
matizado pela subjetividade de Emma, num momento em que a morte é iminente. “As
ardósias deixavam cair a prumo um calor pesado, que lhe apertava as fontes e a
sufocava”. (FLAUBERT Apud LINS, 1976, p. 81).
Se o espaço é descrito pela focalização da personagem, tem-se um caso de
ambientação reflexa. Nesse exemplo retirado de Flaubert, embora o narrador esteja em
terceira pessoa, não há dúvida de que o ambiente é descrito por meio da subjetividade
da personagem Emma.
Um exemplo que contraria essa ambientação reflexa e se constitui como franca
pode ser observado no terceiro capítulo de O Cortiço de Aluísio de Azevedo, em que se
predomina a composição do retrato do ambiente geral do cortiço. “Eram cinco horas da

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manhã e o cortiço acordava, abrindo não os olhos, mas a sua infinidade de portas e
janelas alinhadas.” (AZEVEDO, 1997, p.30).
Dito de outro modo, a ambientação franca é feita por meio do olhar do narrador
e a ambientação reflexa consiste na construção do relato por meio do olhar de um
personagem: “as coisas, sem engano possível, são percebidas através da personagem”.
(LINS, 1976, p. 82). Em ambos os casos, seja o narrador em terceira pessoa ou
personagem, a voz narrativa faz uma pausa no relato da ação para se ocupar de dados do
contexto, da moldura do espaço, no qual a personagem se insere.
Exemplo emblemático de pausa pode ser lido no décimo capítulo da primeira
parte do romance Senhora de José de Alencar. Quando Aurélia aparece pela primeira
vez a Fernando Seixas, após herdar a fortuna de seu antepassado. Ela aparece na porta
do salão e o narrador faz uma pausa na ação por seis parágrafos seguidos para fazer uma
longa e exuberante descrição do ambiente, do vestido de seda, do espírito altivo de
Aurélia e de sua entrada triunfal no salão.
Além disso, essa ambientação é reflexa porque quem vê essa exuberância do
ambiente é a própria Aurélia. “Atravessou a sala com o brando arfar que tem o cisne no
lago sereno, e que era o passo das deusas. No meio das ondulações da seda parecia não
ser ela quem avançava; mas que ao outros que vinham ao seu encontro”. Seixas vê a
mesma entrada de Aurélia de forma diferente: “Se Aurélia contava com o efeito de sua
entrada sobre o espírito de Seixas, frustrara-se essa esperança, porque os olhos do
mancebo [...] não viram mais que um vulto de mulher atravessar o salão e sentar-se no
sofá.” (ALENCAR, 1997, p. 47).
O terceiro tipo de ambientação é a mais complexa e de difícil apreensão. Ao
contrário das outras duas supracitadas, a ambientação dissimulada não suspende o relato
para emoldurar o ambiente, “exige a personagem ativa: o que a identifica é um enlace
entre espaço e ação.” (LINS, 1976, p. 83). Trata-se de uma reciprocidade harmônica
entre seres e coisas, entre personagens e espaço, “como se o espaço nascesse” dos
próprios gestos das personagens. Não há pausas na ação para emolduração do espaço.
Ambos, personagem e espaço, constituem-se numa relação dialética, um no outro.
Talvez um exemplo que Osman Lins não traz em sua análise, mas que merece
ser lembrado é a descrição inicial do romance Mrs. Dalloway de Virginia Woolf.

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Mrs. Dalloway disse que ela própria iria comprar as flores. Quanto a Lucy,
já estava com o serviço determinado. As portas seriam retiradas dos gonzos;
em poucos em pouco chegaria o pessoal de Rumpelmayer. Mas que manhã,
pensou Clarissa Dalloway – fresca como para crianças numa praia! Que
frêmito! Que mergulho! Pois sempre lhe parecera quando, com um leve
ringir de gonzos, que ainda agora ouvia, abria de súbito as vidraças e
mergulhava ao ar livre, lá em Bourton. Que fresco, que calmo, mas que hoje,
não era então o ar da manhazinha; como o tapa de uma onda; como o beijo
de uma onda; frio, fino, e ainda (para a menina de dezoito anos que ela era
em Bourton) solene, sentindo, como sentia, parada ali ante a janela aberta
que alguma coisa terrível ia acontecer; (WOOLF, 1980, p. 07).

Nesse excerto do romance de Virginia Woolf, não há pausa no relato para


descrever o ambiente de frescor da manhã que a personagem percebe. Ao contrário,
enquanto Mrs. Dalloway decide comprar as flores e ouve o ringir de gonzos, o ambiente
flui da própria personagem e é recoberto por uma sensação de calmaria que a leva a
mergulhar no passado de sua juventude em Bourton. Não há pausa para falar do
ambiente e depois voltar a ação. É como se o espaço nascesse da própria personagem,
numa relação dialeticamente recíproca.
Dito de outro modo, na ambientação dissimulada, tem-se a diluição da moldura
do espaço, assim como há a diluição da ordem cronológica. Presente e passado se
fundem, espaço e personagem também. Mrs. Dalloway oscila entre Londres e Bourton,
entre presente e passado, numa distensão temporal e espacial. Segundo Anatol
Rosenfeld (1969), trata-se da crise do ponto de vista perspectívico do Renascimento, em
que a noção de sujeito cognoscente entra em crise, perdendo sua posição em face do
mundo, e isso é incorporado no romance moderno como tema e como estrutura
narrativa. A ambientação dissimulada seria um desses recursos, juntamente com o fluxo
de consciência, a fragmentação do enredo e a fusão de níveis temporais e espaciais.
Além da ambientação e seus desdobramentos, Osman Lins (1976), também,
argumenta sobre as funções do espaço para a narrativa. Retomando Philippe Hamon e
Michel Butor, o autor afirma que o espaço na narrativa tem como principal função a
caracterização da personagem.

Tem-se acentuado, no espaço romanesco, como das mais importantes, sua


função caracterizadora. O cenário escreve Philippe Hamon, no estudo sobre
Émile Zola, “confirma, precisa ou revela o personagem”. Mais ou menos o
mesmo, lemos num estudo de Jean-Pierre Richard sobre os objetos em
Balzac: “É verdade que o objeto, mais frequentemente, tem aqui valor de
índice psicológico ou social.” Michel Butor, por sua vez, ocupando-se
especificamente dos móveis, sublinha que estes, no romance, não
desempenham apenas um papel “poético” de proposição, mas de

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reveladores, “pois tais objetos são bem mais ligados à nossa existência do
que comumente admitimos”. Continua: “descrever móveis, objetos, é um
modo de descrever os personagens, indispensáveis.”. (LINS, 1976, p. 97).

Mais adiante na discussão, o autor acrescenta que, apesar de mais importante, a


função caracterizadora não é a única função do espaço romanesco, podendo, também,
influenciar ou situar a personagem.
Retomando, mais uma vez, o estudo de Osman Lins (1976, p. 73), tudo na
narrativa – personagem, espaço, tempo, narrador – converge harmonicamente para
estabelecer a idéia geral da narrativa. No romance que aqui se propõe analisar, todos
esses elementos convergem para criar uma tensão entre homem e o lugar, fazendo
emergir desse espaço narrado um homem sem lugar, um incessante eu-em-trânsito.
Feita essa abordagem teórica sobre o espaço, passe-se, no próximo tópico, a análise
estrutural do romance em questão.

2 O espaço móvel e a personagem errante

A narrativa de João Gilberto Noll é marcada pela temática do trânsito. A


problematização do homem e do lugar não aparece apenas em Hotel Atlântico (1986)
como também em Rastros do Verão (1986) e Bandoleiros (1985). Tal problematização
ultrapassa o nível temático e se fixa também na estrutura narrativa para criar um “todo
compacto e inextrincável”, do qual sugere Osman Lins (1976, p. 63). Nessas narrativas,
o autor insere seus personagens andarilhos ou errantes em diferentes espaços: ônibus,
hospitais, hotéis, rodoviárias, todos carregados de signos que denotam o trânsito, a
deambulação e a impossibilidade de se fixar em um único lugar. Aquele que está em
trânsito não ocupa lugar nenhum.
Dessa forma, tudo na narrativa – espaço, narrador, tempo e personagens – se alia
ao signo da instabilidade. Segundo Osman Lins (1976, p. 63): “ocupar um determinado
espaço quer dizer: estar em repouso”. Por extensão, aquele que ocupa vários espaços em
um curto período de tempo, está em trânsito.
O romance Hotel Atlântico consiste em um relato de viagem de um ator
fracassado, que sai de um hotel em Copacabana, Rio de Janeiro, e vai parar em outro
hotel em Pinhal, Rio Grande do Sul, sua última parada. A viagem carrega em si os
signos do trânsito, daquele que saiu e ainda não chegou.

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O narrador é também protagonista e anônimo. Trata-se de um errante que não


tem um itinerário preparado a priori e parece ter sua viagem condicionada ao acaso das
circunstâncias encontradas pelo caminho. Sem saber o porquê, o personagem
simplesmente continua seu trânsito, passando por lugares e situações extremas, como
por exemplo, a experiência de quase morte, a amputação de uma perna e, por fim, a
própria morte. O percurso que faz é banal e se parece com uma fuga, mas que nem
mesmo o narrador-personagem demonstra saber as causas.
Nesse sentido, ao analisar a obra de Noll, Therezinha Barbieri (2003, p. 58)
afirma que:

[...] o leitor de apropria daquele olho ágil que focaliza o personagem e passa,
com este, a deslocar-se prazerosamente nesse cenário móvel, desenraizado
de tudo, esvaziado de subjetividade, privado de objetivos e de referenciais
que pudessem servir de norte, jogo de uma representação em crise,
igualmente partilhada por leitor e escritor.

Em suma, o percurso que o personagem faz pode ser sintetizado num esquema:
Rio de Janeiro – Florianópolis – Viçoso – Arraiol – Porto Alegre – Pinhal. O relato se
inicia com o personagem em um hotel no Rio de Janeiro, o qual decide partir. Do hotel
de Copacabana até a rodoviária, ele vai de táxi e, então, fica claro que ele não tem
itinerário, porque diz ao taxista que irá para Minas Gerais. Contudo, “um luminoso em
cima do guichê” (NOLL, 2004, p. 22) o faz decidir comprar uma passagem para
Florianópolis.
Todo o percurso é marcado e direcionado ao acaso. Segue de ônibus pela
rodovia Sul-Sudeste até Florianópolis. Durante essa viagem, senta-se ao lado de uma
americana que se suicida dentro do ônibus, ingerindo algum tipo de medicação. Com
medo de que lhe façam perguntas, o narrador-personagem sai pela cidade sem rumo e
encontra, ao acaso, dois rapazes que vão de carro para o Rio Grande do Sul e ele segue
viagem com os desconhecidos. Eles fazem duas paradas: a primeira em um bordel, no
qual passam a noite, a segunda parada é em uma fazenda próxima à rodovia, na qual, os
desconhecidos matam uma pessoa. Numa fuga prodigiosa, o narrador-personagem
encontra um homem com uma carroça que o leva até Viçoso, uma pequena cidade quase
na fronteira entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Dessa cidade, segue caminhando
para Arraiol, no estado do Rio Grande do Sul.

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Em Arraiol, tem sua perna amputada e precisa se estabelecer por um tempo,


mas, assim que recebe alta do hospital, continua sua viagem. Não há muitas explicações
sobre o estado de saúde ou de qualquer outro motivo que o levasse a essa incansável
partida, tampouco há algum indício de se estar à procura de algo maior para sua
existência. Não há o mergulho na subjetividade como em Virginia Woolf. Ao contrário,
embora seja narrativa em primeira pessoa, tem-se a ausência de reflexão e de
autoconsciência. O que importa é a viagem em si esvaziada de qualquer sentido
simbólico. De Arraiol, vai para Porto Alegre de carro com o enfermeiro Sebastião e, por
fim, chega à Pinhal, ao hotel Atlântico, onde morre.
Em forma de sumário, a narrativa segue o fluxo linear do tempo cronológico.
Sem fazer nenhuma analepse ou flash back para saber quais os motivos que levam o
narrador-personagem a partir, não é possível saber nada sobre sua origem ou raízes.
Pelo desenrolar da história, fica evidente a dificuldade em estabelecer vínculos. Em
algumas vezes até há uma inclinação em ficar em algum lugar, casar e adquirir vínculos
afetivos ou sociais, mas o que se sobressalta é a partida.
Retomando a definição de Osman Lins (1976) sobre a ambientação, em Hotel
Atlântico aparecerão dois tipos de ambientação a dissimulada e a reflexa. Os espaços
descritos antes do hotel Atlântico: do hotel no Rio de Janeiro a Pinhal, todas as
paisagens, sejam urbanas sejam naturais, só existem a partir do trânsito que o
personagem faz. O espaço surge enquanto ele caminha.

Subi as escadas de um pequeno hotel na Nossa Senhora da Copacabana,


quase esquina da Miguel Lemos. Enquanto subia ouvi vozes nervosas, o
choro de alguém. De repente apareceram no topo da escada muitas pessoas,
sobretudo homens com pinta de policiais, alguns PMS, e começaram a
descer trazendo um banheirão de carregar cadáver. Fiquei parado num dos
degraus pregado à parede. [...] Me senti arrependido de ter entrado no
naquele hotel. Mas recuar me pareceu ali uma covardia a mais que eu tinha
de carregar pela viagem. E então fui em frente. (NOLL, 2004, p. 9).

Nesse sentido, a ambientação é dissimulada porque não há pausa no relato para


fazer descrição da moldura ou do contexto, antes o espaço surge da própria ação.
Segundo Nei Dulclós (2004, Orelhas), essa característica presente nos romances de João
Gilberto Noll é influência do contexto da contemporaneidade em que não é mais
necessário fazer longas e detalhadas descrições do espaço, como no Realismo, ou
mergulhar na subjetividade, como os intimistas do Modernismo.

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Portanto, o autor:

Não quer ser enquadrado como escritor intimista, mesmo reconhecendo suas
preocupações com a subjetividade. Essa decisão é ditada pelo acervo
literário acumulado pelo tempo, já que reconhece ser impossível, hoje,
retroceder ‘às longas peregrinações dos heróis balzaquianos ou flaubertianos
do século 19’. [...] Sua opção, portanto, é reconhecer as limitações da nossa
época e deixar-se seduzir pela instantaneidade. (DULCLÓS, 2004, Orelhas).

Ao contrário da ambientação dissimulada em Mrs. Dalloway, obra tributária das


tópicas modernistas, em que o espaço está integrado à personagem Clarissa, em Hotel
Atlântico, os espaços vão surgindo na medida em que o personagem caminha e descreve
aquilo que vê, contudo não há a mesma integração e intimidade como em Virginia
Woolf. Essa ausência de intimidade está ligada ao fluxo de consciência, recurso
estrutural muito bem articulado na literatura inglesa e que não é empregado por João
Gilberto Noll. Sua personagem é achatada, desprovida de subjetividade, não por ser a
literatura contemporânea inferior àquela, mas porque o contexto de produção é outro.
Para Michail Bakhtin (1997, p. 370), a organicidade do romance, por ser um
gênero ainda em construção, imprime em si as acepções de cada contexto: “as
representações das linguagens são inseparáveis das visões de mundo e seus portadores
vivos, pessoas que pensam, falam e atuam em condições históricas e sociais concretas.”
Ou seja, a narrativa contemporânea, ao contrário do Realismo do século XIX, não
pretende ordenar o caos urbano por meio de uma linguagem objetiva e descritiva, mas,
pretende construir o efeito de caos, de palimpsesto, problematizando as fronteiras dos
gêneros, assim como a possibilidade da representação do urbano e do trânsito.
Os espaços surgem de uma necessidade imediata da ação do personagem: o bar
quando precisa comer ou a janela quando precisa acordar e reconhecer o lugar onde se
está. Segundo Osman Lins (1976, p. 84), na ambientação dissimulada, os “atos da
personagem [...] vão fazendo surgir o que a cerca, como se o espaço nascesse de seus
próprios gestos.” Além de não fazer pausas no relato para emoldurar o contexto, o
espaço, no texto de Noll, não é matizado pela subjetividade da personagem, pois essa é
emulada em toda narrativa, sendo, portanto, classificável como ambientação
dissimulada.
Em última instância, essa ambientação dissimulada serve para coadunar os
signos da instabilidade no romance. O personagem não quer guardar na memória esse

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espaço, então, por que emoldurá-lo? São lugares fugidios e transitórios, sem
significados profundos ou afetivos para o personagem, muito diferente do que ocorre
com Clarissa Dalloway ao lembrar Bourton. A relação do homem com o lugar em Hotel
Atlântico é mais superficial e não demonstra nenhuma intimidade ou afetividade. O
espaço não tem a mesma representação que tem para Clarissa.
Porém, quando o personagem-narrador chega ao hotel Atlântico, lugar que dá
nome ao romance, a descrição do espaço se faz pela ambientação reflexa. Pela primeira
vez em todo o relato, o espaço é revestido de alguma subjetividade. Embora sejam
sutilmente inseridas no relato, há algumas pausas para descrição do ambiente:

Encontramos um hotel. O hotel se chamava Atlântico. As letras


descansavam na parede branca. Bem na frente do hotel havia um poste com
luz. Em volta da luz se percebia uma névoa muito fina. [...] Era um salão
bem espaçoso, com muitas mesas, cheio de vidraças para a rua. Todas as
paredes descansavam. No fundo do salão havia uma abertura na parede,–
com a parte superior em arco –, que dava para a cozinha. (NOLL, 2004, p.
104).

Nesse trecho, pela primeira vez em todo romance, o narrador-personagem faz


uma pausa no relato para descrever o ambiente, o qual é matizado pela subjetividade.
Diferentemente dos outros espaços visitados, o personagem parece sentir-se em casa
nesse hotel. A palavra descansar é utilizada para definir o ambiente por duas vezes no
excerto supracitado: “As letras descansavam” e “Todas as paredes descansavam”. O
descanso indica repouso. Além disso, na sequência da narrativa, o personagem afirma
que se sente em casa nesse hotel.

Eu tinha me sentado numa cadeira que havia ao lado de uma pequena mesa.
Tirei o casaco, não que me sentisse acalorado, mas só pelo prazer de jogar o
casaco sobre a cama onde eu ia dormir, como se estivesse em casa. E eu
realmente me considerava em casa pela primeira vez, depois de tanto tempo.
(NOLL, 1976, p. 106).

A ambientação reflexa serve nesses momentos finais da narrativa para matizar o


ambiente com a subjetividade do personagem. Esses momentos finais de sua vida
demonstram certo afeto em relação ao hotel.
De acordo com Osman Lins (1976, p. 66), a viagem na narrativa é a alegoria do
destino humano, assim como o labirinto. Nesse caso, a viagem empreendida pelo
personagem de Hotel Atlântico o leva ao seu destino final: a morte, muitas vezes

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prenunciadas ao longo do caminho, na entrada do hotel em Copacabana, no ônibus do


Rio para Florianópolis, entre outras.
Além disso, Osman Lins (1976) ainda discute as personagens com função
espacial, trazendo como modelo o conto “Amor” de Clarisse Lispector, cujo cego tem a
função de se constituir como uma aparição que modifica o sentido da vida de Ana.
Em Hotel Atlântico, todas as personagens que esbarram com o narrador-
personagem estão ligadas aos signos da instabilidade, do transitório e do efêmero. Tanto
a recepcionista do hotel de Copacabana quanto o enfermeiro de Arraiol ou a americana
do ônibus, como também as relações sexuais do personagem, todas essas personagens e
os relacionamentos estão interpenetrados nesses espaços, hotel, hospital e ônibus, para
conferir-lhes a condição do instável, do móvel e do fugidio. Todos lugares são
construídos por signos de passagem, de trânsito.
Gaston Bachelard (1978, p. 202), em seu estudo sobre o espaço, afirma que a
casa é o lugar do acolhimento, da intimidade, da totalidade do ser e da proteção: “[...] a
casa nos permite sonhar em paz”. Em contraposição, está o lado de fora da casa: “[...]
posto na porta, fora do ser da casa, circunstância em que se acumulam a hostilidade do
universo”. É essa intimidade que não aparece em nenhum momento da narrativa de
Noll, no hotel Atlântico ela é sugerida, mas não vivenciada efetivamente pelo narrador-
personagem, até porque ele morre na noite em que chega ao hotel.
Diante disso, é possível afirmar que há, nessa obra, uma problematização do
homem com o lugar, porque esse se apresenta como inóspito, inseguro, fazendo emergir
dele indivíduos desterritorializados3.
Segundo Therezinha Barbieri (2003, p. 58), trata-se da representação de um
homem sem lugar no mundo, sem cidadania: “de um excluído do mundo do capital, do
trabalho e da moda”, podendo acrescentar nessa lista, o mundo da realização afetiva.
Em Hotel Atlântico, a condição de excluído não só geograficamente como
também política e afetivamente, cria um sujeito que não carrega as marcas do lugar de
onde saiu, tampouco se sabe para onde vai. Essa memória afetiva em relação ao passado

3
O termo “desterritorialização” é, inicialmente, definido pelos filósofos franceses Deleuze e Guattari, no
texto Anti-Édipo, mas, nesse projeto, ele assume o significado empregado por Flora Süssenkind, no texto
“Desterritorialização e forma literária”, e em outros autores como Renato Cordeiro Gomes.

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e ao lugar de origem, às raízes é inexistente assim como também não existem


expectativas utópicas em relação ao lugar-destino ou ao futuro.
Como exemplo de signo de errância percebido no romance, pode-se afirmar que
o personagem não leva nenhuma bagagem consigo, nenhum pertence que o fizesse
lembrar-se de alguma casa, da família ou de qualquer outro vínculo com o passado.
Quando conhece a americana, no ônibus, ela lhe dá uma jaqueta, mas essa é abandonada
na primeira oportunidade.

Passei com folga entre dois arames da cerca. Rasguei a calça num galho
rasteiro sem folhas. Depois tropecei alguma coisa, caí. O sol muito forte.
Levantei com certa dificuldade. Tirei a jaqueta e a joguei no chão. Alem de
me fazer suar ela me pesava demais. Abandonei-a sem que me desse a
menor vontade de me virar e olhá-la mais uma vez. (NOLL, 2004, p. 56).

Em obras contemporâneas, o que se observa é que o espaço urbano se configura


como o lugar da instabilidade, constituído pela fluidez e pelo móvel, em que se
esmaecem as fronteiras cartográficas e os vínculos de pertencimento. Nesse sentido,
Michel de Certeau (1994, p. 183) afirma que: “Caminhar é ter falta de lugar. É o
processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio. A errância, multiplicada
e reunida pela cidade, faz dela uma imensa experiência social da privação de lugar [...]”.
Se habitar significa compartilhar, pertencer e enraizar, àquele que caminha o habitar se
torna impossível.
O indivíduo que, sem cidadania, não consegue participar efetivamente das
particularidades afetivas, sociais, culturais e políticas produzidas e compartilhadas em
determinada localidade é expulso e impulsionado ao trânsito.
No romance de Noll, o narrador personagem é um errante, não busca lugar
algum, portanto, não está em busca de um lugar melhor. Alheio a tudo e a todos,
desprovido de autoconsciência e de reflexão aprofundada sobre o próprio drama, o ex-
ator viaja a deriva. Viagem que vai, paulatinamente, se tornando inviável: amputação da
perna, cadeira de rodas e muletas, obrigando-o a imobilidade e interrompendo não só a
viagem, mas a própria vida.
O lugar da impossibilidade, produto de um tempo disfórico e distópico, é a
cidade na literatura contemporânea, que cria um sujeito desterritorializado e sem
esperança de reterritorialização.

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Desterritorializado é o sujeito que não possui intimidade, enraizamento e


compartilhamento com as particularidades culturais, sociais, afetivas e políticas
engendradas em uma determinada localidade. A visão da cidade à flaneurie de
Baudelaire não encontra terreno na literatura brasileira contemporânea.
Segundo Rejane Cristina Rocha (2009, p.152):

Mesmo caótica e fragmentária, a imagem da cidade que emerge da obra de


Baudelaire é repleta de significados relacionados a um porvir pelo qual se
ansiava, a expectativas de um futuro em que a modernização se cumpriria.
Caos e fragmentação urbana, hoje, não surgem mais, na literatura, como
signos do ponto de partida de um desenvolvimento sócio-cultural que se
inicia, por isso incompleto e falho, mas como epílogo melancólico do que
restou do sonho.

A reterritorialização seria uma forma de assumir as particularidades de um novo


lugar, criando uma relação afetiva, de enraizamento e intimidade com a nova localidade.
Porém, isso não ocorre em nenhum momento do romance. Na acepção de Marc Augé
(1994), na cidade, há uma confluência de não-lugares, expressos por vias, hotéis,
praças, hospitais, rodoviárias, ruas e outros espaços de passagem, de trânsito. É nessa
situação que se encontra o narrador-personagem de Hotel Atlântico, não estabelece
relações de intimidade, compartilhamento com nenhum dos lugares por onde transita.
Ainda de acordo com o ponto de vista antropológico de Marc Augé (1994, p.
73), a intimidade estabelecida entre homem e lugar não acontece apenas no âmbito da
geografia, relacionado a limites e fronteiras, sobretudo se realiza na convivência e na
interação social:

[...] se um lugar pode ser definido como identitário, relacional e histórico,


um espaço que não pode ser assim caracterizado será definido como um
não-lugar. A supermodernidade é produtora de não-lugares, isto é, de
espaços que não são em si lugares antropológicos e que, contrariamente à
modernidade baudelairiana, não integram os lugares antigos: estes,
repertoriados, classificados, promovidos a 'lugares de memória', ocupam aí
um lugar circunscrito e específico"( AUGÉ, 1994: 73).

Essa relação problemática entre homem e lugar, desdobrada na narrativa de Noll


na temática do trânsito, na ambientação dissimulada, na personagem achatada e no
narrador em primeira pessoa, faz da metrópole um lugar inóspito e inabitável, criando
um homem sem lugar no mundo e localizando-o num entre-lugar ou num não-lugar.
Isso desestabiliza as tópicas modernas.

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Se a Modernidade concebe o futuro e a metrópole por signos utópicos, há, nesse


romance um questionamento das concepções modernas ao inserir um personagem sem
lugar na metrópole e mesmo no interior, um eu sem esperança de que o futuro será
melhor.
Roberto Schwarz (2000), no ensaio “As idéias fora do lugar”, discute a gênese
do processo de Modernidade que se constituiu no Brasil no século XIX e identifica
como dilema da sociedade brasileira a condição de país escravocrata e os preceitos
burgueses liberais da Europa, inviabilizando a efetivação das promessas modernas no
interior da estrutura sócio-política colonial.
Essa impropriedade entre forma de vida estrangeira e instituições patriarcais em
vigor na Colônia cria na sociedade brasileira aquilo que Beatriz Sarlo (2010) chamou de
cultura mesclada ou “modernidade periférica” para a sociedade argentina.
A obra contemporânea analisada, portanto, demarca uma problematização que
percebe a tensão entre o homem e os espaços rural e urbano. Da mesma forma, insere na
economia do texto ficcional a desarticulação do projeto de Modernidade que se
instaurou no Brasil desde a colonização e que se desdobrou em globalização, mas que
não cumpriu as promessas de progresso e cidadania prometidas.

Considerações finais

Como, então, narrar histórias tão fragmentadas e fugidias? Que procedimentos


narrativos seriam necessários para dar conta da complexidade de tais histórias? Segundo
Anatol Rosenfeld (1979, p. 95).

A técnica simultânea joga com grandes espaços e coletivos. Elimina, quase


sempre, o centro pessoal ou a enfocação coerente e sucessiva de uma
personagem central. Os indivíduos – quase totalmente desindividualizados –
são lançados no turbilhão de uma montagem caótica de monólogos
interiores, notícias de jornal, estatísticas, cartazes de propaganda,
informações políticas e meteorológicas, itinerários de bonde – montagem
que reproduz, à maneira de rapidíssimos cortes cinematográficos, o
redemoinho da vida metropolitana.

Em Hotel Atlântico e em obras literárias contemporâneas, o que se observa é que


o espaço urbano se configura como o lugar da instabilidade, constituído pela fluidez e

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pelo móvel, em que se esmaecem as fronteiras cartográficas e os vínculos de


pertencimento.
Segundo Michel de Certeau (1994) o discurso que constrói o “mais imensurável
dos textos humanos”, a cidade, não pode ser sistemático ou ordenado.
Ainda de acordo com Anatol Rosenfeld (1969) a visão perspectívica imposta
pelo Renascimento desaparece. De modo geral no romance moderno ou contemporâneo
o sujeito não pode mais ser demiurgo e tampouco consegue assumir uma visão ulterior
diante dos fatos que narra.
A posição que ocupa é de mero espectador, tão distante do indivíduo íntegro de
Descartes, representado na literatura do século XIX: “[...] o indivíduo já não tem a fé
renascentista na posição privilegiada da consciência em face do mundo e não acredita
mais na possibilidade de, a partir dela, poder constituir uma realidade que não seja falsa
ou ilusionista.” (ROSENFELD, 1969, p. 88).
Na materialidade do texto ficcional, essa visão aperpectívica do indivíduo
moderno se desdobra na fragmentação do enredo, no desprezo pela onisciência narrativa
e pela estrutura tradicional descritiva do espaço, na inserção da elipse, do dizer
escamoteado, que, por outro lado, podem estar vinculados à rarefação dos sentidos,
promovidos pelo bombardeio de imagens eletrônicas, dando a impressão de déjà-vu, em
que tudo já foi dito, narrado ou visto em alguma imagem da televisão ou do
computador.

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