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O mundo popular
Trabalho e condições de vida
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Luiz Antonio Machado da Silva

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O mundo popular
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Trabalho e condições de vida
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Organizadoras:
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Mariana Cavalcanti
Eugênia Motta
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Marcella Araujo
© Luiz Antonio Machado da Silva, 2018
© Papéis Selvagens, 2018

Coordenação Coleção Kalela


María Elvira Díaz-Benítez

Coordenação Coleção Kalela-Quipu


Federico Neiburg e Fernando Rabossi

Diagramação
Papéis Selvagens

Fotografia de Capa

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Acervo Casa de Oswaldo Cruz. Fundo Anthony Leeds


Revisão
Izabella Bosisio

Conselho Editorial lg
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Alberto Giordano (UNR-Argentina) | Ana Cecilia Olmos (USP)
Elena Palmero González (UFRJ) | Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG)
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Jaime Arocha (UNAL-Colômbia) | Jeffrey Cedeño (PUJ-Bogotá)


Juan Pablo Villalobos (Escritor-México) | Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ)
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Maria Filomena Gregori (Unicamp) | Mônica Menezes (UFBA)


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
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Silva, Luiz Antonio Machado da, 1941-


em

S586m O mundo popular: trabalho e condições de vida / Luiz Antonio


Machado da Silva; organizadoras Mariana Cavalcanti, Eugênia Motta,
Marcella Araujo - Rio de Janeiro (RJ): Papéis Selvagens, 2018.

Ex

320 p. : 16 x 23 cm - (Kalela-Quipu; v. 1)

Bibliografia: p. 307-317
ISBN 978-85-85349-10-3

1. Pobreza. 2. Trabalho - Aspectos Sociais. 3. Sociologia. I. Cavalcan-


ti, Mariana, 1976-. II. Motta, Eugênia, 1980-. III. Araujo, Marcella, 1989-.
IV. Título. V. Série
CDD 307.3364

[2018]
Papéis Selvagens
papeisselvagens@gmail.com
papeisselvagens.com
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Para minha neta,


o futuro efetivado
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Sumário

Apresentação por Nadya Araujo Guimarães 9

Introdução 13

Parte 1 Cotidiano e dinheiro

Do ponto de vista doméstico: gênero, familiaridade e


temporalidades do trabalho por Eugênia Motta 21

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1. A oposição entre o trabalho doméstico e o trabalho


feminino remunerado 29

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2. Notas sobre os pequenos estabelecimentos comerciais 45
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3. Estratégias de vida e jornada de trabalho 61
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Parte 2 Trabalho e cidade

O cotidiano do trabalho na cidade por Mariana Cavalcanti 77


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4. Mercados metropolitanos de trabalho manual e


em

marginalidade 83

5. Estratos Ocupacionais de Baixa Renda 183


Ex

6. Estratégias de trabalho, forma de dominação na


produção e subordinação doméstica de trabalhadores
urbanos (com José Sérgio Leite Lopes) 205

Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho

O desmanche do assalariamento e a dupla fragmentação


social por Marcella Araujo 237

7. A (des)organização do trabalho no Brasil urbano 245
8. Velhas e novas questões sobre a informalização do
trabalho no Brasil atual (com Filippina Chinelli) 255

9. Da informalidade à empregabilidade
(reorganizando a dominação no mundo do trabalho) 277

10. Trabalhadores do Brasil: virem-se! 299

Referências bibliográficas 307

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Apresentação

Quando uma reflexão é densa e prenhe de teoria, difícil se


faz rotulá-la, reduzindo em uma etiqueta aquilo que teima em nos
escapar pela força e riqueza dos argumentos. Tal é o caso deste livro.
Nele, Luiz Antonio Machado da Silva nos abre as portas d’O mundo
popular, deixando entrever como se tecem os elos entre trabalho e
condições de vida nas camadas subalternas.
Os dez textos que o compõem por certo poderiam ser
pensados como um exemplo de como se adensou, ao longo das quatro

ão
últimas décadas, a reflexão da sociologia brasileira do trabalho.


Sim, porque eles são um belo exemplo de como se pode responder
à necessidade de explorar, do ponto de vista analítico, o tema das

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modalidades de mobilização do trabalho. Em especial, as formas
do trabalho independente, informal, que, conquanto escapem às
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regulações da economia, do direito e da política, organizam o modo
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como sobrevive a maioria dos trabalhadores, como “ganham a vida”,


“trazendo dinheiro para casa”.
de

Entretanto, nesses dez capítulos, também flagramos os


caminhos de uma sociologia brasileira do urbano. Atenta ao cotidiano
das camadas populares, tal sociologia teria aceito o desafio de refletir
ar

sobre os modos de integração urbana, tomando como ponto de


pl

partida exatamente aqueles grupos sociais enquistados nos espaços


em

(quer os denominemos “favelas”, como à antiga, quer “comunidades”,


no jargão contemporâneo) em que tal integração parece menos
evidente àqueles olhos turvos pela parca acuidade analítica.
Ex

Mas, esses mesmos dez textos podem ser exemplos do valor


de uma (velha e boa) sociologia da vida econômica. Com efeito, atenta
aos elos entre mercados, cultura e vida cotidiana, a sociologia de
Machado vem desvelando, desde os anos 1970, as formas pelas quais
se tecem, entre nós, os fundamentos sociais das relações de troca,
mercantis ou não, explorando uma agenda que, mais recentemente,
nutriria a autonomeada (e não sem deliberada retumbância) “nova”
sociologia econômica.
Diria, por isso mesmo, que – em comum e enfeixando as
possibilidades abertas nos vários adjuntos acima referidos (“do
trabalho”, “do urbano”, “da vida econômica”) – há um substantivo
onipresente, a sociologia. O livro que agora nos chega traz de volta
10 | Luiz Antonio Machado da Silva

um conjunto de reflexões com que Luiz Antonio Machado da Silva nos


desafiou, ao longo dos quarenta últimos anos, e das quais resultaram
alguns dos melhores momentos da sociologia brasileira.
A sua reflexão sobre a sociedade brasileira tem um ponto de
partida analítico, confesso na “Introdução” com que o autor abre este
livro: os processos da vida econômica. Tem também um ponto de
vista empírico recorrente, “a favela”, que Machado logo adverte ao
leitor se tratar de uma metáfora, e não de um objeto que pudesse ser
estudado em si mesmo, como se os problemas sociais e o espaço nele
se enlaçassem de modo irresistível. Esse tropo lhe provê um ponto de
observação estratégico: o “mundo popular”. Tal prisma privilegiado

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do caleidoscópio tanto espelha o modo como a sociedade brasileira
equaciona os problemas integrativos a cada conjuntura, como


permite ao autor acompanhar a maneira pela qual os problemas e

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sua equação mudam ao longo do tempo, refazendo o modo como se
arma o caleidoscópio.
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Mais ainda, e como bem salienta Mariana Cavalcanti em
di

sua introdução aos textos que compõem a segunda parte do livro,


Machado nos brinda com “uma perspectiva etnográfica que incide
de

sobre grandes temas da sociologia (tanto no sentido das escalas de


processos quanto no sentido de se tratarem de temas consolidados)”.
Vale dizer, seus escritos nem de longe poderiam ser reduzidos à
ar

disjuntiva simplificadora que antepõe “micro” e “macro” e que povoa


pl

um certo imaginário sobre as estratégias de análise nas ciências


sociais. Macro e micro imbricam-se no programa investigativo de
em

Machado, alinhando trabalho etnográfico e análise sociológica, em


um modo de fazer ciência social que faz jus ao melhor da tradição da
Ex

sociologia.
Como um atrativo adicional deste livro, temos as
introduções a cada um dos seus blocos temáticos. Em “Cotidiano
e dinheiro”, “Trabalho e cidade” e “A reconfiguração do mundo do
trabalho”, Eugênia Motta, Mariana Cavalcanti e Marcella Araujo
deixam transparecer a riqueza interpretativa e a atualidade que
caracterizam os dez textos, dando a medida da qualidade do entorno
de intelectuais que a um só tempo têm se beneficiado e nutrido a
reflexão de/sobre Machado nesses anos mais recentes. Elas (autoras
e suas introduções) são precisas no esforço por situar cada um dos
capítulos tanto nos tempos do autor, como nos da ciência social que
lhe era contemporânea. Ademais, seguem pensando com/a partir
Apresentação | 11

de Machado na medida em que põem a dialogar os vários textos,


partindo dos eixos temáticos que os aglutinam. Ao fazê-lo, revelam-
nos quão atuais seguem sendo as ideias que foram plantadas por
Machado no decorrer desses dez trabalhos, e como elas se alinham
em um programa de entendimento da sociedade brasileira que o
livro nos deixa entrever.

Janeiro de 2019

Nadya Araujo Guimarães


Professora Titular em Sociologia do Trabalho

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Universidade de São Paulo - USP


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Introdução

Luiz Antonio Machado da Silva

Perhaps those inclined toward participant observation as a


technique of research are also more inclined to a
participatory approach to learning.
Michael Burawoy (Ethnography unbound, prefácio)

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O livro que o leitor tem em mãos é resultado do estímulo
e da ajuda inestimável das três colegas que apresentam as partes


em que estão distribuídos os artigos – Eugênia Motta, Mariana

lg
Cavalcanti e Marcella Araujo –, às quais agradeço pela leitura atenta
e pelas inúmeras conversas, cursos conjuntos, bancas, orientações
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de alunos, etc., que vêm enriquecendo minha reflexão nos últimos
anos. Elas reconhecerão a marca de cada uma neste livro.
di

Reúno aqui os principais textos de sociologia econômica


de

que escrevi ao longo de cerca de quarenta anos. Sublinho o termo


“sociologia”, para deixar claro que não é um livro de economia, embora
seja evidente que a base da reflexão sejam processos de natureza
ar

fundamentalmente econômica. Decidi não os atualizar, limitando-


pl

me a uma interferência muito superficial – uma ou outra troca de


palavras, eliminação de aspas desnecessárias, etc. Afinal, em seu
em

conjunto, apesar de compartilharem a mesma perspectiva, os artigos


expressam as transformações na conjuntura político-intelectual em
Ex

que foram escritos, e esta é uma característica relevante que seria


perdida se eu interferisse de modo mais substantivo.
Basicamente, toda a reflexão está baseada em minhas
pesquisas em favelas – principalmente no Rio de Janeiro, mas também
em Fortaleza e Recife. Entretanto, acho importante sublinhar que os
trabalhos aqui reunidos não são sobre favelas, como se elas pudessem
ser estudadas em si mesmas, mas nas favelas, onde se desenrolaram
os trabalhos de campo que deram origem aos textos. Sempre pensei
(e escrevi) que elas têm um lugar privilegiado nos debates que
constituem o modo de integração urbana e suas mudanças ao longo
do tempo. Mais do que uma área física contendo questões e processos
específicos, a favela é um tropo, uma metáfora: seu significado social
14 | Luiz Antonio Machado da Silva

varia segundo os problemas integrativos dominantes da conjuntura.


É por isso que esta coletânea fala do mundo popular e não de
uma área específica: o que penso estar em questão aqui é como a
exploração é enfrentada no dia a dia pelas camadas populares e como
daí deriva o modo de integração urbana.
É assim que o pressuposto básico que articula todos os
artigos é o caráter ativo, e não meramente reativo, das atividades dos
atores que constituem os personagens discutidos neste livro. Este
me parece um ponto de vista tão óbvio (mesmo sabendo que não é
consensual), que não pretendo elaborá-lo nesta introdução.

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*****


Eu gostaria de salientar alguns aspectos comuns a todos

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os textos reunidos. Para começar, é possível dizer que o livro tenta
apreender o que fazem pessoas pobres (há miseráveis entre elas, mas
vu
são relativamente poucas e têm participação no máximo tênue na
di

reflexão contida nos diversos artigos) para “levar dinheiro para casa”
e qual o sentido atribuído por elas a essa atividade. Esta afirmativa
de

deixa claro que procuro adotar o ponto de vista dos trabalhadores e


trabalhadoras em seu enfrentamento das implicações cotidianas dos
contextos institucionais que, ao mesmo tempo, os oprimem e lhes
ar

permitem sobreviver, não apenas no sentido fisiológico, mas também


pl

sociocultural. Falo, neste livro, de um segmento de classe – seu núcleo


pode ser apresentado como sendo o exército de reserva flutuante
em

–, mas estou interessado em entender como seus componentes se


comportam no “mundo da vida”. Quanto a adotar o ponto de vista
Ex

dos trabalhadores e trabalhadoras, desnecessário dizer que se trata


de uma perspectiva analítica e não de uma tentativa de identificação
existencial.
Vários artigos lidam com o tema da informalidade,
acompanhando criticamente as mudanças de ênfase no longo
e diversificado debate em torno de seu lugar no processo de
acumulação urbana. Nesta introdução, quero comentar aspectos que
não estão tratados diretamente, mas têm presença implícita em cada
um desses textos.
Talvez o mais importante seja o fato de que, quanto mais nos
afastamos do emprego regular e (relativamente) permanente, com
suas normas jurídicas responsáveis pelas condições de entrada e
Introdução | 15

saída do mercado (ele mesmo submetido à legislação), que obrigam o


trabalhador ou trabalhadora a se amoldar a protocolos variavelmente
detalhados, e nos aproximamos do polo da informalidade, que está
apenas consuetudinariamente institucionalizada e se caracteriza
pela inexistência de barreiras formais de entrada e saída do
mercado, mais claro se torna que o trabalho independente tem como
característica fundamental a criação pelas pessoas de demanda
para sua atividade laboral. Essa automobilização do trabalho não
é independente das formas juridicamente institucionalizadas de
exploração, mas ocorre em suas frestas e margens e contém um grau
de liberdade muito maior do que as primeiras.

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Claro está que as restrições de acesso ao mercado de emprego
regular podem estar acompanhadas pelas vantagens de pelo menos


alguma proteção jurídica, embora este nem sempre seja o caso. Por

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sua vez, a liberdade criativa característica da informalidade está
acompanhada de desvantagens. Não custa repetir que a principal
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delas é a exacerbação da competição pelos postos de trabalho criados
di

e administrados informalmente pelos próprios trabalhadores e


trabalhadoras. As barreiras de entrada no segmento do mercado
de

de trabalho dito dependente não apenas selecionam quem pode, a


cada momento, tornar-se membro da fração ativa dos trabalhadores
e trabalhadoras. Essas barreiras também constituem uma forma de
ar

organização que contrasta com a liberdade (jurídica) do trabalho


pl

independente.
Talvez o mais interessante dessas diferenças seja o fato
em

de que à automobilização do trabalho independente corresponde


quase sempre uma inevitável personalização: quanto menos
Ex

especializado o trabalhador ou trabalhadora, mais o seu sucesso,


medido em termos de estabilidade da ocupação e da remuneração
auferida, depende de atributos extraeconômicos (boa aparência,
simpatia, etc.), os quais, na ausência ou precariedade da qualificação
profissional, são os objetos característicos da competição. Deve-se
considerar que, embora os atributos mencionados contenham uma
dimensão, digamos, natural, eles podem e devem ser cultivados para
efeitos econômicos. Ou seja, há um componente de aprendizagem
envolvido, que não se limita ao conhecimento técnico progressivo
de uma profissão, e que é adquirido durante a prática da atividade
laboral – o que, evidentemente, favorece os mais velhos.
Alguns artigos incluídos no livro suspendem as referências
16 | Luiz Antonio Machado da Silva

aos processos informais, em favor de uma discussão que tenta se


aproximar de uma chave de leitura relativa ao par empregabilidade/
empreendedorismo. Acompanho, assim, a inversão das tendências
que constituíram a sociedade salarial, com suas expectativas de
pleno emprego, as quais enquadravam o debate sobre os processos
informais nas sociedades em desenvolvimento.
A propósito dessa drástica mudança, quero apenas fazer um
breve comentário muito geral, pois uma questão dessa magnitude
não cabe em uma pequena introdução como esta. Talvez o mais óbvio
é que, pouco tempo depois das crises do petróleo nos anos 1970,
se inicia um crescente processo global de desinstitucionalização

ão
do trabalho que o mundo vive até hoje, cujo centro é o completo
abandono da busca pelo pleno emprego que marcou o denominado


regime salarial, como se aquele ideal fosse inalcançável. Com isso,

lg
o secular protagonismo histórico da classe trabalhadora, cuja
atuação restringiu os aspectos mais selvagens da acumulação e
vu
foi responsável pela prevalência do que se chamou de capitalismo
di

organizado, vem perdendo progressivamente sua força, dando lugar


à ascensão do protagonismo empresarial. O resultado líquido dessa
de

enorme transformação foi uma tendência à desconstrução (mas não


o desaparecimento) da antiga ética do trabalho, que perde grande
parte de sua vigência político-cultural, pois encontra cada vez menos
ar

sustentação nas práticas econômicas. Vivemos, já há algum tempo,


pl

um intenso esforço ideológico de moralização do trabalho em torno


do par empregabilidade/empreendedorismo, que se apresenta
em

como o centro do debate contemporâneo a respeito do reajuste das


formas de manutenção da dignidade do trabalho.
Ex

Nessas condições, a instabilidade ocupacional tende a se


generalizar, atingindo também as camadas médias, para as quais
esta é uma condição de vida radicalmente nova. No entanto, para
as camadas populares, embora a mudança implique um forte
incremento na dificuldade de acesso a empregos regulares (além
de um rebaixamento da remuneração), a natureza das atividades
laborais continua aproximadamente as mesmas. Em outras palavras,
com o fim do regime salarial a degradação das condições de vida
afeta toda a classe trabalhadora, atingindo até mesmo os segmentos
mais protegidos, porém não da mesma maneira.
Introdução | 17

*****

Meu objetivo, com esta pequena introdução, foi deixar claro


que a) a opção pela ênfase na vida cotidiana dos trabalhadores e
trabalhadoras não constitui uma análise “micro”; b) que as formas
de mobilização do trabalho são variadas – embora não estanques –
e condicionam a combinação dos diferentes recursos operados na
inserção produtiva e no desenvolvimento das trajetórias ocupacionais;
c) que transformações nas relações de produção podem conservar
a vigência de relações mais antigas que, nas novas condições,
adquirem também novo significado histórico; e finalmente que d)

ão
a prática cotidiana das atividades laborais estabelece a mediação
entre economia e cultura, de modo que esses três elementos, ao


influenciarem uns aos outros, definem a conjuntura.

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Espero que a leitura desta coleção de artigos possa ser de
utilidade.
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Parte 1
Cotidiano e dinheiro
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Do ponto de vista doméstico: gênero, familiaridade e
temporalidades do trabalho

Eugênia Motta (IESP/UERJ)

Os três textos que se seguem têm em comum a análise


sobre os nexos entre trabalho assalariado e espaços, formas de
ganhar dinheiro e de usar o tempo que a ele se opõem e ao mesmo
tempo com ele se combinam. Os espaços privilegiados dessas
negociações são as casas e os arranjos familiares. Os dois textos

ão
iniciais desta parte do livro foram publicados pela primeira vez na


obra Mudança Social no Nordeste: a reprodução da subordinação,
de 1979. No primeiro, Machado investiga a relação de oposição

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e complementaridade entre o trabalho feminino dentro e fora
de casa. No segundo, trata da articulação entre assalariamento e
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comércio. O terceiro texto foi publicado alguns anos depois, em
di

1984, e aborda as estratégias coletivas de alocação do tempo de


trabalho pelas famílias e unidades domésticas.
de

Nos três textos, o que ocupa Machado é a investigação


das articulações entre a produção propriamente capitalista e as
estratégias de pessoas e famílias para conseguirem manter-se
ar

vivos e terem futuro. Em termos marxistas clássicos: a relação


pl

entre produção e reprodução da força de trabalho. Para além disso,


em

porém, Machado toca em temas caros aos estudos sociais sobre


economia, sem fazer referência direta a eles e mesmo adiantando
discussões que só ganhariam destaque décadas depois. Nesta
Ex

apresentação, saliento alguns desses pontos, propondo inverter a


lógica mais explícita dos textos e colocar seus achados etnográficos
em primeiro plano.
Chama atenção em toda obra de Machado, e o torna um autor
singular, a combinação sofisticada entre sensibilidade etnográfica
e análises (sociológicas) de grande alcance. A atenção do autor às
experiências reais de trabalhadores e trabalhadoras, captadas com
base em suas próprias concepções e práticas concretas, lastreia o
trabalho de sistematização cuidadoso, de modelização sociológica e,
por fim, da produção de interpretação de grande abrangência. Essas
não são operações simples, apesar de Machado fazer parecer que
sim, com sua escrita direta e parcimoniosa.
22 | Luiz Antonio Machado da Silva

Uma das qualidades dessa arquitetura (etnográfica-


sociológica) é a possibilidade de múltiplas leituras de um mesmo
material e da produção de novas conexões e enquadramentos teóricos
que resistem às conjunturas específicas. Os textos que se seguem
são, por exemplo, sobre gênero, familiaridades e temporalidades,
apesar de Machado não ter usado nenhuma dessas palavras.
Especialmente no primeiro texto, sobre o “mundo da costura”,
mas também nos outros dois, Machado mostra a centralidade
das especificidades das experiências femininas e masculinas. As
assimetrias em relação à possibilidade de conseguir certo tipo de
trabalho e às obrigações domésticas são determinantes nos arranjos

ão
complexos colocados em prática pelos trabalhadores e trabalhadoras
na sua busca por ganhar a vida. O autor trata de uma questão clássica


na literatura feminista, que é a relação entre subordinação feminina

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e a ligação das mulheres com o espaço doméstico. Sem escolher a
casa como prisão ou como espaço de poder real, Machado mostra as
vu
ambiguidades presentes e as negociações operadas pelas mulheres
di

em relação a suas próprias atividades e de outros membros da família.


Destaca a subordinação determinada pela baixa remuneração do
de

trabalho pouco especializado, que obriga a dedicação quase exclusiva


de homens e mulheres a atividades para se ganhar dinheiro.
Machado também demonstra como laços de proximidade
ar

e distanciamento, de pertencimento e existência mútua – aquilo


pl

que chamamos de família – são reciprocamente construídos pelas


relações com o dinheiro e o trabalho. Os três textos apresentam de
em

maneira clara as conexões entre a gestão do dinheiro e os esforços de


construir e manter relações entre pessoas, tocando em uma questão
Ex

clássica da sociologia e da antropologia da economia. Nos textos,


estão presentes as intrincadas relações entre confiança, reputação e
obrigações familiares e as dinâmicas mais gerais dos mercados.
Ao tratar do dinheiro como parte de relações sociais mais
amplas, Machado ajuda a delinear o universo moral dessas pessoas,
demonstrando como as concepções sobre vidas dignas e honradas,
sobre ações consideradas justas ou espúrias estão no centro
das escolhas e das formas de valorar pessoas e coisas. Contesta
etnograficamente a racionalidade instrumental como motor
exclusivo das práticas econômicas, sem negar os condicionantes
materiais e a existência de racionalidades calculadoras.
O autor considera os métodos práticos de alocação do
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 23

tempo dos trabalhadores como o espaço possível de manipulação


por parte deles das suas condições gerais de vida. A combinação
entre as lógicas diárias, sazonais e os ciclos de vida pessoais e
familiares aparecem como fatores determinantes na compreensão
das formas de vida.
Esses textos tratam, portanto, das formas vividas de
articulação entre práticas econômicas – suas regulações, as
oportunidades e constrangimento que oferecem –, a continuação
da vida e a construção e manutenção de relações significativas
e moralmente valorizadas entre trabalhadores e trabalhadoras
brasileiros das classes populares. É por esta razão, por analisar

ão
questões profundas e permanentes tanto sociológica quanto
politicamente, que seu significado não pereceu com o passar de mais


de três décadas.

lg
No texto sobre trabalho feminino, o autor enuncia a
existência de um conflito fundamental entre o trabalho dentro
vu
e fora de casa para as mulheres. O trabalho remunerado no
di

domicílio seria um híbrido entre trabalho doméstico e assalariado


que, simultaneamente, arrefece e mascara essa oposição. Isso
de

se dá a partir de uma série de negociações levadas a cabo pelas


trabalhadoras. O texto trata justamente da forma como elas fazem
a gestão do tempo, das atividades de uma ou outra “esfera” e das
ar

pessoas mais próximas ou mais distantes em arranjos complexos


pl

e instáveis. Machado mostra que, ao mesmo tempo que estão


submetidas a regimes de exploração e subordinação, elas possuem
em

uma série de meios para amenizar seu esforço e sofrimento.


O mundo da “costura” reúne várias características que
Ex

permitem configurações particulares que o situam “ao mesmo tempo


dentro e fora do âmbito do trabalho doméstico” (p. 33). Costurar é
uma atividade relativamente especializada (nem todas as mulheres
costuram, diferentemente da lavagem de roupa, por exemplo),
permitindo uma freguesia composta por vizinhos.
Machado analisa as implicações dessas relações de
proximidade com a clientela e potencial clientela, traçando as
particularidades da formação do mercado da costura. O uso de
familiares e vizinhos para trabalhos experimentais e na fase de
formação da costureira é fundamental. O local de moradia é, portanto,
um fator central, assim como a prática de preços diferenciados a
diferentes pessoas. O autor mostra como o preço pago pelo serviço
24 | Luiz Antonio Machado da Silva

de costura é composto a partir de equivalências nem sempre


relacionadas ao esforço empreendido no serviço. Alguém que ajuda
em uma atividade, por exemplo, com quem se pode contar, pode
pagar menos. Além disso, a fim de garantir a demanda pelos serviços
e manter sua honra, é preciso saber operar com valorações morais,
segundo as quais, por exemplo, se deve cobrar menos de pessoas
mais pobres ou costurar de graça para membros da família.
Machado conclui o texto tratando de um tema central,
que aparece com destaque nos outros dois: a gestão do tempo. As
trabalhadoras empreendem o trabalho remunerado de costura nos
espaços que conseguem liberar entre as atividades de trabalho

ão
propriamente doméstico. Fazem isso dormindo menos, acionando
o trabalho gratuito de outras pessoas da família – liberando-as do


trabalho doméstico ou assumindo parte do trabalho remunerado –,

lg
ou contratando força de trabalho. O autor sugere, portanto, que as
atividades ligadas à casa e ao cuidado são prioritárias em relação
vu
ao trabalho pago, demonstrando que as mulheres gestoras da casa
di

são as responsáveis últimas e inegociáveis pelas atividades de


manutenção da vida, como cozinhar, limpar, cuidar dos filhos.
de

No segundo capítulo, Machado trata de outra oposição:


aquela entre o assalariamento e o pequeno negócio. No texto, o
autor demonstra que, apesar de existirem aspectos contraditórios
ar

e concorrentes entre o trabalho por salário e, especialmente, o


pl

comércio, o que os trabalhadores fazem é desenvolver formas


combinadas de modo a se beneficiarem de um ou outro tipo de
em

atividade. A tentativa dos trabalhadores é de desfazer o máximo


possível a oposição e a perenidade da escolha por um ou outro
Ex

caminho, deixando aberta a possibilidade de volta ao trabalho


regular mesmo quando optam pela demissão, por exemplo.
O autor faz uma discussão explícita e ainda pertinente
sobre a suposta preferência pela autonomia representada pela
opção de deixar o trabalho assalariado para “negociar”. Ele se opõe
à hipótese de uma reminiscência cultural camponesa que levaria
os trabalhadores a rejeitar, quando possível, a subordinação pelo
assalariamento. O debate contemporâneo sobre empreendedorismo
nas classes populares pode ser visto como uma atualização das
propostas teóricas rejeitadas por Machado, e o material que ele
apresenta ajuda a pensar sobre essas hipóteses atuais.
Assim como as costureiras que prestam serviço aos seus
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 25

vizinhos e conhecidos, os comerciantes precisam administrar as


relações de pessoas próximas e os ganhos monetários segundo
critérios intrincados. O trabalho não pago de membros da família
também aparece nesse texto como um fator importante na gestão
dos pequenos negócios. Outra questão central é a gestão da venda a
prazo, o “fiado”. Essa é uma forma inescapável de crédito, cabendo aos
comerciantes fazer com que não prejudiquem os ganhos. Machado
mostra como isso vai da escolha dos produtos que são colocados à
venda até o conhecimento sobre a quantidade e a regularidade dos
ganhos monetários dos clientes.
O terceiro capítulo trata propriamente da gestão coletiva de

ão
jornadas de trabalho de arranjos domésticos e familiares. Machado
demonstra que o espaço doméstico é mais flexível no que diz


respeito aos regramentos do trabalho assalariado capitalista e, por

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esse motivo, é o âmbito em que há possibilidade de ajustes. Se, nos
outros dois textos, o destaque do autor em relação ao tempo eram os
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ordenamentos pessoais, nesse fica mais patente que eles nunca são
di

individuais. O autor trata, assim, da relação entre a manipulação de


oportunidades e restrições dos mercados e a produção de relações
de

domésticas e familiares. A incorporação ou expulsão de membros


da família por meio da migração ou da circulação de crianças, por
exemplo, é uma dinâmica compreensível a partir da observação
ar

dessas estratégias.
pl

Ao permitir que os arranjos reais emerjam por meio da vida


das pessoas, Machado as restitui, teoricamente, de sua capacidade
em

de fazer escolhas, de traçar estratégias e planejar o futuro. Se, nos


estudos sociais sobre economia, ainda temos (temos?) que enunciar
Ex

que a racionalidade instrumental não guia as ações como supôs


alguma teoria econômica, restituir as pessoas de suas próprias
racionalidades e razões, especialmente aquelas às quais isso foi
política e teoricamente negado – os pobres –, parece ainda um
projeto necessário.
Trazer novamente a público esses três textos tem ainda um
significado importante e absolutamente contemporâneo. O país
passa por um momento de crise econômica e retração de direitos,
tendo sido feita recentemente uma reforma nas leis de proteção
ao trabalho – diminuindo direitos dos trabalhadores –, e outras
sendo planejadas para o futuro próximo. A leitura desses textos
mostra a complexidade dos arranjos e estratégias empreendidos
26 | Luiz Antonio Machado da Silva

por trabalhadores e trabalhadoras no esforço de ganhar a vida


e planejar o futuro. O assalariamento, que nunca chegou nem
perto de abarcar a maior parte da população de maneira direta, é
uma base fundamental de sustentação das classes populares, com
efeitos extensivos às famílias. As conclusões e análises que Machado
formulou há décadas nos permitem hoje refletir sobre os possíveis
impactos do desmonte da proteção ao trabalho, considerando a
interdependência com outras formas de ganhar dinheiro, a sua
centralidade no planejamento do futuro e da organização familiar.
Se, nas décadas de 1970 e 1980, Machado já reconhecia que a
pouca regulação pelo Estado das relações de trabalho fazia com

ão
que as pessoas dedicassem quase todo seu tempo a garantir a sua
sobrevivência, podemos imaginar o quão drásticas podem ser as


consequências de seu desmonte.

lg
A etnossociologia ou socioetnografia de Luiz Antonio
Machado da Silva, como os leitores poderão constatar, mantém seu
vu
frescor teórico e político, permitindo novas leituras e revisitas ao
di

seu material a partir de questões contemporâneas pujantes.


de
ar
pl
em
Ex
Ex
em
pl
ar
de
di
vu
lg

ão
Ex
em
pl
ar
de
di
vu
lg

ão
1. A oposição entre o trabalho doméstico e o trabalho
feminino remunerado1

Trabalho doméstico e trabalho remunerado

Em termos gerais, pode-se distinguir três tipos de trabalho


feminino: o trabalho doméstico, o trabalho a domicílio e o trabalho
assalariado regular. O primeiro refere-se às chamadas “atividades do
lar”, não remuneradas e que servem de mediação entre a aquisição e
o consumo das mercadorias necessárias à sobrevivência da família. O

ão
segundo diz respeito àquelas atividades que, embora remuneradas,


são exercidas no âmbito da própria esfera doméstica – isto é, o
trabalho remunerado que pode ser realizado em casa, implique

lg
ou não vínculo empregatício, como se verá adiante. O terceiro
relaciona-se às atividades femininas, também remuneradas, que se
vu
exercem fora da esfera doméstica e que podem ser descritas, em uma
di

primeira aproximação, como as que são diretamente dependentes


do ritmo do capital.
de

Por razões cuja análise foge aos limites deste capítulo, a


execução e/ou administração do trabalho doméstico tem sido de
responsabilidade da mulher.2 Ao mesmo tempo, as condições de vida
ar

dos grupos estudados exercem forte pressão para que as mulheres


pl

desempenhem algum tipo de atividade remunerada.3 Tal situação


em

configura um conflito entre o trabalho doméstico e o trabalho


remunerado, uma das dimensões da qual se revela na oposição “casa
x trabalho” ou, em outras palavras, esfera doméstica x esfera pública
Ex

de atividades.
Esse conflito manifesta-se de forma mais nítida e acabada no
caso do trabalho assalariado regular, que impõe horários e rotinas

1
In: J. S. Leite Lopes et al. 1979. Mudança social no Nordeste: a reprodução da
subordinação. Rio de Janeiro: Paz e Terra. pp. 195-209.
2
Quanto à divisão familiar do trabalho e suas bases, veja-se o texto de Alvim (1972).
3
É irrelevante para a discussão central deste capítulo a questão da
complementaridade do trabalho feminino – questão esta que, aliás, nem sempre
tem sido bem enfocada. Para um possível tratamento do problema, relacionando o
caráter complementar do trabalho feminino (e infantil) à estrutura de autoridade
dentro da família – e não às características intrínsecas da atividade laboral
propriamente dita, ver Alvim (1972).
30 | Luiz Antonio Machado da Silva

à força de trabalho estabelecidos exclusivamente em função dos


interesses da empresa. Assim, é fartamente conhecido que muitas
mulheres deixam de trabalhar com o início do casamento, para voltar
depois que os filhos adquirem certa idade.4 Nota-se também que a
dificuldade de se conviver com esta contradição – trabalho doméstico
x trabalho assalariado regular – é indiretamente reconhecida pelas
próprias empresas, muitas das quais têm uma política de pessoal que
impede ou dificulta a entrada ou permanência de mulheres casadas.
Uma das formas de reduzir o conflito, tornando-o menos
aparente (e, portanto, menos “consciente”), é substituir o trabalho
assalariado regular pelo trabalho a domicílio. Se é verdade que a

ão
única possibilidade de associação, ainda que contraditória, entre
o trabalho doméstico e o trabalho remunerado é a duplicação da


jornada de trabalho, o trabalho a domicílio organiza-se de forma tal

lg
que permite uma série de manipulações por parte da trabalhadora.
Assim, o trabalho assalariado regular impõe necessariamente
vu
que o tempo dedicado “à casa” (ao trabalho doméstico) seja o que
di

sobra do tempo dedicado “ao trabalho” (o trabalho remunerado).


Ao contrário, no trabalho a domicílio, embora o volume total do
de

tempo de trabalho possa até ser maior, a divisão entre estes dois
polos é menos nítida e se organiza em função dos interesses e
possibilidades da própria trabalhadora. Em outras palavras, se o
ar

trabalho assalariado regular supõe um tempo contínuo de trabalho


pl

organizado em função da produção,5 o trabalho a domicílio dá


margem para que a trabalhadora jogue com a continuidade/
em

descontinuidade de seu tempo de trabalho alocado na atividade


remunerada em função do ritmo de seu próprio cotidiano.
Ex

Partindo desta linha de raciocínio, o objetivo central deste


capítulo é a análise da tensão entre o trabalho doméstico e o trabalho
a domicílio. Em primeiro lugar, porque é exatamente quando o

4
É evidente que esta é apenas uma tendência geral, já que as estratégias individuais
variam muito, dependendo, entre outras coisas, do tamanho do grupo familiar,
proximidade de parentes, disponibilidade de uma rede de contatos, vantagens do
próprio emprego, etc.
5
Há exceções, como a de trabalhadores que têm dois turnos de trabalho diário,
com um longo intervalo entre eles. Ver a respeito o texto de Jorge Eduardo Durão
no livro citado na nota 1. Note-se ainda que o termo “produção” deve ser entendido
em seu sentido mais amplo, pois o argumento vale também para a distribuição. Cf.
também os comentários feitos sobre os empregos domésticos neste capítulo.
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 31

trabalho a domicílio entra em jogo que a oposição entre a esfera


doméstica e a esfera pública é menos clara, pelas razões apontadas
anteriormente. Em segundo, porque, entre os grupos estudados,
parece ser raro o envolvimento no trabalho assalariado regular, em
particular por parte de mulheres casadas e com filhos. Dessa forma,
por exemplo, o seguinte trecho de entrevista mostra que o processo
de separação entre a mulher e seu emprego (regular) pode ocorrer
antes mesmo que as “obrigações domésticas” se concretizem:

Procurava emprego nas fábricas. Eu saía de manhã para procurar


emprego nas fábricas e não encontrava […] Aí fui trabalhar numa

ão
fábrica. Bem aqui perto. Trabalhei uma porção de tempo. De menor
[…] Aí fiquei trabalhando em casa […] Ele [o noivo] me ajudava


muito. Então ele ganhava dinheiro e me pagava esses cursozinhos
que eu fiz. Ele pagava passagem de ônibus, tudinho. Até roupa ele
lg
me dava. Me dava de tudo. Pra eu deixar de trabalhar.
vu

Em terceiro lugar, a análise da tensão entre o trabalho
di

doméstico e o trabalho a domicílio deve-se a uma razão talvez


prosaica, porém não de pequeno peso. Trata-se do fato de que o
de

material coletado durante a minha pesquisa é mais abundante no


caso desta modalidade de trabalho remunerado. Aliás, isto pode
ar

servir como indício de que, nos grupos estudados, o trabalho


assalariado regular é relativamente raro entre as mulheres.
pl

Neste ponto, merece menção o caso particular dos empregos


em

domésticos. Dadas suas características, dificilmente se poderia


considerá-los como trabalho assalariado regular, tal como essa
Ex

expressão é aqui utilizada. No entanto, são também raros os casos


de “mães de família” atuando como empregadas domésticas. Isto
chama a atenção para o fato de que, como mencionado, uma das
dimensões do conflito entre o trabalho doméstico e o trabalho
remunerado se dá no âmbito da oposição entre a esfera doméstica
e a esfera pública do trabalho feminino. Não resta dúvida de que,
deste ponto de vista, o emprego doméstico (que geralmente implica
dormir na casa onde a trabalhadora presta serviços) configura um
caso limite, pois simplesmente elimina qualquer tempo disponível
para a execução do trabalho doméstico – que, às vezes, nem sequer
semanal é. Aqui, o conflito só pode ser resolvido pela eliminação
pura e simples de um de seus polos. No caso de mulheres casadas,
tudo leva a crer que a tendência é eliminar a esfera pública, como o
32 | Luiz Antonio Machado da Silva

demonstra um fato interessante: embora tenham sido encontradas


pouquíssimas domésticas nos grupos estudados, há bom número
de ex-empregadas domésticas e de lavadeiras. Admitindo-se que
não existem diferenças significativas na relação de emprego entre
as “empregadas domésticas” e as “lavadeiras”,6 isto sugere que o
conflito se dá principalmente em torno do lócus (e do ritmo, como se
verá mais adiante) de realização das tarefas concretas – doméstico
x público: “Pergunta: Desde que vocês casaram, você continuou
trabalhando em casa de família? Informante: Deixei, casa de família
deixei. Agora eu trabalho em casa, né? Lavar roupa de casa, de fora”.
Estas considerações talvez sejam suficientes para justificar

ão
a ênfase sobre o trabalho a domicílio. Quanto à forma de discuti-
lo, optou-se por, ao invés de lidar com todos os tipos e formas


dessa modalidade de trabalho sobre as quais se tem informações,

lg
centralizar o tratamento empírico em torno da “costura”, agregando-
se exemplos de outras atividades concretas quando necessário.
vu
Esse procedimento justifica-se por duas razões. Em primeiro lugar,
di

parece plausível supor que as condições do trabalho a domicílio


não variam de forma significativa de acordo com o tipo particular
de

de atividade concreta desempenhada.7 Em segundo lugar, porque, a


partir dessa suposição, acredita-se que “a costura” – dentre os tipos
de trabalho a domicílio sobre os quais se possui informações – é o
ar

conjunto de atividades que concretiza empiricamente de forma mais


pl

clara o conflito entre o trabalho doméstico e o trabalho a domicílio.


Assim, a costura retém toda a ambiguidade, discutida no início do
em

capítulo, desse conflito – ao contrário, por exemplo, da lavagem de


roupa. Para os grupos estudados, esta, como atividade concreta, é
Ex

parte integrante e necessária ao trabalho doméstico; neste sentido,


a lavagem de roupa, como trabalho a domicílio, não seria mais do
que uma “exteriorização” da esfera doméstica (ver o depoimento
acima: “lavar roupa de casa, de fora”). Entretanto, o caso da costura é

6
Exceto, talvez, no que diz respeito à duração dessa relação: parece que, como
tendência geral, as empregadas domésticas trabalham mais tempo para o mesmo
patrão do que as lavadeiras. Admite-se a imprecisão conceitual de ambas as
expressões – “empregadas domésticas” e “lavadeiras” –, que foi mantida porque os
problemas teóricos que surgiram de uma tentativa de elaboração mais detalhada
não poderiam ser discutidos nos limites deste capítulo.
7
Ao mesmo tempo, não há como negar que essa suposição só pode transformar-se
em certeza a partir de um trabalho comparativo que não foi possível empreender.
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 33

mais complexo, pois essa atividade tem uma dupla natureza: de um


lado, ela não é necessariamente parte do saber indispensável para
o desempenho do trabalho doméstico (nem todas as mulheres do
universo estudado sabem costurar, ao passo que todas sabem lavar);
de outro, além de se tratar de um saber que pode ser especial ou
não, enquanto trabalho a domicílio, a costura isola-se do trabalho
doméstico por requerer um equipamento relativamente caro, a
máquina de costura. Desse modo, a costura enquanto atividade
concreta estaria ao mesmo tempo dentro e fora do âmbito do
trabalho doméstico.
Em contrapartida, o caráter “semidoméstico” da costura

ão
manifesta-se em outra dimensão importante na escolha para
centralizar o tratamento empírico do problema estudado neste


capítulo. Já foi dito que, enquanto saber específico, a costura está

lg
menos ligada ao trabalho doméstico do que a lavagem de roupa,
sendo seu aprendizado menos “natural”. No entanto, a lavadeira,
vu
exatamente porque lavar roupa é conhecimento universal entre as
di

mulheres dos grupos estudados, tem que procurar seus fregueses


tendencialmente em outros estratos. A costureira, ao contrário, por
de

deter um saber e um equipamento menos difundidos, geralmente


obtém sua freguesia entre vizinhos e conhecidos.8 De modo que,
deste ponto de vista, a oposição entre esfera doméstica e esfera
ar

pública é menos marcada para a costureira.


pl

Se, pelas razões já expostas, no caso do trabalho a domicílio


a oposição “casa x trabalho” é menos aparente do que no trabalho
em

assalariado regular, as considerações acima – indicando toda a


ambiguidade de que se reveste enquanto atividade concreta, apesar
Ex

de reter as características de um saber relativamente específico


– parecem justificar a escolha da costura como ilustração-tipo.

8
Seria absurdo pretender que não existam lavadeiras trabalhando para vizinhos
ou costureiras com fregueses de outros estratos que não o seu próprio. Aqui, fala-
se apenas em tendências gerais, que são importantes por marcarem a atividade
enquanto tal. No caso da lavagem de roupa, os desvios dessas tendências parecem
ocorrer em situações de “crise” familiar, tais como: famílias incompletas, como, por
exemplo, homens solteiros, viúvos sem filhas em idade de “tomar conta da casa”,
etc.; os raros casos em que a mulher “trabalha fora” (trabalho assalariado regular,
empregos domésticos) e a própria família não dispõe de membros aptos para
executar as tarefas domésticas que lhe caberiam, etc. Em outras palavras, apenas
em casos excepcionais, nos grupos estudados o trabalho doméstico é exercido por
pessoas que não fazem parte da unidade de consumo.
34 | Luiz Antonio Machado da Silva

Cumpre então, como próximo passo, descrever suas características


concretas.

O “mundo da costura”

O processo de formação de uma costureira parece apresentar


certas características particulares, das quais a mais saliente é
a especial articulação entre “a prática” e “o curso”. No universo
estudado, a grande maioria das “profissões”9 é aprendida na prática.
No caso da costura, além da prática, a maioria das costureiras

ão
também frequentou algum tipo de curso. A respeito deste ponto,
veja-se os seguintes depoimentos:


lg
Aí depois fiquei estudando [corte e costura]. Aí tinha dias que eu
não tinha nem a passagem para ir pra escola, eu ia de pés. Saía
vu
de casa mais cedo e ia de pés e voltava de pés, aí consegui e me
formei. Aí fiquei trabalhando de casa. Fiquei trabalhando. Sempre
di

aparecia, aparecia um serviço, fiquei trabalhando quase de graça


pra esse pessoal daqui mesmo. Fazia costura mais barata, aí o
de

pessoal me pagava. Eu não sabia costurar direito. Eu também


comecei era nova, né?
ar

Aprendi a costurar sozinha […] em casa mesmo, em casa de


pl

minha madrinha. Eu era muito inteligente… Quando eu via uma


em

pessoa fazer uma coisa eu tentava, né? Aí aprendi. Quando eu


cheguei em [nome do lugar] aí eu aprendi corte com uma moça,
que ensinava. Passei três meses estudando com ela, aí terminei
Ex

de aprender o resto, queria por medida, né? Eu tirar medida com


a fita, mas eu tinha medo, num sai certo, né, que eu nunca tinha
visto ninguém tirar.

Esses depoimentos, que parecem ser típicos, demonstram


que, além da prática, é necessário um curso.10 Contudo, o interessante

9
O termo encontra-se entre aspas para enfatizar que não se pretende discutir aqui
todas as suas conotações. Se a costura é uma profissão ou ocupação, se é qualificada
ou especializada, se tem ou não um ethos próprio, etc., são questões que, para a
problemática tratada neste capítulo, não apresentam maior relevância.
Há alguns casos de costureiras que afirmam nunca terem feito nenhum curso.
10

No entanto, elas vêm simplesmente confirmar o que foi dito acima, pois nesses
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 35

é que o aprendizado pode dar-se a partir do curso (primeiro


depoimento) ou seguir o caminho inverso (segundo depoimento).
Neste segundo caso, ao menos pelo depoimento da informante, a
função do curso parece ter sido muito mais legitimar sua condição
de costureira do que lhe ensinar: “Que a minha professora de corte
mesmo pensava que eu sabia o corte, quando eu fui. Porque eu não
dava trabalho a ela”. [Note-se que, ao mesmo tempo, a informante já
afirmara – ver acima – que tinha “medo”].
Isto vem reforçar as afirmativas anteriores sobre a natureza
ambígua da costura que, como saber e como atividade, apresenta
características “semidomésticas”. Ao contrário de arrumar a casa,

ão
cozinhar, lavar/passar roupa, que fazem parte da rotina cotidiana
do trabalho doméstico, a costura é uma atividade esporádica (Cf.


as referências feitas mais adiante ao “ciclo” da costura)11 – exceto,

lg
talvez, quando acionada para a manutenção da roupa (remendos, por
exemplo). Além disso, na medida em que requer um equipamento do
vu
qual nem todas as famílias podem dispor sem grande sacrifício, esta
di

atividade pode, em muitos casos, ser “expulsa” do conjunto de tarefas


que compõem o trabalho doméstico. Isto faz com que a costureira
de

possa ser vista como uma produtora de mercadorias que devem


ser adquiridas fora do âmbito da própria unidade de consumo (a
família). Mas, ao mesmo tempo, a costureira deve se legitimar como
ar

tal, através de um diploma que formalize a especificidade de seu


pl

saber e, portanto, explicitar o fato de que o que ela produz não pode
em

casos a costureira desenvolve todo um conjunto de explicações com o sentido


Ex

de desculpar-se, como se reconhecesse que o “correto” ou “normal” fosse ter


frequentado algum curso.
11
Muitas pesquisas precisarão ainda ser feitas, para que a noção extremamente
vaga de “trabalho doméstico” seja clarificada. Aqui, sugere-se de forma implícita
que as atividades que o compõem têm um grau de rotinização que pode ser
adaptado às condições de reprodução da força de trabalho. Isto significa, latu
sensu, que o conjunto de atividades que o configuram a cada momento pode variar
em função dos interesses e possibilidades imediatas de cada família. Assim, neste
último sentido, “cozinhar” é, para os grupos estudados, a tarefa absolutamente
indispensável e, portanto, priorizada – o mesmo não ocorrendo, por exemplo, com
“arrumar a casa” e “lavar/passar” (estas últimas atividades podem ser “encaixadas”
no tempo “livre”, isto é, no tempo de trabalho não diretamente remunerado). Como
tal, o trabalho doméstico só pode ser entendido a partir de certos parâmetros
que não estão contidos nele mesmo, mas na sua articulação (contraditória) com o
trabalho remunerado.
36 | Luiz Antonio Machado da Silva

ser elaborado dentro da unidade familiar.


Outro aspecto importante na formação da costureira é que ela
supõe algum tipo de rede de relações pessoais que possa funcionar,
seja como exemplo (segundo depoimento acima), seja como
“cobaia” das tentativas de aprendizagem (depoimento anterior). No
primeiro caso, em que a rede de relações pessoais é a família,12 sua
relevância termina no próprio aprendizado. No segundo, porém,
mais que a família, as relações de vizinhança (“esse pessoal daqui
mesmo”) são fundamentais tanto para o aprendizado quanto para
criar um embrião de freguesia, um mercado.13 De passagem, cumpre
mencionar que, dentro de certos limites (mencionados adiante),

ão
grande parte das atividades remuneradas entre as camadas
populares – e não apenas as ligadas à costura – depende do problema


de criação de mercados, isto é, da produção de uma demanda capaz

lg
de absorver o esforço laboral (Cf. capítulo 6 deste livro). Apesar de
sua relevância, não é possível aqui aprofundar esta questão.
vu
Este último aspecto remete à questão das condições do
di

mercado e determinação do preço da costura. A exemplo de outros


tipos de atividades (veja-se o capítulo sobre pequenos negócios neste
de

livro), o local de moradia é central na determinação do mercado:

E até aqui eu acho que é um serviço que dá pra eu ganhar dinheiro,


ar

agora, só não dá por causa do lugar. [Pergunta: É? Por quê?] Porque


pl

o lugar, o pessoal… dá muita gente pobre, num pode a gente cobrar


a costura de um vestido […] também o modelo do vestido, e o
em

trabalho que a gente tem é pra ganhar um bom dinheiro, mas o


pessoal são pobre, não pode pagar um dinheiro assim […] Então
Ex

12
Entendida em sentido amplo. Assim, por exemplo, a segunda informante valeu-
se de um parente indireto, que nem sequer morava na casa: “Vinha uma moça de
fora… assim… sobrinha de meu padrinho [com quem ela morava] […] que sabia
costura. Quando chegavam lá, elas faziam roupa pra mim, pra minha sobrinha, pros
meninos…”.
13
Note-se que a maioria das costureiras entrevistadas trabalhou, em algum
momento de sua vida profissional, em fábrica de confecções. O material disponível,
porém, é muito escasso a este respeito, não permitindo maiores elaborações. A
questão, portanto, de se o trabalho nessas fábricas deve ser visto como a legitimação
final do status de costureira, e/ou se implica um aprofundamento da formação
profissional, fica em aberto. Da mesma forma, não é possível discutir, com os dados
disponíveis, a questão de como se relacionam o trabalho a domicílio e o trabalho
assalariado regular a partir da mesma tarefa concreta.
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 37

eu acharia se eu morasse em lugar… sem ser aqui, eu ganharia


mais dinheiro, sabe? […] Agora que o lugar… porque o lugar não dá.
Agora, se eu morasse noutro canto eu ganharia o dinheiro mesmo.

Este caso é extremamente ilustrativo por duas razões. Em


primeiro lugar, demonstra que, como foi sugerido, os compradores
potenciais estão restritos aos moradores do local. Em outras
palavras, a costureira não se posiciona diante de compradores em
abstrato, mas sim diante de uma “fatia” do mercado determinada
pelo local de moradia e pelos limites de seu próprio grupo social.
Em segundo lugar, porque indica que a freguesia é composta por

ão
pessoas sem recursos, de modo que o preço tem que ser determinado
não em função de condições intrínsecas ao processo de trabalho (do


esforço dispendido), mas dentro dos limites determinados pelas
características de um mercado potencial com esses contornos.
lg
Além da configuração geral do mercado, a determinação dos
vu
preços é também afetada por outro tipo de consideração, a relação
pessoal mantida com o comprador:
di

[Eu cobro] dependendo das pessoas. Que tem pessoa às vezes uma
de

moça que trabalha, assim ganha tão pouco, né, essa moça… Tem
umas que ganha mais, tem outras que ganha tão pouco, assim, chega
ar

às vezes com filho, compra às vezes com sacrifício tudinho aí… é


uma formatura, uma coisa. Aí chega aqui pra eu fazer. Aí eu não
pl

cobro o preço que cobro pra outras pessoas que pode pagar. Que
em

a gente querendo sabe quem pode, quem não pode, quem ganha
bem, que às vezes trabalha num emprego que ganha melhor ou
que ganha menos, né. Aí eu não cobro. [Pergunta: como é que você
Ex

sabe disso?] Porque até minhas… porque são mais gente conhecida,
quem conhece, e conta às vezes até a vida pra mim, sabe.


A fala demonstra claramente que o preço cobrado, além de ser
genericamente baixo, varia para cada caso. Se essa variação parece
ser consequência do conhecimento de quanto cada pessoa pode
pagar, ela é também função do grau de proximidade das relações
pessoais, chegando até o limite de preço zero (costurar de graça):

Pergunta: E você costura para algumas pessoas de graça?


Informante: Costuro… Olhe… [nome da pessoa] deixou de dar
38 | Luiz Antonio Machado da Silva

costura a mim porque eu não cobro costura de [nome da pessoa].


Ela disse que não trazia mais. Ela quer que eu cobre, sabe. Minhas
cunhadas aquela da [nome do lugar] elas deu umas coisas pra mim
aí eu não cobrei, ela disse eu não… trouxe mais. Tem essa menina
dali, [nome], que me ajuda eu não cobro costura pra ela nem pra
filha dela. E minha família em peso eu costuro pra ela todinha de
graça. Minha irmã de [nome do lugar] com os filhos dela, eu costuro
pra ela tudinho, agora mesmo tem uma… muita roupa dela aí de
colégio.14

ão
Estas considerações chamam a atenção para uma problemática
altamente complexa: como é pensada a utilização do tempo de


trabalho para este tipo de atividade. Assim, por exemplo, existe um
explícito reconhecimento de que, de modo geral, a remuneração do
lg
trabalho é inferior à quantidade e à qualidade do esforço. Além disso,
vu
em cada caso particular, a determinação concreta da remuneração
do trabalho é independente deste, variando em função de relações
di

de amizade e parentesco. Finalmente, em certos casos especiais, a


remuneração pode cair ao nível zero (trabalho gratuito). Embora não
de

seja possível desenvolver este ponto no presente capítulo, sugere-se


que ele merece ser alvo de elaboração sistemática, pois se trata dos
ar

limites e da lógica de manipulação da demanda.


Outro aspecto importante da costura refere-se ao ritmo
pl

anual do trabalho: há períodos de pique, que correspondem às


em

grandes festas populares, principalmente Natal e São João, mas


também Carnaval. Todas as relações sociais ligadas à costura são
afetadas por esse ritmo, que nada mais significa que fortes variações
Ex

na demanda de trabalho das costureiras, com a concentração da


demanda em certas épocas do ano. Por exemplo, o trabalho gratuito
só é executado fora dos períodos de pique. Além disso, se existe em
geral o problema de conseguir auxiliares (pessoas que ajudem nos
trabalhos, remuneradas ou não), este é mais agudo nos períodos de
festas. Finalmente, são nos momentos de pique que se configura outro
tipo possível de demanda. Quando a costureira possui máquina de

14
Este depoimento abrange uma série de dimensões diferentes para o trabalho
gratuito (cortesia, parentesco, intercâmbio de auxílios não mercantis, etc.).
Considere-se, porém, que esse ponto é apenas marginalmente relevante para o tema
central do presente capítulo, razão pela qual preferi não o elaborar.
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 39

costura mais sofisticada (a que faz trabalhos de acabamento, como


pontos especiais, casas, etc.), ela passa a ter uma freguesia composta
por outras costureiras cujo equipamento é menos sofisticado. O
depoimento abaixo ilustra as afirmativas deste parágrafo:

Eu tenho minhas freguesia certa, sabe… Pronto, quando chega a


época assim de festa, quando falta… seis dia, oito pra festa eu paro
de costura, aviso logo às minhas freguesa que traga logo, que eu
tenho… compromisso com muitas costureiras, sabe? De caseado, de
ziguezague, passar nylon, esses nylon, sabe, de passar em longo […]
Então quando falta oito dia assim pra festa eu paro. Isso é tempo

ão
de São João, tempo de festas […] Agora, quando chega tempo de
festa eu digo [para as pessoas para quem costura de graça] vocês


comprem roupa cedo porque… eu vou fazendo, sabe, aí quando
a outra do pessoal aí eu tô mais… aí eu faço pra tudinho de graça

lg
[…] [Pergunta: E na época de festas você dá conta de fazer tudo
sozinha?] Não, eu sempre boto uma pessoa pra me ajudar. Às vezes
vu
vem [nome da pessoa], nesse ano foi [nome da pessoa] quem me
di

ajudou. Minha irmã vem me ajudar em acabamento, e falei com


[nome da pessoa]. Paguei a ela, sabe?
de

Trabalho doméstico e costura


ar
pl

Quanto à relação entre o trabalho doméstico e a costura como


modalidade de trabalho a domicílio, o primeiro ponto a considerar
em

é o caráter subordinado e complementar da costura, tanto no que


diz respeito ao trabalho doméstico como tal, quanto ao próprio ciclo
Ex

pessoal de vida das mulheres. Neste sentido, veja-se os seguintes


depoimentos:

Quando eu levanto, cuido do café… começo a cuidar do almoço,


quando dá nove horas já tô na máquina. Só me levanto mesmo
pra dar a comida aos meninos, pra botar o almoço do [nome do
marido], quando me sento novamente, só me levanto de quatro
hora pra dar comida aos meninos, me sento novamente, quando
[nome do marido] chega eu tô costurando, boto o café dele, me
sento na máquina novamente, vou até uma hora, meia-noite.15

15
Este depoimento é realmente crucial para se entender o que foi dito na nota 11.
Aqui, há uma oposição clara entre preparar a comida para a família e costurar – isto
40 | Luiz Antonio Machado da Silva

Agora o médico disse que eu vou descansar [parir] no fim de outubro,


sabe. Eu já tô sabendo, aí quando chegá o dia 15 de outubro eu…
vou entregando o que tenho… e paro esses dias, sabe? Paro e aviso
logo o pessoal, só vou pegar costura agora no fim de novembro […]
Agora, esse ano eu vou logo me preparando, de junho por diante
eu vou comprando roupa pros meninos, vou costurando, sabe,
para os meus. Vou costurando, quer dizer, quando chegar o mês de
dezembro… aí eu tou livre deles, vou só pegar costura dos outros.16


No primeiro caso, fica claro que, não obstante o longo tempo

ão
diário dedicado à costura, ele está subordinado ao ritmo do trabalho
doméstico cotidiano, preenchendo os interstícios. De certa forma,


poder-se-ia dizer que é no “tempo livre”, nos intervalos dos afazeres
domésticos considerados indispensáveis, que a mulher costura – por
lg
maior que seja o número de horas dedicadas à atividade.
vu
O segundo caso evidencia que a costura pode também ser
adaptada ao ciclo “pessoal” da vida da mulher: ela regula a quantidade
di

e o momento da costura em função do nascimento do futuro bebê


(o mesmo ocorre quando a mulher fica doente, planeja uma viagem,
de

etc.; omitiu-se este tipo de ilustração por considerá-lo redundante).


Esse depoimento chama a atenção também para um outro aspecto
ar

importante: o fato de que, mesmo no que se refere à costura, é dada


prioridade aos membros da família. Assim, a costura “para fora” é
pl

organizada a partir do preenchimento das necessidades domésticas


em

(veja-se os comentários anteriores ao duplo caráter da costura).17


Ex

é, entre a tarefa mais importante do trabalho doméstico e a atividade remunerada.


Nenhuma menção foi feita a outras atividades que também compõem o conjunto
de tarefas que configuram o trabalho doméstico, e que podem ser executadas
na dependência do ritmo da costura (lavar roupa, arrumar a casa, etc. – que são
também executadas pela informante).
16
É interessante notar que, neste depoimento, o que está em jogo não é tanto a
oposição entre trabalho doméstico e costura, mas sim a costura como atividade
remunerada ou não.
17
Já que a prioridade é dada ao trabalho doméstico, poder-se-ia especular em torno
das razões que fazem com que este seja articulado ao trabalho a domicílio. Acredita-
se, a este respeito, que a reflexão deveria encaminhar-se no sentido de que, dados
os baixos níveis de remuneração vigentes entre a população estudada, a mulher é
praticamente obrigada a trabalhar. O trabalho a domicílio seria, apesar de todas
as dificuldades, o único passível de articular-se com o trabalho doméstico. Essas
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 41

A articulação contraditória entre o trabalho doméstico e a


costura tomada como ilustração do trabalho a domicílio também se
manifesta em outro nível: aquele que diz respeito à divisão familiar
do trabalho. Aqui, o imbricamento entre trabalho doméstico e
trabalho a domicílio pode ser visto pelas várias soluções dadas
às necessidades de mão de obra, seja pelos momentos de pique
(períodos de festas populares), seja pela mera existência, na mesma
unidade familiar, do trabalho doméstico associado ao trabalho a
domicílio. Neste sentido, veja-se os seguintes depoimentos:

Agora mesmo, depois que eu casei, eu nunca vivi sozinha. Sempre

ão
tinha uma pessoa. Quando a gente casou logo, tinha uma irmã de
[nome do marido] que morava com a gente. Aí eu nunca me dediquei


à cozinha não, só era sempre a costura. Depois, ela foi embora pra
São Paulo, essa irmã dele, aí veio uma sobrinha dele. Uma que o pai
lg
dela é morto. Aí morou muitos anos comigo. Saiu quando casou.
vu
Depois veio outra. A que mora em São Paulo, a que é professora.
Ela chegou aqui, me ajudava muito […] Agora, depois que [nome
di

da pessoa] casou, foi embora, também as meninas ficaram moça,


as minhas. Aí não precisei mais de ninguém. Agora é que eu estou
de

precisando mesmo, que eu cuido mais da cozinha agora, que as


menina tudo fica fora.
ar

Já deixei mais da metade [dos fregueses] […] Porque eu num…


pl

podia, né? O serviço da casa. Que eu lavo roupa, passo ferro, faço
tudo. Amanhã mesmo é dia de lavar roupa… Eu lavo roupa duas
em

vezes por semana. Que eu tinha lavadeira. Mas a lavadeira já perdeu


tanta peça de roupa… Aí eu me aborreci, não quis mais. Aí fiquei
Ex

lavando. Ganho muito mais […] Porque economizo meu sabão,


não pago, e não perco minha roupa, nem estrago […] Desaparecia
demais, quando ia pra lavadeira […] Se não veio no meio da roupa
é porque não vem mais […] Lavando roupa, passando ferro, eu tou
ajeitando o que é meu. E costurando mais é pros outros.


O tema da necessidade de recrutar mão de obra (remunerada
ou não), em períodos de pique, para auxiliar nas atividades de costura
apareceu em depoimento anterior. Por outro lado, os depoimentos

considerações ajudariam também a compreender por que o trabalho a domicílio é


executado em troca de praticamente qualquer remuneração, como foi visto.
42 | Luiz Antonio Machado da Silva

acima indicam duas formas alternativas de liberação da mulher para


dedicar-se apenas à costura: seja agregando parentes ao núcleo
familiar, como no primeiro depoimento; seja contratando mão de
obra remunerada que cuide pelo menos parcialmente do trabalho
doméstico. Este segundo caso é interessante, porque indica que uma
das possibilidades de resolver a tensão entre trabalho doméstico e
trabalho a domicílio pode ser “expulsar” a contradição da pessoa (a
dona de casa que é também costureira) para o âmbito mais amplo
da família (a mulher é apenas costureira, ao passo que a agregada
se dedica apenas ao trabalho doméstico). O caso é interessante
também porque mostra os limites de solução do conflito, mesmo

ão
neste nível mais amplo da divisão do trabalho na esfera familiar: “já
deixei metade [dos fregueses]”. Finalmente, reforça as referências


feitas anteriormente, no sentido de que o trabalho a domicílio é

lg
subordinado e complementar ao trabalho doméstico.
Cumpre não esquecer que a base fundamental a partir da qual
vu
se dá a articulação contraditória entre trabalho doméstico e costura
di

(ou, em termos mais gerais, trabalho a domicílio) é a extensão da


jornada de trabalho da mulher que, em momentos de pique, pode
de

chegar a níveis extremos:

Pelas festas mesmas eu ganhei uns… mais de dois mil cruzeiros.


ar

Mas também sofri à beça. Trabalhei tudo de noite, faltei morrer […]
pl

Às vezes eu não me deitava […] Teve noites que eu não me deitei […]
saía da máquina, tomava banho, ia pra cozinha fazer café… cuidar
em

do almoço. Agora, no dia que [nome da filha] não ia trabalhar, né,


aí… ela ia cuidar, às vezes eu dormia um pouquinho. E daí ia pra
Ex

máquina, costurava mais.

Trabalho a domicílio e trabalho assalariado a domicílio

Até o momento, toda a reflexão a respeito das contradições


entre o trabalho doméstico e o trabalho a domicílio baseou-se
apenas em uma modalidade deste, em que o trabalhador é o que
se poderia chamar de produtor independente, pois controla os
instrumentos de trabalho, a matéria-prima, o ritmo de trabalho e,
finalmente, o produto final. Como se pode depreender das páginas
anteriores, este é o caso dos depoimentos centrados na atividade de
costura, selecionada como instância empírica do presente capítulo.
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 43

Sabe-se, entretanto, que esta não é regra geral, pois há casos de


costureiras que, embora trabalhando em sua própria casa, não
dispõem de controle tão amplo de seu próprio trabalho. Trata-se,
aqui, do trabalho a domicílio em seu sentido mais clássico, em que o
trabalhador já está subordinado ao capital, mas exerce sua atividade
fora de uma unidade produtiva específica. Embora as informações a
respeito sejam reduzidas – e não se refiram à atividade concreta de
costura –, algumas breves considerações sobre o trabalho assalariado
a domicílio são necessárias.18
Em primeiro lugar, é importante notar que a diferença mais
marcante entre as duas modalidades de trabalho a domicílio se refere

ão
à determinação do preço das atividades laborais. No caso do trabalho
assalariado a domicílio, o preço é, obviamente, determinado pela


empresa, e não pelo trabalhador em sua relação com os compradores.

lg
A implicação, também óbvia, é a rigidez e a impessoalidade.
Outra diferença radica-se na maior intensidade de
vu
mobilização de força de trabalho para auxiliar no desempenho das
di

tarefas. No caso das costureiras, em épocas de pique, são acionadas


outras pessoas, membros da família ou não, remuneradas ou não.
de

O mesmo ocorre nos casos de trabalho assalariado a domicílio


observados, mas em número muito maior e durante todo o ano. Na
realidade, parece que a trabalhadora, além de executar ela mesma
ar

as tarefas contratadas, funciona como uma espécie de “gerente”


pl

ou subempresária. Ela recruta e organiza o trabalho dos demais


membros de sua própria família, assim como contrata os serviços
em

de membros de outras unidades domésticas (sempre a preços


inferiores aos que recebe). Estes, por sua vez, mobilizam o trabalho
Ex

de outras pessoas de sua própria família, de modo que há algo como


uma reação em cadeia. Não posso entrar em detalhes a respeito das
particularidades da administração do trabalho nos casos em tela,
porque a pesquisa não envolveu a lógica interna das empresas.
Não obstante estas distinções, de um modo geral, pode-
se dizer que, dentro dos limites das informações de que se dispõe
e do ponto de vista especificamente considerado neste capítulo –
oposição entre as esferas pública e privada de atividades –, as duas

18
Dispõe-se de informações sobre mulheres que trabalham para uma fábrica de
tapetes e para uma fábrica de chupetas. Veja-se a seção sobre trabalho por produção
no documento interno preliminar da Pesquisa Estratos Ocupacionais de Baixa
Renda na Área Metropolitana de Recife.
44 | Luiz Antonio Machado da Silva

modalidades de trabalho a domicílio apresentam características


muito semelhantes. Assim, o ritmo de trabalho continua sendo
determinado pela própria trabalhadora, mantendo-se o caráter
subordinado e complementar do trabalho a domicílio.

ão

lg
vu
di
de
ar
pl
em
Ex
2. Notas sobre os pequenos estabelecimentos
comerciais1

A subordinação ao trabalho assalariado regular



Talvez a característica menos aparente, porém mais
importante, dos pequenos estabelecimentos comerciais seja
sua íntima vinculação ao emprego regular. Na medida em que o
pequeno comércio tem sido visto pela literatura como uma forma
“marginal” de atividade econômica, é necessário que esta afirmativa

ão
seja melhor explicada, e que se lhe agregue evidência empírica. O


que pretendo enfatizar é que a decisão de começar a negociar2
tem quase sempre por base uma posição ou situação no mercado

lg
regular de trabalho (trabalho assalariado legalmente reconhecido).
Vale acrescentar que essa decisão, mais do que uma ruptura,
vu
significa a tentativa de conciliar a condição de independência ou
di

autonomia e seus respectivos riscos com as garantias do emprego


regular, ao menos durante um período de experiência. E, por fim,
de

que a implantação do negócio supõe necessariamente um capital


inicial, cuja disponibilidade está quase sempre vinculada, direta ou
indiretamente, ao emprego regular.
ar

Assim, por exemplo, um dos informantes que trabalhava em


pl

uma fábrica de tecidos, regido pela legislação anterior à criação do


em

FGTS, ao completar nove anos “de casa” “entrou em acordo”, mas


continuou trabalhando na mesma empresa. Com a indenização
recebida, comprou um terreno e construiu uma casa. Um ano
Ex

depois, abriu uma pequena barraca, aproveitando-se do fato de que


trabalhava no turno da noite e de que sua mãe podia auxiliá-lo. Não
tenho informação sobre como obteve o capital inicial, mas, por seu

1
In: J. S. Leite Lopes et al. 1979. Mudança social no Nordeste: a reprodução da
subordinação. Rio de Janeiro: Paz e Terra. pp. 179-193.
2
Sem a intenção de uma análise elaborada da expressão “negociar/negócio”, pode-
se dizer que se trata de um termo muito genérico, que indica um enorme número
de atividades e de comercialização. Aqui, o argumento desenvolve-se em torno de
um tipo particular, que na área estudada (a cidade de Recife) recebe a denominação
de “barraca”. No final deste capítulo, far-se-á referência a outros tipos. Pode-se
adiantar que a “barraca” possui características muito semelhantes à “bodega”, que
provavelmente é um termo sinônimo usado em outras regiões do Nordeste.
46 | Luiz Antonio Machado da Silva

depoimento, parece que no começo a dimensão do negócio era tão


modesta que foi suficiente aumentar um pouco as compras pessoais
de cereais, o que era possível com seu próprio salário. Depois de um
ano negociando de dia e trabalhando à noite, resolveu pedir para ser
demitido, não sem uma série de precauções:

Depois do acordo trabalhei mais dois anos, na mesma companhia


[…] Aí trabalhei à noite… e aqui na barraca. Tava me esgotando
muito, sabe? […] Então, eu fui, pedi a minha demissão, né? […]
Bem, eu quero sair. Eu quero sair benquisto com… com todos. Sem
abusar. Porque malquisto não quero. Então, eu… quero sair prá

ão
depois amanhã ou depois eu precisar vim aqui, não tem bicho […]
Aí eu falei pra ele [o gerente] né? Que eu estou com um negocinho


em casa e… passo dia trabalhando na barraca, venho trabalhar à
noite… e não vou suportar […] Mas se o negócio não der pra mim,

lg
depois, eu volto pra trabalhar […] [O gerente disse] você quer sair?
vu
Eu vou botar você no meio desses… desses que estão saindo… mas
você não vai perder o todo, entende? Vai perder só uma parte. Você
di

vai perder seu fundo, vai receber essas férias, seu décimo… Agora
não recebe indenização pelos dois anos. Eu digo tá bom, rapaz. Pior
de

se eu fosse perder tudo […] Que o dinheiro que eu ganhei, né? Na


companhia… Eu comprei a casa [a primeira indenização] O… O dos
dois anos eu botei no negócio, né?
ar
pl

Na época em que esse informante pediu demissão para


dedicar-se apenas à barraca, sua mãe manifestou dúvidas quanto
em

ao acerto da decisão: “[…] ‘esse negócio não dá, quero ver se esse
negócio dá para você viver’. Eu digo dá, mãe, mais que o que dava
Ex

eu trabalhando dá agora”.
O depoimento acima permite uma série de conclusões: a) a
decisão de pedir demissão só foi tomada em razão da impossibilidade
física de conciliar as duas atividades (o cansaço); mesmo assim, após
um período de experiência de um ano, que envolveu um mínimo de
risco, na medida em que o capital inicial era quase desprezível; b)
antes de pedir demissão, o informante teve o cuidado de procurar
manter aberta a possibilidade de retornar (sair benquisto); c) a
primeira (e mais vultosa) indenização foi usada na aquisição da
moradia, não para iniciar o negócio.
Admitindo-se que exista uma oposição entre o trabalho
autônomo ou independente e o trabalho regular assalariado que
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 47

se manifesta, ao nível da estratégia pessoal, na necessidade final


de uma opção por um dos dois, o exemplo desse informante indica
uma tentativa quase desesperada de eliminá-la. É flagrante que
o risco envolvido na decisão em favor do trabalho autônomo – só
adotado em último caso – foi cercado pelo maior número possível
de salvaguardas. Além disso, ao contrário do que afirma extensa
literatura, o foco da decisão pouco ou nada tem a ver com um suposto
desejo de independência.3 O trecho citado mostra claramente que
ele está mais orientado pelo trabalho regular assalariado do que
pela expectativa de autonomia. É certo que o caso acima apresenta
características particulares que facilitam o adiamento da decisão

ão
final – o fato de o informante estar trabalhando no turno da noite, o
fato de que ele teve possibilidade de “entrar em acordo” e continuar


trabalhando na mesma empresa, etc. –, em muitos outros casos – em

lg
especial os de utilização de indenizações por demissão, já bastante
conhecidos – isto não é possível; aqui, trata-se de optar por gastar a
vu
indenização, no todo ou em parte, durante a busca de outro emprego
di

regular, ou a aplicar como capital inicial para “botar um negócio”.


Contudo, é importante lembrar que, uma vez mais, o foco da decisão
de

continua sendo o emprego regular, na medida em que a decisão


vai variar em função das condições gerais do mercado de trabalho
regular. De certa maneira, pode-se pensar que iniciar um pequeno
ar

estabelecimento comercial corresponde a uma denúncia dos


pl

baixíssimos níveis salariais típicos dos estratos estudados, e não ao


sonho camponês de autonomia que marcaria os migrantes recentes.
em

A centralidade do emprego regular pode ser vista em


outro modo de entrada na atividade comercial, também bastante
Ex

comum. Trata-se de aposentados ou “encostados” que se dedicam


a “negociar”. Aqui, a conciliação não é apenas uma tentativa, mas
uma realidade. Já que o trabalho assalariado regular está protegido
pela legislação trabalhista, que supõe a assistência previdenciária
em casos de doença ou aposentadoria, a atividade autônoma ou
independente é simplesmente agregada à condição de segurado.
Tudo o que “botar um negócio” implica (além de um capital inicial,
que será tratado em seguida) é a utilização do tempo liberado pela

3
Cf. o já clássico trabalho de Lopes (1971), por exemplo. Ver também, a este respeito,
o estudo de Cristina Marin no livro mencionado na nota 1, que chega a conclusões
muito semelhantes às do presente capítulo, analisando um grupo de trabalhadores
em situação bastante diversa daqueles cujos depoimentos estão aqui examinados.
48 | Luiz Antonio Machado da Silva

cobertura previdenciária em casos de doença ou aposentadoria.


Neste sentido, é altamente ilustrativo o caso de um informante que
trabalhava em uma firma sem carteira assinada:

Quando minha perna começou… com esse problema, então eu


comecei pedindo a carteira dele [o patrão pedia a carteira dos
empregados, e a guardava “na gaveta”], e ele nada de carteira, nada
de carteira […] [Finalmente] ele assinou. Aí o gerente foi e assinou
também […] Eu botei a carteira no Instituto[…] Comecei recebendo
do Instituto que eu não podia mesmo trabalhar com a perna
[…] É, rapaz, a minha barraca eu… eu fiquei uma época parado,

ão
então, tinha de me movimentar, me entendeu? Eu estudava um
negócio assim de… que não desse prá mim andar muito. Aí depois


estudei… resolvi botar uma barraca, botei uma barraca e comecei,
negociando. [O informante até hoje é comerciante, mas depois de

lg
certo tempo como “encostado” foi aposentado por invalidez. Seria
interessante saber qual teria sido sua atitude em relação à barraca,
vu
caso fosse liberado para voltar ao emprego].
di

Não é apenas dessa forma direta que a cobertura


de

previdenciária permite a articulação entre os dois tipos de


trabalho. As chamadas vantagens ou benefícios do trabalho
assalariado regular são também centrais. Assim, por exemplo, outro
ar

informante, aposentado, usou a possibilidade de obter empréstimos


pl

(indissoluvelmente ligada à cobertura legal desfrutada pelo


trabalhador) para abrir, e mais tarde ampliar, seu negócio:
em

Essa barraca foi o seguinte. Essa barraca… como ainda hoje ela não
Ex

tem nada, eu comecei do nada, entendeu? A gente sempre, se quer


adquirir um dinheirinho mais avultado, a fazer qualquer negócio,
a gente… a gente… corre para um empréstimo. A gente sócio da
CAPEMI, aí… aí tem direito de fazer um empréstimo. Como também
a Caixa Econômica emprestava à minha repartição, funcionário
dela, mas agora está suspenso, desde o ano passado. Não sei
por quê. Então… a gente… o pessoal da CAPEMI, aí ela empresta.
Cinco mil, dez mil, aí… doze meses, ou 24 meses. E assim a gente
faz qualquer coisa. Foi assim que eu comecei a fazer essa barraca.
Mas que… fiz a metade de que tem aqui. Nunca enchi ela, botei o
que tinha dinheiro pra botar. Mas depois de dois anos eu tirei um
empréstimo. Então, dois anos depois eu fiz novo empréstimo e…
aumentei a barraca. Agora, fiquei sem dinheiro prá… prá comprar
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 49

mercadoria. Comprá mercadoria. Portanto, eu tou esperando que


chegue nova oportunidade, prá eu agora… aumentei mais, agora
tem espaço prá botar a mercadoria. Logo que eu possa fazer um
empréstimo eu faço, prá comprar mercadoria.

Antes de entrar nas considerações a respeito do


funcionamento desses pequenos estabelecimentos comerciais,
cumpre indicar outra evidência da falsa oposição entre trabalho
regular assalariado e trabalho autônomo ou independente. O mesmo
informante que foi obrigado a abandonar o emprego na fábrica têxtil
(primeira citação deste capítulo) afirma:

ão
[Pergunta: Você não pensa em voltar a trabalhar lá?] Não… às vezes


é que dá vontade, né?… que… a gente se acostuma com os colegas
mas… eu não tenho [...] E às vezes eu tenho vontade se… eu me
lg
casar algum dia… botar… pegar uma mulher dentro de casa, então
vu
eu volto a trabalhar.
di

Fica evidente que, na impossibilidade física de articular o


trabalho assalariado regular com o trabalho no estabelecimento
de

comercial, a tentativa de conciliação é transferida para a esfera da


unidade familiar.4 Não é de se estranhar, portanto, que se encontre
ar

tantas mulheres trabalhando nesses pequenos estabelecimentos


comerciais. Isto porque o “negócio”, na grande maioria dos casos,
pl

é pensado em caráter complementar e subordinado ao trabalho


em

assalariado regular, mesmo quando, concretamente, é a única


atividade remunerada, como no exemplo acima.5
Não discuti, por considerar que suas implicações
Ex

transcendem o escopo do presente trabalho, o que a conciliação –


real ou procurada – entre esses dois tipos de atividade implica em
termos de aumento da jornada de trabalho. Uma reflexão neste
sentido, poderia indicar que o trabalho independente se impõe à
consideração dado o baixo nível de remuneração do trabalho regular
assalariado, cuja constatação pode ser expressa pelo trabalhador sob
a forma do desejo de autonomia. Resulta, portanto, a confusão da

4
Sobre este ponto de vista, consultar Alvim (1972).
5
A centralidade do trabalho assalariado regular (e seu corolário, a cobertura
previdenciária) é demonstrada, sob outro ângulo, no trabalho de Amélia Rosa
Teixeira no livro citado na nota 1.
50 | Luiz Antonio Machado da Silva

literatura, que toma as afirmativas neste sentido literalmente, e as


explica em função do “tradicionalismo cultural” de parte da força de
trabalho urbana. Vista a questão sob esse ângulo, a conciliação entre
o trabalho independente e o trabalho assalariado constitui-se em
uma denúncia concreta das péssimas condições de vida dos estratos
subalternos. Note-se que, embora este capítulo se restrinja a apenas
uma forma de trabalho independente – a exploração de pequenos
estabelecimentos comerciais –, este tipo de consideração pode ser
estendido às outras modalidades de trabalho independente, como
demonstram vários capítulos do presente livro.
Parece necessário explicitar que aqui se adota, no espírito

ão
mesmo do projeto original da pesquisa,6 a perspectiva do trabalhador.
Isto é, condicionantes mais gerais são vistos a partir de estratégias


pessoais (ou, no máximo, familiares). De fato, ao nível da presente

lg
discussão, “botar um negócio” não pode deixar de ser considerado
como uma escolha do trabalhador, dadas certas condições que
vu
ele não controla. Mas, ao contrário de outros estudos – como o
di

de Lopes (1971), anteriormente citado, e mesmo de trabalho


precedente do próprio autor (Cf. o capítulo 6 deste livro) – que
de

enfatizam o caráter de opção entre duas modalidades distintas de


trabalho, o presente capítulo procura demonstrar que a “estratégia
pessoal” de articulação entre o trabalho independente (no caso, o
ar

estabelecimento comercial) e o trabalho assalariado regular é uma


pl

resultante quase inelutável dos níveis de remuneração da força de


trabalho com baixa especialização. Com isso, pretendo sugerir que as
em

relações entre trabalho assalariado e trabalho independente devem


ser repensadas, pelo menos no que se refere à linha dos estudos
Ex

citados acima.7

O funcionamento: sucesso ou insucesso?

Essas considerações nada informam sobre as possibilidades


de sucesso ou insucesso do empreendimento, que, no entanto,

6
Referência à ampla pesquisa coletiva da qual participei com alguns textos,
coordenada por Moacir Palmeira, auxiliado por Afrânio Garcia e José Sérgio Leite
Lopes, sobre mudança social no Nordeste.
7
Cf. neste sentido o trabalho – pioneiro no Brasil – de Oliveira (1972).
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 51

são muito importantes para avaliar a sua eficácia como fonte de


renda de estabilidade (e montante) variável – isto é, para avaliar a
eficácia da estratégia laboral. É claro que, para que isto possa ser
feito, a atenção deve se voltar para os padrões e características do
funcionamento desse tipo de atividade comercial.8 Deste ponto de
vista, três dimensões devem ser consideradas: a) o capital inicial; b)
as restrições do mercado e c) questões de administração do negócio.9

a) O capital inicial. Nas páginas anteriores já se viu, de uma


forma indireta, os meios de obtenção do capital inicial: indenização,
empréstimo e poupança sobre o próprio salário. É lógico que, apesar

ão
de se tratar de um investimento muito reduzido em qualquer caso,
ele vai variar de acordo com o capital disponível. Este, por sua vez,


será sempre função de fatores que nada têm a ver com a atividade

lg
comercial, e sim com a situação do proprietário enquanto trabalhador
(ou ex-trabalhador) assalariado: número de anos de trabalho,
vu
capacidade de endividamento estipulada pelo órgão financiador a
di

partir da remuneração mensal do prestamista, nível salarial.


Um ponto muito importante a considerar é o que se refere à
de

disponibilidade de um local para comerciar. Em alguns casos, este


já existe, podendo ser desde uma loja propriamente dita até uma
janela da residência acrescida de pequeno balcão de madeira. Neste
ar

último caso, é evidente que o investimento em equipamento físico é


pl

mínimo, restando apenas o problema, talvez secundário, de decidir


se a moradia deve ou não ser computada, para efeitos contábeis,
em

como capital inicial.


De qualquer forma, vale a pena explicitar uma vez mais o que
Ex

já foi visto de forma indireta no início deste capítulo: parece que a

8
Devido às características particulares deste tipo de estabelecimento – pequeno
volume de capital, pouca diferenciação de mercadorias, mercado (freguesia)
restrito e localizado, etc. –, as próprias características da “personalidade” do
proprietário podem ser um fato muito importante para o sucesso ou insucesso do
empreendimento. No entanto, preferi não entrar nesta linha de considerações por
acreditar que ela foge da ênfase geral do presente trabalho.
9
Ao selecionar essas dimensões, não pretendo esgotar os aspectos que caracterizam
o funcionamento desse tipo de estabelecimento comercial. Os três aspectos
mencionados devem ser entendidos, simplesmente, como aqueles a respeito dos
quais disponho de informações que julgo suficientes. Além disso, como pode ser
percebido pela leitura do próprio texto, o volume de informações é maior para
alguns aspectos do que para outros.
52 | Luiz Antonio Machado da Silva

curva de capitalização desse tipo de estabelecimento obedece a um


padrão único, apesar das variações de quantidade. Assim é que,
no momento de implantação do estabelecimento, o investimento
é o menor possível. É apenas em um segundo momento, em que o
proprietário já teve experiência suficiente para fazer uma avaliação
positiva do risco – isto é, quando ele já constatou que são boas as
condições de estabilização do negócio –, que o investimento é
ampliado até o limite máximo possível em cada caso.
Essas considerações são importantes, porque, em geral, se
acredita que o insucesso dos pequenos estabelecimentos comerciais
pode ser imputado, no todo ou em parte, ao pequeno volume de

ão
capital disponível para sua implantação. Na realidade, pelo que foi
descrito, trata-se exatamente do contrário: o capital inicial é sempre


reduzido ao mínimo possível, sendo que o investimento máximo
ocorre depois do sucesso do empreendimento.
lg
vu
b) As restrições do mercado. Tratando-se de estabelecimentos
di

pequenos, localizados em bairros populares geralmente distantes


ou enquistados no tecido urbano mais denso, sua clientela é, em
de

consequência, “de vizinhança” (isto é, quem compra não é algum


passante ocasional, mas o morador das imediações com baixo poder
aquisitivo). Devido a estas circunstâncias, “vender fiado” não é uma
ar

opção do proprietário, mas antes uma condição de funcionamento


pl

do negócio.10 Por isso, todo o discurso dos proprietários desses


estabelecimentos está cheio de referências à venda fiada, referências
em

estas permeadas pela tensão entre o reconhecimento da necessidade


de vender fiado devido ao baixo poder aquisitivo da clientela e o
Ex

conflito com os compradores que surge dessa necessidade. Assim,


veja-se o seguinte trecho de entrevista:

Pesquisador: você não pode cortar o fiado, não? Informante: Posso


cortar. Se a pessoa não for certa, eu corto. Mas freguês certo eu
não posso cortar não. Pesquisador: Eu tou falando cortar, parar
de vender fiado. Informante: Não, não para não. Não tem esse
negociante que… que não venda fiado. Por muito duro que ele for,
mas ele tem que vender fiado. Pesquisador: Por quê? Informante:

10
Note-se que isto não é de forma alguma exclusivo do estabelecimento comercial,
estendendo-se também para outros tipos de atividade, como, por exemplo, a
costura. Veja-se as referências a respeito das costureiras no capítulo anterior.
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 53

Porque o povo faz a gente vender mesmo. A gente não quer, mas o
povo chega, a gente tem que vender. Nem todo mundo tem dinheiro,
no meio da semana, ninguém tem dinheiro […] Mesmo que até na
quarta, quinta-feira, até na quinta-feira mesmo… tenha alguma…
alguma besteirinha… mas da quinta por diante… até tem que
comprar, qualquer besteira pra… pra o sábado.

Neste caso, existe o reconhecimento de que qualquer
negociante tem que vender fiado, porque “o povo” (isto é, a
freguesia) obriga, não porque o negociante quer. Claro, pois se “o
povo” não tem dinheiro nos últimos dias da semana, se o negociante

ão
quiser vender alguma coisa, terá que o fazer fiado.
Há uma outra forma de dizer a mesma coisa, com uma


diferença: não é a freguesia que obriga, mas a piedade do
proprietário que concede. No entanto, o fundamental é que
lg
permanecem as referências ao baixo poder de compra do mercado
vu
potencial, e consequentemente à necessidade de vender fiado.
di

Mas aí é um bairro muito pobre, aqui em [nome do bairro] é um


bairro muito pobre, que não dá. O sujeito que tem um bom coração
de

ele não pode negociar dentro de [nome do bairro], porque o povo


compra muito fiado e eles não podem comprar a dinheiro. E eu
ar

tinha que vender fiado a eles, eu tinha pena, chegava um pedindo…


prá comprar pão, outro pedia, entendeu?
pl


em

Assim é que as restrições do mercado, vistas sob a ótica do


“vender fiado”, são tidas como o principal responsável pelo insucesso
no negócio:
Ex

Mas também eu… eu… não tenho muita… De vez em quando um


me engana com 100, 200, 50, 20… sempre, sempre um me engana.
Sempre, sempre me engana. Então, eu não tenho, eu não tenho
muita sorte pra negócio.

Implorava que não tinha pão pra dar os meninos e eu ia vendendo.


Depois eles não tinham possibilidade de pagar, encostava a conta lá.
E assim foi sucessivamente e então eu perdi um bocado de dinheiro.
Eu vi que não dava jeito então, tive que fechar a barraca.

O problema, portanto, no que diz respeito às condições do


mercado, não é vender ou não vender fiado. Trata-se, antes, da
54 | Luiz Antonio Machado da Silva

questão de como vender fiado sem ter prejuízo ou, no mínimo, de


como minimizar o prejuízo decorrente da venda fiada – o que remete
a uma terceira dimensão do funcionamento do estabelecimento
comercial, a administração do negócio.

c) A administração do negócio. No que se refere ao controle da
venda fiada, há dois aspectos a serem considerados: monitorar a
capacidade de endividamento do freguês e decidir sobre que tipo de
mercadoria deve ou não ser fiada. Quanto ao primeiro, o depoimento
de um negociante bem-sucedido é suficiente:

ão
Pergunta: Como é que você faz pra vender fiado? Você vende fiado


pra qualquer um? Informante: Eu… primeiro vendo a qualquer um
da primeira vez, mas deixando um documento, né? Chegar assim e
lg
falar… Agora conhecido eu vendo, né? Comprar… cumé… cê chega
vu
aqui pra comprar a primeira vez… aí vem compra a segunda… Uma
vez cê tá meio atrapalhado… Agora, se naquele dia certo não vim, aí
di

eu… corto pelo pé logo. E se continuar certinho eu vou, até o fim […]
de

Mensal eu só tenho dois freguês. Mensal não tá fazendo porque


demora muito […] Pessoa que ganha um salário, né, 602 cruzeiros.
Eu não vou vender mais de 500 cruzeiros, porque eu sei que ele
ar

não pode […] Tem que olhar, saber quanto ganha, pra saber quanto
pl

eu posso. Pergunta: E a pessoa que não ganha salário, como é que


você faz isso? Quando não tem salário ele diz mais ou menos quanto
em

ganha, né? Por semana. Então, digamos se a pessoa é um pedreiro…


ganha... o salário, às vezes faz biscate, faz uma certa beliscada, né…
Ex

empeleitada… Mas ao menos ele sabe quanto ganha por semana,


né. Que às vezes, suponhamos, uma empeleitada de dois mil
cruzeiros… aí ele sabe quando é que termina aquela empeleitada e
quanto é que tira por semana, entendeu? Que ele quando faz uma
empeleitada não recebe... Toda semana tira aquilo e no final recebe
o restante… Então, mais ou menos ele sabe quanto é que… que…
que pode tirar por semana. Aí ele sabe o que pode comprar, e eu
também sei o que posso vender. Quando a pessoa não ganhar eu
não posso vender nada, né?

Deve-se chamar a atenção para o fato de que o informante


Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 55

estava se referindo aos fregueses que compram fiado regularmente.11


Existe também o fiado ocasional, que normalmente envolve pequenas
quantias e é mais difícil de conseguir, uma vez que o risco de não
pagamento é grande. Este tipo de venda fiada depende da insistência
do comprador (mesmo quando conhecido do negociante) e/ou da
“dureza” do dono do estabelecimento.
Outro aspecto da venda fiada diz respeito ao tipo de mercadoria
que o comprador deseja adquirir. Existe um certo consenso entre
os negociantes no sentido de que cigarro e bebida não precisam ser
vendidos fiado, ao passo que comestíveis (pão, cereais, feijão, etc.)
não podem escapar da venda fiada. Isto se explica, por um lado, por

ão
certas considerações humanitárias (a “piedade” do negociante –
veja-se um dos depoimentos anteriores), mas também porque não


se estragam, ao passo que os gêneros alimentícios são perecíveis.

lg
As questões relativas ao controle da venda fiada por vezes são tão
importantes a ponto de o proprietário procurar orientar seu negócio
vu
no sentido de “livrar-se” das mercadorias que precisam ser fiadas:
di

Olha, coisa de comida eu não boto, porque o pessoal só come fiado.


de

Eu sou muito conhecido aqui. Há três anos que tou morando aqui,
e o pessoal me conhece. Então, tem muita gente aí nesse meio que
não tem… não tem muita… sentimento. A gente diz que não vende
ar

fiado e o pessoal vem e compra… não paga novamente. Tem cara


de... umas três ou quatro vezes, sabe como é… E coisa de comida
pl

não dá, porque o pessoal não tem recursos. São muito sinceros.
em

Aí… a bebida. Bebida se deixa aí não apodrece […] Mas… parte


dos cereais eu não queria, porque… o pessoal só querem comprar
fiado. E já a bebida já é uma parte mais de luxo. Só bebe quem pode.
Ex

Muitos bebem sem poder, mas é o… uma coisa… mais… rara, porque
o sujeito que vai beber tem que ter qualquer trocado no bolso. E a
comida, a gente é obrigado a vender, mesmo que o cara não tenha
dinheiro.

O depoimento acima, além do problema do controle da venda


fiada, aponta para outro importante aspecto da administração do
negócio: o tipo de mercadoria a ser vendida e a questão da reposição
do estoque. O informante acima tende claramente para a opção de

11
“Mas quando chega no sábado, às vezes na sexta, às vezes no sábado… Quando é
pela manhã… sábado pela manhã, sábado à tarde, aí compra uma e faz outra, né…
Paga aquela [conta] e faz outra… No meio da semana compra besteira…”.
56 | Luiz Antonio Machado da Silva

especializar-se em mercadorias que ofereçam menos riscos de perda


devido à venda fiada. Em outras palavras, já que não é possível abolir
a venda fiada totalmente, trata-se de reduzi-la ao mínimo através da
especialização (o ponto aqui não é tanto o controle da venda fiada,
mas sua eliminação).
Existe, porém, uma orientação alternativa: a da máxima
diversificação de produtos à venda,12 desde que esses produtos
“tenham saída”:

Eu vou dizer uma coisa. Aqui é pequeno, mas… de tudo tem, né?
Entendeu como é. Tudo que você precisar, dessas besteirazinha,

ão
tudo tem […] vendo negócio de miudeza, né […] mulher quer um
sabonete, quer um talco, tudo tem aqui. Mamadeira, esmalte […]


Eu comecei vendendo só cereais, vendendo esse negócio de bebida
não. Depois foi que eu aumentei botando uma linhazinha, né, uma
lg
besteirinha, depois fui procurando sempre… Eu sou assim… Eu só
vu
[compro] mercadoria que a pessoa procura, entendeu… Que pra
vender que a pessoa de anos em anos vem procurar eu não compro
di

não… Que mercadoria que a gente compra e passa tempo pra


pessoa procurar não dá resultado não porque… fica um dinheiro
de

empacado, entendeu?

Outra questão fundamental na administração do negócio é o


ar

controle da flutuação dos preços de compra do produto, de modo que


pl

se evite a descapitalização do empreendimento. Este é um problema


em

crucial, na medida em que o capital de giro é sempre reduzido.


O seguinte depoimento é modelar, pois, além de ser altamente
sugestivo, indica uma das razões de insucesso no negócio:
Ex

Nós compramos. Não tá sabendo o preço de aumento, aí vendo


aquela mercadoria de preço baixo. Quando vai comprar, compra a
mais do que vendeu, entendeu? Já tem acontecido dessas comigo,
mas quando eu era meio... Mas agora eu faço pesquisa, tá entendendo

12
As informações colhidas não permitem uma avaliação definitiva da eficácia relativa
dessas duas estratégias (especialização x diversificação de produtos), mas tudo
indica que a segunda tira melhor partido das condições de mercado para este tipo
de estabelecimento. Sendo a clientela reduzida e de baixo poder aquisitivo, como se
viu, essas condições podem ser compensadas pela diversificação. Aumentando-se a
variedade de mercadorias disponíveis, aumenta-se, pelo menos potencialmente, o
volume de vendas.
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 57

como é? Eu compro hoje… quando for amanhã, ou depois, eu faço


uma pesquisa para saber se ele baixou ou aumentou, entende?
Aí, é por isso que eu vou levando o negócio à frente. Porque…
compra… e esquece… não vai… não sai pra canto nenhum… não
vê o movimento do lado de fora… Vende a mercadoria todinha a
preço velho. Quando vai comprar, compra a mais do que o preço
que vendeu. Pela tabela ele que crente que tá ganhando, né? Pelo
que comprou. Mas deixe que aquela mercadoria já aumentou, quase
até o dobro […] Quer dizer que o dinheiro que ele comprou, não dá
pra comprar nem a metade do que vai comprar, do mesmo…

ão
Deve-se notar que, apesar de todo o empenho, o conhecimento
sistemático da lógica de reposição do estoque é muito limitado.


Salvo as informações genéricas obtidas acima, os depoimentos
foram sempre omissos a esse respeito. Suspeito que tal fato não
lg
se deve a qualquer decisão consciente de escamotear informações
vu
por parte das pessoas entrevistadas ou de incapacidade técnica
do pesquisador, mas sim a uma provável característica central
di

da dinâmica do empreendimento. Todos esses estabelecimentos


parecem ter uma carência crônica de capital de giro, adquirindo,
de

portanto, quantidades muito limitadas de mercadorias.13 Assim,


a decisão sobre o que e quanto comprar está limitada, por um
ar

lado, pela quantidade de dinheiro disponível a cada momento e,


por outro, pelos “preços de ocasião” das mercadorias adquiridas.
pl

Ambos os fatores se conjugam para impedir que sejam tomadas


em

decisões de médio ou longo prazo, além da genérica escolha entre a


“especialização” ou “diversificação”. A reposição do estoque ficaria,
pois, à mercê de uma série de decisões ad hoc, muito difíceis de ser
Ex

verbalizadas pelo informante, e que só poderiam ser captadas a


partir de períodos muito longos de observação direta.

13
Apesar de em vários casos estes empreendimentos apresentarem altos níveis
de rentabilidade, não se deve perder de vista que sua capitalização é muito lenta,
pois a maior parte do lucro é desviada para a manutenção do proprietário e seus
familiares. Note-se ainda que, na grande maioria dos casos, as retiradas – que
podem ser em dinheiro ou espécie – do proprietário não são fixas ou rotinizadas,
nem variam em função das contingências do negócio, mas sim de suas necessidades
de consumo pessoal.
58 | Luiz Antonio Machado da Silva

Variações dos tipos de “negócio”

Até aqui se falou apenas de um tipo de estabelecimento, a


“barraca”. Para finalizar este capítulo, é interessante fazer breves
referências a outros tipos, embora as informações disponíveis sejam
esparsas. Não se tem a pretensão de uma análise detalhada dos tipos
de negócio mencionados a seguir, nem se afirma que eles sejam os
únicos existentes. Estas considerações finais têm apenas o objetivo
de tentar, por contraste, contextualizar o espaço social no qual se
insere a “barraca”.
O tipo de atividade comercial que parece estar mais próximo

ão
da “barraca” é o “fiteiro”, pequenas construções de madeira montadas
na calçada das ruas mais movimentadas da cidade, que vendem


principalmente cigarros e balas, mas às vezes também miudezas

lg
(linhas, envelopes, cartões postais, etc.). Existem, porém, pelo menos
duas características que o distinguem da “barraca”. Em primeiro
vu
lugar, situado em geral nas ruas da cidade (a maior concentração é
di

justamente no centro), sua clientela é muito mais diferenciada. Se no


caso da “barraca” ela é composta pelo freguês, ou no máximo pelo
de

morador da vizinhança, o cliente típico do “fiteiro” é o transeunte,


o passante ocasional. Isto, acrescido do fato de que as mercadorias
postas à venda não são perecíveis, faz com que os problemas relativos
ar

à venda fiada sejam praticamente inexistentes. Do ponto de vista da


pl

estabilidade, o sucesso ou insucesso de um “fiteiro” parece derivar


tão somente de sua localização.
em

Em segundo lugar, exatamente por localizar-se ao longo


de vias públicas, sua visibilidade é muito maior do que a da
Ex

“barraca”, o que coloca de forma muito mais aguda a questão de


sua regularização legal, ou seja, da licença de funcionamento. Não
se deve pensar, de forma alguma, que todo “fiteiro” pode instalar-
se com a simples cobertura de um “pistolão” ou da condição de
invalidez do proprietário, etc.14 Veja-se, por exemplo, o depoimento

14
A questão da licença de funcionamento também se coloca para o barraqueiro,
mas pode ser contornada muito mais facilmente, bastando para isso pequenas
precauções: “Eu às vezes [incompreensível] aumenta, porque… um negocinho assim
pequeno o fiscal não dá tanto em cima, né? E com muito, aí o fiscal bate em cima. A
gente pequeno assim não…”. De qualquer forma, deve-se notar que, ao que parece,
todas as condições econômicas de implantação e funcionamento mencionadas no
caso da barraca são válidas também para o fiteiro. Mas, ao contrário do barraqueiro,
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 59

de um “fiteiro” a respeito de si próprio e de outros barraqueiros:

A licença do fiteiro se tira na Prefeitura. Eles são a licença. O cara


paga uma taxa, entendeu? Então, eles dá um cartão, chama um cartão
azul. Quer dizer quando o fiscal chega e diz: Cadê a licença? Então
ele traz a licença é um cartão dado pela Prefeitura. Ele apresenta,
pronto. Ali você tá seguro […] Agora existe diversos lugar aí, como
que seja ali, perto da [nome do lugar], então ali tem uma série de
fiteiro. Quer dizer, ali nenhum tem licença, porque todos os dias
falam, a Prefeitura fala, que vão tirar aqueles fiteiro dali […] Então
aquele muito nego ali num tem, num tem. Eles vivem assim porque

ão
tem um amigo e falam com… Vai lá dentro e fala com o homem, o
homem [diz] você bota lá por enquanto, mas que eu não vou dar


uma licença a você[…]. Eu ficava pela questão de… de colher de chá,
invalidez. Que eu era inválido, então eles tinha pena.

lg
Finalmente, existe um terceiro tipo de negociante, o
vu
vendedor ambulante ou camelô,15 a respeito do qual as informações
di

disponíveis são muito escassas – o que é lamentável, porque sob


esta rubrica estão englobadas miríades de formas de comércio
de

completamente residuais em toda a literatura especializada. De


qualquer forma, aqui se pode dizer apenas que: a) os vendedores
ambulantes dedicam-se principalmente à venda de frutas; b) em
ar

alguns casos, podem ter um ponto mais ou menos fixo de venda, ao


pl

qual voltam diariamente por longos períodos de tempo; em outros,


o local de venda, ou a própria atividade de vendedor ambulante,
em

é muito instável; c) os vendedores ambulantes correm sempre


grande perigo de ter seus produtos apreendidos pela fiscalização
Ex

(a “carrocinha”), caso em que o prejuízo é total; d) neste sentido,


vendedores ambulantes não se distinguem de camelôs, exceto
quanto ao tipo de mercadoria vendida.

Rapaz, o vendedor ambulante, ele é um homem que ele não tem


condições de ser um cara estabilizado […] Ele vive perambulando,
entendeu? É um homem sem serviço, sem segurança. Tanto faz ele
estar ali ganhando o pão dele, como a mesma hora chegar o carro

o fiteiro precisa também de um padrinho ou pistolão.


15
Aqui, aplica-se a terminologia dos grupos entrevistados, muito diferente da
oficial, que dá uma amplitude muito maior à palavra. O fiteiro, por exemplo, tem
uma licença como “ambulante”.
60 | Luiz Antonio Machado da Silva

com a carrocinha, prender […] Eles não pode tirar uma licença,
a Prefeitura não dá, não libera uma licença para um ambulante,
aqueles que vendem por ali pelo meio da rua, que chamam…
camelô. O camelô eles não têm licença. Ele abre o troço dele ali
grita, e vende e quando a carrocinha vem eles saem correndo.
O ambulante chama-se o camelô. E o povo antigamente eles
chamavam de ambulante. Hoje em dia eles chamam o ambulante
àqueles que vendem roupa por ali perto do Mercado, coisa e tal.
Mas antigamente só se conhecia o ambulante, esse que andava com
o balaio nas costas, um troço na cabeça e empurrando uma carroça
gritando pelas ruas, né?

ão
A aparente confusão do depoimento acima, além de ser


extremamente ilustrativa da complexidade do tema, deve-se talvez
ao fato de que o informante procurou incorporar a seu discurso a

lg
nomenclatura oficial. Assim, depois que (parece que o caso foi citado
apenas como exemplo) os vendedores de roupa do mercado tiveram
vu
sua atividade regulamentada, sob a rubrica de ambulante, o tipo de
di

comércio que esta palavra antes indicava passou a ser denominado


de “camelô”.
de
ar
pl
em
Ex
3. Estratégias de vida e jornada de trabalho1

Apesar da complexa problemática em que se insere, o


objetivo do presente trabalho é modesto: trata-se de descrever
as estratégias de vida – em especial sua relação com a jornada de
trabalho – das camadas populares, discutindo algumas de suas
implicações. O material empírico é proveniente de uma pesquisa
etnográfica realizada no Recife, entre 1977 e 1978.2 Embora,
devido ao método utilizado, o universo de informantes tenha sido

ão
mais amplo, a investigação visava fundamentalmente a população
com renda monetária individual igual ou inferior a dois salários


mínimos. Essa informação é importante, porque ressalta o fato
de que se está lidando com o segmento mais amplo do exército
industrial de reserva.
lg
vu
di

Estratégias de vida, tempo de trabalho e divisão familiar do trabalho



de

As estratégias de vida dos estratos sociais inferiores no


Recife estão em grande parte baseadas na extensão do tempo de
ar

trabalho. Esta afirmativa deve ser vista não apenas em termos da


duração da jornada diária individual, mas também do ciclo de vida
pl

do trabalhador e de sua família. Deve-se igualmente notar que


em

a disposição do trabalhador e sua família de estender o tempo de


trabalho ocorre em um contexto de ampla oferta e de quase total
ausência de regulamentação do trabalho. Nessas circunstâncias, o
Ex

que se costuma chamar de “custo de oportunidade” do trabalho é


muito baixo, o que faz o trabalhador disponível a qualquer aceno.
Duas ordens de evidências podem ser oferecidas para
suportar esse argumento. Primeiro, nos estratos sociais mais baixos,
a noção de que alguns dias ou períodos (noites, fins de semana,
férias, etc.) devem ser dedicados ao descanso é substituída por

1
In: L. A. Machado da Silva. 1984. Condições de vida das camadas populares. Rio de
Janeiro: Zahar Editores. pp. 83-98.
2
A pesquisa foi realizada pelo IUPERJ/UCAM, em convênio com a Sudene. Além do
autor, participaram de todas as fases, desde a coleta até a interpretação, Ademir
Figueiredo, Filippina Chinneli, Laureta Copello e Nizete do Nascimento.
62 | Luiz Antonio Machado da Silva

tentativas de transformar simbolicamente o trabalho em uma


espécie de brincadeira. Isso pode ser visto tanto no clássico exemplo
da verdadeira festa em que se transformam as atividades ditas
de “autoajuda” – que, ao contrário do que muitos pensam, quase
sempre envolve remuneração monetária –, quanto na “descontração”
das tarefas cumpridas mesmo em ambientes mais formalizados,
sempre que o controle do trabalho se torna menos marcial. Essa
transformação ideológica não é mais do que uma forma de aliviar a
sobrecarga de uma quase ausência de tempo livre.
Segundo, na medida em que os chefes de família têm sua renda
real reduzida, outros membros são empurrados para o mercado.

ão
Diga-se de passagem, isso não representa nenhuma garantia de
manutenção da renda familiar, porque a remuneração adicional dos


outros membros pode não cobrir a diferença. Deve-se notar também

lg
que esse tipo de reação não é apenas resultado de crises individuais
como desemprego, doença, morte, etc., nem de meras variações
vu
conjunturais. Trata-se, antes, de uma tendência secular, como tem
di

sido salientado (ver, por exemplo, a referência a dois estudos do


DIEESE mencionados em Singer, 1977, pp. 175ss.).
de

As formas mais recorrentes de extensão da jornada de


trabalho entre a população estudada são:
1. Trabalhadores regularmente empregados (assalariados)
ar

realizam horas extras, de que é uma variação o contrato da força


pl

de trabalho “por produção”. Neste último caso, o empregador


evita a possibilidade de ser multado e, ao mesmo tempo, cria a
em

ilusão de proporcionar aos trabalhadores melhor pagamento por


produção. Em geral, a produção diária contratada corresponde a
Ex

aproximadamente 12-14 horas de trabalho – o que é equivalente à


jornada dos trabalhadores que fazem horas extras.
2. Há um tipo de relação de trabalho que alguns autores
denominam “falsa autonomia” (ver especialmente Prandi, 1978).
Muitos trabalhadores por conta própria, particularmente na
construção civil, contratam com o capitalista serviços específicos
a um preço global, como se fossem autônomos. Nesses casos, não
há vínculo legal entre o capitalista e o trabalhador, uma vez que
juridicamente o que está sendo comprado é o serviço acabado. Mas
trata-se, evidentemente, de um contrato artificial, que apenas esconde
o fato de que o trabalhador está vendendo sua força de trabalho,
não um serviço. Em geral, é o próprio trabalhador que determina o
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 63

tempo de trabalho necessário para executar o serviço. Porém, uma


vez que invariavelmente ele tem urgência em receber o pagamento,
que é sempre feito depois da execução da tarefa contratada, termina
por ser compelido a estender sua jornada de trabalho.
3. Um caso muito comum de extensão do tempo de trabalho
é a combinação de empregos regulares, assalariados, com o
autoemprego. Não é necessário afirmar que a própria base de uma
tal combinação é a extensão da jornada de trabalho. Há uma enorme
variedade de modos de combinar esses dois tipos de relação de
trabalho (ver, por exemplo, Machado da Silva, 1971), mas o mais
importante é que, nessas situações, o autoemprego é complementar

ão
ao assalariamento, que permanece a principal fonte de renda.
4. Em muitos casos, o assalariado sob licença para tratamento


de saúde começa a trabalhar por conta própria assim que passa

lg
a dispor de um mínimo de condições físicas. Isso ocorre porque a
remuneração do trabalhador “encostado no INSS” é sempre muito
vu
inferior a seu salário. Caso similar acontece depois da aposentadoria,
di

embora o trabalho possa ser menos penoso e economicamente


mais recompensador para os aposentados. Em ambos os casos, as
de

atividades tendem a se concentrar no comércio (ambulante ou em


pequenos estabelecimentos), por exigirem menos esforço físico;
isso, entretanto, nem sempre é possível.
ar

As diferenças entre o trabalho durante licença para


pl

tratamento de saúde e após a aposentadoria são claramente


apontadas nas avaliações de cada situação pelos trabalhadores. No
em

primeiro caso, o indivíduo é compelido a continuar trabalhando,


e só o faz por estrita necessidade econômica. Diferentemente,
Ex

a grande maioria dos trabalhadores espera a aposentadoria


como uma excelente fonte de “dinheiro” extra. Note-se que, neste
contexto, há uma inversão da centralidade do assalariamento (de
que aposentadoria é consequência), que passa à condição de fonte
complementar de remuneração. É evidente que esse ponto remete
a considerações a respeito do Estado como gestor da reprodução
da força de trabalho como um todo, que não cabem no presente
trabalho. De qualquer modo, a estratégia de continuar trabalhando
nos dois casos apontados neste item reafirma, por um lado, o baixo
“custo de oportunidade” do trabalho; e, por outro, indica o quanto a
extensão da jornada encontra-se presente na vida cotidiana desse
segmento de trabalhadores.
64 | Luiz Antonio Machado da Silva

5. No que se refere aos trabalhadores por conta própria,


aqueles que são regularmente empregados – isto é, que não enfrentam
problemas em razão da falta de demanda – tendem a trabalhar por
jornadas tão longas quanto a dos assalariados.3 Os trabalhadores
por conta própria irregulares, em contrapartida, têm toda a sua vida
centrada no trabalho potencial; dia e noite eles estão disponíveis
para trabalhar por praticamente qualquer remuneração; se o tempo
gasto no processo de procura por trabalho for incluído, então esse
tipo de trabalhador pode ser considerado o mais sobrecarregado
dentre os estratos sociais mais baixos.
6. Como já mencionado, as condições econômicas dos

ão
segmentos inferiores tornam necessário o trabalho das mulheres
casadas.4 De fato, no caso da população estudada, as mulheres


participam da força de trabalho quase por definição. Isso implica

lg
a necessidade de articular essa participação – isto é, o trabalho
remunerado, com as responsabilidades familiares. O equilíbrio é
vu
obtido pela eliminação do trabalho remunerado em tempo integral,
di

seja como doméstica, seja como assalariada.5 Há, pois, uma tendência
à concentração nas atividades por conta própria, desempenhadas
de

em conjunto com as tarefas domésticas e o cuidado dos filhos –


uma associação que só pode ser conseguida através da extensão da
ar

3
Prandi (1978, pp. 127-144) e Singer (1980, pp. 61-69) mostram, para o caso
pl

de Salvador, que, nos estratos sociais mais baixos, as variações na remuneração


entre assalariados e autoempregados são pequenas, com ligeira vantagem para
em

os primeiros. Na medida em que os rendimentos são genericamente baixos, as


tentativas de aumentá-los pela elevação do número de horas de trabalho têm de ser
Ex

também generalizadas.
4
Uso a expressão “mulheres casadas” em seu sentido mais amplo, para indicar
as mulheres adultas corresponsáveis por unidades domésticas que contenham
também pelo menos um homem adulto. Do ponto de vista da família e do trabalho
feminino, este é apenas um entre vários arranjos possíveis, embora talvez o mais
numeroso. Como, entretanto, o trabalho feminino não é objeto específico deste
estudo, acredito que uma tal simplificação seja admissível.
5
As relações de trabalho em que se engajam as mulheres apresentam, para o
estrato social examinado, uma série de especificidades pouco estudadas. Registro
apenas dois exemplos de sua complexidade: o emprego doméstico, que apresenta
certas características de assalariamento, porém numa relação que não implica um
“capitalista” (logo, não há como falar em mais-valia) e em que a jornada diária é
totalmente indefinida na grande maioria dos casos; e o assalariamento a domicílio,
inclusive com carteira assinada, numa espécie de putting out system, que chega a
envolver “ajudantes”, alguns remunerados (Machado da Silva, 1979).
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 65

jornada de trabalho (Cf. Machado da Silva, 1979).


7. Finalmente, há uma situação relativamente comum em
que membros da unidade doméstica se engajam em atividades
orientadas para o mercado, mas não são pagos por elas (como, por
exemplo, filhos trabalhando com os pais como “ajudantes” ou o caso
dos pequenos estabelecimentos familiares). É evidente que esses
casos de trabalho não pago não representam extensão da jornada
individual de trabalho, mas, de um ponto de vista mais amplo,
implicam um aumento do número global de horas trabalhadas
na família. Esses casos ocorrem na esfera do autoemprego e, com
menor intensidade, na anteriormente mencionada situação de

ão
“falsa autonomia”.
Enquanto estratégias de vida, todos os casos acima podem ser


concebidos como formas de administração do trabalho pela unidade

lg
doméstica.6 Sem dúvida, as decisões e o comportamento cotidiano
sintetizados não são nunca completamente conscientes, coerentes e
vu
lineares. Mas a lógica subjacente a eles pode ser descrita da seguinte
di

forma, como um conjunto articulado de passos:


1. É necessário para a família, principalmente no que se
de

refere a mulheres e filhos, decidir quem deve trabalhar e quando.


Este é um tema fortemente dependente da remuneração do chefe
de família. Quase sempre, todos os membros são estimulados a
ar

realizar algum tipo de atividade remunerada – mas isso não significa


pl

que todos tenham necessariamente de procurar um emprego ou


atividade estável por conta própria. Mesmo entre famílias com
em

níveis de renda muito baixos é incomum, por exemplo, que um ou


mais membros sejam aquinhoados com tempo livre para estudar
Ex

além do mínimo mais ou menos universal de um ou dois anos de


escolarização. Esta é, porém, uma situação instável, porque os
estudantes são tendencialmente os primeiros a serem afetados por
qualquer crise na família (morte, casamento, desemprego, migração
de um membro, etc.). O momento de ser lançado no mercado
também varia em função do nível de renda e do estágio do ciclo de

6
Não resta dúvida de que, em se tratando de uma formação social capitalista como
a brasileira, a utilização da força de trabalho, no modo e no ritmo, é determinada
pelo capital. Mas isso não é incoerente com a afirmativa de que, do ponto de vista
do trabalhador, ele administra seu trabalho dentro dos parâmetros que lhe são
impostos. Pelo menos nesses termos, a oposição autonomia x exploração é uma
falsa questão.
66 | Luiz Antonio Machado da Silva

desenvolvimento da família (os primogênitos, em especial do sexo


masculino, em geral começam a trabalhar mais cedo). Finalmente,
deve-se mencionar que, quando o indivíduo começa a trabalhar
regularmente (ou a “procurar serviço”, expressão que se refere a uma
atividade estável, não necessariamente um emprego assalariado),
quase sempre dispõe de alguma experiência anterior de realização
de pequenas tarefas remuneradas. Em outras palavras, a entrada
ativa no mercado, seja o trabalho efetivo, seja a procura sistemática,
não se dá de forma a representar um rompimento com uma situação
de completa inatividade econômica.
Antes de prosseguir, cabe uma rápida digressão.

ão
Não estou considerando os serviços e atividades de
transformação envolvidos na manutenção da casa e cuidado


dos filhos “pequenos” (palavra necessariamente vaga, porque o

lg
momento em que eles não exigem mais cuidados especiais é sempre
muito fluido). A esfera doméstica da reprodução do trabalhador,
vu
justamente por ser a mais afastada do domínio do capital, parece ser
di

a que permite maior número de arranjos, desde a estrita produção


de valores de uso até complicadas combinações já mercantilizadas
de

que envolvem relações tanto capitalistas quanto não capitalistas de


trabalho e que, portanto, descaracterizam a produção de valores
de uso como definidora da esfera doméstica. Se, como acredito, o
ar

que caracteriza as atividades ligadas à manutenção da casa e do


pl

cuidado dos filhos é justamente esse aspecto híbrido proveniente


de seu distanciamento do domínio direto do capital, algumas coisas
em

podem ser ditas. Primeiro, a fragilidade da produção de valores de


uso em um contexto totalmente capitalista permite a penetração
Ex

de todas as formas de organização da produção e relações de


trabalho, comprimindo cada vez mais a produção de valores de
uso stricto sensu, sem, no entanto, lhe retirar certa hegemonia na
lógica das combinações entre elas. Segundo, a expressão “produção
doméstica” (Singer, 1980; Jelin, 1974a, 1974b) é imprópria, ou
porque é entendida em seu estrito sentido de produção de valores
de uso e, então, se refere apenas a uma pequena fração dos serviços
e atividades de transformação envolvidos na manutenção da casa e
cuidado dos filhos; ou porque reúne sob um mesmo rótulo relações
de trabalho muito diferentes. Finalmente, cumpre notar que,
em geral, o trabalho na esfera doméstica é associado ao trabalho
feminino. Embora este seja, de fato, predominante, está longe de
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 67

ser exclusivo das mulheres, envolvendo também o sexo masculino,


principalmente crianças e jovens.
2. O tipo de trabalho a ser obtido está, é óbvio, muito além do
desejo da família ou de seus membros. Empiricamente, no entanto,
parece haver uma tendência a balancear o trabalho assalariado com
o autoemprego entre os membros da família que trabalham. As
longas discussões entre eles a respeito das vantagens e desvantagens
relativas de suas respectivas situações de trabalho poderiam sugerir
que esse balanceamento é procurado pela família como um todo, a
fim de nivelar no conjunto os aspectos positivos e negativos de cada
relação individual de trabalho. Contudo, o mais provável é que o fator

ão
fundamental dessa diversificação sejam as condições do mercado.
3. Uma vez que os termos mais gerais da divisão do trabalho


entre os membros da família estão estabelecidos, os membros

lg
“totalmente ocupados” procuram maximizar seu tempo de trabalho
pelas razões e nas formas mencionadas. Como descrito, a quantidade
vu
de trabalho das mulheres casadas precisa ser equilibrada com as
di

tarefas domésticas. Como consequência, há um segundo nível da


divisão do trabalho7 que depende do número de membros que não
de

trabalham (ou que não procuram trabalho). É claro que a quantidade


total de horas de trabalho remuneradas para o conjunto da família
é relativamente inelástica e determinada pelas condições gerais
ar

do mercado de trabalho, mais do que por decisões sobre a divisão


pl

intrafamiliar do trabalho. Mas isso não impede que o cuidado da casa


e dos filhos pequenos seja alocado de preferência entre os membros
em

com menores chances de encontrar alguma fonte de renda. Uma vez


que o trabalho das mulheres adultas tem melhores condições de
Ex

mercado do que, digamos, o de crianças ou velhos, elas procuram


liberar-se tanto quanto possível das tarefas de manutenção da casa,
redistribuindo-as entre os membros da família com menores chances
de remuneração, retendo, entretanto, sua supervisão.
É necessário chamar a atenção para o que está implícito:
todos esses passos estão intimamente relacionados ao tamanho e

7
A base da estrutura da família é a necessária combinação da produção de valores
de troca e de valores de uso (Oliveira, 1976). Este segundo nível refere-se à divisão
do trabalho dentro da produção de valores de uso, que permanece existindo, apesar
da tendência à diminuição de seu espaço. Sob esse ponto de vista, o espaço para a
existência de membros da unidade doméstica “não produtivos” (de valores de troca
e/ou de uso) é quase inexistente nos segmentos sociais inferiores.
68 | Luiz Antonio Machado da Silva

à composição da família.8 Embora essas características variem de


acordo com uma dimensão “natural”, elas podem ser, e de fato são,
manipuladas socialmente através da circulação de membros entre
as diversas unidades domésticas. Aqui, a migração aparece como
um mecanismo central no gerenciamento da força de trabalho pela
família ou, em outras palavras, do controle do tamanho e composição
do grupo doméstico.9
Existe uma série de estudos devotados a refutar a tese de
que a migração envolve choque cultural e problemas de adaptação.
Em sua maioria, enfatizam a importância das redes de parentesco
(e amizade) que desempenham um papel de amortecedor das

ão
dificuldades dos migrantes. Do ponto de vista aqui adotado,
pode-se dizer que esses estudos indicam uma manipulação do


tamanho e composição da família através da troca de membros. A

lg
existência de um fluxo tendencialmente orientado para os centros
urbanos não contradiz essa afirmativa, uma vez que é nas cidades
vu
que as oportunidades de trabalho para esse setor da população
di

estão concentradas. O mesmo se pode dizer em relação ao fato


de que unidades familiares com grande número de membros são
de

relativamente raras: os ciclos de desenvolvimento das famílias


nucleares podem ser adaptados aos ciclos de vida e experiência
de trabalho dos migrantes de tal forma que sejam maximizadas as
ar

vantagens econômicas, tanto para as unidades domésticas quanto


pl

para as famílias em seu sentido mais amplo. Por exemplo, uma jovem
que é excedente para sua unidade doméstica original em virtude das
em

condições do mercado em seu lugar de origem pode passar a viver


com parentes (ou amigos) e assumir algumas tarefas domésticas,
Ex

8
“A situação de trabalho constitui, para o trabalhador manual, a parte de sua
condição de existência sobre a qual não possui nenhum ou muito pouco controle.
O mundo familiar, porém, permite uma certa manipulação. E sob as pressões
advindas do mundo do trabalho – baixos salários, pequena qualificação, restrição
da oferta de empregos – o tamanho da família torna-se um problema de importância
fundamental para o estabelecimento de seu nível de vida e, em última análise, para
a própria reprodução social do grupo” (Bilac, 1978, p. 97).
9
É desnecessário dizer que a migração não é o único mecanismo, sendo
relativamente comuns os casos de circulação de pessoas entre diferentes unidades
familiares dentro da mesma cidade e/ou bairro. Estou chamando a atenção para o
caso das migrações, porque os modos e as bases da circulação quase sempre são os
mesmos e porque ele corresponde à situação extrema e mais estudada. Além disso,
é um fenômeno muito comum, pelo menos nos bairros do Recife pesquisados.
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 69

liberando a mãe ou responsável da unidade receptora para maior


número de horas de trabalho remunerado – até que a adolescente
se case ou tenha idade suficiente para encontrar um trabalho que a
mantenha, em um momento em que o filho da família receptora já
requer cuidados menos intensivos.10
Como mecanismo de controle do tamanho e composição
da família, a migração supõe um conjunto de decisões inter-
relacionadas, pelo menos em três dimensões, envolvendo a família
original, o próprio imigrante e a unidade doméstica receptora. Para
a família original, a questão tem dois aspectos. Em primeiro lugar,
é necessário avaliar se a migração de um membro proporcionará

ão
uma redução no consumo diário que ultrapasse sua contribuição
atual ou potencial para o orçamento familiar. Em segundo lugar, há


alguns casos em que é claro que um membro da família pode elevar

lg
seu nível de renda, caso migre. Nessa situação, é preciso decidir se
a melhoria potencial da renda familiar compensa o risco de perder
vu
o controle sobre o membro migrante.11 Inversamente, o migrante
di

precisa decidir se preserva a relativa segurança proporcionada pela


unidade familiar original, mantendo seus laços com ela, ou se os
de

corta a fim de melhorar sua situação pessoal. A tensão provocada


por esses dois conjuntos de decisões é empiricamente refletida pelas
ar

10
“É preciso esclarecer que não se pretende reduzir toda a problemática familiar
pl

à sua problemática econômica. A família é também uma unidade de convivência,


em

e as relações entre pais e filhos, esposas e esposos, envolvem várias dimensões


afetivas, culturais etc. Por outro lado, em uma situação de carência econômica
como a observada nesse grupo, é de esperar que o peso dos fatores econômicos
Ex

seja decisivo na tomada de decisões relativas ao destino do grupo doméstico.


De qualquer modo, toda família nuclear é potencialmente uma família ampliada,
assim como toda família ampliada é potencialmente uma família nuclear. Em
outras palavras, a família ampliada é sempre um momento transitório, por vezes
necessário, da vida da família nuclear” (Bilac, 1978, p. 88).
11
É necessário lembrar que se espera que o migrante que trabalha envie dinheiro
para sua família de origem, pelo menos até que se case. Esse ponto levanta uma
questão que, no presente trabalho, pode apenas ser mencionada. Alguns estudos
sobre os efeitos das migrações afirmam que ela pode ser um fator de desorganização
econômica e familiar nos lugares de origem; o argumento aqui desenvolvido sugere,
ao contrário, uma hipótese inversa: o controle do tamanho da família e a ajuda
financeira eventualmente recebida podem ser antes um mecanismo de estabilização
(Cf. a respeito o excelente trabalho de Arizpe, 1978). É claro que as considerações
sobre migrações aqui apresentadas tratam apenas dos que dispõem de uma rede de
parentesco (ou amizades) nos locais de chegada.
70 | Luiz Antonio Machado da Silva

contínuas discussões entre os migrantes e suas famílias originais


a respeito da frequência de correspondência e envio de dinheiro.
Finalmente, do ponto de vista da família receptora, a aceitação
de um novo membro na unidade doméstica envolve um conjunto
equivalente das considerações mencionadas para a família original.

Considerações finais

Jornada de trabalho, consumo e unidade doméstica

ão
Os comentários acima indicam que o fulcro das estratégias
de vida do segmento social estudado é a maximização do trabalho


pago, o que envolve a participação de tantos membros da unidade

lg
doméstica quanto possível. Na realidade, esta pode ser vista como
a mais básica e geral estratégia que articula as famílias dos estratos
vu
mais baixos ao mercado de trabalho. O marco de referência dessa
di

estratégia global é duplo. Por um lado, existem generalizadas


dificuldades de obtenção de atividades remuneradas, pari passu
de

com a instabilidade do trabalho, tanto assalariado quanto por conta


própria. Por outro lado, os níveis de remuneração são insuficientes,
além de decrescentes.
ar

Nesse contexto, a circulação de membros entre unidades


pl

familiares – de que a migração é um dos casos mais importantes


– atua como uma espécie de mecanismo regulador, articulando
em

o tamanho e a composição do grupo familiar com as condições


do mercado de trabalho. Em geral, a separação dos migrantes de
Ex

suas famílias originais é um arranjo temporário. A longo prazo, os


migrantes cortam seus laços familiares, trazem os demais membros
da família para o novo local, ou retornam à região de origem.
Multiplicar o número de membros ativos da família é,
portanto, uma forma de enfrentar as dificuldades econômicas.
Nesse cenário, os trabalhadores lutam para trabalhar e ganhar
tanto quanto possível em uma economia de mercado – mais como
membros de uma unidade doméstica, não como indivíduos isolados.
O desenvolvimento do capitalismo no Brasil deixou um espaço
muito restrito para a economia doméstica ou de subsistência; como
consequência, os membros da unidade familiar são empurrados
para o mercado de trabalho. O resultado é que a natureza da
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 71

cooperação familiar é profundamente alterada, mas a importância


da família como unidade de consumo permanece inalterada (Tilly &
Scott, 1978). Nas atividades produtivas que proporcionam alguma
remuneração (salário ou renda), o trabalhador quase sempre se
comporta como indivíduo, exceto no caso dos ajudantes e dos
pequenos empreendimentos familiares. Entretanto, como estão em
jogo os meios de consumo, ele é membro de uma unidade doméstica
– o que significa que a reprodução social do trabalhador é um
empreendimento coletivo realizado ao nível da família.

ão
Estratégias de sobrevivência, mercado de trabalho e determinantes
estruturais


lg
Na medida em que trata da reprodução do trabalhador, a
noção de estratégia de sobrevivência se articula com o mercado
vu
de trabalho e suas diferenciações – trabalho assalariado, por conta
di

própria, etc. –, e só através dessa mediação com as condições de


produção que o conformam. Algumas referências mais gerais a
de

respeito do significado das estratégias descritas, no entanto, podem


ser adiantadas.12
A satelitização de formas de produzir não tipicamente
ar

capitalistas – processada basicamente pela redução da produção


pl

de valores de uso (bens e serviços) e mercantilização quase total da


cesta de consumo da classe trabalhadora – tem sido um dos pontos
em

básicos da acumulação capitalista no Brasil, através da redução, para


o capital, dos custos de reprodução de força de trabalho – no Brasil,
Ex

Oliveira (1972) foi um dos primeiros a chamar a atenção para esse


ponto. Os mecanismos desse processo podem ser aproximadamente
descritos da seguinte forma:
1. Há uma complementariedade entre baixos salários e formas
não capitalistas de produzir: por um lado, a parte correspondente
ao tempo de trabalho necessário (sob a forma de salário) pode ser
menor do que se não existisse a produção não capitalista; por outro,

12
Um tratamento mais sistemático das relações entre produção e reprodução com
referência ao mesmo segmento do exército de reserva tratado no presente artigo
pode ser encontrado em Souza & Faria (1980). Os comentários aqui apresentados
seguem uma linha de argumentação muito semelhante, mais a exiguidade de espaço
não permite uma discussão mais detalhada de suas conclusões.
72 | Luiz Antonio Machado da Silva

o capital deixa de penetrar em certos bolsões da produção social, que


se organizam sob forma não capitalista13 – com pouco ônus, diga-se
de passagem, pois, em geral, trata-se da produção de bens e serviços
“de salário”, secundária do ponto de vista da acumulação global.
2. A crescente mercantilização de toda a atividade econômica
torna cada vez mais necessária a remuneração do trabalho em
dinheiro, tendendo a comprimir ao mínimo a produção doméstica
ou de subsistência, e, com isso, abrindo espaço para a produção
de valores de troca, organizada segundo relações capitalistas ou
não. A contrapartida é a intensificação da dependência do capital,
seja direta, no caso do assalariamento, seja indireta, na medida em

ão
que o mercado para os valores de troca produzidos sob formas não
capitalistas é fundamentalmente o contingente de assalariados.


3. Esse último aspecto é importante, porque chama a atenção

lg
para uma faceta pouco mencionada no padrão de acumulação
brasileiro em suas relações com a produção não capitalista. Trata-
vu
se do fato de que uma parte do salário da tração ativa da classe
di

trabalhadora é apropriada pelo setor do exército de reserva


engajado na produção não capitalista. Assim, “ao mesmo tempo
de

em que produzem riqueza, as formas de produzir não capitalistas


podem funcionar como uma espécie de redistribuidoras da massa de
salários paga pelo capital” (Leite Lopes & Machado da Silva, 1979, p.
ar

13). O capital, nessas condições, termina por lançar sobre os ombros


pl

da própria classe trabalhadora o ônus da reprodução da fração em


reserva da força de trabalho, além de reduzir globalmente o custo da
em

reprodução da força de trabalho.


É possível finalizar este texto sugerindo que as estratégias
Ex

de sobrevivência acima apresentadas representam uma resposta


às condições a que são submetidas pelo capital. É evidente que as
estratégias não seriam as mesmas se, por exemplo, o Estado não
fosse tão flagrantemente omisso na gestão da reprodução da força
de trabalho. Por outro lado, essas mesmas estratégias explicam, pelo
menos em parte, essa omissão.

13
A complementariedade entre produção capitalista e não capitalista não é estática:
ao mesmo tempo que o capital destrói esta última, recria formas de organização
não capitalistas (Cf. Singer, 1977, 1980). Em contrapartida, a intensificação
da mercantilização da atividade econômica abre espaços para a produção não
capitalista em detrimento da produção doméstica de valores de uso.
Parte 1 Cotidiano e dinheiro | 73

Dito de outra forma, a maximização da jornada de trabalho


e a entrada no mercado do maior número possível de membros da
família correspondem a um momento de intensificação da extração
de mais-valia absoluta (Oliveira, 1980), uma de cujas características
é justamente a ausência da atividade mediadora do Estado.

ão

lg
vu
di
de
ar
pl
em
Ex
Ex
em
pl
ar
de
di
vu
lg

ão
ão

lg
vu
di
de
ar
pl
em
Ex

Parte 2
Trabalho e cidade
Ex
em
pl
ar
de
di
vu
lg

ão
O cotidiano do trabalho na cidade

Mariana Cavalcanti (IESP/UERJ)

Aqui reúno três textos de Machado centrados em diferentes


dimensões do mercado de trabalho manual. Cada um a seu modo
se dedica à tarefa de compreender como, diante de níveis salariais
baixíssimos, os trabalhadores ganhavam a vida e os significados que
norteavam suas estratégias para tanto nas metrópoles brasileiras
em transformação nas décadas de 1960 e 1970.

ão
Os textos são bem distintos entre si, em termos de escopo,


estilo, ambição e autoria, por terem sido produzidos em contextos
díspares: o primeiro é uma dissertação de mestrado, Mercados

lg
Metropolitanos de Trabalho Manual e Marginalidade, defendida
no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu
vu
Nacional em 1971; o segundo texto é composto pela introdução e o
di

capítulo 9 de um relatório de pesquisa coordenada por Machado e


publicado pelo IUPERJ na forma do livro intitulado Estratos Sociais
de

de Baixa Renda em 1978; e, finalmente, a introdução, em coautoria


com José Sergio Leite Lopes, a uma coletânea escrita como fruto
da pesquisa “Emprego e mudança social no Nordeste”, coordenada
ar

por Moacir Palmeira, José Sérgio Leite Lopes e Afrânio Garcia. Vale
pl

assinalar que os dois últimos textos, assim como a tese de doutorado


em

de Machado (intitulada Lower Class Life Strategies: A Case Study of


Working Families in Recife’s (Brazil) Metropolitan Area, defendida
na Universidade de Rutgers, Nova Jersey, em 1979, e orientada por
Ex

Irving Horowitz), apresentam e elaboram dados colhidos na Região


Metropolitana de Recife, onde o autor se dedicou a trabalho de campo
nos anos 1970, após um considerável acúmulo de pesquisas no Rio
de Janeiro (em grande medida nas favelas cariocas e seus entornos),
na Bahia e em Fortaleza.
Apesar das diferenças no contexto de produção e a despeito
das muitas singularidades de conteúdo, os textos que seguem têm, em
comum, duas características. Em primeiro lugar, foram produzidos
no processo mesmo da formação de Machado como cientista social.
Eles interpretam dados do período em que ele mais esteve presente
em campo, em diversas pesquisas, cidades e contextos de produção
de dados. São, portanto, textos formadores do pensamento de
78 | Luiz Antonio Machado da Silva

Machado em um sentido amplo – tanto como prestação de contas


em rituais acadêmicos, como em termos de experiências empíricas
de pesquisa que iriam ajudar a construir os alicerces das análises e
temas dos quais se ocuparia nas décadas seguintes.
Consequentemente – e eis a segunda característica comum
aos textos –, eles incluem longas discussões metodológicas e
considerações acerca das condições de produção dos dados
analisados. Falam de escolhas, de limites, de desenho de pesquisa
empírica e da construção de categorias analíticas a partir da vivência
concreta das situações estudadas. O que surpreende é justamente
como os modelos iluminam questões atuais e abrem possibilidades

ão
para o estudo de situações contemporâneas – apesar de profundas
transformações empíricas nos mundos do trabalho, nas perspectivas


teóricas e conceitos que norteiam o debate acerca da pobreza e

lg
das desigualdades urbanas, bem como nas condições estruturais e
empíricas para o acesso a trabalho e moradia.
vu
A justaposição dessas duas características torna a leitura
di

dos textos em sequência e no momento atual uma experiência


distinta do que a do leitor que os teria percorrido de modo isolado
de

e disperso ao longo dos anos. Esta apresentação se debruça sobre


essa experiência particular de leitura: procuro construir uma
fabulação incremental do trabalho de Machado nas décadas de
ar

1960 e 1970, em que um modelo enxuto e preciso do mercado


pl

de trabalho apresentado na dissertação ganha corpo, agregando


novas dimensões de investigação, análise e interlocuções teóricas,
em

esculpindo, portanto, uma perspectiva etnográfica que incide


sobre grandes temas da sociologia (tanto no sentido das escalas de
Ex

processos quanto no sentido de se tratarem de temas consolidados),


sem, contudo, se reduzir a uma dicotomia micro/macro.
Quando defendeu Mercados Metropolitanos de Trabalho
Manual e Marginalidade (MMTMM, daqui em diante), Machado já
havia publicado pelo menos dois artigos hoje tidos como clássicos:
“A Política na Favela” e “O Significado do Botequim” (ambos
reproduzidos no livro Fazendo a Cidade, de 2016). Acumulara ampla
experiência de pesquisa de campo ao longo da década de 1960, no
Rio de Janeiro, Fortaleza e Salvador, como membro de programas
de promoção social e melhorias habitacionais em favelas, além de
realizar pesquisas financiadas pelo Ministério da Educação, pela US
Agency for International Development (USAID) e pela Companhia
Parte 2 Trabalho e cidade | 79

de Desenvolvimento das Comunidades (Codesco). Na academia,


beneficiara-se de discussões com o grupo de Anthony Leeds acerca da
economia e do cotidiano das favelas, e tinha como contemporâneos
no Museu figuras como Moacir Palmeira, Alba Zaluar, Neide Esterci e
Lygia Sigaud, dentre outras (Freire e Rocha, 2010).
O minimalismo do texto por vezes esconde a sofisticação
e a própria ambição da empreitada. Com densidade de uma tese
de doutorado, mesmo para uma época em que a formação se
estendia em concomitância com a docência universitária, MMTMM
é um trabalho incomum, tanto pela qualidade e ineditismo da
análise e da argumentação, quanto pela ousadia e clareza com

ão
que enfrenta e desmonta o que identifica como uma “distorção de
ótica” vigente nas teorias sobre a marginalidade urbana. Segundo


Machado, haveria um “acordo essencial entre os vários modelos

lg
interpretativos da marginalidade urbana”, com duas características
principais: a primeira é que os segmentos marginais seriam
vu
entendidos como disfuncionais (seja do ponto de vista da estrutura
di

do sistema econômico, seja de um ponto de vista mais culturalista,


que identificaria neles uma incapacidade de adaptação à sociedade
de

moderna e urbana). Isto é, seriam residuais e se encontrariam fora


dos marcos da economia moderna. Esse traço comum às teorias
da marginalidade denuncia, para Machado, a dimensão de projeto
ar

embutida nessas leituras – que atribuem aos comportamentos dos


pl

trabalhadores imperativos revolucionários ou reformistas, sem, no


entanto, avançar no sentido de compreender o contexto em que os
em

trabalhadores vivem seu cotidiano. Esta, aliás, vem a ser a segunda


característica comum às teorias da marginalidade: o “conhecimento
Ex

incompleto ou inexistente” das condições imediatas de vida e das


dificuldades cotidianas dos trabalhadores.
Como resposta, Machado desenha um modelo descritivo em
duas dimensões ao longo dos três primeiros capítulos da dissertação.
No primeiro e no segundo, descreve, respectivamente, a estrutura
dos mercados formal e não formalizado. No terceiro, reconstrói a
descrição do mercado em geral a partir de categorias nativas e da
perspectiva do controle de mercado do trabalhador. Recorrendo a Paul
Bohannan, explica que os primeiros dois capítulos são um esforço no
sentido de construção de um “sistema analítico”, ou seja, interpreta
os dados com base em categorias sociológicas, e, no terceiro, a
partir do que constituiria um “sistema folk” dos trabalhadores, que
80 | Luiz Antonio Machado da Silva

dá conta da diferenciação interna do sistema, organizado em uma


série de oposições relacionais e centrado na figura do “patrão”, assim
iluminando as estratégias cotidianas dos atores para ganhar a vida.
Esta é talvez a parte mais rica da dissertação, e qualquer síntese aqui
não lhe faria justiça justamente pela densidade etnográfica.
O que vale assinalar é que o modelo de Machado reconduz
à devida centralidade da vivência cotidiana uma série de práticas e
estratégias vistas como “residuais” ou externas às formas capitalistas
de trabalho, ou à economia moderna. Ou seja, os modelos vigentes
acabavam por invisibilizar estratégias, oportunidades e modos de
obtenção de trabalho cotidianas – tidas nos modelos hegemônicos

ão
como “improdutivas” ou não remuneradas, tais como a divisão de
diferentes formas de trabalho entre membros de uma mesma família,


ou o trabalho aparentemente não remunerado da “caixa corrente de

lg
favores” por meio da qual os trabalhadores mantêm e reproduzem
contatos e relações profissionais tendo em vista oportunidades
vu
futuras. Em suma, não se trata apenas de iluminar as formas do
di

então pouco conhecido mercado não formalizado; o que importa é


justamente mostrar como o formal e o não formalizado se conectam
de

e combinam no cotidiano. E não se trata de resíduo, e sim de um


aspecto central, estruturante mesmo, do sistema.
Livre da necessidade de demolir as teorias hegemônicas da
ar

marginalidade, em Estratos Ocupacionais de Baixa Renda (EOBR,


pl

daqui em diante), Machado vai argumentar contra uma suposta


autonomia do “mundo do trabalho”. Se em MMTMM a perspectiva
em

do trabalhador se constituía etnograficamente a partir do controle


de mercado, aqui a novidade analítica reside na elaboração da noção
Ex

de estratégias de vida, que, ao articular padrões de comportamento


e escolhas situadas, faz com que a análise transborde o indivíduo
trabalhador para englobar as estratégias familiares de se ganhar a
vida e ter acesso à moradia. Assim, a análise expande-se, de um lado,
para o mundo “público”, ou seja, a cidade, e, de outro, para o “privado”,
a família. Ao fazê-lo, entretanto, acaba novamente por esvaziar o
potencial explicativo das dicotomias. É que, particularmente no caso
dos pedreiros, o trabalho também produz cidade e se transforma à
medida que o processo de urbanização vai se expandido. De outra
parte, as “estratégias de vida” também envolvem necessariamente
formas não remuneradas de trabalho (como é o caso do trabalho de
familiares em pequenos estabelecimentos comerciais) e uma divisão
Parte 2 Trabalho e cidade | 81

de trabalho da família para se ganhar a vida.


Vale registrar outra novidade de EOBR com relação a
MMTMM: se, neste último, a legibilidade do “sistema folk” foi
construída a partir de certas categorias ou oposições nativas, no
primeiro os trabalhadores falam por meio de citações. Essas citações
acrescentam um elemento de historicidade que estava, em grande
medida, ausente ou apenas implícito na dissertação. Os pedreiros
pernambucanos narram um mundo em transformação. Essa
dimensão, aliás, está presente no texto desde a descrição dos cinco
bairros em que foi realizada a pesquisa de campo: na apresentação
dos bairros, há relatos de ações do governo (como Cohab e BNH), de

ão
ocupações de terrenos, de rumores de remoções e de negociações
com políticos específicos para a obtenção de moradia, ou para garantir


a permanência em áreas recém-ocupadas. Logo de início, portanto,

lg
o leitor defronta-se com uma multiplicidade de possibilidades e
combinações de estratégias de moradia e trabalho que constituem o
vu
cotidiano das populações de baixa renda.
Em Mudança Social no Nordeste, é justamente a diacronia
di

que anima a investigação, em torno da formação do proletariado


de

urbano no Nordeste. A introdução parte da insuficiência do salário


para a reprodução do trabalhador e sua família a fim de elaborar as
diversas articulações entre o trabalho assalariado e o que chamam de
ar

formas de “produção independente”, isto é, formas não capitalistas


pl

de produção. Machado e Leite Lopes afirmam que não há por que


supor que a soma dos salários individuais pagos aos trabalhadores
em

corresponda ao custo de reprodução da força de trabalho. É, de um


lado, pela extensão da jornada de trabalho do trabalhador individual
Ex

e, de outro, pela socialização na família dos custos de reprodução


que a conta fecha e a família trabalhadora se reproduz, ainda que
precariamente na maior parte dos casos.
Em torno dessa problemática, a introdução versa sobre um
amplo espectro de formas de participação no mercado de trabalho e,
consequentemente, de modos de dominação que se transformam ao
longo do tempo. Como casos extremos desse espectro, encontram-se,
por um lado, as fábricas com vila operária que, em si, já comportariam
uma diversidade considerável (desde usinas canavieiras da zona
da mata até fábricas têxteis urbanas) e, por outro, as ditas formas
de “produção independente”, ou não capitalistas. A decadência
dessa forma de dominação, marcada pela concentração do capital
82 | Luiz Antonio Machado da Silva

industrial e da propriedade territorial, implica o surgimento de novas


articulações da “produção independente” com formas assalariadas
de trabalho: operários trabalhando em pequenas oficinas; grupos de
produtores diretos trabalhando a domicílio e no pequeno comércio,
e, ainda, os operários das fábricas surgidas de uma industrialização
posterior à Sudene, a partir dos anos 1960.
Ao corrigir, nesses três textos, a “distorção de ótica” sobre a
qual repousam as teorias da marginalidade, ou seja, ao demonstrar
que as formas de trabalho não formalizadas ou não remuneradas
não se constituem como resíduo, ou algo de fora dos marcos da
economia moderna, Machado constrói uma perspectiva etnográfica

ão
que conduz a uma superação de dicotomias analíticas tão
consagradas quanto estéreis: formal/informal, tempo de trabalho/


tempo de lazer, trabalho remunerado/trabalho não remunerado,

lg
favela/cidade formal, micro/macro, e mesmo a ideia do indivíduo
trabalhador agente (uma vez que as estratégias são essencialmente
vu
familiares) cujo par dual seria a sociedade/estrutura. Não se trata
di

de encontrar, no micro, no próximo, no cotidiano, os traços de


um sistema mais amplo, já descrito a priori. A tarefa é descrever
de

como o cotidiano faz sentido, produz agentes competentes que


compreendem sua realidade. É nesse lugar, na construção e na
insistência nessa perspectiva, que Machado vem renovando e, sim,
ar

melhorando a sociologia e a antropologia urbana brasileiras há


pl

mais de cinquenta anos.


em

Referências bibliográficas
Ex

Freire, Jussara e Rocha, Lia de Matos. 2010. “Para uma sociografia


da sociologia urbana brasileira: a obra de Luiz Antonio Machado da
Silva”. Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia, 1(28),
pp. 69-91.

Machado da Silva, Luiz Antonio. 2016.  Fazendo a cidade: trabalho,


moradia e vida local entre as camadas populares urbanas. Rio de
Janeiro: Mórula Editorial.
4. Mercados metropolitanos de trabalho manual e
marginalidade1

Introdução

Esta dissertação aborda um tema de presença constante no


pensamento sociológico latino-americano: a marginalidade, ou o
processo de marginalização. O assunto é muito controvertido, não só
devido à complexidade do objeto, que, em última análise, é o próprio
processo de desenvolvimento, mas também porque, como área

ão
particular de preocupação, é relativamente recente. Por outro lado, a


bibliografia a respeito é quase inesgotável (e em boa parte de difícil
acesso), não obstante a escassez de dados estatísticos fidedignos e

lg
a insuficiência de investigações empíricas, lamentados por quase
todos os que tratam do tema.
vu
Estas considerações já indicam que qualquer tentativa de
di

atingir conclusões definitivas seria inutilmente pretensiosa. Outros


fatos, porém, especificamente relacionados ao presente trabalho,
de

impõem uma referência inicial à modéstia de suas ambições, a


fim de que ele possa ser bem compreendido. O limitado objeto de
análise, a natureza particular das áreas estudadas, a opção técnico-
ar

metodológica, etc., são fatores que configuram a maior parte das


pl

colocações como proposições ainda em aberto. Acredito que isso,


em

entretanto, não invalida o esforço empreendido.


O presente trabalho possui uma característica que se
considera da maior importância: o objeto de análise não foi
Ex

previamente selecionado, ele se impôs à medida que os dados


empíricos iam surgindo, por força das atividades profissionais
do investigador. Obviamente, este fato de ordem pragmática foi
determinante na coleta dos dados e, portanto, afetou o material
empírico disponível. De outro lado, ele condicionou o caminho de
penetração na literatura pertinente, de modo que também influiu
sobre certos aspectos da postura metodológica adotada. Acredito
ser útil, como introdução ao tratamento de ambas essas ordens de
problemas, expor os motivos e o processo de definição do tema,

1
Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, fevereiro de 1971.
84 | Luiz Antonio Machado da Silva

pois, com isso, estar-se-á caracterizando o terreno onde foram


realizadas as opções metodológicas e o quadro dentro do qual
os dados empíricos foram colhidos. Em outras palavras, assim
se explicita os pressupostos metodológicos e as deficiências do
material empírico disponível.
Todas as pesquisas de objetivos restritos, finalidades práticas
imediatas e grupos específicos, realizadas por mim na qualidade
de membro de programas sociais de promoção de melhorias
habitacionais em populações faveladas, terminavam sempre por
encaminhar o raciocínio no sentido da problemática que vinha
sendo objeto das preocupações da “sociologia da marginalidade”

ão
(esta expressão, que vem se tornando de uso corrente, é usada em
um sentido impressionístico, para indicar um setor das teorias de


desenvolvimento que tem por objeto central os chamados “estratos

lg
menos favorecidos” das sociedades analisadas). No entanto, em um
aparente paradoxo, os dados colhidos pareciam conflitar diretamente
vu
com boa parte das interpretações existentes. O autor estava, por
di

força das pesquisas que dirigia, no que tem sido considerado o


próprio coração ecológico da marginalidade (as favelas), mas os
de

conhecimentos que adquiria refutavam os modelos elaborados para


explicá-la, a tal ponto que, em um primeiro momento, tudo parecia
indicar a necessidade de abandonar, por falta de sustentação empírica
ar

e força explicativa, a própria noção de marginalidade.2 Porém, no


pl

processo de interpretação dos dados das mesmas pesquisas, as


conclusões voltavam a apresentar problemas muito semelhantes aos
em

tratados nos modelos antes considerados inadequados.


Paulatinamente, foi-se percebendo que a discordância básica
Ex

com a maioria das formulações em pauta não era tanto sobre o


conteúdo dos modelos apresentados, mas antes sobre o que parece
ser uma distorção da perspectiva que presidia certas interpretações.

2
A interpretação das favelas como núcleo da marginalidade é bastante duvidosa,
embora aqui a discussão desse problema seja supérflua. É suficiente lembrar que
nada parece provar, de um lado, que outras áreas urbanas estejam “livres” de grupos
marginais e, de outro, que as favelas possuam populações tão homogêneas quanto
aquela interpretação admite como pressuposto. Cf. Machado da Silva (1967),
Machado da Silva e Santos (1969) e Turner (s.d.). Os dois primeiros trabalhos
salientam a diferenciação interna na composição das favelas, enquanto o último –
tomando como material empírico as barriadas de Lima – mostra as diferenças entre
os vários tipos de áreas faveladas (squatter settlements).
Parte 2 Trabalho e cidade | 85

Sem intenções de enveredar por uma sociologia da sociologia, pode-


se dizer, de forma simples e um tanto radical, que o problema era
a completa falta de vivência da realidade estudada, evidenciada
naqueles modelos. Quase todo o material empírico baseava-se em
dados censitários, cuja análise não se fundava no conhecimento
direto do cotidiano dos grupos envolvidos; e, nos poucos trabalhos
de campo, o distanciamento entre o observador e os grupos
observados era total, havendo sempre a mediação de instrumentos
formais de coleta. Em uma palavra: desconhecia-se o significado da
realidade para as populações envolvidas, de modo que o material
empírico (reduzido e pouco detalhado) usado como suporte para as

ão
proposições teoricamente deduzidas era interpretado tomando-se
como referência os grupos dos quais faziam parte os investigadores.


Na medida em que se pode entender esta situação, definia-se

lg
o sentido e a utilidade de um trabalho como o aqui apresentado, que
procura elaborar um modelo das situações concretas de trabalho
vu
e das condições de organização do mercado, assumindo como
di

perspectiva a posição dos próprios trabalhadores. Com base nesse


modelo descritivo, seria possível tentar um diálogo com as teorias
de

globais sobre a marginalidade urbana, procurando corrigi-las e


qualificá-las, de maneira a retificar os erros decorrentes do que se
considerou sua distorção de ótica.
ar

Um caminho útil para o tratamento sistemático das


pl

interpretações a respeito da marginalidade seria agrupar as


investigações segundo suas características, respeitados os níveis
em

de análise e as orientações teóricas. Com isso, seria possível


construir um número reduzido de construções típicas a partir dos
Ex

postulados comuns a cada um desses grupos, evitando-se que a


atenção seja dispersada pelas inevitáveis nuances particulares a
cada autor. Compensar-se-ia a simplificação daí decorrente pelo
relevo emprestado aos aspectos fundamentais da discussão e pelas
possibilidades que esse procedimento oferece para um trabalho
comparativo.
Sem dúvida, reconhecendo o domínio incompleto da vasta
literatura pertinente, o presente trabalho não pretendeu realizar
tarefa de tal envergadura. Apenas procurei oferecer um esboço
preliminar e pouco detalhado do que poderia significar uma
abordagem dessa natureza. De um lado, a título de ilustração da
qualidade das conclusões que poderiam ser obtidas; de outro, porque
86 | Luiz Antonio Machado da Silva

o modelo apresentado não estaria completo sem algumas referências,


que inevitavelmente tocam os problemas de marginalidade, sobre o
modo de inserção dos trabalhadores envolvidos no sistema global,
a partir das condições do mercado de trabalho. (É importante
observar que, na medida em que se trata de uma descrição empírica,
a primeira parte deste trabalho – capítulos 1, 2 e 3 – representa uma
contribuição independente e unitária, podendo ser utilizada para
outras formulações, ainda que não haja concordância quanto às
críticas e sugestões do último capítulo).
Dois outros pontos devem ser ressaltados. Em primeiro lugar,
a natureza do material empírico não permitia mais do que um esboço

ão
dessa tarefa crítica. Por um lado, porque os dados coletados não
resultam de um projeto específico de pesquisa, que permitisse uma


coleta sistemática. Ao contrário, o material disponível é subproduto

lg
de vários anos – cerca de cinco – de trabalho em pesquisas com
objetivos afins, mas não diretamente centrados sobre o tema, como
vu
salientei acima. Desse modo, reconheço certas deficiências e lacunas,
di

que ficarão claras no decorrer mesmo da exposição.


Por outro lado, toda a atividade de pesquisa desenvolveu-se
de

em um contexto que poderia ser definido, em termos genéricos, como


“metropolitano”. Foi realizada, com variadas durações, nas cidades
de Recife, Salvador, Fortaleza e, em especial, Rio de Janeiro. O poder
ar

da generalização do modelo está, portanto, limitado às grandes


pl

cidades brasileiras, devendo-se ainda notar que a maior parte das


investigações foi empreendida na segunda cidade industrial do
em

país. Na medida em que as teorias sobre marginalidade apresentam


esquemas que se pretendem globais, o modelo aqui exposto
Ex

representa uma base apenas parcial de argumentação (o que, de


forma alguma, lhe retira a capacidade de servir como fundamento
para as críticas levantadas).
Para justificar mais profundamente o caráter ainda e apenas
exploratório da discussão sobre as teorias de marginalidade, não
é ocioso repetir que a literatura a respeito é imensa, de modo que
seria muito difícil cobrir todos os autores e nuances de interpretação
existentes. O diálogo iniciado neste trabalho objetiva tão somente
demonstrar que o caminho de debate teórico adotado é viável e de
grande utilidade. Sem dúvida, reconheço a necessidade de outras
investigações, que permitam uma generalização mais ampla do
modelo apresentado nestas páginas e um conhecimento mais
Parte 2 Trabalho e cidade | 87

detalhado da literatura teórica.


O segundo ponto a ser ressaltado diz respeito às
consequências, em termos metodológicos, da perspectiva assumida,
tanto na elaboração do modelo, quanto na abordagem crítica
aos esquemas mais globais, que foi dita ser ‘’o ponto de vista dos
trabalhadores’’. De início, deve-se notar, apesar do risco de incorrer
em uma obviedade, que esta afirmativa só pode ser entendida
analiticamente, isto é, que os trabalhadores são tomados como
referência no contexto de uma análise socioantropológica. É claro
que, ao adotar e enfatizar a observação participante como meio de
conhecimento vivencial, jamais pretendi fazê-lo para ver a realidade

ão
‘’com os olhos do trabalhador’’.
Mesmo com essa ressalva fundamental, aquela ótica analítica


exigia o conhecimento – o aprendizado, mais precisamente3 – do

lg
significado das condições do mercado para os grupos envolvidos;
em outras palavras, era preciso conhecer e entender como estes
vu
percebiam o setor da realidade que era objeto de análise. A par
di

das preferências pessoais do investigador, essa exigência impunha


um certo procedimento técnico-metodológico como o único que
de

permitiria atingir os objetivos propostos. O uso de instrumentos


formais de coleta era insuficiente. Eles colocam um distanciamento
entre observador e observado que só permite ao primeiro o acesso
ar

a informações que apenas fazem sentido dentro de um sistema de


pl

referência analítico “externo”. Nestas condições, o pesquisador fica


impedido de aprender como um todo o contexto sociocultural de
em

onde provêm, ou seja, seu significado para os próprios atores. A


convivência, o recurso à observação semiparticipante extensiva, era,
Ex

desse modo, o requisito técnico-metodológico indispensável.4


Portanto, a orientação básica adotada foi incorporar a
experiência existencial do investigador ao processo de investigação,
desde a coleta de dados até as inferências teóricas. Não se trata de

3
Ver adiante capítulo 3, nota 58.
4
Deve-se notar que, por imposição das obrigações profissionais do autor, ele
conduziu diversos “surveys” socioeconômicos das populações analisadas. Mesmo
utilizando, na elaboração dos respectivos questionários, os conhecimentos obtidos
através da supra referida “convivência”, pôde-se constatar a extrema pobreza dos
dados assim obtidos, bem como as enormes dificuldades técnicas de formalização
daqueles conhecimentos a nível de questionário. Este fato contribuiu para reforçar
a opção pela observação participante.
88 | Luiz Antonio Machado da Silva

lançar mão da observação participante como simples técnica de


pesquisa, mas de esgotar suas possibilidades, admitindo a interação
entre o pesquisador e seu objeto (sua vivência) como instrumento
útil, válido e até mesmo indispensável de conhecimento e análise.
Com isso, fica explicitado que em nenhum momento o
presente trabalho está livre de julgamentos de valor, apesar da
constante preocupação de objetividade. Mas acredito que esta
deficiência seja amplamente compensada por uma compreensão
mais íntima do significado que os problemas abordados assumem
para os próprios grupos envolvidos. Em defesa dessa posição pode-
se acrescentar que a grande maioria dos estudos existentes (e não

ão
apenas os de natureza quantitativa), em que o observador procura
adotar uma rígida posição impessoal perante seu objeto, não parece


possuir maior independência dos julgamentos de valor.

lg
Na medida em que se objetiva embasar empiricamente
este trabalho na “vivência”, no “depoimento pessoal”, é de crucial
vu
importância esclarecer a qualidade do material apresentado.
di

Ao longo do texto, são oferecidos diversos exemplos: algumas


informações quantitativas, casos particulares, situações comuns,
de

etc. Para seu perfeito entendimento, deve-se evitar substantivá-los,


mantendo sempre em mente que esses exemplos se colocam no
contexto de uma tentativa de elaboração analítica da experiência
ar

existencial compartilhada na interação entre o pesquisador e seus


pl

informantes. Portanto, os exemplos não podem ser vistos como


dados (“provas”), mas sim como ilustrações que buscam tão somente
em

esclarecer e facilitar a compreensão dos problemas apresentados.


Neste sentido, coloca-se outra questão, relacionada aos
Ex

aspectos formais da apresentação de um trabalho científico.


Enquanto se pretende elaborar uma vivência pessoal, os dados
primários (brutos) nem sempre são de molde a permitir sua
apresentação direta – com isso se estaria esvaziando um aspecto
importante, o “clima” em que eles foram apreendidos. Isso não
significa, entretanto, que eles tenham sido sistematicamente
escamoteados, mas que muitas vezes precisaram ser colocados já
sob a forma de uma primeira elaboração analítica.
Cumpre ainda uma palavra sobre a delimitação do universo
de análise. Em termos gerais, trata-se do trabalho manual urbano
(metropolitano), qualificado e não qualificado. Contudo, essa
caracterização do campo de estudo é, obviamente, insuficiente.
Parte 2 Trabalho e cidade | 89

Primeiro, porque muitas atividades não manuais de rotina possuem


características que as aproximam das analisadas. Segundo, porque
se usa o termo “qualificado” como diferente de “especializado”, no
sentido de que, no primeiro caso, o treinamento formal (curricular)
não é condição indispensável para a formação técnico-profissional;
e definir quais os tipos de atividades que podem ou não ser
aprendidas no decorrer mesmo de sua execução e que não exigem
uma escolarização mínima – isto é, mediante o treinamento em
serviço, como se costuma dizer – é tarefa muito delicada.
Por esses motivos, a linha demarcatória superior da área
de estudo é reconhecidamente nebulosa. Este problema, porém,

ão
não deverá criar dificuldades maiores para a compreensão do
presente trabalho e de seus limites, desde que não seja moldada pelo


formalismo. Acredito que os próprios objetivos propostos resolvam

lg
e esclareçam os problemas da relativa fluidez do universo de análise.
Assim, o “trabalho manual urbano” é investigado com interesse
vu
último nas questões relacionadas à marginalidade, de modo que
di

a atenção se centraliza sobre os segmentos menos sofisticados da


mão de obra (o trabalho pouco ou nada qualificado) e da atividade
de

econômica em geral (a que se caracteriza pela reduzida formalização


jurídico-institucional).
Finalmente, é preciso deixar claro que estou plenamente
ar

consciente de uma característica deste trabalho: embora a nível


pl

individual tenha sido dada razoável atenção aos aspectos de


conflito (competição), no plano global o modelo aqui apresentado
em

assume uma perspectiva que enfatiza o consenso (integração x não


integração, participação no sistema). Sem negar que esta possa ser
Ex

uma séria limitação, penso que ela se justifique devido à natureza do


objeto e ao nível de análise em que ele é tratado.

Capítulo 1. A estrutura dos mercados metropolitanos de


trabalho manual

O mercado formal de empregos

Visto desde a perspectiva dos modos de atuação do


trabalhador, isto é, de suas manipulações visando o controle do
emprego (atual ou potencial), o mercado apresenta uma diferenciação
90 | Luiz Antonio Machado da Silva

básica, determinada por dois tipos polares de empregador: a firma


e o indivíduo. Por indivíduo, entendo o agente econômico (pessoa,
família, etc.) que é antes consumidor de bens e serviços do que
empresário e que, portanto, não tem existência jurídica como
empregador.5 Por firma, entende-se a empresa registrada,6 cuja
atuação se orienta em consonância com o aparato legal vigente:
legislação trabalhista, tributária, etc.
Em torno desses polos, o mercado de trabalho organiza-se
em dois subsistemas, aqui denominados, por oposição, mercado
formal (MF) e mercado não formalizado (MNF). Ambos são altamente
institucionalizados, de modo que a dicotomia formal/informal indica,

ão
neste contexto, apenas a explicitação ou não das alternativas de
comportamento sob a forma de normas jurídicas. Essa explicitação é


importante, porque implica uma menor flexibilidade dos modos de
acesso e conduta nos empregos ligados ao MF.
lg
O traço fundamental do MF é, portanto, a proteção e a
vu
definição legal do emprego que ele proporciona. O exemplo típico
di

de emprego nesse subsistema é aquele que se costuma denominar


“emprego regular e permanente”. No MNF, a característica básica
de

é a distribuição dos riscos relativos à inatividade, através da


multiplicação de fornecedores de ocupações remuneradas, isto
é, consumidores de serviços pessoais, “patrões”. A situação típica
ar

de trabalho não tem sido considerada pelos estudiosos como


pl

“emprego”, mas sim como uma forma de “subemprego”, com baixa


produtividade, irregular e intermitente.7
em
Ex

5
Vale lembrar que o texto terminou de ser escrito em fevereiro de 1971, muito antes
da expansão da legislação trabalhista (a qual, na atualidade, está novamente sendo
restringida), que, naquele momento, deixava diversos segmentos de trabalhadores
sem proteção jurídica. A relevância da carteira de trabalho assinada era muito
menos trivial do que nos dias de hoje, quando as questões de proteção do trabalho
são de outra natureza.
6
No jargão jurídico-contábil, “registrar” é seguir todo o processo que culmina com
a inscrição da empresa no Cadastro Geral dos Contribuintes, e lhe proporciona o
status de “pessoa jurídica”. O termo é muito usado na linguagem popular corrente,
com conotações amplas: além do significado técnico, indica que o proprietário
admite submeter-se à legalização e fiscalização do Estado e sabe que, com isso,
está ingressando em novo contexto institucional. (É óbvio que tal não implica uma
disposição automática de cumprir a lei, frequentemente burlada).
7
É fundamental notar que esses são exemplos típicos e muito abstratos. Como
ficará claro no decorrer desta exposição, eles estão mais próximos da construção
Parte 2 Trabalho e cidade | 91

A fim de reter o fato de que no MF o trabalhador se vincula


a um único empregador, ao passo que no MNF a relação de emprego
se dá com uma variedade de patrões, utilizam-se, respectivamente,
os termos “emprego” para o primeiro caso, e “ocupação” para o
segundo.8
Uma das principais consequências da participação em
condições “normais” – isto é, típicas – no MF é a “carteira assinada”,
expressão usada para indicar que o contrato foi transcrito na carteira
de trabalho do empregado, assinado pelo empregador e registrado
no Ministério de Trabalho (no caso de funcionários públicos, o
equivalente é a “carteira funcional”).

ão
Com o reconhecimento legal de sua existência, o empregado
passa a fazer jus aos direitos e deveres previstos na legislação


trabalhista, em cujas minúcias jurídicas não cabe aqui ingressar.

lg
Entretanto, sem preocupações dessa natureza e de uma perspectiva
leiga, pode-se dizer que os benefícios mais valorizados pelos
vu
trabalhadores se referem às leis de proteção salarial: salário-mínimo,
di

salário-família, 13º salário, férias remuneradas, etc. A proteção


do emprego propriamente dito é também muito importante. Sua
de

base é o direito do empregado a uma indenização proporcional ao


tempo de serviço, no caso de dispensa sem justa causa – conhecida
como “lei da estabilidade” –, sendo algumas de cujas consequências
ar

sobre as relações de trabalho tratadas mais adiante. A legislação foi


pl

recentemente [1971] alterada, sendo esse direito substituído pela


participação em um fundo comum, chamado “Fundo de Garantia
em

por Tempo de Serviço” (FGTS), que pouco modificou o montante


da indenização contida na lei anterior, apesar das críticas que vem
Ex

recebendo dos setores organizados dos trabalhadores.

analítica que de casos concretos. Foram escolhidos propositalmente, para que


se possa perceber como a maioria das abordagens correntes tende a generalizar
situações extremas, em decorrência de uma perspectiva deformada por excesso
de preocupações legais e formais. (Como se verá, porém, existem diversos casos
intermediários entre esses dois extremos).
8
Não há dúvida de que opor esses termos entre si é um procedimento pouco
ortodoxo, porque eles correspondem classicamente a níveis diferentes. O que
se deseja é usá-los para diferenciar genericamente tipos de situação de trabalho
nos dois mercados, evitando a discussão formal (sobremaneira estéril para os
propósitos do presente trabalho) sobre a medida em que o termo “emprego” é
aplicável ao MNF. Para uma abordagem técnica da utilização dos termos, veja-se
OIT (1963).
92 | Luiz Antonio Machado da Silva

Finalmente, o empregado com carteira assinada encontra-


se sob a proteção de uma série de benefícios ligados à previdência
social: tratamento médico (pessoal e dos dependentes) gratuito;
remuneração proporcional ao tempo de serviço, nos casos de
afastamento temporário por doença ou acidente; aposentadoria;
direitos da família, no caso de morte do empregado (pensão); etc.
Deve-se notar que os benefícios proporcionados pelo Instituto
Nacional de Previdência Social (INPS) não são exclusivos dos
trabalhadores com status de empregados, estendendo-se também
a empresários, profissionais liberais e trabalhadores autônomos,
desde que preencham o requisito básico de reconhecimento legal

ão
das atividades econômicas do interessado. Mas a proporção de
trabalhadores manuais autônomos filiados ao INPS é muito pequena.


Em primeiro lugar, porque o preparo da documentação é difícil, os

lg
trâmites burocráticos são lentos e onerosos, etc. Em segundo lugar,
o previdenciário obriga-se ao pagamento de uma taxa mensal sobre
vu
sua remuneração, via de regra, de 8%. No caso dos empregados, eles
di

já recebem o salário descontado dessa importância pelo empregador,


que depois a recolhe ao INPS, de modo que o pagamento é quase
de

compulsório. Entre os trabalhadores autônomos, ao contrário, trata-


se de uma opção pessoal, na medida em que é o próprio interessado
quem deve recolher a taxa; para evitar essa despesa, a maioria
ar

prefere não se filiar ao INPS.


pl

Além dessas vantagens, diretamente vinculadas ao


reconhecimento legal do trabalhador, a participação no MF
em

apresenta outras. Certas firmas de grande porte, que desenvolvem


uma política de pessoal que pode ser denominada de moderna,
Ex

proporcionam outros benefícios importantes para o empregado:


assistência médica, em geral mais rápida e de melhor qualidade
que o atendimento nos hospitais do INPS; seguros privados em
grupo; financiamentos diversos; estímulo a caixas de empréstimos
pessoais organizadas pelos empregados; etc. Entretanto, a
quantidade de empresas privadas com essa linha de atuação é
muito limitada. Os beneficiários mais comuns de tais vantagens
adicionais são os empregados públicos,9 talvez devido ao chamado

9
Da passagem, deve-se notar que os empregos públicos são de dois tipos: os regidos
pelos Estatutos dos Funcionários (da União ou estados-membros), e os regidos pela
Consolidação das Leis do Trabalho (idênticos aos das empresas particulares). No
presente trabalho, como ambos têm tratamento muito semelhante, as diferenças
Parte 2 Trabalho e cidade | 93

paternalismo estatal, que ironicamente substituiria as políticas de


pessoal “esclarecidas”.
A carteira assinada implica também um outro tipo de
reconhecimento, de efeitos econômicos menos diretos, mas
também significativos. Trata-se do que se poderia chamar de
reconhecimento social, cuja principal consequência se localiza na
esfera da ação policial.
É fato indiscutível que os órgãos policiais, em suas atividades
diárias normais, focalizam especialmente os estratos inferiores da
população. Os trabalhadores manuais, por fazerem parte desses
estratos, encontram-se, portanto, mais próximos da ação da

ão
polícia. Nas rondas de rotina, a maior parte das prisões efetuadas
incide sobre as pessoas incapazes de apresentar documentos de


trabalho, as quais são detidas “para averiguações” (durando de

lg
24 a 48 horas, em regra). Como a ausência de uma fonte de renda
estável é contravenção prevista por lei – denominada popularmente
vu
de “vadiagem” –, algumas pessoas chegam a ser processadas e
di

eventualmente condenadas, o que aumenta em muito o prazo de


detenção.
de

Embora constituam exceções os casos de verdadeiros


trabalhadores processados por vadiagem, por não possuírem
carteira de trabalho, as prisões “para averiguações” representam
ar

um fantasma real que constantemente paira sobre eles. Dispondo


pl

da carteira assinada, o indivíduo sente-se muito mais seguro e fica


a coberto das humilhações e dificuldades financeiras que decorrem
em

daquelas prisões.
Além dessa proteção, a carteira assinada tem muitos outros
Ex

efeitos sociais. Assim, por exemplo, ela é um símbolo do status


muito valorizado, que traz consigo uma série de facilidades.10 De
outro lado, ela funciona para o empregador como uma espécie
de curriculum vitae, sendo muitas vezes exigida para comprovar
experiência e qualificação profissional, qualidades pessoais, etc.
Por isso, trabalhadores com muitos registros na carteira em curto
período de tempo, ou com grandes intervalos entre um registro e
outro, dificilmente são aceitos em empregos considerados “bons”.

entre as duas categorias de empregados públicos podem ser ignoradas.


10
A esse respeito, bem como sobre as relações com a polícia, veja-se Machado da
Silva (1969, especialmente pp. 164, 167-171 e 175).
94 | Luiz Antonio Machado da Silva

Outra importante consequência indireta da carteira assinada


é a facilidade que proporciona na abertura de crédito para aquisição
de mercadorias de toda espécie, embora a ausência desse documento
não chegue a constituir obstáculo intransponível.
Em resumo, o emprego típico do MF proporciona, através
da carteira assinada, proteção legal e reconhecimento social. No
entanto, não se pode dizer que o MF se compõe exclusivamente
de empregos desse tipo. Isto porque, mesmo considerando apenas
o empregador tipicamente característico do MF – ou seja, a firma
registrada –, o volume de irregularidades jurídicas nas relações
de trabalho é enorme. Quanto menor o porte da empresa e mais

ão
deficiente seus métodos de administração, maior a tendência de
burla à legislação, que serve de recurso para problemas os mais


diversos do empregador: aumento da margem de lucro, dificuldades

lg
financeiras, etc. Todas essas irregularidades provavelmente têm
origem no fato de que o ônus com os encargos trabalhistas chega
vu
a equivaler a 50% sobre a folha de pagamentos da empresa, o que
di

provoca fortes repercussões sobre os custos de produção.11


Existem diversos tipos de fraude e recursos, por parte de
de

firmas legalmente registradas. Alguns não chegam a afetar o integral


reconhecimento jurídico do trabalhador. Um exemplo é a prática
bastante comum da venda das férias, que, pela legislação, constituem
ar

um direito obrigatório: o empregado abdica do gozo efetivo desse


pl

descanso, continuando a trabalhar em troca do recebimento em


dobro da remuneração correspondente ao período. É claro que isso
em
Ex

11
Veja-se Ministério do Planejamento (1969, p. 166): “Para cumprir com os
requisitos fundamentais da legislação social, portanto, o empregador incorre em
ciclos de onze meses de trabalho, em despesas extraordinárias da ordem de 50%
aproximadamente”. Este estudo conclui que: “Benefícios da legislação assistencial
são uma conquista da classe trabalhadora, mas constituem um empecilho à
utilização da mão-de-obra, sobretudo em setores de baixa produtividade marginal
[…]” (Ibid., p. 166). Devido às possibilidades de burla à legislação, entretanto,
acredita-se que esta é uma interpretação exageradamente radical, uma vez que é
lógico supor que justamente esses setores teriam maiores dificuldades de realizar
mudanças tecnológicas com o objetivo de substituir o trabalho por capital.
[Esta nota, vista nos dias de hoje (2018), permite sugerir que, na medida em que as
lutas sociais que impulsionam a racionalização dos controles relativos à proteção do
trabalho têm como contrapartida, desde aquela época, uma oposição ferrenha dos
setores ligados ao empresariado e seus intelectuais, as tentativas de desconstrução
do Estado-Providência não têm nada de novo, exceto seu acirramento].
Parte 2 Trabalho e cidade | 95

é mais comum em empresas pequenas, quando a ausência de um


único empregado chega a afetar o seu funcionamento normal. Pois,
sendo o próprio empregador quem determina quando o trabalhador
gozará de férias, fica eliminada a possibilidade de ausência de grande
número de trabalhadores com funções idênticas ao mesmo tempo.
Outro recurso, usado por firmas com dificuldades de capital,
são os acordos sobre a indenização, quando o empregado é demitido
“sem justa causa”. A fim de evitar a necessidade da ação judicial,
sempre muito demorada, para a cobrança de seus direitos, ou
para abreviá-la, ou ainda por desconhecimento de seus direitos, o
empregado concorda em receber quantia inferior (em geral, cerca de

ão
60 a 80%, dependendo do montante global) à devida pela firma. Esse
recurso é legalmente admitido, mas contribui para uma evidente


deformação da lei.

lg
Com a recente criação do FGTS, tal prática tende a desaparecer,
porque a indenização, que implicava desembolso relativamente
vu
grande por parte da firma a curto prazo, foi substituída pelo depósito
di

ao FGTS de uma quantia mensal calculada sobre o valor do salário,


que é posta à disposição do empregado nos casos de demissão sem
de

justa causa. O percentual parece ter sido calculado de tal forma que
o trabalhador termina por receber quantia muito semelhante àquela
a que faria jus pela lei anterior.
ar

Durante a vigência dessa lei – a chamada lei da estabilidade –,


pl

os empregadores frequentemente lançavam mão de outros recursos,


também válidos do ponto de vista jurídico, mas que constituíam
em

ainda maior desrespeito à intenção do legislador e que tinham sérias


repercussões sobre a permanência do empregado no emprego. A “lei
Ex

da estabilidade” estipulava que, para cada ano de trabalho na firma,


o empregado tinha direito a uma indenização correspondente a um
mês de salário, férias não gozadas e fração do 13º salário não recebida;
e que, a partir do décimo ano, a indenização seria paga em dobro.
Por outro lado, era praticamente impossível para o empregador
provar juridicamente que a demissão se baseava em “justa causa”,
única possibilidade em que se veria desobrigado de indenizar o
trabalhador dispensado. A firma, então, demitia o trabalhador antes
que ele completasse um ano de atividade na empresa, especialmente
nos casos de empregados não qualificados, de fácil recrutamento.
Com isso, tomava uma medida preventiva de economia. Nos casos
em que o empregado lograva ultrapassar o primeiro ano na firma,
96 | Luiz Antonio Machado da Silva

só viria a ser afetado por essa medida ao se aproximar dos dez anos
“de casa”: eram raríssimos os empregados de qualquer nível que
escapavam da demissão nesse momento.
Atualmente [em 1971], existe uma situação de transição:
todos os novos contratos são protegidos pelo FGTS, bem como
os antigos, nos casos em que os empregados optaram por este
regime. Os demais contratos permanecem sob a proteção da antiga
lei da estabilidade. Os efeitos práticos dessa mudança sobre o
comportamento do empregador e a estabilidade do empregado
são ainda nebulosos. É provável, porém, que os conflitos de
interesse configurados em torno do tempo de serviço tenham sido

ão
eliminados. Com o FGTS, o empregador obriga-se a um depósito
mensal que nada tem a ver com o prazo de trabalho na empresa,


e que representa, na prática, um parcelamento da despesa com

lg
a indenização – que, portanto, deixa de apresentar problema
orçamentário de vulto para a firma.
vu
Outra irregularidade muito comum e de remotas
di

possibilidades de punição é o registro de uma espécie de “contrato-


fantasma” de trabalho. Segundo ele, o empregado exerceria funções
de

não qualificadas (servente, por exemplo), recebendo salário-mínimo


– enquanto as funções efetivamente desempenhadas são qualificadas,
equivalendo, de fato, a um salário mais elevado (bombeiro, eletricista,
ar

etc.). Uma variante são os casos em que o empregado aprende a


pl

profissão na própria firma, terminando por assumir tarefas de maior


responsabilidade, sem a respectiva alteração no contrato de trabalho.
em

Até agora, todos os casos de irregularidade citados dizem


respeito a fraudes e recursos legais que ocorrem dentro das normas
Ex

jurídicas que organizam e regulam as relações de trabalho. Portanto,


o trabalhador – embora com seus direitos lesados – conserva o pleno
reconhecimento legal de sua atividade (é preciso não esquecer que
alguns casos analisados constituem também burla ao Estado, isto é,
aos órgãos de previdência social). Mas existem outras situações em
que esse reconhecimento é apenas parcial, ou mesmo totalmente
inexistente, sem que isso altere a natureza do emprego a ponto de
torná-lo qualitativamente diverso do emprego típico do MF.
É bastante comum a recusa da empresa de assinar a
carteira de alguns empregados, a fim de evitar a criação de vínculos
empregatícios legais, que acarretam despesas adicionais com os
encargos trabalhistas. Na realidade, porém, o trabalhador recebe
Parte 2 Trabalho e cidade | 97

um tratamento idêntico ao do que possui a situação legalizada


(salários, férias, horário de trabalho, etc.), exceto no que diz
respeito aos benefícios da previdência social e ao reconhecimento
social. E, quanto a este último aspecto, o empregador (ou gerente,
chefe imediato, etc.), quando avisado da detenção do funcionário,
encarrega-se de prestar testemunho em seu favor, que implica, via
de regra, a libertação automática do detido. Assim, se “de direito” o
empregado não existe, “de fato” tem vantagens muito semelhantes às
de qualquer outro. Esta prática parece ser tanto mais comum quanto
menor é o porte da firma, mas também ocorre com frequência em
firmas de maior porte quando a natureza da atividade é cíclica.

ão
Neste caso, a empresa mantém um grupo de empregados fixos, com
carteira assinada, e nas épocas de maior necessidade de mão de


obra contrata trabalhadores sem o respectivo reconhecimento legal,

lg
demitindo-os assim que se tornam dispensáveis – de modo que a
estabilidade do empregado e do próprio emprego é muito frágil.
vu
Uma possibilidade ainda mais radical de participação no MF
di

sem reconhecimento jurídico nem social é proporcionada por firmas


sem registro, cuja existência não é formalmente reconhecida. A
de

rigor, não se pode dizer delas que têm uma atuação ilegal, já que não
funcionam “à margem da lei”, mas antes “apesar da lei”. É óbvio que,
para que possam passar despercebidas pelos órgãos de fiscalização
ar

do Estado, precisam necessariamente ser pequenas, ou funcionar


pl

em áreas especiais da cidade: favelas, bairros de expansão urbana,


etc. Estão nesta situação uma infinidade de pequenas indústrias
em

“quase domésticas”, estabelecimentos de prestação de serviços cujo


equipamento é móvel ou reduzido, lojas comerciais de difícil acesso,
Ex

etc. – em uma palavra: empresas com muito poucos empregados,


ou trabalhadores autônomos de todo tipo que têm necessidade
de ajudantes, mas cuja sobrevivência econômica depende da
clandestinidade.
Algumas vezes essas firmas assumem um reconhecimento
parcial. É o caso, por exemplo, de pequenas empresas estabelecidas
que “compram” o anonimato pelo suborno dos fiscais (tributários
e/ou do trabalho) do Estado. Ou dos trabalhadores autônomos
(“autoempregados”), que pagam o imposto sobre serviços (ISS),
pequena taxa anual fixa que incide sobre qualquer tipo de atividade
não assalariada, mas que não reconhecem juridicamente o vínculo
empregatício com seus ajudantes. Embora o status jurídico desse
98 | Luiz Antonio Machado da Silva

trabalho seja de difícil definição para efeitos práticos, o simples


pagamento do ISS proporciona um certo reconhecimento legal e
social: o trabalhador pode filiar-se ao INPS, a polícia aceita o recibo
como substituto da carteira de trabalho, etc.
Os vários casos de funcionamento ilegal de empresas indicam
a existência de grandes variações no nível e tipo de subordinação (ou
adaptação) ao aparato jurídico-institucional. Alguns dos exemplos
acima poderiam ser tomados como casos de abuso do termo formal.
No entanto, isso não acontece, uma vez que mesmo a compra da
completa “invisibilidade” jurídico-institucional por suborno indica
importantes vinculações com determinados agentes do sistema

ão
formal. Portanto, mesmo aí existe um mínimo de interveniência das
normas legais, mediatizada pela figura do fiscal.


Em todos esses casos, os problemas localizam-se ao nível

lg
da própria existência da empresa, não se limitando às relações de
trabalho. Quanto à situação dos empregados, à primeira vista, é
vu
semelhante à dos que, embora trabalhando para firmas reconhecidas,
di

não têm o contrato registrado.12 Entretanto, a instabilidade é maior,


na medida em que, à precariedade intrínseca à pequena escala
de

de produção da firma, acresce seu funcionamento em condições


que podem ser chamadas de paralegais – além, é claro, da falta de
reconhecimento legal e social do emprego em si.
ar

Neste ponto, faz-se necessário pôr em relevo as categorias de


pl

emprego que compõem o MF, extraídas com base nas características


gerais acima apresentadas.
em

Em primeiro lugar, tem-se o emprego público,13 já que o Estado


é um empregador muito especial. O nível de salários, por exemplo,
Ex

é fortemente influenciado por fatores alheios às puras forças de

12
O contrato – e, portanto, a carteira assinada – não é o único instrumento
jurídico reconhecido por lei como comprovante do vínculo empregatício: é apenas
o mais comum e importante. A mera prova testemunhal, ou a apresentação de
seis recibos consecutivos de prestação de serviços, é plenamente admitida pela
Justiça do Trabalho. No entanto, por desconhecimento destas facilidades e porque
a ausência do contrato dificulta o andamento do processo, essas provas adicionais
são pouco usadas.
13
Por “emprego público”, entende-se aqui toda e qualquer situação em que o Estado,
em seus vários níveis, é o empregador. A expressão engloba, deste modo, os órgãos
de administração (federal, estadual e municipal) direta e indireta: autarquias,
fundações, companhias de economia mista, etc.
Parte 2 Trabalho e cidade | 99

mercado: política social, “paternalismo”, etc. Em consequência, existe


uma tendência ao pagamento de remunerações que ultrapassam
as que seriam determinadas pelo simples jogo de oferta e procura
(é do conhecimento geral que, nas profissões de nível técnico e
universitário, a tendência se inverte, mas este texto trata apenas do
trabalho manual). Outra característica fundamental relaciona-se à
estabilidade do emprego. O emprego em estabelecimentos públicos,
ainda quando regido pela Consolidação das Leis do Trabalho, é visto
como vitalício e, na realidade, proporciona alto grau de segurança.
Isso fica claro quando se atenta para o fato de que o funcionário não
se defronta com nenhuma das fraudes e irregularidades alinhadas

ão
acima. Quase todos os casos de demissão do serviço público
envolvem falta grave, sendo geralmente acompanhados de processo


administrativo e/ou criminal.

lg
A categoria de empregos privados é muito ampla e variada,
de modo que se torna necessário, mesmo em uma caracterização
vu
genérica, estabelecer subtipos. É preciso esclarecer que, justamente
di

devido àquela variedade, é difícil propor delimitações precisas entre


os subtipos, pois as definições precisam recorrer a construções ideais.
de

Em outras palavras, sempre se encontrarão casos concretos que não


se ajustam perfeitamente às categorias usadas, pois representam
situações “limiares” e, portanto, ambíguas.
ar

Um dos fatores fundamentais de diferenciação entre os


pl

empregos privados é a escala de produção da firma, com as diversas


consequências que provoca. Assim, em termos amplos, poder-se-
em

ia distinguir dois subtipos, segundo os empregos em a) grandes


empresas, ou b) pequenas empresas.14
Ex

Tudo indica que a flutuação do número total de empregos e/


ou ausência de registro tende a ser proporcionalmente menor nas
grandes empresas. Primeiro, porque seus empregos se relacionam

14
Esses termos podem fazer um apelo direto ao tamanho da empresa, embora se
espere que seja evitada uma ênfase demasiada sobre ele, pois o tamanho em si
possui importância muito reduzida para o problema. A própria noção de “tamanho”
é ambígua, pois não há relacionamento necessário entre, por exemplo, o valor da
produção, a área do estabelecimento e o volume de capital, ou entre este e o número
de empregados, etc. Optou-se pelo uso dos termos “grande empresa” e “pequena
empresa” apenas por falta de uma alternativa que, ao mesmo tempo, considerasse
as implicações da escala de produção e status legal, e evitasse as fortes conotações
de valor das dicotomias de uso corrente (empresa “moderna”/“tradicional”,
“monopolista”/“não monopolista”, “capitalista”/“pré-capitalista”, etc.).
100 | Luiz Antonio Machado da Silva

muito estreitamente com as necessidades de manipulação do


equipamento; segundo, porque as firmas de grande porte tendem
a possuir uma posição privilegiada no mercado, de modo que as
flutuações sazonais não exercem influência marcante sobre elas;
terceiro, porque possuem uma política de pessoal definida a longo
prazo;15 quarto, porque, na maioria dos setores, o peso de cada
emprego em particular nos custos de produção é muito reduzido;16
quinto, porque a fiscalização é maior, devido às facilidades
proporcionadas pela concentração espacial de grande número de
trabalhadores e a melhores perspectivas de compensação financeira
para o Estado, dado o volume de multas possíveis.

ão
Deve-se notar que todos esses fatores estão relacionados
sobretudo à regularidade e permanência dos postos de trabalho,


nada dizendo sobre a do empregado. Mas seus reflexos sobre este

lg
último são grandes, devido especialmente à tendência ao anonimato
provocada pela burocratização da administração e à reduzida
vu
importância do indivíduo na engrenagem produtiva. Desde que tenha
di

bom comportamento, sua permanência na firma não é questionada,


exceto quando se discute a própria existência da função, isto é, do
de

emprego em si.
Por todos esses motivos, pode-se dizer que existe uma
tendência à concentração dos empregos típicos do MF – os “empregos
ar

regulares e permanentes” – nas grandes empresas. Contudo,


pl

identificado este fato, é preciso não ignorar, paralelamente, que existe,


de um lado, ponderável quantidade de casos desviantes nas grandes
em
Ex

15
“O que na verdade interessa às grandes empresas – como resultado do volume
de suas inversões e das exigências tecnológicas de seus processos de fabricação – é
predeterminar a médio prazo seus custos e prever, por conseguinte, as variações
que possam ocorrer no preço da mão de obra; daí sua tendência a remunerar a
força de trabalho não tanto pelo valor do mercado que ela tenha, mas, e sobretudo,
em função de sua integração estável à organização produtiva da empresa” (Nun,
1969, p. 201). Deve-se ressaltar que essa tendência é válida antes de tudo para os
níveis de especialização mais altos (mesmo as mais modernas empresas utilizam
uma parcela de mão de obra semi ou não qualificada); e que ela permanece para as
empresas de menor porte que necessitem de trabalhadores especializados, os quais
sempre gozam de enormes privilégios. O caráter esquemático do texto acima – bem
como, em geral, das distinções entre empresas de grande e pequeno porte – não
pode ser ignorado.
16
Este fato tem sido estudado de uma perspectiva agregada, em termos das relações
capital/trabalho. Cf., por exemplo, Ministério do Planejamento (1969, cap. III).
Parte 2 Trabalho e cidade | 101

firmas, em especial nos níveis mais baixos de qualificação, e, de


outro, que é grande o número de empregos regulares e permanentes
em firmas menores e/ou “quase familiares”, inclusive as que não
têm existência jurídica. Reter esses problemas de generalização é
crucial para o presente trabalho, uma vez que uma das principais
deficiências das interpretações que serão analisadas adiante se
prendem justamente ao desconhecimento desses problemas, de que
decorre uma simplificação exagerada.
No caso da outra categoria de empregos privados, ligada
tendencialmente às firmas menores, o reconhecimento legal e a
estabilidade do próprio posto de trabalho são menos generalizados

ão
e/ou completos. As empresas encontram-se em uma dependência
mais íntima da situação do mercado, sua disponibilidade de capital


é menor e a relação técnica entre equipamento e mão de obra é mais

lg
flexível. Em consequência, o número total de empregos necessários
ao seu funcionamento, e compatível com sua liquidez, parece ser
vu
mais influenciado pelas flutuações conjunturais – com óbvias
di

repercussões na variação do volume de empregos oferecidos. Quanto


à estabilidade do empregado e ao reconhecimento legal, seguem de
de

perto esta tendência, provavelmente porque as manipulações na


área do trabalho são o melhor recurso para enfrentar dificuldades
financeiras e aumentar a margem de lucro.
ar

Já foram feitas referências a outros tipos de empregos que


pl

poderiam ser incluídos no MF: os oferecidos por empresas não


registradas. Viu-se que sua característica básica é a ausência total ou
em

parcial de reconhecimento da própria firma e, portanto, do emprego.


De fato, ela só alcança condições competitivas – isto é, só consegue a
Ex

sobrevivência econômica – justamente por causa da clandestinidade.


Já se viu o quanto os encargos trabalhistas oneram o custo do
trabalho; além disso, não existindo legalmente, a empresa evita toda
uma série de tributos (mesmo nos casos de suborno dos fiscais, essas
despesas são obviamente inferiores ao valor da tributação legal).
Por outro lado, a ausência de inserção plena no sistema jurídico-
institucional representa sério obstáculo para um funcionamento
estável, com repercussões equivalentes sobre os empregos.
Importante, também, o caráter familiar ou quase familiar
desses estabelecimentos – que se prolonga, talvez com menor
intensidade, até algumas pequenas firmas registradas –, responsável
por um padrão característico de organização das atividades,
102 | Luiz Antonio Machado da Silva

cuja racionalidade apresenta certas diferenças em relação às


firmas registradas e de maior porte. Trata-se, genericamente, da
personificação da atividade econômica, isto é, do papel que nela
representam as relações pessoais, e que será tratado com maior
detalhe na próxima seção. Isto afeta a própria qualidade do emprego,
dadas as formas de recrutamento e condições de trabalho peculiares,
bem como a estabilidade: o empregado não se defronta apenas com
problemas específicos de manutenção de emprego, mas envolve-se
com a estabilidade e sucesso da própria firma. Enquanto ela tiver
condições de sobrevivência, não há dificuldade de permanência no
emprego, desde que o trabalhador esteja amparado por ligações

ão
pessoais com o empregador – as quais, portanto, começam a
substituir a relevância da proteção legal do emprego.


Os contornos desses empregos afastam-nos sobremodo dos

lg
“empregos regulares e permanentes” típicos: a situação de trabalho,
as garantias do emprego e a ordem dos problemas de estabilidade
vu
situam o empregado em outro contexto. Paralelamente, conserva-
di

se um aspecto fundamental do MF: o trabalhador defronta-se com


um único empregador de modo mais ou menos duradouro, e é
de

dessa perspectiva que deve ser encarada sua atuação no sentido


do controle do emprego. É possível, então, dizer que esse grupo de
empregos se situa em uma região limiar entre o MF e o MNF, dada
ar

sua ambiguidade.
pl
em

O mercado não formalizado de empregos


Ex

Analisadas as características gerais e a composição do MF,


pode-se voltar a atenção para o MNF. Por oposição, depreende-se
que este subsistema é “invisível”, no sentido de que existe à revelia
do aparato jurídico-institucional. Portanto, é em um contexto sem
qualquer tipo de reconhecimento oficial que as ocupações do MNF
devem ser entendidas.
Foi descrito na seção anterior que a procura do amparo
legal proporcionado pela carteira assinada, como modo de controle
do emprego, é substituída no MNF pela distribuição de riscos de
inatividade através da diversificação de patrões. Cumpre, agora,
explorar em maior detalhe as características típicas do patrão. Este
não se trata exatamente de um empregador, no sentido clássico do
Parte 2 Trabalho e cidade | 103

empresário que, na sua função de reunir e organizar os fatores de


produção, oferece empregos. O patrão teria, mais do que qualquer
outra característica, a de um consumidor de serviços pessoais, uma
vez que contrata, não um empregado, mas uma tarefa específica e
determinada (em geral de curta duração); terminada esta, cessariam
os laços que o unem ao trabalhador.17
Mas nem sempre o comprador mantém essa condição
de “consumidor puro”, envolvido em uma transação impessoal
no mercado de serviços. Isto porque ele entra em uma relação
necessariamente interpessoal sem qualquer definição legal, em que
não há a mediação burocratizada da empresa entre o consumidor

ão
e o trabalhador. Aproveitando-se dessa situação, este se esforça
para ampliar a esfera e a duração do relacionamento, criando laços


de clientela18 a fim de obter uma posição segura no mercado, isto

lg
é, de evitar períodos em que seja incapaz de encontrar trabalho
remunerado.
vu
Esta personificação da atividade econômica é a característica
di

fundamental do MNF. Embora os laços de clientela não estejam


ausentes do MF, neste subsistema eles são mais restritos e
de

condicionados pela subordinação da situação de emprego às normas


gerais e impessoais, universalistas, representadas pelo sistema
legal, e à burocratização da atividade econômica, configurada pela
ar

“firma” como instituição. De fato, é comum no MF a criação de laços


pl

pessoais entre empregador ou chefe imediato e empregado. Mas


eles se desenvolvem em um contexto burocratizado, com fortes
em

definições formais-legais que limitam seu significado econômico


direto. Além disso, são apenas uma consequência não necessária
Ex

da situação de emprego, com repercussões secundárias sobre


a estabilidade. Por outro lado, as ocupações no MNF, apesar de
sempre muito personalizadas, não criam com todos os patrões laços
de clientela: em muitos casos, o trabalhador vende serviços para
diversos compradores meramente eventuais. O que se afirma como
típico do MNF é, em primeiro lugar, o forte significado econômico
das relações pessoais e, em segundo, que o trabalhador se torna

17
Embora importante a distinção aqui feita entre “patrão” e “empregador”, ela deve
ser entendida apenas em um contexto analítico. Adiante se verá (capítulo 3) que o
termo patrão é usado pelos trabalhadores tanto no contexto do MF quanto do MNF.
18
Para diversos tratamentos e utilizações do conceito de “patron-client relationship”,
veja-se Potter et al. (1967).
104 | Luiz Antonio Machado da Silva

cliente de um número variável de patrões, embora estes não sejam


os únicos consumidores de seus serviços. Os laços da clientela são
cruciais, na medida em que proporcionam uma garantia mínima
de venda da força de trabalho – para o próprio patrão ou outros
fregueses por ele indicados –, e porque trazem uma série de outras
vantagens econômicas (pequenos empréstimos, alimentos, roupas,
apresentação a novos consumidores, etc.) que constituem uma
importante fonte subsidiária de remuneração.
A invisibilidade legal, aliada à personificação da atividade
econômica, concorre para a extrema flexibilidade que o MNF
apresenta. No MF, uma vez obtida a carteira assinada, cessam ou

ão
diminuem para um limite mínimo as possibilidades de manipulação
individual do mercado por parte do trabalhador, que passa a depender


da proteção legal e das decisões de seu empregador, com reduzida

lg
chance de intervenção pessoal (daí porque, na seção anterior, se
deu tanta atenção aos aspectos legais do problema). No MNF, ao
vu
contrário, a segurança da ocupação depende sempre e apenas do
di

próprio trabalhador, que não encontra restrições de ordem jurídico-


institucional ou burocrática para sua atuação – donde a infinidade
de

de nuances que podem apresentar as situações de emprego.


É óbvio que isso não implica necessariamente a
independência do trabalhador. Na descrição que se segue, ver-se-á
ar

que, embora exista um tipo de ocupação em que o trabalhador


pl

dispõe de ampla margem de independência pessoal, a característica


típica das relações de trabalho no MNF é a substituição da proteção
em

legal pelas tentativas de estabelecimento de laços de clientela com o


maior número possível de patrões. Isso pode restringir ainda mais
Ex

a autonomia do trabalhador, não obstante esteja sempre aberta a


possibilidade de manipulação no sentido de aumentar a segurança
pela obtenção de novos patrões, assim como de buscar apoio
alternativo entre os diversos patrões.
Em termos gerais, pode-se dizer que a flexibilidade do MNF
se manifesta através de amplas variações em dois aspectos básicos
do mercado de trabalho: a determinação dos preços e a estabilidade
da ocupação. Essas variações fundamentam-se na possibilidade
de criação de vínculos indiretos (e informais) de trabalho. De fato,
as relações de trabalho no MNF são difusas, no sentido de que se
estendem muito além da simples relação concreta, direta e atual,
criada durante a execução de uma tarefa específica, em que os atores
Parte 2 Trabalho e cidade | 105

são o empregado e o empregador. Implicitamente envolvida em todas


as situações de trabalho está toda uma rede de contatos pessoais
que são, efetivamente, parte dos vínculos que constituem qualquer
ocupação pertencente ao MNF – o que coloca a relação específica
com o patrão (e os consumidores em geral) apenas em uma situação
privilegiada dentro da rede de contatos. O termo “contato” é aqui
entendido com o mesmo significado da linguagem corrente. Trata-
se de uma categoria verbal de conteúdo muito amplo e matizado,
o que introduz sérias dificuldades de explicitação e de definição
precisa. Em termos genéricos, engloba diversos níveis e tipos de
relações duais (interpessoais) – desde o simples conhecimento até

ão
a amizade, incluindo laços de parentesco e clientela, relações com
outros trabalhadores (e seus respectivos patrões, por via indireta),


consumidores, patrões, etc.19

lg
No MF, essa rede de contatos pessoais é importante para o
conhecimento do mercado, servindo como mecanismo de divulgação
vu
das oportunidades existentes. Uma vez obtido o emprego (legalmente
di

reconhecido ou não), os laços pessoais continuam a interessar como


meio adicional de segurança, ou para conseguir outro emprego em
de

melhores condições, ou ainda para obter um novo emprego em caso


de demissão. Entretanto, sua importância diminui muito, porque
eles têm eficácia limitada sobre a estabilidade e porque aceitar
ar

a mudança de emprego envolve riscos, no mínimo os decorrentes


pl

do desconhecimento do novo ambiente de trabalho. Além disso,


os contatos pessoais ficam restringidos, já que, na maior parte do
em
Ex

19
A importância da rede de contatos reflete-se em uma extrema riqueza e
sofisticação terminológica. As categorias que diferenciam os diversos tipos e níveis
de relacionamento dentro dela são muito elaboradas. Assim, o termo “colega”
indica outro trabalhador com equivalente capacidade de controle do mercado,
com quem não existe conflito de interesses, mas há um certo distanciamento. Já
as relações de cooperação se explicitam pelo recurso a termos retirados das
relações de parentesco (esse tipo de contato, embora em geral de duração muito
limitada, costuma transcender em muito o âmbito da mera relação econômica):
“compadre”, “irmão”, etc. Nas relações conflituosas, recorre-se frequentemente
ao termo “lambão” – sobre o qual serão feitas referências adiante –, para indicar
o trabalhador que se dispõe a executar a baixo preço uma tarefa para a qual não
tem habilidade suficiente. Infelizmente, o material empírico disponível não permite
um tratamento sistemático dessas categorias. A respeito da rede de contatos, foram
de grande importância, tanto do ponto de vista teórico quanto de informações
empíricas, diversas comunicações pessoais do Prof. A. Leeds e de Paul Silberstein.
106 | Luiz Antonio Machado da Silva

dia, o trabalhador se defronta apenas com os demais empregados


e o empregador ou chefe imediato, sendo incapaz de selecionar
esses relacionamentos em função de seus interesses econômicos.
Mesmo no caso de serviços externos, estes são sempre impostos e
predeterminados pelos interesses da empresa e não do empregado,
de modo que o cultivo dos contatos fica dificultado.
No MNF, ao contrário, o trabalhador dispõe de amplas
possibilidades de criação de novos contatos, porque as características
de sua atividade o põem em confrontação constante com uma
variedade de agentes econômicos de todos os tipos. E também
porque, nos momentos em que não dispõe de comprador para

ão
seus serviços, pode dedicar-se por inteiro ao fortalecimento dos
laços pessoais. Acresce que a importância da rede de contatos não


se esgota na divulgação e obtenção das oportunidades de trabalho

lg
disponíveis. Com efeito, de um lado, a segurança da ocupação – a
estabilidade – depende não da proteção legal, mas da habilidade
vu
em assegurar compradores; de outro, o trabalhador acumula a
di

responsabilidade de comercializar a mercadoria de que dispõe, isto


é, de julgar e influenciar pessoalmente o preço de seu trabalho, para
de

o que necessita de informações de toda espécie sobre as condições


de mercado.
Se no MF o preço do trabalho é mais ou menos invariável,
ar

condicionado que está a imposições legais e/ou determinações


pl

abstratas (ou seja, impessoais ou suprapessoais) de mercado, no MNF


ele é combinado entre as partes em cada relação específica, de modo
em

que o trabalhador conserva uma boa margem de influência pessoal.


Por isso, a mesma tarefa, executada pelo mesmo trabalhador, pode
Ex

ter remunerações muito diversas, sem que tal fato seja aleatório.
O número de variáveis que condiciona a estipulação de preços é
muito grande, mas as principais são: a disponibilidade financeira do
trabalhador no momento; a existência eventual de um consumidor
alternativo; e a tentativa de fortalecer ou criar laços de clientela.
Seria desnecessário explicitar aqui todas as combinações
que conduzem, como produto final, ao preço da tarefa específica –
a simples enunciação das variáveis é suficiente para indicá-las. Um
caso particular, entretanto, necessita de explicação suplementar.
Trata-se do trabalho gratuito que, obviamente, é o limite mínimo
possível na gama de variações de preço. Ao contrário do que
poderia parecer à primeira vista, não se trata de uma situação
Parte 2 Trabalho e cidade | 107

incomum, especialmente no caso de pequenas tarefas, executadas


por trabalhadores braçais de ocupação muito instável. Mas essa
gratuidade resume-se ao aspecto monetário imediato da transação:
na realidade, ela é usada como instrumento para manter e ampliar
os contatos e/ou estabelecer um débito de favores da parte do
beneficiado, que, de alguma forma, é sempre saldado. Note-se que o
exercício gratuito da tarefa não implica nenhuma perda financeira,
já que esta possibilidade só acontece quando não há comprador
alternativo. No extremo oposto, encontram-se trabalhadores que,
embora admitam grande variação de preços, só aceitam executar
a tarefa a partir de uma determinada quantia, abaixo da qual o

ão
trabalho passa a ser considerado antieconômico, mesmo no caso de
ausência de consumidores alternativos imediatos. Trata-se, é claro,


das ocupações mais qualificadas, exercidas por trabalhadores com

lg
uma ampla rede de contatos e com reservas financeiras.
Esses problemas remetem ao outro aspecto anteriormente
vu
mencionado: a estabilidade do emprego. Em qualquer nível e tipo
di

de mercado de trabalho, ela depende basicamente da capacidade de


barganha no mercado – ou seja, do grau de qualificação profissional
de

e da natureza da habilidade do trabalhador.20 No MF, a proteção legal


simplesmente ratifica e fortalece o nível de estabilidade decorrente
desses fatores. No MNF, porém, a personificação da atividade
ar

econômica permite a interveniência de outras variáveis, que


pl

podem alterar a segurança da ocupação previsível pela qualificação


necessária ao seu desempenho. Em outras palavras, a habilidade
em

profissional transcende a esfera dos conhecimentos técnicos e


experiência de trabalho. A capacidade de avaliar as condições de
Ex

mercado, desenvolvendo e mantendo uma rede apropriada de


contatos, a dependência de patrões estrategicamente localizados,
a simpatia pessoal e autoconfiança, etc., desempenha um papel
marcante sobre a estabilidade, que em muitos casos obscurece a
influência da qualificação profissional. De um modo geral, pode-
se dizer que existe no MNF uma relação inversa sobre a segurança
da ocupação, entre a influência da qualificação profissional e das
várias ligadas à personificação: quanto maior a habilidade técnica

20
É claro que não se ignora o papel determinante sobre o nível de emprego e, em
consequência, da estabilidade, das condições estruturais da economia e de sua
situação conjuntural. Aqui, porém, o interesse é mais restrito, dizendo respeito
apenas aos modos de manipulação do mercado por parte dos trabalhadores.
108 | Luiz Antonio Machado da Silva

necessária ao desempenho da ocupação, menor a importância


relativa das relações pessoais.
Essas características de flexibilidade do MNF proporcionam
perspectivas de mobilidade individual muito generalizadas, através
da aquisição ou aprimoramento das habilidades no exercício
de tarefas remuneradas (forma de aprendizagem denominada
“treinamento em serviço”), capacidade de iniciativa, ampliação de
contatos, etc. No MF, ainda que esses fatores também influenciem
a mobilidade, sua interveniência restringe-se muito, devido às
limitações de ordem burocrática e legal. Assim, por exemplo, embora
existam idênticas possibilidades de treinamento em serviço, elas

ão
têm um efeito, digamos, retardado e menos geral sobre a renda. Isto
porque, via de regra, o empregador não efetua a correspondente


alteração na carteira de trabalho, mantendo o mesmo salário

lg
apesar das novas responsabilidades assumidas pelo empregado.
Sendo pouco comuns os casos de ascensão dentro da própria
vu
empresa, o trabalhador pode tentar a transferência para outra
di

firma, que lhe reconheceria as novas qualificações e remuneraria


de modo correspondente. Mas, para isso, o aprimoramento
de

profissional precisa ser relativamente grande, porque o incremento


da remuneração deve compensar o risco envolvido na mudança
de emprego e a ausência de anotações na carteira torna difícil a
ar

comprovação da nova condição profissional.


pl

No MNF, ao contrário, a mobilidade pode ser lenta, mas


constante, porque não envolve riscos adicionais nem depende de
em

qualquer ratificação formal; e as possibilidades são maiores, porque


não estão condicionadas somente (ou principalmente) à elevação
Ex

dos conhecimentos técnicos. De um modo geral, é possível dizer


que a mobilidade só começa a sofrer restrições mais fortes quando
passa a haver dependência técnica de instrumentos de trabalho
sofisticados. Porém, ultrapassada essa barreira, que de fato implica
um salto muito significativo, as oportunidades de mobilidade
paulatina e constante voltam a ser grandes, até o ponto em que a
visibilidade jurídico-legal se torna indispensável.
A menção aos instrumentos de trabalho remete a uma
característica do MNF geralmente desprezada, mas de consequências
também importantes. Embora ambos os subsistemas se refiram
à venda de força de trabalho, é só no MF que ela se apresenta em
estado puro, uma vez que a empresa se encarrega de proporcionar
Parte 2 Trabalho e cidade | 109

os instrumentos e condições necessárias ao desempenho das tarefas.


No MNF, para vender seu trabalho, o próprio trabalhador precisa
possuí-los ou vincular-se de alguma forma a quem os possui, não
importa quão rudimentares possam ser. Dessa maneira, não obstante
o pequeno volume de capital envolvido – se bem que algumas
ocupações exijam ferramentas elaboradas e mesmo máquinas –, a
carência dos instrumentos mínimos de trabalho determina uma
posição de desvantagem no mercado. É claro que isso não impede
a participação no MNF, pois existe sempre a possibilidade da venda
exclusiva da força de trabalho no sentido literal, mas ela se restringe
às tarefas que envolvem a simples atividade física (carregadores, por

ão
exemplo), dificulta ao extremo a mobilidade a partir de certos níveis
e reduz a capacidade de controle da ocupação.


Até aqui, toda a análise do MNF disse respeito, em resumo,

lg
a: a) ocupações não reconhecidas; b) exercidas e controladas
individualmente; c) ligadas ao setor de serviços – isto é, às ocupações
vu
“típicas” do MNF. Antes de passar às categorias de ocupações deste
di

subsistema, para apreendê-lo em seu conjunto, são necessárias


algumas referências adicionais.
de

Viu-se na seção anterior que os trabalhadores autônomos


podem ser beneficiários do INPS, o que significa que têm
oportunidade de reconhecimento legal e que, portanto, a lei admite
ar

sua existência. No entanto, embora do ponto de vista teórico e


pl

normativo essa categoria de trabalhadores seja perfeitamente


definida, em uma perspectiva jurídico-institucional mais concreta
em

são inúmeros os problemas que suscita. De início, lhes é vedado


possuir oficina própria mesmo quando o uso de máquinas é
Ex

indispensável para certas etapas do trabalho profissional: a posse de


oficina, ainda que individual, implica a necessidade de registro como
“pessoa jurídica”, isto é, como “firma”.
Quando se trata da regularização dos documentos de trabalho,
ou seja, do reconhecimento concreto do trabalhador, as dificuldades
avolumam-se. Como não há um empregador fixo para assinar-lhe a
carteira de trabalho, ela em si mesmo de nada vale, pois nada diz
sobre a ocupação atual da pessoa. Em contrapartida, os patrões não
podem assiná-la, porque, sendo simplesmente consumidores, não
mantêm qualquer vínculo empregatício com o trabalhador.
Devido a esses motivos, para regularizar sua situação, ele
110 | Luiz Antonio Machado da Silva

precisa cumprir as seguintes etapas.21 Em primeiro lugar, deve


registrar-se na Coletoria Estadual, pagando o imposto sobre serviços,
calculado para cada atividade com base em uma renda anual ideal. A
partir de então, sua remuneração deve ser feita por meio de recibo de
prestação de serviços, descontado no ato do pagamento o respectivo
imposto de renda (o que, obviamente, só acontece quando o serviço
é prestado para firmas legalmente constituídas – caso que se verá
adiante – sujeitas à fiscalização contábil). Com isso, seu trabalho fica
regularizado. Se o indivíduo deseja tornar-se previdenciário, precisa
acrescentar duas declarações formais de pessoas (ou firmas) que
se tenham utilizado de seus serviços, constando o tipo de tarefa e

ão
período de execução, pois em conjunto devem cobrir determinado
lapso de tempo. As declarações devem ser encaminhadas ao INPS,


anexados o comprovante de pagamento do ISS e documentos de

lg
identificação pessoal, mediante um requerimento de admissão – com
o que é aberto o respectivo processo. O próximo passo é dado pelo
vu
INPS, que envia fiscais para comprovar a existência e a veracidade
di

das pessoas que testemunharam o efetivo exercício da profissão,


e à residência do interessado, para verificar se há alguma oficina
de

doméstica. Só então o processo está suficientemente instruído para


ser julgado pelo órgão competente do INPS.
Esta descrição relativamente pormenorizada tem por
ar

objetivo demonstrar que, se em teoria a lei admite a possibilidade


pl

da existência dos trabalhadores autônomos, o processo de


reconhecimento concreto é complexo e difícil. Antes de mais nada,
em

deve-se dizer que certas categorias, tradicional e genericamente


organizadas em torno da autonomia dos respectivos profissionais,
Ex

dispõem de ampla margem de trabalhadores reconhecidos, podendo


até mesmo haver órgãos de representação – por exemplo, os
motoristas, que têm um sindicato forte e atuante. Nos demais casos,
porém, o mesmo parece não ocorrer. É fácil compreender os imensos
obstáculos com os quais o trabalhador individual se defronta para
regularizar sua situação, e o alto custo que implicam, pois o processo
de reconhecimento jurídico inclui a remuneração de despachantes,
propinas, etc. E não se deve esquecer que, se para o empregado

21
Deve-se repetir que as descrições aqui apresentadas não têm preocupações de
perfeição jurídica. Encara-se o problema legal do ponto de vista do trabalhador, e
apenas em suas consequências para o mercado de trabalho.
Parte 2 Trabalho e cidade | 111

o reconhecimento proporciona uma série de benefícios, como a


proteção ao emprego e à renda, o trabalhador autônomo obtém
apenas a oportunidade de pleitear assistência previdenciária.
Por todos esses motivos, embora existam condições mínimas
para uma opção entre abrigar-se sob o aparato jurídico-institucional
ou manter a invisibilidade legal, a maioria dos trabalhadores
autônomos prefere esta segunda alternativa – ou só consegue um
reconhecimento parcial. De qualquer forma, a possibilidade de
regularização, se não chega a afetar a situação de trabalho de maneira
fundamental, introduz certos fatos novos. O mais importante deles
é que, com a situação regularizada, é possível executar tarefas para

ão
firmas legalmente constituídas, que, em geral, ocupam o trabalhador
por mais tempo que o patrão individual (sem que, é claro, isso o


transforme em um “empregado” da firma). Note-se que a situação

lg
de trabalho muda pouco, o que se comprova pelo fato de que o
trabalhador tende a considerar a(s) firma(s) com a(s) qual(is) se
vu
relaciona como uma espécie de tipo particular de patrão, maior e
di

mais rico. Mas não há dúvida de que os casos de reconhecimento


legal, em especial quando a isso se acrescentam relações constantes
de

com empresas além de patrões, apresentam suficiente ambiguidade


para serem situados no “espaço limiar” já referido na seção anterior.
Outro grupo de “casos atípicos” é aquele em que diversos
ar

trabalhadores no MNF se associam, atuando em conjunto no mercado.


pl

Isso geralmente envolve um grau mínimo de reconhecimento legal,


já que os serviços se constituem, via de regra, em empreitadas
em

para empresas de construção civil ou condomínios, que precisam


manter uma contabilidade organizada segundo os princípios
Ex

legais. Essas associações são compostas por pequenos grupos de


trabalhadores especializados, em geral com duração limitada ao
período da empreitada. Alguns, porém, conseguem firmar-se no
mercado, manter-se e prosperar.22 À medida que isso acontece,
há uma tendência para organizarem-se em firmas, cujo pleno
reconhecimento coroa um longo processo de ingresso no MF.
Uma última qualificação necessária do MNF diz respeito às
atividades características a ele relacionadas, que foram descritas
como prestação de serviços. Já se viu que existem certas ocupações

22
Agradeço a descrição de vários casos concretos a Paul Silberstein e ao Prof. Roger
Walker.
112 | Luiz Antonio Machado da Silva

ligadas também à construção civil, como nas associações acima


retratadas. Além delas, incluem-se no MNF diversos tipos de
atividades artesanais, quando realizadas individualmente (por
exemplo, fabricação de sapatos, perucas, etc.), uma vez que nos
demais casos elas se realizam dentro de “firmas”. Certas atividades
comerciais, como os vendedores ambulantes, podem também ser
consideradas como “desviantes”. O tipo de relação de trabalho,
nesses casos, embora possa envolver um alto grau de personificação
(fregueses fixos, por exemplo) e uma ampla rede de contatos, tende
a descaracterizar os traços típicos dos patrões, que atuam mais
como simples “consumidores puros”.

ão
Neste ponto, já é possível descrever os tipos de ocupações
pertencentes ao MNF. O primeiro deles seria o dos trabalhadores


“por conta própria”. Optei pelo uso dessa expressão popular, de

lg
preferência a “trabalhador autônomo” até aqui empregado, devido
às conotações legais deste último, que restringem demasiadamente
vu
as ocupações incluídas; o trabalhador autônomo – isto é, o
di

trabalhador por conta própria com a situação regularizada – deve


ser visto mais como um caso-limite desta categoria de ocupações.
de

As ocupações por conta própria referem-se aos casos de


autoemprego, ou seja, aqueles em que o trabalhador dispõe de um
certo grau de independência no mercado, tanto de empregadores
ar

(firmas) quanto de patrões (rede de contatos). Embora sua situação


pl

se situe no contexto do MNF, a subordinação aos laços de clientela


é menos marcante que nas demais categorias desse subsistema, uma
em

vez que as habilidades profissionais e a posse dos instrumentos


de trabalho o colocam em uma posição vantajosa no mercado
Ex

(o trabalhador por conta própria está sempre nos níveis mais


qualificados de sua profissão, embora esta possa ser relativamente
rudimentar – no sentido, por exemplo, de que exige pouca ou
nenhuma escolarização, não requer treinamento formal, etc.).
A situação de trabalho dessa categoria apresenta, via
de regra, um alto grau de estabilidade, na medida em que,
apesar de não subordinados a um empregado específico, como
os empregados do MF, os trabalhadores se ocupam em tempo
integral e ininterruptamente. Da mesma forma, o nível de renda é,
em muitos casos, superior ao dos chamados empregos regulares
e permanentes, com claros reflexos sobre o respaldo financeiro
disponível para enfrentar o mercado individualmente e com ampla
Parte 2 Trabalho e cidade | 113

margem de autonomia.
Uma segunda categoria de ocupações é a dos biscateiros.
Em análise formal, a distinção entre eles e os trabalhadores por
conta própria sofreria severas restrições, porque a infinidade de
casos concretos, associada à própria flexibilidade do MNF, torna a
possibilidade de delimitação precisa muito problemática. Acredita-
se, porém, que o conteúdo dessas categorias deve se tornar claro,
em especial pela leitura do próximo capítulo, a respeito das
situações de emprego.
De momento, pode ser dito que o biscate é a ocupação típica do
MNF, pois as condições de trabalho são mais fortemente influenciadas

ão
pelos fatores que o caracterizam. Os trabalhadores por conta própria
dispõem de possibilidades de opção entre as manipulações pessoais,


apoiando-se na personificação da atividade econômica (por exemplo,

lg
criando laços de clientela), ou as manipulações do mercado, isto
é, as que seguem mais especificamente o jogo da oferta e procura
vu
(por exemplo, determinando preços mínimos). Ou, ainda, o que é
di

mais frequente, recorrer a ambas (por exemplo, mantendo preços


mínimos, mas usando as variações nos preços como instrumento
de

nas relações de clientela e ampliação da rede de contatos). A


escolha concreta varia muito, mas, de modo geral, pode-se dizer
que sua posição no mercado depende menos exclusivamente de
ar

manipulações características do MNF.


pl

A situação dos biscateiros é bastante diversa, porque, não


dispondo de instrumentos de trabalho e/ou tendo em regra um
em

nível de qualificação mais baixo ou inexistente, sua dependência


da personificação das relações econômicas é muito grande, e quase
Ex

sempre a única forma de controle do mercado. Sendo muito vasta


a concorrência, devido à relativa simplicidade das tarefas, sua
segurança varia apenas em função da capacidade de manter laços de
clientela e dos contatos pessoais.
É evidente que a estabilidade da ocupação sofre as
consequências: os casos de biscateiros ininterruptamente ocupados,
embora numerosos, não são a regra. Mas não se deve ignorar o fato
de que os períodos de inatividade forçada abrem oportunidades,
sempre aproveitadas, para o fortalecimento e ampliação dos laços de
clientela, contatos pessoais, etc. (A ênfase nos períodos de inatividade
parece conduzir a certos exageros na identificação de seus reflexos
sobre o nível de renda e o padrão de vida, porque obscurece o fato de
114 | Luiz Antonio Machado da Silva

que há muitos biscateiros com remuneração mais elevada que a de


empregados no MF com nível de qualificação equivalente).
Existe um tipo particular de serviços pessoais responsável
pela existência de outras diferenças nas situações de trabalho do MNF.
Trata-se de atividades domésticas, em torno das quais surgem duas
novas categorias de ocupações: “serviços domésticos” e “empregos
domésticos”.23 O primeiro tipo poderia ser considerado como um caso
particular de biscate, mas a natureza das tarefas executadas introduz
certas peculiaridades que não podem ser ignoradas. A primeira
delas é que são quase sempre desempenhadas por mulheres. Devido
a isso, tendem a se constituir em fonte de renda subsidiária da renda

ão
familiar, para o que contribui o baixo nível geral da remuneração
desse tipo de trabalho, não obstante certas exceções significativas.


Acresce que, em muitos casos, existe a possibilidade de trabalhar em

lg
casa, de modo a não afetar tanto as incumbências domésticas.
Outra característica dessas ocupações é que existe uma
vu
tendência à eliminação dos consumidores eventuais e, portanto,
di

certas restrições à ampliação dos contatos. Em geral, há um número


limitado de patrões, responsável pela ocupação total ou parcial do
de

tempo útil de trabalho. Além disso, a duração das tarefas a serem


executadas é indefinida, de maneira que está aberta a possibilidade,
nem sempre atualizada, para uma longa e contínua relação de
ar

trabalho, mesmo quando não existem fortes laços de clientela. No


pl

caso dos biscates e ocupações por conta própria, ainda que não
haja referências explícitas a prazos, os limites da relação direta de
em

trabalho estão contidos no próprio término da tarefa.


O segundo tipo de atividades domésticas possui outras
Ex

particularidades significativas. Por empregos domésticos, designa-


se aqueles em que o trabalhador (geralmente, mas nem sempre,
de sexo feminino) tem um único patrão, sendo muito comum a
obrigação de dormir no próprio local de trabalho. Com isso, fica
eliminada a oportunidade de as tarefas serem executadas na
residência do trabalhador, bem como se reduzem as possibilidades
de distribuição dos riscos pela diversificação dos patrões. Uma
vez que o tipo de atividade não permite grandes diferenças na
qualidade do trabalho (exceto em raras exceções: patrões muito

23
Agradece-se esta distinção, bem como muitas de suas implicações, ao Prof. Roger
Walker.
Parte 2 Trabalho e cidade | 115

ricos, trabalho para residências diplomáticas, etc.), o controle do


mercado baseia-se quase exclusivamente na criação de fortes laços
de clientela com um único ou poucos patrões, e ressente-se de uma
rede de contatos pessoais mais extensa. Em contrapartida, o nível
global de remuneração é mais alto, se forem incluídos presentes,
alimentação, etc.
Note-se que, para ambas as categorias de ocupações
vinculadas às atividades domésticas, os laços de clientela com os
contratantes dos serviços não são, de forma alguma, indispensáveis.
Mas a própria natureza das tarefas a serem executadas coloca o
trabalhador e o consumidor em uma duradoura relação face a face,

ão
de tal sorte que estimula a intimidade do contato. O resultado é
de dupla espécie: ou essa intimidade – isto é, a transcendência


quase obrigatória do aspecto estritamente econômico da relação –

lg
provoca atritos violentos que acabam resultando no rompimento
da relação de trabalho, ou cria laços de clientela que decorrem da
vu
personificação da relação representada por seu caráter íntimo.
di

Os casos de serviços e empregos domésticos situados entre esses


dois extremos parecem ser bastante raros. Assim, se a formação
de

de uma rede ampla de contatos e a diversificação dos riscos ficam


dificultadas, o trabalhador pode privilegiar um tipo particular de
contato (o patrão), aprofundando-o o mais possível.
ar
pl

O continuum de empregos
em

Durante a descrição dos dois subsistemas, manteve-se a


Ex

atenção presa às características particularizadoras que os distinguem


entre si e, dentro de cada um, diferenciam as diversas situações
de trabalho. Mas a descrição não ficaria completa sem algumas
referências às respectivas articulações. Desse ponto de vista, e ainda
mantendo a ótica do trabalhador, um fato ressalta: o imenso turnover
de mão de obra entre o MF e o MNF, e entre os tipos de emprego/
ocupação no interior de cada um, de que apenas se excluem os
empregos públicos. Quanto a estes, o alto grau de segurança e o nível
relativamente alto de renda proporcionam vantagens que colocam
seus ocupantes em posição privilegiada; uma vez obtido um emprego
público, normalmente ele só é abandonado por aposentadoria.
A natureza das estatísticas gerais existentes não permite
116 | Luiz Antonio Machado da Silva

comprovar esta afirmativa nem determinar com precisão sua


intensidade. Considerando, porém, os dados disponíveis de
pesquisas particulares, pode-se oferecer alguns exemplos. É assim
que, em 1964, na Vila Proletária da Penha, cerca de 50% dos chefes
de família estava há apenas três anos ou menos no mesmo emprego
(privado ou público), embora 76,3% trabalhassem (isto é, em
empregos/ocupações diversas) há dez anos ou mais (Projeto Piloto
BEMDOC, 1965). Em 1969, para a favela de Cordovil, a situação
era muito semelhante: dos participantes do MF no momento da
pesquisa, 67,4% dos chefes de família e 91,4% dos demais membros
economicamente ocupados estavam há três anos ou menos no mesmo

ão
emprego. E 75% dos chefes e cerca de 50% dos demais membros
ativos da unidade familiar já haviam participado, em alguma ocasião


de sua vida profissional, de empregos no MF (Codesco, 1969).24

lg
Apesar de muito pouco específicos, esses dados procuram
dar a visão mais geral possível do problema, mostrando que, para
vu
considerável parcela dos moradores das áreas para as quais existe
di

um mínimo de informações, a mudança de emprego é fato rotineiro.


No caso particular da favela de Cordovil, embora ainda de forma
de

imprecisa – por não considerar o tempo total durante o qual o


indivíduo exerceu alguma forma de atividade econômica –, a seguinte
tabela permite algumas especulações sobre o padrão do turnover.
ar
pl
em
Ex

24
Cf. também Parisse (1970, especialmente 2a parte). Algumas pesquisas deverão
em futuro próximo permitir uma visão da composição ecológica e socioeconômica
da cidade (Rio de Janeiro), ao mesmo tempo integrada e comparativa. Pode-se citar
os trabalhos em realização [1971] de Janice Perlman, englobando favelas e áreas de
expansão urbana, e Lawrence Salmer, envolvendo casas de cômodos.
Parte 2 Trabalho e cidade | 117

Cordovil: Tempo entre o Último e o Penúltimo Emprego


Regular,* segundo a Posição na Unidade Familiar (%)

Demais Membros
Tempo Chefes da Família
Ativos da Família
Menos de 1 semana 19,6% 6,1%
Entre 1 semana e 1 mês 13,9% 8,7%
1 a 3 meses 12,8% 6,7%
3 a 6 meses 11,7% 5,3%
Mais de 6 meses 4,1% 2,1%

ão
Nunca teve empr. reg. 25,1% 58,9%
Só teve um empr. reg. 12,8% 12,2%


100,0 100,0
Total
N=367 N=343

lg
vu
Fonte: Codesco (1969).

di

(*) Empregos públicos e/ou empregos privados.


de

A tabela indica com nitidez que a troca de empregos


regulares é muito intensa: apenas pouco mais de 10% de todos os
ar

trabalhadores nunca teve mais de um emprego regular (acresce


que isso não significa que ele esteja sendo exercido no momento, de
pl

modo que, mesmo nesse caso, pode ter havido turnover entre o MF
em

e o MNF). De outro lado, a proporção de chefes de família que nunca


tiveram um emprego regular em toda a sua vida profissional atinge
Ex

cerca de ¼. Essa proporção é muito mais elevada para os demais


membros ativos, o que vem a sugerir outro padrão: admitindo que
este grupo de trabalhadores é tendencialmente mais jovem (o que
se confirma pela análise das tabelas relativas à idade, da mesma
pesquisa), a entrada no mercado, em mais da metade dos casos, dar-
se-ia através do MNF. Finalmente, partindo do pressuposto (este sem
condições de comprovação, por falta de dados) de que dificilmente
um trabalhador tem possibilidades financeiras de permanecer
inativo por mais de um mês, pode-se dizer que o turnover entre os
dois subsistemas é bastante alto: quase metade dos chefes de família
que já tiveram empregos regulares levou mais de um mês entre os
dois últimos empregos regulares; a proporção é um pouco menor
para os demais membros ativos.
118 | Luiz Antonio Machado da Silva

A respeito do turnover no interior do MNF, as informações


quantitativas são ainda menos precisas, dada a dificuldade de
distinguir entre as categorias de ocupação. Mesmo no caso
das atividades domésticas, para as quais existe um mínimo de
informações, as estatísticas são muito deformadas: muitas vezes
elas incluem as “prendas domésticas” (atividades não remuneradas
das donas de casa) como serviços ou empregos domésticos. Outras
vezes são incluídas pequenas atividades caseiras, mas de natureza
diversa: costureiras, cabeleireiras, manicures, etc. Outras, ainda,
incluem alguns tipos de empregos, como garçons, cozinheiros(as),
etc., que claramente se incluem no MF, inclusive com completo

ão
reconhecimento jurídico. Devido a esses problemas, e porque só
destacam uma categoria de ocupações, preferi ignorar as poucas


estatísticas disponíveis.

lg
Pode-se colocar reservas quanto a esses exemplos, devido à
sua particularidade, uma vez que se referem especificamente a favelas.
vu
Mas eles possuem uma qualidade estratégica, porque o argumento
di

necessário para validar sua generalização serve ao mesmo tempo para


uma constatação, insólita se comparada aos estereótipos fartamente
de

divulgados sobre aquelas áreas urbanas: a de que não parecem ser


as favelas que concentram populações pobres, mas outras zonas
que concentram os grupos de melhores condições socioeconômicas
ar

(o que elimina a possibilidade de considerar as favelas como áreas


pl

homogêneas). Assim é que, segundo uma das escassas fontes de


dados comparativos atualmente disponíveis, se verifica que existe
em

uma semelhança relativamente estreita entre as características


socioeconômicas das favelas e das áreas não faveladas da cidade; as
Ex

diferenças ocorrem justamente nos níveis mais altos de renda e grau


de especialização, com vantagem, é claro, para as áreas não faveladas.25
25
Um outro aspecto a ser considerado nas articulações entre os
diversos tipos de emprego/ocupações relaciona-se à possibilidade
de concomitância. De fato, nenhuma das referências até agora feitas
a diversas situações de trabalho implicou qualquer afirmativa de
exclusividade do tipo de ocupação, porque é extremamente comum
o exercício paralelo de mais de um tipo de emprego/ocupação. Isso
proporciona melhores condições globais de controle do mercado,

25
Estudos Cariocas (1965, vol. 5). Ver também Silberstein (1970, quadros III e IV,
pp. 13-14).
Parte 2 Trabalho e cidade | 119

visto que, enfrentando problemas em uma situação de trabalho, é


possível o recurso a outra. Como exemplo, pode-se citar os casos de
empregados (públicos e privados) que fazem biscates, trabalhadores
por conta própria que fazem biscates em outras profissões, ou
empregadas domésticas que executam serviços domésticos à noite
ou nos fins de semana, etc.
Também não se pode perder de vista que, em termos
orçamentários (isto é, relacionados à receita e à despesa), a unidade
econômica básica não é o indivíduo, mas a família (household).
A análise de sua composição ocupacional põe em relevo outro
aspecto da alta complementaridade e apoio mútuo entre as diversas

ão
categorias de emprego no MF e MNF. Dessa perspectiva, parece
existir uma tendência no sentido de garantir as vantagens e distribuir


os riscos dos dois subsistemas, pela participação simultânea da

lg
unidade familiar em ambos, através de seus diversos membros.
Pelos dados sobre favelas apresentados acima, poder-se-ia
vu
concluir por uma tendência no sentido da participação dos chefes
di

de família no MF, e dos membros ocupados no MNF. Mas é preciso


lembrar o grande número de menores ocupados, bem como os
de

problemas legais e de mercado para sua participação no MF, o que


introduz uma nova variável a ser considerada: a idade do trabalhador.
Além disso, é lícito especular no sentido de que, quanto mais longo
ar

o tempo de trabalho, maiores serão as possibilidades de uma ampla


pl

rede de contatos, e, portanto, mais provável o conhecimento da


oportunidade e a consecução de um emprego no MF; raciocínio
em

semelhante pode ser feito em torno da aquisição de conhecimentos


profissionais, que também facilita a obtenção de empregos. É evidente
Ex

que, para que essas possibilidades sejam atualizadas, muitos outros


fatores entram em cena; a linearidade da sequência acima é apenas
uma simplificação que visa facilitar o entendimento.
Mas o que importa salientar é que a distribuição dos riscos
entre os dois subsistemas não é necessariamente uma opção da
unidade familiar: ela parece ser resultado das condições gerais do
mercado, sobre as quais a família dispõe de controle muito reduzido.
De qualquer forma, seja por razões de imposição objetiva, seja por
escolha, é muito elevado o número de famílias com alguns membros
participando do MF e outros do MNF. Infelizmente, a total carência de
dados quantitativos a respeito impede que seja avaliada a proporção
em que essa situação se verifica.
120 | Luiz Antonio Machado da Silva

Apoiadas pelas referências anteriores às dificuldades de


definição precisa de limites entre os dois subsistemas e entre
as categorias de emprego/ocupação, todas estas considerações
sugerem a necessidade de pensar com reservas qualquer tratamento
muito polarizado do mercado urbano de trabalho manual. A análise
até aqui apresentada deverá ter tornado claro que não existem
diferenciações bruscas nem oposições irreconciliáveis entre as
situações de trabalho que os compõem. Não obstante as significativas
diferenças, as categorias de emprego/ocupação apresentam uma
sequência raramente interrompida por alterações bruscas.
Não há dúvida de que, do ponto de vista da situação de

ão
trabalho, há sempre um salto implicado na passagem de uma para
outra, mas ele é amortecido pelas condições existentes no que se


chamou aqui de espaços limiares – cujo conceito procura exatamente

lg
apreender essa interpenetração de situações de trabalho diversas.
Esse aspecto é um tanto menor no interior do MF, devido às definições
vu
formais legais das categorias, mas a limiaridade permanece por
di

intermédio dos diversos níveis e tipos de irregularidades e situações


semilegalizadas.
de

O estudo dos mercados de trabalho manual, portanto, deve


ter presente que os diversos tipos de emprego/ocupação constituem
um continuum (o termo é empregado aqui em seu sentido vulgar, sem
ar

rigor estatístico). Nota-se que essa continuidade é imprescindível


pl

para apreender e explicar os modos de manipulação do mercado,


bem como as opções entre as diversas formas de controle do
em

emprego e os limites da possibilidade de controle inerente a cada


situação de trabalho.
Ex

Com o objetivo de resumir graficamente o presente capítulo,


apresenta-se o diagrama abaixo. Procurou-se introduzir, ainda que
de modo impressionístico devido à completa carência de dados
quantitativos a respeito, uma noção da intensidade das variações
internas na estabilidade de cada tipo de emprego/ocupação,
antecipando alguns pontos que são tratados no próximo capítulo.
Com isso, acredita-se poder reforçar visualmente as reservas já
apresentadas quanto ao relacionamento direto e generalizado
entre categorias de emprego e níveis de estabilidade – o que é de
fundamental importância para este trabalho.
estabilidade Empregos no MF Ocupações no MNF

1
Ex
2 4

3
em
5
6
pl
ar
7
tipo de
Firmas Auto- Indivíduos empregador
de
(“Empregadores”) emprego (“Consumidores”, “Patrões”)

(1) Empregos públicos Notas:


di
vu
(2) Empregos privados (firmas de grande a) A zona hachurada corresponde à subordinação ao aparato jurídico-institucional.
porte) lg
b) A linha tracejada representa a legislação trabalhista e tributária como principal
(3) Empregos privados (firmas de pequeno
porte) responsável pela diferenciação entre o MF e MNF.

(4) Ocupações por conta própria c) As figuras geométricas representam a variação interna na estabilidade em cada situação
de trabalho e as respectivas proporções dos trabalhadores nos diversos níveis de
ão
(5) Ocupações em biscates estabilidade. Por exemplo, poucos empregados domésticos (6) têm estabilidade muito
maior que os ocupados em biscates, mas, para a maioria, a estabilidade é menor que o
(6) Empregos domésticos mais instável biscate.
(7) Serviços domésticos
Parte 2 Trabalho e cidade | 121
122 | Luiz Antonio Machado da Silva

Capítulo 2. As situações de trabalho. Atuação dos


trabalhadores no MNF

Aspectos do contexto geral das situações de trabalho

Existem alguns trabalhos que focalizam aspectos


do comportamento do trabalhador ligados a um “desejo de
independência”. Associado a uma orientação em favor das atividades
comerciais, ele é interpretado como uma sobrevivência cultural
típica de grupos migrantes, que impede a plena adesão à estrutura

ão
industrial.26 Tal perspectiva define a opção pela independência


como um problema de assimilação ao contexto urbano-industrial.
Em consequência, torna-se incapaz de apreender o caráter básico

lg
do dilema colocado ante os trabalhadores. Esse dilema é proposto
pelas próprias condições organizatórias do mercado metropolitano
vu
de trabalho, que criam dois subsistemas dotados de vantagens e
di

desvantagens relativas, mas configurando um todo único. Além


do mais, concentrar a atenção sobre um eventual desejo de
de

independência impede a compreensão de que os fundamentos


da escolha são mais amplos e profundos do que um suposto traço
cultural: dizem respeito à segurança e à remuneração do trabalho,
ar

que não se explicam ao nível da permanência de motivações culturais


pl

tradicionais. Correndo o risco de antecipar algumas descrições


em

contidas na seção dedicada às técnicas de controle do mercado,


cumpre aqui situar as bases da orientação pela independência, a fim
de que se apreenda corretamente sua atuação.
Ex

Os empregos no MF proporcionam ao trabalhador uma


renda determinada por normas jurídico-institucionais e evitam as
preocupações com a estabilidade, entendida como a possibilidade de

26
“A inclinação para atividades comerciais, que se nota, tanto nos que vêm da
lavoura como nos que moravam em pequenas cidades, é parte de um padrão de
independência econômica muito difundido no Brasil. Neste trabalho interessam as
formas – que transparecem nos exemplos dados – que toma nas classes baixas rurais,
principalmente no Nordeste, este valor cultural de trabalhar por conta própria, ser
independente, valer-se da própria iniciativa e não se subordinar a ninguém” (Lopes,
1960, pp. 375-376). “Este relato da orientação ocupacional de operários vindos,
na maior parte, do meio rural, mostra sua disposição de abandonar a estrutura
industrial” (Ibid., p. 388).
Parte 2 Trabalho e cidade | 123

ocupar economicamente o tempo útil disponível sem interrupções.


Por sua vez, as ocupações do MNF carregam consigo uma margem
intrínseca de tensão, representada pela responsabilidade pessoal
no preenchimento do tempo de trabalho – ou, em outras palavras,
pela responsabilidade de criação do mercado para suas atividades
laborais. Em consequência, o nível de renda é limitado apenas pela
habilidade de atuação pessoal. É nesse contexto, como uma entre
várias alternativas teoricamente possíveis – pois, como se verá, nem
sempre existem condições objetivas de escolha –, que o desejo de
independência deve ser entendido. A opção concreta se dará quando,
a) na avaliação global do mercado, o trabalhador se considerar capaz,

ão
através da rede de contatos e das relações de clientela, de um controle
mínimo sobre suas condições de garantir trabalho com um mínimo


de interrupções; e quando b) as perspectivas de remuneração forem

lg
suficientes para compensar as tensões implícitas na responsabilidade
pessoal de construir um mercado para seu trabalho.
vu
Apesar da forte base empírica, não resta dúvida de que
di

esta colocação do dilema esquematiza rigidamente uma série


de orientações muito variadas, em relação às diversas situações
de

concretas de trabalho. Mas ela se transforma num útil instrumento


analítico que permite, de um lado, entender e bem situar as
motivações do trabalhador; de outro, efetuar uma análise da margem
ar

de autonomia na escolha de uma das alternativas, e das vantagens e


pl

desvantagens objetivas proporcionadas por cada uma das situações


de trabalho nos diferentes tipos de emprego/ocupação. De qualquer
em

forma, é necessário reter que existe um dilema posto diante do


trabalhador, relacionado aos problemas de garantia de trabalho e
Ex

renda – e é da avaliação desses problemas concretos que, na grande


maioria dos casos observados, surge o “desejo de independência”.
Cumpre também registrar que nem sempre o dilema básico
corresponde a uma necessidade objetiva de escolha, pois há muitos
casos em que falta a capacidade real de opção. Mesmo quando existem
oportunidades concretas, nem sempre a seleção é uma alternativa
radical e definitiva. Primeiro, porque é possível realizar uma certa
conciliação entre os dois polos. Por exemplo, é comum encontrar-se
antigos trabalhadores por conta própria que preferiram empregar-
se no MF – às vezes com funções inferiores e alheias à sua profissão
–, mas continuam realizando, nos períodos de folga, alguns biscates
ligados à habilidade principal, que permanecem como importante
124 | Luiz Antonio Machado da Silva

fonte de ingressos, apesar de agora subsidiária.27 Em segundo


lugar, embora o dilema possa, em determinadas circunstâncias, ser
resolvido em definitivo, é bastante comum certo grau de indecisão,
como nos casos em que o trabalhador oscila motu proprio – isto é, por
escolha pessoal e não por injunções superiores a seu controle – entre
os dois subsistemas. Essa indecisão é bastante difundida e manifesta-
se claramente através de reiteradas rememorações de épocas em
que havia realizado a opção alternativa: trabalhadores por conta
própria que idealizam a antiga condição de empregados (fazendo
referências a uma amizade íntima com o empregador, mencionando
como este elogiava seu trabalho, etc.); ou empregados que idealizam

ão
a independência perdida e/ou desvalorizam a condição subordinada
em que se encontram.28


Se a correta interpretação das alternativas de participação

lg
em um ou outro subsistema é fundamental para a compreensão
do comportamento econômico dos trabalhadores, não o é menos o
vu
entendimento de um aspecto de seu estilo de vida, relacionado ao uso
di

do tempo. Situa-se, é claro, em outro contexto teórico, e, portanto,


sua exploração em profundidade foge ao âmbito deste trabalho, mas
de

seus reflexos na atividade econômica são de tal ordem que exigem


algumas breves menções.
O conteúdo da oposição entre “trabalho” e “lazer” tem
ar

características particulares para os trabalhadores aqui estudados,


pl

quando comparados a outros grupos. Para ambos, mantém-se o


sentido de “folga”, “ausência de compromissos”, etc., em que se
em
Ex

27
É interessante notar, a respeito de fontes subsidiárias de remuneração, que
certas categorias verbais de uso corrente retêm a essência das nuances possíveis
no exercício da escolha: “bico” e “viração”. “Bico” é o segundo emprego ou ocupação
com característica de regularidade, embora secundário. “Viração” é o biscate
eventual e instável, que representa mais um recurso a ser utilizado em momento
de necessidade extrema. (O termo “viração”, quando usado em outro contexto,
em que só existe uma fonte de renda – “viver de viração” –, indica também uma
posição muito desvantajosa no mercado e se aplica apenas a biscateiros com uma
capacidade muito reduzida de controle do mercado). Assim, no exemplo acima, o
trabalhador teria optado pelo MF, mantendo a ocupação no MNF como um “bico” –
realizando, portanto, uma conciliação entre os dois polos.
28
“[Quem trabalha por conta própria] não depende de horário, não depende de
chefe”. “Homem que pica cartão (ou seja, que está sujeito a controle de horário por
cartão de ponto) não tem futuro; pessoa que trabalha por conta própria é que pode
melhorar” (Lopes, 1960, p. 386).
Parte 2 Trabalho e cidade | 125

baseia a noção de lazer: basta lembrar a importância atribuída


pelos trabalhadores ao domingo, como “dia especial”. Porém,
se para os demais grupos o caráter não econômico das ações é
essencial para definir essa “ausência de compromissos”, o mesmo
não ocorre com a maior parte dos trabalhadores dos estratos
inferiores. Estes, via de regra, não dispõem de recursos (e quando
os possuem preferem aplicá-los de outra forma) que permitam o
acesso aos meios de diversão de massa, pelo menos na intensidade
da participação de outros estratos sociais. Assim, boa parte do
tempo “livre”, não comprometido profissionalmente, é gasta em
atividades muito semelhantes às desempenhadas durante os

ão
períodos “de trabalho”; mas a situação, o contexto em que elas se
realizam, é vivida como “folga”.


Perceber essas características, ainda que da forma sumária

lg
aqui apresentada, é crucial para interpretar corretamente as
condições de vida dessas populações e alguns modos de atuação
vu
no sentido do controle de mercado e elevação da renda. Assim, a
di

semelhança entre as “atividades laborais” e “o lazer” contribui de


modo significativo para explicar a generalizada disponibilidade
de

de admitir e mesmo procurar serviços remunerados direta ou


indiretamente em momentos que, para outros grupos, seriam de
preferência reservados a diversões (atividades não econômicas):
ar

horas extras, serviços no fim de semana ou férias, biscates à noite,


pl

extensos horários de trabalho, etc. Não há dúvida de que, tratando-


se de grupos de baixa renda, a necessidade de elevá-la não deve ser
em

ignorada, de modo que a substituição do lazer por trabalho extra


nem sempre pode ser entendida sob a forma de uma opção. O que
Ex

desejo salientar, porém, é que a semelhança entre as atividades


nos períodos de “lazer” e de “trabalho” reduz o esforço realizado
nesse sentido, já que não há necessidade de alteração radical no uso
previsto do tempo.
Tal situação, que na realidade é generalizada, acentua-se
no caso dos participantes do MNF, tanto mais quanto menor for a
capacidade de controle do mercado (isto é, quanto mais longos e
constantes os períodos de inatividade forçada), devido à ausência
de rígida distribuição do tempo e à dificuldade de determinar
momentos específicos para a aceitação de serviços remunerados.
Aqui, as divisões sociais do tempo, isto é, os momentos de realização
da atividade, têm significado muito reduzido: devido aos constantes
126 | Luiz Antonio Machado da Silva

períodos de falta de atividade laboral possível, seu valor econômico


é muito baixo e difícil de definir; devido à semelhança entre trabalho
e lazer, a opção por uma alternativa não implica qualquer diferença
radical em relação à outra.
Resumindo, pode ser dito que as ações vividas como lazer
podem trazer resultados econômicos – previstos ou não, diretos ou
indiretos – muito palpáveis. De outro lado, renunciar ao lazer não
se torna penoso, pelo menos não tanto quanto para outros grupos.
Em certos casos, os pequenos serviços realizados nos dias de folga
podem mesmo ser vividos como diversão. “O trabalho é minha
distração” é um lugar-comum que faria sentido para estes estratos,

ão
se não contivesse todas as conotações de uma divisão do tempo
particular das camadas médias.


Estas considerações sobre o uso do tempo ajudam a avaliar

lg
mais corretamente as condições de vida dessas populações, pois
permitem enfocar uma série de relacionamentos de cunho econômico,
vu
que ficariam obscurecidos por uma abordagem mais formal do
di

tempo útil de trabalho. Trata-se de relações muito importantes na


sustentação material dos grupos envolvidos, mas que só podem ser
de

vistas como parte das relações de trabalho num contexto amplo e


flexível como o aqui esboçado. São miríades de tarefas, atividades,
“manobras”, cuja enumeração é quase impossível,29 muitas vezes
ar

sem envolver transações monetárias diretas, e que por isso


pl

passariam despercebidas ou seriam interpretadas fora do marco


da economia de mercado.30 Sua relevância é capital, não apenas por
em

causa do forte significado econômico direto, mas também porque


se constituem em importante instrumento nas manipulações
Ex

que visam conservar e ampliar a rede de contatos pessoais. Essa

29
Sem qualquer objetivo de fazer uma tipologia dessas atividades, pode-se citar
a título de ilustração: compra/venda ou escambo de pequenos objetos, utensílios,
etc.; favores pessoais com remuneração disfarçada como presente; redistribuição
de presentes oferecidos por patrões ou empregadores (o que indica, de passagem,
que o sistema de alianças pode ultrapassar as barreiras de classe, isto é, que não se
trata de um sistema estritamente horizontal); pequenos biscates remunerados em
espécie: alimentos, roupas, matérias-primas, etc.; oferecimento de presentes que
não têm como objetivo a remuneração, mas representam uma forma de cultivar
contatos; etc.
30
A percepção, por parte dos grupos envolvidos, de que todas essas atividades
se inserem no contexto das relações de trabalho fica explícita pelo uso do termo
“viração”, em sentido figurado, para indicá-las (ver nota 27 neste capítulo).
Parte 2 Trabalho e cidade | 127

infinidade de pequenas atividades compõe um complexíssimo


sistema de alianças e interesses mútuos, com conotações altamente
competitivas, e cujo conteúdo poderia ser resumido, sem intenções
irônicas, como “conta corrente de favores”. É evidente que, quanto
melhor for a posição do trabalhador no mercado, tanto menor
será, proporcionalmente, a relevância econômica direta dessas
atividades; mas, de um modo geral, pode-se dizer que a grande
maioria dos trabalhadores aqui tratados está envolvida no sistema
de alianças, em algum grau e de alguma forma, mesmo aqueles
que realizaram as mais radicais opções pelo MF. Resumindo, seria
interessante tornar explícito que, na determinação das condições

ão
de vida dos trabalhadores aqui estudados, não podem ser levadas
em conta apenas as características das relações de trabalho


específicas e particulares e o nível de remuneração monetária

lg
imediata, em especial no que se refere aos participantes do MNF
com uma posição de mercado mais desfavorável.
vu
Para finalizar esta seção, é necessário um rápido registro
di

sobre algumas interpretações que não coincidem com as aqui


apresentadas. Certas formulações contidas nos programas de
de

desenvolvimento de comunidades, por exemplo, admitem a


importância dos sistemas de interesse mútuo e das redes de contatos
pessoais, propondo explicitamente sua utilização nos chamados
ar

“projetos de autoajuda”. Para citar apenas um caso, a U.S. Agency


pl

for International Development (USAID)/Brasil foi, durante algum


tempo, defensora entusiasta de projetos desse tipo.
em

Mas a base ideológica muito conservadora dessas formulações


implicava uma análise baseada em modelos de cooperação,
Ex

desconhecendo o caráter econômico e altamente competitivo das


relações informais, tornando-se, em consequência, incapaz de
apreendê-las de forma correta. As dificuldades enfrentadas pelos
projetos de autoajuda, decorrentes dessa abordagem, foram de
tal ordem que fizeram com que o órgão acima citado acabasse por
abandoná-los por completo.
Outros trabalhos, mais sofisticados e de orientação ideológica
bastante diversa, procuram também dar conta da extrema vitalidade
dessas redes de relações interpessoais. Paradoxalmente, porém,
também aqui se percebe a presença de modelos de cooperação e
integração, bem como o recurso a explicações de ordem cultural –
sobrevivência de padrões organizatórios da família “tradicional”.
128 | Luiz Antonio Machado da Silva

Ao contrário das interpretações que enfatizam o caráter de


“sobrevivência de padrões rurais”, tais trabalhos admitem que
a manutenção desses padrões seria engendrada pela própria
estrutura econômica urbana. No entanto, seguindo esse ponto
de vista, os sistemas de alianças são explicados como formas de
mútua cooperação para a sobrevivência na cidade e situados num
contexto alheio ao das relações de trabalho, embora estruturalmente
fundados nas condições do mercado. Eles serviriam ao mesmo tempo
como suporte para as populações sub ou não empregadas e como
mecanismos de marginalização desses grupos, por dificultarem sua
integração plena ao sistema urbano moderno. Algumas colocações

ão
de Echevarria são típicas desta interpretação:


Efetivamente, a manutenção de laços primários de parentesco pode

lg
chegar a constituir uma estratégia generalizada pela sobrevivência
individual nas grandes cidades […] Mais de uma monografia
vu
sugere a hipótese de que as relações de tipo familiar tenderam
a suprir as notórias deficiências das estruturas institucionais
di

organizadas, amiúde pouco integradas entre si ou imperfeitamente


desenvolvidas. Em certas ocasiões pareceu dar-se a hipótese
de

alternativa: a eficiência social com que funcionariam as condutas


baseadas em modelos familiares teria sido um fator que obstaculizou
ar

o desenvolvimento pleno das novas organizações orientadas por


normas e valores de caráter impessoal […] Sua coesão interna
pl

[dos núcleos de populações marginais] provém, sem dúvida, das


em

condições mesmas de sua “vida segregada”, mas necessita, ao


mesmo tempo, para poder formar-se, do influxo e contato com
outros grupos e organizações urbanas, graças às quais desperta
Ex

e adapta sua consciência à situação em que se encontram frente


à cidade […] a “integração” destas populações marginais no meio
urbano apóia-se definitivamente no reconhecimento e manutenção
dessa marginalidade por parte de uns e outros (Echevarria, 1970,
pp. 131-132 e 138-139).31

O resultado é, portanto, o mesmo das interpretações


contidas nos projetos de desenvolvimento das comunidades. De
um lado, incapacidade de perceber o caráter competitivo das redes
de contatos pessoais. De outro, incapacidade de perceber que as
relações interpessoais se desenvolvem “dentro”, e não “contra”,

31
Para uma visão equivalente, mas não idêntica, cf. Pereira (1969b, introdução).
Parte 2 Trabalho e cidade | 129

o sistema urbano-industrial; que elas resultam de manipulações


normais no mercado; e que fazem parte das relações de trabalho.

Técnicas de atuação e controle do mercado no MNF

O trabalho por conta própria é realizado por indivíduos


com treinamento ótimo em profissões de alta procura e baixa
oferta: mecânicos de automóveis, radiotécnicos, marceneiros, etc.
Na medida em que a demanda de mão de obra é grande, este tipo
de trabalhador tem condições de optar entre o MF e o MNF, porque

ão
não lhe seria difícil encontrar empresas dispostas a admiti-lo,
com todas as vantagens do reconhecimento legal. Mas, justamente


porque suas condições de barganha no mercado são boas, há uma

lg
tendência de preferir as ocupações por conta própria: já que não
existem problemas de inatividade periódica, a independência na
vu
determinação do preço do trabalho serve como foco de atração.
di

(De passagem, deve-se notar que a renda do trabalhador por conta


própria tende a ser mais elevada que a remuneração obtida por
de

um empregado com conhecimentos profissionais equivalentes.


Isto se deve provavelmente à invisibilidade legal do primeiro, cujas
consequências econômicas já foram descritas).
ar

No entanto, a tendência à opção pelo autoemprego não é


pl

absoluta. Mesmo nos casos de alta qualificação em profissões de


procura elevada, o emprego público continua sendo visto como a
em

situação ideal, ainda que em boa parte dos casos o salário permaneça
inferior. Encontram-se trabalhadores que, ao se defrontar com a
Ex

oportunidade de ingresso no serviço público, admitem abandonar


sua condição de profissional autoempregado, mesmo em troca
de funções inferiores às suas habilidades técnicas. É que, além da
segurança quase absoluta que passa a desfrutar, a diminuição
da renda mensal é compensada por diversas outras vantagens
financeiras (sistemas de empréstimos, seguros de vida privados,
mas descontados em folha, etc.). Assim, desde que o desnível entre a
qualificação do trabalhador e a função a ser desempenhada não seja
muito grande – pois neste caso a diferença de remuneração seria alta
–, existe uma opção, não tanto pelo MF em geral, mas pelo emprego
público em particular.
Semelhante situação pode ser vista nos casos de oportunidades
130 | Luiz Antonio Machado da Silva

de escolha entre o trabalho por conta própria e o emprego privado


numa grande firma. Embora permaneça o desequilíbrio nas escolhas
pessoais em favor do abandono da situação de autoemprego, aqui a
orientação pelo MF é menos marcante. Na medida em que as grandes
empresas possuem uma política de pessoal moderna (inclusive com
possibilidades de ascensão interna, muito reduzidas nos empregos
em estabelecimentos pequenos), existe uma série de vantagens
que são encaradas como compensatórias de um salário inferior à
remuneração do trabalho por conta própria. De qualquer forma,
apesar das possibilidades de alto grau de segurança dos empregos
qualificados nessas firmas, eles não são vistos como equivalentes

ão
aos empregos públicos.
É claro que o número de variáveis que influenciam cada


decisão individual é muito grande, mas algumas parecem se destacar

lg
devido ao peso que lhes é conferido e à influência mais generalizada.
Em primeiro lugar, relacionam-se às comparações entre o grau de
vu
estabilidade proporcionado pelo emprego privado numa grande
di

empresa e o conseguido pelo controle de uma ampla clientela; via


de regra, a escolha depende das dimensões desta. Num dos mais
de

estruturados depoimentos disponíveis para explicar a opção pelo


MNF, um entrevistado afirma: “Eu não quero aceitar o emprego lá
porque ninguém está livre de ser despedido e aí eu já não tenho mais
ar

uma freguesia grande como agora, mesmo que eu continue fazendo


pl

uns biscates por fora”. (Trata-se de um técnico em televisão com


grande clientela, que recebera uma oferta para trabalhar em sua
em

profissão numa importante firma de material elétrico).


Em segundo lugar, encontram-se as considerações em torno
Ex

da disponibilidade de uma reserva financeira, que permita enfrentar


crises ocasionais de falta de serviço, sem provocar, em contrapartida,
a aceitação de tarefas a preços considerados muito baixos. Quando
essa reserva não existe, o trabalhador pode optar pelo emprego
privado, porque sabe que, se demitido sem justa causa, receberá
uma quantia com a qual pode enfrentar o período de desemprego.
É importante notar que, na maioria das vezes, o trabalhador, se
optar pelo MF, não chega a abandonar por completo as manipulações
no MNF. Usualmente, ele conserva alguns fregueses mais constantes,
com quem tinha contatos mais íntimos, desempenhando tarefas
para eles nos fins de semana, período de férias, etc. Isto se mantém
mesmo nos casos de participação no serviço público, embora aqui a
Parte 2 Trabalho e cidade | 131

intenção básica seja de elevar a renda, pois não há necessidade de


procurar aumentar as condições globais de controle do mercado.
Encontrando-se a opção do lado oposto – ou seja, participantes
do MF que o trocam pelo MNF –, tudo indica que ela tende a ser feita
quando existem perspectivas de estabilidade equivalentes e forte
elevação da renda. A escolha pelo MNF não precisa ser tão radical
quanto a opção oposta, pois o empregado pode usar o próprio
emprego como “trampolim”.32 De fato, em muitos casos o indivíduo
almeja trabalhar por conta própria, mas prefere permanecer no
MF durante alguns anos antes de se lançar como autoempregado.
Ancorado no emprego, aos poucos vai formando uma clientela,

ão
servida nas horas vagas, até se considerar com uma freguesia grande
o suficiente para proporcionar-lhe uma margem de estabilidade


razoável como trabalhador autônomo. Neste momento, “pede as

lg
contas”, isto é, solicita que o empregador o dispense, com o que passa
a fazer jus à indenização (ou, no caso da nova legislação, adquire
vu
o direito de movimentar sua conta do FGTS). Quando a empresa
di

concorda em demiti-lo, indenizando-o, o trabalhador passa a atuar


por conta própria. Há muitos casos de acordo, em que o empregado
de

recebe apenas uma parcela da indenização a que teria direito, mas


é raro que o trabalhador opte pelo abandono puro e simples do
emprego, sem receber pelo menos uma parte da indenização. Isto
ar

porque ela representa quase sempre o capital necessário para que


pl

ele possa “estabelecer-se”: aquisição de equipamentos, reserva


financeira para enfrentar o período inicial e as dificuldades eventuais,
em

quantia requerida para enfrentar exigências burocráticas quando há


intenção de reconhecimento legal, etc.
Ex

Existem diversos casos em que o trabalhador, do ponto de


vista formal, não chega a fazer uma opção, ingressando no MNF
apenas quando é demitido por decisão unilateral do empregador.
Mas, como muitas vezes haveria condições de emprego em outra
firma se esse fosse seu desejo, pode-se considerar a opção como
implícita, quando se manifesta um certo grau de desinteresse em
procurar outro emprego.
Note-se ainda que a escolha do MNF não se limita aos

32
Deve-se a Roger Walker e Anthony Leeds, em diversas informações pessoais, o
reconhecimento da importância do mecanismo de “trampolim”, assim como alguns
exemplos empíricos.
132 | Luiz Antonio Machado da Silva

trabalhadores qualificados. Neste caso, a indenização é usada


muitas vezes para abrir pequenos estabelecimentos comerciais, sem
qualquer reconhecimento jurídico ou com grandes irregularidades.
O recurso a essa fonte de renda é também bastante comum, quando
o trabalhador se aposenta, ou nos casos de longas licenças para
tratamento de saúde, porque a remuneração durante esse período
é proporcional ao tempo de serviço e a queda na renda mensal
pode ser violenta.
Além dessas possibilidades de opção entre o MF e o MNF,
já foi dito que o trabalhador por conta própria possui alto grau de
autonomia. De fato, embora as relações de clientela sejam comuns

ão
nesta situação de trabalho, sua influência sobre a capacidade de
controle do mercado é mais reduzida. A posição altamente favorável


proporcionada pelo nível de qualificação e o treinamento em

lg
profissões de alta procura fazem com que a subordinação pessoal e
a dependência dos patrões sejam reduzidas. A importância da rede
vu
de contatos deve-se à possibilidade de controlar o maior número
di

de fregueses, garantindo uma parcela do mercado consumidor, mas


existem oportunidades de obter serviço sem recorrer a ela.
de

A própria forma de tratamento dos fregueses demonstra essa


independência. Na medida em que as oportunidades de trabalho
são amplas, o trabalhador por conta própria pode dar-se ao luxo de
ar

realizar uma seleção dos contatos; dessa capacidade seletiva estão


pl

impedidos os demais participantes do MNF, da mesma forma que,


no MF, raramente os empregados podem ser escolhidos. A escolha
em

da clientela, além de motivos objetivos – disposição de pagar preços


mais elevados, menores exigências de qualidade e prazos, etc. –,
Ex

pode chegar a extremos como a “simpatia” do freguês. É claro que


a simpatia se baseia em considerações sobre a relação concreta
de trabalho, mas abrange matizes muito mais amplos, como um
tratamento mais íntimo por parte do cliente, suas demonstrações de
satisfação com o serviço realizado, etc.
Outra demonstração de independência dos laços de clientela
está contida num dos modos de recrutamento da freguesia – a
distribuição de cartões de visitas contendo endereço e profissão, os
quais podem ser entregues pessoalmente ou deixados em pontos
estratégicos (bares, lojas, etc.). É claro que aí influi uma componente
de prestígio, que não depende da possibilidade concreta de obter
novos clientes por este meio; entretanto, apenas o prestígio não
Parte 2 Trabalho e cidade | 133

parece bastar para explicar o uso tão generalizado dos cartões de


visita. (É interessante registrar a identidade desse recurso com a
forma mais comum de propaganda das pequenas empresas ligadas à
prestação de serviços, construção civil, comércio, etc.).
Finalmente, deve-se notar que o trabalhador por conta
própria em geral tem possibilidade de contratar novas tarefas muito
tempo antes de terminar aquela em que se ocupa no momento. Devido
à posição favorável que desfruta no mercado, ele está em condições
de dar preferências às tarefas mais longas, embora nem sempre o
faça. De um modo geral, as tarefas do trabalhador por conta própria
precisam ser mais longas, dada a própria natureza dos trabalhos

ão
que executa, os quais envolvem certo grau de elaboração. Por isso,
durante a execução de um serviço, ele pode entrar em contato com


diversos futuros clientes, que quase sempre admitem esperar por

lg
sua liberação da tarefa atual. Isto porque eles sabem que seria muito
difícil encontrar outro trabalhador habilitado com disponibilidades
vu
imediatas de tempo.33
di

Tal situação é da maior importância porque, prevendo com


antecedência suas possibilidades futuras de trabalho, o trabalhador
de

está em condições de estabelecer seus preços sem a necessidade de


considerar problemas financeiros imediatos de sustentação. Mas não
há dúvida de que a essa grande capacidade de controle do mercado
ar

e do próprio nível de renda correspondem certos riscos, de que são


pl

exemplos vários casos de erros de previsão de aumento do preço


da matéria-prima e do custo de vida. Se bem que as reclamações
em

constantes a esse respeito quase sempre correspondam a tentativas


de elevar os lucros, através de uma elevação nos preços previamente
Ex

contratados, parece haver casos em que o erro de cálculo é real.


Quando isso acontece, muitas vezes o acordo é simplesmente desfeito,
se o cliente se recusa a elevar o preço, mas alguns trabalhadores
optam por perder dinheiro – isto é, receber remuneração inferior à
possível e/ou prevista – em troca de uma boa reputação no mercado.

33
Nem sempre a profissão exige que as tarefas sejam demoradas, como a de
radiotécnico, por exemplo. Mas, ainda nestes casos, o cliente aceita que a data da
entrega do aparelho consertado seja determinada, desde que dentro de limites
razoáveis, pelo próprio trabalhador. Em regra, apenas nos casos de atraso o cliente
faz reclamações e exigências. Com isso, há uma boa margem de liberdade para
aceitar vários serviços ao mesmo tempo.
134 | Luiz Antonio Machado da Silva

Estas considerações remetem às formas e implicações do


estabelecimento do preço nos trabalhos por conta própria. Não
existe um modo único de contratar a realização de uma tarefa
ou elaboração de um produto; ele depende das possibilidades e
intenções do trabalhador e do julgamento do tipo de freguês com
quem se defronta. Uma alternativa é a apresentação de um orçamento
global, que engloba o preço do trabalho e das matérias-primas
requeridas; é a preferida quando existem fornecedores (ou contatos
que sirvam de intermediários) entre os quais goza de abatimento,
com o que se torna possível elevar os lucros. Por outro lado, existem
possibilidades de erro de cálculo, tanto nos preços quanto nas

ão
quantidades necessárias – bem como defeitos na própria execução
técnica, o que implica perder o material e, portanto, dinheiro.


Outra possibilidade é cobrar apenas a mão de obra, correndo a

lg
aquisição do material necessário por conta do freguês. Com isso, fica
eliminada a possibilidade de elevar o lucro com redução nos custos
vu
(o trabalhador procura evitar que o freguês tome conhecimento
di

de sua possibilidade de obter descontos); mas, em compensação,


diminui a possibilidade de erros. Entretanto, algum risco sempre
de

se mantém: pode-se falhar na previsão do tempo necessário para


executar a tarefa ou produto, apesar de ser sempre incluída no preço
uma certa margem de segurança. A consequência é uma queda na
ar

remuneração, porque o preço é estipulado mediante o cálculo do


pl

tempo a ser gasto no serviço.


É devido à necessidade de elevar um pouco o preço-base,
em

como margem de segurança, que raros trabalhadores dizem


exatamente quantos dias o serviço vai demorar, ou qual o preço,
Ex

em termos diários, de seu trabalho. Para compreender essa atitude,


é preciso considerar que a avaliação correta da complexidade da
tarefa é fundamental, e seu fulcro é a “margem de segurança”. Ela
representa, neste delicadíssimo jogo de previsões e avaliações, uma
proteção contra os erros eventuais (bastante comuns) de julgamento
e, portanto, um meio de assegurar a manutenção dos preços mínimos
admitidos; ao mesmo tempo, é uma permanente oportunidade de
ganhos adicionais, quando a duração da tarefa não excede o tempo
previsto, ou lhe é inferior. A longo prazo, são esses mecanismos que
permitem ao trabalhador manter os preços acordados, mesmo na
hipótese de erro de cálculo, sem que isso se torne antieconômico de
seu ponto de vista – é que a perda fica compensada por entradas extras
Parte 2 Trabalho e cidade | 135

em outras tarefas, e cumprir a palavra torna-se um investimento.


Deve ficar claro que, em qualquer alternativa, ainda que
admitindo amplas variações para o mesmo tipo de serviço, o
trabalhador por conta própria sempre raciocina em termos de um
preço-base mínimo diário para seu trabalho. Mas não se pode dizer
que exista um preço de mercado para cada tipo de qualificação, em
torno do qual se dariam os ajustes individuais. Na medida em que
cada profissional determina o valor de seu próprio trabalho, que é
definido com base na capacidade de controle do mercado, o preço
é muito pessoal.34 Isto também acontece, e com intensidade muito
maior, entre os biscateiros, provocando muitos conflitos, porque

ão
os trabalhadores com maior rede de contato, que impõem preços
um pouco mais elevados, se sentem ameaçados pela concorrência


potencial dos que cobram menos pela mesma tarefa. Nas ocupações

lg
por conta própria, como a oferta de trabalho é muito menor, existe uma
certa hierarquização: para tarefas mais complexas, são escolhidos
vu
trabalhadores que cobram preços mais altos (porque, em geral,
di

tendem a ser melhor qualificados e/ou experientes); nas demais,


os outros trabalhadores participam da competição. Esta divisão do
de

mercado – obviamente muito empírica e pouco sistemática – reduz,


nas ocupações por conta própria, as tensões provocadas por preços
muito baixos.
ar

Em certos casos, quando existe grande confiança mútua,


pl

ou quando a tarefa é muito longa e de duração difícil de precisar,


o trabalho pode ser remunerado por dia. Geralmente, porém, os
em

clientes não aceitam contratar serviços sob essa forma. Primeiro,


porque, ao tomar conhecimento do preço cobrado pelo trabalho,
Ex

este é quase sempre considerado excessivo. Quando o serviço é


contratado segundo um orçamento que inclui a matéria-prima, ou
quando o trabalho é cobrado separadamente, mas discutido em

34
Dito de outra forma, o livre jogo das forças puras de mercado fica distorcido pela
inexistência das clássicas condições de “atomicidade” e “transparência”. O preço do
trabalho é dito “pessoal” exatamente neste sentido: ele não é determinado em função
do nível da demanda em seu aspecto global e impessoal, uma vez que depende da
amplitude e solidez da rede de contatos; de outro lado, esta não varia em função
apenas do volume total da oferta da mercadoria (trabalho com determinado nível e
tipo de qualificação), mas também da habilidade individual do trabalhador de criá-
las, mantê-las e ampliá-las. Ou seja: para cada trabalhador, a procura é representada
por sua própria rede de contatos, mais que pelo público consumidor em geral.
136 | Luiz Antonio Machado da Silva

termos do custo total de execução da tarefa, o freguês dificilmente


percebe o valor do dia de trabalho, ainda que seja discutido o preço
cobrado pelo trabalhador. Contudo, quando o preço da diária se
torna claro, ele entra em choque profundo com os estereótipos
de miséria construídos a respeito dos trabalhadores por conta
própria e biscateiros, de modo que o consumidor, considerando-
se explorado, muitas vezes não aceita a contratação da tarefa.35 Há
casos de prolongada indecisão, em que o consumidor consulta um
sem número de trabalhadores sem chegar a concordar com o preço
de nenhum. Essa indecisão é reforçada pela grande variação real dos
preços cobrados pelos diferentes profissionais.

ão
Em segundo lugar, muitos clientes não aceitam contratar
serviços na forma de diária motivados pela suposição de que o


trabalhador pode lançar mão de uma série de recursos para adiar o

lg
fim da tarefa. Entre os biscateiros não qualificados, cuja contratação
à base de diária é mais comum, é, de fato, usual a tentativa de “fazer
vu
render” (demorar) uma tarefa, como recurso a curto prazo para
di

aumentar os ganhos. Mas essa prática é perigosa, porque existe o


risco de perder o freguês e, através dele, vários outros contatos,
de

além de o biscateiro se tornar conhecido como relapso e desonesto,


quando insiste nesse expediente.
Essas distinções nos processos de determinação dos
ar

preços entre as ocupações por conta própria e os biscates refletem


pl

a diferença fundamental entre as duas situações de trabalho.


A posição destes últimos no mercado é menos vantajosa. Uma
em

das bases dessa desvantagem é que o biscateiro pode ter um


treinamento ótimo em sua profissão, mas a oferta de trabalho é
Ex

muito alta (construção civil, por exemplo); ou terá conhecimentos


incompletos de profissões de alta procura (serviços de manutenção
da indústria automobilística, por exemplo), de modo que a
qualidade de seu trabalho é muito inferior; ou ainda poderá ser
um trabalhador braçal, sem qualquer qualificação.
Ademais dos problemas relacionados à renda e à determinação
dos preços, uma das consequências da posição no mercado dos
biscateiros diz respeito à opção entre os dois subsistemas. Embora

35
Sob várias formas, esta explicação foi oferecida por diversos trabalhadores por
conta própria e biscateiros. Parece extremamente lógica e lúcida, mas deve-se
ressaltar que ela não foi comparada a depoimentos de clientes, de modo que deve
ser tomada com as devidas reservas.
Parte 2 Trabalho e cidade | 137

na maioria das vezes a renda auferida seja mais elevada que a


do emprego privado, em geral a valorização não chega a ser tão
marcante quanto no caso do trabalho por conta própria, além de
que as possibilidades de controle do mercado pela distribuição dos
riscos são também inferiores. Isto justifica uma maior orientação
em favor do MF; em contrapartida, existem dificuldades de acesso a
esses empregos devido à saturação da oferta. Todavia, deve-se notar
que tal barreira não impede o turnover entre os dois subsistemas.
Pelo contrário, ele é estimulado, já que a própria estabilidade dos
empregos no MF também fica ameaçada pelo excesso de oferta.
De qualquer forma, seria arriscado generalizar para todos

ão
os biscateiros a influência da componente de escolha pessoal entre
os subsistemas, uma vez que a atuação fica muito limitada pelas


condições de mercado. Nos casos em que ela se manifesta, há uma

lg
preferência pelo MF – mas mesmo esta não deve ser exagerada,
porque há inúmeros casos de opção pelo MNF.
vu
Para entender as alternativas que se colocam para os
di

biscateiros, deve-se considerar que a margem individual de controle


do mercado nessa ocupação é amplamente variada e responsável por
de

fortes diferenças internas na situação de trabalho e nas condições


de vida. Dada a grande importância da rede de contatos pessoais e
laços de clientela na segurança laboral desse tipo de trabalhador, são
ar

elas basicamente que influenciam a escolha. Já se viu que, mesmo


pl

quando há reconhecimento legal do emprego no MF, a margem de


segurança nem sempre é grande; além disso, registrou-se também
em

em que medida o emprego privado pode dificultar a manutenção e


ampliação dos contatos. Assim, quando estes são amplos, variados e
Ex

estratégicos, a permanência no MNF pode ser vantajosa. Por outro


lado, quando eles são poucos ou estão mal localizados, opta-se pelo
MF mesmo à custa de uma redução da renda.
Já se viu que, enquanto no MF a estabilidade depende, além
da proteção legal, quase exclusivamente de tentativas de criação
de laços de clientela com o empregador ou chefe imediato – cujo
êxito fora de pequenas empresas é raro36 –, no MNF as técnicas

36
Isso acontece porque, além do empregador também participar do processo
produtivo, defrontando-se com problemas semelhantes do mercado, manutenção
da margem de lucro, etc., ele não pode tornar-se patrão de todos os empregados. A
relação patrão-cliente envolve uma dose de reciprocidade de interesses, e é difícil
imaginar as vantagens econômicas que uma pessoa pode auferir, mantendo laços
138 | Luiz Antonio Machado da Silva

disponíveis para controle são muito variadas. Uma delas, entretanto,


embora originariamente ligada ao MF, tem importante influência na
participação no MNF. Adiante se fazem referências mais detalhadas a
respeito, mas por enquanto é interessante salientar que, nesse nível, e
para esses tipos de qualificação, a maioria dos trabalhadores procura
conhecer, pelo menos rudimentarmente, diversas profissões. Embora
uma tal formação técnica, imperfeita e eclética, seja imposição das
próprias condições do mercado de trabalho, ela, ao mesmo tempo,
amplia o campo de atuação do trabalhador, proporcionando maiores
possibilidades de obtenção de empregos privados tanto quanto de
conseguir serviços no MNF.

ão
Quanto às técnicas específicas da situação de trabalho
correspondente ao biscate, as manipulações para ampliação da


clientela são mais restritas que as do trabalhador por conta própria. A

lg
propaganda através do cartão de visitas é ineficaz: as possibilidades
de seleção por parte do freguês são muito acentuadas, de modo
vu
que há uma tendência no sentido de escolher trabalhadores já
di

conhecidos, seja diretamente, seja através da indicação de amigos


que já tiveram oportunidade de utilizar os serviços do trabalhador.
de

Por isso, em geral, o biscateiro substitui o cartão de visitas por


um caderno de endereços e telefones com anotações de todos
os fregueses, presentes, passados e potenciais, aos quais visita
ar

periodicamente nos momentos em que se encontra inativo, a fim


pl

de reforçar o contato, “avaliar o mercado” e, eventualmente, obter


serviço ou algum presente.
em

Na medida em que os biscates – assim como as ocupações


ligadas às atividades domésticas – dependem fortemente da
Ex

personificação das relações de trabalho, há um fato de natureza


psicossocial que desempenha papel relevante na qualidade dos
contatos e, portanto, no próprio controle do mercado. Trata-se do
que se poderia chamar de “personalidade”. Com este termo, procuro

de clientela com vários trabalhadores de nível e tipo de qualificação equivalente.


Note-se ainda que, quanto menor o porte da firma (em termos de capital
disponível, produção, etc.), maior a necessidade do dono de recorrer a medidas de
personificação para controlar a parcela do mercado consumidor de que necessita
– envolvendo-se, portanto, num contexto de relações informais. Quanto maior e
geralmente mais monopolística a condição da empresa no mercado, mesmo sem
considerar os requisitos técnicos de organização da produção, maiores serão suas
possibilidades de controle burocrático.
Parte 2 Trabalho e cidade | 139

englobar um conjunto de características psicológicas socialmente


relevantes, relacionadas a expectativas culturais em torno do
comportamento do trabalhador. Tais características incluiriam
a “simpatia”, “extroversão”, “bom humor”, etc., que influem sobre
a facilidade de estabelecer boas relações primárias; e também
“autoconfiança”, “iniciativa”, entre outros, que afetam a agressividade
na procura de serviços, sobre o que será feita menção mais adiante.
Qualidades dessa natureza são significativas em qualquer caso,
mas afetam mais profundamente as situações em que a confiança
interpessoal é fator básico.37
A influência da confiança pessoal do freguês, que no

ão
trabalho por conta própria fica limitada pela baixa oferta de mão
de obra, é de maior importância na contratação dos biscateiros.


Isso explica as dificuldades de encontrar clientes eventuais e,

lg
portanto, a dependência das manipulações para manter e ampliar
contatos. No entanto, apesar dessas dificuldades, em diversas
vu
ocasiões o biscateiro se defronta com um cliente eventual. Nesse
di

momento, ele precisa decidir entre cobrar o mais alto preço


possível e “desaparecer” ao final da tarefa, não criando o contato,
de

ou o diminuir um pouco, na esperança de conquistar o freguês. No


primeiro caso, o trabalhador procura deixar o preço em aberto,
insistindo com o freguês em que esse problema seja tratado apenas
ar

depois de concluída a tarefa. Se há concordância, costuma-se deixar


pl

a remuneração a critério do cliente; quando o pagamento é julgado


alto, além do lucro, o cliente pode transformar-se em contato,
em

lisonjeado com a confiança do biscateiro. Quando se dá o contrário,


este reclama, a fim de tentar obter a remuneração que deseja.
Ex

Este delicado processo é bastante comum, e seu sucesso depende


em grande parte da habilidade do biscateiro. Esta é importante
também no segundo caso, pois depende de uma avaliação correta
das disponibilidades financeiras do cliente, já que disso depende a
definição do que seria, para o caso, “diminuir o preço”.
A escolha entre essas duas alternativas é o resultado de um

37
Não se deve esquecer também características pessoais como a cor, origem
étnica, etc., ligadas a preconceitos e estereótipos muito difundidos. (Assim, por
exemplo, existe uma noção generalizada de que portugueses e italianos são bons
marceneiros). Esse tipo de vantagens e handicaps parece atuar mais profundamente
sobre os empregos domésticos (salientando-se a cor como barreira para as melhores
colocações), talvez devido à maior intimidade do contato.
140 | Luiz Antonio Machado da Silva

complexo julgamento global do mercado e da localização, nele, do


biscateiro – existência ou não de reservas financeiras no momento,
dimensões e intensidade dos contatos, opções de trabalhos
alternativos, etc. É possível dizer que, quanto mais rapidez e
habilidade na avaliação, tanto mais favoráveis tenderão a ser
suas condições de segurança e seu nível de renda. (De passagem,
seria interessante salientar que são fatores dessa natureza que
distorcem o relacionamento linear entre grau/tipo de qualificação,
estabilidade e renda).
Existe outra forma muito difundida de buscar a
estabilidade: quando há oportunidade, aceitar duas ou mais tarefas

ão
simultaneamente, dividindo o tempo entre elas. Isto se deve ao
fato de que o biscateiro não tem certeza de sua capacidade de


obter um serviço logo após terminado o anterior. Como o número

lg
de trabalhadores em disponibilidade é grande, suas condições
de contratar tarefas com antecedência – como o trabalhador por
vu
conta própria – ficam reduzidas, já que o cliente dispõe de amplas
di

alternativas para escolher outros trabalhadores. Provavelmente,


apenas alguns patrões, com os quais o relacionamento é mais longo e
de

profundo, estariam dispostos a aguardar o término da tarefa anterior,


mesmo considerando que, em geral, sua duração tende a ser muito
menor que a dos trabalhadores por conta própria. Tal impaciência é
ar

auxiliada pela natureza rudimentar da atividade que, sendo pouco


pl

elaborada, reduz as diferenças na qualidade do trabalho e, portanto,


a importância desse fator.
em

Também aqui é necessária uma grande habilidade, e, por isso,


essa técnica é responsável por boa parte dos atritos entre o trabalhador
Ex

e o freguês. É preciso “saber enrolá-lo”, levantando motivos muito


plausíveis para as faltas, para o tempo de trabalho diário reduzido,
etc., e escudando-se numa atitude de grande humildade e aceitação
de repreensões. Em muitos casos, a incapacidade de desempenhar
tal papel, associada a um recurso exagerado e constante a essa
técnica, são responsáveis pela ruptura do contato. Acresce que, como
a ruptura de um contato pode provocar o rompimento em cadeia de
diversos outros, apenas recorrem a ela trabalhadores que tendem a
possuir uma rede de contatos muito pequena ou, em casos extremos,
quase inexistente. Em geral, poder-se-ia dizer que a utilizar significa
uma escolha por benefícios a curto prazo, na medida em que, de uma
perspectiva mais ampla, ela representa um risco.
Parte 2 Trabalho e cidade | 141

Uma variante é a decisão de acelerar o término da tarefa, com


forte prejuízo da qualidade (“matar o serviço”), para obter outra, cuja
oportunidade é conhecida com um mínimo de antecedência, sem
perigo de perdê-la para um concorrente. O risco de ruptura do contato
é idêntico ao caso anterior. Além do mais, às vezes, o freguês tem
condições de obrigar o biscateiro a corrigir os defeitos – ameaçando
recorrer à polícia, recusando-se a completar o pagamento, retendo
as ferramentas em seu poder,38 etc., de modo que o trabalhador pode
terminar por perder dinheiro. Por isso, em geral, tal decisão é tomada
por trabalhadores com uma posição muito instável no mercado, com
grande premência de obter uma renda monetária.

ão
Está implícita a íntima relação entre as manipulações ligadas
às variações de preço do trabalho e as vinculadas à procura da


estabilidade, mas não é ocioso enfatizá-la. Antes de passar a novas

lg
considerações, seria útil também explicitar que a escolha das técnicas
de controle do mercado, se de um lado é função da disponibilidade,
vu
amplitude e localização estratégica da rede de contatos, ao mesmo
di

tempo representa importante meio para sua manutenção e ampliação


(ou destruição, no caso de erro de seleção).
de

Existe uma forma de biscateiros economicamente isolados


que se afasta bastante desse tipo de técnica e que, embora
originalmente vinculada à personificação das relações, é geralmente
ar

usada para substituí-las. Muitos deles, que sofrem de extrema


pl

falta de contatos, escolhem um bar ou uma esquina movimentada,


onde costumam aguardar solicitações de seus serviços, por parte
em

de clientes eventuais. É comum serem indicados para pequenos


serviços braçais por moradores da vizinhança, que apenas “veem-
Ex

no por ali”, e que, por sua vez, podem tornar-se clientes eventuais.39
É óbvio que esse procedimento indica uma forte instabilidade, com
períodos de desocupação relativamente frequentes.
Note-se, contudo, que, do ponto de vista puramente
quantitativo, o montante médio da remuneração pode ser bem

38
Esta é, talvez, a pior ameaça, porque muitas vezes as ferramentas são
emprestadas. Ficando retidas, além de perder o freguês, o biscateiro enfrenta sérios
problemas com o dono, que podem culminar na perda desse contato, vital para suas
possibilidades de trabalhar.
39
É claro que, quando o biscateiro trabalha por muito tempo num ponto, pode
terminar criando uma rede de contatos; geralmente, porém, os laços pessoais assim
adquiridos são muito mais fracos.
142 | Luiz Antonio Machado da Silva

superior ao salário mínimo – e, em consequência, a muitos empregos


privados. Por exemplo, os carregadores de pequenos volumes em
carrinhos de mão – “burros sem rabo”, na denominação popular
– podem receber de Cr$ 30,00 a Cr$ 80,00 numa única viagem de
poucas horas, dependendo da distância do ponto de entrega, peso
da mercadoria transportada, situação financeira do freguês, etc.
Mesmo considerando que, em geral, esse tipo de trabalho costuma
ser executado em dupla, e que o biscateiro precisa pagar aluguel pelo
carrinho de mão (que raramente lhe pertence), um pequeno número
de viagens é suficiente para garantir renda proporcionalmente alta.
Em contrapartida, outros tipos de biscateiros que recorrem à técnica

ão
do ponto – carregadores de feira, alguns engraxates, vendedores
de doces caseiros, etc. – auferem renda média bastante inferior ao


salário mínimo.

lg
Por esses motivos, é difícil imaginar que o recurso a essa
técnica seja decorrente da escolha pessoal e não de uma imposição
vu
derivada das condições desvantajosas de controle do mercado.
di

Ainda quando pudesse parecer que o nível médio da remuneração


contrabalançava a alta instabilidade, é difícil imaginar que houvesse
de

livre escolha desse recurso. A flutuação dos ingressos é tal que


impede qualquer tentativa de planejar despesas. Embora não se
pretenda dizer que esses biscateiros necessariamente cheguem a
ar

passar fome, as dificuldades de organizar o orçamento, que nunca


pl

podem deixar de ser públicas, impedem ou dificultam a concessão


de crédito em todos os níveis, desde as lojas de armazéns até os
em

sistemas de aliança. Lembrando-se do fato de que nessa faixa de


renda as possibilidades de poupança são muito limitadas, é possível
Ex

entender os problemas que uma tal instabilidade pode provocar,


e que dificilmente seriam compensados por uma renda mensal
teoricamente alta, como nos casos de maior controle do mercado.
Para níveis de estabilidade muito baixos, raciocinar em termos de
remuneração mensal, de fato, não passaria de abstração, porque
é comum existirem longos períodos de inatividade,40 seguidos

40
Um dos entrevistados, que trabalhava como “burro sem rabo”, no momento do
contato com o investigador, encontrava-se há 41 dias sem trabalhar. Enfrentou esse
período de crise (o maior registrado por ele) mandando os três filhos pequenos,
todos sem idade de trabalho, fazer as refeições na casa de parentes. (“As crianças e
a mulher eu mando visitar os parentes, assim como quem não quer nada”). Quanto
a ele próprio, sobrevivia à custa de pequenas “virações”, auxiliando donas de casa
Parte 2 Trabalho e cidade | 143

de outros em que as oportunidades de trabalho são tantas que é


necessário recusar os menos compensadores. Poder-se-ia concluir
daí que não é o nível de renda em si que torna difíceis as condições de
vida de alguns tipos de biscateiros, mas antes a grande instabilidade
e as violentas flutuações dos ingressos que a acompanham.41
Uma variante muito mais estável da técnica do ponto, quando
o biscateiro tem alguma qualificação, é a obtenção de permissão por
parte do dono de uma loja ligada à sua profissão (madeira, tapetes,
material elétrico e de construção, etc.) de fazer ponto nela. Trata-se
de um arranjo muito útil para o proprietário da loja, porque alguns
fregueses só compram a mercadoria se houver alguém para instalá-

ão
la e/ou transportá-la; dispondo de um biscateiro para indicar, ele
evita os problemas ligados à realização do serviço e não precisa


contratar um empregado, cujo tempo de trabalho dificilmente seria

lg
todo ocupado. Por outro lado, embora ainda conserve uma certa
instabilidade, o biscateiro passa a depender menos de circunstâncias
vu
fortuitas para obter serviço. Existem até mesmo casos que podem
di

ser bastante compensadores, dependendo do movimento da loja em


que o trabalhador faz ponto.
de

Nesses casos, embora o trabalhador possa ter uma certa


estabilidade e manter o ponto por longo tempo, ela não decorre da
substituição de uma situação de biscate pela de empregado sem
ar

reconhecimento, como pode parecer à primeira vista. O biscateiro


pl

trata diretamente de preços, prazos, material necessário, etc., com


o freguês, sem a mediação do dono da loja, cuja atuação resume-se
em

a apresentá-los mutuamente, caso seja solicitado. E, não obstante a


permissão do ponto exija sempre um conhecimento prévio, ainda
Ex

que superficial, laços mais profundos de clientela são desnecessários.


Mas existem alguns laços pessoais: é comum, por exemplo, que o
biscateiro possua desconto sobre o material que compra. Tal fato é

e vizinhos (fazer compras, consertar uma cadeira, etc.). em troca de comida. Esses
recursos extremos sucederam-se ao fechamento total de crédito (mas é preciso
notar que os problemas de dívidas do entrevistado eram anteriores ao período
acima mencionado).
41
A incapacidade objetiva de planejamento dessa parcela de trabalhadores contribui
para criar um clima geral de orientação para o curto prazo. Cf. Machado da Silva
(1969), em que se registra exemplos de casos de participantes do MF com intensa
imprevisão, embora se deva notar que se trata de indivíduos com características
especiais. Veja-se também Machado da Silva (1967).
144 | Luiz Antonio Machado da Silva

importante, porque o coloca numa posição estratégica, permitindo-


lhe servir de intermediário entre outros trabalhadores e a loja. Por
este meio, pode obter lucro direto, retendo parte da diferença entre o
preço corrente e o preço com desconto, e/ou reforçar seus contatos.
O que foi dito até aqui demonstra claramente as afirmações
do primeiro capítulo sobre a flexibilidade do MNF. Uma importante
decorrência dessa característica, também já referida no capítulo
anterior, diz respeito às possibilidades de mobilidade ascendente.
Embora cada situação de trabalho defina certo grau de controle
do mercado, com uma gama correspondente de modos de atuação
possível, é preciso não perder de vista que, em conjunto, elas

ão
configuram um sistema de posições com nítida continuidade e ampla
faixa de superposição. Esta característica, mais notável no MNF por


seu caráter não burocrático e por sua invisibilidade legal, permite-

lg
lhe dispor de fortes mecanismos de mobilidade. Porém, ainda que
considerados os dois subsistemas, não há barreiras intransponíveis
vu
à trajetória do trabalhador,42 como o demonstra o próprio turnover
di

entre as categorias de emprego/ocupação.


De um modo geral, as perspectivas de mobilidade estão
de

ligadas, de um lado, à ampliação qualitativa ou quantitativa dos


contatos, e, de outro, ao incremento das habilidades técnicas, com o
mecanismo de preços atuando em caráter instrumental em ambos os
ar

casos. Já se viu como a manipulação dos preços pode ser importante


pl

para manter e ampliar contatos e laços de clientela. Resta notar


que um contato – geralmente um laço de clientela – pode servir de
em

“pistolão”,43 “rendendo” um salto às vezes brusco nas condições de


Ex

42
A respeito dessa trajetória, embora existam poucos estudos e o material empírico
colhido para o presente trabalho não permita conclusões definitivas, parece haver
relações entre a idade do trabalhador, sua situação de trabalho e o grau de controle
do mercado em cada uma delas. Considerar sistematicamente esses dois últimos
fatores como etapas na vida do trabalhador pode ser um frutífero caminho de
investigação. Por exemplo: a maioria das ocupações por conta própria parece ser
desempenhada por indivíduos de meia idade; as mudanças de situações de trabalho
parecem diminuir com o tempo da atividade econômica; antigos biscateiros parecem
ter maior estabilidade que os biscateiros recentes; os jovens parecem manter-se por
menos tempo num único emprego privado; etc. Cf. Codesco (1969). Ver também
Leeds (1969).
43
Este termo, muito empregado para indicar qualquer benefício através de contatos,
explicita nitidamente o caráter da instrumentalidade econômica das relações primárias
e indica o reconhecimento da vinculação entre laços afetivos e interesses de lucro.
Parte 2 Trabalho e cidade | 145

controle do mercado: um biscateiro com muita instabilidade que


consegue por esse meio tornar-se funcionário público, por exemplo.
No que diz respeito à mobilidade através da qualificação,
ela é paulatina, sem condições de alterações radicais como no
exemplo acima. É muito comum que biscateiros e trabalhadores
por conta própria trabalhem em dupla, funcionando os primeiros
como ajudantes em serviços que não podem ser executados por um
único indivíduo e recebendo uma percentagem, via de regra, entre
20% e 50% da remuneração total. Ou, então, que dois biscateiros,
um qualificado e outro não, trabalhem em aliança, dividindo
lucros, contatos e ferramentas. O ajudante, após algum tempo de

ão
observação, começa a executar as etapas técnicas mais simples
das tarefas, até adquirir conhecimentos suficientes para lançar-


se individualmente no mercado. O momento dessa passagem é

lg
indefinível e paulatino, pois a decisão de tornar-se “curioso” – nome
dado aos indivíduos que aceitam tarefas cujos conhecimentos
vu
técnicos não dominam totalmente – depende em grande parte da
di

autoconfiança e iniciativa pessoal.


Como a qualidade do trabalho é muito inferior, e a fim de
de

criar uma freguesia, o iniciante pode cobrar preços baixos durante


um certo período. Existe um termo altamente pejorativo – “lambão”
–, cujo significado original se liga à qualidade deficiente do serviço.
ar

Nesse contexto, porém, é aplicado ao curioso e usado, por extensão,


pl

para designar qualquer trabalhador que cobra preços muito baixos,


com o intuito de enfrentar biscateiros economicamente isolados e
em

momentos de longa inatividade, mesmo quando o serviço é bem


feito. Isto indica, em primeiro lugar, a existência de tentativas
Ex

infrutíferas de impor preços mínimos no mercado e, em segundo, a


alta competição existente.
O aspecto competitivo ressalta, também, da precariedade
das relações entre as duplas de trabalhadores, que geralmente são
rompidas após curto período, por questões ligadas à divisão dos
lucros, mútuas acusações de falta de aplicação ao trabalho, etc.44 Por
causa dessa precariedade, o indivíduo tem condições de, associando-
se a profissionais de diferentes atividades, adquirir simultaneamente
conhecimentos rudimentares de diversas profissões, de modo que
o comprometimento com uma qualificação específica surge aos

44
A respeito desses conflitos, veja-se Machado da Silva (1969).
146 | Luiz Antonio Machado da Silva

poucos. São bastante numerosos os “curiosos” em várias profissões


(especialmente na construção civil, inclusive reparos), e só à medida
que surgem possibilidades de uma rede estável de contatos e laços de
clientela estrategicamente situados em relação a uma delas, é que os
esforços de aprimoramento técnico concentram-se numa atividade
específica. Durante todo o período de criação dessas relações
pessoais – isto é, até conseguir controlar uma faixa do mercado de
uma profissão particular –, não se abandona as outras atividades.45
Ao final do processo, desponta a valorização da profissão principal,
ficando os demais conhecimentos relegados ao segundo plano e
utilizados em atividades suplementares como “viração”. Como o

ão
trabalho em uma só profissão ao mesmo tempo proporciona e indica
condições favoráveis de controle do mercado, possuir treinamento


ótimo numa profissão (ser “oficial”) é fator de alto prestígio. De fato,

lg
parece que a valorização não é tanto da profissão em si, mas de suas
consequências em termos de estabilidade e renda.
vu
Um derradeiro grupo de ocupações precisa ser considerado,
di

a fim de completar a visão das técnicas de atuação nas diversas


situações de trabalho: as ocupações vinculadas às atividades
de

domésticas. Grosso modo, pode-se dizer que as condições gerais


dessas ocupações não são boas. Primeiro, porque as perspectivas
objetivas de opção pelo MF são quase nulas. Como se viu, trata-se
ar

de ocupações típicas – embora não exclusivas – da mão de obra


pl

feminina. Na medida em que fatores culturais e institucionais


limitam muito o número de empregos para mulheres em qualquer
em

nível de qualificação, o MF coloca-se antes como meta ideal,


raramente como alternativa. A atração que exerce explicar-se-ia
Ex

pela enorme subordinação ao patrão (em especial, nos empregos


domésticos) como única forma de controle do mercado, acrescida
de um nível de renda monetária muito baixo.46 Mas os empregos e

45
São muito comuns os depoimentos do tipo “eu tenho várias profissões, mas minha
profissão de fé é…”, ou “eu sou curioso em várias profissões, mas sou oficial de…”. Nem
sempre o biscateiro logra conseguir conhecimentos técnicos completos sobre uma
profissão. Muitos entrevistados, quando indagados sobre sua profissão, respondem:
“eu não tenho profissão, mas me viro em uma porção delas”. (Em contraste, quando
não há qualificação alguma, a resposta costuma ser: “eu não tenho profissão, meu
trabalho é braçal”).
46
Essa subordinação é uma componente necessária de toda relação patrão-cliente,
mas aqui se torna especialmente sentida e forte devido ao grau de intimidade
Parte 2 Trabalho e cidade | 147

serviços domésticos apresentam grande diferenciação interna, de


modo que cumpre qualificá-los um pouco melhor, a fim de apreender
corretamente sua posição no mercado de trabalho e as condições
dos trabalhadores deles dependentes.
Já se disse no capítulo anterior que um de seus aspectos
básicos é o caráter de fonte secundária de remuneração, do ponto
de vista do orçamento familiar. De certa maneira, essas atividades,
principalmente os serviços domésticos, são vistas como uma
espécie de oportunidade inesperada de elevação da renda familiar,
uma “viração” disponível para mulheres, que de outra forma não
contribuiriam para o orçamento familiar, e não como uma verdadeira

ão
atividade econômica regular. Consideradas como recurso extra dos
membros femininos da família, as próprias ocupações assumem um


status subsidiário na avaliação do mercado de trabalho – porém, de

lg
grande importância, pois sempre se trata de mais um “meio de ganhar
a vida”. Em contrapartida, as atividades domésticas representam uma
vu
significativa fonte de segurança e menor dependência econômica
di

pessoal, talvez a única disponível em massa pelo sexo feminino.


Ter uma ocupação dessa natureza confere garantias mínimas de
de

sobrevivência em casos de crise familiar, como o rompimento da


família, morte do chefe, etc., apesar de toda a precariedade de que
se reveste. Note-se que, ao contrário do biscate típico, que depende
ar

continuamente da obtenção de novos serviços, as atividades


pl

domésticas quase sempre proporcionam “casa e comida” (ou pelo


menos comida) de imediato, e por um período mais longo.
em

É claro que, em vários casos, os serviços ou empregos


domésticos constituem a fonte de renda principal da família. Quando
Ex

desempenhados por mulheres que são as responsáveis exclusivas


ou essenciais pelo sustento familiar, as condições de vida são quase
sempre muito deficientes, às vezes perigosamente próximas da
mendicância. Quanto aos homens com essas ocupações (jardineiros,
copeiros, etc.), em geral, eles também têm condições de vida
bastante desfavoráveis, porém melhores. Por exemplo, a lavagem de
roupas, exercida por mulheres, possui uma estabilidade e um nível
de renda tão baixo que depender exclusiva ou basicamente delas

exigido pela natureza do trabalho. Quanto à renda, é necessário ter sempre em


vista seu componente não monetário, tanto o implícito na remuneração ajustada
(alimentação, moradia gratuita), quanto aquele que não faz parte formal da
retribuição pelo trabalho (“presentes” de todo tipo).
148 | Luiz Antonio Machado da Silva

para sobreviver indicaria uma situação desesperadora; por outro


lado, a faxina, serviço masculino, permite níveis muito melhores de
remuneração. Além disso, para as mulheres, as atividades domésticas
têm o caráter não apenas de ocupação principal, mas única. Ao
homem, entretanto, nos momentos em que não está comprometido
com seus patrões, é possível atuar como biscateiro num ponto
qualquer: isto é muito comum e permite um acréscimo à sua renda,
além de oferecer condições de diversificação mais ampla dos riscos.
Excepcionalmente, é possível encontrar-se empregos
domésticos com alto grau de estabilidade, maior mesmo que a
de grande parte dos outros empregos/ocupações de ambos os

ão
subsistemas. É fato notório, por exemplo, que algumas empregadas
domésticas acompanham seus patrões por períodos que equivalem


a toda uma existência. Porém, mesmo com a possibilidade sempre

lg
presente de um relacionamento cuja duração pode chegar a tal
ponto de permanência, globalmente as atividades domésticas se
vu
mantêm muito desvalorizadas. Em primeiro lugar, é claro, porque
di

tais casos são muito raros em proporção ao total de empregos; mas,


principalmente, porque eles dependem de condições cujo controle é
de

muito difícil – “confiança”, “simpatia”, “tolerância” do patrão – e porque


a subordinação pessoal do empregado doméstico ao patrão precisa
ser de tal ordem que se torna quase insuportável. Deve-se ressaltar
ar

que, enquanto nos demais casos do MNF as manipulações descritas


pl

referem-se ao controle do mercado (em geral) pela diversificação de


riscos, nas atividades domésticas elas se restringem ao “controle” da
em

ocupação particular – isto é, do patrão –, e uma das únicas formas


possíveis é a subserviência. Isto não significa que, não obstante as
Ex

óbvias dificuldades de mantê-las e ampliá-las, as redes de contatos


não existam; mas elas são ineficazes, pouco influenciando a relação
específica e imediata de trabalho. A proteção do trabalhador, que,
no caso do MF, é o reconhecimento legal e, nas demais situações de
trabalho do MNF, a rede de contatos, nas atividades domésticas, em
especial nos empregos domésticos, é inexistente ou, pelo menos,
muito pálida.
Não deve ser ignorado, entretanto, o papel dos porteiros e
faxineiros de edifícios como veículo de oportunidades de emprego
e conhecimento do mercado para as empregadas domésticas.
Na realidade, eles costumam atuar como verdadeiros agentes de
emprego, sendo figura-chave de muitas redes de contatos. Todavia,
Parte 2 Trabalho e cidade | 149

o suporte oferecido pelos porteiros, em termos da estabilidade dos


empregos domésticos, também não pode ser supervalorizado, uma
vez que é grande o número de candidatas aos empregos de que
dispõem, de modo que obter uma colocação através do porteiro
ou faxineiro pode ser tarefa muito problemática e onerosa para o
trabalhador. (Casos de verdadeiras chantagens não são incomuns.
Conheço, por exemplo, um porteiro que obrigava suas conhecidas
a trabalharem como prostitutas, com a promessa de sua indicação
para o primeiro emprego de que tivesse notícia).
Outro aspecto que não deve ser ignorado na avaliação das
atividades domésticas é o que se poderia chamar de remuneração

ão
em espécie, isto é, as formas não monetarizadas de retribuição do
trabalho. Sua natureza essencialmente econômica nem sempre


precisa ser explicitada: muitas vezes, a recompensa fica disfarçada

lg
sob a forma de “presentes”, “favores”, etc. De qualquer forma,
estes benefícios representam parcela ponderável da remuneração
vu
global. (Não existe exclusividade para as atividades domésticas,
di

mas aqui sua importância é maior devido às características da


relação de trabalho e ao baixo nível da renda monetária). Como
de

não fazem parte explícita da remuneração, seu volume depende


do clima a longo prazo de relacionamento e do estado atual deste,
possuindo fortes variações no tempo. A possibilidade de obter
ar

bons presentes por meio de uma atitude de grande subserviência


pl

ao patrão pode atenuar os reflexos negativos das dificuldades de


manter e desenvolver uma rede ampla de contatos, de modo que
em

o trabalhador pode contar com uma distribuição de riscos mais


ampla. Assim, a redistribuição de uma parcela desses “presentes”
Ex

pode contribuir para o fortalecimento da posição do trabalhador


no sistema de alianças, permitindo-lhe usá-las nos períodos de
inatividade como instrumento indireto para relacionar-se com
novo patrão em potencial, reiniciando todo o processo.
Em torno dos modos de obter serviço, surgem importantes
diferenciações internas nas atuações de trabalho relacionadas às
atividades domésticas. A imensa maioria das relações de trabalho
é criada a partir da manipulação dos sistemas de alianças. Já foram
feitas referências à estabilidade; quanto à renda, como depende de
acordo pessoal entre a partes, existem grandes variações, embora
não seja ocioso repetir mais uma vez que seus limites máximos
são baixos.
150 | Luiz Antonio Machado da Silva

Os empregos domésticos nas zonas de moradia dos grupos


mais abastados tendem a possuir um nível de renda mais alto
que o das zonas suburbanas. Obviamente, isso se explica pela
maior disponibilidade financeira dos patrões no primeiro caso. O
importante dessa constatação seria mostrar que, em última análise,
é o patrão quem determina os preços a seu gosto, dentro de limites
muito flexíveis, já que a posição dos trabalhadores no mercado não
lhes permite impor condições para aceitar o trabalho, o que, por
sua vez, reforça a imagem das características pouco favoráveis de
controle do mercado dessas ocupações.
Mas existe uma forma de recrutamento menos personalizada,

ão
através de anúncios de jornal ou empresas especializadas na colocação
desse tipo de mão de obra. No entanto, embora o contato inicial seja


impessoal e burocratizado, a situação de trabalho envolve as mesmas

lg
características de personificação ligadas ao MNF, inclusive porque
todos os futuros patrões exigem “referências” (atestados escritos ou
vu
não sobre a qualidade do serviço, honestidade do trabalhador, etc.)
di

que dependem de uma rede de contatos, representada por antigos


patrões com os quais não houve ruptura violenta de relações.
de

Contudo, este modo de obter trabalho está limitado a uma


pequena elite, à qual o acesso dos demais trabalhadores domésticos
é sobremaneira difícil, devido aos requisitos necessários. No caso
ar

das firmas especializadas, é indispensável uma reserva financeira


pl

ou, pelo menos, uma razoável margem de poupança mensal, porque


elas exigem seja um depósito monetário prévio a título de inscrição,
em

seja o compromisso de pagamento de uma taxa depois de obtido o


emprego. Outro requisito, este aplicável tanto às empresas quanto
Ex

às ofertas nos jornais, relaciona-se à qualificação – de modo que


as perspectivas de treinamento em serviço se tornam quase nulas.
O termo qualificação, no caso das atividades domésticas, não se
reduz aos conhecimentos técnicos, abrangendo um campo mais
vasto: modo de conduta (“boas maneiras”), instrução (analfabetos,
mesmo tecnicamente qualificados, são via de regra preteridos), “boa
apresentação” (aparência física, cor, vestuário “adequado”, etc.),
dentre outros.
No tipo de recrutamento mais comum, através de relações
pessoais, é destas que depende a estabilidade e renda, porque a
qualidade rudimentar dos serviços exigidos não permite que a
influência da qualificação seja significativa. No recrutamento através
Parte 2 Trabalho e cidade | 151

de empresas especializadas e/ou anúncio de jornais, sendo o padrão


dos serviços exigidos muito maior, os conhecimentos técnicos passam
a influir de modo significativo sobre a estabilidade e o nível de renda.
Por exemplo, há toda uma série de nuances nos anúncios de oferta
e procura, cada uma delas correspondendo a uma remuneração
diferente: cozinheiras “de forno e fogão”, “trivial variado”, “trivial
simples”; copeiros com “serviço à francesa”, “comum”, etc.
Como o mercado está menos saturado para esta elite
profissional, ela tem condições de influenciar a determinação dos
preços do trabalho dentro, é claro, de certos limites. Além disso,
o nível geral dos preços é muito mais alto do que nos outros tipos

ão
de ocupações ligadas às atividades domésticas, e mesmo que o de
muitos empregos do MF. Para se ter uma ideia dessas diferenças,


basta dizer que os profissionais qualificados podem receber até 1 ½

lg
a 2 salários mínimos e até mais (muitas vezes com direito à moradia
e à alimentação, além de roupas de trabalho), contra um mínimo de
vu
cerca de 1/5 do salário-mínimo nos demais casos.
di

Talvez fosse possível resumir as considerações aqui


apresentadas com algumas observações de ordem geral sobre
de

as diversas situações de trabalho no MNF. Quanto às atividades


domésticas, deve-se enfatizar, em primeiro lugar, que, sendo o
caso em que a influência da personificação, na situação típica, é
ar

mais relevante, a margem de variações concretas é muito grande.


pl

Em segundo lugar, dependendo do caso, elas podem assumir dois


significados muito diferentes entre si. O caso mais comum deve
em

ser visto antes em relação à dinâmica interna da organização e


manutenção familiar, e apenas secundariamente como uma atividade
Ex

econômica organizada e estável. O outro, representado pela elite


profissional, deveria ser encarado basicamente no que concerne ao
processo produtivo, em sua natureza de prestação de serviços de
manutenção indispensáveis ao funcionamento do sistema – e com
alguns importantes pontos de contato com os empregos privados.
Algo semelhante acontece com os biscates que, como
ocupação, têm alto grau de institucionalização – embora “informal”,
com relações de trabalho não burocratizadas –, mas que para alguns
trabalhadores não passa de um recurso visando a sobrevivência.
Finalmente, o trabalhador por conta própria, dada a sua autonomia,
representaria não apenas uma situação intermediária, mas afastar-
se-ia da própria situação típica do trabalhador assalariado em geral.
152 | Luiz Antonio Machado da Silva

Do ponto de vista das condições de vida dos trabalhadores


aqui estudados, não obstante a forte ênfase dada ao MNF, deve ter
ficado claro pelas comparações apresentadas que as diferenciações
nas situações de trabalho não são suficientes para definir estilos de
vida distintos. O acentuado turnover, a ausência de barreiras rígidas
e intransponíveis que impedissem a mobilidade, e, principalmente,
as características de dilema pessoal da participação entre um ou
outro subsistema confirmam esta alternativa geral, a qual, aliás,
está longe de ignorar as variações no padrão de vida decorrentes de
níveis diferenciais de controle do mercado e expressas por rendas
familiares também diversas, ocorridas no interior dessa configuração

ão
geral homogênea. Estes problemas serão tratados também, sob outro
enfoque, no próximo capítulo.


Capítulo 3. Observações gerais a respeito do modelolg
vu
apresentado
di

A concretude do modelo
de

No decorrer dos capítulos anteriores, foram feitas referências


fragmentárias a algumas categorias que compõem o sistema de
ar

representações dos trabalhadores, no que diz respeito ao mercado


pl

de trabalho. Cumpre, agora, retomar este aspecto do problema


de forma um pouco mais organizada, embora mantendo a visão
em

esquemática. Com isso, se estará explicitando a própria natureza do


modelo apresentado e suas limitações.47
Ex

Fundamentalmente, o trabalhador recorre a três pares


de categorias para explicar e definir o mercado, bem como para
situar, nele, os grupos envolvidos: a) “empregado” x “biscateiro”;
b) “empregado” x “funcionário”; c) “biscateiro” x “trabalhador por
conta própria”. O primeiro deles (“empregado” x “biscateiro”) define
o campo de atuação no mercado – isto é, as condições gerais de
trabalho com que o indivíduo se defronta e, dentro delas, a gama e as
características das manipulações possíveis por parte do trabalhador.

47
Não se trata, portanto, de procurar descrever um sistema de classificação, mas tão
somente de abordá-lo em certos aspectos relevantes do ponto de vista do modelo
analítico apresentado neste trabalho.
Parte 2 Trabalho e cidade | 153

Neste nível, as noções de “empregado” e “biscateiro” centralizam-


se em torno dos tipos genéricos de patrão com que o trabalhador
necessariamente se relaciona, conotados pelas consequências daí
decorrentes. Sobre essa dualidade básica, constroem-se dois outros
pares de categorias mais específicas, ampliando o conceito, de
modo a incluir para cada polo uma nova dimensão, representada
pelas distinções básicas a respeito do nível de controle do mercado.
Esses dois novos pares são, no polo do “empregado”, o “empregado”
x “funcionário” (público) e, no do “biscateiro”, o “biscateiro” x
“trabalhador por conta própria”.
Os termos “empregado” e “biscateiro” revestem-se de

ão
uma certa ambiguidade, pois indicam duas ordens de categorias
distintas, de forma que seu sentido depende do contexto em que


são utilizados. Em outras palavras, é preciso considerar o par de

lg
referência, pois nenhuma das categorias pode ser compreendida
isoladamente. Uma provável explicação para um mesmo termo
vu
indicar duas ordens diversas de conceitos poderia ser a necessidade
di

de explicitar que, embora sendo uma orientação essencial, o tipo


genérico de empregador não é suficiente para situar com clareza uma
de

situação concreta. Como simplificação (“redução”) máxima, seria


necessário algo que sugerisse tratar-se de um mero marco abstrato.
De fato, um “trabalhador por conta própria”, por exemplo, quando se
ar

compara a um “empregado” ou “funcionário”, diz-se “biscateiro”. Mas


pl

seu interlocutor imediatamente procura os sinais que indiquem a


outra dimensão indispensável para enquadrá-lo concretamente; ou
em

seja, procura, ao nível do par “biscateiro” x “trabalhador por conta


própria”, em que categoria é possível colocá-lo.
Ex

De qualquer forma, cumpre notar que a análise dos três


pares de categorias fundamentais demonstra que são sempre feitas
duas ordens de consideração. Em primeiro lugar, as vantagens e
desvantagens decorrentes do tipo genérico de empregador com que
o trabalhador se defronta no mercado. Em segundo, as vantagens
e desvantagens da situação concreta de trabalho de que desfruta
o trabalhador (que, portanto, é vista como essencial, mas não
exclusivamente, dependente do tipo de empregador).
É sobre o “esqueleto” construído pelos três pares de
categorias que se constrói o sistema classificatório pelo qual o
mercado é apreendido. Novas categorias são criadas para lidar com
situações cada vez mais específicas e concretas, para cuja definição
154 | Luiz Antonio Machado da Silva

se introduzem dimensões ainda não consideradas na ordem de


categorias anterior. Os aspectos abrangidos vão muito além da
mera especificação do tipo de relação com o empregador, pois
indicam também a natureza e o estado das relações com os demais
tipos de trabalhadores (perspectivas de cooperação ou conflito),
posição relativa no mercado dos trabalhadores e dos empregadores
entre si, níveis de habilidade técnica e remuneração, etc. Para
compreender a riqueza e a complexidade das representações do
mercado, basta relembrar, a título de exemplo, as conotações dos
termos “curioso” e “lambão”, que, à primeira vista, poderiam ser
considerados sinônimos. De fato, ambos especificam um grupo

ão
de “biscateiros” (entendidos ao nível da oposição ao “trabalhador
por conta própria”) com conhecimentos técnicos deficientes,


que determinam certos modos de manipulação do mercado. No

lg
entanto, a categoria “curioso”, ao mesmo tempo, conota a “coragem”
(positivamente valorizada) de assumir o risco de uma tarefa cujo
vu
domínio técnico é precário. Já o termo “lambão”, não apenas define
di

uma previsão de desempenho tecnicamente deficiente, mas enfatiza


os efeitos conflitivos decorrentes da cobrança de preços mais baixos,
de

assumindo, portanto, um tom pejorativo e conotando um grupo de


trabalhadores com os quais existe antagonismo declarado.
A respeito da riqueza e variedade das categorias que
ar

compõem o sistema de classificação do mercado, é importante


pl

notar que o polo do “empregado” apresenta um número muito


menor de categorias. Com efeito, além da dicotomia “empregado” x
em

“funcionário”, pude registrar apenas um outro nível, representado


pela posse ou não de “carteira assinada”, para indicar a margem
Ex

diferencial de proteção jurídica do grupo de empregados.48 Isto


é tanto mais notável quanto, ainda dentro desse aspecto legal,

48
Existe toda uma série de qualificativos – “peixinho”, “protegido”, etc. – para indicar
graus mais íntimos na relação pessoal entre o trabalhador e o empregador. Mas
esses termos parecem possuir um nível de elaboração conceitual muito inferior, e
seu conteúdo abrange uma gama de aspectos ou dimensões também muito menor,
que seus homólogos do MNF. Mais do que situações de trabalho, esses termos
definiriam posições estratégicas no sistema de laços de clientela. Portanto, estariam
antes relacionados a uma dimensão da oposição “patrão-trabalhador” (adiante
mencionada) do que ao sistema específico de classificação do mercado. Não há
dúvida, entretanto, que existem fortes vinculações entre esses dois sistemas de
representações, na medida em que as categorias ligadas ao mercado em particular
estariam contidas na oposição “patrão-trabalhador”.
Parte 2 Trabalho e cidade | 155

o funcionário desfruta de status jurídicos variados, os quais


aparentemente não dão origem a nenhuma subcategoria. Uma
possível explicação para essa aridez relativa poderia ser encontrada
no fato de que, no polo dos “empregados” (ao nível da oposição aos
“biscateiros”), poucas dimensões são suficientes para diferenciar
toda a gama possível de situações concretas de trabalho, ocorrendo
o inverso no polo dos “biscateiros”.
Existem muitas ambiguidades no sistema classificatório
do mercado construído pelos trabalhadores. Já foram feitas
referências ao uso de termos idênticos para indicar ordens distintas
de representações. Outra origem de importantes ambiguidades

ão
está no componente hierárquico que todas as categorias possuem,
representado pelo prestígio relativo que lhes é atribuído. Assim,


considerando cada um dos três pares fundamentais, o “empregado”

lg
está acima do “biscateiro”; por sua vez, o “funcionário” tem mais
prestígio que o “empregado”, e o “trabalhador por conta própria”
vu
é mais valorizado que o “biscateiro”. Como dedução simplista, o
di

“empregado” deveria ter mais prestígio que o “trabalhador por conta


própria” – o que, entretanto, não acontece.49
de

Este fato é da maior importância, em primeiro lugar, porque


indica com toda a clareza que o tipo genérico de empregador com o
qual o trabalhador se defronta no mercado não pode ser considerado
ar

como condição suficiente do prestígio. (Em outras palavras, a escala


pl

de prestígio acima esquematizada mostra que, em termos gerais, o


tipo de empregador é uma dimensão essencial a ser considerada
em

na capacidade de controle do mercado, mas que, de outro lado, não


basta para determiná-la concretamente).
Ex

Em segundo lugar, a hierarquização dos grupos de


trabalhadores é importante, porque sugere que os termos escolhidos
para indicar a polaridade fundamental (“empregado” x “biscateiro”)
são retirados da segunda ordem de oposições para demonstrar que
a primeira não é mais do que uma generalização simplificadora
de situações concretas típicas. O seguinte raciocínio esclarecerá
melhor esta conclusão. Na dicotomia fundamental (“empregado”
x “biscateiro”), os grupos da categoria “empregado” (que incluem

49
A base da atribuição de prestígio não é, portanto, a noção unidimensional de “tipo
de empregador”, mas a capacidade de controle do mercado, que supõe e implica
uma série de variáveis: o próprio tipo de empregador, o nível de qualificação, a
disponibilidade e posição na rede de contatos, a remuneração, etc.
156 | Luiz Antonio Machado da Silva

“empregados” e “funcionários”) não têm, em sua totalidade, mais


prestígio que os da totalidade da categoria “biscateiros” (que incluem
“biscateiros” e “trabalhadores por conta própria”). Portanto, só é
possível admitir que na dicotomia fundamental seja conferido mais
prestígio à categoria “empregado”, caso se ignore momentaneamente
o segmento dos “trabalhadores por conta própria” (e, por analogia, o
dos “funcionários”). E essa eliminação temporária só é compreensível
se os segmentos de fato considerados forem típicos, a fim de que,
ainda que incorrendo numa simplificação, eles possam representar
a totalidade dos trabalhadores.
Um terceiro tipo de ambiguidade, também ligado ao

ão
componente de prestígio, refere-se ao enquadramento concreto
de grupos e pessoas numa ou noutra categoria. Assim é que,


por exemplo, um “trabalhador por conta própria”, cuja condição

lg
profissional apresenta certas dificuldades, pode definir-se ou
ser definido como tal ou como “biscateiro”. Da mesma forma, um
vu
“biscateiro” qualificado, que dispõe de freguesia relativamente
di

ampla e estável, pode dizer-se “trabalhador por conta própria” em


certas ocasiões, em particular se a maior parte de suas atividades
de

remuneradas disser respeito a uma profissão particular. Nesses


casos, em que a situação concreta de trabalho não está nitidamente
caracterizada, a fluidez objetiva permite que o enquadramento seja
ar

presidido por uma avaliação estratégica momentânea das vantagens


pl

e desvantagens de participação em uma ou outra categoria. No


exemplo acima, o “trabalhador por conta própria” definir-se-ia, “por
em

modéstia”, como “biscateiro”, ao passo que o “biscateiro” procuraria


apresentar-se como “trabalhador por conta própria” como forma de
Ex

valorizar-se profissionalmente. Esse tipo de manipulação ambígua


das categorias, as quais, do ponto de vista lógico, são muito coerentes,
parece restringir-se àqueles grupos cuja situação concreta de
trabalho apresenta características limiares.
Outro fato importante a ser considerado é que, no polo
dos “biscateiros” (entendidos em oposição a “empregados”), as
categorias são construídas a partir das situações de trabalho
relacionadas à prestação de serviços. De fato, no caso do comércio
e do artesanato, a característica de simples consumidores – a noção
de freguês substitui a de patrão – obscurece sobremaneira seus
Parte 2 Trabalho e cidade | 157

traços como “empregadores”,50 o que dificulta sua classificação. Por


isso, comerciantes e artesãos participam do sistema de categorias
por extensão das definições elaboradas a partir das atividades
de prestação de serviços. Assim, por exemplo, um pequeno
comerciante estável tende a ser visto antes como “trabalhador
por conta própria” do que como “patrão”, mesmo que disponha
de um ou mais empregados; e um comerciante menos estável – ou
vendedores ambulantes, camelôs, etc. – é encarado e se define como
“biscateiro”. (No polo dos “empregados”, não se coloca, obviamente,
tal ordem de problemas).
Estas considerações remetem a um último aspecto das

ão
representações dos trabalhadores, também de extrema importância.
É que, não obstante a riqueza das categorias de que se compõe, e a


diversidade de dimensões e aspectos de que elas dão conta, todo o

lg
sistema classificatório está construído com base numa visão muito
homogênea que os trabalhadores têm de si mesmos, tomados em
vu
geral. O conteúdo das categorias, ao diferenciar e hierarquizar as
di

situações concretas de trabalho, assume sempre que essas distinções


se devem às condições organizatórias do mercado, mas que a posição
de

dos vários grupos, vistos em conjunto, é muito semelhante. Em


outras palavras, existiria uma nítida percepção de que a “situação de
mercado”, no sentido weberiano,51 é essencialmente a mesma. Isto
ar

pode ser visto numa análise da noção extremamente ampla, sutil e


pl

multidimensional de “patrão”.
Em relação ao polo dos “biscateiros”, o termo é usado para
em

indicar um determinado tipo de empregador/consumidor. Em


primeiro lugar, ele não se aplica aos trabalhadores que empregam
Ex

outros (duplas de biscateiros em que um deles contratou o serviço


e a respectiva remuneração, ou é o único dono das ferramentas,
etc.), nem a firmas de construção civil, por exemplo, já mencionados
nos capítulos anteriores. Nesses casos, ainda que haja uma nítida
subordinação de um ou mais trabalhadores, o vínculo empregatício
não é reconhecido: ninguém define o trabalhador “dominante”
como patrão, nem mesmo o(s) próprio(s) subordinado(s); todos os

50
Deve-se ter em mente as referências feitas anteriormente às características dos
empregadores/consumidores no MNF, que demonstram a ambiguidade de sua
posição.
51
Cf. Gerth e Mills (1958, especialmente pp. 181-183).
158 | Luiz Antonio Machado da Silva

trabalhadores envolvidos indicam-se mutuamente, e são definidos


pelos demais, como “colegas”. Entre os pequenos comerciantes
e artesãos, existe uma nuance que confere ao termo um aspecto
especial, representado por uma utilização menos precisa. Quando o
empreendimento é familiar, a categoria não se aplica. Assim, alguns
informantes, indagados sobre “quem era seu patrão”, respondiam de
modo bastante elucidativo: “Eu não tenho patrão, eu trabalho com
[ou para] meu pai [ou irmão, marido, tio, etc.]”.52 Nos demais casos,
em que o dono do estabelecimento emprega pessoas que não fazem
parte da família, apenas a pessoa (ou pessoas) que trabalha para ele
o considera patrão – e, mesmo assim, o termo é empregado de modo

ão
muito relutante; para os trabalhadores não diretamente envolvidos
na relação, o proprietário situa-se na categoria de “trabalhador por


conta própria”.

lg
Em segundo lugar, o termo “patrão” não se aplica a
todos os fregueses indiscriminadamente. De início, ele exclui os
vu
consumidores eventuais. E, principalmente, quando o freguês é
di

identificado, sob outro ponto de vista, como “trabalhador”, nunca


é chamado de “patrão”, ainda quando existam visíveis laços de
de

clientela. Isto fica bastante claro quando se considera o tipo de


biscateiro com menor capacidade de controle do mercado (os
que “vivem de viração”, em especial), cujas únicas possibilidades
ar

de trabalho se resumem em muitos casos a pequenas tarefas


pl

realizadas para outros trabalhadores mais bem situados no


mercado. É relativamente comum que esses pequenos serviços
em

assumam uma recorrência e uma natureza tal que configuram


laços de tipo “patron-client”, segundo a definição clássica. Mas,
Ex

mesmo nesses casos, esse tipo de consumidor não é definido como


“patrão”, escondendo-se a relação de clientela sob a identificação
do polo dominante como “colega”, “vizinho”, “amigo”, etc.53

52
O que vem ratificar as referências do primeiro capítulo, de que a família pode
ser considerada como unidade econômica para certo tipo de análise. Deve-se notar
que, como base objetiva para a exclusão do proprietário de empreendimento de
tipo familiar da categoria de patrão, está o fato de que nem sempre o membro
ocupado da família recebe remuneração monetária regular. O “salário” é, muitas
vezes, representado por alimentação e/ou moradia, acrescida de pequenas
retiradas ocasionais de certas quantias (com ou sem necessidade de autorização do
proprietário, dependendo do caso).
53
Note-se que o termo “patrão” foi usado nos capítulos anteriores, alternativamente
Parte 2 Trabalho e cidade | 159

Via de regra, o termo “patrão” é usado para indicar indivíduos


e/ou grupos de indivíduos. No entanto, no polo dos “empregados”,
aplica-se por extensão às pessoas jurídicas. (Por exemplo: “meu
patrão é o Estado” é frase de uso muito comum para indicar e
explicar certos privilégios.) Contudo, também aqui existe uma
tendência muito generalizada para materializar a figura do patrão.
Em geral, este designa o chefe, no serviço público, o engenheiro, no
caso de firmas de construção civil, etc. – ou o próprio proprietário da
empresa, quando existe contato direto.54 Deve-se notar que, apesar
desse aspecto personificador da definição do patrão, para ser incluído
nesta categoria não basta que o indivíduo seja o superior hierárquico

ão
imediato; é preciso que, além de situar-se acima do trabalhador nos
quadros da organização, ele disponha de uma certa margem de


autonomia de decisões, cujo limite mínimo é muito difícil de precisar.

lg
Para os cargos de supervisão abaixo desse nível (apontadores e
mestres de obra em empresas de construção civil, por exemplo),
vu
existe o termo “chefe” que, apesar do prestígio que obviamente
di

possui, não exclui o indivíduo da categoria geral de “trabalhador”. O


chefe é, em última análise, um trabalhador que desfruta de posição
de

e características marcantes, ainda mais porque, não obstante quase


sempre egresso de atividades manuais, sua função de supervisão
raramente está associada a tarefas manuais. Para resumir, pode-se
ar

dizer que, embora muitas vezes assalariado, o “patrão” não é um


pl

“empregado” (no sentido do grupo de trabalhadores oposto ao dos


“biscateiros”), ainda que, por outro lado, também não esteja restrito
em

à organização empregadora e/ou seu proprietário. A partir de certo


nível funcional, qualquer assalariado que possua autoridade direta
Ex

sobre o “trabalhador” (para os demais, não existe uma denominação


específica) é considerado “patrão”, da mesma forma que o dono da
firma e a própria empresa.
É provável que a tendência a personalizar o “patrão”

com “freguês”, a fim de respeitar ao máximo as conotações de que se reveste no


vocabulário dos próprios trabalhadores, que enfatizam e privilegiam o componente
hierárquico. Apesar do uso mais restrito que implica, o “patrão”, como definido
pelos trabalhadores, aproxima-se muito do conceito de “patron-client relationship”,
já consagrado nas ciências sociais.
54
No caso de empresas privadas em que, mesmo mantendo pouco contato, o
trabalhador chega a conhecer o proprietário, tanto este quanto o chefe imediato são
designados pelo termo “patrão”.
160 | Luiz Antonio Machado da Silva

entre os trabalhadores que se definem como “empregados” esteja


associada à utilização daquela categoria para indicar, no polo dos
“biscateiros”, um certo tipo de freguês excluído da categoria dos
“trabalhadores”, com os quais, justamente devido à natureza pessoal
que assumiram as relações, o trabalhador criou laços de dependência
mais ou menos duradouros. Na realidade, são muito generalizados
e intensos – embora nem sempre coroados de êxito – os esforços
dos “empregados” (e também dos “funcionários”, se o termo for
tomado ao nível da segunda ordem das dicotomias fundamentais)
de estabelecer relações semelhantes com seus superiores.
Toda esta ordem de constatações deixa claro que, subjacente

ão
ao sistema classificatório do mercado, existe uma noção de classe:
a categoria “patrão” torna-se unificada para “empregados” e


“biscateiros”, apesar das distintas utilizações do termo em cada

lg
caso, porque ele não pode pertencer ao estrato dos “trabalhadores”.
Assim, esta mesma categoria (“trabalhador”) constitui importante
vu
parâmetro de comparação para identificar as características comuns
di

dos grupos constituídos pelas três dualidades básicas segundo


as quais o mercado é percebido. De fato, implícita em todas as
de

representações do mercado anteriormente tratadas, está a noção


de que elas diferenciam situações e hierarquizam grupos que, como
um todo, têm uma posição no mercado essencialmente idêntica –
ar

identidade esta que se consubstancia na oposição ao “patrão”.


pl

Com essa dimensão, não se pretendeu ter esgotado o


conteúdo da riquíssima categoria do “patrão” (ou seja, da oposição
em

“patrão” x “trabalhador”55), mas apenas demonstrar que, em um


de seus aspectos, ela mantém presente, para os grupos envolvidos,
Ex

uma homogeneidade contrastiva, que eles percebem como essencial.


Cumpre notar, também, que se tem plena consciência das complexas
implicações teóricas colocadas por essa ordem de considerações, que,

55
Por exemplo, seria possível especular em torno da medida em que a natureza
da oposição “patrão” x “trabalhador” – muito mais ampla e profunda do que a
oposição particular “patrão” x “empregado”, que, em geral, absorve toda a atenção
dos estudiosos – pode ser percebida como “simbiótica”. Ou, em outras palavras,
poder-se-ia indagar sobre até que ponto o sentimento de “dominação” implícito no
polo “trabalhador” deixa de ser percebido, em favor da percepção de “dependência”
(entendida, neste contexto, como uma posição subordinada, mas que é sentida
como proporcionando certas vantagens compensatórias). Esta linha de análise,
entretanto, foge aos objetivos do presente trabalho.
Parte 2 Trabalho e cidade | 161

entretanto, fogem aos objetivos e limites do presente trabalho. Optou-


se por abordar problemas dessa natureza, mesmo reconhecendo que
de modo apenas parcial, por considerá-los altamente propícios para
a compreensão global de que existem importantes identidades entre
as diversas situações de emprego/ocupação (claramente percebidas
pelos próprios trabalhadores) do tipo de mão de obra aqui analisada.
Segundo a interpretação adotada neste trabalho, as diferenças entre
as categorias de que se compõe a força de trabalho manual originam-
se principalmente nas condições organizatórias do mercado, sem
atingir bases mais profundas. Da mesma forma, visto o problema sob
outro ângulo, dir-se-ia que, não obstante as sensíveis diferenças de

ão
padrão de vida (determinado pela diversidade de níveis e fluxos de
remuneração), existiriam fortes semelhanças no estilo de vida das


populações envolvidas.

lg
A par da necessidade de qualificar até que ponto devem
ser entendidas as diferenciações nas situações de trabalho de que
vu
tratam os capítulos anteriores, esta esquemática análise do sistema
di

de classificação do mercado pelos trabalhadores teve outro objetivo.


Trata-se de discutir o nível de generalização do modelo apresentado
de

e suas possibilidades explicativas. Para isso, cumpre recorrer às


noções de “sistema folk” e “sistema analítico” usadas por Bohannan.56
Esta seção abordou o “sistema folk” do mercado, desenvolvido
ar

pelos trabalhadores: alguns aspectos considerados fundamentais


pl

em seu modo de interpretação da realidade, que tem nítidos


propósitos de ação. É claro que os pares de oposição apresentados
em

não são o “sistema folk” (ou parte dele), pois trata-se já de uma
primeira formalização analítica, elaborada pelo investigador. Eles
Ex

se baseiam em significados e relações adotadas integralmente pelos


trabalhadores; entretanto, estes não têm necessidade de explicitar
sua sistemática de forma clara, sucinta e descoberta que se pretendeu
aqui. Em outras palavras, se indagados com perguntas diretas sobre

56
“Events that occur within a social field (however defined) can only be perceived
in company of an interpretation. Obviously, the human beings who participate
in social events interpret them: they create meaningful systems out of the social
relationships in which they are involved. Such a system I am going to call a ‘folk
system’ of interpretation, by analogy with ‘folk etymology’. There is also a second
sort of system: that which sociologists and social anthropologists create by more or
less scientific methods. This system may be called an analytical system” (Bohannan,
1968, p. 4).
162 | Luiz Antonio Machado da Silva

o conteúdo e as conexões entre os pares de oposição e sobre sua


própria existência, acredito que os grupos envolvidos concordariam
com todas as descrições contidas nesta seção; porém, não se
encontrou nenhum informante que expusesse de forma idêntica sua
interpretação do mercado. Mas, de qualquer modo, é inegável que as
“dualidades fundamentais”, se não representam a “sistemática folk”
de mercado em si, no mínimo cuidam de descrevê-la diretamente.
Ao contrário, os dois capítulos anteriores procuram elaborar
um “sistema analítico” desse mesmo mercado, no sentido de que
não estão envolvidos propósitos de ação, mas de “compreensão e
generalização em termos sociológicos” (Bohannan, 1968, p. 5). Mesmo

ão
quando se utiliza termos retirados do vocabulário dos trabalhadores
– do seu “sistema folk”57 – por pretender explicitamente fidelidade


ao seu ponto de vista, eles (os termos) assumem contornos que antes

lg
não tinham, conotações de que não se revestiam, e encaixam-se num
contexto que lhes empresta um sentido novo e diferente do original.
vu
Assim, nos capítulos anteriores não se descreve um “sistema folk” –
di

quer uma eventual transposição direta, quer já sob um mínimo de


formalização analítica –, elabora-se um “sistema analítico”. Usando
de

ainda uma vez as ideias de Bohannan, na presente seção, descrevi


(sob luz um tanto nova, é verdade) o “sistema folk” aprendido com os
trabalhadores; nos capítulos anteriores criei um “sistema analítico”.58
ar

Tornam-se óbvias, portanto, as diferenças essenciais entre


pl

os dois modos de apreensão da realidade. Por outro lado, uma


comparação entre os dois indica com nitidez vários pontos de
em

convergência e mesmo superposição. A par de propósitos e graus


de sistematização muito diversos, os caminhos seguidos por ambos
Ex

estão muito próximos. Esta constatação é da maior importância,


porque demonstra, sem necessidade de grandes digressões
teóricas, o nível de generalização em que se coloca o modelo
criado e os consequentes limites de sua força explicativa. Trata-
se de um modelo essencialmente descritivo, com uma capacidade

57
“And the key to the folk system – almost the only key – is the language in which it
is stated” (Bohannan, 1968, p. 5).
58
“It [the analytical system] is determined by the anthropologist qua anthropologist
to explain the material which he has gathered qua ethnographer. But it is very
important that he should also give the folk system which, if he is a good ethnographer,
he learned (as opposed to created) during the course of his research” (Bohannan,
1968, p. 5).
Parte 2 Trabalho e cidade | 163

muito reduzida de explicar em termos histórico-causais os


condicionamentos do mercado.

Utilidade e significado do modelo

No presente trabalho, o mercado é visto como um espaço


homogêneo, diferenciado em campos (o MF e o MNF) e subcampos
(as categorias de emprego/ocupação), cujos limites se caracterizam
por regiões ambíguas, isto é, pouco diferenciados entre si (os
“espaços limiares”). O conteúdo das distinções entre os campos e

ão
subcampos é dado pela relevância relativa de certas características
do mercado. Portanto, o fato de determinados traços definirem um


segmento ou grupo de trabalhadores não implica necessariamente

lg
que é apenas aí que eles se manifestam. Assim, por exemplo, os
laços de clientela não são exclusivos do MNF, mas apresentam maior
vu
importância na organização e na dinâmica deste setor; por outro
di

lado, uma certa formalização jurídico-institucional não está ausente


do MNF, embora nela seja periférica, ao passo que essencial no MF.
de

Além de eliminar os perigos da rigidez formal a que os


esquemas dicotômicos podem conduzir, uma visão assim matizada
da diferenciação na organização do mercado parece encontrar forte
ar

apoio empírico: a percepção dos próprios grupos envolvidos. A título


pl

de ilustração, basta lembrar que o trabalhador se autodefine como


membro de um grupo homogêneo, constituído pela mão de obra
em

vinculada a atividades manuais. Mas esta visão unitária não impede


a existência do requintado sistema de classificação do mercado,
Ex

que distingue posições e subgrupos sem deixar de admitir suas


identidades. No nível lógico, as categorias pelas quais o mercado é
apreendido assumem com agudeza o caráter relativo de que estão
revestidas, através da série de ambiguidades que contêm. E, sob a
forma de variações situacionais no enquadramento concreto de
certos casos – trabalhadores por conta própria podendo identificar-
se “por modéstia” como biscateiros, por exemplo –, reconhecem as
situações de limiaridade.
Restaria uma visão geral da utilidade do modelo apresentado
e de como ele pode articular-se com as teorias mais gerais que
abordam os problemas ligados ao fenômeno da marginalidade, já
que é em torno deles que este trabalho está centrado. As afirmativas
164 | Luiz Antonio Machado da Silva

que se seguem serão um pouco mais ampliadas e especificadas no


próximo capítulo.
Na medida em que a orientação adotada, recorrendo a um
esquema de raciocínio dicotômico, não é totalmente antagônica às
polarizações mais globais do tipo “moderno-tradicional”,59 cria-se de
início um universo comum que permite manter o diálogo, ao nível
do mercado de trabalho, com aquelas teorias. Mas diálogo crítico,
já que elas sofrem necessariamente certas correções e qualificações
quando confrontadas com o modelo aqui apresentado.
Em primeiro lugar, porque, ao assumir uma perspectiva
concretamente situada – o ponto de vista dos próprios trabalhadores

ão
–, põe-se em relevo as deficiências decorrentes de um certo
formalismo de que padece a maioria dos modelos teoricamente


deduzidos. Em contrapartida, a própria concretude do modelo

lg
permite manipular, dentro de um esquema coerente, dimensões
que tendem a ser abstraídas e privilegiadas nas interpretações
vu
mais amplas: estabilidade-instabilidade do emprego, ocupação-
di

desocupação, macrossetores da atividade econômica, relações de


trabalho, etc. Diminui, assim, a possibilidade de incompreensão
de

derivada de filiações teóricas diversas.60


Em segundo lugar, porque salienta, ao nível da organização
do mercado, as imbricações e continuidades entre os setores de que
ar

este se compõe – em geral, ignoradas devido à ênfase exclusivista nas


pl

diferenças que apresentam. O relevo dado a essas articulações evita


que as polarizações usadas como recurso conceitual sejam reificadas,
em

na medida em que as diferenças são entendidas num contexto


essencialmente homogêneo e unitário. Além disso, enfatizando
Ex

a complexidade do mercado de trabalho, o modelo apresentado

59
Como procurarei mostrar no capítulo seguinte, esta é a fonte de inspiração de
todos os tipos de modelos sobre marginalidade – explícita ou não, reconhecida ou
não.
60
É sempre possível reduzir-se as discussões a um universo comum de diálogo,
ainda mais quando parece haver certas vertentes comuns – como, por exemplo, a
inspiração em polarizações do tipo “moderno-tradicional”. Mas, na medida em que
as origens teóricas das proposições nem sempre são claras (sem falar das eventuais
inconsistências), esta tarefa torna-se muito dificultada. Mantendo-me tanto quanto
possível fiel ao modo de apreensão da realidade pelos próprios grupos envolvidos,
acredito que o presente trabalho pode contornar, ao menos parcialmente, este tipo
de problema teórico-metodológico.
Parte 2 Trabalho e cidade | 165

contribui para corrigir outro tipo comum de reificação, representado


pelas interpretações literais das estatísticas existentes. Acredita-se
que, em seu estado atual, estas não podem ser vistas como mais do
que simplificações grosseiras da realidade. No mesmo sentido, sem
deixar de considerar a relevância dos vínculos jurídicos, o modelo
aqui demonstrado permite contornar o simplismo de um tratamento
“legalista” dos problemas de empregos-subemprego e estabilidade-
instabilidade da mão de obra.61

Capítulo 4. Notas sobre os modelos a respeito da

ão
marginalidade metropolitana


Tipos de modelos, equivalências e pressupostos
lg
vu
Como objeto de análise, a atenção sobre as camadas
di

marginais decorre do interesse mais amplo nos processos


de desenvolvimento e a natureza das sociedades não ou
de

insuficientemente desenvolvidas. Como tal, ela sofre os efeitos e


ao mesmo tempo indica as diferentes visões globais sobre essas
sociedades, mas aqui interessam apenas as particularizações
ar

que dizem respeito àquele tema específico e, mais ainda, suas


pl

implicações sobre o mercado de trabalho urbano. Desse ponto


de vista, parece possível construir três modelos “típicos” de
em

interpretação da marginalidade urbana, a partir dos aspectos


essenciais das diversas colocações individuais. De passagem,
Ex

deve-se notar que poucas obras se inserem integralmente em


um único desses tipos, que seriam, assim, construções teóricas

61
“O autor, reunindo algumas ocupações (vendedores ambulantes, entregadores,
serventes de pedreiro, trabalhadores braçais sem especificação, cozinheiras,
amas, copeiras, contínuos, vigias, serventes, lavadeiras, engomadeiras e parte
dos empregados em serviços de higiene pessoal), com os dados dos Censos
Demográficos de 1950 e 1960, chegou às estimativas de 1.889.000 e 2.115.000
pessoas ‘subempregadas’ para cada um desses anos” (Amorim, 1967, p. 59). O
exemplo acima é dramático, pois demonstra uma necessidade quase desesperada
de basear o raciocínio em figuras estatísticas, ainda que tomadas como estimativas e
mediante um tratamento cuidadoso. Note-se que, em geral, as tentativas de realizar
estimativas terminam por subordinar os conceitos às categorias, censitárias ou não,
para as quais existem dados estatísticos.
166 | Luiz Antonio Machado da Silva

secundárias e ideais.62
O primeiro deles situa a investigação ao nível do modo de
produção, procurando apreender as repercussões sobre a estrutura
de classes das relações capitalistas de produção.63 Basicamente, a
economia urbana é vista abrigando duas fases do regime capitalista:
“monopolista” x “competitivo”. O primeiro é hegemônico ou
determinante, no sentido de impor as condições de funcionamento
do sistema:

Dando testemunho desse privilégio do atraso a que alude Trotsky, o


desenvolvimento desigual e dependente da América Latina parece

ão
assim confundindo e integrando tempos históricos distintos. Por
isso, é válido retomar neste ponto as considerações prévias acerca


da funcionalidade da superpopulação relativa na fase monopolística
do modo de produção capitalista: é que aqui uma parte ainda muito
lg
mais considerável dela torna-se supérflua e constitui uma massa
vu
marginal em relação ao processo de acumulação hegemônico. Neste
sentido, se é certo que a indústria latino-americana está muito longe
di

do nível de automação alcançado pelos países centrais, a diferença


é compensada com acréscimo por sua propensão já examinada à
de

poupança de mão de obra e pela comparativa lentidão com que


se expande sua produção em um contexto geral de estancamento,
ao qual se agregam taxas notoriamente superiores de incremento
ar

demográfico (Nun, 1969, p. 222).


pl

Nesta perspectiva, a expansão do setor hegemônico faz com


em

que o setor “dependente” (“subordinado”) entre em colapso, uma


vez que as diferenças de produtividade se tornam responsáveis por
Ex

um processo de concentração (“monopolística”) do capital. De outro


lado, na medida em que é este que determina a utilização da força de
trabalho, com a evolução tecnológica, a massa de trabalhadores não
qualificados deixa progressivamente de ter sentido econômico, pois
eles não se adaptam às novas necessidades produtivas do setor em

62
Ver, por exemplo, os trabalhos de Cardoso e Reyna (1967), Cardoso e Faletto
(1970) e Lopes (1968), que oscilam, respectivamente, entre o primeiro e o segundo
tipo, e entre o segundo e o terceiro, adiante mencionados.
63
Pode-se citar, como exemplos característicos desse tipo de modelo, os trabalhos
contidos no vol. 5, nº 2, da Revista Latinoamericana de Sociología (1969). Uma
perspectiva equivalente, porém centrada nas relações de dependência e no
colonialismo econômico (interno e externo), encontra-se em Frank (1967).
Parte 2 Trabalho e cidade | 167

expansão. Assim, o processo de acumulação capitalista engendra a


formação de um segmento marginal de trabalhadores, sem condições
de absorção (sem utilidade) para o sistema produtivo hegemônico;
este segmento tende a cristalizar-se e tornar-se “disfuncional”.64
O segundo tipo de modelo localiza a análise ao nível do que
poderia ser chamado de “organização técnica da produção”.65 Da
mesma forma que o primeiro, identifica a existência de dois setores
econômicos, um “moderno” e outro “tradicional”, a partir de análises
agregadas da produtividade nos grandes ramos da economia.
O setor “moderno”, responsável pelo dinamismo do sistema, é
constituído pela maior parte do secundário e pelos serviços básicos;

ão
o “tradicional” é formado pelo setor artesanal, pelos serviços e pelo
terciário em geral.


Sem dúvida, as variações na precisão com que os setores

lg
da atividade econômica são distribuídos entre esses dois polos são
muito grandes. Discute-se a localização do setor “governo”; fraciona-
vu
se o terciário, distinguindo um “terciário primitivo” em oposição ao
di

terciário “moderno” deduzido das necessidades de comercialização


da grande indústria, etc. (Galenson, 1963; Santos, 1968). Mas essa
de

diversidade não impede o acordo, via de regra explícito, sobre as


características centrais dos ramos “moderno” e “tradicional”.
Este tipo de modelo enfatiza a consequência das inovações
ar

tecnológicas responsáveis pelas alterações na organização da


pl

produção, modificando qualitativa e quantitativamente a demanda


de trabalho; e das migrações, que provocariam uma forte pressão
em

para cima na oferta de trabalho, em especial não e semiqualificado.


As características do processo de modernização, portanto, criam um
Ex

desequilíbrio no mercado de trabalho, cujo resultado é a formação

64
Em trabalho bastante sofisticado, Nun (1969) distingue, no contingente de
trabalhadores não absorvidos, um segmento “funcional” para o processo de
acumulação capitalista (o exército de reserva) e um segmento “disfuncional”. A
maioria dos demais trabalhos identifica ambos os segmentos numa categoria
única, o exército de reserva. Mas, deslocando o eixo de referência, mantém a
ênfase nos aspectos negativos, pondo em relevo seus efeitos sobre a retração do
mercado consumidor. Esta, provocada pela redução dos salários decorrente de
um incremento “excessivo” do exército de reserva, representaria um freio para o
processo de acumulação capitalista.
65
Como exemplos desse tipo de modelo, por sinal o mais generalizado, ver CEPAL
(1966), Echevarria (1970), Lessa (s.d.); ver também os textos da CEPAL em Pereira
(1969b).
168 | Luiz Antonio Machado da Silva

de um contingente marginal sub ou não empregado, definido por


um treinamento profissional inadequado. Da mesma forma que
no primeiro tipo de modelo, esse contingente é também valorado
negativamente, porque reduz a produtividade dos ramos em que se
abriga e tem efeitos depressivos sobre a distribuição de renda.
O terceiro tipo de modelo aborda as características
do “processo de modernização”, enfatizando seus aspectos
socioculturais e admitindo suas inter-relações e mútua influência
sobre os respectivos processos econômicos.66 O problema é
focalizado sob o ponto de vista da carência de integração (ou
integração “parcial”, “deficiente”, “anormal”, etc.) à vida urbana das

ão
populações que não obtêm empregos nos setores modernos da
economia. As dificuldades integrativas são explicadas através de


incompatibilidades e dificuldades culturais dessas populações, de

lg
modo que o descompasso “cidade x campo”, através das migrações,
ocupa lugar central no modelo:
vu
di

Analisando-se o processo de urbanização na sociedade brasileira


neste contexto, percebe-se que a sua expansão na cidade consiste
de

grandemente num processo de semi-assimilação de contingentes


populacionais não urbanos: de uma parte, assimilação incompleta
pela não incorporação in totum e generalizada de todos os
ar

componentes do estilo de vida urbano; de outra, assimilação também


incompleta porque essa valorização positiva de componentes do
pl

modo de vida urbano pouco se traduz em comportamentos efetivos


em

na praxis cotidiana, dada a exiguidade e complexidade dos meios


materiais e institucionais que consistem em requisitos dessa
atualização (Pereira, 1969a, p. 62).
Ex

Vê-se que esta última linha de análise não constitui mais que
uma extensão da anterior, seja por assumi-la como pressuposto para
explicar as formações culturais que analisa, seja por considerá-la
a “outra face” – isto é, sua homóloga em temos econômicos – dos
processos que aborda.
De passagem, é interessante notar o decisivo papel que,
nesse modelo, representam as áreas faveladas. Não se trata de
considerá-las meros indicadores da marginalidade, porque elas são
entendidas, por definição, como receptáculos das populações não

66
Ver, principalmente, Pereira (1969b, introdução e pp. 83-168) e DESAL (1969).
Parte 2 Trabalho e cidade | 169

ou mal integradas ao sistema urbano-moderno, de onde são vistas


como setores não incorporados à cidade. Tomada esta afirmativa
no sentido oposto, a grande maioria dos trabalhos que se dedicam
ao estudo específico das favelas adota o terceiro tipo de modelo ao
menos como referência geral, o que de certa maneira se justifica: as
favelas só podem ser tomadas como “entidades” do ponto de vista
ecológico, e a única abordagem globalizante que se adapta a esse nível
de análise é a proposta no terceiro tipo de modelo (Cf. Corten, 1965;
Goldschmidt e Boschi, 1970; Gurrieri, 1965; Mangin, 1967; Rogler,
1967). Influenciados pela visibilidade física proporcionada por
suas características habitacionais, os dois outros tipos de modelos

ão
apropriam-se dessa interpretação das favelas, utilizando-as como
indicadores, nas tentativas de dimensionar as camadas marginais.


Mas não é apenas dessa maneira que se imbricam os diversos

lg
tipos de interpretação da marginalidade. Podem ser identificadas
significativas equivalências entre o primeiro e o segundo tipo de
vu
modelo, não obstante a forma altamente esquemática da apresentação
di

acima. Assim, ambos adotam uma perspectiva que poderia ser


definida como evolucionista e unilinear, perceptível através da ênfase
de

sobre os processos de expansão monopolística, no primeiro caso,


e de modernização, no segundo. De fato, desconhece-se qualquer
colocação no sentido da possibilidade de evolução autônoma do setor
ar

“não monopolista” ou, na outra abordagem, “tradicional” (exceto


pl

nas conjunturas de colapso do setor monopolista – Frank, 1967).


Além disso, e como consequência da perspectiva adotada, num tal
em

esquema dicotômico estes últimos setores são vistos como resíduos


ou entraves. Tal característica mantém-se apesar dos argumentos
Ex

que recusam as colocações em termos duais:

Com efeito, os dados e tendências apresentados, não nos permitem


concluir, como ocorreria no caso de utilizar-se a ideia de que as
sociedades latino-americanas são duais, que se formam dois setores
isolados nas sociedades em questão, a saber, o dinâmico ou moderno
e o tradicional ou estagnado. Na realidade, no seio mesmo do que
se costuma chamar setor urbano-moderno é que se constituem os
“grupos marginais” não incorporados pela dinâmica da expansão
econômica […] Os dados apresentados e algumas pesquisas
citadas sugerem que, se é certo que o “terciário sobrecarregado” e
a presença dos “grupos marginais” testemunham a especificidade
das conseqüências sociais da industrialização latino-americana e
170 | Luiz Antonio Machado da Silva

a incapacidade do sistema econômico para absorver o excedente


de mão-de-obra que seu funcionamento acarreta, seria apressado
afirmar que há uma ruptura completa entre o núcleo relativamente
mais integrado do sistema social e a periferia que muitos supõem
anômica e “em disponibilidade” (Cardoso e Reyna, 1967, pp. 28-29).

Em uma ótica mais restrita, empreendendo a comparação das


instituições características desses setores – para cuja dedução basta
pôr em relevo os corolários imediatos das colocações de ordem geral
–, as identidades apresentam-se ainda mais claramente. A “empresa
monopolística” do primeiro modelo não é outra coisa que a “grande

ão
empresa industrial moderna” do segundo, vistas conforme posturas
teóricas diversas.67 Igualmente, em termos do mercado de trabalho,


a constituição dos grupos considerados marginais é a mesma,
apenas tomados diferentes níveis de análise; e a determinação dos
lg
processos que os geram e das consequências que apresentam para o
vu
sistema também se equivalem.
A respeito das repercussões dos segmentos marginais para
di

o sistema, é interessante retomar, sob outro ângulo, as referências


sobre sua “disfuncionalidade”. Qualquer que seja a orientação
de

ideológica, as camadas marginais são sempre vistas como atual ou


potencialmente disruptivas, seja este traço valorizado positivamente
ar

devido às suas virtualidades revolucionárias, seja negativamente em


função dos ônus que representam para os demais segmentos sociais.
pl

Mesmo as abordagens críticas aos modelos de marginalidade


em

(Armstrong e McGee, 1968; Fusfeld, 1968; Galenson, 1963; Santos,


1968) admitem-no de forma implícita, na medida em que apenas
Ex

procuram minimizar as dimensões dos estratos marginais e a


intensidade dos processos que os originam. Até onde se tem notícia,
jamais foi considerada a possibilidade de o próprio sistema dispor
de mecanismos e recursos que confiram um caráter amórfico
(“afuncional”) aos grupos marginais. Os trabalhos de Singer (1968a,
1968b, 1969) indicam excelentes caminhos indiretos para um

67
O primeiro tipo de modelo em raras oportunidades propõe explicitamente a
distribuição dos ramos de atividades entre os dois setores. Sem dúvida, porém, as
considerações em torno da introdução de novos processos tecnológicos, incremento
da produtividade, etc., deixam claro que, nas elaborações teóricas sobre o processo
de acumulação monopolística, o pensamento está voltado para a “grande empresa
industrial moderna” do segundo modelo.
Parte 2 Trabalho e cidade | 171

raciocínio nesse sentido, mas esse autor não trata especificamente


do problema da marginalidade.
Resumindo, pode-se dizer que, encoberto por perspectivas
teóricas e níveis de análise diversos, existe uma convergência
essencial entre os vários modelos interpretativos da marginalidade
urbana. A fim de facilitar a compreensão, apresenta-se abaixo um
esquema gráfico dessas similaridades básicas.

Elementos essenciais dos modelos de marginalidade urbana

Secundário (Ramos de Secundário

ão
“Terciário Primitivo”
Alta Produtividade) (Demais Ramos)
Serviços Básicos Terciário


Setor Monopolístico Setor Competitivo
M T
O
D
I
P
Empresa
Monopolística
Empresa Não
lg
Monopolística
vu
E O Massa Marginal
L (Exército de
Assalariados Assalariados Reserva)
di

O 1 “Estáveis” “Instáveis”
(Exército de Reserva)
de

Setor Moderno Setor Tradicional


T
M I Grande Empresa
O P Empresa Tradicional
ar

Industrial Moderna
D O Não Integrados
E
pl

Improdutivos
L 2 Mão de Obra Mão de Obra
Mão de Obra
O / “Integrada” “Semi-Integrada”
em

Marginal
3 “Produtiva” Baixa Produtividade
Ex

Vê-se que, reduzidas aos termos mais simples e essenciais,


se encontra uma coincidência generalizada entre as interpretações
da marginalidade. Uma vez identificadas essas semelhanças, não é
difícil perceber alguns dos pressupostos e constatações em que se
apoiam.
Em primeiro lugar, enfatizou-se a unanimidade em torno das
argumentações que procuram apresentar os segmentos marginais
como disfuncionais – e, em outro nível, a abordagem dos setores em
que se abriam como residuais –, porque isto demonstra com toda
a clareza o componente de “projeto” desses modelos. Na realidade,
todo o interesse nas teorias de desenvolvimento, e, portanto, nas
próprias interpretações da marginalidade, parece partir de uma visão
172 | Luiz Antonio Machado da Silva

que atribui imperiosas necessidades de mudanças no sistema, sejam


elas revolucionárias, reformistas, sejam de qualquer outra natureza.
Esta afirmativa, que, aliás, pouco tem de original, explica boa parte
da tendência à adoção de esquemas evolucionistas e unilineares.
Em segundo e não menos importante lugar, está o já
mencionado conhecimento incompleto ou inexistente das reais
condições de vida dos trabalhadores manuais. Faz-se uma ideia
muito pouco precisa das possibilidades, modos e dificuldades
cotidianas enfrentadas por tais populações na obtenção de trabalho.
Isto permanece verdadeiro mesmo para as interpretações menos
globais que pretendem ser meras descrições de setores do mercado

ão
e/ou da organização interna desses grupos. (A título de ligeira
ilustração, veja-se a parte final da seção “Aspectos do contexto geral


das situações de trabalho”, no segundo capítulo desta dissertação.)

lg
Como consequência, a análise de seu nível de vida e de suas
oportunidades de trabalho adota como ponto de partida (ou melhor,
vu
como referência) os comportamentos usuais nos estratos superiores,
di

que são os únicos existencialmente conhecidos.68


O resultado é que muitas das oportunidades, modos de
de

obtenção e formas de trabalho não são sequer percebidos. Ou,


em caso afirmativo, são interpretados fora do marco de uma
economia moderna, em que o setor monopolístico é hegemônico e
ar

determinante. Adota-se, portanto, o pressuposto de que “trabalho


pl

produtivo” (ou, em outro contexto, “regime assalariado estável”)


é uma noção apenas compatível com as formas pelas quais ele se
em

manifesta entre as ditas camadas favorecidas.


Coroando essa dupla constelação de pressupostos,
Ex

e apoiando-se nela, encontra-se o que já foi denominado de

68
Não cabe neste trabalho uma comparação entre esses estratos em termos de sua
ação no mercado. De forma muito geral, é possível afirmar que, à medida que se
penetra no trabalho não manual, tendem a predominar as formas burocratizadas,
impessoais – ou, para utilizar a terminologia parsoniana, orientadas segundo
padrões universalistas, em que, por exemplo, as oportunidades de emprego
assumem alto grau de transparência: anúncios de jornais, concursos, definição e
comprovação formal de requisitos técnicos, etc. Deve-se considerar que outras
formas de comportamento e padrões organizatórios podem, de um lado, coexistir
com estas e, de outro, que isso não indica necessariamente mudanças essenciais
nas relações ou natureza do trabalho.
Parte 2 Trabalho e cidade | 173

“concepção ocidentalista”.69 O processo de raciocínio parece partir


de duas ordens de constatação. Uma é a existência de ponderáveis
contingentes urbanos que vivem em condições muito precárias,
próximas do que a CEPAL define por mínimo fisiológico (CEPAL apud
Pereira, 1969b, p. 142). Apesar de magnificado pelo segundo grupo
de pressupostos, esse argumento parece conter forte base empírica,
seja ela entendida ao nível do senso comum (do conhecimento
vivido), seja de esquemas analíticos mais refinados.
De outro lado, relaciona-se o deficiente padrão de vida a
uma baixa produtividade global da economia, que, por sua vez, é
associada aos respectivos desequilíbrios inter e intrassetoriais.

ão
Ainda aqui, parece inegável que existem, de fato, fortes desníveis
de produtividade e, como consequência desse ponto de vista, uma


certa insuficiência econômica. Mas a componente de “projeto” acima

lg
referida introduz nessas considerações uma referência externa
(“ocidental”). Os supostos de “produtividade mínima” e “equilíbrio
vu
intersetorial” necessários para “condições razoáveis” de vida, e
di

bem assim seus desdobramentos em termos de “concentração


monopolística”, “modernização”, etc., são definidos a partir da situação
de

– real ou idealizada – dos países considerados já desenvolvidos.


Algumas vezes a visão “ocidentalista” e de evolução
“unilinear” é criticada, mas tudo indica que os próprios críticos
ar

partem dos mesmos pressupostos dos trabalhos que discutem:


pl

Do ponto de vista metodológico, as teorias que inferem


em

tendências históricas no conhecimento de dados comparativos,


também requerem a assumpção da evolução unilinear. Estou
Ex

disposto a aceitar que existem muitas semelhanças entre


algumas características das sociedades em industrialização e das
sociedades já industrializadas, quando estavam num mesmo nível
de desenvolvimento econômico. Contudo, existem talvez mais
diferenças que semelhanças (Soares, 1967, pp. 33-34).

Porém, pouco mais adiante no mesmo texto, encontra-se:


Os dados de 1960 são ainda mais espantosos. Em muitos países

69
A expressão é retirada de Armstrong e McGee (1968, p. 389). Embora usado no
mesmo sentido geral, o objeto de análise e as conclusões desses autores diferem até
certo ponto das aqui apresentadas.
174 | Luiz Antonio Machado da Silva

atualmente industrializados o secundário ocupou a mesma


porcentagem da força de trabalho que o terciário, sendo algumas
vezes consideravelmente maior que este. No Brasil, porém, o setor
secundário representou menos que metade do terciário (Ibid., p.
38, grifo do autor).

Inadvertidamente, manifesta-se a sensação de estranheza,


num tom de grande desaprovação das condições brasileiras.
Outra maneira de perceber essa concepção ocidentalista
é atentar para a profusão de comparações internacionais,
qualitativas e quantitativas, que se dedicam a identificar os motivos

ão
pelos quais as sociedades em desenvolvimento não logram seguir
o padrão evolutivo das sociedades desenvolvidas. Esses trabalhos


são úteis, também, porque indicam com clareza que, muitas vezes,
não são tomados somente como referência, mas, ainda, como
lg
modelo para os aspectos de projeto das interpretações sobre os
vu
mercados de trabalho.
Outros trabalhos que têm a marginalidade como objeto
di

de estudo não parecem enfatizar os problemas de produtividade


apenas por ser ela o campo maior dessas análises particulares.
de

Vista a questão de uma perspectiva mais global, talvez fosse


possível dizer que se trata de uma ênfase estratégica, vinculada
ar

à análise (e aos projetos de superação) da situação colonial de


dependência. Neste sentido, o fulcro da argumentação não estaria
pl

representado por uma supervalorização da produtividade em si


em

como instrumento analítico (e fonte de mudanças desejáveis), mas


pelo questionamento dos problemas vinculados ao imperialismo.
Ex

Esta ordem de considerações, ainda que não diga respeito ao tema


específico deste trabalho, é importante para mostrar mais uma vez
que os modelos sobre marginalidade e seus pressupostos são parte
dos esquemas e pressupostos construídos em torno dos problemas
globais do desenvolvimento.
Antecipando uma visão geral da próxima seção, poder-se-ia
resumir o que aqui foi dito, salientando que, a partir de constatações
essencialmente corretas, se constrói um sistema de pressupostos
os quais, sem afetar a validade básica dos modelos de interpretação
da marginalidade urbana, introduzem deformações que podem ser
corrigidas a partir de um reenfoque de certos aspectos que têm sido
relegados a um plano secundário.
Parte 2 Trabalho e cidade | 175

Caminhos de investigação para uma revisão crítica

Do que foi dito na seção anterior, e pela descrição do mercado


de trabalho apresentada nos três primeiros capítulos, pode-se
propor alguns caminhos de investigação em torno dos processos
econômicos que engendram a formação dos grupos marginais e,
de um ponto de vista mais restrito, analisar a composição desses
grupos em relação ao mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, tais
colocações são importantes, porque situam o quadro geral das forças
que influenciam a organização do mercado abordada no modelo
aqui apresentado. Explicita-se, portanto, a perspectiva geral usada

ão
na análise do tipo de mão de obra tratado neste trabalho.
Acredito que, no esforço de correção das deformações da


análise provocadas pelos pressupostos já mencionados, dever-se-ia

lg
deter a atenção sobre duas ordens de considerações. Em primeiro
lugar, seria preciso rever as possibilidades de permanência e mesmo
vu
evolução do setor dito “tradicional” ou “não monopolista”.70
di

De um modo geral, as análises empíricas são desenvolvidas em


termos do incremento relativo de produtividade e/ou concentração
de

diferencial de capital por grandes ramos da economia. Não há dúvida


de que esse procedimento é justificável quando se atenta, de um lado,
para os óbvios desníveis interssetoriais e, de outro, para o fato de que
ar

certos tipos de atividade econômica (a siderurgia, para citar um só


pl

exemplo) ficam progressivamente fechados para empreendimentos


mais modestos, em termos de capital e tecnologia.71
em

Seria necessário verificar, entretanto, se isso acontece sem


prejuízo do crescimento “vegetativo” das empresas não modernas
Ex

monopolistas, e mesmo de um incremento de produtividade


que não viesse a alterar suas características que alguns chamam
de “tradicionais”. Existem informações muito fragmentárias, de
natureza tanto teórica quanto empírica, que parecem validar o

70
Em outro tipo de análise, tratar-se-ia de investigar o que Gunder Frank chamou de
“desenvolvimento do subdesenvolvimento” (apud Pereira, 1969a). A atenção sobre
esse aspecto da questão é difícil, porque a própria possibilidade alternativa está
muitas vezes fora do modelo, de modo que sua negação é assumida como premissa.
71
De passagem, nota-se que as análises agregadas, nivelando “por cima” a
produtividade e o nível de capitalização dos setores modernos/monopolistas, e
“por baixo” os tradicionais/não monopolistas, sofrem o risco de tomar em termos
absolutos o raciocínio que deve ser tendencial.
176 | Luiz Antonio Machado da Silva

esforço a ser realizado neste sentido.


Assim, por exemplo, o Ministério do Planejamento (1969,
pp. 82-85, quadros II.2.A e 3), realizando estudo dos rendimentos
de escala por setor e tamanho da firma industrial, demonstra
(ressalvadas as “possíveis imprecisões nas séries estatísticas e outras
impropriedades do estudo econométrico”): a) que as empresas
industriais localizadas nos dois extremos da escala de tamanho
adotada (até nove operários e cem ou mais, respectivamente)
apresentam sensíveis ganhos de escala; b) que, de 1949 para
1959, esses ganhos se reduzem para os empreendimentos de
pequenas dimensões e aumentam para os maiores; e, finalmente,

ão
c) que, à exceção da Madeira e Mobiliário, todos os treze ramos
industriais estudados apresentam ganhos de escala entre 1939 e


1962 (e não somente os chamados elementos novos da indústria de
transformação).
lg
Esses dados parecem insinuar que, sem prejuízo das
vu
vantagens que a evolução tecnológica de fato proporciona à grande
di

indústria, as empresas de porte muito reduzido – e, portanto,


dificilmente classificáveis como “modernas/monopolistas” – têm
de

condições econômicas de vigência. Isso proporciona um mínimo de


base empírica para a hipótese de que o setor considerado residual
apresenta suas próprias características evolutivas. As implicações
ar

dessa possibilidade vão muito além do questionamento da simples


pl

velocidade do processo de modernização (logo, dos limites de


validade preditiva dos modelos), e suas consequências sobre o
em

desenvolvimento do próprio setor “moderno/monopolista” teriam


que ser investigadas.72 Ou seja, a permanência e a evolução das
Ex

empresas do setor não monopolista contribuiriam para elevar a


taxa de lucro destas, através da compressão dos salários, de modo
que o processo de acumulação não monopolista se tornaria, ele
também, um fator dinâmico. Por outro lado, a evolução do setor
dito tradicional, apesar das taxas mais modestas, contribuiria para a
expansão do mercado de consumo.
Uma segunda ordem de considerações, mais restrita, diz
respeito às relações entre os grandes ramos da atividade econômica
e aos problemas específicos da criação de empregos. Alguns estudos

72
Esta possibilidade e suas implicações são discutidas, do ponto de vista teórico, na
primeira parte do excelente trabalho de Laclau (1969).
Parte 2 Trabalho e cidade | 177

vêm procurando demonstrar que existem indícios de que a grande


indústria provoca um aumento indireto de empregos maior que o
incremento direto. Tal fato põe em xeque, pelo menos em parte, as
colocações sobre o caráter residual do terciário e sua característica de
“esconderijo” dos grupos marginais de baixo nível de produtividade:

The argument that I wish to advance is that too little attention


has been paid to those sectors of the economy in which the bulk
of the new jobs are likely to be located, namely commerce and
services. This does not mean that manufacturing is unimportant;
on the contrary, it is, in my estimation, the key sector for economic

ão
growth. Under conditions of modern technology, however, its
role is not likely to be that of a major source of new employment.


Rather, it will tend to generate the effective demand leading to
employment expansion in other sectors. This multiplier effect

lg
is apt to be much more significant than any direct contributions
vu
that the manufacturing sector can make to the alleviation of mass
unemployment (Galenson, 1963, pp. 506-507).
di

Este autor vai ainda mais além, questionando a relação


de

entre produtividade e emprego, de aceitação muito generalizada:


“The productivity of the two occupations may be quite different, but
comparative productivity does not provide a criterion for degree of
ar

employment except in some general and not very meaningful sense”


pl

(Ibid., p. 516).
em

Santos, em um artigo em que recorre às mesmas categorias


conceituais dos trabalhos que critica – e, por isso, de grande interesse
–, procura determinar o caráter dinâmico do “terciário inchado”73
Ex

pelo papel que desempenha na integração ao sistema (absorção)


da mão de obra menos qualificada, em termos da alta elasticidade
da oferta de empregos e baixo nível de capitalização desse grupo de
atividades (Santos, 1968, passim).
Seus argumentos abordam um problema de grande
importância, mas pouco enfatizado e de abordagem muito difícil
através de análises agregadas. Trata-se do significado das atividades
englobadas nas denominações de “terciário primitivo”, “artesanato
moderno”, etc. – em uma palavra, aquelas que, em geral, são

73
“Gonflé”, no original. A expressão é usada no mesmo sentido que “terciário
primitivo”.
178 | Luiz Antonio Machado da Silva

associadas aos segmentos marginais. De um lado, admitindo-se


que elas desempenham funções econômicas indispensáveis74 no
contexto de um sistema pouco capitalizado, Galenson parece ter
razão, quando afirma:

If people are engaged in activities which enable them to support


themselves, it seems difficult to argue that they are not gainfully
employed, no matter what one think of the nature and intensity of
their tasks. Such activities as petty trade and hand transport are
functions which have to be carried on in a capital intensive manner
in more developed economies; supermarkets replace the pushcart

ão
and truck the bicycle […] before assuming the existence of vast
unemployment which completely destroys the meaning of tertiary


employment, one must ask this question: in the absence of public
or private charity, how do all of the presumptively unemployed
keep alive? (Galenson, 1963, p. 516).
lg
vu
Cumpre não esquecer que, como se viu no capítulo 2,
di

significativas parcelas dos trabalhadores ocupados nessas atividades


auferem rendimentos relativamente elevados. Na medida em que
de

estes podem ser associados à noção de “emprego produtivo”, torna-


se difícil aceitar uma visão residual de tais ramos.75
Mas, em contrapartida, pode-se ressaltar o aspecto de mero
ar

“anteparo” que elas também desempenham, como fica implícito


pl

no trabalho citado de Santos, apesar de suas conclusões seguirem


em

um rumo muito diferente. Aqui, a noção de “setor de subsistência”


proposta por Singer (1968a, 1968b) para outro contexto pode ser
um instrumento conceitual de grande auxílio. (Obviamente, seria
Ex

necessário esvaziá-la de seu sentido de produção para autoconsumo,


a fim de que pudesse ser aplicada a um contexto urbano e definido
por uma economia capitalista e de mercado).76

74
A relevância desse aspecto foi percebida através de diversas comunicações
pessoais do prof. A. Leeds.
75
Não se deve esquecer que o traço de “invisibilidade” jurídico-institucional de
boa parte desses contingentes e das próprias atividades aumenta sua viabilidade
econômica. Em certos casos, é esta condição de “invisibilidade” que responde pelas
possibilidades de competição do mercado.
76
Deve-se a Roger Walker, em diversas comunicações pessoais, a percepção
da importância do tratamento dos modelos de subsistência como veículo de
entendimento desses problemas.
Parte 2 Trabalho e cidade | 179

Não resta dúvida de que o duplo papel desempenhado


por esta ponderável parcela do setor terciário introduz sérias
dificuldades para os estudos empíricos, uma vez que as mesmas
atividades podem inserir-se no sistema de uma ou outra forma. Mas
este deve ser um eixo-chave de atenção e esforço interpretativo,
pois diz respeito, em última análise, aos recursos do sistema para
incorporar os contingentes marginais.
Intimamente associadas à linha de análise que representa
o terciário como residual, estão as considerações sobre a situação
das áreas de favela: elas têm sido entendidas como um equivalente
aos terciários no nível ecológico. Em outras palavras, se ao nível do

ão
sistema econômico este ramo de atividades tem sido genericamente
visto como “anteparo” ou “esconderijo” de grupos marginais,


algo idêntico ocorre com as favelas na análise das áreas urbanas.

lg
Acredita-se, porém, que – da mesma forma que o terciário como um
todo (e bem assim uma parcela de seu segmento “primitivo”) não é
vu
um mero resíduo – a favela como organização tem uma duplicidade
di

equivalente. Ao mesmo tempo que ela proporciona, em termos


ecológicos, um canal de absorção ao sistema, ela também faz parte
de

integrante da paisagem urbana normal.77


ar

Conclusões
pl

1. Em termos do mercado de trabalho, pode-se identificar a existência


em

de um contingente marginal, composto pelos trabalhadores manuais


com fortes dificuldades de controle do mercado. Em outras palavras,
Ex

pelos trabalhadores com empregos/ocupações muito instáveis e,


em consequência, baixa participação no produto social. A noção de
estabilidade/instabilidade, entretanto, não pode ser entendida em
termos jurídico-formais, uma vez que ocupações inexistentes do
ponto de vista jurídico-institucional podem ser estáveis, e vice-versa.

77
Para uma análise bem mais detalhada das favelas sob esse ponto de vista, ver
Machado da Silva e Santos (1969). A respeito da falta de homogeneidade das favelas,
que torna discutíveis suas caracterizações em termos unitários, ver as referências
da seção “O continuum de empregos” (cap. 1 deste trabalho). Ver ainda Silberstein
(1969).
180 | Luiz Antonio Machado da Silva

2. Verifica-se uma tendência de que os grupos marginais assim


definidos participem do mercado não formalizado. De outro lado,
procurando estabelecer uma relação entre os subsistemas do
mercado com os grandes ramos de atividade econômica, é possível
afirmar que o mercado não formalizado se vincula ao terciário
acrescido de uma parcela do setor artesanal. No entanto, nenhuma
dessas coincidências é perfeita. Em primeiro lugar, uma parte dos
empregos no terciário (inclusive do chamado terciário primitivo)
organiza-se no interior do mercado formal. Em segundo, nem todas
as atividades do mercado não formalizado podem ser vistas como
marginais, tanto em termos de sua importância para o sistema quanto

ão
em relação ao nível de controle do mercado dos trabalhadores delas
dependentes. Por sua vez, a simples participação de um emprego no


mercado formal pouco diz sobre suas perspectivas de estabilidade.

lg
Assim, a estabilidade do emprego/ocupação pouco tem a ver com os
níveis diferenciais de formalização nas diversas áreas do mercado
vu
de trabalho.
di

3. Têm sido realizadas várias análises, em especial quando se trata


de

das relações entre trabalho, marginalidade e favela, que enfatizam


a existência de mecanismos extraeconômicos (no sentido de não se
adaptarem à visão clássica da economia como um sistema separado
ar

e autorregulado); dependência de laços familiares, relações de


pl

clientela, escambo de trabalho por trabalho ou mercadoria, laços


retributivos (favores e presentes), etc. O resultado dessas análises
em

é: a) considerar esses sistemas de relações de base pessoal como


consequência da falta de integração (absorção) no sistema das
Ex

populações envolvidas, situando aquelas relações fora do marco


de uma economia urbana de mercado; b) supervalorizar o grau de
impessoalidade e formalização do núcleo “integrado do sistema”.
De fato, todos esses sistemas de relação são cruciais, mas devem ser
compreendidas como um padrão organizatório compatível com uma
economia de mercado, capitalista e integrada.

4. Têm sido estabelecidas relações unilineares entre qualificação


profissional, níveis de renda e estabilidade. Embora essa relação talvez
seja válida para o conjunto da força de trabalho, nesta dissertação
procurei mostrar que parece existir suficiente quantidade de casos
desviantes para duvidar de sua base empírica e considerar tais
Parte 2 Trabalho e cidade | 181

proposições como meros simplismos. As combinações entre essas


variáveis são muito numerosas, tanto no interior de cada subsistema
quanto entre um e outro.

5. Certos trabalhos propõem-se a definir e analisar os grupos


marginais em termos de sua baixa participação no produto social,
que é associada a ocupações com produtividade reduzida. Se bem que
haja forte base empírica nesse sentido, duas qualificações precisam
ser feitas: a) principalmente do ponto de vista do consumo, a família
deve ser a unidade de análise, de modo que a baixa capacidade de
controle do mercado não significa necessariamente que o padrão

ão
de vida das pessoas envolvidas seja baixo; b) apesar das amplas
variações quantitativas, existe uma forte homogeneidade entre os


estilos de vida da totalidade dos trabalhadores considerados no
presente trabalho.
lg
vu
6. Isto remete a um tipo muito generalizado de interpretação, que
di

considera os grupos marginais como tendentes a uma cristalização,


devido aos handicaps profissionais de que padecem. A descrição dos
de

mercados aqui apresentados, entretanto, demonstra que os canais


de comunicação entre as diversas situações de trabalho, intra e
interssubsistemas, são suficientemente amplos para permitir que
ar

essa cristalização não se verifique. Ou, no mínimo, que existem


pl

manipulações alternativas, que em numerosos casos permitem que


as deficiências de formação técnica possam ser contornadas.
em

7. Em razão dos pressupostos anteriormente descritos, há uma boa


Ex

dose de unanimidade no entendimento dos segmentos marginais e


dos setores econômicos a que se vinculam como problemas do ponto
de vista do funcionamento do sistema. A interpretação exposta
neste trabalho, ao contrário, encara aqueles segmentos e setores
como manifestação de recursos do próprio sistema para absorver
os contingentes marginais, criando pouca ou nenhuma área de
atrito, isto é, tais segmentos e setores teriam um papel neutro no
funcionamento do sistema: os eventuais problemas ligados à sua
existência não seriam mais que consequência da simples competição
econômica dentro do sistema.
Ex
em
pl
ar
de
di
vu
lg

ão
5. Estratos Ocupacionais de Baixa Renda1

Introdução

Objetivos, método e limitações

O objetivo central do presente capítulo é estudar as


estratégias de vida dos trabalhadores ligados a cinco ocupações que
reúnem os maiores contingentes de indivíduos com renda igual ou
inferior a dois salários mínimos regionais.2 A fim de que o alcance

ão
e as limitações da pesquisa possam ser mais bem apreendidos, são


necessárias algumas observações introdutórias, tanto em termos de
seu conteúdo substantivo quanto do método utilizado.

lg
Em primeiro lugar, uma palavra a respeito da noção
de “estratégia de vida”.3 Em termos amplos, pode-se dizer que
vu
seu conteúdo central é o reconhecimento de que as pessoas se
di

localizam em seu ambiente social e orientam suas ações a partir


de um conjunto de padrões alternativos de comportamento que
de

são socialmente aprendidos e transmitidos. Neste sentido, embora


associada à noção de estratégia de vida esteja a ideia de escolhas
pessoais, é perfeitamente lícito tentar apreender os padrões sociais
ar

que estão na base dessas escolhas, transcendendo, desta forma,


pl

o caráter idiossincrático e não recorrente que eliminaria o valor


em

sociológico da noção.
Outro aspecto importante a considerar a respeito da noção
de estratégia de vida é o fato de que os padrões de comportamento
Ex

que orientam as escolhas pessoais estão organizados em termos


de um conjunto articulado de alternativas que abrangem toda a

1
In: L. A. Machado da Silva (coord.). 1978. Estratos ocupacionais de baixa renda. Rio
de Janeiro: IUPERJ. pp. 11-20 e 171-182. Além do autor, participaram de todas as
fases da pesquisa, desde a coleta até a interpretação, Ademir Figueiredo, Filippina
Chinneli, Laureta Copello e Nizete do Nascimento.
2
A seleção dessas ocupações foi elaborada pela Divisão de Estudos Demográficos da
Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), a partir da análise de
dados censitários. Neste livro, foram selecionadas apenas as ocupações de pedreiro
e servente de pedreiro.
3
Note-se que, com a discussão que se segue, não pretendo elevar essa noção ao
status de conceito. Reconheço que ela tem apenas valor heurístico.
184 | Luiz Antonio Machado da Silva

vida social. Desta maneira, não teria sentido pensar, como querem
alguns cientistas sociais, num “mundo do trabalho” dotado de
grau de autonomia que permitisse isolá-lo, ainda que para efeitos
analíticos. Além do mais, olhando-se o problema da articulação dos
mencionados padrões alternativos de comportamento sob outro
ângulo, é possível dizer que, embora se possam perceber escolhas
individuais, toda a experiência de pesquisa demonstra que é ao nível
da família que se pode aprender a lógica dessas opções,4 ao menos
entre os grupos estudados.
Um segundo ponto que precisa ser mencionado a respeito
dos objetivos do presente capítulo centra-se nas relações entre as

ão
ocupações selecionadas e o mercado de trabalho como um todo. É
desnecessário dizer que elas estão intimamente relacionadas com


uma ampla variedade de outras ocupações – não obstante sejam,

lg
devido ao próprio critério de seleção, majoritárias entre os grupos
investigados –, tanto em termos estruturais quanto das carreiras dos
vu
trabalhadores individuais e suas famílias. Assim, seria preciso que a
di

pesquisa apreendesse como o mercado como um todo se configura,


de forma a situar as ocupações que se constituem em seu foco central.
de

Deve-se notar que, nas estratégias de vida, a análise da organização


do mercado teria necessariamente que assumir a ótica da oferta (e
não demanda) de força de trabalho.
ar

Do exposto acima, fica claro que o método mais apropriado


pl

para a realização do trabalho é o etnográfico, baseado na elaboração


de histórias de vida e entrevistas não estruturadas, bem como no
em

contato prolongado e o mais íntimo possível com os grupos. Em


termos mais específicos, porém, havia duas alternativas para a
Ex

escolha da unidade empírica de análise, ambas envolvendo aspectos


positivos e negativos para a realização da pesquisa. De um lado, o
próprio ambiente de trabalho; de outro, o local de moradia dos
trabalhadores. Decidi abandonar a primeira alternativa por diversas
razões, das quais as principais são as seguintes. Em primeiro
lugar, parecia muito alta a probabilidade de que os empregadores
(firmas ou pessoas) apresentassem forte resistência à presença de
pesquisadores no local de trabalho dos entrevistados, e/ou tentassem
controlar a realização da pesquisa. Além disso, ainda que num

4
Deve-se notar que, com isto, não pretendo insinuar que exista um modelo único de
organização familiar entre os grupos estudados.
Parte 2 Trabalho e cidade | 185

segundo momento os pesquisadores pudessem passar a frequentar


as casas dos trabalhadores que se mostrassem receptivos, era muito
provável que todo o relacionamento pesquisador-entrevistado
ficasse marcado pelos primeiros contatos no local de trabalho. Deste
modo, as informações sobre aspectos da vida dos trabalhadores
que não estivessem diretamente relacionados às suas carreiras
ocupacionais poderiam ficar dificultadas. A própria apreensão da
organização do mercado como um todo ficaria ameaçada, porque,
como é óbvio, os locais de trabalho teriam que ser selecionados de
forma a terem alguma relação com as ocupações escolhidas.
A opção, assim, recaiu na eleição, como unidade empírica de

ão
análise, de bairros populares, partindo do pressuposto de que neles
se concentraria a massa dos trabalhadores que exercem as ocupações


selecionadas, bem como as demais ocupações que compõem o

lg
mercado de trabalho potencial para os estratos subalternos. A
partir da análise de dados secundários, entrevistas com técnicos,
vu
experiência pessoal de alguns pesquisadores e visitas a diversos
di

bairros, estes foram selecionados de forma a cobrir não apenas


o município de Recife, mas, também, os três outros municípios da
de

Área Metropolitana com maior volume de população. Além disso,


procurou-se escolher bairros que fossem geograficamente distantes
entre si, de forma a elevar o grau de representatividade da pesquisa.
ar

Quanto aos contatos iniciais, ficou estabelecido que o início


pl

da pesquisa no bairro obedeceria, sempre que possível, a uma


estratégia-padrão: procurar a (ou as) instituição existente no bairro,
em

com a finalidade dupla de apresentação do pesquisador e explicação


da pesquisa. Note-se que, por “instituição local”, não se designa
Ex

apenas aquelas controladas por moradores do bairro, mas também


as que, embora controladas por organizações “supralocais”, possuem
agências no bairro ou em suas proximidades (uma delegacia de
polícia, por exemplo). Este procedimento não se aplicou, como é
óbvio, nos casos em que tais instituições não existiam ou não agiam
em todo o bairro.
Além da estratégia geral de entrada nas áreas selecionadas,
pôde-se constatar que existiu, ainda, um discurso-padrão utilizado
por todos os pesquisadores, mas que, ao contrário da estratégia
(previamente decidida), só foi percebido como tal a posteriori,
através de reuniões. Havia, é claro, sido discutida uma série de
princípios gerais, mas que se supunha serem simples balizamentos,
186 | Luiz Antonio Machado da Silva

que poderiam ser diferentemente aplicados nas diversas instâncias


concretas em que ocorria o primeiro contato. Esse fato sugere não
uma grande homogeneidade entre os pesquisadores, e sim, antes,
uma forte semelhança entre as várias situações concretas em que
se processa o primeiro contato. Acredito que essa afirmativa se
mantém verdadeira mesmo quando se atenta para o fato de que o
grau de tensão entre os contatos iniciais nos diferentes bairros foi
extremamente variável.
Quanto ao conteúdo do discurso-padrão, é claro que sua
reconstrução só pôde ser feita através de seus principais itens, que
foram os seguintes:

ão
a) Comunicação de que a pesquisa seria realizada, ou
permissão para sua realização. O primeiro caso ocorreu


quando a instituição não era controlada pelos moradores,
e o segundo, quando era.
lg
b) Exposição a mais sucinta possível dos objetivos da
vu
pesquisa, agregando-se detalhes apenas à medida que
di

eram solicitadas pelo interlocutor.


c) Explicação do procedimento: conversas informais a
de

respeito de assuntos que o entrevistado se dispunha


a comentar; eventual uso do gravador, quando o
entrevistado o permitia; anotações durante e/ou depois
ar

das conversas; visitas recorrentes, mas apenas aos


pl

entrevistados que as aceitaram.


d) Explicação de que os temas das conversas não
em

correspondiam a promessas de qualquer tipo associadas


a eles, nem estavam ligados a objetivos políticos.
Ex

e) Explicitação de que os entrevistados permaneceriam


incógnitos para qualquer pessoa que não o próprio
pesquisador, incluindo-se aí os próprios moradores
do bairro e pessoas de fora. Quando diretamente
questionado a respeito, o pesquisador reafirmava
que, embora não controlasse a utilização do relatório
de pesquisa, poderia e iria exercer censura sobre as
informações que constariam do relatório, de forma a
que nem o entrevistado nem o bairro em que morava
pudessem ser identificados.
f) Indicação de que o relatório, uma vez elaborado, seria
franqueado aos moradores interessados em lê-lo.
Parte 2 Trabalho e cidade | 187

Pelas observações acima, fica claro que, a partir da opção


metodológica de tomar o bairro como unidade empírica de análise, o
critério fundamental foi o da maior flexibilidade possível na escolha
e seleção dos entrevistados. Embora os resultados finais da pesquisa
permitam afirmar que essa escolha se mostrou adequada, não resta
dúvida de que, como qualquer opção metodológica, ela implicou
também certas limitações de alcance, que precisam ser explicitadas.
Na medida em que a seleção dos entrevistados não impôs
a priori requisito de desempenho das ocupações selecionadas,
houve um certo desnível em relação ao volume global de
informações a respeito de cada uma delas – fato que poderá ser

ão
claramente percebido pela leitura dos capítulos especificamente
destinados à sua análise.5 Por outro lado, não se pode deixar


de mencionar a grande quantidade de material coletado sobre

lg
uma série de outras ocupações que fazem parte do mercado de
trabalho dos grupos estudados.
vu
Outro fator que também contribuiu para variações no
di

volume de dados decorrentes da opção metodológica foi a natureza


da atividade. Assim, por exemplo, a maior parte das empregadas
de

domésticas mora na casa de seus patrões, fazendo apenas visitas


rápidas, geralmente quinzenais, a suas próprias moradias. Portanto,
embora se disponha de boa quantidade de informações a respeito
ar

de diversas empregadas domésticas que exerciam essa atividade


pl

durante a realização da pesquisa, uma parte do material coletado a


respeito dessa ocupação refere-se a ex-empregadas. Apesar dessas
em

ressalvas, porém, acredita-se que os objetivos da pesquisa puderam


ser cumpridos.
Ex

Finalmente, são necessárias rápidas referências à lógica


de exposição dos resultados. Em primeiro lugar, decidiu-se incluir
um capítulo acerca do processo migratório, uma vez que boa parte
da literatura supõe que exista um acesso diferenciado ao mercado
de trabalho para grupos migrantes e não migrantes. Os capítulos
seguintes procuram oferecer uma visão integrada da organização
do mercado para os grupos estudados, pelas razões já expostas.
Os últimos capítulos versam sobre cada uma das ocupações, mas

5
Não obstante isso, apenas para duas ocupações a análise ficou ligeiramente
empobrecida por uma relativa carência de dados: balconistas e vendedores
ambulantes.
188 | Luiz Antonio Machado da Silva

também uma visão de como elas se inserem no mercado como


um todo. Espero, ademais, que o presente relatório tenha podido
proporcionar o conhecimento de como os trabalhadores dos grupos
estudados se colocam perante cada uma das ocupações selecionadas
e o mercado de trabalho em geral.

Características dos bairros selecionados

A fim de que se possa avaliar o grau de representatividade da


pesquisa, sem que sejam violados os princípios éticos de qualquer

ão
pesquisa social, seguem-se breves descrições dos bairros estudados.


Bairro A
lg
Trata-se provavelmente do mais central dos bairros pobres
vu
do Recife. Não se sabe ainda a quem pertencem as terras que o
di

compõem, mas o simples fato de sua centralidade já seria suficiente


para os quase permanentes boatos de remoção total ou parcial.
de

Ainda assim, o bairro existe há cerca de trinta anos, não havendo


áreas de ocupação recente (embora, obviamente, existam alguns
moradores recentes).
ar

Na rua principal de acesso, existem várias pequenas fábricas,


pl

depósitos e principalmente serrarias, mas, pelas informações


recebidas e pelo grande número de pessoas que deixam o local após
em

o expediente, parece que é muito reduzido o número de moradores


do bairro que trabalham nesses estabelecimentos.
Ex

Na terminologia dos moradores, o bairro divide-se em duas


grandes áreas. É possível que existam mais de duas, porque o bairro
é grande e não foi totalmente coberto; no entanto, quase certamente
as demais denominações seriam especificações de uma dessas duas
áreas. Note-se que mesmo as pessoas de fora que têm algum contato
com o bairro o dividem da mesma forma.
A melhor área situa-se normalmente em terreno seco, mesmo
quando na beira de um dos rios que cortam a cidade. Na região mais
próxima do asfalto, as casas são melhores, dando a impressão de
ser uma zona urbana “normal” que se deteriorou. À medida que se
caminha para dentro, praticamente só existem barracos de madeira
(bastante precários, em sua maioria), numa aglomeração muito
Parte 2 Trabalho e cidade | 189

densa e com organização espacial extremamente complexa.


A região mais pobre situa-se em área de mangue, tendo
sido conquistada ao rio através de aterros feitos pelos próprios
moradores. Segundo a opinião dos moradores da outra área, ela se
caracteriza por uma extrema penúria e apresenta fortes problemas
de segurança, mesmo para moradores do bairro que não são
conhecidos. Em todas as conversas sobre as características do
bairro, os moradores da área “melhor” fizeram questão de marcar
vivamente a diferença entre morar nesta área e na mais pobre.
Situando-se todo o bairro muito próximo ao rio, nas épocas
de cheia toda a população é extremamente afetada. Na medida em

ão
que a grande maioria das habitações é muito precária, os danos
materiais envolvem a perda do próprio barraco. Alguns barracos até


hoje estão sendo reconstruídos ou reforçados em função da última

lg
cheia, ocorrida em agosto de 1975 [o relatório é de 1978] com
material distribuído pela comissão de moradores, o que pode ser
vu
considerado um indicador do nível de pobreza de seus habitantes.
di

Apesar disso, há barracos de um cômodo, alugados por Cr$ 140,00


mensais, o que demonstra a forte demanda, provavelmente devido à
de

centralidade do bairro.
ar

Bairro B
pl

Trata-se de um bairro bastante grande e antigo. Nele, pode-se


constatar duas áreas distintas: uma que abrange as imediações de
em

uma avenida que é a principal via de acesso à localidade, composta


de casas de alvenaria, aparentemente espaçosas e construídas, em
Ex

sua maioria, em centro de terreno, onde mora a elite do bairro; e


uma outra, que foi ocupada através de invasão:

Foi tempo, que houve essa política de eleição. Diziam assim:


“Estão invadindo”. Eu tinha muita vontade de ter minha casa
própria. Aí, eu disse para meu marido: “Vamos invadir?”. “Não,
porque eu não quero. A polícia bota vocês para correr”. Aí, eu
era teimosa. Peguei uns paus, cimento, e fui invadir… Sim, foi na
época das eleições. Então esse [nome de um político da época]
foi na candidatura, [nome de outro político da época]. Aí, [o
segundo político citado] mandou o povo fazer isso aqui… Diz que
isso aqui não tinha dono não… Aí o pessoal meteu a cara e fez.
Isso era deserto, era lugar de criminoso.
190 | Luiz Antonio Machado da Silva

Ao que tudo indica, essa área foi ocupada entre o final


da década de 1950 e início dos anos 1960. Uma entrevista assim
descreveu o aspecto inicial da área:

Isso aqui era tudo mato. Isso aqui [apontando um largo na frente
da casa] era o campo de jogo de futebol. Não tinha casa, não tinha
nada. Só tinha essas casas aqui… e uma casa aqui desse lado, aqui
encostado na minha casa e o mais tinha… [nome do rio] para a gente
lavar a roupa… Mas acabou tudo nesse pouco tempo que estou aqui
[cerca de 20 anos], acabou tudo. Essas casas aqui, não tinha. Tinha

ão
casas, casinhas, tapera, mucambo… Aqui não tinha casa boa, nem
rodagem. Não tinha nada. Por modo de ladrão, e gado brabo que


tinha aqui dentro, solto. Era mato, era mato… Esse rio era muito
bom.

lg
vu
Em mais da metade dessa área (ainda existem mucambos),
há construções da Companhia de Habitação (Cohab), substituindo
di

os antigos mucambos. Acerca da construção das vilas, assim se


manifestou uma informante:
de

Depois a Cohab fez o alinhamento. Essa minha aqui, por esse


alinhamento aqui, a Cohab desmanchou. Essa casa era do
ar

alinhamento para cá, mas a rua vem aí. Fizeram esses mucambos
pl

tudinho aí… Tem gente com casinha de tijolo, bem tapadinha, e


tal. E, quando inventaram a Cohab para fazer casa nos terrenos
em

desocupados… Aí, começaram a fazer casas e conquistar o povo,


dizendo que iam botar para morar… Eu só sei que fizeram muita
Ex

coisa errada… Mas, eu digo… Agora, ninguém pode mais pagar…


Aqui em casa, a gente pode, porque todo mundo ganha. Mas, quem
ganha o salário, não pode.

As casas construídas pela Cohab são de vários tipos, situadas


muito próximas umas das outras. Geralmente, existe um jardim
diante das casas. Conforme indica o primeiro trecho da citação
transcrita acima, parece que a divisão da área feita pela Cohab, o
novo “alinhamento”, não corresponde à anterior.
Parte 2 Trabalho e cidade | 191

Bairro C
O depoimento que se segue resume as informações obtidas
sobre o bairro:

Sou a pessoa indicada para falar de [nome do bairro]. Sou é iniciante.


Para chegar aqui, umas pessoas invadiram uns terrenos no [nome
do lugar], aqui perto. Eu também fui lá e marquei um terreno para
mim. Entrei nesse engodo. Levantei a casa com o material que
tinha e no dia que fui cobrir chegou a ordem de que ninguém podia
dar mais um prego. O pessoal obedeceu. Chegou o Dr. [nome] e
disse que ia arranjar terreno para a gente. A gente veio andando

ão
de pés até aqui e este terreno era tudo mato. Vieram as máquinas,
limparam tudo, marcaram os terrenos e todos ficaram contentes.


Isso foi em 1963. Assinamos um contrato, custando cada terreno
desses 22 contos e a gente ficou pagando Cr$ 1,00 por mês. Até hoje

lg
a gente paga. E não recebemos mais comunicação até hoje. A gente
faz qualquer negócio, vende, troca e paga todos os impostos. Só não
vu
tem a propriedade dos terrenos. Quando chegamos aqui não tinha
luz, nem água. Era areia. Apareceu um candidato e botou barro.
di

O terreno é nosso, não é nosso porque não tem documento, mas


ninguém bota para fora.
de

Boa parte dos entrevistados chegou a este bairro após fortes


ar

chuvas que atingiram outra localidade em 1969. Tendo suas casas


pl

condenadas, o Serviço Social Contra Mucambos fez a doação dos


terrenos e providenciou a mudança através do Exército. Um dos
em

informantes referiu-se à possibilidade de escolher entre dois outros


bairros.
Ex

Bairro D
Este bairro, bastante antigo, localiza-se no início de uma das
“áreas ricas” da cidade. Talvez por isso venha sofrendo há muitos
anos ameaças recorrentes de remoção. No momento, por exemplo,
uma das regiões do bairro (a mais pobre) está sendo objeto de
estudos de um órgão municipal, com vistas à sua extinção.
Basicamente, existem três setores no bairro, dos quais
dois com denominação própria. Um deles apresenta moradias
muito precárias, localizando-se em zona de maré. A pobreza e os
problemas de desemprego nessa área são prementes. Além disso,
192 | Luiz Antonio Machado da Silva

tudo leva a crer que uma boa parcela dos moradores do local sofre
forte processo de mobilidade descendente. O outro setor do bairro
apresenta condições muito melhores, situando-se em terreno seco e
possuindo algumas habitações de boa qualidade (embora o número
de barracos de madeira seja alto). Quanto ao terceiro setor, não
possui uma denominação própria. Pelo contrário, na medida em que
se compõe das casas de qualidade bastante boa, inclusive algumas
com mais de um andar, seus moradores procuram desvinculá-lo do
bairro, dando-lhe o nome do bairro contíguo.
De qualquer forma, toda a área apresenta, como a maior
parte dos demais bairros selecionados, problemas com relação à

ão
propriedade da terra que, neste caso, é de propriedade da Marinha e
de duas outras pessoas.


Bairro E lg
vu
Este bairro cobre uma área muito extensa, dividida em
di

diversos setores, dos quais apenas um foi coberto pela pesquisa.


Neste, a maior parte da área compõe-se de lotes legalizados, embora
de

existam também alguns terrenos invadidos. Segundo depoimentos


dos moradores, o início da ocupação ocorreu no final da década
de cinquenta, aumentando nos anos sessenta. Durante todo esse
ar

período, porém, a ocupação foi então se desenvolvendo, aumentando


pl

violentamente a partir da cheia de 1970, segundo os moradores, em


função da localização geográfica privilegiada – praticamente toda a
em

área se localiza numa elevação, de modo que o perigo de cheia é nulo.


Além disso, a área não dista mais do que meia hora de ônibus do
Ex

centro da cidade.
No caso do setor estudado, a ocupação deu-se principalmente
no cume, sendo que, mais recentemente, têm sido construídas
também habitações nas encostas, onde os terrenos são mais baratos.
No cume da elevação, o preço de um lote varia de 8 a 12 mil cruzeiros.
Não existe água encanada, de maneira que a grande maioria das casas
dispõe de cacimbas, construídas por moradores do local, que podem
chegar à profundidade de cerca de 30 metros. Embora existam
algumas casas de alvenaria, a maior parte das construções é de
taipa, sendo que não há nenhuma rua calçada. Trata-se de uma zona
basicamente residencial, com um pequeno comércio complementar,
ao qual os moradores costumam recorrer apenas em casos de falta
Parte 2 Trabalho e cidade | 193

de algum artigo. Existem também diversos bares.


Finalmente, cumpre notar que, no período das últimas
eleições (a fase de coleta de dados da pesquisa terminou em abril
de 1977), a Prefeitura “autorizou” uma pequena área de invasão na
encosta do morro, que está sendo rápida e densamente povoada,
com grande número de casas semiacabadas.

As ocupações selecionadas: pedreiro e servente de pedreiro

ão
A situação do mercado de trabalho


A dificuldade de encontrar emprego é a tônica no que se

lg
refere à construção civil, tanto nos depoimentos que fazem uma
apreciação do mercado em geral, quanto naqueles que dizem
vu
respeito especificamente à profissão de pedreiro. O seguinte trecho,
di

por exemplo, remete não apenas ao baixo salário, mas também à


rotatividade inerente às ocupações na construção civil:
de

O salário dele é o salário mínimo, com o agravante que a indústria


de construção civil é uma indústria… vamos dizer assim… oscilante.
ar

O… o homem que trabalha, digamos o têxtil, não. Ele trabalha dez,


pl

quinze, vinte anos ali naquela indústria. O que não acontece na


construção civil […] Mas de repente termina a obra, ele é demitido…
em

Aí, a senhora vai percebendo a diferença que existe entre uma…


é para pior, para o trabalhador da construção civil […] Tem o
Ex

problema da previsão, e o mercado não absorve, o mercado não


absorve. Então, a indústria tem que diminuir sua produção. Mas
isso é um caso comum. E numa construção civil é comum, porque
na construção civil é comum… O bem que se preza daqui quando
terminar, todo mundo que está trabalhando aqui, já sabe que vai
ser demitido, todo o pretexto lá está aí mesmo, entendeu? E que
numa… outra indústria é um acidente assim… um negócio assim…
um negócio assim… ela [...] preocupa todo mundo […] O problema
da demissão na construção civil não é alarmante. Não é alarmante
porque isso aí é uma rotina.6

6
Outro exemplo, este patético, de referência genérica à construção civil: “a
construção civil é uma indústria de fazer viúva” (o entrevistado referia-se aos
problemas de segurança do trabalho).
194 | Luiz Antonio Machado da Silva

A generalização pode também abranger não a construção


civil como tal, mas o mercado de trabalho no Nordeste como um
todo. O seguinte depoimento, de um pedreiro que conseguiu sua
“classificação” na carteira há pouco tempo, ilustra esse ponto:

Aí eu fiquei quebrando pau, e aqui a desvantagem daqui é essa…


a gente está num serviço hoje, para hoje. Se o cara não for muito
ativo passa um mês, dois, parado, não é isso, compadre? Compadre:
no Nordeste é assim. Infelizmente a gente tem esse problema. Aqui
tem esse, se o cara não for ativo, se parar… se não tiver… não cuidar
da vida logo cedo, acaba aquela mixaria… aquele dinheirinho que

ão
recebe, é capaz de passar privação.


Quanto às referências mais detidas na situação específica de
pedreiro, o trecho a seguir indica claramente que as características
lg
gerais de instabilidade dos empregos na construção civil são
vu
percebidas de maneira quase fatalista pelos trabalhadores:
di

(Entrevistador: E a perspectiva de duração deste, desta construção,


está prevista para quando?) Entrevistado: Bom, lá vamos dizer, o
de

trabalho lá, não é o trabalho [o trabalhador] que vai dizer quanto


dura por mês, né? Dá mais ou menos uns cinco meses para seis. Se
ele tiver outro, ele [o empregador] me bota, se não tiver ele me joga.
ar


pl

Uma outra forma de perceber as dificuldades do mercado


em

pode ser vista nesta passagem: “Aí, eu sei que eu… na vida de… de
produção de pedreiro tinha descoberto muita coisa. Depois que eu
comecei a trabalhar de pedreiro tinha descoberto muitas coisas.
Ex

Mas é muito simples, a dificuldade é a gente sair para arrumar


um serviço. Só isso”. Os problemas de conseguir emprego podem
ser sentidos com tal intensidade, que até mesmo a aquisição dos
conhecimentos profissionais passa a ser algo “muito simples”. Esse
trecho é especialmente revelador se for considerado que, de um
modo geral, possuir os conhecimentos de toda e qualquer profissão
é algo muito valorizado.
Certas formas de percepção das dificuldades de mercado
podem, à primeira vista, ser consideradas incorretas. Porém,
mesmo estas possuem uma sólida lógica que aponta no sentido do
excesso de oferta de mão de obra: “A vida de pedreiro, aliás toda…
toda profissão, aqui no Recife está muito ruim. Aqui no Recife
Parte 2 Trabalho e cidade | 195

está muito ruim demais, porque todo mundo hoje, depois que
inventaram essas casas populares, todo mundo hoje é pedreiro,
todo mundo hoje é carpinteiro”.
Assim, a “invenção das casas populares” (provável
referência à atuação do Banco Nacional de Habitação – BNH) é vista
negativamente, como um fator que dificulta a consecução de emprego:
“todo mundo hoje é pedreiro”. Aparentemente, é uma afirmativa
absurda, uma vez que, aumentando o número de construções,
aumenta também, por via de consequência, a demanda de pedreiros
e outros profissionais. No entanto, a continuação do depoimento
explica esta aparente contradição através de uma forte denúncia das

ão
distorções que um súbito aumento na demanda de força de trabalho
pode provocar sobre a estratificação interna da profissão. Embora


longo, o trecho merece ser transcrito, pois lança luz a uma série de

lg
aspectos-chave no desempenho da ocupação, alguns dos quais serão
retomados adiante:
vu
di

As casas populares são essas casas de vila. Quem vai é o servente.


Basta saber assentar um tijolo. Aí, começa a trabalhar na produção,
de

né? Quando ele… porque… ele vai como um pedreiro feito, né? Aí, o
pedreiro entende do negócio, bota ele na linha. Ele vai trabalhando
botando tijolo na linha. Quando ele sai dali, ele não quer trabalhar
ar

mais de aprendiz, servente. Quer trabalhar de pedreiro. Aí, vai para


uma firma, arruma um canto numa firma, conhece bem aquele
pl

mestre… daquela firma, aquele mestre de obra, né? Aí, procura


em

para ele assinar a carteira dele como pedreiro, né? Trabalha quatro,
cinco meses. Aí, o cara assina a carteira dele como pedreiro, né? […]
O lugar está pequeno e a população está grande demais. Onde essas
Ex

casas de vila… tem vila que só […] e estes… serv… esses pedreiros
que estão agora são serventes, né? Servente prático. Começa a
trabalhar, classifica a carteira logo, né? Aí, quando sai dali, já sai
aliado com os outros companheiros dali. Sai um servente prático. Já
amanhã sai como um pedreiro, né.

Assim, o que o entrevistado afirma nada mais é do que o fato
de que a grande oferta de mão de obra desqualificada, com o advento
do BNH, rompeu as comportas do conhecimento profissional.
Acionando conhecimentos pessoais, esse contingente rapidamente
consegue reconhecimento legal como profissional, inflacionando,
com isto, a oferta de trabalho, que antes se limitava a um pequeno
196 | Luiz Antonio Machado da Silva

número de trabalhadores.7

Caracterização das ocupações: a estratificação interna da profissão

O depoimento anterior deixa claro que a profissão de pedreiro


tem uma hierarquia interna bem definida. Para sua discussão, dois
aspectos são fundamentais: em primeiro lugar, o que constitui o
conjunto de conhecimentos inerentes à profissão; e, em segundo,
como se dá a legitimação formal de seus diversos níveis.
No que diz respeito ao primeiro aspecto, são muito comuns

ão
as comparações entre o Nordeste e o Sul do país, todas ressaltando
a especialização reconhecida neste e a necessidade de diversificação


de conhecimento naquele. É provável que este tipo de depoimento

lg
corresponda a uma idealização da qualidade da força de trabalho
nordestina e, portanto, dos conhecimentos profissionais do
vu
entrevistado.8 De qualquer forma, tais comparações são estratégicas
di

para que se apreenda o conjunto de conhecimentos que constitui o


“saber” da profissão:
de

(Entrevistador: O senhor me falou que aqui era diferente do Sul.


Qual é a diferença?) Entrevistado: Sim, é porque no Sul tem o
ar

pedreiro ladrilheiro, o pedreiro taqueador, o pedreiro de alvenaria


pl

[…] A isso chama taqueador, que assenta o taco. Aqui é o ladrilheiro


que senta mosaico, pastilha, o pastilheiro, esse que senta pastilha de
em

fachada, aqui é o seguinte. Aqui… por isso que o profissional daqui


do Norte, Nordeste, tem cartaz no Sul, porque aqui é o tal negócio.
Ex

Se o camarada só senta mosaico e coisa, os caras não vão dizer que


ele é pedreiro, não. Diz que aqui eles é meia colher […] Porque não
é completo. Então lá não. Lá ele… taqueador, é ladrilheiro. Aqui, nós
simplesmente consideramos o pedreiro.

Que o pedreiro aqui… lá no Rio pelo que o pessoal conta – eu

7
É claro que esse depoimento pode não significar mais do que um lamento pessoal
que reflete as condições gerais que de há muito prevalecem. No entanto, não resta
dúvida de que é coerente. No mínimo, o argumento merece estudo mais detalhado.
8
A experiência indica que, no sul do país, são muito comuns afirmativas do tipo
“um bom profissional não se aperta”, que também sugere uma diversificação de
conhecimentos.
Parte 2 Trabalho e cidade | 197

nunca fui não – mas, pelo que o pessoal conta, no Rio é uma mãe
a profissão de pedreiro. Aqui é muito ruço. Aqui o pedreiro tem
que trabalhar na alvenaria, reboco, massa grossa, massa fina, botar
gracita […] botar mármore, botar azulejo, pastilha, granito, tudo
que o pedreiro faz. No Rio, não. O pedreiro no Rio de gracite é de
gracite, de mármore é de mármore, de estuque é de estuque, massa
fina é de massa fina, massa grossa é de massa grossa. Aqui não. Aqui
a gente tem que saber de tudo. Eu trabalho na pedra. Eu boto pedra
passejada, marroada, boto gracite, boto azulejo, boto mármore, e
tudo na profissão de pedreiro. Aqui tudinho eu tenho feito.

ão
Dois outros aspectos são também constantemente referidos.
O primeiro deles é saber ler planta:


Agora, entendia de planta. Veja bem, entendia de planta […]

lg
Tem escala, tudo… tudo. Daquilo eu entendia […] Certa vez, eu…
conversando com meu tio, aí eu disse pra ele: “Por que [nome]
vu
ganha mais do que todo mundo?” “[…] Agora tem uma coisa, ele faz
o que você não faz, ele lê planta”.
di
de

Porque eu não tinha bem prática de planta… entendo um pouquinho,


sabe? Porque, tendo o riscado, só não vê o cego, né? Mas ele tinha
todo o detalhe… como é que se diz… tinha toda a explicação. Aí,
ar

quando eu me enrascava um pouquinho.



pl

O segundo aspecto é igualmente muito importante, pois serve


em

como legitimação informal da condição de profissional. Trata-se da


posse dos instrumentos de trabalho, que não são fornecidos pelos
Ex

empregadores.

Aí eu fui na carreira aprendendo. Aí, o mestre viu: “Sabe, você vai


comprar suas ferramentas. Você tem algum interesse de aprender.
Quer dizer, eu vou lhe ajudar, está certo?” Aí, ele me ajudou […]
(Entrevistador: O que é que precisa?) Entrevistado: Quase de
cinquenta ferramentas para lá. Tem que botar níveis, esquadros,
colher, níveis de duas qualidades de mangueira […] alicate, martelo.
E muito serviço […] Porque a construtora só dá mesmo trabalho. A
ferramenta é nossa.

É importante chamar a atenção para o ponto de que nenhum


198 | Luiz Antonio Machado da Silva

equipamento de proteção do trabalhador foi mencionado. Quando


inquirido a respeito, o mesmo entrevistado referiu-se ao fato de
que a única coisa que a construtora fornecia era o chapéu. E, mesmo
quanto a este, funciona uma espécie de sistema de caução:

O que ela [a construtora] dá é o chapéu. E não dá não. Ela vende.


Ela chega, a pessoa vai trabalhar lá, ela dá aquele chapéu. Chapéu
de cuia para proteger a cabeça. Mas a gente paga toda a semana. É
descontado, um pedaço de dinheiro. (Entrevistador: E depois que
sai tem o dinheiro do chapéu ou o chapéu fica lá?) Entrevistado:
Leva, leva, leva o chapéu. Aí, vende a outro na companhia, desconta

ão
de novo, deixa lá. É assim, né? Sempre o dinheiro vai na frente.


Na percepção do saber profissional do pedreiro, um dos
pontos fundamentais é a noção de prática. Isto implica que, quanto
lg
mais tempo de trabalho “no ramo” a pessoa tem, tanto melhor
vu
profissional tenderá a ser. Isso só não acontece por algum desvio
do desenvolvimento natural (prática) da pessoa – desinteresse,
di

preguiça, incompetência. Assim, por exemplo, referindo-se a uma


conversa que teve com outro trabalhador, um entrevistado afirma:
de

“Mas é feio, [nome], você com a idade avançada para trabalhar de


servente, é feio. Servente fica para aquela… para a pessoa que não se
ar

interessa pela vida”.


Portanto, embora, como já se viu, à profissão de pedreiro
pl

corresponda um conjunto especializado de conhecimentos


em

diversificados, este saber deve e pode ser adquirido ao longo


do tempo, através da prática profissional. Dois depoimentos
Ex

ilustram esse ponto de forma nítida. O primeiro reconhece a


complementaridade das profissões “pedreiro” e “engenheiro” na
medida em que elas se diferenciam, não pelo tipo de atividade ou
quantidade de conhecimento requerida, mas antes porque uma é
prática e outra teórica:

Tinha um engenheiro para se formar, ele tem que ir para dentro da


construção. Saber qual é o serviço lá dentro, para a gente ensinar
para ele. Que ele tinha a teoria, né? Mas não tem técnica, né? Que a
gente tem técnica, mas não tem teoria, né? Que ele aí vai pela lógica,
e a gente vai pela prática. Aí, a gente tinha que ensinar a prática
para ele. Tinha que dar toda a prática para ele.
Parte 2 Trabalho e cidade | 199

O outro depoimento refere-se à inutilidade de cursos para


pedreiros que tenham como alunos pessoas que desconhecem na
prática a atividade de construção:

Aí, vai ver que aprende assim, por intuição e por necessidade. Que
ele tem que melhorar a vida dele e tal, não tem curso. Vou mais
além: não se faz pedreiro por curso […] Homem profissional ele
tem que ter prática. Esse negócio de pegar… pega um homem que
nunca entrou dentro da construção civil, dá um curso a ele de
duzentas horas para fazer dele pedreiro, não faz nunca […] Não faz
nunca. Entendeu? Pode-se fazer curso para aprimorar… técnicas de

ão
desenvolver… Aí, sim… pegar os serventes já aprendiz […] Então…
aprender por técnica, aí está certo. O curso funciona. Mas ninguém


vai me dizer que pega um homem aí que nunca pisou dentro da
construção civil, vamos dar uma aula de duzentas horas a ele, ver

lg
se esse homem sai pedreiro. Sai nunca, entendeu?

vu
Todas as considerações feitas nesta seção deixam claro que
di

existe uma nítida estratificação interna à profissão de pedreiro, que


se organiza fundamentalmente em torno dos diferentes graus de
de

conhecimento do conjunto de atividades que a compõe. Como não


poderia deixar de ser, esse fato produz um impacto sobre os níveis
salariais dos trabalhadores envolvidos: “[Estava trabalhando]
ar

como meio profissional. Quer dizer, se um pedreiro ganhava três


pl

contos, eu ganhava um conto e quinhentos, sabe? (Entrevistador:


em

E o servente?) Entrevistado: O servente diarista, o servente era na


base de um conto e pouco”.
Além desta distinção entre servente, meio profissional e
Ex

profissional,9 existe uma outra, muito importante para a carreira


do trabalhador, mas que não implica variação no salário. Trata-
se daquela entre o servente que é uma espécie de “pau para toda
obra”, sem qualquer função definida, e o servente-aprendiz, que
já tem atribuições mais definidas – que ainda supõem um nível de
especialização quase nulo, mas já envolvem uma maior proximidade
das atividades do profissional.

9
Diferentes termos são usados para designar esta mesma hierarquia básica. Veja-se,
por exemplo, a expressão “meia-colher” para indicar o meio profissional. Note-se
também que, dentro de cada um desses níveis, há ainda outras distinções mais sutis
(sempre a partir de diferenças de habilidades), mas que, por isso mesmo, não têm
uma aplicação consensual e apenas raramente afetam o salário.
200 | Luiz Antonio Machado da Silva

Ademais do tempo e da prática necessários à aquisição de


conhecimentos substantivos da profissão, há outro aspecto central
na sua hierarquia interna: a “classificação” da carteira profissional.10
Assim, por exemplo, o meio profissional, meia-colher ou aprendiz
(não confundir com servente com atribuições definidas, referido
acima), embora exerça efetivamente algumas ou todas as tarefas
que cabem ao pedreiro, não se considera nem é considerado pelos
colegas como profissional por não ter a carteira “classificada”.
(Note-se que o tempo que o trabalhador passa nestas condições
é variável, dependendo de “sorte”, conhecimentos pessoais, nível
de demanda do mercado, etc.). Os seguintes depoimentos ilustram

ão
bem esse ponto:


(Entrevistador: Mas o senhor já era pedreiro ou…) Entrevistado:

lg
Não, nada, nessa época fiquei trabalhando de pedreiro. Mas, como
aprendiz, não tinha carteira classificada, não. (Entrevistador:
vu
Agora, o aprendiz faz o quê?) Entrevistado: O aprendiz trabalha
como pedreiro que é para… exercendo a função do pedreiro. Agora,
di

é mais, o ordenado, é mais um pouco, a gente tem 20% a mais do


servente.
de

Estava trabalhando na ferramenta, mas não tinha classificação


na carteira ainda. Trabalhava como meio… ganhava como meio
ar

profissional.
pl

Em geral, para que a carteira seja “classificada”, o trabalhador


em

passa por um teste prático, de modo que a sua habilidade possa ser
aferida:
Ex

Não tem problema, se você trabalha na ferramenta mas não tem


classificação na carteira. Eu quero saber se você… se você fez o
serviço. Que fazendo o serviço, eu dou a sua classificação. Aí, botou
por modo de eu levantar uma parede. O teste que fiz foi esse.
Levantar uma parede e assentar uma grade de janelão de um metro
e vinte por noventa. Levantei a parede e no outro dia chumbei a
grade. Ele mandou o engenheiro passar a escala para ver se estava
no nível, se estava certo. Ele aprovou. Na mesma hora ele entregou…
[a carteira para ser “classificada”].

10
Em seção anterior deste livro, a classificação da “carteira” foi discutida em maior
detalhe.
Parte 2 Trabalho e cidade | 201

A prática da profissão

A totalidade dos entrevistados começou a carreira como


servente, tendo aprendido a profissão na prática. Basicamente, a
aprendizagem é descrita em torno de três pontos: auxílio de colegas,
inteligência e interesse pessoal, sendo que os dois últimos muitas
vezes aparecem associados:

Com a minha inteligência, né? Eu vendo os meninos trabalhando,


eu… fui aprendendo a… assentando um tijolinho, lá vai. Quando foi
dentro de três meses eu já estava trabalhando sozinho.

ão
Então ele vê que está trabalhando mais duro e recebendo menos.


Então, ele se interessa para aprender a… pedreiro. Então ele vai ali
e tal. O pedreiro quando larga a colher e tal, ele pega e tal, joga a
lg
massa e tal. Vai ali ajeitando e tal…
vu
No que se refere ao auxílio prestado por colegas de trabalho,
di

este não parece ser tão generalizado. Além de ser objetivamente


verdadeira a recusa em prestar auxílio por parte dos profissionais
de

experientes, ela pode também ser acionada para desprestigiar


algum desafeto. Este é o caso, por exemplo, de um entrevistado que
ar

assim se refere a um parente com quem tinha fortes problemas de


relacionamento: “[Ele] é desse que trabalhava, tocava para trás,
pl

sabe? Que ele não dava saber dele a ninguém, mas antes ele queria
em

tirar… Se ele pudesse tirar o que o cara soubesse, ele tirava”.


Por outro lado, entre os profissionais que se dispõem a
ajudar os novatos, há um forte sentimento de orgulho por essa
Ex

atitude, como fica nítido no depoimento do entrevistado que já “fez”


(isto é, ensinou) três profissionais. Como contrapartida, existe o
reconhecimento do profissional menos experiente. Assim, alguns
entrevistados recorrem à expressão “aluno” para indicar o auxílio
recebido. O trecho seguinte é também interessante por deixar claro
que um certo receio da competição com o novo profissional coexiste
com a disposição em ajudá-lo:

Aí ele me disse: “Ô seu [nome], eu não posso trabalhar com o senhor


como servente. O senhor vai agora trabalhar por conta própria… Ou
trabalha por conta própria ou o senhor vai… para outra construtora”.
O mestre era meio carrancudo, sabe? Ele quando ensinava a um
202 | Luiz Antonio Machado da Silva

aluno ele não queria mais trabalhar com aquele aluno […] Porque
ele dizia: “Porque o aluno já foi, já sou professor dele. E ele vem
trabalhar comigo quer dizer que ele já sabe… mais para frente, ele
quer me botar para trás. Ele lá aprende mais do que eu”.

Por parte do novo profissional, existe também a ideia de que,
para receber pleno reconhecimento, ele precisa sair da empresa onde
aprendeu a profissão: “Então, a partir desse meu tio, todo mundo só
me enxergava ali como um… um principiante […] e foi preciso eu dar
uma saída. Saí com anos depois quando eu já sabia, me sentia mesmo
pedreiro… fazia tudo em construção”.

ão
Existe ainda uma outra área em que se faz necessário um
certo tipo de aprendizagem que não se relaciona propriamente com


conhecimentos técnicos, nem se localiza no âmbito do mercado
formal de empregos. Trata-se da habilidade do profissional em,
lg
como clandestino, calcular o preço do serviço a ser executado
vu
(empreitada), de modo a ter uma margem de lucro que seja aceitável
tanto para ele próprio quanto para o consumidor potencial:
di

O cara trabalhando clandestino ganha mais, que também depende


de

de ele saber pegar o serviço. Às vezes, ele se bombardeia. Não


sabendo pegar serviço, ele se bombardeia. Se ele souber empreitar
ar

um serviço de valer… seis milhões, ele não vai pedir seis milhões…
Ele vai pedir oito ou nove, que é pro cara quando o dono do… o dono
pl

do serviço chegar quando nada a sete ou sete e meio por modo de


em

ele… livrar aquela barra de tirar… de gastar aqueles seis milhões e


no fim ele tirar um milhão e quinhentos ou dois milhões de saldo.
Ex

Além dos problemas de aprendizagem, outro aspecto central


na prática da profissão é o que se refere às formas de conseguir
emprego. Evidentemente, há uma enorme quantidade de variantes,
pois cada caso apresenta características que o diferenciam dos
demais. Não obstante, pode-se dizer que tais especificidades surgem
em torno de dois padrões básicos: sair procurando emprego, de
forma quase aleatória; e obtê-lo através de algum contato baseado
em relações pessoais. Como a mais radical ilustração do primeiro
padrão, um entrevistado chega a afirmar que só consegue emprego
andando a pé:

Às vezes, eu tomava café aqui. Aí, me jogava, né? Aí, saí… andando
Parte 2 Trabalho e cidade | 203

na rua… de pé. Porque a gente só arruma trabalho andando a pé.


Não é de ônibus, não. Nem de carro. Nós vamos de pé. Quantas
vezes eu saía daqui para [nome do lugar] a pé. Por aqui, brincando
por aqui afora, coisa e tal devagarzinho… Quando dava essa hora,
eu já estava por lá. Aí, eu voltava de ônibus. Aí, eu ia me informando
por ali.

Deve-se notar que, a partir deste padrão de procura de


emprego, ter ou não carteira assinada (ou classificada, no caso de
profissional) se torna uma questão de casualidade. Esse mesmo
entrevistado, por exemplo, andando por diversas ruas da cidade, em

ão
algumas ocasiões empregou-se com carteira assinada (era servente)
e, em outras, trabalhou como “clandestino”.


Como foi dito acima, ter um “padrinho” ou “pistolão” é o
padrão alternativo:
lg
vu
Tem vez que a gente chega numa obra assim, está precisando e
eles não botam [a gente para trabalhar]. Eu acredito… é pistolão, o
di

padrinho […] outros exigem carta de representação [provavelmente


carta de apresentação], todas as xumbregações que se você passasse
de

aqui mais um tempo, você ia ver qual é o problema […] Isso é uma
nojeira, pistolão como diz.
ar

O trecho acima é interessante, pois, além de indicar a vigência


pl

desse padrão de obtenção de emprego, deixa bastante claro o


em

profundo ressentimento que ele provoca. Deve-se notar, porém, que,


do ponto de vista da pessoa que recebe o benefício oriundo de suas
relações pessoais, o “pistolão” não apenas é fundamental na obtenção
Ex

de emprego, mas também na melhoria da situação profissional do


trabalhador. A este respeito, veja-se o seguinte depoimento:

Aí, ela [a esposa do presidente da companhia] disse: “Seu [nome]…


o senhor é pedreiro?” Eu digo: “Não, senhora”. “E por que é que
o senhor trabalha assim, melhor do que os pedreiros?” Eu digo:
“Ah, não sei. É porque eu estou gostando do serviço mais do que
o pedreiro” […] Ela disse: “É, pois… eu vou falar com [nome do
marido] para ele… para ele classificar sua carteira […]” Ela disse:
“[nome do marido], já está bom de você classificar a carteira do
[nome do entrevistado], porque de momento termina o serviço
lá, e aí ele vai sair… vai pegar pá novamente e um homem desse
ninguém faz isso com ele”.
204 | Luiz Antonio Machado da Silva

Além de representar um caso típico de pistolão, o trecho


acima ratifica a afirmativa anterior de que o “apadrinhamento” não
é bem visto pelos trabalhadores: o caso é contado como se a carteira
tivesse sido “classificada” pelos próprios méritos profissionais do
entrevistado, sem qualquer referência do “pistolão” que a esposa do
presidente da companhia efetivamente representou.
Tanto quanto essas formas de obtenção de emprego fazem
parte do cotidiano dos entrevistados, também o fazem os períodos
em que o trabalhador “está parado”, sem conseguir serviço de
qualquer natureza na profissão. (Recordem-se as afirmativas feitas
na seção inicial, sobre os problemas de instabilidade na construção

ão
civil em geral, e na ocupação de pedreiro, em particular). Nesta
situação, qualquer tipo de trabalho é aceito:


lg
Aí, eu tinha que me virar. Tinha que ir à maré pegar caranguejo,
para vender. E, contudo, que a boia… da tropa não faltava, né?
vu
Dos meninos não faltava. Eu ia pegar caranguejo, ia para a maré,
pegava, ia trabalhar em cima do caminhão… carregar material para
di

construção, mas contanto que eu tinha que assumir… assumir as


responsabilidades da casa.
de
ar

Observação Final
pl

Os comentários feitos nas seções anteriores deixam pouca


em

margem de dúvida a respeito da situação de instabilidade inerente


à profissão de pedreiro, na qual as oscilações entre períodos de
Ex

extensão variável de emprego regular, trabalho clandestino e biscates


variados são extremamente generalizadas. Tal situação faz com que
sejam partes integrantes da experiência de trabalho na profissão
diversos tipos de relação de trabalho, que independem da própria
atividade, tornando-a, de certa forma, diferente de outros tipos de
profissão, em que a participação quase exclusiva no mercado formal
é a tônica – mesmo se considerando apenas profissões manuais (este
seria o caso, por exemplo, de fresadores). Portanto, é importante
que se mantenha presente a necessidade de diferenciar, na análise
de qualquer ocupação, as características específicas das atividades e
o contexto de relações de trabalho em que ocorre seu desempenho.
6. Estratégias de trabalho, formas de dominação na
produção e subordinação doméstica de trabalhadores
urbanos1


Os textos que se seguem apresentam marcantes diferenças,
seja em termos do tipo de cidade a que se referem, das características
dos grupos estudados, seja dos respectivos objetos de análise. Trata-
se, claramente, de artigos heterogêneos, de modo que esta introdução
não pretende unificá-los. Não obstante esta advertência, seria difícil
negar que todos os trabalhos indicam que é em torno do salário que

ão
se estruturam as atividades dos diversos grupos de trabalhadores


a que fazem referência. Essa afirmativa é verdadeira tanto para os
estudos que giram em torno de operários – isto é, trabalhadores

lg
fabris assalariados – quanto para os que analisam diversos tipos de
trabalhadores que, em uma primeira aproximação, poderiam ser
vu
pensados como “produtores independentes”.2 Inequívoco exemplo
di

disso é o texto sobre pequenos estabelecimentos comerciais que


mostra, de um lado, como toda a estratégia de seus proprietários
de

depende do trabalho assalariado e, de outro, como a própria origem


do capital inicial está ligada à condição assalariada do trabalhador.
Um segundo ponto de convergência entre vários artigos –
ar

em particular os que tratam de operários fabris – diz respeito à


pl

centralidade da profissão no estabelecimento das estratégias de


em

vida dos membros dos diversos grupos estudados. Este ponto será
retomado adiante.
Ex

1
Leite Lopes, José Sergio; Machado da Silva, Luiz Antonio. 1979. “Introdução:
estratégias de trabalho, formas de dominação na produção e subordinação
doméstica de trabalhadores urbanos”. In: J. S. Leite Lopes et al. Mudança Social no
Nordeste: a reprodução da subordinação. Rio de Janeiro: Paz e Terra. pp. 9-35.
2
Não há como negar a imprecisão desta expressão, motivo pelo qual vem colocada
entre aspas. Na realidade, ela pretende apenas indicar diversas formas de trabalho
que não geram mais valia, associadas a distintas “formas de produzir”, como se
verá adiante. Embora existam importantes trabalhos que procuram elaborar uma
tipologia das formas de produzir não capitalistas – veja-se, por exemplo, Jelin
(1974a, 1974b) –, dentro dos limites do presente trabalho qualquer tentativa de
fazê-lo seria precipitada. A este respeito, consulte também Alvim (1972), onde é
retomada a distinção entre “modo de produção em sentido amplo” e “modo de
produção em sentido restrito”, de importância central na eventual elaboração da
mencionada tipologia.
206 | Luiz Antonio Machado da Silva

Quanto ao papel fundamental do salário, os trabalhos que se


seguem tratam de duas situações polares. De um lado, a completa
dependência do capital, de que o artigo de Leite Lopes é o exemplo
mais marcante. Do outro, a completa independência do capital, como
fica claro nos textos sobre trabalho feminino e pequeno comércio,
de Machado da Silva. Ao mesmo tempo, os textos são unânimes
quanto à insuficiência dos níveis salariais para reproduzir a família
trabalhadora.
A insuficiência do salário é superada, alternativa e/ou
conjuntamente, de duas formas. Em primeiro lugar, através da
extensão da jornada de trabalho, seja quando o trabalhador eleva

ão
o salário pela via da hora-extra (quando permanece a subordinação
direta ao capital), seja quando ele aumenta sua remuneração global


associando o trabalho assalariado a formas não capitalistas de

lg
produzir. Em segundo lugar, pela incorporação de outros membros
da família a atividades que geram remuneração (através de relações
vu
assalariadas ou da “produção independente”). Do ponto de vista
di

da força de trabalho, portanto, a família passa a representar uma


mediação entre as duas situações polares acima mencionadas, como
de

fica claramente evidenciado nos artigos de Barbosa Alvim e Melo


Marin. (Neste ponto cabe ressaltar que, como será visto adiante,
mesmo no caso descrito como de “completa dependência do capital”,
ar

formas não capitalistas de produzir estão presentes).


pl

Tem-se, portanto que, embora o salário – isto é, a relação


direta entre capital e trabalho – seja fator fundamental na organização
em

das atividades dos diversos grupos estudados, isto não implica ao


mesmo tempo que ele garanta, por si só, a reprodução da força de
Ex

trabalho – seja a reprodução do próprio trabalhador, seja a de sua


família. Brunhoff (1976, p. 10), por exemplo, enfatiza este ponto:

Se, por outro lado, o valor de troca da força de trabalho comporta


não somente o valor do pão cotidiano do trabalhador ativo, mas
também a manutenção do desempregado, do doente, das crianças,
o salário direto é inferior a este valor […] Ela [a forma do salário,
como expressão de um contrato entre dois “proprietários”] significa
também que o trabalhador “proprietário” de sua força de trabalho
é responsável pela manutenção desta, que é, em princípio, ele, e
não o capitalista, que tem o encargo de reproduzir a si próprio.
Nestas condições, ou bem o salário percebido durante o período
de trabalho permite cobrir o “valor de reprodução” da força de
Parte 2 Trabalho e cidade | 207

trabalho ou bem ele não corresponde senão ao valor cotidiano


desta, e o salário direto, se não é completado por diversos tipos de
subsídios institucionais, não pode ser suficiente.

Brunhoff ressalta, a partir dessas considerações, o papel


do Estado na gestão da força de trabalho, ao passo que, nesta
introdução, o que se pretende pôr em relevo é o papel representado
pelas formas não capitalistas de produzir – ênfases que, obviamente,
não são antagônicas nem mutuamente excludentes. (Neste mesmo
sentido, o artigo de Sá Barreto Teixeira descreve o significado de
instituições de previdência “paralelas”, não estatais, organizadas

ão
pelas classes populares).
Neste ponto, são necessárias algumas referências a um


importante e já clássico, apesar de recente, trabalho de Francisco de
Oliveira – cuja tese central reforça o presente argumento.3 Embora
lg
este não seja o lugar para uma análise exaustiva das interpretações
vu
contidas no referido artigo, os trabalhos que se seguem permitem
discutir e qualificar alguns de seus pontos. Assim, uma das bases
di

em que se apoia a análise é a noção de que formas não tipicamente


capitalistas de produzir provocam uma redução no custo de
de

reprodução da força de trabalho4 e de que essas formas de produzir


ar

3
“É possível perceber que o elemento estratégico para definir o conjunto de relações
pl

na economia como um todo passou a ser o tipo de relação de produção estabelecido


em

entre o capital e o trabalho na indústria. Mas, longe do modelo ‘clássico’ em que


esse elemento estratégico tende a exportar-se para o restante da economia, no
caso brasileiro – e é possível reconhecê-lo em outros países – a implantação das
Ex

novas relações de produção no setor estratégico da economia tende, por razões em


primeiro lugar históricas, que se transformam em razões estruturais, a perpetuar
as relações não-capitalistas na agricultura e a criar um padrão não capitalístico
de reprodução e apropriação do excedente num setor como o dos serviços. A
‘especificidade particular’ de um tal modelo consistiria em reproduzir e criar
uma larga ‘periferia’ onde predominam padrões não capitalísticos de relações de
produção, como forma e meio de sustentação e alimentação do crescimento dos
setores estratégicos nitidamente capitalistas que são a longo prazo a garantia das
estruturas de dominação e reprodução do sistema” (Oliveira, 1972, p. 40).
4
Esta afirmativa é feita em diversas passagens, como, por exemplo, na que se segue:
“Uma não insignificante porcentagem das residências das classes trabalhadoras
foi construída pelos próprios proprietários, utilizando dias de folga, fins de
semana e formas de cooperação como o ‘mutirão’. Ora, a habitação, bem resultante
desta operação, se produz por trabalho não pago, isto é, super-trabalho. Embora
aparentemente este bem não seja desapropriado pelo setor privado da produção,
208 | Luiz Antonio Machado da Silva

geram o aparecimento de um vasto número de pseudoproprietários.5


Ora, embora a série de atividades que Francisco de Oliveira
afirma constituírem-se numa “estranha forma de economia de
subsistência” possa contribuir para reduzir o custo de reprodução
da força de trabalho, comprimindo o valor de reprodução da
forma de trabalho (e, portanto, os salários reais) (Oliveira,
1972, p. 20), daí não decorre necessariamente que os salários se
equiparem àquele valor. Não há porque, como se procurou indicar
anteriormente, pressupor que a soma dos salários individuais pagos
aos trabalhadores corresponda ao custo de reprodução da força de
trabalho. A diferença entre o salário e o “valor da reprodução” da

ão
força de trabalho é coberta, como indicam os textos que se seguem,
seja pela extensão da jornada de trabalho do trabalhador individual,


seja pela socialização ao nível da família dos custos de reprodução.

lg
Além disso, para que se entenda corretamente a dinâmica
das formas não capitalistas de produzir a que se refere Francisco de
vu
Oliveira, seria preciso evitar interpretá-las, como faz o autor, como
di

“bolsões de subsistência” ocupados por “pseudoproprietários”.


A noção de que os trabalhadores envolvidos nessas atividades
de

são pseudoproprietários sugere muito fortemente que eles estão


sob o domínio do capital. Embora seja inegável que as formas não
capitalistas de produzir estão subordinadas à produção capitalista,
ar

aquela noção obscureceria o fato de que o que se chama nesta


pl

introdução de “produção independente”, exatamente por não estar


diretamente subordinada ao capital, se adapta perfeitamente a
em

suas possibilidades de realização. E isto de duas formas, como


fica claro nos dois textos de Machado da Silva. Em primeiro lugar,
Ex

ao baixo poder aquisitivo de seu mercado – através, por exemplo,

ele contribui para aumentar a taxa de exploração da força de trabalho, pois o seu
resultado – a casa – reflete-se numa baixa aparente do custo de reprodução da força
de trabalho – de que os gastos com habitação são um componente importante – e
para deprimir os salários reais pagos pelas empresas” (Oliveira, 1972, p. 31).
5
“A solução [para a exiguidade inicial dos fundos disponíveis para a acumulação] é
encontrada fazendo os serviços crescerem horizontalmente, sem quase nenhuma
capitalização, à base de consumo quase único da força de trabalho e do talento
organizatório de milhares de pseudo pequenos proprietários, que, na verdade, não
estão mais senão vendendo sua força de trabalho às unidades principais do sistema,
mediadas por uma falsa propriedade que consiste numa operação de pôr fora dos
custos internos de produção fabris a parcela correspondente aos serviços” (Oliveira,
1972, p. 39).
Parte 2 Trabalho e cidade | 209

do estabelecimento flexível de preços, como é mostrado no artigo


sobre trabalho feminino. Em segundo lugar, ao caráter instável
da remuneração da classe trabalhadora em geral, por meio, por
exemplo, da administração personalizada da instituição do “fiado”
(veja-se, dentre outros, o artigo sobre pequeno comércio, capítulo 2
neste livro).
Finalmente, deve-se notar que a noção de “economia de
subsistência” explica muito pouco das condições de sobrevivência na
cidade, onde praticamente todos os itens necessários à reprodução
da força de trabalho são monetarizados (isto é, compõem-se de
mercadorias). Assim, é empiricamente incorreto afirmar, como o

ão
faz Francisco de Oliveira (Cf. nota 3), que – por exemplo – o item
habitação é parcialmente coberto por trabalho não pago, na


medida em que muitas residências são construídas pelos próprios

lg
proprietários. Neste caso particular, seria mais correto afirmar que
uma parcela das residências das camadas populares é produzida por
vu
produtores independentes a baixo custo, e num ritmo compatível
di

com a capacidade de endividamento dos compradores. Além


disso, não pode também deixar de ser notado que uma parcela
de

das atividades de comercialização realizadas por trabalhadores


independentes representa, em contrapartida à flexibilidade acima
mencionada, grande acréscimo de custo para os compradores, uma
ar

vez que a venda a varejo, nestes casos, é quase sempre feita a preços
pl

muito mais altos que os da rede capitalista de comercialização (veja-


se o artigo sobre pequeno comércio).
em

Se o argumento acima esboçado é correto, algumas


conclusões podem ser tiradas. Em primeiro lugar, seria necessário
Ex

abandonar a noção de que os trabalhadores envolvidos com formas


não capitalistas de produzir são “pseudoproprietários”, o que
indicaria uma relação direta (embora não imediata, sob a forma de
salário) entre o trabalho em sua forma não capitalista e o capital, e
introduzir a ideia de que a articulação que existe se dá entre formas
distintas de produzir. Desta maneira ficaria mais claro que as formas
não capitalistas de produzir merecem mais atenção do que permite
a ideia de que elas apenas camuflam a relação entre o capital e certas
parcelas da força de trabalho. Este ponto torna-se mais claro se se
levar em consideração as instâncias em que formas não capitalistas
podem se articular diretamente, mesmo ao nível da produção, com
formas capitalistas. Veja-se, a este respeito, as referências à produção
210 | Luiz Antonio Machado da Silva

artesanal (de “produtores independentes”) de peças para certos


ramos industriais, no artigo de Mello Marin.6
Seria interessante observar ainda que as formas não
capitalistas de produzir parecem ser também responsáveis
pela reprodução do exército de reserva, vindo a substituir e/ou
complementar os salários indiretos (fringe benefits, previdência
social, etc.). Sob esse aspecto, ao mesmo tempo que produzem
riqueza, as formas de produzir não capitalistas podem funcionar
como uma espécie de redistribuidoras da massa de salários paga
pelo capital. Isto porque, se bem que em algumas instâncias seja o
próprio capital que remunera o trabalho nelas envolvido – como, por

ão
exemplo, no caso mencionado de produção de peças para a indústria
–, em outras é a própria remuneração dos trabalhadores que garante


sua permanência – como no contexto do trabalho a domicílio e no
pequeno comércio.
lg
Finalmente, deve-se notar que as referências a forças
vu
capitalistas e não capitalistas de produzir não têm, necessariamente,
di

que desembocar em conclusões que postulem a heterogeneidade


fundamental da classe trabalhadora, como é o caso de alguns
de

trabalhos em torno do que se tem chamado de “teoria da


marginalidade”.7 Assim, o trabalho de Mello Marin demonstra de
forma clara que, apesar da diferenciação – mesmo dentro da fração
ar

operária (assalariada) dos grupos de trabalhadores estudados –


pl

em termos da inserção no processo produtivo, existem profundas


semelhanças nos respectivos padrões de consumo. Ao mesmo tempo,
em

a maior parte dos artigos que se seguem indica que a experiência de


trabalho desses grupos engloba a vivência de formas capitalistas e
Ex

não capitalistas de produzir – seja diretamente, ao nível do trabalho


individual, seja indiretamente, ao nível da família. Conjugados, esses
dois pontos sugerem que continua válido pensar numa “massa

6
Dito de outra maneira, o que se está sugerindo é que as formas não capitalistas de
produzir devem ser analisadas a partir de um enfoque que evite dois tipos de erro.
O primeiro deles, já bastante criticado, parte da noção de uma espécie de “dualismo
urbano”: tratar-se-ia de um setor da economia (e, portanto, de uma parcela da força
de trabalho) não integrado à produção moderna. O segundo, que provém talvez
de uma reação exagerada a essa perspectiva, dilui as formas não capitalistas de
produzir, transformando-as numa mera camuflagem, para relações de produção
capitalistas – como parece ser o caso do artigo mencionado de Francisco de Oliveira.
7
Os textos mais conhecimentos são os de Nun (1969) e Quijano (1966, 1973).
Parte 2 Trabalho e cidade | 211

proletária” que, apesar de internamente diferenciada, pode ser vista


como uma unidade.8

***

Dentre as duas situações polares indicadas no início deste
artigo, o que significa a “completa dependência do capital”? Esta
expressão estaria designando aqui a situação de fábrica com vila
operária, em que, então, a “completa dependência” se referiria não
somente àquela que se estabelece entre o produtor direto e o seu

ão
patrão ao nível do trabalho, mas também à que se estabelece, entre
esses mesmos atores, ao nível da moradia; não somente, portanto,


com relação à produção, mas o capital controlando também a

lg
própria materialização da reprodução do trabalhador. (Essa situação
constitui o quadro de referência de três dos artigos que se seguem,
vu
o de Jorge Eduardo Saavedra Durão, o de M. Rosilene Barbosa Alvim
di

e o de J. Sergio Leite Lopes). No entanto, tal expressão poderia estar


designando, ainda, a situação de um emprego regular em que o capital
de

não controla a esfera de reprodução do trabalhador (moradia, etc.),


ar

8
Cardoso (1972, p. 180) coloca de forma particularmente clara a questão num artigo
em que comenta os trabalhos mencionados na nota anterior: “Aqui, novamente
pl

partem [Quijano e Nun] no meu modo de entender, da pergunta pertinente a partir


em

da perspectiva adotada: dado o proletariado latino-americano em formação, os


marginais fazem parte dele ou existem linhas de ruptura entre os dois grupos? É claro
que a nível teórico a resposta a esta pergunta depende diretamente da elucidação
Ex

das questões anteriores, pois se a massa composta pelos trabalhadores e pelos


desocupados (mesmo que ‘excessivos’) é a mesma – isto é, pode ser conceituada
economicamente como massa proletária – podem ocorrer diferenças nas formas
de solidariedade, de organização e de mobilização entre os diferentes grupos
concretos (de operários ou de desocupados, subempregados, etc), porém estas
diferenças ocorrerão sempre no contexto de uma ‘situação comum de interesses’. As
possíveis diferenças serão, principalmente, de dois tipos: devidas à variação entre
graus de consciência de classe (da consciência dos interesses comuns) ou devidas
a distintos graus de organização dos setores da classe trabalhadora, considerando-
se os marginais como parte integrante dela. Porém, em qualquer um dos casos, se
é verdadeira a identidade que se supõe na caracterização do ‘exército de reserva
excessivo’ entre os dois setores da classe operária, a dinâmica política desses dois
setores da classe operária estará subordinada – como assinalaram corretamente
Nun e seus colaboradores – à capacidade que tenha algum setor da classe de exercer
hegemonicamente o papel de unificador político do conjunto”.
212 | Luiz Antonio Machado da Silva

mas apenas a esfera da produção. (Esse seria o quadro de referência


do artigo de M. Cristina Mello Marin). Aqui, se a “dependência” ao
capital seria “incompleta”, pelo fato mesmo de seu não controle da
esfera da reprodução do trabalhador, deve-se, porém, considerar o
produtor direto – para reforçar sua caracterização como integrante da
situação polar ora sob análise – como vendendo sua força de trabalho
exclusivamente a um só patrão, sem que exerça qualquer “ocupação
acessória” (e aqui tal não é mais o caso do artigo de M. Cristina
Mello Marin, que ressalta essas “ocupações acessórias” exercidas
por operários fabris). E, para radicalizar mais esta caracterização
– que não deixa de estar suposta implicitamente quando se pensa

ão
no proletário fabril “clássico”, vendendo sua força de trabalho em
contrapartida de uma remuneração fazendo subsistir a si próprio e


sua família –, tal produtor direto seria o único a trabalhar no seu

lg
grupo doméstico, o qual viveria somente do salário que lhe advém
de sua única ocupação.
vu
Assim, se por um lado o significado mesmo da expressão
di

“completa dependência do capital” como situação polar oposta


à “completa independência do capital” leva a uma explicação
de

que subdivide tal situação em duas outras – em que uma delas


ressalta o fato de a dominação do capital exercer-se diretamente
tanto na esfera do trabalho quanto na esfera da reprodução do
ar

trabalhador, e a outra ressalta a dependência do trabalhador e de


pl

sua família a uma única relação de emprego monopolizando toda


a atividade remunerada dessa família –, por outro lado, ela deve
em

sofrer um processo de matização e relativização quando se passa


da caracterização das situações polares para a sua análise interna.
Ex

Por exemplo, nada nos garante a relevância da suposição de que o


aqui caricaturado “proletário fabril clássico” não exerce uma outra
“ocupação acessória”, ou que outros membros de sua família não
percebam uma remuneração, se por definição o patrão não controla
outras esferas da vida do trabalhador que não a que exerce dentro
de sua fábrica. Nada impede, assim, ao trabalhador exercer uma
“ocupação acessória” que acrescenta renda ao orçamento familiar,
ou dele faça diminuir algumas despesas, nem muito menos que
outros membros de seu grupo doméstico exerçam uma atividade
remunerada independentemente da ocupação principal do “chefe
de família”. Tais restrições ao exercício de “ocupações acessórias”
pelo trabalhador ou outros membros de sua família poderiam ter
Parte 2 Trabalho e cidade | 213

sua vigência reduzida ao caso da fábrica com vila operária, em que


o domínio do capital ultrapassa a esfera do trabalho e penetra na
esfera doméstica dos trabalhadores.
No entanto, mesmo na situação da fábrica com vila operária,
existiria lugar para formas de trabalho “independente”, seja como
“ocupação acessória” para trabalhadores da fábrica, seja como
ocupação principal para outros membros da família do operário
que não trabalhem na fábrica. A concessão de pedaços de terra
para roçado pela administração da fábrica ao trabalhador, para que
aí exerça um trabalho agrícola para sua complementação alimentar
ou também destinado à venda dos produtos assim obtidos; a

ão
possibilidade do pequeno comércio de bairro, quer na feira, quer
em barracas isoladas nas ruas; as diversas modalidades de trabalho


doméstico que revertem em um minicomércio vicinal (Cf. Alvim,

lg
1972); são algumas dessas formas de trabalho “independente”
exercidos no seio mesmo do território da fábrica com vila operária.
vu
A amplitude daquilo que vai designado aqui como formas de
di

“trabalho independente” inclui tipos de trabalho em que o produtor


direto, embora não sendo proprietário dos meios de produção,
de

tem, contudo, um certo controle, dentro de parâmetros dados,


sobre as condições de produção, apropriando-se dos frutos desse
trabalho. É certo que tal produtor direto “independente”, nessa
ar

situação, depende da concessão do patrão ou da administração da


pl

fábrica para exercer sua atividade, concessão esta que poderia vir
a ser cassada a qualquer momento. Tal seria o caso com relação
em

à concessão de terras para roçado, ou quanto à permissão para o


estabelecimento de uma barraca em um ponto qualquer da vila
Ex

operária para o exercício de um pequeno comércio, e mesmo


poderia ser o caso quanto à permissão de entrada de um pequeno
comerciante para negociar em feiras eventualmente controladas
pela fábrica. Somente as diversas formas de trabalho doméstico
voltadas para um minimercado vicinal dificilmente poderiam
ser proibidas ou desestimuladas pela administração da fábrica,
sob pena de um controle obsessivo sobre a esfera doméstica e a
vida cotidiana das famílias operárias que fariam aproximar a vila
operária não apenas das modalidades de controle sobre uma força
de trabalho celibatária nos acampamentos de obras públicas, de
obras de construção civil, ou de certos trabalhos fabris temporários
ou sazonais, mas também a fariam aproximar-se da forma prisão.
214 | Luiz Antonio Machado da Silva

O fato é que muitas fábricas com vila operária, fábricas que


praticariam uma “imobilização da força de trabalho pela moradia”,
abrem um certo espaço para que seus operários ou membros de suas
famílias exerçam algumas dessas formas de trabalho “independente”,
e que não deixam de ter sua importância no próprio funcionamento
do sistema fábrica com vila operária. Em particular as fábricas que
se aproveitam de recursos naturais monopolizáveis estabelecendo
um funcionamento com tendências autárquicas quanto aos insumos,
como é o caso das usinas açucareiras ou de certas fábricas têxteis,
podem durante períodos determinados até mesmo estimular
tais atividades “independentes”. O modelo dessa simbiose entre

ão
“trabalho sob domínio do capital” e “trabalho independente” pode ser
encontrado na plantation tradicional, na relação entre proprietário


e morador, contrariando as aparências de um domínio completo da

lg
vida cotidiana do morador pelo proprietário. Estabelece-se ali um
“contrato” informal em que, como contrapartida do usufruto de uma
vu
casa – e uma casa que inclui parte das condições para satisfação das
necessidades de consumo da casa: terreiro para criação de animais,
di

roçado anexo à casa ou distanciado dela e, por vezes, um sítio com


de

árvores frutíferas para moradores privilegiados –, o morador tem


que trabalhar alguns dias nas tarefas exigidas nas áreas “produtivas”
da fazenda (Cf. Palmeira, 1976). O morador tradicional exerce,
ar

assim, uma série de atividades em que detém o controle do processo


pl

produtivo e se apropria do produto. E a possibilidade de acesso a


este limitado trabalho para si no roçado e na casa é de importância
em

central, do ponto de vista do morador, para que este trabalhe e more


subordinado ao proprietário da terra nas condições constitutivas
Ex

da morada. Se, do ponto de vista do morador tradicional, o trabalho


para si no seu roçado é como que sua “ocupação principal”, os
roçados eventualmente concedidos a operários trabalhando nas
usinas açucareiras ou em fábricas com disponibilidade de terras
não passam de “ocupações acessórias” diante das longas jornadas
de trabalho exigidas nas fábricas. No entanto, eles não deixam de
existir, havendo mesmo a estratégia por parte de alguns operários –
observada principalmente entre os operários do açúcar, mas também
entre operários mais antigos de fábricas têxteis – de procurarem
lugares menos estratégicos no processo produtivo da fábrica, sujeitos
a remunerações inferiores, mas de condições ambientais mais
favoráveis, e exigindo menor intensidade do trabalho, para poderem
Parte 2 Trabalho e cidade | 215

dedicar-se mais às suas “ocupações acessórias”, tais como o roçado


ou atividade de “fundo de quintal”. Se o roçado é mais generalizado
entre os operários do açúcar pela maior disponibilidade de terras
das usinas e pela ligação rural acentuada das famílias operárias com
as famílias de trabalhadores rurais, ele não deixa, porém, de existir
nas fábricas têxteis com disponibilidade de terras – embora aí haja a
tendência, livres que estão os operários da forma barracão existente
nas usinas, ao desenvolvimento de um trabalho “independente”,
canalizando-se para as atividades de pequeno comércio. Tais
atividades, controladas pelas fábricas com vila operária no apogeu
de sua dominação sobre a vida cotidiana das famílias operárias,

ão
prestando-se, entretanto, mais dificilmente a esse controle, não
representando a ameaça que constituem terras de propriedade de


fábrica, ocupadas por uma pequena agricultura de “quintal”, e desde

lg
que não façam concorrência a uma forma de barracão dificilmente
operante em áreas próximas a cidades maiores, parecem ter um
vu
destino inverso ao dos roçados operários. Enquanto estes últimos
di

tendem a desaparecer, o pequeno comércio, ao contrário, tende a


desenvolver-se fugindo ao controle da administração da fábrica.
de

No entanto, antes de nos referirmos a essa desagregação


da convivência entre o “trabalho assalariado” e o “trabalho
independente” sob os domínios do capital, devemos assinalar que tal
ar

convivência, na época do apogeu do funcionamento das fábricas com


pl

vila operária, se passava como se o processo de produção na fábrica


se desse sob a forma da “submissão real do trabalho ao capital”,
em

enquanto que as formas de “trabalhado independente” exercidas


pelos trabalhadores e suas famílias na esfera de sua reprodução,
Ex

sob o controle da fábrica, apareceriam sob uma forma atenuada de


“submissão formal do trabalho ao capital”.9 Essa peculiar forma de
submissão ao capital, que abre um certo espaço para o exercício de
atividades “independentes” ou “por conta própria” com recursos e
autorizações concedidos pela administração da fábrica, não deixa de
ser uma forma indireta de extração da mais-valia, se olhamos esse
trabalho por conta própria como uma extensão disfarçada da jornada

9
Utilizamos, para os fins deste artigo, as expressões “submissão formal do trabalho
ao capital” e “submissão real do trabalho ao capital” constantes na tradução francesa
do “capítulo inédito do Capital”, em vez das expressões provavelmente mais corretas
de “subsunção formal” e “subsunção real do trabalho ao capital” (Cf. Marx, 1971, pp.
191-223). Ver também a noção de apropriação real em Balibar (1971).
216 | Luiz Antonio Machado da Silva

de trabalho em que o trabalhador vai completar o necessário à sua


subsistência que já devia estar assegurada pelo seu salário. Todavia,
o fato de essa suposta extensão da “jornada de trabalho” atualizar-
se fora da cooperação capitalista da fábrica, “por conta própria”,
faz dela um tempo de trabalho a ser considerado analiticamente
em sua especificidade, e não reduzido a uma “jornada de trabalho”
capitalista à qual falta justamente a relação de apropriação
real. Cabe aqui se reforçar o argumento já lançado na primeira
parte deste artigo a respeito da importância da consideração de
articulação entre formas não capitalistas de produção com as formas
capitalistas, atentando-se para a não absorção analítica daquelas nas

ão
formas capitalistas dominantes. Lá, este argumento batia-se contra
o achatamento provocado pela noção de “pseudoproprietários”


aplicada a trabalhadores por conta própria; aqui, ele se bate pelo

lg
reconhecimento da especificidade histórica de diferentes formas de
subordinação de trabalhadores fabris ao capital. A especificidade
vu
do caso em análise, de trabalhadores subordinados ao sistema
di

fábrica com vila operária, é que as formas não capitalistas que se


combinam com a forma capitalista dominante, controlando aquelas
de

formas permitidas por ela em seu território, são não somente formas
“camponesas” ou “mercantis simples”, mas também formas “servis”:
tanto o roçado como o pequeno comércio dependem, para serem
ar

exercidos, de concessões e autorizações do proprietário territorial


pl

que, no caso, coincide com o capitalista na mesma pessoa. Essa


coexistência do “trabalho independente” tendo um certo controle
em

dos meios de produção, com uma dominação política de proprietário


territorial a condicionar a própria atividade agrícola ou mercantil
Ex

de seus súditos não é estranha, por sinal, às formas de produção


feudais. E o que interessa é que a forma específica de subordinação
do trabalhador ao capital tem uma influência importante sobre a
própria evolução dessas fábricas com vila operária, sobre a forma
de legitimidade da dominação aí exercida do capitalista sobre o
trabalhador, assim como sobre a decadência e desagregação dessa
mesma forma de dominação. Se a prática do cultivo de um roçado
da parte de operários em seus tempos livres faz relativizar – com
esse esforço extra para uma complementação alimentar que deveria
estar garantida pelo salário – o “fetichismo do salário” na mente
dos operários, se essa prática abala, enquanto “corveia invertida”,
a legitimidade do capitalista diante de seus trabalhadores, ela, por
Parte 2 Trabalho e cidade | 217

outro lado, é um dos elementos que compõem a legitimidade da


dominação do proprietário territorial sobre os mesmos trabalhadores,
contrabalançando, assim – o capitalista e o proprietário territorial
concentrando-se no mesmo agente social –, aquela relativação (Cf.
Leite Lopes, 1976, pp. 116-122). A administração por parte da
fábrica dessa esfera de atividades exterior ao trabalho fabril e que
penetra na própria maneira como se materializa a reprodução dos
trabalhadores e suas famílias, através de formas como o roçado ou a
feira a preços administrados, são, deste modo, elementos importantes
na legitimidade da forma de dominação exercida pela fábrica no seu
período de apogeu aos olhos dos trabalhadores. Assim, também a

ão
legitimidade dessa administração pela fábrica não só do processo
de produção fabril, mas da própria reprodução do trabalhador,


garantindo, à semelhança da plantation tradicional, um “pleno-

lg
emprego diferenciado” (Cf. Palmeira et al., 1977), tem seus pontos
positivos explicitamente atuais, quando comparam aquela situação
vu
passada à atual escassez de emprego e à maior dependência a um
di

salário monetário insuficiente. Esse é um lado da medalha. O outro


lado é a luta travada pela autonomização da esfera de atividades
de

exterior à fábrica, pelos trabalhadores, pela manutenção da posse


dos terrenos concedidos para roçado em vias de expropriação,
pela liberdade de venda dos produtos do roçado em outras praças
ar

de mercado que não a feira controlada pela fábrica, luta esta que
pl

contribui para a própria decadência do sistema fábrica-vila operária.


A luta contra a expropriação dos roçados e outras concessões
em

extramonetárias vem somar-se à luta contra a superexploração


dentro da fábrica e à luta – que permeia as outras – por direitos de
Ex

cidadania. E é assim que, com a tendência à autonomização da esfera


doméstica dos trabalhadores e das atividades exercidas fora do
trabalho fabril, o sistema fábrica-vila operária entra em decadência.
Se, no início deste artigo, vimos que o salário seria um
denominador comum das atividades dos diversos grupos de
trabalhadores estudados nos artigos que se seguem, podemos, a esta
altura, relativizar tal ponto comum a partir da própria ênfase, dada nos
textos, na consideração da articulação dos aspectos não capitalistas
das formas de produzir com as formas capitalistas dominantes. Esses
aspectos aparecem tanto no quadro do “trabalho independente”
analisado em duas de suas formas variantes nos dois artigos de
Machado da Silva e estudado a partir de formas “previdenciárias”
218 | Luiz Antonio Machado da Silva

envolvendo a associatividade dos trabalhadores no artigo de Barreto


Teixeira, quanto no quadro da dominação fabril, no qual a família é
ressaltada no artigo de Barbosa Alvim como articulando diferentes
formas de produzir, dispondo de atividades “quase-invisíveis” aos
olhos de observadores externos que contribuem para a reprodução
do grupo, e em que o trabalho artesanal em pequenas oficinas tem
um importância central na estratégia de trabalho de operários
metalúrgicos de manutenção que, além de consumirem seu tempo
em sua jornada normal de trabalho em fábricas da “era Sudene”
da industrialização do Nordeste, ainda trabalham no seu tempo
livre nas mencionadas oficinas, no artigo de Melo Marin. Por outro

ão
lado, se o salário no quadro da dominação fabril tem por efeito
esconder – através de sua forma mercantil, como relação entre dois


livres contratantes – a materialização mesmo dessa dominação,

lg
escondendo também o seu resultado, a extração da mais-valia,
menor relevância analítica tem ele tanto na análise da fábrica com
vu
vila operária em que a dominação da fábrica – mediada pelo que
poderia ser considerado, da ótica do salário, como salários in natura
di

– se estende à esfera doméstica do trabalhador (Cf. artigo de Leite


de

Lopes), quanto na análise de aspectos não mercantis do mercado de


trabalho dos operários têxteis estudados por Saavedra Durão. Sem
dúvida que o salário é um ponto nodal na vida dos diversos grupos
ar

de trabalhadores estudados nos artigos que se seguem, e em torno


pl

do qual gira a vida da “massa proletária” urbana, mesmo aqueles


grupos de produtores independentes pesquisados nos artigos de
em

Machado da Silva. Trata-se, no entanto, aqui de ressaltar, por um


lado, como esses grupos de trabalhadores se reproduzem com
Ex

outras formas complementares de remuneração além do salário


e, por outro, como o salário é insuficiente como explicação da
anatomia da dominação de tais grupos de trabalhadores pelo capital.
Põe-se, assim, em evidência a especificidade histórica das diferentes
formas de subordinação de diversos grupos de trabalhadores ao
capital, mesmo apenas internamente aos trabalhadores urbanos, ao
contrário de muitas análises que tendem a apagar uma diversidade,
que justamente interessa descobrir, em benefício de uma unificação
analítica prematura em termos de uma onipresença das relações
capitalistas e de uma consequente proletarização que igualiza
Parte 2 Trabalho e cidade | 219

caricaturalmente todos os produtores diretos.10 A convergência a ser


trabalhada analiticamente e a ser posta à prova historicamente entre
os diferentes segmentos dessa massa proletária não deve passar por
cima do fato de sua diversidade constitutiva.

***

Diferentes formas de subordinação dos trabalhadores


ao capital estão presentes no espectro de situações enfrentadas
pelos grupos de trabalhadores estudados nos artigos que se
seguem. Embora sem uma seleção premeditada de tais grupos

ão
visando efeitos de abrangência dos grupos mais representativos
do proletariado urbano nordestino, os textos, no entanto, referem-


se a um leque tal que abarca alguns dos principais segmentos da

lg
massa proletária historicamente existente naquela região, desde os
operários das fábricas com vila operária; passando pelos operários
vu
trabalhando em pequenas oficinas, onde exercitam, com perfeição
di

maior que na fábrica, a sua profissão, e pelos grupos de produtores


diretos trabalhando sob formas de “produção independente” seja a
de

domicílio, seja no pequeno comércio; até os operários das fábricas


surgidas de uma industrialização mais recente, posterior à Sudene.
Contudo, mais que essa abrangência, os artigos aqui apresentados
ar

nos permitiriam avançar algumas hipóteses, ultrapassando a sua


pl

evidência empírica, dando conta em linhas esquemáticas e gerais


do movimento histórico de mudança social que teria ocorrido junto
em

à massa proletária urbana, introduzindo, assim, alguns pontos de


ligação, sob o prisma da modificação das formas de subordinação dos
Ex

trabalhadores ao capital, entre os grupos sociais investigados. Não se


pretende aqui fazer a reconstituição histórica desse processo, o que

10
Para permanecermos nos autores já citados, poderíamos tomar o artigo
sobre “acumulação capitalista, Estado e urbanização” de Oliveira (1976) como
representativo dessa tendência que aqui criticamos, paradoxalmente inspirados,
para essa crítica, no artigo sobre a “crítica à razão dualista” do mesmo Oliveira –
artigo cuja tese central reforça o nosso argumento e que em diversas passagens
coincide com as análises presentes nos artigos que se seguem e nesta introdução
– e em passagens do seu livro sobre o “planejamento e o conflito de classes” (Ibid.,
1977), os quais, não tratando do proletariado e do campesinato como manifestações
de um fenômeno universal já definido a priori pelas leis escolásticas do estudo do
capital da ótica do capital, fazem, ao contrário, análises mais sugestivas sobre os
produtores diretos brasileiros do ponto de vista da força de trabalho.
220 | Luiz Antonio Machado da Silva

exigiria um trabalho historiográfico de vulto, mas apenas organizar


as ideias em torno de um processo que permitiria estabelecer
ligações entre os diversos grupos estudados. Desnecessário é,
portanto, enfatizar mais o caráter heurístico desse procedimento.
Olhando os grupos de trabalhadores pesquisados como
resultante de um processo de formação do proletariado urbano
que nos é desconhecido, poderíamos estabelecer alguns marcos
desse processo a partir das informações apresentadas pelos
artigos. Um primeiro marco do processo pode ser representado
pelos trabalhadores submetidos ao “sistema fábrica-vila operária”,
o qual sintetiza e concentra simultaneamente um processo de

ão
“descampesinamento” – sustentado por um aliciamento direto de
mão de obra pela fábrica no campo, provocando secundariamente um


“aliciamento” espontâneo de novos membros por parte das famílias

lg
operárias – que só existe para ser transformado imediatamente
em um processo de “obreirização”. Não queremos dizer que
vu
o “campesinato” passou necessariamente por um período de
di

imobilização nas fábricas com vila operária, antes de ter as condições


de mobilidade profissional geralmente associadas ao proletariado
de

urbano. Ao contrário, muitas fábricas, oficinas e lugares de trabalho


urbanos recrutavam trabalhadores já estabelecidos na cidade por
um movimento próprio de “descampesinamento” e “proletarização”,
ar

enquanto as fábricas que mais se utilizavam de um aliciamento


pl

direto de força de trabalho no meio rural é que se estabeleciam


na periferia deste “mercado de trabalho” fabril, engrossando-o
em

de novos contingentes vindos do campo. No entanto, as fábricas


utilizavam-se largamente de formas de imobilização da força de
Ex

trabalho pela moradia, caracterizando um estilo de industrialização


no que diz respeito à relação com sua mão de obra. Dentre elas, as
que se utilizavam de formas diretas de aliciamento no meio rural,
multiplicando um “aliciamento” espontâneo paralelo, alimentavam
a partir do “descampesinamento” os contingentes que circulariam
pelas fábricas segundo as regras próprias desse “mercado de trabalho”
específico, aliando as tendências contraditórias da imobilização
pela vila operária e a circulação conforme a importância dos grupos
profissionais (Cf. o artigo de Saavedra Durão para o funcionamento
atual desse “mercado de trabalho” centrado em operários têxteis
de uma cidade regional, cujas preocupações poderiam estender-se
em um segundo momento para o funcionamento desse “mercado
Parte 2 Trabalho e cidade | 221

de trabalho” no passado). Tomamos, assim, essas fábricas com


vila operária como representativas de um primeiro momento da
formação do proletariado urbano da área, possuindo características
comuns abarcando desde as usinas açucareiras espalhadas no
meio rural canavieiro até as fábricas têxteis urbanas. Como vimos,
essas fábricas com vila operária sintetizam e concentram sob o
seu controle um processo de “descampesinamento” que só existe
para reverter-se imediatamente em um processo de “obreirização”.
Esses contingentes operários concentrados nessas fábricas – cuja
magnitude se ressalta por contraste tanto com as posteriores
“modernizações” de equipamentos e reorganizações da produção,

ão
modificando a composição técnica do capital, sofridas por essas
fábricas, quanto com a exiguidade relativa de empregos oferecidos


pelas fábricas instaladas na era pós-Sudene –, em geral, eram não

lg
somente submetidos à administração da empresa no processo de
trabalho, mas também na esfera doméstica e de reprodução do
vu
trabalhador. Deste modo, a fase de apogeu das fábricas consideradas
di

nos artigos dispostos a seguir, particularmente nos de Barbosa


Alvim e Leite Lopes, e também no de Saavedra Durão, é um exemplo
de

extremo, dentro da variação interna entre as fábricas sobre a esfera


doméstica e de reprodução do trabalhador, quanto à existência
desse processo de transformação imediata do campesinato em
ar

operariado fabril. Parece, diga-se de passagem, um paradoxo que,


pl

justamente na fase em que a industrialização nordestina concentra


o maior contingente de operários em suas fábricas, ela o faça com
em

uma forma de controle sobre a esfera doméstica de seus operários


que descaracterizaria o “trabalhador livre” que é o “proletário
Ex

clássico”. Essa descaracterização refere-se principalmente às formas


de imobilização da força de trabalho pela moradia, a presença da vila
operária conferindo ao patrão um poder de dominação reforçado
que se origina do fato da concentração nas mesmas mãos do capital
industrial e da propriedade territorial. Por outro lado, as tendências
autárquicas desenvolvidas por essas fábricas em sua fase de apogeu
permitiam a existência de formas de “produção independente” ou de
uma atividade mercantil, embora sob o controle mesmo da fábrica.
Tanto a imobilização da força de trabalho quanto as
formas de “produção independente” terão seu papel no processo
de desagregação dos casos limite de fábricas com vila operária
examinados nos artigos. A expropriação dos roçados vem reforçar
222 | Luiz Antonio Machado da Silva

o sentimento da insuportabilidade de uma dominação por parte


da fábrica sobre a esfera extratrabalho fabril dos operários que se
soma à luta por direitos de associação sindical e outros direitos de
cidadania em uma arena onde o monopólio da dominação política
é consequência de concentração do capital e da propriedade
territorial nas mesmas mãos. E as formas de pequeno comércio que
se desenvolvem tornam-se como que uma alternativa de emprego
para muitos operários, fazendo com que as famílias operárias
dependessem relativamente menos da fábrica. O fato é que, com
o início da desagregação da fábrica com vila operária, se instaura
paralelamente um processo de “desobreirização”, a própria fábrica

ão
lançando mão de vagas de dispensa de mão de obra decorrentes
de reorganizações no processo produtivo levadas a cabo com tanto


mais impetuosidade quanto a atividade sindical dos operários vem

lg
quebrar aos olhos da fábrica o equilíbrio “patriarcal” anterior.
O processo de “desobreirização” que é correlativo à
vu
decadência das fábricas com vila operária desemboca em três vias
di

de transformação. Por um lado, existe a via do pequeno comércio


que representa não somente uma “desobreirização” no sentido de
de

um desvinculamento com a fábrica, mas também com qualquer


profissão de trabalho manual podendo ser exercida em pequenas
oficinas. Com efeito, a maior parte dos operários das fábricas têxteis
ar

exercem profissões “produtivas”, remuneradas à base do salário


pl

por produção, e que são profissões que dependem da fábrica, de


suas máquinas e de sua forma de cooperação para serem exercidas.
em

Fora das fábricas, não há lugar para continuar na profissão, e a


“desobreirização” acompanha-se de uma “desprofissionalização”. A
Ex

via do pequeno comércio só não é uma “desobreirização” completa,


porque, por outro lado, ela suporta, ao nível do grupo doméstico, uma
administração da força de trabalho familiar em que alguns de seus
membros continuam operários e, portanto, sujeitos à instabilidade
de seus empregos. O pequeno comércio de feira ou de barracas não só
complementa o orçamento doméstico no qual entram rendimentos
obtidos do trabalho fabril, como representa um apoio ativo na luta
dos operários contra a fábrica e uma atividade propícia a absorver
os operários demitidos após um período de questão com a fábrica.
Em contrapartida, a atividade operária anterior na fábrica tem
sua importância no estabelecimento do pequeno negócio e no seu
desenvolvimento, como mostra o artigo de Machado da Silva sobre
Parte 2 Trabalho e cidade | 223

os pequenos estabelecimentos comerciais. Sendo uma via tomada


pelos operários das fábricas com vila operária em decadência, o
pequeno comércio é, no entanto, mais geralmente, um desaguadouro
para onde convergem operários de diversos tipos de fábrica ou de
outras atividades manuais em empresas ou administrações públicas.
A segunda via de transformação tomada pelo processo de
“desobreirização” oriundo da decadência das fábricas com vila
operária é uma via que desvincula os trabalhadores das fábricas, mas
não de uma profissão manual. Os operários ligados às atividades
de manutenção de fábrica ou possuindo alguma profissão ou
treinamento prático que pode ser exercido independentemente

ão
das máquinas e da cooperação fabril poderão trabalhar nas
inúmeras oficinas de reparação e manutenção que proliferam nas


grandes cidades da área. Em particular as oficinas de reparação

lg
de automóveis, com a instalação da indústria automobilística no
Sul, destacam-se dentre essas oficinas (Cf. Oliveira, 1972, p. 28),
vu
assim como as de fabricação de artigos utilizados pela população
di

proletária, mencionadas no artigo de Mello Marin. Uma outra forma


de exercício de profissões manuais em condições artesanais ou
de

próximas ao “trabalho independente” é a conversão de operários


fabris, ou trabalhadores de outros tipos de empresa, ou portuários,
etc., em pedreiros e atividades afins na construção de casas nos
ar

bairros populares, em torno de um mercado vicinal de construção.


pl

Já as oficinas tendo por atividade o conserto ou a fabricação de


peças e ferramentas para as fábricas surgirão com a nova fase de
em

industrialização pós-Sudene em que as formas de articulação entre


oficina e fábrica analisadas no artigo de Mello Marin proporcionam
Ex

aos operários profissionais um exercício aperfeiçoado de sua


profissão – em que esta pode dar vazão à sua capacidade criadora e
inventiva no ambiente artesanal dos serviços dessas oficinas.
Essa nova fase de industrialização pós-Sudene é que vem
dar a tônica da terceira via de transformação por que passa esse
processo geral de “desobreirização” correlativo à decadência das
fábricas com vila operária. Essa via, no entanto, representa a nova
face obreira desse processo, sendo mais a negação do tipo de
industrialização com controle direto da esfera doméstica de seus
trabalhadores do que a negação do trabalho fabril ou do trabalho
manual profissional. Essa transformação do operário da fábrica com
vila operária, submetido à fábrica tanto pelo processo de trabalho
224 | Luiz Antonio Machado da Silva

como pela materialização de sua reprodução, em operário fabril


“clássico”, submetido à fábrica pelo processo de trabalho, mas
que está livre dela na esfera exterior ao trabalho fabril, já vem se
desenvolvendo no interior mesmo das fábricas com vila operária. A
própria luta dos trabalhadores contra o controle sobre a sua esfera
doméstica por parte das fábricas com vila operária, as reações a
essa luta por parte dos patrões, as vagas de demissões causadas por
reorganizações na produção modificando a composição técnica do
capital em detrimento do emprego dos operários, vão atenuando as
formas de controle dessas fábricas sobre a totalidade da vida dos
operários. Por outro lado, essas fábricas começam a ter interesse

ão
em desvencilhar-se desse controle sobre a esfera doméstica de
seus trabalhadores, representando um custo que, para elas, começa


a pesar em vista da concorrência com um estilo de acumulação de

lg
capital que se desenvolve sem os entraves decorrentes de despesas
na manutenção de vilas operárias e de propriedades territoriais. Com
vu
efeito, as novas fábricas não exercem nenhum tipo de controle sobre
di

sua mão de obra fora do processo de trabalho. Elas vão representar,


além disso, um mercado de trabalho alternativo possível para os
de

operários das fábricas antigas, dependendo de seu posicionamento


profissional, atuando sobre as antigas fábricas no sentido de adoção
de práticas com respeito à força de trabalho semelhantes às das
ar

fábricas novas. Essas práticas, embora signifiquem o relaxamento do


pl

controle sobre a esfera doméstica dos trabalhadores, intensificam,


porém, a exploração no interior do processo produtivo a um tal grau,
em

que até mesmo a antiga dominação sobre os operários de fábrica


com vila operária começa paradoxalmente a despertar aspectos
Ex

positivos no discurso dos trabalhadores, na sua comparação com


as novas formas de dominação. São adotadas também práticas
“racionalizadoras” de recrutamento de mão de obra, tais como os
testes psicotécnicos, os exames médicos, e outras formas de obstáculo
à entrada de trabalhadores, reforçando uma rarefação dos empregos
disponíveis e desesperando os operários na procura exaustiva de
novos empregos. As novas formas intensificadas de exploração do
processo de trabalho exaurem prematuramente os operadores de
máquinas, provocam formas de concorrência estimuladas entre
os trabalhadores e enquadram de tal maneira os profissionais de
manutenção que estes procuram os serviços nas oficinas quando se
trata de desenvolverem sua profissão.
Parte 2 Trabalho e cidade | 225

Os marcos de referência desse processo de formação do


proletariado urbano partem, assim, dos trabalhadores submetidos
ao “sistema fábrica-vila operária” e desembocam, com o processo de
desagregação desse “sistema”, nas vias aparentemente opostas, por
um lado, das novas formas de “produção independente” tais como
o pequeno comércio ou o trabalho artesanal em pequenas oficinas,
e, por outro, do surgimento de um novo operário fabril “clássico”,
não submetido ao nível da esfera doméstica, mas eventualmente se
desdobrando também, em seu tempo livre, em um trabalho artesanal
complementar. Parte-se de um processo de “descampesinamento”
com imediata “obreirização” para um processo posterior de

ão
“desobreirização”, que é desdobrado na recriação de formas
de “trabalho independente”, seja ao nível do comércio, seja ao


nível artesanal, e no surgimento de uma nova camada operária

lg
não submetida ao nível da esfera doméstica, mas sim às formas
intensificadas de exploração das novas fábricas. Tal processo parece
vu
guardar algumas semelhanças com o de transformação da plantation
di

canavieira estudada por Palmeira, em que o processo de decadência


da moradia e as transformações sociais internas à plantation deram
de

lugar tanto ao surgimento de um proletariado rural representado


pelos trabalhadores rurais expulsos para a rua e pelos moradores
remanescentes com uma relação de moradia redefinida, quanto ao
ar

surgimento simultâneo de um novo campesinato a partir da periferia


pl

da plantation (Cf. Palmeira, 1971; Palmeira et al., 1977). Assim como


naquele processo, o novo campesinato só pode surgir com base na
em

demanda representada por um proletariado rural que perdeu os


recursos da morada; igualmente, o desenvolvimento de formas de
Ex

“trabalho independente” no seio das camadas populares urbanas,


tais como o pequeno comércio e o trabalho artesanal voltado para
o mercado dessas mesmas camadas populares, parece estar ligado
às transformações sofridas por um proletariado que perde o acesso
aos recursos do estilo de industrialização das fábricas com vila
operária e que, por outro lado, tem que se valer cada vez mais do
endividamento oferecido pelo pequeno comércio voltado para ele
diante de um salário real progressivamente reduzido.
Dentro desse processo geral em que pudemos assinalar
alguns marcos de referência com base nas análises produzidas
pelos artigos apresentados, deve-se levar em conta que o processo
descrito não é um processo linear que afeta o mesmo grupo social
226 | Luiz Antonio Machado da Silva

que vai passando por todas as transformações mencionadas. De fato,


pode ocorrer, no ponto de partida, que um número determinado de
operários de fábricas com vila operária tenha sofrido todas essas
transformações, ou, inversamente, no ponto de chegada, que um
operário de uma nova fábrica pós-Sudene tenha sido protagonista
de tais mudanças antes de chegar à sua nova situação. No entanto,
geralmente essas transformações vão realizar-se afetando grupos
sociais diferentes ou pelo menos grupos de trabalhadores diferentes.
Assim, a “reconversão” de um operário das antigas fábricas com vila
operária em um emprego nas novas fábricas pós-Sudene é um fato
excepcional: entre um emprego e outro existe uma decalagem que

ão
é ocupada por todo um grupo social significativo que sofreu uma
piora no seu nível de vida por ter sido privado de suas condições


habituais de trabalho. Nesse processo de “desobreirização” – que

lg
parece ter atingido o seu auge após 1964 com a demissão dos
operários de questão, com os poderes concentrados nas fábricas
vu
para introdução de reorganizações da produção poupadoras de
di

mão de obra, e com a aplicação da “opção” pelo Fundo de Garantia


em que os operários estabilizados eram acuados aos “acordos” e ao
de

afastamento do trabalho –, não deixa de haver uma deterioração nas


condições habituais de reprodução desses trabalhadores, privados
que foram de suas condições habituais de trabalho e de subsistência.
ar

A “reconversão” ao pequeno comércio, ao trabalho artesanal nas


pl

oficinas, ao trabalho fabril nas novas fábricas implantadas e nas


antigas fábricas reorganizadas cabe a outras gerações e a outros
em

grupos de trabalhadores. Esse efeito de decalagem, assinalado por


Marx em O Capital (Cf. Marx, 1969, livro I, tomo 2, cap. XV, tópico
Ex

VI – “A Teoria da Compensação”) e por Thompson na sua análise


de expropriação das condições de produção dos artesãos ingleses
e sua proletarização no início do século XIX – quando ele enfatiza
que, entre os antigos artesãos das pequenas oficinas e os novos
“artesãos” que eram os operários de manutenção das fábricas, havia
um fosso em que os primeiros tiveram suas condições de reprodução
deterioradas, não sendo em absoluto “reconvertidos” nos segundos
(Cf. Thompson, 1968, cap. 8) –, não deixa, assim, de imprimir suas
marcas nesse processo de formação de um proletariado urbano,
marcas representadas pela deterioração brusca nas condições de
trabalho e de reprodução de várias parcelas da massa trabalhadora.
Dessa forma, assistimos, com a deterioração das condições de vida
Parte 2 Trabalho e cidade | 227

de diversos grupos de trabalhadores, à partida para o Sul (assinalada


nos artigos de Saavedra Durão e Mello Marin), antes que novas
possibilidades de trabalho no pequeno comércio, nas oficinas, ou nas
novas fábricas, apareçam.
Se esse efeito de decalagem, entre grupos de trabalhadores
que sucumbem às transformações ocorridas nesse processo de
formação do proletariado e grupos de trabalhadores que se engajam
em formas de trabalho e de sobrevivência ascendentes, enfatiza uma
descontinuidade ao nível do processo histórico, por outro lado, os
grupos familiares, como já foi assinalado, ao nível sincrônico, fazem a
mediação de distintas formas de trabalho entre os diversos membros

ão
da família da classe trabalhadora (Cf. particularmente o artigo de
Barbosa Alvim). A família proletária, além de administrar, entre seus


diversos membros, atividades “invisíveis” aos olhos do mercado,

lg
como as atividades de complementação alimentar através do roçado,
ou através da pesca do caranguejo (Cf. o artigo de Barbosa Alvim),
vu
e como as atividades ligadas ao trabalho a domicílio (Cf. o artigo
di

sobre a oposição entre o trabalho doméstico e o trabalho feminino


remunerado de Machado da Silva) e a um minicomércio vicinal (Cf.
de

artigo de Barbosa Alvim) – atividades necessárias à complementação


de um orçamento doméstico suprido por salários insuficientes –,
vem também interligar, em seu próprio seio, diferentes frações
ar

dessa “massa proletária”, simultaneamente repositória de variadas


pl

situações de trabalho e submetidas a formas diversas de dominação.


em

***
Ex


Nas diferentes transformações por que passam os diversos
grupos de trabalhadores nesse contínuo processo de formação de
um proletariado urbano, parece ser relevante, para a determinação
do sentido das mudanças sofridas por um determinado grupo, a
importância que tenha a profissão na sua situação de trabalho.
Assim, no processo de decadência das antigas fábricas, o sentido
da “desobreirização” que sofrem os trabalhadores a elas vinculados
dependerá da profissão que desempenhavam na fábrica: para que
o trabalhador possa exercer suas atividades no ambiente artesanal
das pequenas oficinas, ele terá de possuir uma profissão que possa
228 | Luiz Antonio Machado da Silva

reconverter-se do ambiente fabril ligado às máquinas e à disciplina


da cooperação capitalista, desenvolvendo-se, ao contrário, da
cooperação simples e no trabalho variado e por encomenda da oficina
artesanal. Os operários trabalhando em setores de manutenção
da fábrica, ou envolvendo conhecimentos mecânicos como os
contramestres das fábricas têxteis, terão uma facilidade maior
nessa transformação. Por outro lado, os operários de manutenção
das novas fábricas, do tipo dos analisados por Mello Marin, poderão
exercer fora de sua jornada de trabalho normal nessas fábricas
atividades paralelas em pequenas oficinas artesanais ou mesmo a
domicílio, ainda mais que as próprias fábricas encomendam o reparo

ão
e fabricação de ferramentas fora do trabalho fabril. Diversamente, a
maior parte dos operários das fábricas têxteis, profissionais como os


tecelões que dependem das máquinas e, portanto, das fábricas para

lg
exercerem sua profissão, tem o sentido de sua “desobreirização”
voltado geralmente para o pequeno comércio, embora muitos tentem
vu
outras profissões do proletariado urbano, como, por exemplo, a de
motorista. Assim, também os ajudantes-gerais das novas fábricas
di

“pós-Sudene” tendem a deslocar-se para o pequeno comércio


de

quando saem das fábricas (ou quando complementam “por conta


própria”, para além de sua jornada normal de trabalho na fábrica,
sua remuneração). E, semelhantemente, os operadores de máquinas
ar

dessas fábricas, encarregados ou classificados, não possuindo a


pl

profissão “forte” que poderia ser exercida independentemente


das máquinas da fábrica e da disciplina exigida pela cooperação
em

fabril, têm por alternativa maior, da mesma maneira, a tentativa de


estabelecimento no pequeno comércio (Cf. artigo de Mello Marin).
Ex

É do ponto de vista da possibilidade ou não da profissão ser


exercida com perfeição e criatividade superior nas pequenas oficinas
envolvendo uma cooperação simples artesanal, que os profissionais
de manutenção das novas fábricas metalúrgicas analisados por Mello
Marin – que dão uma importância central ao serviço, conseguido nas
pequenas oficinas fora de sua jornada normal de trabalho fabril, na
sua estratégia de vida – tendem a bipartir a diferenciação interna
dos operários de sua fábrica em profissionais de manutenção, e os
classificados e encarregados do lado dos operários de máquinas;
o artigo, enfatizando a bipartição entre profissionais e ajudantes-
gerais, endossa o ponto de vista dos profissionais de manutenção.
Tal ênfase, que apaga os operários de máquina dessa classificação,
Parte 2 Trabalho e cidade | 229

reduzindo-os a uma variante de ajudantes-gerais – embora sendo


esta uma característica da própria estrutura interna da divisão do
trabalho na fábrica e da polarização, na diferenciação interna dos
operários, exercida pelos operários de manutenção, os profissionais
por excelência –, causa problemas para a consolidação de uma
diferenciação interna elementar entre operários fabris, tomando-
se como ponto de partida a confrontação entre o artigo de Mello
Marin e o de Saavedra Durão. Com efeito, inversamente, este
último tem sua ênfase – guiada pela própria orientação da divisão
do trabalho interna à fábrica têxtil observada, que, por outro lado,
tem a diferenciação interna de seus operários apontada para os

ão
operários “produtivos” que operam as máquinas, particularmente
os tecelões – voltada para um outro tipo de profissional, dependente


das máquinas e da cooperação fabris para exercer sua profissão.

lg
Aqui, o ponto de vista adotado é menos o da profissão que pode ser
exercida tanto no ambiente fabril quanto principalmente nas oficinas
vu
com uma cooperação simples artesanal que propicia o exercício
di

em sua plenitude da profissão, e mais o da profissão que depende


das máquinas e da cooperação fabris para poder atualizar-se – mas
de

que nem por isso deixa de comportar uma “moral profissional”,


uma importância estratégica na produção, assim como uma certa
posição no mercado de trabalho das fábricas têxteis. De fato, o
ar

estudo da profissão e da diferenciação interna dos operários do


pl

ponto de vista de produção é importante não apenas para lançar luz


sobre a articulação entre o mercado de trabalho fabril e as formas
em

de “trabalho independente”, entre o “mercado formalizado de


empregos” e o “mercado não formalizado de empregos” (Cf. Machado
Ex

da Silva, 1971), mas também para a própria análise da cooperação


da disciplina fabril, das formas específicas de subordinação do
trabalhador ao capital no processo de trabalho, assim como nas
reações do trabalhador a essas formas de subordinação. Tal análise
tem sido desenvolvida por vários pesquisadores, referindo-se a
grupos sociais diversos, desde a importância da profissão não só no
“mercado não formalizado de empregos” e no próprio “continuum
de empregos” nos “mercados metropolitanos de trabalho manual”,
como também internamente no “mercado formalizado de empregos”
(por exemplo, a importância do “treinamento em serviço”) (Cf.
Machado da Silva, 1971); desde a importância dessa profissão
por excelência, a arte, que é central na complexa articulação entre
230 | Luiz Antonio Machado da Silva

trabalho a domicílio em oficinas de fundo de quintal e quengas de


côco e trabalho sob a cooperação simples em pequenas oficinas e
manufaturas de joias de ouro onde trabalham os ourives de Juazeiro
do Norte, essa camada representativa dos artesãos da área (Cf. Alvim,
1972); desde a importância da profissão na própria parte agrícola da
plantation, lá mesmo onde ela não é reconhecida explicitamente, mas
onde certos trabalhadores especializados como os machadeiros (Cf.
Sigaud, 1971, p. 31) ou aqueles que têm uma arte (os ferreiros e os
carpinas) fazem sobressair da invisibilidade enganosa da crença na
indiferenciação das tarefas agrícolas do ponto de vista do morador a
arte em que se transforma, para o morador, aquela tarefa, eleita por

ão
ele para esse fim, em que ele tem melhor desempenho, e com a qual
se investe de uma dignidade do trabalho que o instrumentaliza a


melhor enfrentar o patrão (Cf. Palmeira, 1976); desde a importância

lg
da profissão e da arte na diferenciação interna dos operários do
açúcar (Cf. Leite Lopes, 1976); até os artigos de Saavedra Durão e
vu
Mello Marin que continuam por essa linha de pesquisa. Como os
di

artigos aqui dispostos não são senão os primeiros resultados da


análise de um material de pesquisa cujo volume supera em muito
de

a parcela que serviu de base ao primeiro tratamento dos dados, o


desenvolvimento dos trabalhos que lidam com grupos de operários
fabris (particularmente os de Saavedra Durão, Mello Marin, Leite
ar

Lopes e Barbosa Alvim), no que se refere ao problema da profissão


pl

e da diferenciação interna dos trabalhadores na produção, poderia


partir criticamente dos comentários que se seguem (os quais
em

obedecem às discussões havidas na equipe de pesquisa).


Por outro lado, aprofunda-se a análise da existência social
Ex

dessa categoria de profissionais presos às fábricas para a possibilidade


do exercício de sua profissão, a qual, embora menos valorizada que
os operários de manutenção que são os profissionais por excelência,
sem dúvida – pelo que o próprio artigo de Mello Marin menciona a
respeito da assinatura na carteira dos classificados ou encarregados
que são os operadores de máquina e a respeito do fato de terem
tarefas definidas ligadas ao funcionamento da máquina parcelar
perante a qual, e perante a hierarquia fabril entrelaçada à máquina,
o operário põe no jogo sua responsabilidade – se diferencia como
categoria à parte dos serventes ou ajudantes-gerais cuja assinatura
na carteira de nada vale e que muito menos têm tarefas definidas,
forçados que são a obedecerem ordens de qualquer instância
Parte 2 Trabalho e cidade | 231

hierárquica da fábrica. Assim, essas oposições entre classificados e


encarregados e ajudantes-gerais, estando em jogo formas distintas
de submissão à hierarquia e disciplina inerentes à cooperação
capitalista, podem ter tanta força quanto a oposição profissionais
(de manutenção) e ajudantes-gerais, o mesmo quanto a oposição
entre profissionais e classificados, desde que os pontos de vista das
diversas categorias que constituem o conjunto da diferenciação
interna sejam levados em consideração e não unicamente o dos
profissionais. No entanto, a análise dos “operadores de máquina”
das fábricas têxteis pode servir como caso privilegiado para a
compreensão das características desses “profissionais de fábrica”,

ão
ressaltando propriedades que, porém, estariam de alguma forma
presentes na categoria correspondente de outras fábricas –


importando em cada caso fazer-se a análise das “propriedades de

lg
posição” de uma determinada categoria profissional, que, dentro de
uma diferenciação interna, é fundamentalmente um procedimento
vu
relacional. Deste modo, a análise desse grupo de trabalhadores
di

representativo dos “profissionais de fábrica” das fábricas têxteis que


são os tecelões poderia ressaltar não somente certas características
de

intrínsecas ao trabalho útil da profissão, mas também características


associadas à condição da profissão, tais como salário por produção,
fazendo a diferenciação interna dos operários têxteis ser polarizada
ar

pelos operários produtivos, em particular os tecelões. Parece


pl

ser próprio das características do trabalho útil dos tecelões a


necessidade de um maior tempo de aprendizagem relativamente a
em

outras “profissões de fábrica” envolvendo a operação de máquinas


parcelares, que ultrapassa o período formal de aprendizagem e se
Ex

prolonga pela experiência do trabalhador durante anos de trabalho,


um “treinamento em serviço” duradouro. Isto porque o “mistério”
da profissão do tecelão – apesar do processo de desqualificação e
expropriação da profissão que o desenvolvimento da subsunção
real do trabalho ao capital fez sofrer ao tecelão desde a sua época
artesanal, transferindo o “mistério” da profissão para a maquinaria
e a matéria-prima – está menos na operação da máquina que na
vigilância à frágil e delicada matéria-prima que corre no conjunto
de máquinas sob a responsabilidade do tecelão, e na consequente
intervenção para adequar o ritmo das máquinas às menores
interrupções na produção passíveis de serem obtidas. De um lado, o
tecelão é todo absorvido numa vigilância contínua ao funcionamento
232 | Luiz Antonio Machado da Silva

do conjunto de máquinas – embora seja este um funcionamento que


ele compreenda, tendo um controle sobre o mecanismo de suas
máquinas, base de conhecimento sobre a qual se desenvolvem os
atributos dos contramestres, frequentemente recrutados a partir
dos melhores tecelões –, mas, de outro, é todo um trabalho manual
ágil sobre a matéria-prima quando, nas interrupções da produção,
os fios se partem. Os operários produtivos da fábrica têxtil são, assim,
enfrentando o trabalho simultaneamente monótono e absorvente
e que exige grande habilidade sobre um material frágil, “os órgãos
visuais e tácteis do aparelho produtivo” (Cf. Halbwachs, 1970, pp.
69-71). O aspecto da habilidade manual da profissão do tecelão

ão
é limitado, por um lado, com o desenvolvimento da maquinaria,
pelas interrupções na produção quando se faz um trabalho manual


de religação dos fios, e, por outro, pelas próprias exigências de

lg
continuidade da produção, pois esse trabalho manual reduz-
se ao caso de máquinas paradas com poucos fios partidos. Essa
vu
habilidade manual do tecelão é desenvolvida por uma profissão que
di

resulta do desdobramento das habilidades do tecelão diante dos


constrangimentos da necessidade de continuidade da produção –
de

constrangimentos que impõem, ao tecelão, a predominância de seus


atributos de vigilância sobre os seus atributos tácteis –, a saber, a
profissão de passadeira de rombo. Geralmente exercida por tecelãs
ar

experientes, tal profissão cuida das máquinas com muitos fios


pl

rompidos, exigindo um trabalho paciente e demorado envolvendo


as fases de desembaraçar, emendar e religar na máquina os fios
em

partidos.
Embora seja a camada profissional dos tecelões
Ex

representativa dos demais “profissionais de fábrica” têxteis,


particularmente dos operários produtivos, não somente pelas
qualidades de seu trabalho útil, mas também pelo maior número
de vagas de trabalho nas fábricas, além da quantidade generalizada
de fábricas têxteis – atenuando, assim, a fragilidade, inerente a
toda “profissão de fábrica”, da profissão do tecelão no mercado
de trabalho (Cf. artigo de Saavedra Durão) –, outras camadas
tiveram um importante papel estratégico na produção, como os
banqueiros (ou massaroqueiros). Deslocados pela “modernização” da
maquinaria que os reduziu da casa de dezenas à casa de unidades,
os banqueiros, profissão masculina, ao contrário da predominância
feminina principalmente na fiação, bem como na tecelagem,
Parte 2 Trabalho e cidade | 233

controlando longas máquinas denominadas bancos localizadas


na seção imediatamente anterior à fiação, eram, pelo seu papel
estratégico na produção, fabricando uma matéria-prima no início do
processo produtivo necessária para a continuidade da produção nas
demais seções, operários estratégicos também no desencadeamento
dos movimentos reivindicativos e com papel atuante no movimento
sindical. Outros “profissionais de fábrica” têxteis importantes na
produção são os engomadores, na parte de fabricação do tecido, e os
gravadores e estampadores, na parte de tratamento do tecido. Já os
contramestres são profissionais ambíguos, divididos que estão entre
tarefas de reparação das máquinas de sua seção, dando-lhes certas

ão
qualidades dos profissionais por excelência, artistas ou oficiais da
parte de manutenção, e tarefas de vigilância e controle sobre a força


de trabalho que opera aquelas máquinas, dando-lhes, ao contrário,

lg
características semelhantes a esse não trabalhador do tipo do cabo,
elo hierárquico mais próximo do trabalhador dessa cadeia patronal
vu
de vigilância sobre a força de trabalho.11 Distinguindo-se dos
di

demais trabalhadores não somente pela diferenciação profissional


interna aos operários têxteis, mas também por uma divisão
de

hierárquica inerente à organização da fábrica, os contramestres,


necessariamente servindo de instrumento das formas aperfeiçoadas
de controle sobre a força de trabalho desenvolvidas nas fábricas
ar

têxteis, e sendo como que a encarnação mesmo de uma “contradição


pl

no seio do povo”, ilustram historicamente, no entanto, apesar de


todo esse sistema de dominação que espontaneamente divide os
em

operários dos contramestres, como a capacidade de resolução dessas


contradições internas tem sua vitalidade estimulada diante da
Ex

contradição maior dos trabalhadores com o próprio sistema fabril


e do enfrentamento organizado que eles conseguem desenvolver.
Assim, se os contramestres estão na origem de constantes conflitos
particularizados com os operários na produção, eles, contudo,
repositórios de uma “moral profissional” peculiar tentando dar conta
de sua ambiguidade e resolvendo-a pelo lado não conflitivo de uma
autoimagem como chefe de equipe companheiro dos operários, têm

11
As fábricas têxteis, ao longo de sua história, parecem ter logo radicalizado o
caráter hierárquico que, por vezes, assume a relação entre um profissional de
manutenção e seu ajudante ou também entre aquele e os trabalhadores que operam
as máquinas que o profissional por excelência tem por responsabilidade consertar,
para cristalizar tal relação assim radicalizada e aperfeiçoada nos contramestres.
234 | Luiz Antonio Machado da Silva

grande importância, historicamente, nas reivindicações coletivas


dos operários têxteis, além de fornecerem recorrentemente quadros
para o movimento sindical.
Com o fato de a diferenciação interna dos operários têxteis
tender a polarizar-se menos nos profissionais por excelência da
manutenção – os artistas e oficiais das oficinas das fábricas têxteis,
particularmente importantes nas fábricas que se conjugam com
uma usina de algodão, tratando o algodão bruto como no caso
estudado por Saavedra Durão [no livro citado na nota 1] –, e mais
nos “profissionais de fábrica” como tecelões, fiandeiras e banqueiros,
deve ser procurado o dinamismo que estas categorias imprimem

ão
ao enfrentamento dos operários têxteis com os patrões diante
dos conflitos surgidos a partir da importância na organização da


fábrica do salário por produção. A luta secular desses operários pelo

lg
desmascaramento do segredo do preço da letra (como é chamado
o sistema de aferição da quantidade produzida por um operário
vu
produtivo através de um relógio anexo a cada máquina), as diferenças
di

salariais entre o que esses operários calculavam ser o preço de sua


produção e o salário efetivamente pago, as manobras realizadas
de

pela fábrica no cálculo do aumento salarial devido aos operários


quando tal aumento é transformado no sistema de remuneração
por produção, a periculosidade e insalubridade de certas seções da
ar

fábrica e a luta contra uma intensidade cada vez maior da produção


pl

que dilapida precocemente os trabalhadores, além de não se


refletir nos salários, são algumas das razões que impulsionam esses
em

“profissionais de fábrica” ao conflito constante com a administração


patronal, fazendo-os, assim, centrar a autodiferenciação interna
Ex

dos operários têxteis em torno deles. Muito resta a estudar, não


somente no que diz respeito aos “profissionais de fábrica” em
diversas configurações da diferenciação interna dos operários de
diferentes fábricas, mas também relativamente aos “profissionais
de manutenção”, aos “meio-oficiais”, aos ajudantes e aos serventes,
além dos casos “intermediários” como o dos contramestres têxteis.
O campo do estudo da diferenciação interna dos operários fabris
continua em aberto, e as anotações feitas acima não são senão
indicações sumárias a partir da discussão da equipe de pesquisadores
sobre a experiência junto aos grupos sociais analisados.
ão

lg
vu
di
de
ar
pl
em
Ex

Parte 3
A reconfiguração do
mundo do trabalho
Ex
em
pl
ar
de
di
vu
lg

ão
O desmanche do assalariamento e a dupla
fragmentação social

Marcella Araujo (IFCS/UFRJ)

Esta terceira parte do livro traz quatro textos em que Machado


reflete sobre a produção social do assalariamento no Brasil e sua
posterior destruição e substituição pela cultura da empregabilidade.
A informalidade é a noção chave aqui. De “categoria cognitiva”, residual
mas estruturante de um esquema de pensamento hegemônico entre

ão
os anos 1960 e 1970, a termo esvaziado de sentido, a partir dos anos


1980, a informalidade generalizou-se, extrapolou as fronteiras da
discussão acadêmica e assumiu centralidade no debate público e na
intervenção governamental.
lg
Dispostos em ordem cronológica, os quatro textos desta
vu
seção apresentam o esforço analítico de Machado para reconstruir
di

como nasceu a discussão sobre a informalidade no Brasil, o papel que


ela ocupou nas análises sociológicas sobre o nosso desenvolvimento
de

econômico, como seu sentido foi ampliado e, finalmente, no início


dos anos 2000, começava a ser substituído por um par de categorias
hoje já consolidado – a empregabilidade e o empreendedorismo.
ar

Na característica forma concisa da escrita de Machado, os quatro


pl

textos que o/a leitor/a terá em mãos ao virar as próximas páginas


em

oferecem um roteiro da história da ideia de informalidade e um


conjunto de boas questões para a pesquisa contemporânea sobre as
transformações do mundo do trabalho.
Ex

Em “A (des)organização do trabalho no Brasil urbano”,


originalmente publicado em 1990, Machado dá um passo atrás nas
discussões da sociologia do trabalho, deslocando o olhar do processo
produtivo para a produção social do trabalho assalariado no Brasil.
Quais foram as consequências do quadro político-institucional que
garantiu o assalariamento sobre a forma e o funcionamento do
mercado de trabalho? Quais foram os desdobramentos subjetivos
desse quadro, em termos de formação de autoimagem, visão de
mundo e estratégias de ação dos trabalhadores?
Nos anos 1930, o Brasil já apresentava as condições básicas
para o assalariamento se impor como forma de mobilização do
trabalho: a economia estava monetarizada, a força de trabalho
238 | Luiz Antonio Machado da Silva

destituída dos instrumentos de produção e o mercado consolidado


como a arena social por meio da qual era possível garantir o consumo
e a reprodução. O quadro institucional armado para regular o
movimento de entrada, permanência e saída do mercado de trabalho,
porém, mostrou-se “frágil e superficial” (capítulo 7, p. 247).
A principal consequência de tal fragilidade de regulação foi a
“conversão inorgânica” (capítulo 7, p. 247) do trabalho em trabalho
assalariado. Àquele tempo, a população economicamente ativa
era virtualmente igual à população como um todo, sem que certos
atributos, como idade e educação, marcassem limites à venda da
força de trabalho. Três importantes características do funcionamento

ão
do mercado despontaram dessa configuração disforme. Em primeiro
lugar, a oferta de força de trabalho dissociou-se do ritmo e da lógica


acumulativa do processo produtivo, problema que radica na base da

lg
importante discussão em nossa sociologia sobre as diferenças entre
a superpopulação relativa e o exército de reserva. Em segundo lugar,
vu
o conjunto da mão de obra assumiu a feição de uma “massa amorfa de
di

‘trabalhadores em disponibilidade’” (capítulo 7, p. 248), configuração


que gerou sérias consequências para a formação da autoimagem
de

dos trabalhadores. Em terceiro lugar, a organização do mercado de


trabalho desarticulou-se do mercado de consumo, na medida em
que a hierarquia de posições no mercado não correspondeu a uma
ar

hierarquia de poder aquisitivo.


pl

O interesse em construir um esquema do mercado de trabalho


brasileiro, identificando sua forma e sua lógica de funcionamento,
em

serve como ponto de partida para desemaranhar as várias


tendências da mudança social vivida a partir dos anos 1980. “Velhas
Ex

e novas questões sobre a informalização do trabalho no Brasil atual”,


publicado em coautoria com Filippina Chinelli, em 1997, é um texto
exploratório sobre os efeitos da reestruturação produtiva sobre a
estrutura do mercado de trabalho. Em uma revisão da literatura, os
autores identificaram dois modelos analíticos, operativos, de forma
subjacente, a uma pluralidade de análises: o modelo do “moinho
satânico” de Karl Polanyi (A grande transformação, 2011 [1944]) e
o modelo da “destruição criadora” de Joseph Schumpeter (Teoria do
desenvolvimento econômico, 1982 [1911]). Explorando “as frestas
e margens” (capítulo 8, p. 257) do mercado de trabalho, Machado
e Chinelli pretenderam, de um ponto de ancoragem intermediário,
apreender e analisar as ambiguidades do processo de informalização
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 239

que vinham desmantelando o regime salarial.


Desde os anos 1980, a retração do emprego industrial vinha
acompanhada de uma expansão do setor de serviços, do crescimento
da participação das mulheres na força de trabalho e do aumento
de trabalhadores autônomos. Por um lado, o desassalariamento
significava tanto o rompimento progressivo de relações contratuais
de trabalho, como o esgotamento de um regime produtivo mesmo.
Por outro, a expansão da informalidade como outra forma de
mobilização do trabalho transpunha as fronteiras da periferia do
capitalismo. Não mais um “setor” ou “campo” da economia, cuja lógica
interna e cujo papel na reprodução social do sistema capitalista na

ão
América Latina ocuparam milhares de páginas das ciências sociais,
a informalidade passara a um “aspecto” das atividades econômicas.


Diante desse cenário, quais são as estratégias empregadas

lg
pelos atores tendo em vista suas chances de trabalho? No texto
de 1997, Machado e Chinelli sugerem como foco da análise aquele
vu
objeto que atravessa a sociologia econômica de Machado e este livro
di

particularmente: o engajamento em “atividades alternativas” [ao


assalariamento] (capítulo 8, p. 268). Mais do que uma preocupação
de

com a inserção produtiva, o enquadramento do problema em termos


de “engajamento” implica uma reflexão sobre as percepções, os
valores e as racionalidades mobilizados pelos trabalhadores para
ar

navegar em um mundo em transformação. Evitando interpretá-lo


pl

como “preferência”, uma “adesão antecipada aos significados culturais


da nova relação produtiva” (capítulo 8, p. 271), tampouco como
em

“atitude defensiva”, mera reação aos constrangimentos econômicos,


os autores destacam a pouca preocupação sociológica, até aquele
Ex

momento, com o problema da “aquisição da empresarialidade”,


expressão tomada de empréstimo de Vittorio Cappechi (“Economia
informal y desarollo de especialización flexible”, 1988). Como
as qualificações formais, a sociabilidade do trabalho e as redes
sociais de diferentes estratos sociais afetam a continuidade de suas
trajetórias econômicas?
No artigo de 1997, os autores destacaram três efeitos
variados das mudanças no mercado: a amplitude do impacto das
transformações na produção sobre as oportunidades de mercado, a
extensão das consequências das mudanças sobre as trajetórias e a
solidez dos desdobramentos das novas posições no mercado sobre
as condições de vida. Como a grandeza de cada um desses efeitos
240 | Luiz Antonio Machado da Silva

varia de estrato social para estrato social, suas lógicas particulares


de reprodução e os contextos de realização de suas atividades
econômicas são recortes analíticos centrais. Com essas ponderações
em mente, o artigo em coautoria com Chinelli focaliza os efeitos da
informalização sobre a inserção ocupacional de setores médios, em
debate com a literatura internacional, particularmente a italiana.
Se a escolha do segmento social contrasta com os demais textos
que compõem a obra de Machado e especificamente este livro, o
conjunto de questões acima destacado é perfeitamente pertinente a
uma agenda de pesquisa sobre o mundo do trabalho popular.
Se o primeiro artigo desta seção procura reconstruir

ão
analiticamente o modo de organização do mercado de trabalho
brasileiro e o segundo artigo esboça um objeto para futuras


investigações, o terceiro e o quarto artigos desta parte final do livro

lg
debruçam-se sobre uma questão teórica maior: as consequências
da transformação da estrutura do mercado de trabalho para a
vu
integração social.
di

“Trabalhadores, virem-se!” é um texto de inspiração forte


e explicitamente durkheimiana. Publicado em 1999, ele propõe
de

uma reflexão sobre duas importantes contrapartidas sociais da


desconstrução do assalariamento. Em consonância com o artigo
em coautoria com Filippina Chinelli, esse texto também destaca a
ar

terciarização e a desregulação como os fenômenos econômicos mais


pl

significativos para a sociologia. Mais do que a absorção da mão de


obra sobressalente, os serviços teriam assumido posição central na
em

organização dos processos produtivos. De subsidiários da produção


industrial, eles tornaram-se sua própria condição de realização. Por
Ex

sua vez, a desregulação das relações de trabalho afetaria não apenas


as formas de incorporação produtiva, como as formas de reprodução
social.
Na esteira de Enzo Mingione (Fragmented societies, 1991),
Machado propõe interpretar os decorrentes processos sociais de
desobreirização e informalização como tendências de fragmentação
social. Segundo o autor italiano, essa proposição compreenderia um
multifacetado processo de erosão das bases da cidadania nacional,
a saber, do modo de organização da sociedade industrial e seu
correspondente sistema de regulação. Seguindo Mingione, Machado
defende um tal enquadramento à reconfiguração do tecido social
brasileiro, alternativo à “dualização” da análise de Saskia Sassen
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 241

(The global city, 1991) e à heterogeneização, complexificação e


fragmentação da classe-que-vive-do-trabalho, defendida por Ricardo
Antunes (Adeus ao trabalho?, 1995).
A inovação, em Machado, é que a fragmentação social é
dupla. Por um lado, o autor identifica uma tendência de fratura e
estruturação de uma nova sociabilidade – a ordem violenta, à qual
ele se dedicou em uma série de outras publicações (Cf. Machado
da Silva, Fazendo a cidade, 2016). Por outro, a fragmentação é um
desdobramento interno da própria desconstrução do assalariamento,
gestante de uma nova cultura do trabalho.
“Da informalidade à empregabilidade (reorganizando a

ão
dominação no mundo do trabalho)”, publicado em 2002, é o texto em
que Machado se debruça sobre como a reconfiguração do mundo do


trabalho gestou um novo modo de dominação. Nesse artigo, Machado

lg
analisa o progressivo esvaziamento da categoria “informalidade”,
que passou a abarcar, nos anos 1990, um leque multifacetado de
vu
fenômenos, como a pobreza urbana, as atividades comerciais de rua,
di

a desregulação dos contratos de trabalho e a iniciativa particular.


O último artigo deste livro oferece então uma história do
de

“rebaixamento do status cognitivo” (capítulo 10, p. 278) de uma


categoria central da sociologia latino-americana. Com base em uma
importante revisão bibliográfica, Machado reconstrói os quatro
ar

pressupostos do debate sobre o desenvolvimento, que articulavam


pl

as polêmicas entre as teorias da modernização, da marginalidade, da


dependência e da superexploração da classe trabalhadora; são eles:
em

a preocupação com a organização do trabalho nas cidades, a reflexão


sobre as condições de possibilidade da industrialização na América
Ex

Latina, a investigação sobre a extensão da mercantilização das


esferas da produção e reprodução social e a análise da construção de
um aparato político-institucional de regulação dos conflitos sociais.
Como Machado sugere, a informalidade era, nos anos 1960 e 1970,
um resíduo, uma categoria que abarcava tudo aquilo que não fosse
assalariamento, sem propriamente conter uma unidade interna.
Acompanhando, no plano intelectual, os processos de
perda do dinamismo da indústria e a desregulação das relações de
assalariamento, Machado identificou um duplo deslocamento nas
investigações sociológicas. Por um lado, os cientistas sociais deixaram
os processos produtivos parcialmente de lado e passaram a focar a
esfera política (os aparatos institucionais, as novas ideologias, etc.).
242 | Luiz Antonio Machado da Silva

Por outro, os pesquisadores deslocaram o olhar do papel estrutural


do “setor informal” em direção às práticas econômicas (a disciplina,
o controle do tempo e do dinheiro, a administração de negócios e
empresas, etc.) e às atividades de trabalho (por conta própria, de
prestação de serviços, empresariadas, etc.).
Nesse duplo movimento, uma série de novas questões
emergiram. Como a reestruturação produtiva afetou a estrutura do
mercado de trabalho brasileiro? Qual é a nova estratificação social
que nasce da reorganização da produção e do mercado? Quais
são os novos mecanismos de regulação do conflito e qual é a nova
ideologia que permite manter coeso um tecido social marcadamente

ão
fragmentado? Como se justificam as novas formas de organização do
trabalho? Quais são os valores da nova cultura da empregabilidade,


que visão de mundo ela oferece e quais estratégias de vida dela se
desdobram?
lg
A título de consideração final desses breves comentários
vu
aos textos sobre a informalidade e empregabilidade, gostaria de
di

destacar a atualidade da sociologia econômica de Machado. Mais do


que a preocupação do autor com as questões prementes da virada
de

do século XXI, a produção reunida nesta publicação oferece aos


leitores uma agenda de pesquisa. Sugiro àqueles que chegaram até
esta seção final o esforço de reler o livro de trás para frente. Acredito
ar

ser possível encontrar, no conjunto de artigos das partes I e II, um


pl

modelo analítico com o qual enfrentar as questões levantadas na


parte III. Será olhando para o engajamento nas mais diversas formas
em

de atividades econômicas e analisando os modos de administração


do tempo e do dinheiro dos trabalhadores que conseguiremos
Ex

compreender as experiências vividas da dominação no mundo da


empregabilidade.

Referências bibliográficas

Antunes, Ricardo (org.). 1995. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as


metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo:
Cortez Editora; Campinas: Editora da Universidade Estadual de
Campinas.

Cappechi, Vittorio. 1988. “Economia informal y desarrollo de


Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 243

especialización flexible”. In: E. Sanchís y J. Miñana (comp.). La


otra economía. Trabajo negro y sector informal. Valencia: Alfons el
Magnànim. pp. 251-284.

Machado da Silva, Luiz Antonio. 2016. Fazendo a cidade: Trabalho,


moradia e vida local entre as camadas populares urbanas. Rio de
Janeiro: Mórula. (Coleção Engrenagens Urbanas).

Mingione, Enzo. 1991. Fragmented Societies: A sociology of economic


life beyond the market paradigm. Oxford and Cambridge, MA: Basil
Blackwell.

ão
Polanyi, Karl. 2011 [1944]. A grande transformação: as origens da


nossa era. Rio de Janeiro: Elsevier Editora.

lg
Sassen, Saskia. 1991. The global city. New York, London, and Tokyo:
vu
Princeton University Press.
di

Schumpeter, Joseph. 1982 [1911]. Teoria do desenvolvimento


de

econômico. São Paulo: Abril Cultural.


ar
pl
em
Ex
Ex
em
pl
ar
de
di
vu
lg

ão
7. A (des)organização do trabalho no Brasil urbano1

Nos últimos anos, a vasta literatura sobre o setor informal


urbano, produzida entre meados das décadas de 1960 e 1970, tem
sido revisitada, e muitos de seus temas retomados. Tradicionalmente,
este tem sido um dos eixos do debate sobre as relações entre trabalho
e pobreza. Sua característica mais básica e geral é a conexão feita
entre condições de trabalho, condições de existência da população
pobre e alguma ideia de marginalidade ou desorganização social.
Digo “alguma ideia”, porque, sem dúvida, a fonte do debate parece

ão
ser a grande variação nos conteúdos que estas noções assumem nos


inúmeros trabalhos concretos.2
Pode-se pelo menos suspeitar (como é o meu caso) que o

lg
renovado interesse pelo tema – interesse que, atualmente, tem
transcendido os estudos de formações sociais periféricas para
vu
incorporar também uma parcela da reflexão sobre os países centrais
di

– tem alguma relação com a volta à tona, como questão dominante


da conjuntura, de certos problemas reais que, na origem do debate
de

sobre o setor informal, foram abordados a partir daquelas ideias.


Por sua vez, a repetição do tema e sua generalização para outros
países levariam à conclusão de que os problemas subjacentes a este
ar

enfoque não são meramente conjunturais e que as deformações


pl

teóricas que caracterizam a literatura mais antiga sobre o setor


em

informal, já identificadas e muito criticadas – como é o caso,


por exemplo, do dualismo que caracterizou toda essa produção
(Cunha, 1979; Oliveira, 1972) –, só explicam parcialmente o seu
Ex

aparecimento, não podendo justificar o abandono total dos temas


abordados por aquela literatura.
Fundado nestas considerações e tendo-as como pano de
fundo, o propósito do presente artigo é apresentar um esquema geral
de análise das relações entre trabalho e pobreza no Brasil urbano (o
Rio de Janeiro é a referência empírica mais imediata, mas comparece
apenas como “caso exemplar” de processos muito mais gerais, que

1
In: São Paulo em Perspectiva, 4(3/4), pp. 2-4, julho/dezembro 1990.
2
Não é o caso de retornar à “teoria da marginalidade”, cujo paradigma já foi
suficientemente explicitado, criticado e, até onde posso imaginar, superado. Cf.
Kowarick (1975), Machado da Silva (1983).
246 | Luiz Antonio Machado da Silva

afetam pelo menos o conjunto das grandes cidades brasileiras). De


um modo geral, o esquema mantém a perspectiva estrutural que
é característica da análise econômica, porém deslocando o eixo
tradicional do foco sobre o processo produtivo propriamente dito
para o quadro político-institucional em que ele se realiza. O objetivo
é abrir a discussão de um aspecto crucial das questões mencionadas,
que, no entanto, me parece ausente das preocupações: a produção e
regulação do trabalho assalariado no Brasil.3 Convém ressaltar que,
obviamente, não pretendo esgotar assunto de tal complexidade e
extensão, mas apenas chamar a atenção para o problema, propondo
um esquema para debate e enriquecimento.

ão
As relações de trabalho que vivemos no Brasil, em que
dominantemente o trabalho é uma mercadoria que se compra e


vende no mercado, não são espontâneas ou naturais – têm que ser

lg
“produzidas”, isto é, impostas ou reguladas. Os modos específicos
de imposição de assalariamento, assim como suas consequências,
vu
sem dúvida não são independentes das atividades produtivas
di

propriamente ditas. Não obstante, trata-se de questões que, do ponto


de vista lógico e analítico, são exteriores e anteriores ao processo de
de

produção, uma vez que apontam para a matriz político-institucional


em que este se realiza. Consequentemente, se tais questões não
forem incorporadas à análise do processo produtivo – que tem
ar

sido o objeto central dos estudos sobre o setor informal –, corre-se


pl

o risco de trabalhar com supostos implícitos sobre a conformação


do trabalho assalariado no Brasil, os quais não necessariamente
em

correspondem à realidade.
No mínimo, desde a década de 1930, o Brasil urbano
Ex

já apresentava as condições mais básicas de imposição do


assalariamento. Praticamente toda a economia estava monetarizada,
fazendo com que a imensa maioria dos trabalhadores tivesse que
buscar os elementos de sua reprodução nos mercados de consumo; ao
mesmo tempo, para que isso fosse possível, era preciso que vendesse
sua força de trabalho no mercado, uma vez que não detinha os meios
de trabalho. Numa palavra, o “aguilhão da fome” manifestava-se
sobre trabalhadores “livres”, empurrando-os para o mercado.
Por outro lado, o controle e a regulação deste movimento,

3
As ideias que se seguem inspiram-se nas obras de Claus Offe, especialmente Offe
(1989a). Cf. também Topalov (1990).
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 247

capazes de torná-lo minimamente orgânico e disciplinado e que têm


sido uma das funções mais básicas do Estado em todos os países
capitalistas, no Brasil, sempre foram frágeis e superficiais. De fato,
o Estado nunca foi capaz de cumprir a sua parte, concentrando e
administrando regras, instrumentos e meios materiais de controle
da entrada e saída do mercado de trabalho. Assim, por exemplo,
nem naqueles momentos iniciais, nem posteriormente, o Estado
conseguiu respaldar valores culturais relativos às condições e
ao momento em que certas parcelas da população poderiam
apresentar-se no mercado como oferta de trabalho. Desse modo,
nenhum atributo ou condição (idade, sexo, educação, etc.) veio a se

ão
constituir como barreira clara e universal à entrada no mercado. Em
contrapartida, as condições para a saída do mercado também não


foram estabelecidas e nem institucionalmente respaldadas (seguro

lg
desemprego, previdência, etc.) por meio de regras claras e universais,
ou, quando existiam, não eram acessíveis.
vu
Portanto, é possível dizer que a conversão do trabalho em
di

trabalho assalariado, que ocorre no mercado e através dele, desde


seus momentos iniciais, foi altamente inorgânica. Na medida em
de

que não se produziram posições institucionalmente reconhecidas


fora do mercado, suas fronteiras tornaram-se indefinidas. Nestas
condições, configura-se uma situação em que sempre toda a
ar

população é, em princípio, “oferta” de trabalho. Pode-se dizer que,


pl

num quadro como este, “população” e “população economicamente


ativa” se tornam, na prática, sinônimos, ou seja, a estratificação
em

dos trabalhadores em segmentos sociais diferenciados torna-se


matéria de uma série de grandes e pequenos conflitos privados,
Ex

que só incidentalmente se resolvem na esfera pública. Uma tal


incapacidade do Estado brasileiro de desempenhar uma de suas
funções mais básicas – a regulação do trabalho – produziu graves
problemas de legitimidade da autoridade política e, portanto, sua
fraqueza endêmica.4
É obvio que os inumeráveis desdobramentos de uma
situação como a esboçada não podem ser tratados no presente
artigo. Entretanto, com essa ressalva, alguns merecem um rápido

4
Esta é uma linha de reflexão que pode começar a tornar inteligível, pelo menos
em parte, o caráter reconhecidamente errático da repressão ao “caso de polícia” em
que muitas vezes se transforma a questão da produção do assalariamento e suas
inúmeras consequências.
248 | Luiz Antonio Machado da Silva

comentário, por incidirem mais diretamente sobre o argumento


aqui desenvolvido.
Em primeiro lugar, como não há mecanismos político-
institucionais que demarquem as fronteiras do mercado, não são
apenas os ritmos e a lógica interna do processo produtivo que
presidem a formação do excedente de trabalho; independentemente
de sua dinâmica, razões de natureza extraeconômica (isto é, a forma
inorgânica sob a qual se produz assalariamento) conduzem a uma
permanente superoferta no mercado.5
Em segundo lugar, e como consequência direta, a ausência
de suporte político-institucional para um conjunto claro e definido

ão
de posições fora do mercado socialmente reconhecidas torna o
excedente uma massa amorfa de “trabalhadores em disponibilidade”.


Essa situação também afeta os próprios trabalhadores eventualmente

lg
empregados, que, num quadro de permanente superoferta, também
não passam, a longo prazo, de trabalhadores em disponibilidade. É
vu
claro que a contrapartida “subjetiva” terá sido a enorme dificuldade
di

no estabelecimento de parâmetros seguros e definidos para a


formação da autoimagem dos trabalhadores enquanto tais e que
de

servisse de referência para a racionalidade de suas ações.6


Finalmente, os mercados de consumo ligados à reprodução
não se organizam em relação à posição dos consumidores no
ar

mercado de trabalho, como poderia se esperar em condições


pl

ideais. De fato, muitas evidências sugerem que esses mercados


funcionam segundo a pura lógica mercantil, separando e tornando
em
Ex

5
Isto merece um outro comentário, relativo a uma leitura possível da bibliografia
tradicional sobre o setor informal. Ela expressa a convivência contraditória entre
um erro e um acerto. De um lado, identificou como um problema central o fato –
real – da superoferta no mercado; ao mesmo tempo, dedicou-se a analisá-lo a partir
de uma perspectiva preconcebida, fundada num modelo idealizado. Basta lembrar
as infindáveis discussões sobre a produtividade e as funções do setor informal,
polarizadas em torno de conclusões a respeito de seu papel, positivo ou de “peso
morto”, para a economia – com ambas as linhas de argumentação aceitando como
preliminar que as condições de superoferta respondiam a imperativos econômicos,
interpretados no quadro de referência de um mercado regulado.
6
Neste particular, o tema do “autoemprego” pode ser esclarecedor, e isto num duplo
sentido. De um lado, ele permite abordar as ambiguidades relativas à autoimagem
e à racionalidade das ações dos trabalhadores; de outro, permite refletir sobre as
ambiguidades das interpretações contidas na ampla literatura a respeito. Entretanto,
estas são questões que transbordam os limites do presente texto.
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 249

relativamente independente o poder aquisitivo da posição no


mercado de trabalho. Este é um aspecto do quadro geral acima
esboçado, que só recentemente tem sido objeto de atenção. Mesmo
assim, pode-se sugerir, ao menos como hipótese, que se trata de mais
um complicador na formação da autoimagem e da racionalidade
dos trabalhadores, na medida em que contribuiu para enfraquecer
o “orgulho pelo trabalho” – elemento central da identidade do
trabalhador –, misturando-o ao “orgulho do provedor” – que se refere
antes à capacidade de responder às necessidades de reprodução
como tal, necessidades que só longinquamente são concebidas com
base na natureza do trabalho.7

ão
Até aqui, procurei traçar um perfil esquemático da
precariedade, fluidez e indefinição da organização do trabalho no


Brasil urbano. O ponto central das ideias até então apresentadas foi

lg
o de que a imposição do trabalho assalariado através do “aguilhão
da fome”, que é o elemento dominante que articula toda a nossa
vu
estrutura urbana, não foi acompanhada pela formação de uma
di

autoridade política baseada na sua regulação, controle e disciplina.


Em um certo sentido, descrevi a matriz básica do que se costuma
de

chamar de “capitalismo selvagem”. Antes que algumas conclusões


possam ser propostas, resta descrever, também rapidamente, os
mecanismos fundamentais que permitiram que essa estrutura se
ar

reproduzisse por mais de meio século.


pl

Um primeiro elemento a ser mencionado é a combinação


entre formas tópicas de repressão pura e simples, que garantiam
em

a imposição do assalariamento e contornavam as ambiguidades


na distinção entre trabalho e não trabalho, com formas ad hoc de
Ex

assistencialismo público e privado, que contribuíam para reduzir


parcialmente os graves problemas de reprodução dos trabalhadores.
É de se notar que a conjugação desses mecanismos jamais
compôs um padrão unificado, nem se dirigiu a grupos definidos
de trabalhadores; pelo contrário, seu acionamento sempre se
distinguiu por sua característica aleatória e localizada. Desse modo,
ao invés de contribuir para estabelecer diferenciações estáveis no
interior do conjunto de trabalhadores, a conjugação entre repressão
e assistencialismo submetia a todos, indiscriminadamente, por sua

7
Cf. o interessante tratamento da “ética do provedor” em Zaluar (1985), que aborda
diretamente essas questões.
250 | Luiz Antonio Machado da Silva

natureza ao mesmo tempo geral e discriminatória. De uma maneira


geral, a resistência dos trabalhadores a este modo de dominação
política manifestou-se, na maioria das vezes, dessa mesma forma
“sincopada”, tópica e relativamente aleatória.
De passagem – e para abreviar os comentários –, vale
notar que as referências anteriores apenas explicitam o conteúdo
substantivo de um padrão já por todos conhecido de dominação
política: o clientelismo. Este, ao mesmo tempo que resolve alguns
problemas de legitimidade de uma autoridade política fundada
numa organização do trabalho tão precária quanto a descrita
anteriormente, também cria outros – mas deve ser salientado que

ão
ele foi compatível com a incorporação de grandes contingentes
de trabalhadores que reproduzia, da mesma forma inorgânica, a


estrutura do mercado.

lg
Paralelamente, um segundo conjunto de processos que
permitiu um certo convívio com os graves problemas de legitimidade
vu
derivados da precariedade da regulação do trabalho é o que foi
di

sintetizado numa expressão já consagrada: “cidadania regulada”


(Santos, 1979). Do ponto de vista que nos interessa, essa expressão
de

implica uma vasta gama de procedimentos e relações sociais que


garante o acesso a certos direitos de cidadania por parte de setores
de trabalhadores, os quais vêm a compor o que poderia ser chamado
ar

de parte “dura”, nuclear, do mercado. Nestes casos, produziu-se


pl

legitimidade e garantiu-se a incorporação de trabalhadores ao


preço de uma segmentação do mercado que não responde apenas às
em

condições inerentes ao processo produtivo, tornando-a muito mais


rígida, porque protegida também por requisitos extraeconômicos.8
Ex

Este acesso aos direitos e privilégios de cidadania –


associado à disponibilidade a longo prazo de emprego – produz,
se considerado o conjunto dos trabalhadores, uma situação do
tipo “quem está dentro não sai, quem está fora não entra”, que
provoca grandes dificuldades para aquela massa de trabalhadores
que, embora assalariados, “não entram”. Estes se confundem, como
categoria social, com os que “estão fora”.

8
Num importante artigo já mencionado, Cunha (1979) estuda a formação de um
mercado interno, da perspectiva de uma análise econômica da mobilidade do
trabalho. Minha sugestão, aqui, é tão somente a de que a segmentação do mercado é
mais ampla e profunda do que a considerada por esse autor.
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 251

É desnecessário mencionar que a contrapartida subjetiva


desse conjunto de processos é, mais uma vez, uma dificuldade
adicional para a formação coerente de uma visão de mundo, de
uma autoimagem e de uma racionalidade centradas no trabalho
assalariado. De fato, se nas condições descritas o assalariamento
é um fenômeno básico e dominante, as diferenciações sociais que
devem servir como eixos de referência não se produzem como
desdobramentos inteiramente consistentes com ele.
Finalmente, é preciso mencionar que todos esses processos
operaram em conexão íntima com uma alta taxa de crescimento,
sustentada com pequenas variações ao longo de todo o período

ão
considerado. Neste sentido, houve durante esse tempo uma
tendência permanente de incorporação de grandes contingentes


de trabalhadores – isto é, uma expansão generalizada do trabalho

lg
assalariado, que ocorreu apesar de todas as dificuldades e
inconsistências de sua produção e regulação. Isto significa dizer que
vu
o quadro político-institucional esboçado, apesar de sua evidente
di

precariedade, pôde universalizar-se, submetendo inclusive os


segmentos sociais situados nos seus limites externos, à medida
de

que a estabilidade das taxas de crescimento produzia um clima de


“expectativa de incorporação” (e uma vez que o significado real
dessa expressão era, ele mesmo, ambíguo e indefinido).
ar

A drástica redução das taxas de crescimento, que caracteriza


pl

toda a década de 1980, parece ter decretado o esgotamento dos


mecanismos responsáveis por esta matriz de organização do
em

trabalho, fazendo com que, bruscamente, suas ambiguidades e


inconsistências saíssem da penumbra em que puderam ser mantidas
Ex

por cerca de meio século. De um lado, os conflitos distributivos


formados no interior do quadro político-institucional descrito
chegam ao ponto de impasse: dadas as baixas ou negativas taxas de
crescimento, trata-se agora de um jogo de soma zero, o que os eleva à
condição de metaconflitos, organizados em torno não propriamente
da distribuição, mas de seus princípios. A esta, agrega-se na outra
ponta uma situação também explosiva. Trata-se da crescente miséria
de certos contingentes de trabalhadores que se defrontam com o
estancamento da ampliação secular do mercado e que perdem a
confiança em uma (agora claramente improvável) incorporação
futura. Isto produz o aparecimento de novos conflitos que não se
organizam nos moldes antigos, mesmo quando consideradas suas
252 | Luiz Antonio Machado da Silva

ambiguidades. Talvez o exemplo mais dramático de uma crise


econômica duradoura que ocorre num quadro de desorganização do
trabalho seja a escalada da violência e do crime organizado – práticas
sociais que certamente não se estruturam de modo consistente com
concepções da sociedade fundadas no trabalho assalariado.
Se a ênfase que procurei colocar sobre os processos da
regulação do trabalho e, consequentemente, sobre a estrutura do
mercado tem fundamento, e se a hipótese que tentei desenvolver,
pensando o capitalismo brasileiro em relação à incapacidade
do Estado de disciplinar, controlar e regular a imposição do
assalariamento, é plausível, pode-se, então, retirar uma conclusão

ão
geral. Não podemos continuar a estudar o processo produtivo
como se a própria produção do trabalho assalariado não fosse


um problema fundamental, cujos modos históricos de solução

lg
determinam a estrutura do mercado de trabalho e, ao mesmo tempo,
a legitimidade da autoridade política.
vu
Levada a sério, essa conclusão abre à reflexão um espaço
di

quase tão grande quanto virgem, que não me atrevo a preencher.


Trata-se da necessidade de revisitar nossas categorias de análise.
de

Praticamente, todas foram forjadas a partir da experiência histórica


de formações sociais muito diferentes das nossas – experiência
que está presente nos conceitos que utilizamos, na medida em que
ar

eles expressam modelos de sociedade e, portanto, supõem uma


pl

consistência com a realidade que, em nosso caso, não existe.


Ao longo das anotações anteriores, procurei sugerir que, no
em

quadro político-institucional em que vivem, o qual deita suas raízes


em um passado já distante, todas as diferenciações com as que tanto
Ex

trabalhamos analiticamente quanto nos orientamos na vida cotidiana


– a maioria das quais tem relações muito próximas com a experiência
histórica daquelas outras formações sociais – são perturbadas pelas
dificuldades e inconsistências da produção do assalariamento no
Brasil. Apenas para tornar mais explícito este ponto, consideremos
distinções tais como trabalho/não trabalho, trabalho assalariado/
por conta própria, trabalhador ativo/trabalhador em reserva,
trabalho/pauperismo, trabalho/criminalidade, população ocupada/
população excedente, etc. A rigor, nenhum destes termos designa,
como nos acostumamos a acreditar, categorias sociais definidas.
Ao contrário, embora nem de longe possam ser abandonados como
meras fantasias, em primeiro lugar, todos e cada um deles têm uma
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 253

vigência muito mais difusa, pois não denotam mais do que práticas
sociais que não são estanques. E, em segundo lugar, não se articulam
de forma unívoca com atributos pessoais dos trabalhadores, como
sexo, idade, saúde, educação, etc.
Se me fosse permitido um fecho um tanto presunçoso para
este trabalho – embora reconheça que seu caráter necessariamente
esquemático o desaconselharia –, gostaria de afirmar que a
exploração destas superposições e ambiguidades é a chave que
permitirá um melhor entendimento do “Brasil real” e contribuirá
para o aprimoramento da teoria.

ão

lg
vu
di
de
ar
pl
em
Ex
Ex
em
pl
ar
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di
vu
lg

ão
8. Velhas e novas questões sobre a informalização do
trabalho no Brasil atual1

Introdução

O debate sociológico sobre as transformações atuais no
mundo do trabalho organiza-se sob alguns pontos comuns. Em
poucas palavras, pode-se dizer que, paralelamente ao amplo
reconhecimento de uma forte tendência à terciarização da atividade
econômica, também se tem produzido consenso a respeito da

ão
tendência mundial ao crescimento do desemprego e à precarização


do emprego assalariado (piores condições de trabalho; rebaixamento
dos níveis salariais; “flexibilização” das relações de trabalho, isto é,

lg
terceirização; maior facilidade de rompimento dos contratos; etc.).
Para descrever o impacto de todos esses processos sobre a estrutura
vu
do mercado, tem-se recorrido cada vez mais frequentemente à ideia
di

de “informalização”.
A antiga noção de informalidade, forjada no bojo das
de

discussões dos anos 1960 sobre o desenvolvimento econômico, tem


conservado seu referente empírico-descritivo. De fato, ela continua
designando formas de mobilização do trabalho que ocorrem fora
ar

das relações de assalariamento, cujo indicador mais comumente


pl

adotado costuma ser o status legal da atividade e/ou dos atores.


em

A partir dos anos 1980, o tema da informalidade transpõe as


fronteiras da periferia do capitalismo, uma vez que a percepção
das dificuldades de absorção do trabalho nos países centrais trouxe
Ex

consigo o reconhecimento da existência – e da relevância analítica


– de relações produtivas “não oficiais/não mercantis” (Barthe,
1988). Com isso, a noção de informalidade ganha novos significados
e participa como elemento-chave de interpretações fortemente
contrastantes a respeito do impacto das tendências mencionadas na
estrutura do mercado de trabalho e suas consequências sociais.
Em trabalho preparatório para pesquisa do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre a economia

1
In: Contemporaneidade e Educação, 2(1), pp. 24-45, maio/1997 (com Filippina
Chinelli).
256 | Luiz Antonio Machado da Silva

informal,2 Souto de Oliveira (1989, p. 45, grifos da autora) já chamava


a atenção para a ampliação do uso e dos sentidos do termo:

[…] o informal afora se constituir um campo específico de atividades


econômicas que teriam como denominador comum o fato de não
se enquadrarem nos moldes da produção capitalista, passa a se
configurar, também e de forma crescente, como um aspecto de
atividades econômicas que não pertencem a este campo […]

Mais recentemente, Lautier (1994) retoma e amplia


caracterização semelhante, favorecendo o segundo sentido

ão
mencionado. Mesmo sem aprofundar a questão, é oportuno salientar
que também acreditamos que o debate aponta antes para uma


ampliação do campo semântico da noção do que propriamente para
um deslocamento de seu significado anterior e que, como veremos
lg
adiante, há evidências que sustentam ambos os usos. Desnecessário
vu
dizer que isto configura um conjunto pouco claro, de difícil
determinação empírica, que envolve todo o trabalho não assalariado
di

– autônomos, conta-própria de todos os tipos –, as pequenas


empresas familiares e os que trabalham para elas, assalariados ou
de

não, e desborda, inclusive, para segmentos importantes da produção


capitalista organizada sob a forma do regime salarial.
ar

É certo que o interesse renovado pelo tema não desconhece


o caráter teoricamente ambíguo, empiricamente impreciso e
pl

ideologicamente comprometido da noção de informalidade, que


em

tem ocupado uma enorme literatura crítica desde os anos 1960.


Esta dificuldade continua gerando um intenso debate que, nos
Ex

dias de hoje, chega a remeter aos fundamentos da moderna teoria


social e econômica, colocando em xeque a capacidade explicativa do
paradigma do mercado (Mingione, 1991). Entretanto, consideramos
que este não é o lugar para mais uma tentativa que, no mínimo, teria
que se haver com um regime de rendimentos decrescentes e, no
máximo, se perderia na metateoria.
Por outro lado, é difícil simplesmente ignorar a ideia de
informalidade (ou informalização, como se verá a seguir), ao menos
enquanto não se definir, em termos práticos e simbólicos, um padrão
de integração societal alternativo ao regime salarial, eticamente

2
Até o momento, restrita ao município do Rio de Janeiro, apesar das intenções
nacionais no desenho inicial da pesquisa (IBGE, 1996).
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 257

aceitável e economicamente eficiente. Acreditamos que, na ausência


deste substituto, continuará sendo inevitável que a apreensão
intelectual das novas condições de incorporação de trabalho seja
formulada de maneira contrastiva, com ênfase nas dificuldades
relacionadas à reprodução generalizada desse padrão, isto é, em
termos de suas “frestas e margens”. Assim é que, no que diz respeito
à estrutura do mercado, em particular quando se adota o ponto de
vista do trabalho, ou seja, quando se privilegia a conexão entre a
inserção produtiva e a reprodução social dos trabalhadores, essas
dificuldades têm sido apreendidas a partir dos vários aspectos e
dimensões da noção de informalidade, que captura o “outro lado”

ão
das relações salariais.
Reconhecemos que esta compreensão do campo semântico


mais amplo da noção de informalidade, ao mesmo tempo que

lg
explica a necessidade de seu uso, também torna claras as suas
limitações. Com esta ressalva, o presente trabalho pretende indicar
vu
alguns caminhos de interpretação disto que acima foi denominado
di

de “frestas e margens”, explorando as possibilidades abertas pela


generalização do debate sobre os processos de informalização
de

do mercado estimulada pelas dificuldades do regime salarial na


Europa Ocidental.
Após uma breve caracterização do comportamento do
ar

emprego no Brasil nos últimos anos, procuramos dialogar com a


pl

literatura socioeconômica, combinando o que consideramos serem


os dois grandes eixos interpretativos presentes no debate sobre a
em

informalização, que podem ser apresentados, na falta de melhores


rótulos, como “círculo vicioso” e “círculo virtuoso”. Trata-se, de um
Ex

lado, da informalização colada no empobrecimento do conjunto


dos trabalhadores, que vai desde o afrouxamento da proteção
legal do emprego até a franca ilegalidade das relações trabalhistas,
passando pela situação de pobreza de segmentos sociais que apenas
conseguem acionar estratégias de sobrevivência que reproduzem as
dificuldades de sua incorporação produtiva.3 De outro lado, trata-

3
Não temos condições, neste trabalho, de abordar diretamente o problema da
exclusão social, embora reconheçamos tratar-se de um desdobramento quase
inevitável desta primeira linha de interpretação. De fato, essa relação vem
acompanhando o debate sobre a informalidade desde seu início nos anos 1960,
e suas variações parecem expressar as diferentes conjunturas intelectuais – da
“marginalidade” (Machado da Silva, 1971; Kowarick, 1975; Nun, 1969) à “underclass”
258 | Luiz Antonio Machado da Silva

se dos processos de informalização que envolvem, via de regra, os


segmentos mais afluentes e qualificados da força de trabalho, até
então imunes à retração econômica e ao desemprego. Tais processos
configuram-se no contexto de terciarização das economias nacionais
e delimitam o espaço por excelência da criatividade e da inovação na
organização dos fatores de produção e, portanto, de formação dos
novos empreendedores (Saba, 1995).
Embora aqui não seja o caso de um maior aprofundamento
sobre este ponto, parece claro que, por trás destas alternativas
polares, estão, de um lado, Polanyi, com seu modelo do antagonismo
entre mercado e sociedade (Polanyi, 1975; Polanyi, Arensberg e

ão
Pearson, 1957); e, de outro, Schumpeter e o papel desempenhado pela
criatividade do “empreendedor” na geração de “desenvolvimento”


(Schumpeter, 1982). De fato, a avalanche de críticas (Cf., por

lg
exemplo, Sader e Gentili, 1995) provocadas pelos efeitos sociais
das políticas liberais, adotadas sob a justificativa de serem as
vu
únicas formas de garantir a produção de riqueza, lembra, enquanto
di

“pacote interpretativo” (Fuks, 1997, cap. 1), a ideia de que o mercado


autorregulado é um “moinho satânico” que “não pode existir durante
de

um espaço apreciável de tempo sem destruir a substância humana


e natural da sociedade” (Polanyi, 1975, p. 17). Em contrapartida,
certas análises, em especial as que se ocupam dos caminhos da
ar

reorientação das economias dos países centrais (o “caso italiano”


pl

sendo o mais citado), sugerem, ao leitor atento, uma inspiração na


obra de Schumpeter, evidenciada não só na ênfase sobre os elementos
em

de criatividade e inovação que seriam característicos da produção


pós-fordista e que correspondem, de forma aproximada, ao que esse
Ex

autor chamava de desenvolvimento por oposição ao crescimento


como fluxo contínuo, mas também, e, talvez, principalmente, por
retomarem a importância por ele conferida à função empresarial
para o desenvolvimento econômico (Schumpeter, 1982, cap. II).
Se estas considerações estiverem corretas, os comentários da
última seção, que procuram ilustrar as possibilidades interpretativas
de uma combinação dos eixos analíticos mencionados, adquirem o
significado que lhes pretendemos conferir. Não se trata de buscar uma
injustificável neutralidade analítica, antes de reconhecer que, se os
pacotes interpretativos enquanto tais possuem comprometimentos

(Auletta, 1982) e aos “excluídos desnecessários” (Nascimento, 1994).


Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 259

políticos inconciliáveis, diversos aspectos das análises empíricas


nas quais se baseiam não o são, simplesmente porque eles tratam
de diferentes dimensões da vida econômica e põem em questão
diferentes categorias de trabalhadores. Ao invés de aderir a um
daqueles pacotes ou de tentar superá-los, pretendemos explorar as
possibilidades heurísticas de trabalhar por dentro deles.

A dinâmica recente do emprego no Brasil

As análises sobre a dinâmica do mercado de trabalho e do

ão
emprego no Brasil a partir dos anos 1980 parecem convergir para
um amplo consenso a respeito dos processos em curso na economia


brasileira, que podem ser sintetizados em duas ordens de tendências:

lg
retração do emprego industrial e incremento da terciarização e da
participação feminina, correlatos das transformações econômicas
vu
em escala global; e, consequente à crise econômica, o significativo
di

crescimento de trabalhadores autônomos que acompanhou a


redução dos assalariados com carteira assinada (Sabóia, 1991).
de

Dadas essas tendências, os estudiosos manifestam certa


surpresa quanto ao comportamento do emprego, ressaltando
que, apesar do fraco desempenho do Produto Interno Bruto (PIB)
ar

– cujo crescimento foi apenas de 1,5% ao ano –, a economia tem


pl

apresentado uma “extraordinária capacidade de absorção de mão-


de-obra” (Urani, 1995, p. 15).4 De fato, o desemprego aberto não
em

chegou a se constituir em fenômeno grave no país, nunca superando


os 8% ao ano durante a década de 1980 (Urani, 1995, p. 27). Esta
Ex

constatação continua valendo para os anos mais recentes, pois, em


que pese a recessão que marca o início da atual década [1990], a taxa
de desemprego apresentou comportamento ainda menos sensível
do que nos anteriores, para o que contribuiu o estímulo adicional do
incremento da desregulamentação nas relações de trabalho.
As análises convergem ainda no que diz respeito à qualidade
do emprego e demonstram que contingentes cada vez mais
significativos de trabalhadores vêm sendo incorporados ao mercado

4
A criação de novos postos de trabalho alcançou na década de 1980 a taxa média de
3,5% ao ano, com exceção de 1983, quando os índices de desemprego atingiram 5%
da força de trabalho (Leite Lopes, 1995, p. 2).
260 | Luiz Antonio Machado da Silva

de trabalho em condições de crescente precarização das relações


de trabalho. Isto se evidencia pela “flexibilização” da proteção legal
(expressão que envolve desde a desregulação dos empregos legais
até a ilegalidade na contratação de trabalho), pela queda dos níveis
de salários e pelos elevados diferenciais de renda que, como se verá
adiante, apontam – ao mesmo tempo que ampliam – para alternativas
fora do assalariamento.5 Deve-se notar de passagem que, em boa
parte, estas são opções empresariais fortemente condicionadas por
fatores relativos à fragilidade da ordem institucional e ao baixo
poder de barganha dos trabalhadores, que proporcionam para as
empresas uma espécie de “prêmio pela ilegalidade”.

ão
Em síntese, embora a capacidade de criação de postos de
trabalho possa surpreender, geram-se empregos de baixa qualidade,


com pouca ou nenhuma cobertura legal, notadamente no setor

lg
terciário, cuja expansão mais recente é conectada aos processos
de reestruturação produtiva e de externalização industrial que,
vu
via de regra, expulsam os trabalhadores mais protegidos. Como
di

consequência, “a precarização parece atingir cerca de 50% dos


que estavam no mercado em 1992, o que equivale à soma dos
de

trabalhadores sem carteira assinada, desempregados e autônomos”


(Castro, 1995, p. 227). Isto será ainda mais verdadeiro no que
se refere aos últimos anos, quando são revertidas as práticas
ar

compensatórias de expansão do emprego público que vigoraram


pl

na década de 1980, período em que a participação desse segmento


se elevou, segundo Leite Lopes (1995, p. 6), de 8% das pessoas
em

ocupadas em 1981, para 9,7% em 1990.


Analisando a tendência à terciarização da economia, esse
Ex

autor menciona dois processos que contribuem para aquele mesmo


efeito agregado: de um lado, “a ampliação e diversificação da rede
de comércios e serviços voltada para o atendimento das camadas
média e alta de rendas urbanas”; e, de outro, “a expansão de
atividades precárias incluídas na gama de atividades classificadas
como trabalho informal, onde o exemplo mais notável é o aumento
de pessoas ocupadas no comércio ambulante […] estatisticamente
visível ao incremento de 91,3% entre 1981 e 1990” (Ibid., pp. 6-7).
Considerando as dificuldades de ampliação do emprego

5
Recente pesquisa sobre flexibilidade, produtividade e ajustamento da mão de obra
no Brasil confirma este breve esboço (Camargo, 1996).
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 261

público e a queda das taxas de trabalho com carteira assinada que


atinge todos os setores da economia, muito mais intensa nos anos
1990 do que na década anterior, é lícito supor que estes são os dois
principais nichos de absorção do trabalho. Deve-se notar que, embora
seu efeito agregado aponte na mesma direção – a convergência entre
terciarização e precarização –, trata-se de atividades cujas condições
de realização e consequências para os trabalhadores envolvidos, ao
menos em princípio, podem ser muito diferentes.
Em resumo, os dados disponíveis apontam para índices de
desassalariamento e desproteção sem precedentes no mercado
de trabalho urbano do Brasil, principalmente durante o período

ão
recessivo que marcou o fim dos anos 1980 e início da década atual
[1990], apesar do declínio tanto dos índices de desemprego aberto,


quanto de sua duração média: a taxa de desemprego passou de 3,8

lg
para 5,4 entre 1982 e 1984, e de 2,8 para 4,1 entre 1989 e 1991,
enquanto a duração média do desemprego de 7,5 meses em 1983
vu
caiu para 5,3 em 1990 (Ibid., p. 8). Atribui-se este comportamento
di

ao fato de que
de

[…] no início dos anos 80, em função do longo período de


crescimento estável dos anos 70 e da própria natureza das políticas
de ajuste implementadas, é possível que os agentes econômicos
ar

encarassem a queda do nível de atividade e da demanda de trabalho


pl

como algo transitório […] Já no início da década de 90, após uma


década de fraco crescimento e diante de uma autêntica política
em

de ajuste estrutural, eles [os agentes] rapidamente entenderam


que a queda da demanda de trabalho poderia não ser transitória
e se deslocaram rapidamente para outro segmento do mercado de
Ex

trabalho (Urani, 1995, pp. 36-37).



Baltar, Dedecca e Henrique fornecem um quadro ligeiramente
distinto, mas que, de qualquer modo, aponta na mesma direção geral
da intensa precarização:

[…] houve importante redução do volume de emprego nos setores


mais estruturados, em especial da indústria, durante a recessão
de 1990-1992. A recuperação econômica de 1993-1995 não
recompôs aquele estoque. O desempenho negativo desses setores
na sustentação do nível de desemprego urbano foi compensado
parcialmente por um aumento dos empregos nas atividades
262 | Luiz Antonio Machado da Silva

de serviços e comércio tradicionais, mantidas por pequenos e


médios negócios. O comportamento positivo do emprego nestas
atividades reforçou, em geral, a situação de precariedade do
mercado de trabalho, não só porque elas são tradicionalmente
geradoras de empregos não-formalizados, mas também porque
os novos empregos informais de classe média são apenas uma
parcela pequena dessas ocupações (Baltar, Dedecca e Henrique,
1996, p. 102).

Portanto, os trabalhadores acionam estratégias que conduzem
seja à inserção sem proteção legal – os “sem carteira” –, seja ao

ão
chamado “conta-própria”. Entretanto, deve-se lembrar, uma vez mais,
que não há por que pensar que esta tendência ao desassalariamento


afeta de maneira homogênea o conjunto dos trabalhadores, apenas
os dividindo de forma linear entre os que dispõem de um emprego
lg
assalariado juridicamente protegido e relativamente estável e os
vu
que evitam o desemprego através do desempenho de atividades por
conta própria ou aceitando assalariar-se sem carteira assinada; nem
di

por que considerar que os valores e a racionalidade associada a estes


resultados sejam unívocos.
de

Dito de outra forma, não se deve deixar de observar o fato de


que as mudanças na estrutura do mercado, que até a década de 1970
ar

afetavam basicamente os segmentos inferiores que ingressavam ou


se situavam na periferia do capitalismo urbano-industrial, atingem
pl

hoje o conjunto da força de trabalho, inclusive seus setores mais


em

bem qualificados e remunerados. Nestas condições, é de se esperar


que os efeitos das transformações em curso sejam muito variados,
Ex

tanto em termos das oportunidades materiais de vida, quanto das


avaliações subjetivas do significado dos câmbios e das possibilidades
de controle do contexto em que estão inseridos os diferentes
subgrupos de trabalhadores. Neste trabalho, damos um tratamento
polarizado a essas diferenças apenas para efeitos de simplificação e
como sugestão inicial de um caminho a seguir.6
Tradicionalmente, as análises mais particularizadas das
estratégias econômicas, sua lógica e seu contexto têm se concentrado
nos estratos inferiores, a respeito dos quais existem excelentes

6
Em uma linha de argumentação semelhante, Mingione (1991) sugere um modelo
muito mais complexo, em nível mundial, dessas diferenciações, aliás expressas no
sugestivo título do livro: “sociedades fragmentadas”.
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 263

pesquisas, como é o caso, por exemplo, de Cariola et al. (1992)


sobre os trabalhadores das favelas venezuelanas. Os comentários
que se seguem enfatizam os setores médios justamente por serem
os mais carentes de investigação empírica detalhada e sistemática,
em especial no caso dos países periféricos. Discutir os conteúdos das
ações econômicas, nestas condições, não pode deixar, portanto, de
ter um certo caráter especulativo e tentativo.

Informalização dos setores médios


ão
Para que se possa qualificar e determinar o escopo do
argumento desenvolvido na próxima seção, é necessário sublinhar


de início que seu foco é um contingente restrito de trabalhadores. É

lg
indiscutível que as dimensões das camadas médias no Brasil são muito
reduzidas, mesmo reconhecendo a dificuldade de definir fronteiras
vu
que determinem seus limites, bem como a grande diferenciação
di

interna da categoria estatística que se estiver considerando.


Nesta direção, cabe reiterar que o conjunto de subprocessos
de

já comentados, que “flexibilizam” o emprego, favorece a mobilidade


descendente desses setores, cujas condições de vida e trabalho
também se precarizam,7 em um quadro de seletividade e competição
ar

semelhante ao que vigora no mercado de trabalho juridicamente


pl

regulado8 – o que, obviamente, contribui para diminuir ainda mais


suas dimensões.
em

Acrescente-se que o contingente de trabalhadores – ou


ex-trabalhadores, no caso daqueles que tentam converter-se em
Ex

empresários – aqui focalizado não só é fisicamente pouco numeroso,

7
De passagem, vale mencionar que esta tendência não confirma as expectativas
vigentes até os anos 1970 sobre a proletarização das camadas médias,
especialmente de seus segmentos profissionais (Prandi, 1978), indicando antes
uma “desobreirização” no sentido mais amplo desse termo (Leite Lopes e Machado
da Silva, 1979).
8
Nos anos recentes, o acesso aos postos de trabalho torna-se ainda mais seletivo,
ampliando-se a participação dos trabalhadores com níveis de escolaridade mais
alto – notadamente para aqueles com cinco a oito anos de estudo –, localizados na
faixa etária entre 25 e 49 anos, decrescendo de forma correlata as oportunidades de
trabalho para as faixas etárias mais jovens e mais velhas e para aquelas com baixos
níveis de escolaridade (Castro, 1995, p. 225).
264 | Luiz Antonio Machado da Silva

como também, quando dimensionado conforme o faturamento das


atividades nas quais está envolvido, seu desempenho individual é
muito modesto, ainda que o resultado agregado possa ter alguma
expressão (embora, certamente, menor do que a alardeada pela
imprensa). De fato, ao menos no caso do município do Rio de
Janeiro, sobre o qual se dispõe de informações estatísticas recentes,
os resultados da pesquisa “Economia Informal Urbana” são claros: o
universo investigado (trabalhadores por conta própria, empregadores
com até cinco empregados remunerados ou não) gerou um excedente
total de 246 milhões de reais no mês de referência, setembro de
1994, sendo que apenas 2,5% das “empresas” (trabalhadores por

ão
conta própria ou proprietários de pequenos estabelecimentos)
apresentaram faturamento superior a R$ 5.000,00 mensais (IBGE,


1996, p. XXVI). Sem dúvida, essa pesquisa não cobre todos os

lg
aspectos da informalização das camadas médias, mas é indicativa do
patamar de sua participação econômica.
vu
Apesar de tudo isso, há que considerar também que, embora
di

em escala modesta – em razão tanto da crise econômica quanto do


lento ritmo de modernização do parque produtivo nacional e da
de

brutal concentração de renda –, surgem demandas cada vez mais


sofisticadas e diversificadas, seja da indústria, seja dos segmentos
sociais mais privilegiados. Nossa atenção volta-se para a pequena
ar

fração dos trabalhadores que possui competências, disposições e


pl

recursos que lhe permitem ao menos empreender a tentativa de


acesso a tais demandas.
em

Sobre essas tendências, tem sido produzida uma ampla


literatura analisando os países de capitalismo avançado. Ela é
Ex

útil, pois aborda processos que, relacionando-se à reconversão


econômica global, também estão em curso no Brasil. Mas, para que
a absorção de seus resultados seja produtiva, é preciso uma atitude
cautelosa. Em primeiro lugar, porque existe uma óbvia diferença
de escala e tempo histórico entre essas economias, que não pode
ser desconsiderada por comparações mecânicas. Em segundo
lugar, porque é necessário refrear as generalizações movidas pelo
otimismo às vezes excessivo de pesquisadores que, como Freeman
e Soete (1994 p. 123), destacam, no caso dos países centrais, os
aspectos positivos da reestruturação produtiva: “[…] o nascimento
e o crescimento de novas pequenas empresas foram reconhecidos
em todo lugar como essenciais à renovação do desenvolvimento do
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 265

emprego e à flexibilidade”.
Este pequeno exemplo de uma afirmativa comum nos
trabalhos do tipo mencionado talvez seja suficiente para perceber
que as contratendências – precarização, empobrecimento, etc. –, que
também se manifestam nas economias desenvolvidas e estão na raiz
de toda a discussão, são ignoradas ou minimizadas por essa linha de
interpretação. Consideramos que, especialmente quando adotam a
perspectiva (no sentido cognitivo desse termo, e não no ideológico)
do trabalho, essas tendências e contratendências gerais devem ser
relacionadas às categorias sociais envolvidas, pois, como temos
reiterado, seus efeitos são fortemente diferenciados.

ão
Tais comentários não são ociosos, especialmente quando
se considera a apropriação ideológica da literatura acadêmica que


segue essa linha. De uma maneira geral, ela focaliza a produção,

lg
fazendo recair a ênfase na maleabilidade proporcionada pela
desconcentração e redução de escala, de modo que os efeitos
vu
negativos da informalização tendem a ser minimizados9 e as
di

tendências na direção da “produção flexível” aparecem como a


solução para os problemas que elas mesmas introduzem.
de

Ideias derivadas da discussão acadêmica são utilizadas


pela mídia e outras instituições públicas, que as transformam em
verdadeiro proselitismo da informalidade. Assim, por exemplo, os
ar

meios de comunicação insistem no que seria uma extraordinária


pl

“força oculta da economia informal”, para utilizar o título de uma


reportagem a respeito do assunto publicada pelo Jornal do Brasil,
em

em 02/02/1992. Muitas vezes, nestes casos, não é o modo de


organizar a produção ou seu estatuto legal que interessa, mas a
Ex

“riqueza invisível” que não é captada pelas contas nacionais, em


uma variante recente e menos técnica da preocupação que esteve
na origem do termo “informal” e que cresce em todo o mundo com
o reconhecimento da necessidade de revisão dos modelos de coleta
de informações econômicas para adaptá-los às fissuras do regime
salarial, que é a base desses modelos em todo o mundo.10 Do mesmo

9
Põe-se em operação claramente a noção de “destruição criadora”, cujo perigo
indicado por Paiva, Potengy e Chinelli (1996, p. 17): “O conceito de destruição
criadora […] não pode encontrar guarida em uma reflexão política mais responsável
sobre a formação da população e sua inserção social em geral e no mundo do trabalho
em particular. Não existe ‘criação’ a partir da miséria psíquica dos atingidos”.
10
Para um bom resumo do atual estado da arte no que diz respeito a essas questões,
266 | Luiz Antonio Machado da Silva

modo, organismos empresariais semipúblicos, como o Serviço


Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), adotam
discurso equivalente, fundamentando propostas de desregulação na
contribuição da economia informal para a geração de renda e em sua
capacidade de absorver trabalho, ao mesmo tempo que desenvolve
uma retórica de estímulo a que os trabalhadores se engajem em
atividades não assalariadas. Entretanto, ao menos no caso do Rio
de Janeiro, os números da pesquisa acima mencionada (IBGE, 1996)
apontam para a contramão dos indicadores comumente acionados
pela mídia e por esta e outras instituições públicas e semipúblicas.
De fato, este suposto dinamismo não é reconhecido pela

ão
maior parte dos economistas que, como vimos na seção anterior,
convergem na ênfase sobre a crescente precarização das relações


de trabalho, encarando com indisfarçável reserva a capacidade

lg
de geração de empregos dos segmentos menos protegidos da
população. Entretanto, apesar de todas as ressalvas acima, mesmo
vu
análises que poderiam ser qualificadas de sombrias, como a de
di

Baltar, Dedecca e Henrique (1996) já mencionada, não desconhecem


o surgimento de “novos empregos informais de classe média”,
de

correspondentes ao fenômeno enfatizado pelas interpretações que


favorecem o que denominamos o lado “virtuoso” das tendências de
informalização do mercado. A que categoria social ele beneficia? E
ar

quais os efeitos que produz?


pl

Em artigo pioneiro, Quadros procura captar, com base em


dados de São Paulo, o impacto das transformações recentes no
em

mercado de trabalho sobre a inserção ocupacional dos estratos


médios brasileiros. Seu estudo demonstra a ocorrência de significativa
Ex

redução dos níveis hierárquicos, notadamente na indústria e no setor


financeiro, correlata da introdução de novas formas de organização
e gestão empresarial. Isto provocou um enxugamento nos postos
de trabalho, concentrado nos níveis intermediários de gestão, mas
que se estendeu até mesmo à direção e à assessoria. As funções mais
sensíveis à terceirização, principalmente aquelas qualificadas da
área de comercialização – corretores, agentes, representantes, etc. –,
também apresentaram redução significativa (Quadros, 1996, p. 175).

cf. Charmes (1992). Como exemplo da cobertura da mídia valorizando positivamente


a produção não contabilizada, cf., por exemplo, os números das revistas Veja
(06/09/1995) e Isto É (14/02/1996).
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 267

A pesquisa de Quadros destaca que “a retração do


assalariamento e a reestruturação das condições de trabalho
daqueles que permanecem neste regime são acompanhadas pelo
incremento na terceirização de tarefas, até então realizadas pela
grande empresa” (Ibid., p. 179), ressaltando que “os impactos sociais
das transformações ocupacionais são bastante diferenciados no
conjunto dos trabalhadores [dos segmentos médios] atingidos”
(Ibid., p. 175). Seu estudo soma-se às reflexões de autores que
apontam para as consequências negativas dessas transformações
para o conjunto dos setores médios da população brasileira, cujos
contingentes se retraem, ao mesmo tempo que declinam os níveis

ão
agregados de seu consumo e renda, “com correspondente expansão
da iniciativa por estabelecer negócios próprios em meio ao


acirramento da competição” (Paiva, Potengy e Chinelli, 1996, p. 3).
Configura-se, assim, um fenômeno que
lg
vu
[…] abre importante frente de novas oportunidades para micro e
pequenos empreendimentos, bem como para uma ampla gama de
di

profissionais autônomos. Junto com os espaços tradicionalmente


assegurados ao pequeno negócio, estas oportunidades
de

acolhem parcela seguramente não desprezível dos afastados


do assalariamento. É óbvio que muitas das alternativas mais
ar

interessantes trazidas pela terceirização são captadas por aqueles


que contam com melhor condição de acesso aos contratantes.
pl

Isso nem sempre se explica pela maior qualificação profissional,


em

mas frequentemente decorre da proximidade familiar ou social


dos centros de decisão, combinada com a subcontratação de
especialistas para realizar as tarefas encomendadas. Assim sendo,
Ex

seja pela capacitação, seja pela inserção social, o grosso das


oportunidades atrativas acaba nas mãos da própria classe média
(Quadros, 1996, pp. 179-180).11

Tudo isso significa que, ao desemprego estrutural que sempre
caracterizou os países de industrialização recente – que pôs em

11
A propósito, vale a pena mencionar dois pontos: a) a óbvia dificuldade, empírica e
teórica, de determinar com clareza os limites das “classes médias”, particularmente
em países como o Brasil, cuja profunda desigualdade social polariza sobremaneira
a estratificação; b) a imensa diferença entre a discussão estabelecida por Quadros
(1996) sobre a atualidade e interpretações vigentes nos anos 1970 sobre categorias
ocupacionais semelhantes, como a de Prandi (1978).
268 | Luiz Antonio Machado da Silva

pauta as dimensões do exército de reserva e suscitou considerações


sobre um contingente de trabalhadores sem função econômica para
o capital, chamado de “massa marginal” na década de 1960 (Nun,
1969) –, se acrescentam hoje as dificuldades e as mudanças nas
formas de absorção produtiva dos segmentos mais qualificados da
força de trabalho. Dificuldades e mudanças que os empurram com
frequência crescente para atividades alternativas, com as quais
buscam cada vez mais não só contrapesar os efeitos pessoais e
familiares das transformações, mas também, sob o estímulo do
poder público, do empresariado e da mídia, realizar o desejo de
autonomia profissional através da criação de pequenas empresas

ão
“familiares-modernas” (racionalizadas e capazes de se adaptar
criativamente a condições de funcionamento sempre cambiantes) e/


ou do “autoempresariamento” (profissionais capazes e dispostos a

lg
descobrir e/ou criar novas alocações para seu trabalho), em conexão
com a estruturação de novos estilos de vida e de padrões de consumo.
vu
Pode-se admitir que as melhores oportunidades produzidas
di

neste movimento de reorganização das relações produtivas se


restringem à parcela das camadas médias que goza de competências,
de

disposições e recursos compatíveis, pois, também nestes casos,


reproduz-se o mesmo comportamento seletivo do mercado de
trabalho assalariado. É este segmento que focalizamos a seguir.
ar
pl

As “novas oportunidades” e as disposições dos agentes


em


Embora a evidência disponível seja escassa e não conclusiva,
Ex

particularmente no que diz respeito à conexão entre os processos


econômicos e a lógica do comportamento dos agentes, o engajamento
no diversificado leque que estamos chamando de atividades
alternativas pode corresponder a uma atitude estritamente defensiva
visando evitar ou compensar a mobilidade descendente, assim
como também a uma atitude ativa de preferência por esse caminho
como meio de ascensão social ou manutenção de status. A ênfase
monocórdica em um desses dois aspectos, tão comum nos pacotes
interpretativos que desejamos evitar, dificulta o entendimento
dessas duas possibilidades concretas. É mais plausível propor a
hipótese de que a formação dos comportamentos corresponda
a uma combinação das duas atitudes, com o peso relativo de cada
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 269

uma dependendo do volume de recursos (econômicos ou não) e


expectativas de que os agentes dispõem.12
Este é um problema de interpretação que só faz sentido
quando a atenção se dirige aos trabalhadores das camadas médias
que dispõem, em quantidades variadas, de um volume significativo
de recursos. De fato, é difícil falar em atributos como iniciativa,
criatividade, inovação, etc., sob condições de carência material,
baixa escolaridade e qualificação profissional, posições subalternas
nas redes de clientela e de poder, dentre outras, que caracterizam
as camadas menos favorecidas dos trabalhadores. Os malabarismos
necessários para “sobreviver na pobreza”, usando o sugestivo título

ão
de Cariola et al. (1992), implicam o exercício de habilidades que
estão mais próximas da bricolagem do que do desenvolvimento


schumpeteriano, pois se limitam ao conjunto de “atividades

lg
precárias” a que se referia Leite Lopes (1995) na passagem citada
anteriormente. (Na medida em que as fronteiras socioeconômicas
vu
entre as duas categorias de trabalhadores não são claras, e dado que
di

– como veremos adiante – as competências e disposições associadas


à preferência pelo trabalho independente são de caráter difuso, as
de

afirmativas acima precisam ser compreendidas como tendências


dominantes, e não absolutas).
Por outro lado, deve-se notar que, quanto maior for o
ar

volume de recursos disponíveis ou mobilizáveis, mais decisiva será


pl

a presença ou ausência das disposições psicossociais típicas do


empresário schumpeteriano, relacionadas à capacidade de produzir
em

novas combinações entre os fatores de produção (incluindo aí novos


agenciamentos do próprio trabalho), que Capecchi (1988, p. 276)
Ex

denomina de “empresarialidade”. O problema da aquisição dessas


disposições e das habilidades correspondentes tem sido pouco
explorado. Importante pista é oferecida por esse autor ao tratar
da nova geração de trabalhadores da periferia de Bolonha, sendo

12
Esta não é uma questão inteiramente nova, mas, dada a importância de que se
reveste, não há nenhuma trivialidade em sua repetição. Ainda nos anos 1950/60, por
exemplo, afirmava-se que as características culturais dos migrantes, incompatíveis
com a disciplina e o ritmo da atividade fabril, favoreciam a preferência pelo trabalho
por conta própria (Lopes, 1960). Reduzia-se, naquelas análises, a inadequação à
oferta em escolha subjetiva, do mesmo modo com que hoje se mistura restrição
contextual com escolha livre em favor da informalidade. Continua necessário,
portanto, criticar o mecanismo reducionista dessa abordagem.
270 | Luiz Antonio Machado da Silva

importante sublinhar o caráter difuso que ele atribui à aquisição da


“empresarialidade”:

[…] na atualidade existe uma relação muito estreita entre trabalhos


precários realizados por jovens, maiores níveis de escolaridade e
projetos de se estabelecerem por conta própria. De fato, há uma
“empresarialidade sem empresa” pela qual estas novas gerações
têm com frequência projetos de pequena empresarialidade, porém
sem conseguir realizá-los e sem ter perspectivas de desenvolver
um trabalho assalariado qualificado. Assim, pois, existe um
espaço juvenil no qual se desenvolvem trabalhos informais (não

ão
qualificados), a partir dos quais podem ser empreendidos itinerários
informais (qualificados) até o estabelecimento por conta própria,


utilizando no processo não apenas as competências educacionais,
mas também conhecimentos apreendidos durante o chamado

lg
‘tempo livre’ (saber praticar um esporte, tocar um instrumento
musical, dançar, etc.). Nestes itinerários da nova empresarialidade
vu
no terciário chama a atenção o fato de que, também neste caso, se
trata de uma pequena empresarialidade que assume o modelo de
di

especialização flexível: são oferecidos serviços que levam em conta


as exigências específicas do cliente, seja este uma empresa ou
de

indivíduo (Ibid., p. 227, grifo do autor).



ar

Para Morchio (1993, p. 31), esses itinerários podem permitir


aos mais jovens a possibilidade de controle – e, acrescentamos,
pl

a responsabilidade – da construção da própria empregabilidade.


em

Em tais percursos, é evidente que, do ponto de vista meramente


quantitativo, deve ser insignificante a combinação do que chamamos
Ex

acima de atitudes de “defesa” e “preferência”, em que há menor peso


das restrições contextuais e a “empresarialidade” é mais decisiva.
No entanto, exatamente por envolver uma pequena camada de
trabalhadores mais bem situados na escala social, sua visibilidade e
importância político-cultural é muito maior, valendo a pena ressaltar
o peso desse pequeno contingente como “formador de opinião”,
para utilizar a expressão corrente. Mais do que um ator político, por
seu exemplo e por seu prestígio social, esse grupo é uma espécie de
arauto de novas posturas diante do mundo do trabalho. Seu papel na
sustentação de políticas econômicas que aprofundam as tendências
que vimos apontando não deve ser subestimado, mesmo quando se
reconhece que sua participação política direta é rarefeita.
Para que a “empresarialidade” se manifeste, atualizando-se
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 271

como “preferência”, é necessário um elemento de adesão antecipada


aos significados culturais da nova relação produtiva, que afeta
muito profundamente a percepção, os valores e a racionalidade
dos agentes.13 Apesar da extensão e complexidade das mudanças
envolvidas, alguns pontos merecem um breve comentário.
No que diz respeito às atividades alternativas que estamos
considerando, a autonomia no controle do tempo e do ritmo de
trabalho não é apenas um fato, mas também um valor que impede
o reconhecimento de que esse “controle” em geral corresponde, na
prática, a um forte aumento e/ou intensificação do uso de trabalho
vivo. Por outro lado, o caráter de maleabilidade e flexibilidade que é

ão
indissociável dessas atividades costuma vir relacionado à valorização
da experimentação como veículo de expressão pessoal, dificultando


a percepção do risco permanente associado a elas. Finalmente,

lg
a ênfase crescente em ideais de prazer e plenitude no trabalho
concentra a atenção nos conteúdos substantivos das atividades e
vu
não em sua forma (a própria relação produtiva), obscurecendo o
di

reconhecimento da profunda instabilidade intrínseca à inserção


informal, além de levar a uma crescente dificuldade de distinguir
de

entre trabalho e descanso, trabalho e não trabalho, trabalho e lazer.


Estamos sublinhando as ambiguidades inerentes às novas
condições de trabalho desse grupo e sugerindo que os trabalhadores
ar

envolvidos, pelo fato mesmo de aceitarem voluntariamente tais


pl

condições, não são capazes de avaliá-las de uma forma clara. Mas é


preciso reconhecer que outros autores, apesar de todas as ressalvas
em

que apresentam, parecem compartilhar da avaliação unilateral dos


trabalhadores, ao apontarem como as novas formas de organização
Ex

do tempo se aproximam daquelas características das sociedades pré-


industriais, redefinindo práticas e valores associados ao trabalho14

13
As dificuldades de integração sociocultural pelo trabalho sob o regime salarial
têm sido objeto de atenção por vários autores, dos quais um dos mais importantes
é Offe (1989b, especialmente cap. 5). Cf. também Perret e Roustang (1993) e Castel
(1995). Estamos indicando aqui simplesmente um dos aspectos envolvidos nessa
ampla questão.
14
Paci (1993), ao analisar os altos índices de incremento do trabalho autônomo na
Itália durante os anos 1980, aponta como uma das interpretações possíveis para o
fenômeno aquela que enfatiza as profundas mudanças na cultura do trabalho que
lhe conferem características atraentes: flexibilidade de horários, possiblidade de
autogestão da atividade, um certo grau de controle sobre os tempos de execução
272 | Luiz Antonio Machado da Silva

que permitiriam ampliar e usufruir do tempo e da vida (Tabboni,


1991; Paolucci, 1993). Não desejamos negar as evidências nem as
observações desses autores a propósito delas. Ao chamar a atenção
para a ambiguidade das mudanças em pauta e para a dificuldade
de sua percepção pelos próprios agentes, nosso propósito é tão
somente evitar o injustificável otimismo que elas deflagram. Neste
sentido, ressalte-se que esta perspectiva é apropriada pela mídia nas
inúmeras reportagens que, em conexão com a crise do mercado de
trabalho e os novos requerimentos de qualificação, tratam dos novos
modelos de emprego em um tom que os apresenta como solução
socialmente desejável:

ão
A EMPRESA SOU EU


Movida a coragem, tecnologia e talento, surge uma nova geração de
empresários autônomos
lg
Todas as manhãs, Alice Figueiredo, de 40 anos, toma o café com a
vu
família e sai para trabalhar. Desce um lance de escada e já está em seu
escritório, montado na garagem de casa. Lá, ela dedica 6 horas por
di

dia à tarefa de criar e desenvolver brindes e material promocional


para empresas e agências de publicidade […] “Faço o que gosto,
de

administro minha casa e ainda ajudo na tarefa escolar de meus dois


filhos”, diz ela. Alice não tem do que se queixar. Ganha uma fortuna,
ar

15 mil reais por mês, muito mais do que poderia sonhar em seu
antigo emprego como secretária da Bolsa de Valores de São Paulo
pl

[…] Alice forma um time especial de empreendedores solitários.


São pessoas que, além do próprio talento como instrumento de
em

trabalho, atuam num ramo de atividade especial. Ou porque não


existia antes ou porque só existia no organograma de empresas
Ex

tradicionais (Veja, 12/02/1997).



Um outro aspecto que parece contribuir para que os
segmentos superiores das camadas médias desenvolvam novas
posturas diz respeito ao horizonte de sua sociabilidade no trabalho.
Neste grupo, a atividade produtiva tende a consumir grandes

e entrega e quebra da rotinização do trabalho assalariado. A indicação desses


aspectos pelo seu lado positivo relaciona-se à interpretação do autor de que naquele
país ocorre um movimento de “periferização do aparelho produtivo”, ligado a uma
avaliação do mercado como “lugar específico onde se realizam as condições e as
formas históricas da submissão e da subtração da força de trabalho ao processo de
acumulação” (apud Cappelin, 1995, p. 7).
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 273

quantidades de tempo e energia. Um exemplo singelo é o fato de que


a caracterização de “workalcoholism” que, com seus sobretons entre
o sério e o jocoso, se pretende uma crítica aos exageros do esforço
produtivo, só tem sentido quando aplicada a ele (quem se atreveria
a brincar com “workalcoholism” dos membros de uma família pobre,
mesmo sabendo que eles enfrentam jornadas duplas ou triplas?).
Por outro lado, parcelas significativas de trabalhadores desse grupo
estruturam suas estratégias de trabalho em torno da prestação de
serviços em novos nichos de mercado abertos pelas demandas cada
vez mais sofisticadas e diversificadas dos segmentos mais afluentes,
beneficiados pelo processo de concentração de renda. Mesmo

ão
quando não se trata de serviços de consumo final, a natureza das
atividades desse grupo aproxima-o das funções mais elevadas do


processo produtivo – como vimos, Quadros (1996, p. 180) fala de

lg
uma “proximidade familiar ou social dos centros de decisão”.
Queremos chamar a atenção para um dos possíveis efeitos
vu
da convergência entre a formação de um segmento de trabalhadores
di

que, como temos indicado: a) é reduzido e composto por uma fração


dos setores médios que se encontram em processo de contração;
de

b) apresenta e valoriza um forte envolvimento com sua própria


atividade produtiva; c) desenvolve uma certa circularidade unindo
as pontas da produção e do consumo dos subsetores produtivos
ar

aos quais está ligado. Nestas condições, parece plausível sugerir


pl

que tal segmento, não obstante sua eventual qualificação técnica e


sofisticação intelectual, tende a acumular uma experiência social
em

extremamente limitada e restrita, no essencial, às interações com


seus próprios pares.
Ex

A extensão dos efeitos negativos da conjugação entre os três


aspectos listados acima sobre a integração da sociedade ainda está
por ser avaliada, e não cabe nos comentários esquemáticos que aqui
alinhavamos. Mas queremos sublinhar sua capacidade de penetrar
todos os espaços da vida cotidiana, formando uma barreira que fecha
até mesmo os últimos pontos de contato entre diferentes categorias
sociais, representadas pelos serviços domésticos. É isto que parece
estar expresso na fala de uma das mulheres de classe média que se
dedicam ao transporte de crianças em São Paulo e Belo Horizonte,
que ilustra uma reportagem intitulada “Ao volante, com carinho”:

[…] A essa capacidade de manter uma relação amigável com


274 | Luiz Antonio Machado da Silva

a garotada, soma-se outra: as motoristas de aluguel inspiram


confiança […] Grazia encontrou a solução de seu problema nos
serviços de Luiza Giuliani Coelho, que faz questão de manter
seu negócio restrito a um círculo fechado – só aceita clientes
recomendados. “Numa cidade perigosa como São Paulo, não dá pra
você colocar qualquer pessoa dentro do seu carro”, explica (Veja,
17/07/1996).

Conclusões

ão
Não é da natureza de um texto exploratório como este
buscar conclusões para os argumentos apresentados. Reconhecendo


este caráter aberto e meramente tentativo de nossas observações,
optamos por concluí-las procurando deixar mais claros os principais
lg
elementos do ponto de vista que adotamos ao elaborá-las.
vu
1. As profundas transformações econômicas deste fim de
século estão associadas à elevação da produtividade global, ligada
di

à introdução de novas tecnologias que implicam em intensos


processos de reestruturação do aparelho produtivo, tanto no plano
de

das relações internacionais quanto das estruturas nacionais. Estas


respondem de maneira particularizada aos desafios e pressões sem,
ar

entretanto, romper com as tendências gerais. Tal foi a perspectiva a


partir da qual concentramos a atenção no caso brasileiro.
pl

2. Focalizando mais de perto as relações de trabalho, as


em

grandes mudanças apontadas a um tempo apoiam-se sobre, e


produzem, um quadro de superfluidade do trabalho que desborda
Ex

em muitos dos modelos produzidos para sua apreensão durante o


século XIX, aceitas ao menos em seu enquadramento básico até os
anos 1970 e que, a partir daquele momento, passam a ser fortemente
criticadas. Também partimos deste segundo pressuposto: as
mudanças em curso são suficientemente profundas para abalar os
próprios quadros intelectuais disponíveis para sua apreensão, sem
chegar a substituí-los ou recompô-los. Optamos por conformar-
nos com os instrumentos cognitivos disponíveis, reconhecendo,
entretanto, que o entendimento adequado destes tempos de
mudança passa por um trabalho de crítica teórica que não teríamos
condições de realizar, ainda que o espaço permitisse.
3. Quando o interesse se concentra, como é o nosso caso, nos
efeitos das grandes transformações indicadas acima para a integração
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 275

e a reprodução social, as mudanças na estrutura do mercado de


trabalho são de grande importância. Partimos do princípio de que
nas condições atuais do conhecimento sociológico, elas precisam ser
apresentadas como um processo de “informalização” das relações de
trabalho, entendida ao mesmo tempo como afastamento de aspectos
particulares do assalariamento (enquanto regime produtivo e/ou
relação contratual) e como “informalidade”, no sentido de um espaço
produtivo que não participa organicamente do mercado de trabalho
assalariado, embora dependa dele.
4. O debate sobre as mudanças na estrutura do mercado e
seus efeitos sociais tem dado origem a pacotes interpretativos que,

ão
por serem muito abrangentes, acabam articulando as significativas
evidências e questões que produzem de maneira unilateral. Aqui,


procuramos trabalhar em um nível de generalidade mais baixo,

lg
de modo a permitir a quebra de unidade desses pacotes e, assim,
evidenciar a) a ambiguidade dos efeitos mais imediatos das
vu
mudanças, tanto no que diz respeito à própria atividade produtiva
di

quanto no que concerne às condições de vida e à integração social;


b) a necessidade de considerar as categorias sociais envolvidas,
de

pois, como em qualquer processo de mudança, a informalização é


indissociável de intensas alterações na estratificação social e nos
padrões de sociabilidade.
ar

5. Em termos mais gerais – e forçando um pouco os


pl

argumentos limitados que apresentamos no corpo do trabalho –,


gostaríamos de finalizar reiterando os seguintes pontos:
em

a) há uma tendência geral de retração das relações


assalariadas, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos.
Ex

Neste sentido, a terciarização é, ao mesmo tempo, precarização e


desassalariamento;
b) o aspecto mais saliente dessa tendência nas últimas
décadas é que ela abrange as camadas médias, antes poupadas das
crises econômicas. Atinge também os países centrais, que veem
esgotar-se o pleno emprego como tendência real e como meta viável;
c) as mudanças nas chances de trabalho para essas camadas
parecem indicar, para a maioria, empobrecimento e perda de
segurança, mas não proletarização. Há um intenso movimento, em
parte resultado de pressões contextuais, em parte voluntário, de
tentativa de “fuga para a frente” em direção às inúmeras variantes
do “conta-proprismo”;
276 | Luiz Antonio Machado da Silva

d) essas mudanças não apenas aumentam as desigualdades


econômicas, mas parecem ser também fortemente prejudiciais à
própria integração social, já que um subproduto (não intencional,
mas igualmente não reconhecido) é o aprofundamento da distância
entre as categorias sociais.

ão

lg
vu
di
de
ar
pl
em
Ex
9. Da informalidade à empregabilidade
(reorganizando a dominação no mundo do trabalho)1


Este texto tem por objetivo apresentar as dificuldades
implicadas na tentativa de se traçar um perfil da informalização no
Brasil atual. Antecipando a conclusão, um pequeno levantamento da
literatura recente sobre o tema e a retomada da história da noção
de informalidade indicaram que minha intenção original – combinar
uma discussão da ambiguidade que essa noção carrega desde sua
origem, com a apresentação do crescimento do país do fenômeno

ão
que ela pretende descrever – se constituía numa tarefa inviável ou


irrelevante, ou ambas as coisas. É justamente isso que as páginas que
se seguem tentarão explicar e interpretar.

lg
Meu argumento básico é o seguinte. Desde mais ou menos o
fim dos anos 1960,2 quando surge a noção de informalidade, até o
vu
início dos anos 1980, ela era uma categoria cognitiva em torno da
di

qual se constituía um debate mais ou menos estruturado. Nas últimas


décadas, entretanto, “informalidade” progressivamente se torna um
de

mero termo do léxico sociológico, incorporado pelas camadas bem


informadas, perdendo a capacidade que, durante um bom tempo,
permitiu-lhe desempenhar aquele papel catalisador. De fato, creio
ar

que até o observador mais desatento perceberá que seu uso, ao


pl

mesmo tempo que se universaliza, se torna cada vez mais trivial e


em

não provoca as acaloradas discussões do passado, apesar de ainda


compor argumentos os mais diversos.3 Assim, sua generalização, que
Ex

1
In: Caderno CRH, Salvador, 37, pp. 81-109, julho/dezembro 2002.
2
É desnecessário lembrar que a noção de informalidade se torna “canônica” e muito
difundida a partir dos estudos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no
Quênia em 1972 (OIT, 1972). Entretanto, Peattie (1987, p. 853), entre outros, atribui
a criação a Keith Hart, que a gerou durante suas pesquisas em Gana (Cf. também
Miras, 1991). Creio, porém, que a noção se desenvolve ao mesmo tempo na América
Latina, e desde o início esteve, em ambos os continentes, ligada ao reconhecimento
das restrições de capital no processo de mobilização produtiva do trabalho e suas
consequências. Eu próprio, em longa pesquisa concluída no início de 1971, falo de
“mercado formalizado” e “mercado não formalizado” com um sentido próximo ao
produzido a partir dos estudos de países africanos (Machado da Silva, 1971).
3
“[…] porque hoje a fórmula do setor informal […] [é] de fato uma categoria cômoda
e, portanto, corrente no vocabulário ordinário, mais ou menos sinônimo de pobreza
urbana, de atividades de rua, de ausência de enquadramento regulamentar e de
278 | Luiz Antonio Machado da Silva

confere ao termo a aparência de um significado unívoco e de domínio


público, obscurece o fato de que esse uso indiscriminado o descarna
de substância analítica e força prática. É justamente por isso que se
pode concluir pela inviabilidade de construir seu atual perfil (como
dimensionar um vazio de significado?) e, ainda que tal esforço fosse
possível, afirmar sua inutilidade.4
Por outro lado, minha hipótese é que acompanhar este
esvaziamento se justifica, pois revela a perda do consenso – no
plano dos valores, no plano teórico e no plano do conflito político
– em que se assentava a força analítica da noção de informalidade.
Abre-se, assim, a porta para uma discussão mais ampla sobre as

ão
transformações na percepção social subjacente ao tratamento
acadêmico da relação entre a estrutura do mercado de trabalho e a


acumulação e, na direção oposta, do papel da produção sociológica na

lg
formação da percepção social. É claro que estarei apenas aflorando
essa análise da reprodução da ordem simbólica, mas penso que
vu
fornecer alguns elementos empíricos pode ser relevante.
di

Resta, então, da forma parcial e esquemática5 que o espaço


exige, contar a história desse rebaixamento de status cognitivo e
de

levantar hipóteses sobre sua relação com as mudanças na conjuntura


e as transformações no mundo real.

ar
pl

iniciativa econômica individualizada, de limites fluidos e contingentes” (Miras,


em

1991, p. 108, tradução nossa).


4
Paralelamente, em outro texto, estou tentando elaborar um modelo das mudanças
Ex

nas chances de mercado dos trabalhadores (sua adaptação às condições da oferta)


e sua relação com a desregulação jurídica e a “flexibilização” do uso da força de
trabalho. Mas, agora, “informalidade” já não é mais uma referência capaz de articular
a reflexão, podendo, no máximo, ser usada como um vago termo que descreve um
agregado estatístico, como, por exemplo, “trabalhadores sem carteira assinada”.
5
O debate em torno da “informalidade” compôs um corpus mais ou menos
definido da literatura sociológica, mas sua apreensão completa exigiria explorar as
superposições entre esses trabalhos e aqueles sobre “marginalidade” e “populismo”.
Essas três noções formavam um conjunto, correspondendo a tematizações
particulares – respectivamente no eixo da economia, da sociedade e da política –
do problema da integração social, tal como era socialmente construído naquele
momento (Machado da Silva, 1983; cf. também Quijano, 1966; Kowarick, 1975;
Barbosa Filho, 1980; Weffort, 1978). Miras (1991, p. 110) sugere que a noção de
informalidade substitui a de marginalidade, mas, ao menos no Brasil, ambas foram,
em grande medida, contemporâneas e se completavam.
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 279

Um último comentário introdutório, para deixar claro o ponto


de vista implícito na construção do argumento. Desde sua origem,
“informal” tem sido uma noção orientada para discutir “o outro
lado” da problemática, se não exatamente do emprego, ao menos da
mobilização ativa do trabalho – ou seja, ela foi proposta para analisar
as dificuldades e distorções da incorporação dos trabalhadores
ao processo produtivo em contextos onde o assalariamento era
pouco generalizado. Em consequência, sempre tendeu a focalizar,
prioritariamente, seus estratos mais desfavorecidos e a desenvolver,
em torno deles, um debate sobre a natureza, as condições e os
limites de sua integração econômica, lidos como adaptação desses

ão
grupos à estrutura social à qual pertencem, isto é, de seu papel
(ou função, ou necessidade) na produção da riqueza. Em outras


palavras: não é propriamente o trabalho que está em questão,

lg
mas grupos desfavorecidos (porém considerados numa trajetória
ascendente, porque atrelados a uma estrutura econômica em
vu
expansão) de trabalhadores; nem é a transformação econômica
di

que está diretamente em pauta, mas sim a forma e a velocidade


da integração de certos contingentes de trabalhadores a ela. Por
de

tudo isso, é natural que eu parta de uma perspectiva que enfatiza


a atividade dos trabalhadores (e não o desemprego ou a exclusão)
e suas chances de mercado (e não a oferta de postos de trabalho), a
ar

fim de acompanhar as continuidades e descontinuidades em relação


pl

a esse ponto de partida.


Existem certas noções – no caso presente, a de informalidade
em

– que podem ser consideradas como “quase-conceitos”. Elas (a)


permitem o acesso ao entendimento racional de fenômenos que
Ex

o quadro de referência adotado (um sistema conceitual abstrato,


estabelecido como generalidade) tende a desconhecer ou considerar
como não essenciais; (b) descrevem esses fenômenos como variações
dos mesmos conteúdos conceituais, dos quais são alternativas; (c)
retiram do caráter de imprevisibilidade ou excepcionalidade que os
fenômenos descritos tinham antes de (a) e (b) acima, “naturalizando”
ou banalizando a variação, isto é, incorporando-as ao quadro de
referência original. Dito de uma forma ainda mais sucinta, o “quase-
conceito” desempenha uma função de mediação que, de um lado,
realiza a crítica interna (ou, como se verá, o simples ajustamento),
motor da transformação de modelos conceituais formais, obrigando-
os a incorporar novos fenômenos não como “acontecimentos”
280 | Luiz Antonio Machado da Silva

singulares – portanto descartáveis como excepcionais e/ou


negadores do esquema teórico –, mas como “variações” típicas; e, de
outro, fornece referências cognitivas mais ou menos estabilizadas
(pela formalização conceitual), capazes de influir sobre a percepção
orientada para as atividades práticas. É esse papel poroso, a meio
caminho entre a percepção social típica de cada conjuntura e a
reflexão conceitual mais abrangente e rigorosa, que pode explicar
por que a noção de informalidade, empiricamente tão confusa
e analiticamente tão ambígua,6 sobreviveu, com popularidade
crescente, por mais de uma década.
Essas ambiguidades e a imprecisão conceptual têm sido muito

ão
criticadas, às vezes levando os comentadores a afirmar que a vigência
da noção de informalidade se restringiu ao campo das políticas


públicas (Peattie, 1987) e só foi forte no plano da ideologia, devido

lg
à sua capacidade de mascarar os conflitos e como “instrumento
de legitimação do poder do Estado” (Miras, 1991, p. 111). Porém,
vu
creio que, embora a crítica seja procedente, ambas as conclusões
são exageradas, pois a noção teve peso analítico significativo. De
di

fato, ela surgiu a partir de estudos acadêmicos (isto é, não dependeu


de

inteiramente de objetivos de intervenção) e, durante muito tempo,


fez parte do aparato teórico empregado em grande quantidade de
pesquisas, muitas das quais sem qualquer relação com propostas de
ar

políticas públicas. Em minha opinião, sua força residiu justamente


pl

nesse caráter de mediação entre a reflexão acadêmica e a intervenção


prática. Se esse movimento de mão dupla responde pela fragilidade
em

conceptual da noção (o que considero inquestionável), ele também


impede que ela seja jogada no terreno da pura ideologia. Isto, é claro,
Ex

não deve obscurecer o reconhecimento do interesse que despertou


nas agências internacionais de fomento, que muito contribuíram

6
Pode-se ter uma ideia dessa confusão somando a citação de Miras (1991), incluída
na nota 3, com o que diz L. Gallino, em trabalho sobre a Itália no início dos anos 1980:
“a difusão de atividades informais é simultaneamente: a) um resultado inescapável
do desenvolvimento da economia capitalista avançada; b) uma escolha livre e criativa
de inovação social; c) um conjunto de pequenas receitas de sobrevivência; d) um
retorno a relações sociais pré-modernas com o suporte de modernas tecnologias” (L.
Gallino apud Mingione, 1991, p. 91, tradução nossa). E, mais recentemente: “Mesmo
sendo uma realidade imprecisa, com contornos incertos, suas [da informalidade]
manifestações intuitivas podem ser vislumbradas nos dois hemisférios, nos países
desenvolvidos do Norte ou nas nações subdesenvolvidas do Sul” (Malaguti, 2000,
grifo nosso).
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 281

para sua divulgação – tema, aliás, aflorado em inúmeros trabalhos


críticos, mas pouco sistematizado.
A noção de informalidade surgiu na década de 1960, a
propósito dos problemas ligados à incorporação produtiva de
crescentes contingentes de trabalhadores que se deslocavam para
as cidades em todo o mundo subdesenvolvido.7 Nesse primeiro
momento, formou-se uma polêmica intensa, contrapondo
duas posições polares que, entretanto, compartilhavam certos
pressupostos comuns.
De um lado, a “teoria da modernização” sublinhava que o baixo
nível de capitalização dos países subdesenvolvidos desequilibrava

ão
a estrutura do emprego urbano. Essa era vista como uma situação
transitória, caracterizando uma espécie de pré-incorporação ao


trabalho assalariado dos contingentes migrantes, cujas atitudes e

lg
modos de vida ainda não eram adequados aos padrões moderno-
industriais, mas também já não eram inteiramente tradicionais. Um
vu
pouco mais tarde, as dificuldades do processo de substituição de
di

importações produziram uma versão menos otimista que, no entanto,


utilizava o mesmo quadro de referência e se concentrava nos mesmos
de

problemas. Tratava-se da “teoria da marginalidade”, que enfatizava


as consequências, sobre a estratificação social, das dificuldades de
superação dos desequilíbrios estruturais identificados (Quijano,
ar

1966, 1998; Machado da Silva, 1971; Kowarick, 1975; Germani,


pl

1973). Em uma palavra, a perspectiva dualista aparecia com duas


variantes: para uma, o setor informal era aberto, apesar da maior
em

facilidade de entrada do que de saída; para a outra, era fechado,


ao menos para certas categorias de trabalhadores, fadadas a uma
Ex

inserção produtiva marginal de mais longo prazo.


De outro lado, a crítica marxista insistia na contração inerente
ao desenvolvimento da acumulação capitalista que gera seu próprio
excedente de trabalho e, ao mesmo tempo, nele se baseia, procurando
contrapor-se à perspectiva dualista e ao caráter contingente que essa
conferia ao “setor informal”, em uma primeira tentativa de reunificar
a análise da evolução estrutural social. De início, essa reação se

7
É imensa a quantidade de trabalhos que reconstroem e criticam a noção de
informalidade. Apenas a título de exemplo, cf. Machado da Silva (1971, 1996),
Machado da Silva e Chinelli (1997), Cacciamali (1983), Tokman (1987), Souto de
Oliveira (1989), Portes, Castells e Benton (1989), Mingione (1991), Lautier (1991,
1994, 1997).
282 | Luiz Antonio Machado da Silva

formula no quadro da “teoria da dependência”,8 ainda claramente


marcada pelo dualismo que visava superar. Essa variante propôs uma
distinção conceitual entre trabalho excedente e exército de reserva,
para explicar a formação, nos países latino-americanos, de uma
“massa marginal”, categoria de trabalhadores sem função – e que,
portanto, não devia ser confundida com o exército de reserva – para
o centro dinâmico da acumulação.9 A tese de uma “superexploração”
do trabalho surgiu em seguida, constituindo-se como crítica a todas
as versões da perspectiva dualista, inclusive ao modelo da “massa
marginal”. Basicamente, ela reafirmava a unidade da exploração
capitalista (e, portanto, da classe trabalhadora), já que, mesmo o

ão
trabalho realizado sob formas não capitalistas, na medida em que
reduzia o custo de reprodução dessa força produtiva, aumentando


com isso a proporção de trabalho não pago, estava subordinado ao

lg
capital e participava da lógica da acumulação – Oliveira (1972) é o
texto clássico a esse respeito.
vu
Esta breve indicação dos aspectos mais gerais do debate
di

sobre a informalidade não resume os vários argumentos, a maioria


dos quais é conhecida e já foi muito comentada. A intenção é apenas
de

sugerir que, somente da irredutibilidade das perspectivas em


confronto, havia um conjunto de pressupostos compartilhados que
tornava possível um intenso debate. Vale a pena considerá-los para
ar

entender melhor os conteúdos atuais da noção de informalidade e


pl

seu papel na reflexão sobre os usos sociais do trabalho. Em linhas


gerais, esse acordo implícito assim se caracterizava:
em

- A polêmica sobre a informalidade concentrou-se na


Ex

organização do trabalho nas cidades, embora as análises e


as descrições empíricas das situações classificadas como
informais pudessem, em princípio, ser estendidas ao campo
e às atividades agrícolas. Isso faz supor, em primeiro lugar,
que as concepções básicas quanto ao sentido histórico do

8
Como se sabe, foi ampla a discussão sobre a “dependência” latino-americana, que
era uma espécie de variante enfraquecida da discussão sobre o imperialismo. Um
autor típico desse debate, que cito apenas a título de ilustração, é Frank (1967,
1969).
9
Cf. o já clássico artigo de Nun (1969), baseado em uma exegese althusseriana das
Grundrisse. Recentemente, a temática desse texto foi retomada pelo autor em Nun
(2000). Veja-se também a crítica de Cardoso (1972) ao primeiro deles.
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 283

processo de urbanização eram compartilhadas e assentavam-


se no pressuposto do papel dinâmico da indústria. E, em
segundo, que essas concepções eram tais, que obscureciam as
continuidades, sob determinados aspectos, entre as relações
de trabalho nos centros urbanos e fora deles.

- Durante o período considerado, todas as posições no debate


sobre a informalidade aceitavam que a economia, como quer
que fosse conceituada, possuía sempre um centro dinâmico
que funcionada como motor de sua evolução e conferia
consistência ao conjunto. Nos anos 1960/70, acreditava-se

ão
que esse papel era representado pelo setor secundário, de
modo que a indústria – leia-se o emprego assalariado estável


– era o ponto de referência implícito em todas as discussões.

lg
A maior parte dos problemas considerados dizia respeito, de
um lado, às condições de possibilidade da industrialização
vu
nos diferentes países, à sua capacidade de expansão (isto é, ao
di

seu dinamismo interno) e, de outro, às eventuais defasagens


entre o processo de urbanização e o de industrialização que
de

afetavam a capacidade de ampliação do trabalho assalariado.

- Considerava-se, portanto, a relação de assalariamento como


ar

típica da organização urbano-industrial do trabalho e de suas


pl

tendências de desenvolvimento histórico (o fundamento


comum das interpretações sobre a mobilização do trabalho
em

era o “paradigma do mercado”, na expressão de Mingione,


1991). A esse respeito, compartilhava-se a ideia de que o
Ex

modelo extraído do trabalho industrial assalariado tendia


a se universalizar como forma de produção de riqueza e, ao
mesmo tempo, como meio de reprodução social. Em outras
palavras, pressupunha-se uma evolução no sentindo de
mercantilização de todas as esferas da vida econômica – o que
é o mesmo que dizer que as formas não mercantis de trabalho
e consumo eram vistas como remanescentes de outros
períodos históricos e explicadas, segundo a perspectiva
adotada, como consequências do “subdesenvolvimento”, da
“dependência” ou do “capitalismo periférico” (a expressão
“capitalismo retardatário”, que parece expressar a preferência
atual, não era comum à época).
284 | Luiz Antonio Machado da Silva

- Finalmente, um último conteúdo comum dizia respeito ao


pleno emprego, se não como tendência real, ao menos como
possibilidade, tendência e/ou meta. Radicalizando um pouco,
talvez se possa dizer que o par formal-informal correspondia
à forma aparente do jogo de claro-escuro representado
pelo ideal inatingido do pleno emprego. Como vem sendo
reconhecido por diversos autores, a possibilidade do pleno
emprego, conjugada às dificuldades de sua realização
histórica, estruturou todo o debate sobre o trabalho até os
anos 1970. Ela teve como principal sustentação o exemplo
– real ou idealizado, não importa – das sociais-democracias

ão
europeias. Para as questões aqui tratadas, a característica
central ressaltada é a proteção do trabalho institucionalizada


em bases universalistas, segundo uma modelagem que

lg
consagrava juridicamente o trabalho assalariado permanente,
articulando produção de massa com alto padrão de consumo,
vu
o que garantia a expansão econômica sustentada e uma certa
di

paz social.
de

A consequência do exposto é que a noção de informalidade


constituía imenso resíduo, compreendendo as atividades produtivas
que não correspondiam ao parâmetro de referência – mas que,
ar

a partir da formulação dessa categoria, podiam ser apreendidas.


pl

A propósito desse ponto, não é ocioso ressaltar que, de outra


maneira, essas atividades não seriam consideradas, e nenhuma das
em

adaptações conceituais mencionadas teria ocorrido. De qualquer


forma, o significado do termo dependia mais do acordo sobre o que
Ex

a informalidade não era, do que da unidade interna dos fenômenos


aos quais a categoria se referia. Tal acordo não resultava da
imaginação livre, pois baseava-se na percepção daquela época sobre
a realidade das sociais-democracias europeias, configurando uma
relação especular entre estas e os países latino-americanos. A partir
disso, entende-se por que o tema da informalidade se restringiu aos
problemas do “subdesenvolvimento”, do “capitalismo dependente”
ou do “periférico”.
Em princípio, era necessário que a “informalidade”
eventualmente existente nos países centrais fosse desconsiderada
pois, caso contrário, eles não poderiam ser tomados como
parâmetro. Afinal, era isso que tornava as dimensões e a importância
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 285

da informalidade elementos que especificavam a organização do


trabalho nas “outras” economias, nas quais o assalariamento era
restrito ou precário, tanto do ponto de vista da regulação e proteção
estatal das relações de trabalho, quanto no que se refere à sua
participação na produção econômica.
A configuração do debate sofre uma profunda transformação
ao longo dos anos 1980. O crescimento do desemprego e a crise da
social-democracia, a expansão de atividades empresariais e de uma
economia de mercado, já anteriores ao desmonte final da URSS, a
acelerada expansão da força de trabalho no setor de serviços e sua
importância cada vez maior na acumulação (Offe, 1989a, 1989b),

ão
tanto em âmbito global, quanto nacional, tudo isso vinha provocando
efervescência na controvérsia sobre os usos sociais do trabalho, que


passo a resumir.

lg
Como foi visto, a discussão envolvia o encadeamento lógico de
uma série de ideias – urbanização/industrialização/assalariamento/
vu
pleno emprego – no qual cada termo especificava e problematizava
di

o anterior, assentando-se o último sobre uma imagem da social-


democracia tomada como evidência de que o pleno emprego não
de

era uma miragem inatingível, mas uma meta viável, baseada numa
tendência real (e, portanto, um parâmetro analítico confiável).
Tratava-se de uma construção coletiva que se revelou tão
ar

complexa quanto frágil, tendo sido muito afetada pelo pessimismo


pl

que marcou a experiência da crise dos anos 1990. Em linhas


gerais, as mudanças no enquadramento analítico e na relevância
em

cognitiva da informalidade estão relacionadas à perda de confiança


na viabilidade histórica do pleno emprego, tanto como um padrão
Ex

abstrato de referência para entender as formas de uso social do


trabalho, quanto como cimento ideológico da legitimidade política e
como critério de planejamento. De fato, à medida que os problemas de
absorção produtiva do trabalho se avolumavam nos países centrais,
estes deixavam de representar parâmetros, transformando-se,
eles também, em objeto de análise da “informalidade” do trabalho.
Retomando a metáfora do jogo de espelho, a noção de informalidade
não se determinaria mais como uma imagem invertida; trata-se,
agora, de uma regressão de reflexos sobre reflexos que desfoca seu
conteúdo, ao mesmo tempo que generaliza seu uso e multiplica as
tematizações particulares nas quais ela aparece.
286 | Luiz Antonio Machado da Silva

Confrontadas com o esquema do período anterior, as


mudanças no enquadramento geral do problema da informalidade
armam-se agora em torno de dois aspectos interdependentes:

- Os conteúdos que conferem univocidade à lógica


macroeconômica, elementos de consenso dos anos
1960/1970, tornam-se objeto de disputa. Nesse nível, o debate
polariza-se em torno do significado histórico da evidente
perda de dinamismo do setor secundário, que provoca
profundas transformações nas relações empregatícias e
abre espaço para uma crescente importância do terciário,

ão
especialmente dos serviços (tanto em termos de absorção
de trabalho, quanto da produção de riqueza). De um lado,


está uma interpretação que enfatiza a transformação da

lg
estrutura produtiva e de toda a organização da sociedade,
focalizando os consequentes problemas de “integração
vu
sistêmica” e sua articulação com os processos de formação
di

da racionalidade dos atores (Offe, 1989a, 1989b). Essa


mesma linha de análise está também implícita nas crescentes
de

referências à “fragmentação social” (Mingioni, 1991).10 De


outro lado, a análise marxista mais ortodoxa entende aquelas
mudanças como aprofundamento da divisão do trabalho e
ar

complexificação do processo produtivo. Nessa perspectiva,


pl

os câmbios não chegariam a afetar a lógica da acumulação


capitalista e sua centralidade na estruturação da sociedade,
em

apenas exacerbariam seus efeitos (Antunes, 1995).


Ex

- Na medida em que as bases do processo produtivo estão


postas em questão, ficam abalados os pressupostos que
fundamentavam o entendimento da relação salarial como a
típica forma organizada de produção de riqueza. Sem dúvida,
isso não impede que o mercado de trabalho continue a ser
visto como o principal mecanismo que articula produção e
reprodução social, e que o emprego, como relação de longo
prazo juridicamente regulada e socialmente protegida,

10
A rigor, apesar do título de seu trabalho, esse autor propõe, partindo do
desdobramento da análise de Polanyi, uma instigante combinação entre
“fragmentação” e “polarização” que infelizmente não pode ser discutida no presente
texto.
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 287

permaneça sendo considerado como sua unidade básica.


O desdobramento das já tradicionais discussões sobre
mercados segmentados ajuda a reabsorver no antigo leito
as diferenciações cada vez mais nítidas nas formas e nos
conteúdos do trabalho (assim como reforça as ideias sobre a
“fragmentação” socioeconômica). No entanto, a manutenção
desse padrão de análise não tem sido suficiente para impedir
que se amplie o reconhecimento da importância das relações
e práticas “atípicas”, as quais, do ponto de vista analítico,
deixam de ser vistas como meras “sobrevivências” ou
“variações”, para readquirirem um sentido próprio, autônomo

ão
e, para alguns, atemporal (Malaguti, 2000). O assalariamento
já não reina sozinho como parâmetro inquestionado, embora


continue como uma referência central.

lg
Essas observações permitem avaliar a importância das
vu
mudanças na dimensão cognitiva da noção de informalidade.
di

Não se deve perder de vista, porém, certa reprodução da


problemática de fundo, o tema da integração social. Apenas para
de

ilustrar essa afirmativa, lembro que não é difícil estabelecer uma


linha de continuidade entre essa questão na chave da “teoria da
marginalidade” e na da “exclusão social”, que domina o debate
ar

contemporâneo (Véras, 1999), ou entre a discussão que se


pl

estabeleceu em torno da unidade ou fragmentação da classe


trabalhadora a partir das funções do exército de reserva e o atual
em

debate anglo-saxão sobre a formação de uma underclass (Wacquant,


2001). A “problemática”, na terminologia de Foucault (Castel,
Ex

1995), é a mesma, mas as tematizações adaptam-se às diferentes


conjunturas. Nesses dois exemplos, fica clara como uma percepção
menos otimista pode radicalizar e transformar o entendimento de
uma mesma questão (no caso, a coesão social), alterando com isso
a natureza do debate.
Pode-se terminar estes comentários sobre a evolução do
“quase-conceito” de informalidade em seus momentos “fortes”
sugerindo que, nesta etapa, ela se especificava, quanto aos
conteúdos, pela referência à periferia do capitalismo (e, às vezes, à
“selvageria” que o caracteriza), ao subdesenvolvimento e à pobreza;
e, quanto à forma, pela aceitação implícita de um parâmetro que
servia de medida abstrata da integração social “típica” da qual a
288 | Luiz Antonio Machado da Silva

informalidade seria uma variação. Nos anos 1980, perde-se tanto


esse fundamento quanto a discriminação de conteúdo. Forte sintoma
desse novo estatuto foi a tendência, já estabelecida há algum tempo,
de reter a noção de informalidade, promovendo, porém, um duplo
deslocamento: da análise dos processos econômicos para a esfera
política, enfatizando a (des)regulação estatal das relações de
trabalho (Machado da Silva, 1990); e de compreensão de um “setor”
ou “economia” informal para “processos”, “práticas” ou “atividades”
informais diferenciadas (Souto de Oliveira, 1989; Lautier, 1994,
1997). Parece-me que é nesse momento que, apesar do avanço
analítico representado pelo abandono definitivo do dualismo das

ão
análises tradicionais, a noção começa a perder força, pois, pouco a
pouco, vai se tornando mero sinônimo de “flexibilização” das relações


de trabalho (que, obviamente, pode ser avaliada como positiva ou

lg
simples sintoma de descontrole institucional, ponto a que voltarei
ao final deste texto)11 e deslocando o foco das questões tratadas, da
vu
análise das características substantivas do processo produtivo para
di

sua regulação político-institucional.


A partir desse momento, estava perdida a convergência em
de

torno de uma compreensão “estrutural” (ou, se preferirmos exagerar


um pouco, “economicista”) dos problemas da integração social.
Esta se baseava na consideração dos conteúdos substantivos dos
ar

processos econômicos como determinantes da articulação sistêmica


pl

em um enquadramento teórico que, como deve ter ficado claro pelos


comentários anteriores, contrapunha, de um lado, uma combinação
em

entre a economia neoclássica e o estrutural-funcionalismo e, de


outro, variantes da perspectiva marxista, cujo debate interno, na
Ex

época, estava polarizado em torno da aceitação ou rejeição do


althusserianismo.
Como vou sugerir a seguir, a ciência social que se
institucionalizava como atividade autônoma e produziu a noção
de informalidade nunca deixou de ser fortemente politizada, mas
baseava-se numa sociologia econômica,12 que concentrava a atenção,

11
Figura central nessas avaliações é Soto (1987), cujas propostas de intervenção,
que pretendiam ser um freio às atividades do Sendero Luminoso no Peru, suscitaram
intensa polêmica. Cf., por exemplo, Bromley (1990, 1993); Lautier (1997).
12
Uma outra linha de consideração, que não cabe neste artigo, diz respeito ao papel
do desenvolvimento da noção de informalidade no processo de modernização
institucional da prática da sociologia no Brasil. O conjunto do debate aqui
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 289

por estar sustentada em um período de crescimento acelerado, no


mundo em geral e na América Latina em particular. Posto o fulcro do
problema no jargão da época, poder-se-ia dizer que a questão central
era a “passagem do subdesenvolvimento para o desenvolvimento”,
na qual duas posições polares combatiam uma terceira perspectiva,
gradualista e mecânica: “reforma” ou “revolução”. Vejamos,
esquematicamente, esse “outro lado” da construção da noção de
informalidade.
O antecedente mais imediato do quadro de referência
intelectual que deu origem à noção de informalidade pode ser
encontrado na formulação do “problema do desenvolvimento”

ão
como a questão nacional por excelência da América Latina – tema
obviamente muito amplo, complexo e multifacetado, que não me


atrevo a tratar aqui. Para efeitos do presente texto, creio suficiente

lg
mencionar, como importante elemento do debate público que
abrigou a noção de informalidade, a forte reação crítica provocada
vu
pela extensa divulgação da visão liberal do desenvolvimento
di

econômico articulada no livro de Rostow (1961). O trabalho assumiu


o caráter de proposta semioficial do Departamento do Estado
de

norte-americano, devido à posição institucional do autor (note-se o


ilustrativo subtítulo: “um manifesto não comunista”).
O autor apresenta, no prefácio, as intenções da obra: “[o
ar

problema] de correlacionar as forças econômicas com as forças


pl

políticas e sociais nas atividades das sociedades integradas […]


Especificamente, julguei insatisfatória a solução de Marx para a
em

questão do encadeamento do comportamento econômico e não


econômico […]” (Ibid., p. 7). Pouco mais adiante, assim resume a
Ex

estrutura do argumento: “é possível enquadrar todas as sociedades,


em suas dimensões econômicas, dentro de uma das cinco seguintes
categorias: a sociedade tradicional, as pré-condições para o arranco,
o arranco, a marcha para a maturidade e a era do consumo em
massa” (Ibid., p. 15). E sobre as pré-condições para o arranco:

A segunda etapa do desenvolvimento abarca sociedades em pleno


processo de transição; isto é, o período em que as precondições para
o arranco se estabelecem, posto que leva tempo para transformar
uma sociedade tradicional de molde a poder ela explorar os frutos

parcialmente reconstruído foi central na formação do veio propriamente sociológico


no interior do pensamento social brasileiro.
290 | Luiz Antonio Machado da Silva

da ciência moderna, para afastar os rendimentos decrescentes e,


assim, desfrutar as bênçãos e opções abertas pela acumulação de
juros compostos (Ibid., p. 18).

Tratava-se, portanto, de um discurso que ignorava o conflito


político-econômico, adotando uma perspectiva mecanicista e
evolucionista – além de fortemente etnocêntrica – a respeito da
superação do atraso, definido como uma barreira cultural ao uso dos
modernos meios (“ciência”) de produção da riqueza.
Creio que não seria temerário afirmar que essa intervenção,
na medida em que galvanizou o debate – devido mais ao peso

ão
institucional que a sustentava do que ao prestígio pessoal do autor –,
que não era desprezível, mas por si só seria insuficiente, foi capaz de


armar o quadro da discussão político-ideológica que se desdobrou
por décadas na América Latina, uma vez que em sua origem está a
lg
reação a esse projeto de transformação socioeconômica.
vu
Esquematicamente, essa reação teve três pontos de partida.
Para simplificar, apresento-os isoladamente, mas, na prática,
di

produziram inúmeras combinações cujos detalhes não podem


ser tratados aqui. De um lado, está a posição da Igreja que, como
de

era de se esperar, também adotava uma postura anticomunista e


enfatizava a dimensão cultural, mas insistia num trabalho ativo,
ar

intencional, de transformação de mentalidades por consentimento


pl

e adesão. Esse trabalho seria necessário, em virtude dos vastos


movimentos populacionais em direção às cidades, provocados pelo
em

processo de industrialização. Nesse sentido, a solução do problema


da incorporação socioeconômica dos migrantes estaria em sua
Ex

adaptação às condições de trabalho e existência nas cidades.13


Tratava-se de uma política de promoção social que visava favorecer

13
Os trabalhos mais conhecidos eram os produzidos pelo DESAL (Centro para el
Desarrollo Económico y Social de América Latina), instituição ligada à Democracia
Cristã chilena (Cf., por exemplo, DESAL, 1969; Vekemans, Giusti e Silva, 1970). A
inspiração mais ampla pode ser encontrada no “solidarismo cristão” desenvolvido
por Lebret (1958). No Brasil, houve forte paralelismo entre essa posição política
e a discussão acadêmica imediatamente anterior ao surgimento da noção de
informalidade (Cf., por exemplo, Lopes, 1960, 1968). (Neste trabalho, não há espaço
para um tratamento detalhado do quadro político-ideológico da época, de modo
que, para simplificar, estou desconsiderando o influente papel desempenhando pela
esquerda católica – cujas ideias acredito que tendiam a se aproximar, no geral, das
posições que, logo adiante, atribuo à “ortodoxia marxista”).
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 291

a passagem, a menos traumática possível, do mundo tradicional para


o moderno, deflagrada pelo processo de industrialização.
Uma segunda posição era representada pela Comissão
Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) (CEPAL,
1970; Echevarria, 1970) e pelas propostas que gravitavam ao seu
redor. Seu quadro de referência analítico também era a conhecida
teoria da modernização, mas a questão passava a articular-se a
partir da crítica ao desequilíbrio nos termos de troca internacional
entre países subdesenvolvidos e desenvolvidos, que reduzia as
possibilidades de investimento local no setor moderno-industrial e,
assim, dificultava a absorção produtiva dos contingentes migrantes.

ão
Esse padrão reproduziria o subdesenvolvimento, expresso como
uma inserção internacional subordinada, cuja superação deveria


ser buscada pela expansão autônoma do mercado interno para os

lg
produtos industriais, via substituição de importações.14
Considerava-se que essa segunda perspectiva representava
vu
uma crítica mais “profunda” – ou seja, menos comprometida
di

com os interesses norte-americanos – do que a elaborada pela


Igreja sobre as causas do atraso, na medida em que focalizava as
de

relações econômicas e não a cultura (muito embora houvesse uma


clara complementaridade entre ambas, pois o enquadramento do
problema da integração sistêmica e da mudança, fundado na teoria
ar

da modernização, era o mesmo). Apesar disso, essa era uma posição


pl

avaliada, segundo as categorias da época, como “reformista”.


Contrapondo-se a ambas as propostas, desenvolveu-se um
em

debate interno ao campo do marxismo, que opunha dois pontos de


vista que disputavam a “justa linha revolucionária”, para continuar
Ex

parafraseando as categorias da época. De uma forma simplificada,


creio que se poderia apresentá-las em termos da maior ou menor
proximidade com as posições convencionais defendidas pelo
Partido Comunista. Uma linha, digamos, mais representativa da
ortodoxia (desenvolvida, diga-se de passagem, por uma nebulosa
de militantes muito mais ampla do que a formada pelos quadros
partidários) insistia na necessidade de análise das relações de classe
no interior das sociedades nacionais e ancorava o projeto político na

14
Importante crítica ao esgotamento do projeto elaborado pela CEPAL, abrindo
espaço para a radicalização dessa perspectiva, que desemboca na “teoria da
dependência”, pode ser encontrada em Tavares (1973).
292 | Luiz Antonio Machado da Silva

unidade fundamental da classe trabalhadora, defendendo o recurso


aos mecanismos tradicionais de organização da ação coletiva.15 A
outra posição era mais heterodoxa, associando-se, basicamente,
aos movimentos anticolonialistas que apostavam mais no poder
revolucionário das massas desenraizadas.16
Talvez seja possível perceber agora, com mais clareza,
o papel desempenhado pelo debate em torno da informalidade
em sua dimensão prático-política – papel que, vale ressaltar, em
qualquer das acepções adotadas pelos participantes, sempre foi
portador de uma inspiração crítica. Tratava-se de definir como se
constituíam, estruturalmente, os sujeitos políticos do processo

ão
de mudança social defendido. Havia uma aceitação generalizada
de que o processo de industrialização gerava uma inserção


periférica de amplos contingentes demográficos na estrutura

lg
social responsável pela dinâmica histórica, discutindo-se suas
consequências sobre as condições de trabalho e de existência – e,
vu
portanto, sobre as respectivas tomadas de posição política prováveis
di

e/ou possíveis. Havia consenso no sentido de que a superação do


subdesenvolvimento era uma questão de política econômica, e
de

que esta resultava de relações de força capazes de decidir sobre o


comando dos aparatos de Estado. Nessa dimensão prático-política,
o debate sobre a informalidade – que era uma particularização do
ar

confronto político mais amplo – tornava-se decisivo, pois definia a


pl

forma e a natureza da inserção estrutural de grandes contingentes


demográficos, inserção que era vista como definidora de seu destino
em

histórico.17
Ex

15
No mundo acadêmico, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP)
era a instituição mais visível que representava esta posição. Cf. os já mencionados
textos de Cardoso (1972) e Oliveira (1972).
16
O exemplo mais típico desta posição talvez seja a obra de Fanon (1965) sobre a
Algéria, mas essa linha de pensamento também foi bastante difundida na América
Latina.
17
O debate sobre a informalidade foi paralelo e entrecruzou-se com a discussão
sobre quem (e o que) era o “povo” – “massa” (neste caso, agrupamento disforme e
inerte, vítima e expressão do populismo) ou “classe” (neste caso, categoria social
definida, capaz de assumir a tarefa histórica de sua própria libertação). Esta questão
sempre esteve inapelavelmente enraizada no debate sobre a natureza da inserção
produtiva das camadas de trabalhadores mais desfavorecidos (Cf., por exemplo, a
coletânea de Horowitz, 1970. Para uma interessante discussão sobre a construção
social do “trabalhador” como categoria analítica, cf. Paoli, 1982).
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 293

Nas considerações anteriores apresentei não um resumo, mas


um esquema, que teve a intenção de mostrar o que podia articular, ao
mesmo tempo, o debate e a ambiguidade da noção de informalidade:

a) tratava-se de uma discussão sobre a integração sistêmica


característica do subdesenvolvimento, focalizando
especificamente seus efeitos sobre a composição econômica
e a capacidade política das categorias de trabalhadores mais
desfavorecidos;

b) expressava um consenso em torno do papel estruturante

ão
da produção material e de seu centro dinâmico (a indústria
moderna). “Informalidade”, assim, correspondia à discussão


sobre o que era considerado uma das particularidades mais

lg
importantes do capitalismo retardatário, a existência de
formas “atípicas” de mobilização do trabalho;
vu
di

c) todo o debate ocorre durante um período de ampla e


generalizada expansão econômica, que vem se esgotando
de

desde a segunda metade da década de 1970.

A partir dos anos 1980, este quadro se transforma


ar

radicalmente, como já é por demais sabido. A retração econômica,


pl

a reestruturação produtiva e a terceirização que acompanham


o processo de globalização, o enxugamento do Estado, etc., são
em

processos que afetam profundamente o mundo do trabalho,


trazendo, para o centro da agenda pública, inclusive nos países
Ex

centrais, a questão do desemprego e, com isso, invertendo a


perspectiva de análise, que até aquele momento discutia as formas
sociais de uso produtivo do trabalho.
Todos esses processos levam a uma certa “desnaturalização”
dos modos instituídos de organização da produção nos países
centrais, que passaram a dar-se conta de sua própria “informalidade”
e a duvidar do “paradigma do mercado” (Mingione, 1991) como
referência analítica – perdendo, assim, o antigo estatuto de ideais
históricos que sempre tiveram para a América Latina. Em outras
palavras, como termo do léxico corrente, a informalidade universaliza,
mas agora se torna sinônimo de “flexibilização” ou “desregulação”,
quando não simplesmente de “clandestinidade”.
294 | Luiz Antonio Machado da Silva

Ainda em 1997, tive a oportunidade de defender o seguinte


ponto de vista:

[…] Souto de Oliveira (1989, p. 45) já chamava a atenção para a


ampliação do uso e dos sentidos do temo: “[…] o informal afora
se constituir num campo específico de atividades econômicas que
teriam como denominador comum o fato de não se enquadrarem
nos moldes da produção capitalista, passa a se configurar, também
e de forma crescente, como um aspecto de atividades econômicas
que não pertencem a esse campo […] [grifos da autora]”. Mais
recentemente, Lautier (1994) retoma e amplia a caracterização

ão
semelhante, favorecendo o segundo sentido mencionado. Mesmo
sem aprofundar a questão, é oportuno salientar que também


acreditamos que o debate aponta antes para uma ampliação do campo
semântico da noção, do que propriamente para um deslocamento

lg
de seu significado anterior e que, como veremos adiante, há
evidências que sustentam ambos os usos. Desnecessário dizer que
vu
isso configura um conjunto pouco claro, de difícil determinação
empírica, que envolve todo o trabalho não assalariado – autônomos,
di

conta-própria de todos os tipos –, as pequenas empresas familiares


e os que trabalham para elas, assalariados ou não, e desdobra para
de

segmentos importantes da produção capitalista organizada sob a


forma do regime salarial (Machado da Silva e Chinelli, 1997, p. 25,
ar

grifo nosso. Ver cap. 8 deste livro).


pl

Independentemente de ter sido adequada ou não naquele


em

momento, não creio que a afirmativa sublinhada acima permaneça


válida na atualidade. Considero que o papel mediador que o
“quase-conceito” de informalidade desempenhou por décadas está
Ex

decididamente esgotado, e que ele foi – ou está sendo – substituído


por outro, o par “empregabilidade/empreendedorismo”. Este aponta,
segundo penso, para novos modos de exploração capitalista, cuja
característica mais fundamental é a individualização e a subjetivação
dos controles que organizam a vida social, inclusive a produção
material. Entretanto, deve ser ressaltado que, ao contrário do
investimento crítico que representou o desenvolvimento da noção
de informalidade como elemento significativo da compreensão do
mundo social durante sua longa vigência, o par “empregabilidade/
empreendedorismo” adquire um sentido oposto, de mecanismo
de convencimento ideológico (ou, se se preferir um termo mais
agressivo, de “domesticação”), que se encaminha na direção de
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 295

reconstruir uma cultura do trabalho adaptada ao desemprego, ao


risco e à insegurança, que pareciam em vias de eliminação durante
“os trinta anos gloriosos”.
Gostaria de finalizar este trabalho com alguns comentários
muito gerais sobre esse ponto, sem outra pretensão que indicar uma
possível linha de trabalho.18
Já é lugar comum fazer referência à desconstrução do
assalariamento, padrão de integração sistêmica de longa maturação,
que teve seu ponto culminante em nosso passado recente,
caracterizado pela tendência à harmonização entre produção e
consumo. No que diz respeito ao trabalho, seu coração foi um modo

ão
de regulação do mercado capaz de compatibilizar os requisitos
técnicos e sociais da produção, isto é, de minimizar a contradição


entre exploração do trabalho e ampliação dos direitos de cidadania,

lg
organizando e canalizando o conflito social. É claro que a implantação
desse modo de integração jamais foi completa e passou por inúmeras
vu
variantes nacionais. Entretanto, seu sucesso pode ser medido pelo
di

fato de, apesar disso, ter-se tornado, como venho repetindo, um


ideal e uma referência cultural praticamente universais, além de
de

uma força objetiva em expansão, capaz de destruir ou transformar


profundamente outras formas de organização social do trabalho.
Assim, tanto objetiva quanto subjetivamente, nossa percepção foi
ar

moldada pela experiência da homogeneização da estrutura social e


pl

da universalização de uma cultura do trabalho baseada na fórmula


“trabalho livre, mas protegido”. Esse parece ter sido o milagre do
em

assalariamento: conferir univocidade e objetividade às hierarquias


sociais, gerando afinidades entre inserção produtiva, chances de
Ex

consumo e estilos de vida e transformando o paradoxo representado


pela ligação entre liberdade e proteção em uma conquista societal,
mais que de grupos específicos.
A produção social do assalariamento deu forma concreta aos
princípios de solidariedade que organizavam a conduta, canalizando
e limitando os interesses individuais e estruturando a formação da
ação coletiva e o conflito social. Contra esse pano de fundo, a compra

18
Ressalto, ademais, que não tenho a menor pretensão de originalidade, pois
um caminho rico e criativo para esse tipo de análise já está sendo aberto com a
excelente contribuição de Boltanski e seus associados (Boltanski e Thévenot, 1991;
Boltanski e Chiapello, 1999). Exemplo de trabalho brasileiro que explora essa linha
de reflexão pode ser encontrado em Grun (1999).
296 | Luiz Antonio Machado da Silva

e a venda de força de trabalho, no mercado, pode humanizar-se,


articulando uma ética do produtor que invertia simbolicamente
a subordinação dos vendedores, elevando o trabalho (livre, mas
protegido) à condição de dever moral e fonte de segurança ontológica
e material.
Entretanto, essa combinação virtuosa entre um
desenvolvimento técnico (natural, espontâneo), cujo requisito foi a
crescente proteção do consumo (intencional, consciente), gerando,
ao mesmo tempo, a expansão da acumulação e uma autoimagem
positiva da população trabalhadora, parece estar se volatizando com
o processo de globalização e com as transformações no regime de

ão
produção que a acompanham. Esvaziada de sua sustentação objetiva,
a cultura do trabalho que conhecemos tem cada vez menos condições


de se reproduzir como um sistema coerente e significativo de

lg
orientações de valor, capaz de organizar as identidades e conflitos de
parcelas cada vez maiores da população de nossos países – embora,
vu
sem dúvida, muitos de seus elementos permaneçam presentes.
di

Tudo isso tem provocado a necessidade de um esforço


coletivo de desenvolvimento de uma compreensão renovada de
de

todo o conjunto da vida social, que tem se mostrado extremamente


difícil. Mas também tem implicado uma urgente tarefa de criação de
uma nova ideologia econômica, capaz de continuar justificando a
ar

exploração da força de trabalho, ou seja, de garantir a permanência


pl

da adesão e do consentimento ativo dos trabalhadores aos novos


modos de organização do trabalho, cujas principais características
em

são a sua extrema (pelo menos quando comparada à situação


anterior) individualização e subjetivação.
Ex

Quando tais questões são analisadas, elas costumam ser


interpretadas como geradoras de um vazio de sentido, moral e
cognitivo, que acompanharia a insegurança e a vulnerabilidade
associadas a um mercado cada vez menos regulado e padronizado
(Castel, 1995; Sennett, 1999; Dubet, 1998). Não resta dúvida de que
há farta evidência tornando plausível essa conclusão, mas eu gostaria
de sugerir que elas param no meio do problema: é difícil de imaginar
a perda de vigência de um complexo de sentidos socialmente
construídos, sem pensar no que é posto em seu lugar.
Olhando nessa direção, se a desestabilização do momento
virtuoso da cultura do trabalho assalariado é lamentável, há
perigos ainda maiores. Um deles eu gostaria de mencionar apenas
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 297

de passagem, mas com ênfase: o caráter estruturante de um novo


quadro de vida (portanto, uma ruptura profunda com as referências
conhecidas) que podem ter certas práticas que, vistas do ângulo da
organização social ainda dominante, são claramente disruptivas.
Penso, aqui, na expansão da criminalidade violenta: é puro simplismo
acreditar que o que vem acontecendo com o crime comum não passa
de “organização do desvio”, imagem invertida da ordem social que
conhecemos.
Menos notável, mas igualmente decisiva, é outra tendência de
mudança, que vem sendo produzida por continuidade, ou seja, como
lento desdobramento das estruturas em transformação. Penso, aqui,

ão
no mencionado par empregabilidade/empreendedorismo, termos
que vêm se tornando quase ubíquos no discurso dos protagonistas


da cena contemporânea – desde tecnocratas e educadores, políticos

lg
e líderes sindicais de todos os matizes e variada importância, até a
diuturna difusão pela mídia – e que têm servido, ao mesmo tempo,
vu
como explicação e justificativa das novas condições de trabalho.
di

Em sua dimensão instrumental, os termos indicam os


requisitos funcionais da demanda atual de trabalho. Nessa linha,
de

representam o elenco de atributos subjetivos – disposições pessoais,


competências, etc. – que as empresas esperam dos trabalhadores
(ou de outras empresas) e, simplificando um pouco, correspondem
ar

às necessidades da produção “flexibilizada”. A imensa polêmica que


pl

cerca as questões ligadas à caracterização e à geração desses atributos


diz respeito ao fato de que eles não são convencionais. Na medida
em

em que tais qualidade dependem de um esforço social adicional para


serem produzidas, discute-se quais os melhores caminhos para que
Ex

os trabalhadores se adaptem às “novas condições de mercado”.


Nessa dimensão instrumental-adaptativa, “empregabilidade/
empreendedorismo” corresponde à perspectiva das empresas,
ainda que, como seria de se esperar, a estrutura do mercado de
trabalho seja apresentada por elas como se fosse um dado de fato.
Em princípio, dependendo das relações de força, os trabalhadores
poderiam opor-se às exigências (e, com efeito, boa parte do conflito
social em todo o mundo parece ter este fundamento) ou conformar-
se com elas. Mas deve restar pouca dúvida de que a polêmica sobre
a empregabilidade/empreendedorismo não diz respeito apenas à
aquisição de novas competências técnicas, mais bem adaptadas à
atual organização da produção. Ela contém uma dimensão simbólico-
298 | Luiz Antonio Machado da Silva

ideológica de adesão/convencimento (que permanece implícita em


sua maior parte, pouco afetando o conflito aberto e consciente) que
interfere sobre a autoimagem e a visão de mundo dos trabalhadores.
De fato, creio que há claros indícios de que a empregabilidade/
empreendedorismo vem se transformando no coração de uma
cultura do trabalho em gestação, muito distinta da que correspondeu
à história da construção do assalariamento. Como é sabido, o ideal
de mobilidade técnica, representado pela proposta de substituir a
especialização por uma polivalência que torne o trabalhador apto ao
desempenho de ocupações com conteúdos diferenciados, caminha
junto com a defesa da competitividade, da autonomia profissional e

ão
da independência pessoal. Resumindo e simplificando, projeta-se a
imagem do “novo trabalhador” como um ser que substitui a carreira


em um emprego assalariado de longo prazo pelo desenvolvimento

lg
individual, através da venda de sua força de trabalho (ou da alocação
de seu esforço como produtor direto) em uma série de atividades
vu
contingentes, obtidas através da demonstração pública da disposição
di

e competência para práticas econômicas em constante mudança –


isto é, sempre como empresário de si mesmo.
de

Por enquanto, essa representação do trabalho ainda


assusta e repele, mas parece que a adesão a ela tende a se ampliar,
inclusive porque as condições do trabalho assalariado convencional
ar

se deterioram a olhos vistos. Isso pode vir a compatibilizar as


pl

mudanças objetivas com as disposições subjetivas, reduzindo,


assim, a parte de nossas angústias proveniente do descompasso
em

entre esses dois planos – e, portanto, tem um certo apelo que vai
além da mera estratégia adaptativa. Por um lado, como diz o ditado,
Ex

“é aí que mora o perigo”. Uma cultura do trabalho organizada em


torno do par empregabilidade/empreendedorismo fere de morte os
valores de solidariedade social tão dificilmente institucionalizados
sob a fórmula “trabalho livre, mas protegido” e torna-se o centro
do processo de legitimação ideológica da fragmentação social que,
nesta hipótese, se tornaria irreversível. Enquanto esse risco não for
afastado, os aspectos positivos das mudanças culturais em curso
precisam, no mínimo, ser considerados com muito cuidado.
10. Trabalhadores do Brasil: virem-se1

Neste final de milênio, poucos discordarão que as turbulên-


cias que nos tornam cada vez mais perplexos, desconfiados, insegu-
ros e irados não são apenas os efeitos passageiros de mais uma das
inúmeras crises que de vez em quando abalam a acumulação de ri-
quezas, nos inquietam durante algum tempo, e depois se mostram
até positivas para a continuidade da estrutura social que conhece-
mos. Nos últimos vinte ou trinta anos, vem se formando a convic-
ção de que as dificuldades deste período mais recente são de outra

ão
natureza, mais profundas, duradouras e angustiantes. Para além da


mera percepção social difusa, esse consenso parece fundamentar-se
em evidências confiáveis de que está em curso uma profunda reorga-

lg
nização da vida econômica em escala mundial, que tem se mostrado
muito heterogênea e rebelde às tentativas de controle por parte de
vu
governos e outras coletividades organizadas.
di

É claro que o mundo do trabalho está no olho do furacão


destas mudanças e tem concentrado as atenções de todos,
de

especialistas e leigos. Entretanto, o interesse tem se mostrado


fortemente unilateral, enfocando a questão a partir dos resultados
materiais do trabalho, isto é, da riqueza produzida e sua distribuição.
ar

Aliás, talvez fosse melhor dizer “a pobreza produzida”, relembrando


pl

Marx, dado que é incontestável o aumento da desigualdade e da po-


em

breza em todo o mundo. O peso do debate sobre esta dimensão tem


limitado a consideração sobre “o outro lado” do trabalho, qual seja,
sua característica de importante elemento de integração social – e
Ex

aqui o outro fundador da moderna ciência social a ser relembrado é


Durkheim, que não se cansou de insistir sobre este ponto.
Proponho que o desequilíbrio no tratamento destas duas
faces do trabalho é prejudicial a uma compreensão adequada do
tempo presente. É fora de dúvida que o desemprego e a miséria ali-
mentam os pesadelos de grandes massas da população do mundo
inteiro. Mas esta não é a única, e talvez nem mesmo a principal, fonte
da perplexidade, do medo e da raiva (substitutos contemporâneos
da atitude blasé, correspondente à fase “organizada” do capitalismo
moderno?) que compõem o clima emocional da atualidade. Este é

1
In: Revista Insight/Inteligência, Rio de Janeiro, 5, pp. 58-65, 1999.
300 | Luiz Antonio Machado da Silva

nutrido em boa parte pelas carências de integração às vezes implíci-


tas nos comportamentos observados, outras vezes explicitadas dis-
cursivamente para justificar práticas que podem ser, elas mesmas,
disruptivas.
Desta ótica, pode-se dizer que estamos em pleno período de
desconstrução do assalariamento, um multifacetado processo de
reorganização do trabalho que diz respeito a praticamente todos os
aspectos da estrutura social. É claro que essa afirmativa só pode fa-
zer sentido se considerarmos que o termo designa não a mera forma
contratual das relações de trabalho, mas todo um regime de organi-
zação social da produção. Porém, nesta acepção mais ampla (e mais

ão
forte), “assalariamento” corre o risco de tornar-se uma expressão
omnibus que, incluindo tudo, acabe por não significar mais nada. Por


isso, não é ocioso indicar os dois principais aspectos de suas trans-

lg
formações que podem ser considerados significativos para a questão
da integração social.
vu
O mais importante deles talvez seja o processo de terciari-
di

zação, já bem conhecido dos economistas. Aqui, importa salientar


que sua contrapartida social é um movimento de “desobreiriza-
de

ção”,2 na medida em que o trabalho fabril encontra cada vez mais


dificuldades para se manter como referência central na organização
da existência de crescentes contingentes de trabalhadores. Além
ar

disso, se autores como Claus Offe têm razão, a semelhança formal


pl

das relações de trabalho na indústria e nos serviços – contrato


de trabalho assalariado – esconde diferenças substantivas nos
em

conteúdos das atividades realizadas, e dificulta o reconhecimento de


que os serviços se tornam cada vez mais uma condição da produção
Ex

industrial, não sendo mera consequência da expansão desta, como


se costumava pensar.
Assim, a terciarização parece ser um fenômeno muito mais
profundo do que a simples queda da participação da indústria no

2
Vinte anos atrás, Jose Sergio Leite Lopes e eu (1979) mencionamos a existência
de um processo conjugado de obreirização-desobreirização para indicar a oscilação
dos trabalhadores num mercado segmentado. Atualmente, com o galopante
desemprego industrial que, além da economias centrais, também atinge países
em desenvolvimento como o Brasil, torna-se necessário enfatizar a tendência
unidirecional desse processo. Essa publicação está incluída neste livro, ver capítulo
“Estratégias de trabalho, formas de dominação na produção e subordinação
doméstica de trabalhadores urbanos”.
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 301

emprego total. É desnecessário dizer que afirmar isto não implica


tomar partido em favor de modelos de sociedade “pós-industrial”,
nem muito menos defender o fim da subordinação do trabalho ao
capital – um tipo de discussão que não interessa aqui.
O segundo aspecto a ser mencionado diz respeito à
contrapartida social das características dos empregos ofertados
e à estrutura do mercado. Mesmo nos países em que a regulação
estatal das relações de trabalho é mais fraca (o Brasil entre eles),
tem havido intensa pressão para uma maior “flexibilidade” ou, em
bom português, para reduzir as áreas das relações trabalhistas
legalmente protegidas. A esta “informalização” – que é ao mesmo

ão
tempo jurídica e política, pois reduz o poder de barganha dos
trabalhadores – corresponde também uma “informalização” de


boa parte da reprodução material, com a provisão não mercantil

lg
da cesta de consumo expandindo-se visivelmente. É claro que tudo
isto repercute sobre a estrutura da família, que permanece sendo a
vu
principal mediação entre produção e consumo, mas, em que pese o
di

significativo aumento dos estudos a respeito, esta é uma área ainda


pouco conhecida. Por isso, mesmo sublinhando a importância
de

desta questão para o raciocínio aqui desenvolvido, prefiro deixá-la


em aberto.
Estes dois amplos conjuntos de processos desestabilizam
ar

um padrão de integração sistêmica de longa maturação que teve seu


pl

ponto culminante em nosso passado recente, caracterizado pela ten-


dência à harmonização entre produção e consumo – ou, se se preferir,
em

entre economia e sociedade. No que diz respeito ao trabalho, seu co-


ração foi o assalariamento, um modo de regulação do mercado capaz
Ex

de compatibilizar os requisitos técnicos e sociais da produção, isto é,


de minimizar a contradição entre exploração do trabalho e amplia-
ção dos direitos de cidadania, organizando e canalizando o conflito
social. É claro que a implantação deste modo de integração jamais foi
completa e passa por inúmeras variantes nacionais, mas seu sucesso
pode ser medido pelo fato de, apesar disso, ter-se tornado um ideal e
uma referência cultural praticamente universais, além de uma força
objetiva em expansão, capaz de destruir e/ou transformar profunda-
mente outras formas de organização social do trabalho.
Assim, tanto objetiva quanto subjetivamente nossas
percepções foram moldadas pela experiência da homogeneização
da estrutura social e da universalização de uma cultura do trabalho
302 | Luiz Antonio Machado da Silva

baseada no trabalho livre, mas protegido. Em meio a todos os


percalços, este foi o “milagre” do assalariamento: conferir univocidade
às hierarquias sociais, gerando afinidades entre inserção produtiva,
chances de consumo e estilos de vida e transformar o paradoxo
representado pela ligação entre liberdade e proteção em uma
conquista societal, mais que de grupos específicos. É este edifício
que a terciarização e a desregulação fazem “desmanchar-se no ar”,
para lembrar a frase que ficou famosa.
Talvez o sintoma mais visível da desestruturação do
assalariamento se encontre em seu efeito sobre a estratificação
social. De fato, a perda da afinidade entre suas várias dimensões –

ão
uma convergência que vem há muito tempo sendo pressuposta tanto
na vivência cotidiana quanto nas categorias analíticas – generaliza-


se a ponto de se tornar cada vez mais objeto de atenção e disputa.

lg
Para mencionar as principais, o emprego, a renda e a educação
relacionam-se de forma cada vez mais aleatória, sendo que estas
vu
inconsistências, como seria de esperar, também se manifestam na
di

relação entre posição socioeconômica (cada vez mais diferenciada),


estilo de vida e comportamento político. As contradições entre todos
de

esses aspectos não caracterizam mais apenas as ambiguidades das


posições intermediárias. Creio que há evidência suficiente para
sugerir que a “geleia” vem se generalizando.
ar

Esta é provavelmente uma das principais fontes das


pl

incertezas que marcam a experiência contemporânea, ainda


mais se considerarmos que se trata de uma situação que vem se
em

formando há apenas duas ou três décadas. Não creio, entretanto,


que as constantes referências a tendências de polarização e
Ex

dualização da estrutura social presentes nas análises sobre a


desigualdade ofereçam um quadro adequado desses problemas
de integração sistêmica. Nem tampouco que as imagens do caos
que estaria associado à desestabilização do assalariamento sejam
uma alternativa convincente. Acredito que, pelo menos nos países
ocidentais, muito mais do que dualização ou caos, enfrentamos um
processo de fragmentação. Todas as variáveis que estruturaram a vida
social no capitalismo continuam a operar (e, portanto, não faz muito
sentido falar em caos ou desintegração), mas suas relações são cada
vez mais tópicas, imprevisíveis e, na medida em que aprofundam
a heterogeneidade da experiência social, dificultam a formação de
uma ação coletiva voltada para a produção de afinidades entre elas
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 303

(tendências que se afastam de qualquer imagem de dualização e


tornam o conflito social confuso e descentrado).
Vejamos agora a contrapartida desses problemas no plano dos
valores e da subjetividade dos trabalhadores. A produção social do
assalariamento deu forma concreta aos princípios de solidariedade
que organizam a conduta, canalizando e limitando os interesses
individuais e estruturando a formação da ação coletiva e o conflito
social segundo a fórmula trabalho livre, mas protegido, conforme já
foi comentado acima. Contra este pano de fundo, a compra e venda
de trabalho no mercado pode “humanizar-se”, articulando-se a uma
ética do produtor que invertia simbolicamente a subordinação dos

ão
vendedores, elevando o trabalho à condição de dever moral e fonte
de dignidade pessoal e de classe.


Entretanto, esta combinação virtuosa de um

lg
desenvolvimento técnico (“natural”, “espontâneo”) cujo requisito
é a crescente proteção do consumo (“intencional”, “consciente”),
vu
gerando ao mesmo tempo a expansão da produção de massa e uma
di

autoimagem positiva da população trabalhadora, volatiliza-se com


as mencionadas tendências à fragmentação social. Esvaziada de
de

sua sustentação, a cultura do trabalho que conhecemos tem cada


vez menos condições de se reproduzir como um sistema coerente
e significativo de orientações de valor, capazes de organizar
ar

as identidades e os conflitos de parcelas cada vez maiores da


pl

população de nossos países – embora, sem dúvida, muitos de seus


elementos continuem presentes.
em

Quando tais questões são analisadas (o que não me parece


muito frequente), elas costumam ser interpretadas como gerando
Ex

um “vazio de sentido”, moral e cognitivo. Este é o caso, por exemplo,


de um livro de Robert Castel (1995) muito citado pela literatura
sociológica, no qual o autor fala de um “individualismo negativo” que
acompanha a “vulnerabilidade” de crescentes parcelas da população
trabalhadora decorrente da desestabilização do assalariamento. É o
caso também de toda uma linha de trabalhos dedicados a estudar a
juventude, a qual sugere que os jovens vêm manifestando dificuldades
de desenvolver projetos de vida organizados e significativos devido à
desestruturação de suas condições materiais de existência.
Não resta dúvida de que há farta evidência tornando
plausíveis estas conclusões, mas eu gostaria de sugerir que elas
param no meio do problema. A não ser que se queira olhar para trás,
304 | Luiz Antonio Machado da Silva

é difícil imaginar a perda de vigência de um complexo de sentidos


socialmente construídos sem pensar no que é posto em seu lugar. E,
olhando nesta direção, se a desestabilização do momento virtuoso
da cultura do trabalho assalariado é lamentável, há perigos ainda
maiores. Um deles eu gostaria de mencionar apenas de passagem,
mas com ênfase: o caráter estruturante de um novo quadro de vida
(portanto de uma ruptura profunda com as referências conhecidas)
que podem ter certas práticas que, vistas do ângulo da organização
social ainda dominante, são claramente disruptivas. Penso, é claro,
na expansão da criminalidade. É puro simplismo acreditar que o que
vem acontecendo com o crime comum não passa de “organização do

ão
desvio”, imagem invertida da estrutura dominante que conhecemos.
Menos notável, mas igualmente decisiva, é outra tendência


de mudança, que vem sendo produzida por continuidade, isto é,

lg
como lento desdobramento das estruturas em transformação.
Penso, aqui, no que acontece com a empregabilidade, esta expressão
vu
que vem se tornando quase ubíqua no discurso dos protagonistas
di

da cena contemporânea, desde tecnocratas e educadores, políticos e


líderes sindicais de todos os matizes e variável importância, até ser
de

incorporada e difundida pela mídia.


Em sua dimensão instrumental, o termo indica os requisitos
funcionais da demanda de trabalho. Nesta linha, “empregabilidade”
ar

representa o elenco dos atributos subjetivos – disposições pessoais,


pl

competências, etc. – que as empresas esperam dos trabalhadores


e, simplificando um pouco, correspondentes à “flexibilidade” na
em

produção. A imensa polêmica que cerca as questões ligadas à


“empregabilidade” diz respeito ao fato de que aqueles atributos não
Ex

são convencionais. Na medida em que tais qualidades dependem


de um esforço social adicional para serem produzidas, discute-se
quais os melhores caminhos para que os trabalhadores se adaptem
às “novas condições do mercado”, ditadas pela flexibilização do
paradigma produtivo.
Nesta dimensão instrumental-adaptativa, a “empregabilidade”
corresponde à perspectiva das empresas ainda que, como seria de
esperar, a estrutura do mercado de trabalho seja apresentada por
elas como se fosse um dado de fato. Em princípio, dependendo das
relações de força, os trabalhadores poderiam opor-se às exigências
de empregabilidade (e, com efeito, boa parte do conflito social em
todo o mundo tem este fundamento) ou conformar-se com elas.
Parte 3 A reconfiguração do mundo do trabalho | 305

Mas é óbvio que a polêmica sobre a “empregabilidade” não diz


respeito apenas à aquisição de novas competências técnicas, mais
bem adaptadas às mudanças do regime produtivo. Ela contém
uma dimensão simbólico-ideológica de convencimento/adesão
(que permanece implícita em sua maior parte, pouco afetando o
conflito social aberto e consciente), interferindo sobre a formação
da autoimagem e da visão de mundo dos trabalhadores.
De fato, há claros indícios de que a “empregabilidade” vem se
transformando no coração de uma cultura do trabalho em gestação,
muito distinta da que correspondeu à história do assalariamento.
Como é sabido, o ideal de mobilidade técnica, representado pela

ão
proposta de substituir a especialização por uma polivalência que
torne o trabalhador apto ao desempenho de ocupações com conteúdos


diferenciados, caminha junto com a defesa da competitividade, da

lg
autonomia profissional e da independência pessoal. Resumindo e
simplificando, projeta-se a imagem do “novo trabalhador” como um
vu
ser que substitui a carreira em um emprego assalariado de longo
di

prazo pelo desenvolvimento individual através da venda de sua


força de trabalho em uma série de ocupações contingentes, obtidas
de

através da demonstração pública da disposição e competência para


atividades e condições de trabalho em constante mudança, isto é,
como empresário de si mesmo. Por enquanto, essa representação do
ar

trabalho ainda assusta e repele, mas parece que a adesão a ela tende
pl

a se ampliar, inclusive porque as condições do trabalho assalariado


“convencional” se deterioram a olhos vistos. Isto pode compatibilizar
em

as mudanças objetivas com as disposições subjetivas, reduzindo,


assim, a parte de nossas angústias proveniente do descompasso
Ex

entre esses dois planos – e, portanto, tem um certo apelo que vai
além da mera estratégia adaptativa. Por outro lado, como diz o ditado,
“é aí que reside o perigo”. Uma cultura do trabalho organizada em
torno da categoria da “empregabilidade”, como parece ser a que está
em gestação, fere de morte os valores de solidariedade social tão
dificilmente institucionalizados sob a fórmula “trabalho livre, mas
protegido” e torna-se o centro do processo de legitimação ideológica
da fragmentação social que, nesta hipótese, se tornaria irreversível.
Enquanto esse risco não for afastado, os aspectos positivos das
mudanças culturais em curso precisam ser considerados com muito
cuidado – eu diria, mesmo, que devem ser considerados “com um pé
atrás”.
Ex
em
pl
ar
de
di
vu
lg

ão
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Coleção Kalela-Quipu

Os Quipu são dispositivos mnemotécnicos usados


originariamente nos Andes pré-hispânicos, feitos de cordas
coloridas, laços e nos, para mensurar, registrar, representar
e moldar tempos, geografias, objetos, pessoas e outras

ão
agências. Nesta coleção de livros, organizada pelo Núcleo
de Pesquisa em Cultura e Economia (nucec.net) procuramos


explorar a afinidade entre esses dispositivos e a atividade
de fazer e de escrever etnografias, jogando com diferentes
lg
escalas, questionando fronteiras entre domínios e formas do
vu
conhecimento, compreendendo através dos múltiplos pontos
de vista e das diferentes formas de conceituar a experiência
di

humana.
de

O mundo popular. Trabalho e condições de vida.


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Luiz Antonio Machado da Silva (autor)


Mariana Cavalcanti, Eugênia Motta e Marcella Araujo
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(organizadoras)
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Próximo lançamento

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Conversas etnográficas haitianas


Federico Neiburg (organizador)
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Formato 16 x 23
Tipologia: Cambria
Papel: Pólen Soft 80 g/m2 (miolo)
Supremo 250 g/m2 (capa)

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