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SERVIÇO SOCIAL E O QUESITO RAÇA COR, UM DIÁLOGO NECESSÁRIO.

Resumo

O debate racial no Brasil não é novidade, entretanto a abordagem do mesmo dentro


do serviço social ainda é débil, tal qual a compreensão da influência do racismo na
formação social brasileira, consequentemente nos fundamentos do serviço social e
sua prática. Debater quesito raça cor, objetiva um diálogo franco com nosso histórico
profissional, mas também com o fato de como o racismo se manifesta em nossa
atuação profissional, expresso nos instrumentos e na compreensão do componente
étnico-racial das demandas que chegam, apontamos que coleta do dado racial seja
uma das possibilidades de combate ao racismo institucional na prática profissional.

Palavras Chaves: Racismo, Racismo Institucional, Exercício Profissional do


Assistente Social, Quesito Raça cor.

Abstract

The racial debate in Brazil is not new, however its approach within the social service
is still weak, as is the understanding of the influence of racism in the Brazilian social
formation, consequently in the foundations of social service and its practice.
Discussing the issue of color race, aims at a frank dialogue with our professional
background, but also with the fact that how racism manifests itself in our professional
performance, expressed in the instruments and understanding of the ethnic-racial
component of the demands that come, we point out that collecting racial data is one
of the possibilities to combat institutional racism in professional practice.
Keywords: Racism, Institutional Racism, Professional Exercise of the Social Worker,
Color race.

Apresentação

Apesar da aparente novidade quando se trata da questão racial, a mesma ao modo que
está conformada, já é existente há décadas, contudo invisibilizada. A cada reordenamento social,
político econômica há mudanças no trato da questão contudo mantendo seu carácter
subalternizado, demonstrando de modo bem real e evidente as tramas da estrutura que operam,
estando sob a égide da hierarquização, dominação e alienação.
Fato é que, a questão racial, que se apresenta como um dos dilemas da modernidade é
também elemento fundamental na história do mundo moderno, dentre os demais estão as guerras
religiosas, as desigualdades masculino-feminino, as questões referentes a diversidade sexual*
o contraponto natureza e sociedade e as contradições de classes sociais e que são dilemas
postos para nosso complexo social individual e coletivo.
A modernidade segue sendo desafiada pelo “desencantamento do mundo”, diante do
irracional preconceito e superstições expressas em intolerâncias e racismos, interesses e
ideologias, adentrando o século XXI ainda debatendo questões da contradição natureza e
sociedade expressos em tensões como hierarquias masculino-feminino, as tensões e lutas de
classes, elementos vinculados a questão racial e intolerância religiosa.
Vale o constante exercício de reflexão que tenta desvelar os meandros presentes na
questão racial expressos das mais diversas formas dentre eles, etnicismos, intolerâncias,
preconceitos, segregações, racismos e ideologias raciais.
É importante entender que a forma que as relações sociais são produzidas interferem na
dinâmica da compreensão de Raça, racionalização e racismo e de como esses conceitos se
expressão na realidade através das implicações políticas, econômicas e sociais.

Racializar ou estigmatizar o “outro” e os “outros” é também politizar as relações cotidianas,


recorrentes, em locais de trabalho, estudo e entretenimento; bloqueando relações,
possibilidades de participação, inibindo aspirações, mutilando práxis humana, acentuando a
alienação de uns e outros, indivíduos e coletividades. Sob todos os aspectos, a “raça” é
sempre “racialização”, trama de relações no contraponto e nas tensões “identidade”,
“alteridade”, “diversidade”, compreendendo integração e fragmentação, hierarquização e
alienação. (IANNI, 2004:21)

O elemento central para entendimento da categoria raça é que essa está vinculada a uma
marca fenotípica e que simultaneamente é utilizada para subalternização de determinado
segmento social e esse é um aspecto fundamental da ideologia racial no qual

“o estigmatizado, aberta ou veladamente, é levado a ver-se e a movimentar-se como


estigmatizado, estranho, exótico, estrangeiro, alheio ao “nós”, ameaça; a despeito de saber
que se trata de uma mentira. Precisa elaborar e desenvolver a sua autoconsciência crítica,
tomando em conta o estigma e o estigmatizador, o intolerante e a condição de subalternidade
em que está jogado.” (IANNI, 2004:22)

Ao pensarmos a inter-relação social é importante entender que o componente subjetivo é


desempenha um papel importante ou mesmo decisivo na trama das relações e sociabilidade racial
e que em contrapartida entender que o marginalizado ou estigmatizado desenvolve uma
consciência social e racial.
A ideologia racial é a que dirá quem “pode”, é ela que articula, desenvolve e desencadeia
ações que justifiquem de modo individual e\ou coletivo as desigualdades, tensões e conflitos
raciais, ou seja, os racistas fundamentam seus argumentos na desqualificação do “outro” ou dos
“outros”, argumentos esses que se apresentam como argumentos que parecem consistentes e
convincentes.
Nesse sentido é que essa ideologia é uma técnica de estigmatização recorrente, reiterada em
diferentes fórmulas e verbalizações, desenvolvendo a metamorfose da marca em estigma.
Sob vários aspectos, essa ideologia racial é transmitida por gerações e gerações, através dos
meios de comunicação, da indústria cultural, envolvendo também sistema de ensino,
instituições religiosas e partidos políticos; e tem sido, continuando a ser, um componente
nuclear da cultura da modernidade burguesa. Esse o contexto em que formula, cria ou
engendra “o mito da democracia racial”, significando que a sociedade brasileira seria uma
democracia racial, sem ser uma democracia política e, muito menos, uma democracia social.
(IANNI, 2004:22)

Nessa dinâmica é importante entender que o subalterno também elabora sua “contra
ideologia”, que esse subalterno no geral é o “outro” não branco, podendo ser o negro, judeu, índio
e ciganos, mas que em se tratando de Brasil o negro possui suas especificidades e que é
fundamental entender que o “branco está” em lugar de “superioridade” a partir n{ao só do
componente racial, mas também e sociais, enquanto classe dominante.
As vivências do estigmatizado o atravessam de modo que sua percepção, sensibilidade,
compreensão; constrói e reconstrói a sua consciência no contraponto do “eu” e do “outro”, do
“nós” e do “eles”, dos “subalternos”, dos “dominantes”. Assim, sendo de modo particular e aos
poucos, ou de repente, pode se perceber um entendimento mais amplo e vivo de qual é a sua real
situação, de quais são os nexos do tecido social no qual é esse emaranhado e principalmente de
como essa sua situação implica decisivamente na ideologia e a prática dos que discriminam. É
nesse o percurso em que se alcança, e é dessa possibilidade de um movimento coletivo dessa
consciência crítica que nasce a transformação, a ruptura ou a transfiguração.
Dentro da dinâmica da sociedade brasileira, mas não apenas, traz na dialética do escravo
e do senhor uma das mais importantes alegorias do mundo moderno e nessa

dialética das relações sociais, nas quais se inserem as relações raciais: o indivíduo,
tomado no singular ou coletivamente, forma-se, conforma-se e transforma-se na
trama das relações sociais, formas de sociabilidade, jogos de forças sociais (…) o
clima em que germina o “eu” e o “outro”, o “nós” e o “eles”, compreendendo
identidade e alteridade, diversidade e desigualdade, cooperação e hierarquização,
divisão do trabalho social e alienação, lutas sociais e emancipação.” (IANNI,
2004:24)

De certo que, para além da contradição de classe expresso na sociedade capitalista, a


mesma se expressa em contradições outras tais quais questão racial, assim como as
desigualdades masculino-feminino a partir da globalização da questão social, desenvolve-se e
intensifica-se mais um ciclo de racialização do mundo.
O movimento relativamente fácil, seria reconhecer toda essa dinâmica de enigmas como
algo natural

Mas é possível imaginar que esses problemas ou enigmas podem ser fermentos de
outras formas de sociabilidade, outros jogos das forças sociais, outro tipo de
sociedade, outro modo de produção e processo civilizatório; com os quais se põe em
causa a ordem social burguesa prevalecente, revelando-se a sua incapacidade e
impossibilidade de resolvê-los, reduzi-los ou eliminá-los. Sim, esses problemas ou
enigmas podem ser tomados como contradições sociais abertas, encobertas ou
latentes, permeando amplamente o tecido das sociedades nacionais e da sociedade
mundial, com os quais se fermenta a sociedade do futuro. (IANNI, 2004:25)

É na tentativa de fermentar o futuro, na construção de uma sociedade antirracista que, ter


a percepção da importância desse debate ao exercício profissional torna-se cada dia mais
necessário. Ainda que hoje tenhamos um aparato de legislações e instrumentos que municiem
esse debate no interior da profissão, tal como a Campanha de Triênio do Conjunto
CONFESSO/CRESSE “Assistentes Sociais no Combate ao Racismo”, o que podemos observar é
ainda é precisamos fortalecer ações no sentido de combate ao racismo,

embora estejam numa crescente – no campo da luta antirracista no Serviço Social,


que reverbera na formação profissional limitando o aprofundamento de uma análise
da totalidade da realidade brasileira, ou seja, em que medida o racismo impacta o
processo de formação e trabalho profissional. (ABEPSS, 2018: 11)

E sobre esse lugar que queremos debruçar nossa reflexão, o exercício profissional de
assistentes sociais.

Exercício Profissional, Princípios Fundamentais do Código de Ética, racializando o debate.

Talvez nosso primeiro contato com algumas pautas mais “humanista” esteja no princípio 11
que diz “Exercício do Serviço Social sem ser discriminado, nem discriminar, por de inserção de
classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, opção sexual, idade e condição física.”
(CFESS, 1993), contudo a decorrer da formação e durante o exercício profissional no cotidiano,
não damos conta de como pôr em prática tal princípio, ou da importância de conseguirmos traçar
um perfil realista da população atendida, muitas vezes pelo fato de que nossa formação
profissional conseguiu nos instrumentalizar para o debate de classe, mas não nos formou para
entender os meandros postos na nossa formação social brasileira, que nos permitiria perceber
que majoritariamente essa classe trabalhadora tem cor.

E é partir do exercício profissional como instrumento de combate ao racismo em


consonância com Código de ética, que queremos problematizar a importância de gerar dados, e
de como isso não se expressa muitas vezes nos nossos instrumentais de trabalho, negligenciando
os quesitos raça/cor. De modo empírico e partindo de um princípio de análise de fontes
secundárias, a exemplo IBGE, podemos afirmar que majoritariamente nossos usuários são
negros, porém por qual motivo essa afirmação se torna facilmente questionável, ou de difícil
contabilização?
O primeiro motivo está vinculado a “não veracidade” dado visto que o mesmo é auto
declaratório e que por vezes são os profissionais que o fazem a partir de suas apreensões
atravessadas por um racismo em que categorizar alguém negro é visto como algo ruim, a
segunda se inter-relaciona com a primeira, visto que muitos profissionais se querem aplicam o
quesito informando de ante mão que o usuário preferiu não se auto declarar. Ambas as situações
o controle do dado é único e exclusivo do profissional, posteriormente quando há estudos que
estabeleçam perfis populacionais, em sua maioria o marcador raça/cor dificilmente é um
determinante para o tipo de política pensada ou aplicada.

Arrisco afirmar que foi a política de saúde, através da Portaria n° 1.678/GM, de 13 de


agosto de 2004, que determina

Art. 1º Constituir, no âmbito do Ministério da Saúde, o Comitê Técnico de Saúde da


População Negra, com as seguintes atribuições:

I – Sistematizar propostas que visem à promoção da equidade racial na atenção à saúde;

II – Apresentar subsídios técnicos e políticos voltados para a atenção à saúde da população


negra no processo de elaboração, implementação e acompanhamento do Plano Nacional de
Saúde;

III – elaborar e pactuar propostas de intervenção conjunta nas diversas instâncias e órgãos
do Sistema Único de Saúde;

IV – Participar de iniciativas intersetoriais relacionadas com a saúde da população negra; e

V – Colaborar no acompanhamento e avaliação das ações programáticas e das políticas


emanadas pelo Ministério da Saúde no que se refere à promoção da igualdade racial,
segundo as estratégias propostas pelo Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial
– CNPIR, criado pela Lei nº 10.678, de 22 de maio de 2003.

Umas das primeiras políticas que possibilitou que o serviço social atue e que tenha um
olhar mais direcionado, trazendo ai a importância do quesito, não estamos aqui dizendo que antes
desse decreto os profissionais de demais áreas não operavam a coleta de dados racializados,
contudo é inavegável que não havia centralidade, muito menos estamos aqui afirmando que o fato
de haver um decreto com a conformação de um comitê de acompanhamento fosse garantia da
centralidade do debate, tanto não é real essa afirmação que posteriormente foi necessário a
criação de uma política específica, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. O
que aqui queremos dizer é que apenas através da coleta de dados racializados que temos a
possibilidade de elaborar, gestar e fomentar políticas públicas pautadas na realidade da
composição racial brasileira, e, que pode parecer menor ou distante, contudo essa coleta, não
apenas, pois toda coleta de dados que tente se aproximar ao máximo do real de modo subsidiar
democratização de direitos, é fundamental para o cumprimento de outros princípios do código de
ética profissional, tais como o princípio “III Ampliação e consolidação da cidadania, considerada
tarefa primordial de toda sociedade, com vistas à garantia dos direitos civis sociais e políticos
das classes trabalhadoras;” ressaltando que essa classe majoritariamente te cor e gênero.
Ainda na esteira de consolidação dos princípios éticos no exercício prático do serviço
social, a coleta de dados de modo racionalizado, corrobora com outros princípios, em exemplo:

V. Posicionamento em favor da equidade e justiça social, que assegure universalidade de


acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, bem como sua
gestão democrática;

VI. Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à


diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das
diferenças;

VIII. Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova
ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero;

X. Compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população e com o


aprimoramento intelectual, na perspectiva da competência profissional; 1

A quem ofende o quesito raça cor?

Certa vez participando de uma oficina, a oficineira nos solicitou que nos apresentássemos
dizendo nome, classificação racial a qual nos identificávamos e um adjetivo com a letra de nosso
nome. Após a rodada de apresentação ela indagou o que foi mais difícil nesse processo? A
reposta foi unânime, o adjetivo. Ela seguiu e disse “- Estão percebendo que é possível colocar o
quesito raça cor em “outro lugar”, um lugar que não gera desconforto. Esse exemplo é apenas
para ilustrar que há formas de refletirmos e aplicarmos o quesito raça cor.

Quando convidamos ao debate do mesmo no exercício, estamos também convidando a


refletir sobre todo racismo arraigado em nossa formação individual e profissional e essa é uma
elaboração que precisa estar presente entre nós, o que ganhamos e o que perdemos com a não
aplicação desse quesito. Levando em consideração a sociedade brasileira que construiu um mito
de democracia racial, alinhado a um ideário de mestiçagem, não aplicar o quesito raça cor é uma
escolha política que fortalece o lugar do de subalternidade do negro nessa sociedade, que não
considera os impactos dos mais de 300 anos de escravidão e toda herança deixado por ela.

De antemão o argumento mais comum será o de que, essa classificação racial é frágil, ou
ainda, que as pessoas não se auto reconhecem, visto que, em muitos casos a autodeclaração é
incompatível com a heteroidentificação (metodologia de identificação racial a partir o outro, ou
seja, é a forma como outrem te enxerga racialmente) e que assim sendo, haveria um dado

1 Considero importante afirmar que, comum olhar atento, boa vontade teórica e política, além claro de formação política
e teórica adequada, perceberemos que racializar o debate do serviço social não é algo impossível, pois só uma rápida
olhada nos princípios fundamentais de nosso código de ética percebemos o quanto eles conversam com o debate das
relações étnico raciais, contudo aqui ´só queremos chamar atenção a esse fato.
falacioso que não reflete o real. Rapidamente é importante explicitar que em caso de cotas raciais,
a metodologia da heteroidentificação pode ser utilizada como complementar a autodeclaração.

Retomando as questões de possíveis divergências ente os dados coletados e o real,


importante salientar que pesquisas estatísticas possui o que comumente é conhecido como
“margem de erro” que calculada a partir de uma quantidade amostral da pesquisa e aplicada
critérios específicos para a definição da margem de erro, que tal abordagem existe justamente
como intuito de corrigir isso, esse seria o primeiro argumento metodológico. Outra fato importante,
é que a classificação racial como hoje existe não é algo que “foi tirado do bolso”, mas sim um
acúmulo de estudos e formas de coleta de dados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística) desde de 1870 onde foi coletado pela primeira vez o quesito cor, o quesito somente
passa a ser classificado como raça cor nos anos 1990 pois quando a inserção da classificação
racial indígena, que até então era categorizado ou em mestiço quando essa classificação foi
usada, ou pardo.

Outro fato interessante que mesmo quando foi realizado estudos de classificação racial, a
partir de categorias não estabelecidas, as respostas de autodeclaração cruzadas as de
heteroidentificação não apresentaram grandes divergências. Não estamos aqui incentivando a
não aplicação da autodeclaração, mas apenas demonstrando que o possível argumento é
derrubado pelo exposto acima.

Ainda sobre metodologias de classificação racial, é importante ressaltar, que em caso de


cotas raciais, a metodologia da heteroidentificação pode ser utilizada como complementar a
autodeclaração, de acordo com Frei David em Prefácio no livro “Heteroidentificação e cotas
raciais: dúvidas, metodologias e procedimentos” organizado por Dias e Junior, 2018.

O que gerou a necessidade de se recorrer à heteroidentificação? Na revista UNESPCIÊNCIA


de junho de 2017 o pesquisador da EDUCAFRO, Eueliton Marcelino Coelho Junior assim se
expressa: “Atualmente, o principal fator que está prejudicando a efetividade das cotas raciais
para o ingresso de negros nas universidades tem sido a utilização exclusiva de uma
autodeclararão por parte do candidato às vagas reservadas para a mencionada etnia.
Pessoas desonestas ou que não entenderam os objetivos que permeiam a criação da reserva
de vagas têm se utilizado da existência desse frágil controle para firmarem autodeclarações
duvidosas ou falsas sobre suas etnias e usufruírem de direitos que não lhes são legalmente
pertencentes.” Ele continua: “Comissões formadas por estudantes pertencentes aos coletivos
negros das próprias universidades e por pessoas pertencentes a entidades civis ligadas aos
movimentos negros organizados vêm se mostrando eficientes em várias universidades
federais. Cumpre-se observar que a mencionada comissão, baseada num mecanismo de
heteroidentificação em que a identificação é complementada por terceiros, está em
conformidade com a ordem constitucional brasileira, conforme tendência de votos dos
ministros do STF, na ADC 41.” E foi mais adiante: “A criação de comissões de validação de
autodeclaração tem se mostrado medida urgente e necessária para o alcance pleno das
políticas públicas de inclusão da população negra nas universidades públicas brasileiras, pois
as cotas raciais, isoladamente, garantem apenas as vagas, não garantindo que os
verdadeiros destinatários dessa ação afirmativa usufruirão destas.” (p7-8).
Iniciamos esse ponto perguntando “A quem ofende o quesito raça cor?” Tal pergunta pode
parecer inocente ou incabível, mas, um país que apenas nos anos 2000 reconheceu o racismo
estrutural existente, em que o mito de democracia racial ainda é uma realidade, atualmente
reforçado pelo próprio presidente do país e seu “projeto” de governo, um país em que a identidade
positiva do negro ainda precisa ser fortalecida, não é de se surpreender a rejeição a
autodeclaração que se vincule ao ser negro, lembrando que entendemos negro a partir da
classificação racial do IBGE em que negro é o somatório dos que alto declaram pretos ou pardos.

Abriremos aqui um breve dialogo sobre ser preto e ser pardo. Conforme anteriormente
explicitado, as categorias de classificação racial não são categorias descoladas da realidade,
sendo elas: preto e pardo ambos se relacionam a ascendência africana, os pretos são os que
possuem tons de peles mais retintos e os ditos pardos possuem tons de pele mais claras mas que
não são brancos, essencialmente os pardos podem ser uma mistura entre raças, (preto com
branco, branco índio, preto com índio) o que permite vários matizes de tons de pele; amarelo são
os ascendências oriental; indígenas são os que se vinculam os povos originários dessa terra e
brancos são todos aqueles que se vinculam a ascendência europeia. Aparentemente essas
classificações possuem conotação apenas racial, contudo, tais classificações trazem imbuídas
também de significado social, se recuperamos os mais de 300 anos de escravização do povo
preta nesse país, somado ao fato de índios terem sido subjugados e ao lugar desses dois
segmentos populacionais, se auto declarar preto ou indígena não conferia nenhum status social,
entretanto ou preto devido a todo processo escravocrata e não reconhecimento de humanidade
estava em situação pior. Tão logo ser preto, era sinônimo de não humanidade, de não direitos, de
lugar não favorecido na sociedade, classificação racial a qual muitas pessoas tentaram negar ou
escamotear. Para melhor entendimento, estudar o projeto de embranquecimento no Brasil é
fundamental, contudo, não é o alvo de nossos estudos aqui.

No fim dos anos 1980, diante da efervescência dos movimentos sociais, fortalecimento do
movimento negro, é que a sociedade brasileira, através da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 -
reconhece a existência do racismo, mas ainda âmbito individual. É inegável o impacto que a
criação dessa lei tem na relação entre pessoas brancas e negras, visto que no intuito de fugir do
estereótipo de racista, há um apagamento do ser negro, ao menos no discurso, explicitando ai um
racismo velado, não dito, mas amplamente praticado nas relações sociais, institucionais, será
apenas com a lei 10.639/2003 da obrigatoriedade de ensino de história, africana, afro-brasileira e
indígena em todos os níveis de ensino e posteriormente as leis de n° 12.711 de 2012,e
n°12.990/2014. A primeira popularmente conhecida como lei de cotas para universidades, a
segunda lei de cotas para concurso público, são as ações dos anos 2000 que caracterizamos
como medidas efetivas de e reconhecimento do racismo estrutural, pois quando se aplica o
sistema de cotas raciais, estamos reconhecendo a defasagem existentes entre negros e brancos
frutos do processo escravocrata que não permitia o acesso à educação por parte dos negros,
sendo essa política uma das maiores responsáveis por uma real possibilidade mobilidade social.
Poderíamos aqui ainda discorrer, sobre toda violência a estatal que mata fisicamente a população
negra nesse país, seja pela bala, seja pela ausência de políticas públicas, toda via esse não é o
central de nossa abordagem.

Diante disso, convidamos a seguinte reflexão, partindo do princípio de que já


compreendemos que racismo existe nessa sociedade, nos perguntamos: Qual minha colaboração
ou não com a manutenção ou reprodução do racismo no meu exercício? A resposta apropriada se
relaciona com o racismo institucional, com a reprodução operada por essa manifestação do
racismo, que a nosso ver, parafraseando Almeida, 2018: é incapacidade de uma instituição em
prover um serviço apropriado e profissional às pessoas em razão de sua cor, cultura, ou origem
étnica. Essa expressão de racismo, pode ser percebida em normas, práticas e comportamentos
discriminatórios que são adotados no cotidiano de trabalho, resultantes do preconceito ou de
estereótipos racistas. Seja qual foro caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de
grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios
gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações.

Almeida, 2018, trabalha com conceito de racismo em três perceptivas principais, que já
discorremos aqui sobre elas de modo não organizado, mas para melhor visualização segue uma
breve exemplificação: o racismo individual2; o racismo institucional3 e racismo estrutural.4

Como combater essa reprodução do racismo institucional e não apenas? Há uma célebre
frase da ativista, escritora e intelectual negra Ângela Davis que diz: “Não basta não ser racista, é
necessário ser antirracista” e é essa reflexão inicial que queremos propor ao conjunto de
profissionais do serviço social. Iniciemos pelo nosso cotidiano com ações reais e do concreto do
cotidiano profissional, tornado o quesito raça, o recorte racial um marcador constante de nossas
análises. Fazendo isso estaremos não apenas dando respostas na dimensão ético-política da
profissão, mas também técnico-operativa, e a partir dessa coleta de dados e de um revisitar a
nossa formação social brasileira será possível a construção de uma nova formação e elaboração
teórico-metodológicas mais calcadas na nossa realidade. Pois como afirma (Almeida,2018:19) “a

2 (…) segundo está visão, é concebido como uma espécie de “patologia”. Seria um fenômeno ético ou psicológico de
caráter individual ou coletivo, atribuído a grupos isolados; ou ainda uma “irracionalidade”, a ser combatida no campo
jurídico por meio de aplicações de sanções civis – indenizações, por exemplo – ou penais. Por isso, a concepção
individualista pode não admitir a existência de racismo, mas somente de “preconceito”, a fim de ressaltar a natureza
psicológica do fenômeno em de sua natureza política. (ALMEIDA, 2018:28)
3 No livro Ablaca Power: Politics of liberation in America, de Charles V. Hamilton e Kwame True (nome africano adotado
por Stokely Carmichael) (…) No livro racismo é considerado como “aplicação de decisões e políticas sobre
consideração de raça com propósito de subordinar um grupo social e manter controle sobre esse grupo” (…) o racismo
institucional, que se manifesta nos “atos de toda comunidade branca contra a comunidade negra”.(…) O racismo
institucional se “origina na operação de forças estabelecidas e respeitadas na sociedade e, portanto, recebe muito
menos condenação pública do que o primeiro tipo.” (ALMEIDA, 2018:33-34)
4 O conceito de racismo estrutural foi um enorme avanço no que se refere ao estudo das relações raciais. Primeiro, ao
demonstrar que o racismo transcende o âmbito da ação individual, e, segundo, ao frisar a dimensão do poder como
elemento constitutivo das relações raciais, mas não somente o poder de um indivíduo de uma raça sobre outro, mas de
um grupo sobre outro algo, possível quando há o controle direto ou indireto de determinados grupos sobre o aparato
institucional.(ALMEIDA, 2018:36)
história da raça ou as raças é a história da constituição política e econômica das sociedades
contemporâneas” tão logo debater raça e racismo é de fundamental importância.”

Em “Destruindo o sonho: a família negra e a crise do capitalismo” Ângela Davis discorrem


sobre como as políticas públicas são pensadas de modo racializado pela negativa, ou seja, de
modo que julgue, subjugue populações negras as colocando ou contribuindo pra que permaneçam
em situação de desvantagem. Ainda tentando dialogar com a indagação que fizemos, de qual
pode ser nossa colaboração no combate ao racismo institucional principalmente operado pelo
nosso exercício profissional, penso que não temos respostas prontas, mas como possível
resposta inicial, a implementação da Lei 10.639\2003 na formação em serviço social, um maior
conhecimento do Estatuto da Igualdade Racial (LEI Nº 12.288, DE 20 DE JULHO DE 2010 )e as
breves reflexões postas nesse artigo, aponta possíveis caminhos.

Conclusão

Como explicitado inicialmente, esse artigo não pretende esgotar a discussão em torno
dessa temática, muito pelo contrário, esperamos que a partir dessas elaborações, outras
profissionais sintam se provocadas a refletir sobre sua prática cotidiana e os impactos do racismo
nela, de como o cotidiano profissional é atravessado por elementos exógenos, tal como o racismo,
mas que principalmente consigam compreender os impactos desse racismo, na nossa formação
(social e profissional) expressos por vezes na ausência do quesito raça cor, na insistência de não
reconhecer o componente racial e como ele se entrelaça as demandas apresentadas. artigo se
pretende a ser um “pontapé” inicial no debate, e esse debate está em aberto sendo urgente que
ele seja deflagrado, a fim de que a profissão continue a sua trajetória de luta em prol de uma
classe trabalhadora (reconhecendo que essa classe tem cor e gênero) e da defesa de seus
direitos, bem como a compreensão de como isso impacta sobre si. O atual cenário político-
econômico do país mostra a necessidade da reorganização dos trabalhadores, movimentos
sociais e categorias profissionais, para um real avanço nas lutas é necessário que se abandone
visões endogenista e ou organizações pautadas na pequena política ou politicas fragmentadas, e
necessário uma retomada de análises da realidade com base nas grandes teorias, fazendo a
mediação com as demandas de gênero, sexualidade e raça. O espaço posto é profícuo, as ações
estão sendo encaminhadas, a nós cabe a tarefa de sermos sujeitos ativos nesse processo,
contribuído de forma qualitativa ao debate.
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UFRJ, Rio de Janeiro.

Sites:

www.assistentessociaisnocomabteaoracismo.com.br

Arquivos de áudio:

Podcress - Rio #2 - Quesito Rassa\Cor com Roseli Rocha, disponível na platforma no Soundcloud
(em outubro de 2019)

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