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Louis-Jean Calvet SOCIOLINGUISTICA _ uma introducao critica © A lingitistica moderna naseeu da vontade de Ferdinand de Saussure de elaborar um modelo absttato, a lingua, a partir dos atos de fala, Seu ensinamento consiste sobre- tudo no fato de que “a lingiiis tica tem por unico e verda- deiro olijeto a lingua conside- rada em si mesma e por si as linguas nao existem sem as pessoas que ERB EL RBM Ep ecco un ios iso esperar William Labov poe Ven Ue Ccyeyetucur- mT EL que, se a lingua é um fato Rolo eI Mra tbat uma “sociolingiiistic. CofUeaecoypts sito asrstaree) ves oTe(0} Crore test bayeaers eM c bene UCC BO Les dida ela nos leva a redefi propria lingitistica? e livro leva a sério a afir- macao de que a lingiifstica s pode ser definida como o es- tudo da comunidade social em ecto lingtiistico e ocu= pa-se de trazer um pouco de ordem 4 profusao de aborda- Loa Me Lome Ce Courz Moe stn} oO NA PONTA DA LINGUA 4 NA PONTA DA LiNGUA 1. Estrangeirismos — guerras em torno da lingua Carlos Alberto Faraco [org.] 2. Lingua materna — letramento, variagdo & ensino Marcos Bagno, Michael Stubbs & Gilles Gagné 3. Historia concisa da lingitistica Barbara Weedwood 4. Sociolingiiistica: uma introdugao critica Louis-Jean Calvet Louis-Jean Calvet SOCIOLINGUISTICA uma introducao critica area mm ctMa ean TRADUCAO, Marcos Marcionilo a 2 BeraAbo TITULO ORIGINAL LA SOCIOLINGUISTIQUE 4* EDITION MISE A JOUR: 2002, JANVIER © PRESSES UNIVERSITAIRES DE FRANCE, PARIS, 1993 ISBN: 2-13-052433-8 C167s_ Calvet, Louis-Jean Sociolingiiistica: uma introdugio critica / Louis Jean Calvet; tradugéo Marcos Marcianilo. — Sio Paulo: Parabola, 2002. 176p., 18em ISBN: $5-88456-05-2 1. Sociolingiiistica. I. Calvet, Louis-Jean CDD: 410.9 DIREITOS RESERVADOS A PARABOLA EDITORIAL RUA BERNARDINO DE AGUIAR, 194 04181-060 SAO PAULO, SP Fone: [11] 6969-8853 Fax: [11] 6946-4985 home page: www.parabolaeditorial.hpg.com.br e-mail: parabolaed@uol.com.br TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. NENHUMA PARTE DESTA OBRA PODE SER REPRODUZIDA OU TRANSMITIDA POR QUALQUER FORMA E/OU QUAISQUER MEIOS (ELETRONICO, OU MECANICO, INCLUINDO FOTOCOPIA E GRAVAGAG) OU ARQUIVADA EM QUALQUER SISTEMA OU BANCO DE DADOS SEM PERMISSAG POR ESCRITO DA PARABOLA EDITORIAL LTDA. ISBN: 85-88456-05-2 © PARABOLA EDITORIAL, SAO PAULO, BRASIL 2002 SUMARIO APRESENTAGAO ... Inrropu¢ao... Cariruto I: A LUTA POR UMA CONCEPCAO SOCIAL DA LINGUA... . Saussure 7 Meillet: a origem do conflito. . As posigdes marxistas acerca da lingua .. . Bernstein e as deficiéncias lingitisticas .. . William Bright: wma tentativa de sintese . Labov: a sociolingtiistica é a lingitistica3 1 . Conclusao . QuPwWHE Capiruto II: Lincuas EM CONTATO . 1, Empréstimos e interferéncias 2. As linguas aproximativas 3. Misturas de linguas, alternancias de cédigo e estratégias pies us 4, O laboratério crioulo .. 5. As linguas veiculares . 6. A diglossia e os conflitos fngtenenee. Capiruto III: CoMPORTAMENTOS E ATITUDES ..... 1. Os preconceitos.. 2. Seguranga / inseguranga 3. Atitudes positivas e negativas 13 13 OL 4, A hipercorregio . wee TT 5. As atitudes e a variacgao lingitistica .. 80 Cariruto IV: As VARIAVEIS LINGUISTICAS E AS VARIAVEIS SOCIAIS..... 89 1. Um exemplo de variaveis lingitisticas: as varidveis fonéticas 90 2. O “vernaculo negro-americano” 98 3. Varidveis lingiiisticas e varidveis sociais 102 4, 5 . Os mercados lingitistiCOs ......eeeeeees 105 . Variagdes diastraticas, diatopicas e diacronicas: o exemplo da giria.. 109 6. Comunidade lingiiistica ou comunidades social’ 5 Capiruto V: SocioLinGtisrica OU SOCIOLOGIA DA LINGUAGEM? ..... 1. A abordagem micro . 2. A abordagem macro. 3. As redes sociais ¢ as linguas . 134 4. Sociolingitistica e sociologia da linguagem 138 Cariruto VI: As poriricas Linctisricas . 145 1. Duas gestées do plurilingitismo: 0 in vivo eo in vitro 146 2. A agao sobre a lingua .. 148 3. A ago sobre as Linguas ......... 154 ConcLusAo..... 161 BIBLIOGRAFIA 163 GUIA DE LEITURA 164 GossArio..... 167 INDICE DE NoMES 171 6 APRESENTAGAO Marcos Bagno Por ser a primeirissima obra de introdugao a sociolingiifstica que se imprime no Brasil, a publi- cacao deste livro de Louis-Jean Calvet equivale, na pratica, a denunciar uma situagdo injustificavel que s6 pode ser explicada por uma anélise detalhada dos misteriosos mecanismos que operam em nosso meio editorial, e dos ainda mais misteriosos labirintos da nossa vida académica. A situac4o injustificdvel é esta: como € possivel, num pais onde se tem desen- volvido uma intensa atividade de pesquisa sociolingiiistica ha pelo menos trés décadas (pesqui- sa de qualidade cientifica reconhecida internacio- nalmente), nao haver no mercado absolutamente nenhum livro que apresente os principios basicos da teoria sociolingiiistica, sobretudo para o enorme contingente de leitores composto pelos estudantes de graduacéo em Letras? Séo intimeros os projetos (j4 concluidos ou em andamento) de descrigao e andlise da realidade lingiiistica do Brasil; jd sao cen- tenas as dissertacdes de mestrado e teses de douto- rado empreendidas 4 luz das diversas teorias 7 SOCIOLINGUISTICA: UMA INTRODUGAO CRiTICA sociolingiifsticas, ¢ mais numerosos ainda os arti- gos cientificos publicados em revistas especializadas — mas livro introdutério de ampla circulagao, de acesso facil, nao temos nenhum, a nao ser a limita- da (por questdes de espaco) iniciativa de Fernando Tarallo em A pesquisa sociolingiiistica (1985). Comecar a preencher essa falta com este livro é um passo importante, sobretudo por se tratar de Louis-Jean Calvet, um sociolingiiista que nao se res- tringe a teorizacao e as atividades académicas, mas que empreende uma verdadeira militancia politica, de luta assumida contra as atitudes discriminatorias que se servem da lingua como instrumento de do- minacao e de exclusdo social. Com vis4o critica e engajada, Calvet nao se limita a expor, com “neu- tralidade” e “objetividade”, os conceitos basicos que sustentam as teorias sociolingiiisticas. Ao contra- rio, ele mostra de que modo os mecanismos ideold- gicos atuam nessas teorias, inclusive sob a forma de “preconceitos positivos”, como o que ele detecta na atitude de Labov de extrema valorizacao da “verbo- sidade” dos falantes do “vernaculo negro-america- no” e de desprezo pelos recursos lingiiisticos do cha- mado “cédigo elaborado” das camadas sociais do- minantes, que para ele séio apenas “as marcas registradas do falar muito para dizer nada, do dizer desdizendo |...], recursos que muitas vezes obscure- cem qualquer contribuicao positiva que a educagao pode dar ao nosso uso da lingua” (“The logic of non- standard English”, 1969, traducao minha). 8 > APRESENTAGRO De autoria de Calvet, 0 leitor brasileiro ja ti- nha a seu dispor a obra Saussure: pro e contra, cujo subtitulo revelador é “rumo a uma lingiiistica social”. Ali, demonstrando a insustentabilidade das opgdes epistemoldgicas do estruturalismo, em suas versoes pré- e pds-chomskyanas, Calvet insiste na necessi- dade incontorndavel de se construir uma ciéncia da linguagem em que o “social” seja o préprio objeto de estudo, ao qual a chamada “lingitistica interna” tem obrigatoriamente de se subordinar. Essa mes- ma insisténcia aparece aqui, sobretudo na conclu- sao da obra, onde o autor declara que a palavra (socio) lingiiistica s6 pode ser escrita assim, com 0 “socio” entre parénteses, na esperanca de que, um dia, o que esta dentro dos parénteses desaparecera. Quando este dia vier, sera possivel escrever simples- mente lingiiistica e definir esta ciéncia como “o es- tudo da comunidade social em seu aspecto lingtiistico”. Para conferir a esta publicagéo um cardter eminentemente didatico, os editores oferecem ao leitor, no final do volume, um guia de leitura com a relacao da (escassa) bibliografia sociolingiiistica existente no Brasil, bem como um glossdrio dos prin- cipais termos técnicos empregados pelo autor. Me- rece destaque também o cuidado de fazer acompa- nhar o texto de Calvet de notas de rodapé que ofere- cem exemplos tirados da realidade lingitistica brasi- leira com vistas a tornar mais facilmente reconhe- civeis os fenémenos abordados na obra. INTRODUGAO A lingiiistica moderna nasceu da vontade de Ferdinand de Saussure de elaborar um modelo abs- trato, a lingua, a partir dos atos de fala. Seu ensinamento, que foi compilado por seus alunos ¢ publicado apds sua morte!, constitui o ponto de par- tida do estruturalismo em lingiiistica. E, nao obstante certas passagens nas quais se encontra a atirmacao de que a lingua “é a parte social da linguagem”, ou que “a lingua 6 uma instituicdo social”, este livro insiste sobretudo no fato de que “a lingua é um sistema que conhece apenas sua ordem propria” ou que, como afirma a ultima frase do texto, “a lingtiistica tem por unico e verdadeiro objeto a Ifngua considerada em si mesmia e por si mesma”. Saussure tragava assim uma nitida separacdo entre o que lhe parecia pertinente, “a lingua em si mesma”, € 0 resto, e nesse ponto foi seguido por pesquisadores tao distintos quanto Bloomfield, Hjelmsley ou Chomsky. Todos, elaboran- do teorias e sistemas de descrigdes diversificados, con- 1. Cours de linguistique générale, Paris, Payot, 1916. As nu- merosas edigdes posteriores conservaram a paginagio da primeira edigao. Citaremos preferentemente a edigio critica de Tullio di _ Mauro, Paris, Payot, 1985. 2. Cours, p. 31. 3. Cours, p. 33. 4. Cours, p. 314, i SOCIOLINGUISTICA: UMA INTRODUGAO CRITICA cordavam em delimitar 0 campo de sua ciéncia de modo restritivo, eliminando de suas preocupacdes tudo o que nao fosse a estrutura abstrata que eles de- finiam como objeto de seu estudo. Ora, as linguas nao existem sem as pessoas que as falam, e a historia de wma lingua é a historia de seus falantes. O estruturalismo na lingiiistica foi construido, portanto, sobre a recusa em levar em con- sideragao 0 que existe de social na lingua, e se as teo- tias e as descrig6es derivadas desses principios sao evidentemente uma contribuigao importante ao estu- do geral das linguas, a sociolingiiistica, 4 qual se con- sagra este livro, teve de tomar o sentido inverso des- sas posicdes. O conflito entre essas duas abordagens da lingua comeca muito cedo, imediatamente depois da publicagéo do Curso de lingiiistica geral, e n6s vere- mos que, até bem recentemente, as duas correntes vaio se desenvolver de modo independente. De um lado, insistia-se na organizacéo dos fonemas de uma Iin- gua, em sua sintaxe; de outro, na estratificagao social das linguas ou nos diferentes parametros que na lin- gua variam, de acordo com as classes sociais. Sera pre- ciso na pratica esperar por William Labov para en- contrar a afirmagao de que, se a lingua é um fato so- cial, a lingiifstica ent&o sd pode ser uma ciéncia social, isto significa dizer que a sociolingiiistica é a lingiiistica®. Hoje a sociolingiiistica floresce, multiplica suas abordagens e terrenos. Este livrinho ocupa-se de trazer um pouco de ordem a essa profusao. 5. “Durante anos re ne a falar de sociolingiiistica, pois este termo implica que poderia existir uma teoria ou uma pratica lingiiistica fecunda que nao fosse social”, William Labov, Sociolinguistique, Paris, Minuit, 1976, p. 37, 12 CAPITULO | A LUTA POR UMA CONCEPGAO SOCIAL DA LINGUA 1. Saussure/Meillet: a origem do conflito isa SAAORTEAMEN: (1866- 1936) insistiu em numerosos textos no carater so- cial da lingua, ou a definiu preferentemente como Geto social & dava um contetido bem preciso a essa caracteristica. Em seu cclebre artigo, “Comment les mots changent de sens” [Como as palavras mu- dam de sentido], ele propunha uma definigao desse “fato social” enfatizando, ao mesmo tempo e sem ambigiiidade, sua filiagio ao socidlogo Emile Durkheim: “os limites das diversas linguas tendem a coincidir com os dos grupos sociais chamados nacGes; a au- séncia de unidade de lingua é 0 sinal de um Estado recente, como na Bélgica, ou artificialmente consti- tudo, como na Austria”; — “a linguagem é eminentemente um fato social. Com efeito, cla entra exatamente na definigao proposta 13 SOCIOLINGU[sTICA: UMA INTRODUGAO CRITICA por Durkheim; uma lingua existe independentemen- te de cada um dos individuos que a falam e, mesmo que ela nao tenha nenhuma realidade exterior & soma desses individuos, ela € contudo, por sua generalida- de, exterior a eles”; — “as carateristicas de exterioridade ao individuo e de coergao pelas quais Durkheim define o fato social aparecem na linguagem como evidéncia tltima”’. > (1857- 1913). Contudo, com a publicacao (péstuma) do Curso de lingitistica geral, Meillet tomou distancia tue faz do livro, ttanto, as posi- gdes de Meillet estavam em com, ao menos, uma das dicotomias saussurianas, a que dis- tinguia a sincronia da diacronia, e com a tiltima fra- se do Curso (“a lingiifstica tem por tinico e verda- deiro objeto a lingua considerada em si mesma e por si mesma”). Mesmo que nao seja de Saussure e represente muito mais a conclusao dos editores, ela 1. Antoine Meillet, Comment les mots changent de sens, publicado em Année sociologique, 1905-1906, reimpresso em Linguistique historique et linguistique générale, Paris, Champion, 1921, aqui citado em sua reedigéo de 1965, p. 230. 2. Antoine Meillet, Compte rendu du Cours de linguistique générale de Ferdinand de Saussure, Bulletin dela Societé linguistique de Paris, p. 166. 14 = A.LUTA POR UMA CONCEPGAO SOCIAL DA LINGUA resume perfeitamente seu ensinamento. Contradi- cao porque a afirmacao do carater social da lingua que se verifica em toda a obra de Meillet implica ao mesmo tempo a convergéncia de uma abordagem interna e de uma abordagem externa dos fatos da lingua e de uma abordagem sincrénica e diacrénica desses mesmos fatos. Quando Saussure opde lingiits- tica interna e lingiiistica externa, Meillet as asso- cia; quando Saussure distingue abordagem sincrénica de abordagem diacrénica, Meillet busca explicar a estrutura pela histdria. Realmente tudo opoe os dois homens ido logo os situamos no terreno da lingiiistica geral. Enquanto Saussure busca elaborar um modelo abstrato da lingua, Meillet se vé em con- flito entre o fato social e o sistema que tudo contém: para ele nao se chega a compreender os fatos da lin- gua sem fazer referéncia a diacronia, a histéria. Diante da precisao com que Meillet definia a nocdo de fato social, as passagens em que Saussure declara que a lingua “é a parte social da linguagem”® ou que “a lingua é uma instituigao social”* chocam por sua indefinicao tedrica. Para ele o fato de ser a lingua uma instituigao social é simplesmente um principio geral, uma espécie de exortagao que mui- tos lingiiistas estruturalistas retomarao depois dele, g sem nunca prover os meios heuristicos para assu- mir essa afirmaciio: da-se como certo o carater so- cial da lingua e se passa a outra coisa, a uma lin- 3. Ferdinand de Saussure, Cours de linguistique générale, Pa- ris, Payot, 1931, p. 31. 4, Idem, ibidem, p. 33. SOCIOLINGUISTICA: UMA INTRODUGAO CRITICA siiistica formal, a lingua “em si mesma e por si mes- ma”. Para Meillet, essa afirmagéo deveria, ao con- trario, ter implicag € Sicas, . E isso é bem facil para ele quando estuda o léxico (que ele trate de nomes do homem, do vinho, do éleo ou da reli- giao indo-européia) ou quando se inclina sobre a expansao das l{nguas (por exemplo, sobre a histéria da lingua latina). Certamente as coisas se tornam mais dificeis para ele no campo da fonologia ou da sintaxe, mas continua valendo que sua insisténcia constante sobre esses pontos faz dele um precursor. Um exemplo é a passagem seguinte: “Por ser a lin- gua um fato social resulta que a lingiiistica € uma ciéncia social, e o tinico elemento varidvel ao qual se pode recorrer para dar conta da variagao lingtiis- tica 6 a mudanca social”, posicéo muito proxima da que se encontrard mais tarde na obra de William Labov. Mesmo que Saussure e Meillet utilizem quase a mesma formula, cles nao lhe dio o mesmo senti- do. Para Saussure, a lingua é elaborada pela comu- nidade, é somente nela que ela é social, enquanto, 5. Antoine Meillet, “I’Etat actuel des études de linguistique générale”, aula inaugural no College de France, 13 de fevereiro de 1906, retomado em Linguistique historique et linguistique générale, Paris Champion, 1921, aqui citado na reedigéio de 1965, p. 17 16 A LUTA POR UMA CONCEPGAO SOCIAL DA LINGUA ja vimos, Meillet da a nogéio de fato social um con- tetido muito mais preciso e muito durkheimiano (alids, ele colaborou regularmente com a revista dirigida por Durkheim, L’A nnée sociologique). De fato, enquanto(@aussure distingae cuidadosamente estru- tura de histori: Enquanto o toe dne De cimente terminoldgico (ele tenta elaborar 0 vocabuldrio da lingiifstica para embasar teoricamente esta ciéncia), o de Meillet é programatico: ele nao deixa de dese- jar que se leve em conta 0 carater social da lingua. Vemos, entdo, que o tema da lingua como fato social, central em Meillet, é um tema profundamen- te anti-saussuriano, de modo seguramente incons- ciente antes da publicacao do Curso, mas conscien- te depois, e que a historia da lingiiistica estrutural pos-saussuriana se caracteriza por um afastamento constante desse tema. Surge assim, desde o nasci- mento da lingiiistica moderna: outro discurso que insis- te em Ga eS E, durante quase meio século, e ois discursos vao se desenvolver de modo paralelo, sem nunca se encontrar. 2. As posigdes marxistas acerca da lingua Na mesma época, surgia outra abordagem so- cial da lingua, aquela que nasce na corrente marxis- 17 SOCIOLINGDISTICA: UMA INTRODUGKO CRITICA ia, Jv ein 1894, Paul Lafargue, gettro de Marx, »- blicara um estudo sobre 0 vocabulario francés “an- tes e depois da Revolucao certo, um certo mecanicismo em sta Visdo: com a monarquia feudal; a tribuna das assembléias par- lamentares durara enquanto durar o governo parla- mentar”®, Mas nao se pode negar que temos aqui a primeira tentativa de aplicar certa andlise sociold- gica aos fatos da lingua. Posteti - } segun- do o caso. Do lado da extravagancia é preciso ins- crever Nicolai Marr (1864-1934), que, bem antes da ascensdo do comunismo ao poder, elaborara a teoria das linguas jaféticas (do nome do terceiro fi- Tho de Noé, Jafet, nascido depois de Sem e Cam, cujos nomes ja tinham classificado as linguas camiticas e semiticas), a qual ele vai tentar aplicar o marxismo: Marr postulava uma origem comum para todas as Iinguas do mundo. Inicialmente a comunicagao te- tia Becca seguida quatro elementos fonicos teriam aparecido — sal, ber, yon et roh — € consti- tuido a linguagem de uma casta que estava no po- der (os feiticeiros). A lingua foi, portanto, desde a 6. Paul Lafargue, La langue frangaise avant et apres la révolution, L’Ere nouvelle, janeiro-fevereito de 1894, reeditado em L-J. Calvet, Marxisme et linguistique, Paris, Payot, 1977, p. 144. 18 A LUTA POR UMA CONCEPGAO SOCIAL DA LiNGuA origem, o instrumento do poder e é sempre marcada pela divisdo da sociedade em classes sociais. Depois essas quatro silabas vao se combinar, se deformar, se multiplicar, para originar as diferentes linguas do mundo, que Marr classificava em quatro esta- gios sucessivos, correspondentes a situacdes socioecondmicas diferentes: — primeiro estagio: chinés, linguas africanas; Imguas fino-ugrianas, turco; — terceiro estagio: linguas caucasianas e camiti — quarto estagio: linguas indo-européias e semiticas. Cada um destes estagios correspondia a um “progresso”; e, por tras dessa classificagio, é dificil nao ou, quando menos, de ERROCEASAGY} 04a essa construgao inspirada por um marxismo bem reduzido certamente devia ter sua visdo de futuro: as por pensar, sem dtivida, que €é mais bem servido do que por si mesmo, ele milita- 2 aS 2 cial, o que explica por que, durante cerca de quinze nos Qa bem visto pelo poder ¢ relati- vamente difundido na URSS. As teorias marristas terao o status de teoria oficial. Hoje a aplicagao do marxismo que elas pretendiam realizar parece bem priméria, mas via-se nelas, sobretudo a época, a justi- 19 SOCIOLINGUISTICA: UMA INTRODUGKO cRITICA ficacdo em lingitistica de principios ideolégicos mais gerais: primado da Juta de classes sobre a idéia de nacao, lingua como superestrutura, tudo isso entra- va perfeitamente em uma visio internacionalista, sem contar que respondia perfeitamente aos pro- pblemas da URSS em face das minorias nacionais, mostrando em particular que a organizagao social estava acima da divisao em nagoes. Oficializada com o nome d pensamento de Marr vai ser imposto nai até bem depois de sua morte, até bem entrados os anos 1950. Essa situacao de monopdlio, aliada a meios de pressio consideraveis de que dispde todo Estado forte, dificulta distinguir o que se elaborava teorica- mente fora do pensamento oficial: enquanto alguns ensinavam a nova teoria lingitistica nas universida- des, os que a criticavam arriscavam-se a ir aplicar stias andlises a situacdo lingitistica da Sibéria*. Nao obstante, é preciso destacar pes- quisadores, cujo mais célebre representante € hoje ik QB 895-1 975). Ha também entre eles Valentin Nicolaevitch Volochinov (1895-1930?) do qual conhecemos dois livros: O freudismo — uma critica marxista (1927) e Marxismo e filosofia dalin- guagem (1929). Nestas obras, a. Referéncia aos campos de trabalho forgados da Sibéria para onde eram enviados 0s criticos do regime soviético [n. do E.]. 20 A LUTA POR UMA CONCEPGRO SOCIAL DA LINGUA gem e que Saussure nao soube ver que o signo lingiiistico é o lugar da ideologia. Bakhtin nunca teve problemas efetivos com o regime e continuou a ensinar e a publicar suas obras, particularmente sobre Dostoievski, depois sobre Rabelais, enquanto Volochinov desaparecer4 nos campos de trabalho forcado, sem dtivida exatamen- te depois da publicacdo de seu ito. Mas aqui comega outra 7 se um rumor segundo o qual nem Volochinov nem Medvedev (outro membro do grupo) teriam escrito os livros que tinham assinad Na origem do rumor, poucos fatos, as declaragdes de um tal Prof. V. V. Ivanov, retomadas na introducéo a traducao francesa de Marxismo e filosofia da linguagem, publicada sob 0 nome de Bakhtin (seguido do nome de Volochinov entre parénteses) e com algumas linhas de Roman Jakobson avalizando a tese sem dar prova alguma’. Verdadeiro ou falso, esse enredo € ao mesmo tempo idilico e confuso. Ele comeca por uma hipétese que faz de Bakhtin um “mestre” com discfpulos de sua mesma idade e permite 4 URSS esconder a possibili- dade de que livros importantes e a partir de entao teeditados tenham podido ser escritos por pessoas 7, Mikhail Bakhtine (V. N. Volochinoy), Le marxisme et la Philosophie du langage, prefacio de Roman Jakobson, tradugao e introducdo de Marina Yaguello, Paris, id. de Minuit, 1977 (ed. br.: Marxismo ¢ filosofia da linguagem, Sao Paulo, Hucitec, 1979). at SOCIOLINGUISTICA: UMA INTRODUGAO CRITICA mortas em campos de trabalho forgado. Note-se que Volochinoy, que nada escrevera, segundo esse enre- do, é morto por nada escrever, enquanto Bakhtin, que trabalhava na sombra, a despeito da imposigao do marrismo, pode depois vir a boca de cena®. Nesse interim, a nova teoria lingilistica seria abandonada em circunstancias muito particulares. No comeco do més de maio de 1950, tem inicio no Pravda a publicagdo de uma série de intervengoes sobre a atualidade do pensamento de Marr e sobre o problema de saber se convinha trabalhar a partir de suas teorias, mesmo que alguns meses antes, ja- neiro para ser preciso, por ocasiao do décimo quin- to aniversario da morte de Marr, tenha-se evocado a primazia de suas teorias. Em 20 de junho, Stalin em pessoa intervém longamente, na forma de res- postas a perguntas, e assim se encerra 0 debate. Suas conclusdes podem ser restumidas em dois pontos: — a lingua nao ¢ uma superestrutura; — alingua nao tem cardter de classe. Mesmo que seus argumentos nao sejam 14 mui- to cientificos, seu peso politico faz com que doravan- te a pagina seja virada sobre Nicolai Marr. b. Ver a respeitg do caso Bakhtin-Volochinov a posicéo dos bidgrafos de Bakhtin, os americanos K. Clarke e M. Holquist, que defendem a atribuicao da autoria dos dois livros citados a Bakhtin, admitindo, quando muito, contribuigdes pontuais de Volochinov ¢ Medvedev ao texto. A biografia de Bakhtin foi publicada no Brasil: Clark, K. & Holquist, M., Mikhail Bakhtin, Sao Paulo, Perspectiva, 1998. Para uma exposigao das teses lingitisticas de Bakhtin, ver B. Weedwood, Histéria concisa da lingitéstica, Sao Paulo, Pardbola, 2002 [n. do F.]. 22 A LUTA POR UMA CONCEPGAO SOCIAL DA LINGUA Na Franga, Marcel Cohen, especialista em lin- guas semiticas e membro do partido comunista, sati- da essa intervengéo*. Em seguida, Cohen publicara uma obra’ que mostra que o marxismo dali por dian- te aborda de modo muito diferente os problemas lingitisticos: nao se trata mais de enquadrar os fatos da lingua numa moldura teérica preestabelecida, mas de lancar sobre eles uma olhar socioldgico marxista. Ebem verdade que as teorias de Marr nunca tinham sido levadas a sério: A. Sauvageot vinha criticando-as desde 1935, M. Cohen guardara a respeito delas um siléncio prudente, e os lingitistas franceses estavam muito mais marcados por Meillet que por Marr’’. A intervencao de Stdlin, que teria desbloquea- do a situagao, era, j4 vimos, muito mais politica que lingiiistica. Haverd, porém, um pais no qual seu texto serd considerado uma hase tedrica para a pesquisa: a China. Para concluir este ponto, e para o anedotario histdrico, é preciso destacar que em ou- tubro e novembro de 1974, uma delegagao de lin- gitistas americanos (entre os quais estavam Charles Ferguson e William Labov) visita a Reptiblica Po- pular da China e encontra numerosos colegas chi- 8. Une lecon de marxisme a propos de linguisti se que, Lia Pensée, 33, novembro-dezembro de 1950. 9, Marcel Cohen, Pourune sociologie du langage, Paris, Albi Michel, 1956. oni F _12 Sabena ver Daniel Baggioni, Contribution a histoire le la “Nouvelle Théorie du Langage” en France, in Langages, n 46, junho de 1977. LE 23 SOCIOLINGUISTICA: UMA INTRODUGAO CRITICA neses. Desse encontro surgird uma obra coletiva™ na qual se abordam diferentes assuntos: a reforma da lingua, 0 ensino de linguas estrangeiras, as lin- guas das minorias, a lexicografia ete. O capitulo que deveria ter sido 0 mais interessante, desde nosso pon- to de vista, refere-se a teoria da linguagem, mas se sua leitura nao nos ensina grande coisa sobre a apli- cacao do marxismo-leninismo & Jingitistica, ao me- nos nos mostra que a delegacao americana estava teoricamente desarmada diante de seus interlocu- tores. Realmente ela se contenta em registrar algu- mas provas: que a referéncia suprema € 0 texto de Stélin de que falamos acima, que a lingitistica, como todas as outras ciéncias, deve servir a politica prole- taria, que o vocabul4rio muda mais rapidamente que asintaxe etc. Por fim, para concluit, ela destaca que se é pouco provavel que a China pode contribuir para o progresso da lingiiistica teorica, da neurolin- giiistica ou da lingitistica historica, ela obteve, por outro lado, notaveis resultados no que diz respeito a padronizagao do putonghua (a lingua oficial), a simplificagdo dos caracteres @ a0 ensino das linguas das minorias. E claro que a auséncia de dimensao critica deve-se em parte a redagao coletiva da obra (que nao teve um s6 capitulo assinado) e é preciso sem dtivida considerar esse texto como produto de uum compromisso assumido. O fato é que em nenhu- TL. Winfred P. Lehmann (org.), Language and Linguistics in the People’s Republic of China, Austin, University of Texas Press, 1975. 24 A LUTA POR UMA CONCEPGRO SOCIAL OA LINGUA ma parte aparece o minimo embriao de discussao. porque a sociolingiiistica nascente nos Estados Uni- dos nao tem verdadeiramente uma teoria e porque a vaga idéia segundo a qual a sociolingiiistica deve estudar as relagdes entre a lingua e a sociedade nao é suficiente o bastante para dar inicio a um debate com um discurso que certamente procede sobretu- do do dogmatismo, mas diz ao fim e ao cabo um pouco a mesma coisa. Em 1974, os lingitistas ame- ticanos estéio desarmados diante do dogmatismo marxista-leninista, porque eles nao tém teoria, nado tém bases socioldgicas sobre as quais se spot é essa segue sendo a caracteristica da época na qual a sociolingtiistica faz sua aparicdo. Mas essas avatares tragicOmicos nao devem mas- carar 0 principal: nao pode haver sociolingtiistica sem socio ogia, € se a tentativa soviética nao foi em nada satisfatéria, o problema de wma andlise da lingua em so- Giedade subsiste. Desse ponto de vista, 0 episddio marrista, segutido da resolugao de Stalin, sé poderia fazer recuar 0 ponto de vista socioldégico na lingiiistica. 3. Bernstein e as deficiéncias lingiiisticas 7 Doravante, sera nas pesquisas publicadas em inglés que a sociolingiiistica moderna vai essencial- mente se manifestar. Basil Bernstein, especialista inglés em sociologia da educagao, = primeiro a levar em consideracdo, ao mesmo tempo, as produ- Ges lingiifsticas reais (o que era feito em peque- 25 SOCIOLINGDISTICA: UMA INTRODUGAO CRITICR nissima escala pelos autores inspirados no marxis- mo) € a situagao socioldgica dos falantes. Ele parti- 14 da constatacdo de que as criancas da classe ope- raria apresentam uma taxa de fracasso escolar mui- to maior que as criangas das classes abastadas. Ele passa entao a analisar as produgdes lingiiisticas das criangas e a definir dois cédigos: 0 cédigo restrito, 0 tinico que as criangas dos meios desfavorecidos do- minam, e 0 cédigo elaborado, dominado pelas crian- cas das classes favorecidas, que dominam também 0 cédigo restrito. O exemplo mais conhecido, ¢ 0 mais expressivo, cestes codigos é uma experiéncia que consiste em pedir as criangas que descrevam uma historia em quadrinhos sem texto. As criangas provindas dos meios desfavorecidos vao produzir 1m texto quase sem sentido sem o suporte das ima- gens: “Hles jogam futebol, ele chuta, quebra a vidia- ca ete.”, enquanto as criancas saidas de meios favo- recidos vao produzir um texto autonomo: “Meni- nos jogam futebol, um deles chuta, a pola atravessa a janela e quebra uma vidraga etc.” Os dois codigos se distinguem ainda do ponto de vista das formas gramaticais. O codigo restrito se caracteriza por frases reves, sem subordinagao, hem como por um vocabulario limitado, e seus fa- lantes veem-se fortemente defasados em seu apren- dizado e em sua visao de mundo. Em seus trabalhos, jncessantemente retoma- dos e esclarecidos, Bernstein esta especialmente 26 A LUTA POR UMA CONCEPGAO SOCIAL DA LINGUA preocupado com problemas de ldgica e de semanti- ca. Sua tese principal é de que o aprendizado e a socializagao sio marcados pela familia em que as criancas so criadas, que a estrutura social determi- na, entre outras coisas, os comportamentos lingitisticos. De uma perspectiva sociolégica, Bernstein esta fortemente marcado por Emile Durkheim: “Em certo sentido, os conceitos de cédi- go restrito e de cédigo elaborado tém origem na duas formas de solidariedade distinguidas on Durkheim”. Suas primeiras publicagdes (essencial mente artigos) foram inicialmente recebidas de modo positivo, pois era a primeira vez que se tenta- vauma descrigao da diferenga lingiiistica partindo da diferenga social. Mas, pouco a pouco, passar-se-4 contestar primeiramente sua apusieas bindria e tre dois cddigos (nao se trataria mais protannene de um continuum?) e depois seus conceitos lin- gitisticos. Foi sobretudo William Labov, ao pesquisa a fala dos negros americanos, que Assenyalvet a sas criticas, mostrando que Bernstein nao descr : via verdadeiramente cédigos, mas sobretudo asitlon, aie ele nao apresentava nenhuma teoria deseriaa: Quando se trata de descrever o que realmente para os falantes da middle class dos falantes da pene class, somos expostos a uma proliferacao le eu acho, de passivas, de modais e atxiliares, de 12. Basil Bernstein, Langage et classes sociales, Paris, E Minuit, 1975, p. 306. * 27 SOCIOLINGUISTICA: UMA INTRODUGO cRITICA pronomes de primeira pessoa, de termos raros ete. Mas do que se trata, sendo de limites [...] Prestare- mlos a nés mesmos um grande servico quando che- garmos enfim a distinguir no estilo da middle class © que € questao de moda e o que realmente ajuda a exprimir suas idéias com clareza’””’. Bernstein por certo responderd a essas criticas (particularmente no posfacio a Linguagem e classes sociais), mas suas teses terao cada vez menos eco na comunidade dos lingiiistas e hoje ele é hem pouco citado e utilizado. E contudo ele significou uma vi- rada na historia da sociolingiiistica: Bernstein foi uma espécie de catalisador, de acelerador na lenta progressao rumo a uma concepgao social da lingua, e 0 fato de suas teses terem sido depois rejeitadas em nada diminui 0 papel que ele desempenhou’. 4. William Bright: uma tentativa de sintese De 11a 13 de maio de 1964, por iniciativa de William Bright, 25 pesquisadores se reuniram em Los Angeles para uma conferéncia sobre a sociolingiiistica. 8 eram da UCLA, a universidade que organizava a conferéncia, 15 outros eram ame- ricanos ¢ s6 2 participantes vinham de outro pais (a 13. William Labov, Le parler ordinaire, t. 1, Paris, Ed. de Minuit, 1978, p. 136. c. O leitor brasileiro dispoe de uma discussdo das teses de Bernstein na obra de Magda Soares, Linguagem e escola: uma pers- pectiva social, Sao Paulo, Atica, 1985 [n. do E.]. 28 A LUTA POR UMA CONCEPGAO SOCIAL DA LINGUA Tugoslavia), mas estavam temporariamente na UCLA. 13 dentre eles apresentaram comunicagées: Henry Hoenigswald, John Gumperz, Einar Haugen, Raven McDavid Jr., William Labov, Dell Hymes, John Fisher, William Samarin, Paul Friedrich, Andrée Sjoberg, José Pedro Rona, Gerald Kelley e Charles Ferguson. Os temas abordados eram variados: a etnologia da variagao lingiiistica (Gumpery), a plani- ficacao lingiiistica (Haugen), a hipercorreco como fator de variagdo (Labov), as linguas veiculares (Smarin, Kelley), 0 desenvolvimento de sistemas de escrita (Sjoberg), a equagao de situagdes sociolingiifs- ticas dos Estados (Ferguson)... € os referenciais te6- ricos ndo eram menos variados. William Bright, que se encarregara da publica- cao das atas, tenta em sua introducao sintetizar es- sas diferentes contribuicdes, Ele nota, ja de princi- pio, que a sociolingiiistica “nao é facil de definir com Pprecisio”. Scus estudos, ele acrescenta, dizem res- peito as relages entre linguagem e sociedade, mas essa definigao é vaga, e ele entio esclarece que “uma das maiores tarefas da sociolingiiistica é mostrar que a variagao ou a diversidade nao é livre, mas que é correlata as diferencas sociais sistematicas”". Ele se propoe entao elaborar uma lista das “dimensoes” da sociolingiiistica, afirmando que em cada interse- Gao de duas ou mais dessas dimensées se encontra um objeto de estudo para a sociolingiiistica. As trés 14, William Bright (org.), Sociolinguistics, Proceedings of the UCLA Sociolinguistics Conference, La Haye-Paris, Mouton, 1966, p. 11 29 —————————— SOCIOLINGUISTICA: UMA INTRODUGRO CRITICA primeiras dessas dimensées aparecem em resposta a uma pergunta: quais sao os fatores que condicio- nam a diversidade lingiiistica? E ele distingue trés fatores principais: a identidade social do falante, a jdentidade social do destinatério € 0 contexto, situ- ando-se assim no marco de uma anidlise lingiiistica que tomou emprestadas nogées-chave da teoria da comunicacao (emissor, receptor, contexto). As qua- tro dimensdes seguintes sao para ele: — aoposigao sincronia/diacronia; — os usos lingiiisticos ¢ as crencas a respeito dos usos; — aextensio da diversidade, com uma triplice classifi- cacao: diferencas multidialetal, multilingual ou multissocietal; —_ as aplicagdes da sociolingiifstica, com mais uma clas- sificacdo em trés partes: a sociolingiiistica como diag- néstico de estruturas sociais, como estudo do fator s6cio-histérico e como auxilio ao planejamento. Fle concluia: “Parece provavel que a sociolin- gitistica entre em uma era de rapido desenvolvimen- to; podemos esperar que a lingiiistica, a sociologia e a antropologia venham a sentir seus efeitos”. Este texto tem, especialmente hoje, um valor hist6rico: 0 encontro de maio de 1964 marca, com efeito, o nas- cimento da sociolingitistica que se afirma contra outro modo de fazer lingitistica, o modo de Chomsky e da gramatica gerativa’’. Mas Bright s6 pode conce- 15, Idem, ibidem, p. 15. 16. Louis-Jean Calvet, Aux origines de la sociolinguistique, la conférence de sociolingusitique de 'UCLA (1964), in Langage et societé, n. 88, junho de 1999. 30 A LUTA POR UMA CONCEPGKO SOCIAL DA LINGUA ber a sociolingtiistica como uma abordagem anexa dos fatos de lingua, que vem complementar a lingiiistica ou a sociologia ¢ a antropologia. E essa subordinacio que vai potco a pouco desaparecer com Labov. 5. Labov: a sociolingitistica é a lingitistica Vimos que Meillet nao demorou a se opor as concepcées da lingiiistica propostas por Ferdinand de Saussure. O lingitista americano William Laboy"” nao se enganou acerca disso e, numa nota, assim analisa a contribuicao de seu predecessor e os limi- tes da lingiiistica saussuriana: “Meillet, contempo- raneo de Saussure, pensava que o século XX veria a -elaboracao de um procedimento de explicagdo histé- tica fundado sobre o exame da variacao lingiiistica enquanto inserida nas transformac6es sociais (1921). Mas discfpulos de Saussure, como Martinet (1961), ‘aplicaram-se a rejeitar essa concepcao, insistindo for- mente em que a explicagao lingtiistica se limitasse inter-relac6es dos fatores estruturais internos. Com sa atitude, alids, eles estavam seguindo 0 espirito ensino saussuriano. Com efeito, um exame wofundado dos escritos de Saussure mostra que, ele, o termo ‘social’ significa simplesmente ‘pluri- vidual’, nada sugerindo da interagio social sob aspectos mais gerais”. 17. William Labov, Sociolinguistique, Paris, Ed. de Minuit, 6, p. 259 (ed. or.: Sociolinguistic Patterns, Philadelphia, iversity of Pennsylvania, 1972). 31 SOCIOLINGUISTICA: UMA INTRODUGAO cRITICA E adiante, depois de ter apresentado exemplos fonolégicos da influéncia negra sobre o falar de Nova York, Labov conclui com um retorno a Meillet: “Es- ses exemplos dao peso ao que Meillet afirmava, que é preciso buscar a explicacao da irregularidade das variacoes lingitisticas nas flutuagdes da composi¢ao social da comunidade lingiiistica”"’. Quando, em 1966, Laboy publica seu estudo sobre a estratificacdo social do /r/ nas grandes lojas de departamento nova-iorquinas, texto que soa como um manifesto, pode-se ver ali uma retomada das idéias de Meillet. Encontra-se o mesmo tom desde 0 titulo do capitulo 8 de Sociolinguistic Patterns, “Es- tudo da lingua em seu contexto social”, ¢ uma pas- sagem mostra claramente 0 lago que une Labov a Meillet: “Para nds, nosso objeto de estudo é a estrutu- ra e a evolucdo da linguagem no seio do contexto social formado pela comunidade lingiiistica. Os assuntos considerados provém do campo normalmente chama- do ‘lingiiistica geral’: fonologia, morfologia, sintaxe e scmantica |...]. Se nao fosse necessdrio destacar 0 con- traste entre este trabalho e 0 estudo da linguagem fora de todo contexto social, eu diria de bom grado que se trata simplesmente de lingiitstica”"*. Henry Boyer, em um livro de apresentacao da sociolingiiistica, quali- fica esta afirmacao de “polémica””’. Contudo nao 18. Idem, ibidem, p. 425. 19. Idem, ibidem, p. 258. 20. Henry Boyer, Elémenis de sociolinguistique, Paris, Dunod, 1991, p. 5. 52 A LUTA POR UMA CONCEPGKO SOCIAL DA LINGUA ha aqui nada de polémico. Trata-se simplesmente da afirmagao de um prinefpio segundo o qual nao é possivel distinguir entre uma lingiiistica geral que estudaria as linguas e uma sociolingiiistica que le- varia em conta o aspecto social dessas linguas: em outros termos, a sociolingiitstica éa lingtitstica. Labov tadicaliza Meillet levando a sério até 0 fim a definicao da lingua como fato social, mas a comparagéo para aqui. Meillet, comparatista de alto nivel, trabalhou so- bretudo com linguas mortas, enquanto Labov traba- tha continuamente com situacdes contemporaneas concretas, enfrenta problemas de metodologia da pes- quisa, em suma, constrdi um instrumento de descri- ao que tenta ultrapassar, integrando-os, os métodos heuristicos da lingiifstica estrutural (ver cap. II). De suas pesquisas nasceré a corrente conhecida pelo nome de “lingiiistica variacionista” 6. Conclusao Os anos 1970 vao constituir uma virada. Ve- mos doravante serem publicadas revistas ou coleta- neas de artigos referindo-se explicitamente A Sociolingiiistica, que adquire mais e mais importan- cia e vem deslocar posigdes consideradas definitivas. Citemos, em 1972, Pier Paolo Giglioli que publica Language and Social Context”, obra na qual encon- tramos os nomes de Joshua Fishman, Erving 21. Pier Paolo Giglioli, Language and Social Context, larmondsworth, Midd., Penguin Books, 1972. 33 SOCIOLINGHISTICA: UMA INTRODUGAO CRITICA Goffman, Basil Bernstein, William Labov, John Gumperz, Charles Ferguson etc, Os textos seleciona- dos ja tinham sido todos publicados (entre 1963 e 1971) de modo isolado, mas esse reagrupamento, apds a obra de Bright, é 0 indicador de uma nova corrente na lingiiistica) No mesmo ano, a mesma editora publicava Sociolinguistics”, outra seleta de artigos organizados por J. B. Pride e Janet Holmes, na qual encontramos, entre outras, contribuigdes de Joshua Fishman, Einar Haugen, Charles Ferguson, William Labov, John Gumperz etc. Dois anos mais tarde, era publicado um pequeno livro de Peter Trudgill, Sociolinguistics, an Introduction, que fazia uma avaliacao do estado da ciéncia, dando numero- sos exemplos de pesquisas concretas**. No mesmo ano, na Franca, era publicada uma Introduction & la sociolinguistique que resumia essencialmente diferen- tes teorias e concedia amplo espago a abordagem marxista da lingua’. Para falar das revistas, indi- quemos Language in Society, que comega a circular em 1972, depois o International Journal of the Sociology of Language, a partir de 1974... € essa ati- vidade em varias frentes é um indicador irrefutavel de mudanca: a luta por uma “concepgao social da lingua” est4 em vias de se concretizar. 22, J.B, Pride, J. Holmes, Sociolinguistics, Harmondsworth, Midd., Penguin Books, 1972. 23. Peter Trudgill, Sociolingusitics, an Introduction, Harmondsworth, Midd., Penguin Books, 1974. 24, Jean-Baptiste Marcellesi, Bernard Gardin, Introduction A la sociolinguistique, la linguistique sociale, Paris, Larousse, 1974, 54. CAPITULO II L{INGUAS EM CONTATO Ha na superficie do globo entre 4.000 e 5.000 linguas diferentes e cerca de 150 paises. Um cél- culo simples nos mostra que haveria teoricamente cerca de 30 linguas por pais. Como a realidade nao é sistematica a esse ponto (alguns paises tem menos linguas, outros, muitas mais), torna-se evidente que o mundo é plurilingiie em cada um de seus pontos e que as comunidades lingiiisticas se costeiam, se superpoem continuamente. O plurilingiiismo faz com que as linguas estejam constantemente em contato. O lugar desses contatos pode ser o indi- viduo (bilingiie, ou em situaciio de aquisigaéo) ou a comunidade. E 0 resultado dos contatos é um dos primeiros objetos de estudo da sociolingiiistica. 1, Empréstimos e interferéncias “A palavra interferéncia designa um remane- jamento de estruturas resultante da introducao de elementos estrangeiros nos campos mais fortemen- te estruturados da lingua, como 0 conjunto do 35 SOCIOLINGUISTICA: UMA INTRODUGAO CRITICA sistema fonolégico, uma grande parte da morfologia e da sintaxe e algumas Areas do vocabuldrio (pa- rentesco, cor, tempo etc.)”!. Assim Uriel Weinrich definia em 1953 a in- terferéncia, em seu livro, Languages in Contact. Se esta obra marcou e se ainda hoje é lida, mais de quarenta anos depois de sua publicagao, é porque ela foi a primeira a ir direto ao ponto, com pers- picdcia e profundidade, dos problemas do bilingitis- mo. Mas a definicio que acabamos de citar, que poderia se aplicar ao problema das linguas em con- tato na sociedade, sé serd utilizada por Weinrich em teferéncia ao individuo bilingiie. Ele considera- va que as linguas estavam em contato quando eram utilizadas alternadamente pela mesma pessoa. Podemos distinguir trés tipos de interferén- cia: as interferéncias fénicas, as interferéncias sin- tdticas e as interferéncias lexicais. O quadro ao lado, emprestado de Weinrich, apresenta os fonemas de um dialeto alemanico falado na aldcia de Thusis (schwyzertiitsch) e de uma variedade do romanche falada na aldeia de Feldis (essas duas aldeias se encontram nos Grisées, na Suiga)’. 1. Uriel Weinrich, Languages in Contact, New York, 1953, republicado por Mouton, Haia, 1963. 2. Weinrich, Languages in Contact, p. 15. 56 LINGUAS EM CONTATO INTERFERENCIA FONICA Romanche Schwyzertiitsch (Feldis) (Thusis) mn n mn bd nl g BD G pt c]| k py t (k) ts ts f ts ts {ke f a h s s h v z Bl z 1 x 1 T r j Ww Jj i w i [7 ult oy w pe 9 é ole @ o ie _ _ _al ze a [ae a: /'/ Acento 7/ Acento A oposigao entre vogais breves ¢ vogais lon- as em schwyzertiitsch levanta problemas, porque romanche as vogais sao longas em certos con- extos e breves em outros. Disso resulta, de um lo, confusées entre alguumas palavras e, de ou- ), um “sotaque” romanche em schwyzertiitsch. contraremos um exemplo semelhante na difi- dade que os brasileiros podem ter pata realizar istingao inglesa entre o /i:/ longo e o /i/ breve palavras como sheep e ship, sheet e shit etc. _ As interferéncias sintaticas consistem em or- jizar a estrutura de uma frase em determinada 37 SOCIOLINGBISTICA: UMA INTRODUGAO CRITICA lingua B segundo a estrutura da primeira lingua A. E como um italiandfono produzir em francés, partindo do modelo corrente de frases como vienne la pioggia (“vem chuva”) ou suona il telefono (“toca o telefone”), frases como sonne le téléphone*. No campo lexical, as interferéncias mais sim- ples séo as que consistem em cair na armadilha dos falsos cognatos, quando um inglés, por exem- plo, utiliza em francés o termo instance com o sentido de “exemplo” que ele tem em sua lingua. Podem-se também encontrar traducées literais: estar direito entre os portugueses dos Estados Unidos traduzindo diretamente o inglés to be right, “estar certo, ter razio”. Ou ainda criagdes em uma lingua calcadas no modelo de outro: o francés do Quebec esté cheio de exemplos desse tipo, como vivoir para “sala de estar” (inglés: living room)». Mas a interferéncia lexical é mais freqiiente quan- do as duas linguas néo organizam do mesmo modo a experiéncia vivida. Encontram-se, por exemplo, no francés da Africa um uso do verbo gagner de sentido muito amplo (“ganhar”, mas também “ter”, “possuir”), acepgao calcada no modelo de algumas linguas africanas que tém apenas um verbo para a. Ao contrario do portugués e do italiano, o francés nao admite normalmente a inversio da ordem sujeito-verbo. Por isso, sonne le tééphone, com o verbo antes do sujeito, causa estranheza para um falante nativo de francés [n. do E.]. ‘b. O termo vivoir deriva do verbo vivre (“viver”), tentando reproduzir portanto a idéia contida em living room (literalmente, “espaco para viver”) [n. do E.]. 58 LINGUAS EM CONTATO essas nocgdes. Dessa forma, uma frase como Ma femme a gagné petit significard que ela teve um filho e nao que ganhou em alguma loteria...° Levada ao limite de sua légica, a interferéncia lexical pode produzir 0 empréstimo: mais que pro- curar na propria lingua um equivalente a um termo de outra lingua dificil de encoritrar, utiliza-se direta- mente essa palavra adaptando-a a prépria prontin- _ cia. Contrariamente 4 interferéncia, fenémeno indi- vidual, 0 empréstimo é um fendmeno coletivo: todas as linguas tomaram empréstimos de linguas prdxi- mas, por vezes de forma massiva (é 0 caso do inglés emprestando ao francés grande parte de seu vocabu- lério), a ponto de se poder assistir, em contrapartida, a reagoes de nacionalismo lingiifstico. Como, por exemplo, no Quebec e, em cerita medida na Franca e no Brasil, onde se desenvolveu um movimento Oficial de luta contra os empréstimos. Voltaremos a este ponto no tiltimo capitulo deste livro*. . As linguas aproximativas O plurilingiiismo suscita evidentemente um ‘oblema diferente, quando um falante se encon- c. Curiosamente, no portugués brasileiro, também se usa 0 tho ganhar com sentido de “dar & luz”: “Minha irma ganhou 6m’ [n. do E,]. d. Para o caso do Brasil, cf. Carlos Alberto Faraco (org.), Ingeirismos — guerras em torno da lingua [Colegio “Na ponta lingua, 1”], Sao Paulo, Pardbola Editorial, 2001 [n. do T.]. 59 fi SOCIOLINGDISTICA: UMA INTRODUGKO CRITICA tra numa comunidade cuja lingua ele nao conhe- ce. Temos aqui dois casos tipicos: pode se tratar de uma pessoa que esta de passagem (um turista, por exemplo), que tentaré entao lancar mao de uma terceira lingua que tanto ele como a comunidade em que se encontra conhegam. Neste caso, ele se vale do que se chama uma lingua veicular, nogao a qual retornaremos adiante. Mas pode se tratar também de uma pessoa que tem a intengao de permanecer naquela comunidade, sendo-lhe, por isso, necessdrio, para se assimilar, adquirir a lin- gua da comunidade de acolhida. Esta € a situagao na qual se encontram os trabalhadores migrantes, que chegam a seu pais de acolhida sem conhecer, ou sabendo bem pouco a lingua. Fles sao forgados a adquirir essa lingua no ambiente de trabalho. E interessante analisar esse tipo de aquisigao. Veja- mos a seguir um curto excerto de conversagao com um imigrante espanhol em Paris que exemplifica claramente o fendmeno: — Vous l'aviez connue avant de venir en France? — Ah non! Mais non, c’est porque yo habia metté une annonce sur un, journal Figaro, y elle me va escrir. Et ma une otra petite qui travaille a Paris va me mener*. Temos aqui uma aproximagao do francés, cujas caracteristicas mostram bem a origem lin- gitistica da falante: 3, Christine de Heredia, Le frangais parlé des migrants, Jeause francais, non, Paris, La Découverte, 1983, p. 101. 40 LINGUAS EM CONTATO — termos espanhdis no texto “francés”: porque em vez de pourquoi, otra em vez de autre; termos inventados, produzidos por uma interferén- cia entre as duas linguas; escrir em vez de éerire (em espanhol é escribir); misturas sintaticas: yo habia metté em vex de j'avai mis, onde encontramos ao mesmo tempo um segmen- to espanhol e um mau uso do participio passado ir- regular do verbo metire etc. Pode-se também pensar que essa situacao im- plica néo mais um individuo, mas um grupo so- cial, confrontado com outro grupo cuja lingua ele nao fala e que, por sua vez, também nao fala a sua. ‘Se nao ha uma terceira lingua disponfvel, e se os dois grupos tém necessidade de se comunicar, eles yao inventar para si outra forma de lingua aproxi- ‘mativa, geralmente uma lingua mista. Por isso se lalou, até o século XIX, nos portos do mar Medi- traneo, a lingua franca, forma lingitistica basea- no italiano com um vocabuldrio que também ‘ia empréstimos as outras lingtias do contorno editerraneo. Moliére, em O burgués fidalgo (ato cena V), recriou uma passagem em lingua fran- Nao se trata exatamente do sabir tal qual fala- nos portos do Mediterraneo, mas podemos ontrar em seu exemplo as caracteristicas de s formas lingiiisticas: nelas os pronomes sao luzidos a uma so forma (ti para “tu” e “ti”) e os jos ficam todos no infinitivo: 41 SOCIOLINGUISTICA: UMA INTRODUGKO CRITICA Texto de Moliére Traducio Se ti sabir Se sabes Ti respondir Respondas Se non sabir Se nao sabes Tazir, tazir Cala-te Mistar Mufti Sou Mufti Ti qui star ci, Tu, quem és? Non intendir Se nao compreendes Tazir, tazir Cala-te Estas formas, chamadas de sabirs, sio origi- nalmente utilizadas entre comunidades que nado tém lingua comum, mas que mantém, por exem- plo, relagdes comerciais. Trata-se de um sistema extremamente restrito: algumas estruturas sintati- cas e um vocabuldrio limitado as necessidades de comunicacéo imediata. Quando essas formas co- brem necessidades de comunicagao mais amplas e seu sistema sintdtico se torna mais desenvolvido, fala-se de pidgins, cujo primeiro exemplo é 0 in- glés pidgin que se desenvolveu nos contatos co- merciais entre ingleses e chineses ao longo da costa do mar da China, tomando o vocabulario empres- tado ao inglés e sua sintaxe ao chinés (a origem do termo pidgin seria, alids, a deformacao do termo inglés business, 0 que indicaria bem a funcdo so- cial dessa forma lingiiistica), Essas formas aproxi- mativas, ao contrario das formas individuais que evocamos acima nas situagdes de aquisicéio, geral- mente nao estao destinadas a evoluir para uma pratica da lingua melhorada. Elas sao simplesmen- te auxiliares utilizadas em uma situacdo de contato. 42 LINGUAS EM CONTATO. 3. Misturas de linguas, alternancias de codigo ¢ estratégias lingiiisticas Quando um individuo se confronta com duas linguas que utiliza vez ou outra, pode ocorrer que elas se misturem em seu discurso e que ele produ- za enunciados “bilingties”. Aqui nao se trata mais de interferéncia, mas, podemos dizer, de colagem, de passagem em um ponto do discurso de uma lingua a outra, chamada de mistura de linguas (a partir do inglés code mixing) ou de alternancia de codigo (com base no inglés code switching), segun- do a mudanga de lingua se produza durante uma mesma frase ou se dé na passagem de uma frase a outra. Vejamos um primeiro exemplo, extrafdo de uma conversa entre mulheres espanholas vivendo na Suiga, em Neuchatel: “Ahora, con cabronas de pornemelos en lo alto de la oficina, en lo alto de la mesa de la oficina; sin explicacion y sin na! Ca va pas ou quoi? Por quién se toma este imbecil que apesta a vaca, eh? Y subo y digo, dice: bueno, je vais voir si je trouve, je monte tout de suite”. A insercaéo de segmentos em francés (¢a vas ou quoi?, je vais voir si je trouve, je monte tout de suite) em um discurso em espanhol testemtnha aqui a situagéo de contato de linguas em que se encontra a falante e constitui, segundo o autor, 0 “falar bilingiie”, uma mescla de linguas, na verda- 4, Jean-Frangois de Pietro, Vers une typologie des situations de contacts linguistiques, Langage et Societé, n. 43, marco de 1988. i) SOCIOLINGHIsTICA: UMA INTRODUGKO cRITICA de, que é certamente comum as duas pessoas: as duas sao espanholas, as duas trabalham em um contexto francéfono e a alternancia entre uma lin- gua e outra funciona o mais das vezes como cita- cao de um fragmento de discurso que foi enuncia- do em outra lingua, ou como modo de ancorar 0 discurso na realidade a qual ele se refere: nao ha, aqui, estratégia particular. A alternancia de cédigo ou a mistura de lin- guas podem responder a estratégias conversacio- nais, fazer sentido. Vejamos um exemplo de con- versacao em uma familia de origem italiana viven- do no Canada angldfono. Os pais nasceram na Italia, os quatro filhos nasceram no Canada e uma dentre eles, uma filha, esta na Franca estudando. Toda a familia lhe envia uma espécie de carta oral, gravacao numa fita cassete de uma conversa cole- tiva dirigida a filha/irma ausente: Irma cagula - E goes, “oh those Marines, dangerous ‘n””. Irmio - Yup; Stay away from i marins e tutti soldat (risos). Irma cagula — E tut ji soldat (risos). Pai - E mit sendemind nde... Irma cagula - Ah! Ok (irmao: risos). Pai - E nen fa la Stupet la ma’Em a la fran pe fal:a devend’da kju smart envEc a’pu/... Anh. Irma cacula - Fa kju Stupet. Pai - An (kju) keva ala skol e kju se devendEm le kos bon’. 5. Elena Silvestri, Choix de langues et r6les discursifs dans une conversation familiale italo-canadienne, Plurilinguismes, n. 1, 1990, pp. 75-90. 44 LINGUAS EM CONTATO TRADUGAO (trechos em inglés em negrito, trechos em italiano em itélico) Irma cacula - Ele esta dizendo: oh, esses “marines” so perigosos. Inméo - Ve la, evita “os marines e todos os soldados” (risos). Irma cacula - E todos os soldados (risos). Pai - Seja esperta, nao... Irma cagula - Ah, okt (irmdo; risos). Pai-E néio vi fazer besteira, Nés mandamos ela pra Fran- ga pra ela se tornar mais inteligente, ¢ nao pra depois... Irma cagula - Ela virar mais burra. Pai — Vé ld, quanto mais se vai a escola, mais coisas boas alguém pode ser. Vemos que a irma cagula comega citando, em inglés, uma frase que o pai proferiu em italiano (mas ela pronuncia a palavra perigosos com 0 so- taque italiano do pai). O irmao encadeia em in- glés, mas cita a frase do pai em italiano, frase que a irma cacula retoma, sempre em italiano. Duran- te toda a conversacao o pai sé fala italiano, mas introduz em seu discurso um termo inglés (smart). Desse modo, as mudangas de lingua efetuadas pelos filhos tém aqui uma funcao irénica: trata-se, toda vez, de zombar do pai, de encenar lingitistica- mente seu comportamento, a alternancia corres- pondendo, portanto, a uma estratégia. Vejamos outro exemplo de alternancia de cddi- go, correspondendo ao que se chama de negociacao da lingua de interagéo*, Na cidade de Montreal 6, Monica Heller, Negotiations of Language Choice in Mon- treal, in John Gumpers, Language and Social Identity, Cambridge, Cambridge University Press, 1982, pp. 108-118, 46 SOCIOLINGUfSTICA: UMA INTRODUGKO CRITICA (Quebec), majoritariamente francéfona, o inglés estd em tal progressao que os francéfonos se de- fendem com uma verdadeira bateria de leis lin- giifsticas. Uma das conseqiiéncias dessas leis é que a administracao deve ser bilingtie, e a situagaéo é tio complexa e tao critica que o autor observa que comprar um par de meias se tornou um ato poli- tico... E imprescindivel escolher a lingua de comu- nicacéo sem impor ao outro a lingua que ele nao fala ou nao quer falar. O exemplo abaixo é uma conversa telefonica entre a telefonista do servico de marcacao de con- sultas de um hospital ¢ uma paciente: Telefonista - Central Booking, may I help you? Paciente - Oui, allé?! Telefonista — Bureau de renseignement, est-ce que je peux vous aider? Paciente - (passa a falar francés) Telefonista — (permanece falando francés) Paciente — (passa a falar inglés) Telefonista - (em inglés) Paciente — (volta ao francés) Telefonista — (em francés) Paciente ~ Etes vous francaise ou anglaise? Telefonista - N’ importe, j’suis ni Pune ni lautre. Paciente - Mais... Telefonista — Ca ne fait rien. (A comunicacdo continua em francés). Os comentarios de Monica Heller a esta con- versagéo podem ser assim resumidos: 46 LINGUAS EM CONTATO — durante toda a conversa, as duas falantes dio prova de que dominam tanto 0 inglés como o francés; — mas em sua primeira réplica (“oui, all6”), a paciente forga a telefonista a repetir sua frase, como quem diz: “Nao podemos ter essa conversa sem saber se nos decidimos a falar inglés ou francés” Ela poderia também perguntar “Vocé fala francés?”, e a telefo- nista poderia responder “Sim”, ou “Um pouquinho” ou pedir 8 paciente para falar devagar, ou ainda cha- mar alguém, pedir para ser substituida por um franc6fono (ela é realmente angl6fona e espontanea- mente atende o telefone falando inglés); — atelefonista escolhe seguir a paciente em francés, A paciente, nao satisfeita, passa ao inglés e por fim pergunta a telefonista que lingua é a dela. A telefo- nista se recusa (em francés) a responder, e a conver- sa segue em francés, Assim termina a negociagéo, ea escolha de uma das linguas significa que a paciente fez o explicit pedido de falar francés e que a telefo- nista avalia falar um francés suficientemente bom. A conversagao pode entao prosseguir. No préximo caso, ao contrdrio, a comunica- cao chega ao fim antes que a negociacdo gere um acordo. Essa conversa foi gravada no bar de um hotel, em Creta. Um héspede (que falava francés com sua mulher no momento em que chega o farcom) se dirige ao gargom em grego: Hospede - Kadnotrepa (“Boa tarde”). O gargom lhe responde em francés, e as res- postas vio alternar grego e francés: —___ Gargom ~ Bonsoir monsicur (“Boa tarde, senhor”). AT aaa SOCIOLINGHISTICA: UMA INTRODUGAO cRITICA Héspede -Exete Outo? (“O senhor tem ouzo?”). Garcom - De l’ouzo, bien sir monsieur (“Ouzo... temos sim, senhor”). Hospede - 81a outa, TapaKaro (“dois ouzo, por favor” com um erro de grego: dia em ven de dio). Gargom - 810? (“dois?”: 0 gargom repete o adjetivo numeral em sua forma correta). Héspede — Nai, 810 (“sim, dois”: 0 héspede aceitou a correcao). Gargom - Tout de suiie monsieur (“Agora mesmo, senhor”) Esta interacdo pode parecer paradoxal, pois durante seu desenrolar cada um fala, até o fim, a lingua do outro (o grego s6 intervém em grego uma vez, para corrigir um erro cometido pelo héspede). Temos aqui um exemplo quase caricatural de alternancia de cédigo. A interagao é muito curta para que se possa julgar a capacidade de cada um dos interlocutores de avangar em uma conversacao em uma ou outra das linguas. Mas fica claro que o gargom quer mostrar sua compe- téncia “profissional” em francés e que o hdspede insiste em mostrar que pode falar grego. Por isso, quando ele diz Exete Ouo?, nao estd simples- mente perguntando se ha ouzo (certamente hd; 0 ouzo € simplesmente a bebida nacional da Grécia...), ele mostra ao mesmo tempo que pode fazer essa pergunta em grego (apesar de saber muito bem que em um bar de um hotel internacional o gargom com- preenderd francés ou inglés). Por sua vez, 0 gargom 48 LINGUAS EM CONTATO. poderia contentar-se com um didlogo em grego: ele compreende perfeitamente o que lhe diz o hdspede, segundo suas respostas. Mas, ao responder a per- gunta citada acima: “De l’ouzo, bien stir monsieur”, ele diz que ha ouzo, certamente (0 que € evidente) mas demonstra ao mesmo tempo que compreendet 0 grego do héspede e indica sobretudo que identifi. cou 0 sotaque francés do héspede e que prefere falar francés ou se recusa a falar grego. Nessa curta seqtiéncia, ocorrem muito mais coisas do que o simples pedido de duas bebidas: de- senrola-se um conflito de papéis quanto a escolha da lingua de intercémbio, e 0 intercambio chega ao fim sem que nenhum dos interloctitores recue. Contudo, mesmo ninguém vencendo, o gargom marcou um ponto simbdlico ao corrigir um erro de grego do hdspede e ao nao cometer nenhum erro em francés, Vejamos agora uma ultima situacéo de comu- nicagdo plurilingiie: um coldquio sobre a lingua galega, reunido na primavera de 1991 em uma cida- dezinha da Galiza, do qual participavam, além de uns cinqiienta participantes galegos, quatro convi- dados estrangeiros: — um belga, de primeira lingua flamenga, mas falante também do francés, do alemao, do inglés, do espanhol e praticante de uma “aproximacao do galego”, valen- do-se da forma fonética de seu espanhol e produzindo algo como um espanhol pronunciado a portuguesa; — um francés 1 que sé falava francés; — um francés 2 que falava espanhol, italiano e inglés; — umitaliano que falava francés, inglés e espanhol. 49 SOCIOLINGUISTICA: UMA INTRODUCKO CRITICA Os quatro convidados falavam francés entre si. No quadro do coléquio, os galegos sé falavam galego, o belga falava sua “aproximagao do gale- go”, os trés outros falavam francés. Mas fora do coldquio, nos cafés ou restaurantes, as coisas eram bem diferentes. O francés 1 falava francés, sua tinica lingua, e todo mundo lhe falava em francés. Os galegos, de acordo com seu dominio do fran- cés, falavam francés ou espanhol com os outros trés convidados estrangeiros, o francés 2 ¢ o italia- no falavam espanhol ou francés com os galegos, francés ou, as vezes, italiano entre si, o belga fa- lava igualmente francés ou espanhol (reservando sua “aproximacao do galego” para as situagdes formais do coldquio). Isto significa que tinhamos ali comportamentos lingiiisticos ditados seja pela necessidade (falar a tinica lingua que se domina: é o caso do francés 1), seja por estratégias mais complexas: para os galegos, recusar-se a falar espa- nhol no coldéquio configurava uma demonstragao de suas posicdes politicas (todos eles eram mili- tantes de sua lingua), e, para o belga, falar sua aproximacdo do galego era uma manifestagdo de seu apoio a causa dos galegos (falo a lingua de vocés, estou de set: lado). Misturas de linguas e alternancias de cddigo podem ter, portanto, fungdes diversas. No exem- plo italo-canadense, tratava-se de zombar docemen- te do pai; no exemplo quebequense, de decidir em comum acordo qual seria a lingua da interagao; no 50 LINGUAS EM CONTATO exemplo grego, cada um queria provar sta compe- téncia na lingua do outro etc. Mas em todos os casos, 0 contato das linguas produz situagdes nas quais a passagem de uma lingua a outra reveste uma significagdo social. A telefonista e a paciente chegam, por fim, a um acordo (implicito), 0 hés- pede do hotel e o garcom nao chegam a acordo algum, os participantes galegos do coldquio im- poem sua lingua aos convidados estrangeiros. A cada vez, a comunicagéo se produz a despeito do plurilingiiismo, ou sobretudo sob a forma de ad- ministracao do plurilingiiismo. Mas o bilingtiismo social nem sempre é tao harmonioso. Ele pode também ser conflituoso. 4. O laboratério crioulo O contato entre linguas nao produz apenas interferéncias, alternancias e estratégias. Ele gera sobretudo um problema de comunicagao social. Vi- mos um tipo de resposta a esse problema sob a forma de linguas aproximativas (sabir, pidgin), que tém como caracteristica nao ser a primeira lingua de ninguém. Mas algumas situacdes socioldgicas fazem com que as linguas primeiras percam a efi- cacia comunicacional, quando as populagées estao a tal ponto misturadas que ninguém fala a lingua do outro. E, por exemplo, o que se produziu nos deslocamentos de escravos da Africa para as ilhas: a“ SOCIOLINGHISTICA: UMA INTRODUCKO cRITICA de origens diferentes, misturados nas plantagoes, os negros nao podiam se comunicar em suas lin- guas primeiras e tiveram de criar para si uma lin- gua aproximativa, um pidgin. O modo de emergéncia dos crioulos, ligada ao comércio triangular e ao trafico de escravos, é ainda objeto de discussao na comunidade cientifi- ca. Com efeito, nem todos os lingiiistas estao de acordo sobre a origem dos pidgins e dos crioulos (duas hipoteses se opdem, a hipdtese monogenética e a hipdtese poligenética) e sobre seus processos de formagao. Para alguns, um crioulo € um pidgin que se tornou lingua veicular (isto é, a lingua primeira de uma comunidade), tendo um léxico muito mais ampliado, uma sintaxe mais elaborada e campos de uso variados. O crioulo se caracteri- zaria entio por um vocabuldrio emprestado a uma Imgua dominante, a dos plantadores, e uma sinta- xe fundada sobre a sintaxe das linguas africanas. Outros enfatizam que nenhuma descrigao pode provar verdadeiramente as relagdes entre a gramé- tica dos crioulos e as das linguas africanas e se inclinam especialmente para a hipdtese de uma aproximagado de aproximacao. E a tese de Robert Chaudenson. Baseando-se especialmente no crioulo da ilha da Reuniao, defende, com argumentos con- vincentes, que num primeiro tempo os escravos, pouco numerosos e vivendo relativamente perto de seus senhores, adquiriram um francés sumario (“uma aproximacao do francés”) e que, num segundo tem- 52 LINGUAS EM CONTATO po, com a multiplicacéo do ntimero de escravos, os recém-chegados aprenderam o “francés” com os escravos mais antigos (adquirindo assim “uma apro- ximacéo da aproximacao”). Baseando-se em uma meticulosa andlise da histéria do povoamento da ilha da Reuniao, ele vé trés fases na histéria dos criou- los. Antes de tudo, uma primeira fase, de instalacao: “A importancia numérica, econdmica e social do grupo branco me leva a pensar sempre mais que essa fase deve ter sido muito menos caracterizada pelo surgimento de um pidgin que pela realizacéio de aproximagoes do francés pelos falantes que, alids, conservavam o uso de sua lingua de origem”. A segunda fase “comega com o desenvolvi- mento de culturas coloniais (café ou cana-de-acti- car) que geram consideravel necessidade de mao- de-obra e de expressivas imigracédes, que reduzem sensivelmente a porcentagem de brancos da popu- Jac&o total”. Durante essa fase, os recém-vindos, que trabalham nas plantacées, tem pouquissimos contatos com os brancos. Eles se enquadram no contexto dos primeiros escravos que séo ou do- mésticos ou capatazes e lhes transmitem seus ru- dimentos de francés. E no decorrer da terceira fase que o crioulo vai se estabelecer definitivamente como um cddigo separado do francés’, no seio de uma relacdo digléssica (ver abaixo). F 7, Robert Chaudenson, Créole et enseignement du francais, Paris, UHarmattan, 1989, pp. 164-166, 53

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