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Humano: uma categoria em disputa na era do antropoceno. Entrevista... https://www.ihu.unisinos.br/620796-humano-uma-categoria-em-dispu...

“Uma abordagem que leva o nome de multinaturalismo, de multiespécies, seria


aquela que não define a vida nos termos exclusivistas da vida social e política
humana, mas que, ao mesmo tempo, não toma o que a tradição entende como
natureza como um organismo, uma realidade objetiva exterior compartilhada por
qualquer cultura ou qualquer organismo”, explica o filósofo

Foto: Pixabay

Por: Edição: Patricia Fachin | 02 Agosto 2022

Fazer distinções sempre foi uma marca da filosofia, a qual teve como consequência, na
história do pensamento ocidental, a "hierarquização filosófica em torno das espécies e
seres". Entretanto, "abalar e desconstruir" essa visão de mundo é a proposta filosófica
do multinaturalismo que, segundo Mateus Uchôa, pode ser resumido como "a crítica
na crença ao excepcionalismo humano, antropocêntrico, em oposição a uma
consciência da realidade cosmopolítica da natureza". As ideias centrais do
multiculturalismo e suas consequências e propostas políticas para enfrentar o
antropoceno foram expostas por Uchôa na conferência virtual intitulada
"Multinaturalismo. Da política do conceito a um novo conceito de política", promovida

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pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 22-07-2022.

Segundo ele, em contraposição à metafísica clássica, em que o "acesso específico ao


mundo seria somente próprio ao homem", o multinaturalismo advoga que o acesso ao
mundo "é democratizado politicamente para as outras espécies, não só atores biológicos,
mas abióticos, e o próprio mundo em uma perspectiva geológica ou geontológica. (...) Se
trata aqui de nova reflexão metafísica, filosófica, não do ponto de vista do grande
fundamento, mas, sim, um pensamento que não se guia pela ideia de substância, mas
que vai se modular muito mais em termos éticos do que propriamente ontológicos",
disse.

O que está em disputa entre essas duas compreensões, acentua, é a concepção de ser
humano. "A ideia de humano é uma categoria em disputa e essa disputa se arranja
dentro de um enquadramento cosmológico e dentro de uma atitude animista que recusa
de antemão o pensamento alicerçado na descontinuidade entre os seres do cosmos, em
um sentido mais próximo da relação do que da ideia de distinção entre um plano de
fundo antropomórfico do qual se irradia a hierarquização política e metafísica dos
seres, dentro da própria ideia de humanidade, em que também haveria sub-
humanidades, humanidades inferiores a um padrão – sobre isso, sabemos do que se
trata: um padrão baseado na ideia de branquitude, eurocêntrico e patriarcal",
afirma.

A seguir, publicamos a conferência de Mateus Uchôa no formato de entrevista.

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Mateus Uchôa (Foto: Té Pinheiro)

Mateus Uchôa é bacharel e mestre em Filosofia e em Artes pela Universidade Federal


do Ceará - UFC e doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais -
UFMG. Atualmente realiza pesquisa sobre pensamento indígena a partir da etnologia de
Eduardo Viveiros de Castro, e também da obra A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e
Bruce Albert, com ênfase na articulação de ideias ameríndias com questões da filosofia
especulativa contemporânea. Também desenvolve projetos audiovisuais com o
Laboratório de criação em cosmopolíticas - LabCosmo.

Confira a entrevista.

IHU – Em que consistem as principais ideias do multinaturalismo?

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Mateus Uchôa - Vou iniciar dando uma definição do que seria uma vida
multinaturalista, que se trata também de uma vida multiespécie. Essa vida
ultrapassa a história conceitual, marcada até então por uma narrativa monoespecífica e
pela oposição entre vida política qualificada e vida biológica desqualificada. Visando
pensar outros sentidos de natureza, de vida, podemos dizer que o multinaturalismo ou a
lógica da vida multiespécies está nesse caminho de desconstrução e superação de termos
antropocêntricos que orientam também as nossas formas de compreensão e composições
políticas nesse mundo.

A ideia geral de um multinaturalismo seria no sentido de que todos os seres vivos


emergem e fazem as suas vidas dentro de uma comunidade multiespécies. Esse
pressuposto é uma unidade fundamental da sobrevivência de todo ser vivo e todo o seu
organismo em seu ambiente. Isso quer dizer que a vida não pode surgir e ser sustentada
de forma isolada – daí sua potência política permanente. Uma abordagem que leva o
nome de multinaturalismo, de multiespécies, seria aquela que não define a vida nos
termos exclusivistas da vida social e política humana, mas que, ao mesmo tempo, não
toma o que a tradição entende como natureza como um organismo, uma realidade
objetiva exterior compartilhada por qualquer cultura ou qualquer organismo.

A ideia geral de um multinaturalismo seria no


sentido de que todos os seres vivos emergem e
fazem as suas vidas dentro de uma comunidade
multiespécies - Mateus Uchôa

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Pensar a expressão de uma vida multinaturalista é marcar uma contraposição também à


redução monoespecífica do pensamento moderno; sobretudo, explorar as redefinições
do conceito de natureza como condição indicadora de uma continuidade cosmopolítica
entre humanos e não-humanos. Esse é um passo fundamental nessa instigante tarefa de

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reconhecer a inter e a transdisciplinaridade dos campos de conhecimento nesse novo


quadro teórico. A vida multinaturalista é, principalmente, uma crítica da crença no
excepcionalismo humano e, sobretudo, a consciência de uma realidade cosmopolítica da
natureza – citando o conceito da filósofa Isabelle Stengers.

No campo da filosofia, essa implicação das teorias multinaturalistas, politicamente,


se aproximam de uma resposta ao que entendemos como paradigma da vida nua, tal
como foi exposto pelo filósofo Giorgio Agamben. O multinaturalismo concebe a
atividade e a vida das espécies num tipo de contínuo “natureza-cultura” e não na forma
de um dualismo, de uma condição abissal entre essas duas categorias, “natureza” e
“cultura”. Para o multinaturalismo, não se trata de pensar uma exterioridade e refletir
sobre o que cerca o humano, mas construir uma lógica de uma mútua inclusão, a qual é
independente da distinção biológica e política entre zoé e bios, entre vida qualificada e
vida desqualificada.

Considero que aqui podemos superar o conceito de vida nua de Agamben e


desenvolver uma outra noção que pode levar o nome de “atividade nua”, comum a todos
os seres terrestres e terranos, como uma espécie de contraposição vital e, sobretudo,
conceitual, ao estabelecimento de uma fronteira política entre o dentro e o fora, que
suspende os efeitos dessa descontinuidade moderna entre o humano e o mais-que-
humano. Então, forma-se um circuito a partir do multinaturalismo, marcado por essa
atividade nua, que é geral a todas as espécies e que, ao invés de confinar a vida em uma
determinada perspectiva - no caso, antropocêntrica -, compreende a vida como
membranosa. Essa atividade nua constrói o dentro e o fora como acionamento constante
em uma mudança de fase que vai sempre designar os polos nesse mesmo processo de
mútua inclusão.

Uma abordagem que leva o nome de


multinaturalismo, de multiespécies, seria aquela
que não define a vida nos termos exclusivistas da
vida social e política humana - Mateus Uchôa

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IHU – Pode explicar o que quer dizer com isso?

Mateus Uchôa - Que o transindividual, a partir do multinaturalismo, se junta ao


individual. Isso se desdobra novamente nesse transindividual. Esse seria o status
sociocosmológico do presente dentro da ideia de multiculturalismo. Podemos tomar
como referencial direto os modos de vida extramoderno dos povos indígenas e
tradicionais. Não povos pré-modernos nem ligados a essa ideia de um passado primitivo,
mas povos que trazem uma perspectiva contramoderna, contra essa divisão acionada
pelo nomos político da modernidade.

Uma característica mais evidente do multinaturalismo é a crítica à crença no


excepcionalismo humano, antropocêntrico, em oposição a uma consciência da realidade
cosmopolítica da natureza. Gosto de lembrar da filósofa Donna Haraway, quando
afirma que nenhuma espécie desse mundo, nem mesmo a nossa própria, age sozinha. A
vida se erige a partir de arranjos de espécies, como espécies orgânicas aliadas a atores
abióticos, e essa aliança faz história e produz uma história tanto evolucionária do ponto
de vista dos seres, quanto de outros tipos também; no caso, uma história cosmopolítica.
Isso se torna bastante presente a partir do trabalho de alguns antropólogos
contemporâneos, dentre eles, Eduardo Viveiros de Castro, que é uma referência central
nessa discussão. Mas caberia citar outras referências teóricas que são indispensáveis
nessa conceituação filosófica do multinaturalismo, dessa teoria que tem como origem a
etnologia ameríndia, e como isso se torna uma teoria filosófica. Um exemplo é o
vitalismo libertário de [Gilles] Deleuze, a ideia de mundo circundante, do Barão
de von Uexküll, ou [Jacques] Derrida, com sua reflexão sobre os animais, e a ideia de
contínuo “natureza-cultura”, “humano-animal”, do filósofo Brian Massumi. Essas
referências são cruciais para entendermos e tecermos o conceito de vida multinaturalista
que está em processo de devir.

O multinaturalismo concebe a atividade e a vida


das espécies num tipo de contínuo “natureza-
cultura” e não na forma de um dualismo, de uma
condição abissal entre essas duas categorias,

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“natureza” e “cultura” - Mateus Uchôa

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IHU – Qual é o pressuposto do multinaturalismo?

Mateus Uchôa - O pressuposto para compreender o sentido dessas teorias é uma ideia
de mais-valia de vida – deslocando um termo da economia política e o levando para
uma discussão sobre espécie e natureza na ideia de uma mais-valia de vida, de que a vida
possuiu um excedente, que é dispendiosa e que, nesse modelo, nessa ideia, todas as
espécies humanas e mais-que-humanas superam o modelo do pensamento científico
moderno ocidental que parte de uma concepção muito particular de matéria, como algo
que ganha forma a partir de um determinado projeto ou plano racional. É nesse sentido
que vai se situar o debate sobre multinaturalismo e a política que esse conceito traz e as
implicações políticas.

O multinaturalismo é uma alternativa aos dualismos intransitivos do pensamento


político moderno e nos coloca em perspectiva. Nessa perspectiva, o natural e o social
deixam de ser ideias irremediáveis e ontologicamente separadas. A partir do
multinaturalismo, natural e social tornam-se algo fluido, construído a partir de diversos
rendimentos teóricos e corporais que são resultado dessa composição relacional entre
agenciamentos entre as espécies.

O multinaturalismo trata de ordenar as diferenças constituintes desse mundo e de


outros mundos na tentativa de chegar a uma correspondência dessas relações porque
distribui, segundo suas relações diferenciais, a própria ideia de espécie e, da mesma
forma, também, a ideia de sujeito, a ideia de humano, o que seria a partir daqui uma
espécie de devir multinaturalista dos mundos multiespecíficos.

Não estamos falando só apenas de uma ideia de mundo, um único mundo específico e

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monoespecífico – sempre gosto de mencionar a tese de mundo heideggeriana, em que


Martin Heidegger expõe os conceitos fundamentais da metafísica: medo, finitude e
solidão. Ele tem uma tese de mundo que se popularizou por afirmar que o homem é
formador de mundo, o animal é pobre de mundo e a pedra é sem mundo. Então, na
história do pensamento ocidental, na ontologia ocidental, há de fato uma hierarquização
filosófica em torno das espécies e seres, a qual o multinaturalismo visa abalar e
desconstruir. Esse acesso específico ao mundo, que seria somente próprio ao homem, é
democratizado politicamente para as outras espécies, não só atores biológicos, mas
abióticos, e o próprio mundo em uma perspectiva geológica ou geontológica.

O multinaturalismo é uma alternativa aos


dualismos intransitivos do pensamento político
moderno e nos coloca em perspectiva - Mateus
Uchôa

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IHU – Qual a implicação disso para a filosofia?

Mateus Uchôa - A filosofia contemporânea deveria saber reencontrar esse tom que a
antropologia contemporânea conseguiu, que afirma que não é a natureza de um vivente
que vai definir a sua imagem e a sua aparência; é a sua figura, portanto, a sua espécie, o
modo pelo qual os seres existem sensivelmente, que decide sobre a sua natureza. Aqui
vale a importância fundamental da teoria do perspectivo multinaturalista que Viveiros
de Castro desenvolveu em Inconstância da Alma Selvagem e na sua obra
Metafísicas Canibais. A perspectiva da vida multinaturalista segue esse tom pois parte da
compreensão de que o universo dos seres vivos é multifacetado e é composto por essas
alianças de experiências vitais, diversificadas e criativas, a partir dessa variação do que
entendemos como natureza.

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O multinaturalismo é perpassado por esses interesses solidários, por essas relações


políticas de simbiose. Então, é um processo de misturas, onde os seres vivos seguem o
movimento incessante do devir mundo, que o conecta com o devir animal, o devir
vegetal em um contínuo que podemos considerar como o multinaturalismo. Isso traz
implicações para o que podemos entender como vida, que talvez seja o referencial básico
de toda a ideia de política. Uma vida, nesses termos, ou seja, uma vida que só pode ser
algo alheio a si através de outros corpos, de outras perspectivas, é uma vida definível
somente em termos modais e não substanciais. Se trata aqui de nova reflexão metafísica,
filosófica, não do ponto de vista do grande fundamento, mas, sim, um pensamento que
não se guia pela ideia de substância, mas que vai se modular muito mais em termos
éticos do que propriamente ontológicos.

A teoria do multinaturalismo certamente nos


auxilia nessa compreensão de uma
problematização crítica do conceito de espécie -
Mateus Uchôa

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Contribuição do multinaturalismo indígena

A partir da noção transespecífica do multinaturalismo, isso se contrapõe à ideia


básica da ciência moderna que colocava a descontinuidade ontológica fundacional entre
o homem e as demais formas de vida e, sobretudo, entre homem e mundo. Esses
conceitos foram mobilizados, de certa forma, de uma maneira vulgar, como operadores
conceituais da razão classificatória de raiz colonialista também, a qual estabelece uma
unidade pura da ideia de humanidade dissociada de toda a multiplicidade heterógena do
mundo. Aqui entra a força e a grande contribuição do multinaturalismo indígena da
maneira como foi desenvolvido por Eduardo Viveiros de Castro.

A teoria do multinaturalismo certamente nos auxilia nessa compreensão de uma

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problematização crítica do conceito de espécie. Em geral, o antropólogo Viveiros de


Castro nos apresenta que o perspectivismo típico das cosmologias ameríndias e dos
povos tradicionais da América do Sul, a sua condição sociocosmológica, subverte a
suposta excepcionalidade da espécie humana ao afirmar que cada espécie viva é humana
em seu próprio departamento. É um modo finito de humanidade onde todas as
diferenças específicas que colocam o conceito tradicional de espécie aparecem aqui com
modalidades de uma condição humana genérica e universal a esses seres.

A ideia de humano é uma categoria em disputa -


Mateus Uchôa

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Humano: uma categoria em disputa

Nesse sentido, a ideia de humano é uma categoria em disputa e essa disputa se arranja
dentro de um enquadramento cosmológico e dentro de uma atitude animista que recusa
de antemão o pensamento alicerçado na descontinuidade entre os seres do cosmos em
um sentido mais próximo da relação do que da ideia de distinção entre um plano de
fundo antropomórfico do qual se irradia a hierarquização política e metafísica dos seres,
dentro da própria ideia de humanidade, em que também haveria sub-humanidades,
humanidades inferiores a um padrão – sobre isso, sabemos do que se trata: um padrão
baseado na ideia de branquitude, eurocêntrico e patriarcal. O multinaturalismo
marca essa diferença entre esse ponto de vista interno do sujeito e um ponto de vista
externo do multinaturalismo.

Multinaturalismo. Da política do conceito a um novo conceito de política

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IHU – Como a cosmologia indígena se destaca nessa visão?

Mateus Uchôa - Nesse contexto, podemos pensar que as cosmologias indígenas são o
exemplo perfeito desse multiverso de ideias animistas que são atravessadas, como
Viveiros de Castro afirma, por essa continuidade de um tipo sociomórfico entre
natureza e cultura. Essa continuidade radicalmente altera a ordem das disposições
humanas e dos seres naturais de modo bastante diferente da dualidade ontológica que
citei anteriormente. Então, de fato, o multinaturalismo, dentro do seu cenário
cosmopolítico, expõe uma guerra de mundos entre o mundo moderno e os mundos
extramodernos. A grande problemática é que para a efetivação do mundo moderno,
este teve que ser erigido a partir do fim de outros diversos mundos. O mais intrigante é
que dentro da condição epocal na qual vivemos hoje, que é a do antropoceno, esse
mundicídio, que é característico do mundo moderno, volta-se contra nós mesmos.

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O multinaturalismo é, portanto, um pensamento


da terra - Mateus Uchôa

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Anteriormente, enquanto implicávamos fins a outros mundos, parece que não havia
uma necessidade de reformulação de nossas categorias políticas, mas agora, nós,
humanos, enquanto também uma condição de uma força geológica, portanto, de um
retorno, de uma transcendência à ideia de humanidade, ao mundo humano em que
superlativiza a nossa condição, nos colocamos em uma condição de espécie, que agora é
ameaçadora. E esse fim implica justamente na impossibilidade da continuidade da
vida humana na Terra.

A ideia de multinaturalismo e de um pensamento geofilosófico cosmopolítico pode


operar, a partir de uma lógica multiespécie, um novo tipo de esquematismo cosmológico,
político e metafísico, a exemplo da socialidade ameríndia e dos xamãs
amazônicos. O pensador indígena Davi Kopenawa marca o sujeito cosmopolítico por
multinatureza. Seria um perspectivismo ontológico em contraste com esses não-
perspectivismos epistêmicos e geométricos que foram dominantes em nossa tradição
política.

O multinaturalismo é, portanto, um pensamento da terra. É a expressão conceitual


das agências cosmopolíticas e, sobretudo, da irredutibilidade dos contextos, das
sobrenaturezas e das extramundanidades dos outros, como colocam e propõem as
ontologias amazônicas. Se formos capazes de irmanar as ontologias amazônicas com
determinadas teorias do nosso mundo, sobretudo teorias filosóficas que são mais afeitas
à crítica da posição privilegiada do humano na ontologia e na epistemologia do ocidente
moderno, podemos construir um novo modo de poder perceber o mundo e também
novas alianças em vista de um fim iminente do nosso e de outros mundos. Então, trata-
se de uma cultura e múltiplas naturezas, epistemologia constante, ontologia variável.

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Viveiros de Castro vai dizer que o perspectivismo, portanto, é um


multinaturalismo. E uma perspectiva, cabe sempre lembrar, não se trata de uma
representação de mundo, mas de uma composição deste. O multinaturalismo vai assim
redistribuir as potências políticas humanas e extra-humanas na composição do mundo
nesse esforço de reestabelecer o pluralismo ontológico característico das comunidades e
das vidas dos povos tradicionais e indígenas, uma condição que faz todo o sentido ao que
se coloca hoje como desafio para o nosso mundo moderno. As considerações que
Viveiros de Castro aponta nos permitem reconciliar investigações filosóficas,
biológicas e antropológicas com o intuito dessa pluralidade cosmopolítica de mundos,
antevendo uma solução que descarte esse binarismo entre natureza e cultura, que hoje
demonstra sua face ameaçadora, essa nova epocalidade que estamos denominando de
antropoceno.

IHU – Em que medida essas mudanças conceituais podem gerar mudanças


políticas?

Mateus Uchôa - Essas saídas, que inicialmente são conceituais, deverão cada vez mais
ser também políticas. Elas acentuam o traço contrastivo dos perspectivismos
indígenas em relação às políticas modernas dos sujeitos que se apoiam na ideia de
unicidade da sua espécie e da sua superioridade. Ao contrário dessa cisão etnocêntrica e
eurocêntrica entre natureza e cultura que o naturalismo do ocidente marca, como a ideia
de corpo e alma, o multinaturalismo propõe uma continuidade física e
descontinuidade metafísica, onde espírito e alma, natureza e cultura, são considerados
os grandes diferenciadores ocidentais. Então, trata-se de uma nova concepção ameríndia
do corpo e, sobretudo, da política, porque no pensamento indígena tudo é uma inscrição
do corpo e no corpo. Essa visão é oposta à cisão que postula uma continuidade
metafísica e uma descontinuidade física entre os seres do cosmos. Há um embate
cosmológico e político entre essas visões de mundo.

A espécie humana se tornou, perante a crise


ambiental, essa mega força natural de
destruição cuja aparência ainda é a acumulação
primitiva do modo de produção capitalista -
Mateus Uchôa

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IHU – Como o multinaturalismo contribui para a discussão sobre o


antropoceno?

Mateus Uchôa - Há, de fato, a meu ver, uma confluência da problemática


multinaturalista com a discussão sobre o antropoceno por causa da consciência de que o
grande projeto político da construção social da realidade realizou-se numa contradição
fundamental, que vem sob a forma desastrosa de uma destruição natural do planeta,
vide uma necessidade de autovaloração da construção material do mundo moderno
humano.

Gosto de citar a crítica da economia política de Marx. Por mais que a ideia de
antropoceno tenha uma escala maior do que se convenciona chamar de capitaloceno, o
problema já não seria mais o modo de produção com o qual a vida humana alicerçou as
suas formas, mas há uma correlação muito direta entre consolidação do modo de vida e
do modo de produção capitalista com a epocalidade do ser humano, que leva o nome de
antropoceno. Esse conflito conjurado no antropoceno diz respeito a dois atores
políticos: a espécie humana e a Terra. A espécie humana se tornou, perante a crise
ambiental, essa mega força natural de destruição cuja aparência ainda é a acumulação
primitiva do modo de produção capitalista, que é capaz de modificar e perturbar os
sistemas geofísicos da Terra. Esta, por sua vez, assume cada vez mais essa lógica de
predação do mundo. Segundo Davi Kopenawa, nós seríamos os canibais da Terra, os
comedores de Terra dentro do seu ponto de vista antropológico xamânico sobre os
brancos. Nesse contexto, a Terra cada vez mais assume o seu comportamento
imprevisível em relação aos seus círculos climáticos e também a vida humana assume
um comportamento imprevisível aos seus círculos políticos e econômicos.

As constantes crises do mundo contemporâneo e


do capital são um reflexo direto do antropoceno -

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Mateus Uchôa

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Crises

As constantes crises do mundo contemporâneo e do capital são um reflexo direto


do antropoceno. Surge tudo isso sobre uma nova forma de transcendência que é
ameaçadora à nossa espécie e temos como necessidade cada vez mais estar atentos – é
preciso sempre estar atento e forte a esses sinais que apresentam os motivos do
desmoronamento dessa distinção política fundadora da modernidade, que é a distinção
entre natureza e política.

O multinaturalismo, em sua política do conceito, visa justamente abalar essa


distinção. Não é um movimento iniciado por uma simples necessidade lógica, mas
também porque o colapso ambiental planetário configura essa situação que poderíamos
denominar como a falência do nomos político dos modernos. Essa relação conflitante
entre esses polos, o polo do anthropos e o da natureza, é submetido a uma transmutação,
a uma revisão fundamentalmente crítica, onde o caráter que era inicialmente distinto e
fraturado de ambos agora forma uma mesma figura. Não é mais a dualidade entre
homem e mundo que conta ou tem força a partir daqui, mas se coloca sobretudo a sua
negatividade histórica que se impõe.

Considero essencial que permaneçamos ainda também cosmopolitizando as categorias


críticas da economia política. Quando li a obra A queda do céu, pude perceber que ali
continha um novo tipo de pensamento crítico do modo de vista alienado com o qual a
vida humana se encontra. Falo de uma espécie de crítica xamânica da mercadoria
que é erigida a partir da compreensão da análise perspectiva que o xamã Davi
Kopenawa faz do nosso mundo, do mundo dos brancos, que é o mundo do
antropoceno. Portanto, o mundo de história materializada. No antropoceno, a história
- e outras histórias também - é mais do que nunca materializada e a natureza é
essencialmente política. Então, a sequência tumultuosa dessas transformações põe em
xeque radicalmente a noção de anthropos, que é um divisor político de um sujeito

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universal, que contra define o mundo como objeto.

Disputar cosmopoliticamente o mundo ou os


diversos mundos é a nossa tarefa atual - Mateus
Uchôa

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Racionalidade moderna

Se pegarmos a ideia de racionalidade moderna, da sua construção ética, veremos que ela
é toda baseada na distinção entre o sujeito universal de direitos e o mundo
contradefinido como objeto de ação do seu espírito. E, portanto, a intrusão de Gaia
como um megaevento vem para, em primeiro lugar, ser uma espécie de intrusão em
nossas histórias. É o tipo de transcendência que nunca mais a política dos homens, dos
modernos, deixará de levar em conta, a partir desse horizonte de colapso e
emergência climática marcado pelo aquecimento global antropogênico e, portanto,
de raiz humana. A cosmopolítica, o multinaturalismo e Gaia são os nomes desse
megaevento multifacetado que põe o nosso mundo em perigo – e é o único mundo que
temos. Hannah Arendt fala sobre isto: não há filosofia sem mundo. Parece que disputar
cosmopoliticamente o mundo ou os diversos mundos é a nossa tarefa atual.

Se o antropoceno marca o fim da concepção política do humano e aponta para o início


de um reconhecimento onde o mundo é atravessado por múltiplas ontologias extra-
humanas, mais-que-humanas, falar da ameaça de um colapso ecológico é também
imaginar a possibilidade de um novo mundo a partir desse. Portanto, falar de
multinaturalismo é convocar um outro povo, uma outra ideia de povo.

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Falar de multinaturalismo é convocar um outro


povo, uma outra ideia de povo - Mateus Uchôa

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IHU – Quem seria esse povo porvir?

Mateus Uchôa - Seriam os terranos, em oposição aos modernamente considerados


humanos. Por seu turno, o terrano não é um antagonista das naturezas. Uma visão pós-
correlacionista da natureza é justamente a visão de mundo perpassada por essa
metamorfose cosmopolítica e metafísica em que muitos desses terranos já são
constituídos e outros estão se preparando para viver neste mundo na era do antropoceno
como povos da terra, como povos terranos. O problema é que, ao passo que a consciência
de um modo de vida terrano ganha certa popularidade e urgência em nosso tempo,
muitos outros persistem a viver como humanos.

A insistência do projeto político moderno no processo de exploração capitalista


ainda é a persistência de viver como humano, uma condição completamente
insustentável dentro dos padrões ambientais atuais. Não vai ser tarefa fácil convencer a
nossa civilização, que se arroga e se orgulha de ter inventado a política como a grande
invenção própria de sua natureza, a compreender, a partir do antropoceno e das
implicações multinaturalistas, que a política não é uma simples repartição da sua
identidade. Se trata de uma repartição e de uma ideia de política muito mais abrangente,
de uma cosmopolítica que iguala simetricamente todas as outras entidades e espécies
envolvidas nesse grande evento que leva o nome de antropoceno.

O problema é que, ao passo que a consciência de


um modo de vida terrano ganha certa
popularidade e urgência em nosso tempo, muitos
outros persistem a viver como humanos - Mateus

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Uchôa

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O mundo sem o homem

O mundo do antropoceno se encaminha para ser um mundo sem o homem, mas é vivido
sobre o modo de uma resistência que se encontraria com o mundo feito de outras gentes.
Esse mundo feito de gentes é o mundo do multinaturalismo, das cosmologias
ameríndias, porque o multinaturalismo toma essa transcendência definitiva de Gaia,
da natureza em nosso horizonte de vida, do modo de uma imanência geológica e
geomórfica originária que sempre foi levada em conta e postulada pelos povos da terra e
pelos povos ameríndios. Isso posto à determinação de uma vida multinaturalista, ela
vai cuidar de outras possibilidades de relação, interação e simbioses estabelecidas entre
os organismos heterogêneos de uma vida multiespécie. Portanto, é uma proposição de
uma nova experiência para humanos, animais, vegetais e o próprio mundo, de uma
maneira irrestrita, marcada por grandes filiações intensivas entre esses diversos
mundos.

Então, se percebe que dentro do quadro social e conceitual do multinaturalismo há


um referencial muito direto do modo da socialidade indígena, do modo de vida
indígena a partir desse choque de histórias entre mundos. Me parece que muitos dos
marcadores específicos da modernidade, utilizados anteriormente para indicar o que é
natureza e cultura, parecem ter sido invertidos dentro da lógica multinaturalista, pois
nesta época de distinção entre o geológico e o histórico é que se coloca a potência do
multinaturalismo, que exige a adoção de novas políticas, mas não somente as políticas
restritas aos homens. São também aquelas políticas que são compostas de outras visões
de entes não-humanos que se acham dispostos aqui em uma espécie de continuum, onde
a alteridade vai anteceder a identidade política e as relações dos seus termos.

No multinaturalismo, o homem é a desmedida de

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todas as coisas ao mesmo tempo em que é medido


por todas elas - Mateus Uchôa

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Gosto muito do trabalho de uma antropóloga peruana chamada Marisol de la Cadena


e seu texto “Histórias do antropocego”, em que ela nos alerta para a capacidade de
que os povos indígenas têm de inventar e de suscitar acontecimentos de uma forma
muito mais ativa enquanto sujeitos de composição de mundo do que os próprios
modernos. Isso porque, para eles, a cosmopolítica não se encerra somente na
humanidade. O multinaturalismo faz parte de uma diplomacia cósmica, como afirma
Viveiros de Castros.

No multinaturalismo, o homem é a desmedida de todas as coisas ao mesmo tempo


em que é medido por todas elas. Essa é a grande implicação cosmopolítica, o caráter
excedente da figura humana. Então, o anthropos da política, o Humano com H
maiúsculo, até então privilegiado agente neste mundo, em vista do multinaturalismo,
age como uma espécie de unificador prematuro da própria natureza, enquanto o
multinaturalismo quer impedir o fechamento prematuro das diversas naturezas e das
não-humanidades.

Poderia citar uma passagem mais direta e completa do que Viveiros de Castro aponta
sobre isso a respeito da cosmopolítica do naturalismo. Ele afirma que a
cosmopolítica ou ontologia política da diferença sensível universal atualiza outro
universo que o nosso. Enfim, reconhece outros modos de existência do que o nosso,
justifica outra prática da vida, outro modelo de laço social, distribui diferentemente as
potências e competências do corpo e da alma, do humano e do extra-humano.

O antropocego, que seria uma das faces do


antropoceno, inclui uma guerra travada contra

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entidades e práticas de mundo que ignoram a


separação entre natureza e cultura e que por seu
turno emergem como inerentemente juntas -
Mateus Uchôa

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Antropoceno como atropocego

Marisol de la Cadena, ao examinar o modo de vida dos povos indígenas e especular


sobre as condições cosmológicas que os homens estabelecem com a Terra, faz referência
ao antropoceno como um atropocego, no sentido de que esse termo inclui relações e
entidades antagônicas a partir de coletivos que passam a ser submissos. Ou seja, o
antropocego, que seria uma das faces do antropoceno, inclui uma guerra travada contra
entidades e práticas de mundo que ignoram a separação entre natureza e cultura e que
por seu turno emergem como inerentemente juntas. Essa é a guerra dos mundos que o
antropoceno coloca a outros coletivos de seres. Esse emaranhado de coletivos que
compõe o multiculturalismo aponta que todas as entidades necessitam umas das
outras. A natureza incomum à multinatureza da cosmopolítica é marcada por
um comum divergente. Não se trata de uma unificação que apaga e silencia outras
naturezas. Podemos trazer a ideia de síntese disjuntiva que Deleuze aponta: a diferença
como marca de uma nova ordenação política e metafísica do mundo. A história política
do antropoceno é uma chance cosmopolítica para a equivocidade de mundos, uma
chance de desnaturalizar a natureza, que é o que se torna urgente hoje dentro da
problemática da emergência climática.

A história política do antropoceno é uma chance


cosmopolítica para a equivocidade de mundos,
uma chance de desnaturalizar a natureza -
Mateus Uchôa

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Comum

Devemos, portanto, descolonizar a nossa ideia de natureza ou desnaturalizar esta e tudo


que o homem compreendeu até aqui como natureza, pois as histórias que compõem
essas múltiplas naturezas contam outras histórias mais do que as histórias que a nossa
espécie contou até então. Então, são uma espécie de especulação sobre a composição de
alianças que são capazes de acolher os acordos dessa equivocidade dos mundos, em que
os acordos são feitos não entre diferentes pontos de vista sobre um mesmo mundo – não
se trata mais de um mesmo mundo –, mas acordos que levam em consideração que os
pontos de vista e as perspectivas dos povos extramodernos e mais-que-humanos possam
corresponder a mundos que nunca são apenas os mesmos. Da política do conceito de
multinaturalismo, nós temos um novo conceito de política, ou melhor, de
cosmopolítica. Assim, o comum, já que toda política visa a ele, emerge dos mundos
incomuns, que são ecologicamente relacionados desde as suas divergências, que são
constitutivas.

Por isso que o perspectivismo não é um modelo de organização visando uma


apaziguação ou uma pasteurização de demandas diretas da vida de determinada espécie.
É uma divergência constitutiva. Gosto de citar como exemplo disso um conceito do
filósofo Marco Antonio Valetim, que é a ideia de extramundanidade e sobrenatureza, em
que não se faz mais a divisão entre humanos e não-humanos. É nesse sentido que apenas
o multiculturalismo pode compor o que chamamos de o cosmos da
cosmopolítica. A questão é que as proposições cosmopolíticas apontadas por
determinados pensadores e pensadoras ainda parecem resguardar um certo
messianismo e uma certa crença em um porvir que acaba por apagar as referências e
pontos de partida ameríndios.

O comum, já que toda política visa a ele, emerge


dos mundos incomuns, que são ecologicamente

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relacionados desde as suas divergências, que são


constitutivas - Mateus Uchôa

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Há a necessidade de fortalecer mais esse laço e acredito que a partir das experiências
sociais de libertação que aconteceram e acontecem na América Latina, que sempre
foram conectadas a questões ecológicas, ambientais, de direitos sociais e de uma
reparação ambiental, parece que podemos nos esforçar mais para nos aproximar dessa
perspectiva epistêmicas e históricas da América do Sul. Ou seja, dos povos das terras
baixas da América do Sul. Sempre me vem à mente a experiência dos exércitos de
libertação nacional zapatistas. Portanto, uma experiência também indígena, já que
estamos falando dos descendentes dos maias, um povo especialista em fim de
mundo. Por que não olhar cada vez com mais atenção e apreço para as experiências
políticas e indígenas da América Latina?

Para encerrar, gostaria de citar um trecho de uma declaração do Exército Zapatista,


a Quarta Declaração da Selva Lacandona, que a própria Marisol de la Cadena
expõe nos seus textos.

A declaração zapatista afirma: “Muitas palavras caminham pelo mundo, muitos


mundos se fazem, muitos mundos nos fazem. Há palavras e mundos que são verdades e
verdadeiros. Nós somos feitos por palavras verdadeiras. No mundo do poderoso não
cabem mais que os grandes e seus servidores. No mundo que nós queremos, cabem
todos. O mundo que queremos é um onde caibam muitos mundos.”

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