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© 2015 OJM CASA EDITORIAL

Editor Osvando J. de Morais

Projeto Gráfico e Diagramação Mariana Real e Marina Real

Capa Mariana Real e Marina Real

Revisão Carlos Parreira

FichaCatalográfica
Ficha Catalográfica

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas


Acadêmicas / Organizadores, Marcelo Bulhões, Osvando J. de
Morais. – Sarapuí, SP: OJM Casa Editorial, 2015.
768 p.

E-book.
ISBN: 978-85-68371-03-9

1. Comunicação-Teoria. 2. Comunicação-Pesquisa. 3.
Comunicação-Processo. 4. Comunicação de massa. 5. Meios de
comunicação. I. Bulhões, Marcelo. II. Morais, Osvando J. de. III.
Título.

CDD-302.2

Todos os direitos desta edição reservados à

OJM – Casa Editorial


Loteamento Cruzeiro do Sul, Quadra 1 – São João
CEP: 18225-000
Sarapuí – SP
www.ojmeditora.com.br
Ciências da Comunicação
Circularidades Teóricas e Práticas
Acadêmicas

Marcelo Bulhões
Osvando J. de Morais
organizadores

Sarapuí - SP
OJM Casa Editorial
2015
Sumário

Apresentação.........................................................................15
Marcelo Bulhões
Osvando J. de Morais

1ª Parte – Atualizações Conceituais e


Circularidades Teóricas

Capítulo 1
APRECIADOR OU CONSUMIDOR: ­reflexões acerca da
massificação da Arte na contemporaneidade ........................... 28
Ana Beatriz Buoso Marcelino
Capítulo 2
Conflitos Construtivos: Desafios ­introdutórios da
pesquisa em comunicação.......................................................... 61
Ana Heloiza Vita Pessotto

Capítulo 3
Lei de Acesso à Informação: ­fortalecimento da
comunicação p­ ública na visão da esfera pública
habermasiana...........................................................................101
Bruna Silvestre Innocenti Giorgi

Capítulo 4
A indústria cultural no contexto da sociedade
do conhecimento.......................................................................137
Camila Silva Ferreira

Capítulo 5
O Agendamento no ­Jornalismo Popularesco:
Considerações teórico-empíricas sobre os televisivos
Documento Especial e Aqui Agora............................................153
Carlos Alberto Garcia Biernath

Capítulo 6
Espiral do silêncio, opinião pública e representação
da mulher na mídia...................................................................179
Daniele Ferreira Seridório
Laís Modelli Rodrigues
Capítulo 7
Comunicação: Inquietações da Área........................................211
Emanuelly Silva Falqueto

2ª Parte – A Comunicação, Meios


e Interações

Capítulo 8
Jornalismo e história: o jornal como fonte e objeto
dos estudos históricos...............................................................237
Aline Ferreira Pádua

Capítulo 9
Henry Jenkins e Andrew Keen: A Cibercultura
sob diferentes olhares..............................................................273
Felipe de Oliveira Mateus

Capítulo 10
Hiperlocal como um elemento de ­convergência
entre a digitalização e o reforço de identidades.....................300
Giovani Vieira Miranda

Capítulo 11
Jornalismo de dados: influência da construção narrativa
no agendamento midiático......................................................328
Kelly De Conti Rodrigues
Capítulo 12
A construção da notícia: ­correlacionando conceitos
de Rodrigo Alsina e Wolf...........................................................352
Renan Milanez Vieira

Capítulo 13
Memória: de reminiscências p­ articulares a instrumento
de c­ omunicação organizacional...............................................375
Wanessa Valeze Ferrari Bighetti

3ª Parte – Críticas e Processos Comunicacionais

Capítulo 14
As Jornadas de Junho e as abordagens de Gohn e
Traquina: uma revisão bibliográfica........................................405
Ana Cristina Consalter Amôr

Capítulo 15
Aves que não cantam: paralelos entre a ornitologia
e a comunicação........................................................................461
Guilherme Sementili Cardoso

Capítulo 16
O cenário globalizado no jornalismo internacional:
expectativas, desafios e influências.........................................491
Maria Carolina Vieira
Capítulo 17
Estudos culturais e comunicacionais como forma de
auxiliar na inclusão do homossexual masculino no
ambiente organizacional..........................................................520
Matheus José Prestes

Capítulo 18
Intertexto da literatura para o cinema: um estudo
sobre Bakhtin e a adaptação cinematográfica
do gênero noir ..........................................................................546
Natália de Oliveira Conte Delboni

Capítulo 19
Seriados fora do fluxo: possibilidades e recursos
narrativos na criação de ficções seriadas televisivas
distribuídas por serviços sob demanda....................................571
Octavio Nascimento Neto

4ª Parte – Dinâmica das Práticas Acadêmicas

Capítulo 20
O futebol como cultura no Brasil: da paixão
à profissionalização..................................................................598
Bárbara Bressan Belan
Capítulo 21
A cultura de fãs e fandom como perspectiva das
práticas participativas de consumo de mídia..........................630
Camila Fernandes de Oliveira

Capítulo 22
Distorções da modernidade: o não lugar da imagem
pictórica de fausto em Murnau e Sokúrov...............................656
Fabrício Mesquita de Aro

Capítulo 23
Representações Sociais da Profissão de Relações
Públicas no Cinema: Análise sobre o Filme
Thank you for smoking .............................................................674
Lucas Sant’Ana Nunes

Capítulo 24
O desafio da publicidade na pós-modernidade.......................704
Natália Azevedo Coquemala

Capítulo 25
Futebol “arte” x futebol acadêmico: uma análise
foucaultiana a respeito da ordem dos discursos.....................723
Nathaly Barbieri Marcondes
Capítulo 26
Fotografia, comunicação e linguagem: O desafio
da pesquisa imagética..............................................................749
Neide Maria Carlos
Apresentação
Apresentação
Ciências da Comunicação

As Ciências da Comunicação no Brasil sempre foram


ancilas das teorias europeias, canadenses e estaduniden-
ses, apreendidas em seus centros de origem e trazidas
como novidades pelos estudantes brasileiros que, após
serem transformados em professores-doutores, tornam-
-se delas vetores ao se incumbirem da tarefa de sua dis-
seminação no país. Este é o ponto de partida nevrálgico
de nossa pesquisa na área de comunicação. Até agora,
ainda não tivemos propostas teóricas capazes de retor-
nar às nossas origens, à nossa história e aos antecedentes
de nossa construção como sociedade com justificativas
aprofundadas capazes de mostrar o que somos e em quê
nos tornamos, mais ainda diante das ideias em rotação
e da espiral tecnológica aceleradamente ascendente. E,
este será o nosso grande desafio.

15
Organizamos neste livro, os textos produzidos pelos
alunos que cursaram a disciplina Teorias da Comunicação
da UNESP-Bauru no primeiro semestre escolar de 2015,
a partir dos debates provocados pelas leituras destas mes-
mas teorias já consideradas como clássicas, com o intuito
não somente de construir uma base teórica para os seus
projetos de pesquisa, mas para pensar criticamente as po-
tencialidades de uma nova teoria. Para tanto, percorremos
juntos os sequenciados esforços empreendidos para con-
solidar o espaço da prática de pesquisa e reflexões acadê-
micas teóricas do campo da Comunicação. Pretendendo
ainda, demarcar o espaço de seu estudo dentro da gran-
de área do Conhecimento que constituem as Ciências em
nossa área. Por exemplo, no Brasil, para que as Ciências
da Comunicação obtivessem o reconhecimento de sua
unidade e de sua organicidade sistêmica da complexidade
científica, norteadora de um segmento importante como o
da comunicação, não basta o desejo inato de buscar o co-
nhecimento que se encontra enraizado em todo exemplar
de ser humano. Seria mais que tudo necessário retornar
às ideias, obras e autores, no contexto de nosso passado
histórico, voltado agora para o século XXI, avaliando as
contribuições ao pensamento comunicacional que vem
em movimento contínuo e em amplificação desde os me-
ados do século passado, caracterizado por usos servis de
teorias importadas de outros continentes, que não falam
obviamente de nossa experiência, de nós mesmos e de
nossa identidade.
O objetivo geral deste livro é também abordar as Te-
orias da Comunicação, situando as comunicações no

16 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Brasil em um conjunto de textos clássicos que discutem
as práticas brasileiras, não somente do ponto de vista
da formação do pensamento crítico, desenvolvido em
nosso país, mas também empreender uma tentativa de
avaliar as influências advindas destes autores, bem como
os modos específicos de amalgamar e deglutir as ideias
que aqui chegaram e perceber a evolução destes mesmos
pensamentos, em um processo de amadurecimento até
os nossos dias.
O evidente caráter mestiço da cultura brasileira forja-
da nos tempos primeiros da colonização que se formou
a princípio no convívio com a cultura europeia, e ain-
da enfrenta obstáculos observáveis quando se compara
com o pensamento dos autores de hoje, analisados e de-
batidos, no contexto da cultura brasileira, que em suas
raízes e convívio com instituições, em suas explicações
teóricas, não aprofundam as análises das causas socio-
culturais, sem refletir no plano das ideias uma sociedade
em constante mutação.
Neste momento da história da cultura no Brasil as
características subservientes ainda persistem: por exem-
plo, na carência de orgulho nacional e racial – sentimen-
tos de nativismo e identificações de origem têm recebido
aceitação e repúdio (este em maior grau), alternadamen-
te, conforme sopram os ventos dos modismos. Desvios
de olhares aprovadores ora para a próxima e própria cir-
cunstância ora para a ubiquidade atenta e atraída pelo
global.
É no interior desta formação paradoxal que elemen-
tos importantes podem ser observados ainda hoje, nos

17 Apresentação
modos de ser, diante de pouca teoria e ainda na ten-
são entre sociedade e instituições com paradigmas e
­problemas estranhos, ardilosamente servis para discus-
sões sobre o estágio que se encontram as ciências sociais
e humanas no país.
Os teóricos que fundamentam as ideias que são dis-
cutidas na área das Ciências de Comunicação formam
um corpo substancial com pouco pensamento novo,
embora muita produção, traduzindo as variadas dimen-
sões da diversidade de pensamentos reciclados e que
são aplicados à comunicação, em um processo continuo
sem mudanças, que não ajudam a perceber como essas
mesmas mudanças influenciaram as novas gerações a
repetir comportamentos que definem politicamente,
de maneira marcante, no desenvolvimento de uma área
complexa como a da Comunicação.
E eis que surge uma nova realidade no contexto da
comunicação no novo século: desenvolvimento vertigi-
noso dos mass media, reféns da aceleração das pesquisas
científicas de base que alimentam as Ciências Sociais
Aplicadas – Tecnologias, voltadas para o incremento
e produção de instrumentos e artefatos utilizados nos
processos comunicacionais com rapidez de obsolescên-
cia, em razão de curto período de uso e já suplantado
por um mais ‘novo’ e atual modelo.
E, neste contexto, as instituições de mídia ganham
força e assumem papéis importantes (normativo e na
formação do ‘juízo’ público), a confirmar sua condição
de poder junto aos poderes do estado já antevisto pelo
historiador inglês, Thomas Carlyle, desde os meados do

18 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


séc. XIX – notadamente na área de telecomunicação com
suas qualidades atuais de portabilidade, ­simultaneidade
e ubiquidades refletidas nas intercomunicações indivi-
duais e de grupo viabilizadas pela Internet.
Quase todas as grandes teorias não conseguiram con-
solidar o campo acadêmico da Comunicação no Brasil,
pois em seus usos estão contidos imposição de ideias, de
valores e de discursos como consequência da divisão de-
sigual do mundo. O propósito de tais imposições é subsi-
diar as novas gerações de pesquisadores com elementos
que inibam as resistências. A estratégia é mostrar que os
espaços não se fortalecem criticamente na área por meio
dos modelos de pensamento comunicacional local, pois,
quando demandados pelas transformações e práticas lo-
cais, principalmente as de cunho cultural e comunica-
cional, são inúteis pois é o global que predomina.
A Comunicação em nosso país mudou no que diz
respeito aos media, a indústria cultural, a pesquisa e ao
ensino. No entanto, as teorias não refletem essa mesma
mudança. Pode-se afirmar que à Comunicação no Brasil
competiria refletir e debater essa visão alienígena; deve-
ria registrar a ausência, o esquecimento e o desprestígio
das teorias dos pesquisadores locais, e também do conti-
nente Latino Americano. Pouco se vê nas pesquisas das
grandes instituições nacionais trabalhos centrados e fun-
damentados por autores que participaram ou participam
dos grandes embates sobre a construção do universo
multifacetado da Comunicação e as causas desta frag-
mentação. O que se oberva é uma repetição de citações e
usos dos mesmos autores e ideias, reutilizando ­conceitos,

19 Apresentação
dispensando reconceituações que deveriam levar em
conta elementos e valores das “realidades” locais.
Os trabalhos aqui apresentados refletem a cisão ob-
servada no meio acadêmico entre os puramente teóricos
de um lado e do outro, os tecnólogos, enfatizando a prá-
tica; percebe-se ainda a mesma cisão entre Universidade
e Mercado frente às diferentes habilitações profissionais
ofertadas àqueles que buscam o aprendizado na área.
Tais discussões, em latência nos projetos acadêmicos de
jovens-pesquisadores, afloram por meio de temas pre-
sentes neste livro, especificamente, documentados aqui
nos artigos, como resultantes dos trabalhos reflexivos
desta nova geração de estudantes da UNESP.
Em nosso projeto para a disciplina Teorias da Comu-
nicação, o propósito constante é buscar referências, prin-
cipalmente em textos clássicos de pensadores nacionais
e também àqueles universais que influenciaram a comu-
nicação no Brasil. Este foi o caminho encontrado para
fazer a passagem inaugurada no século passado para o
atual, mas indo mais além, voltar no tempo e situar os
nossos autores ante às influências fundamentais para se
entender, pelo viés epistemológico, a Comunicação nos
Séculos XX e XXI.
Neste sentido, somos conduzidos a voltar nossa aten-
ção para a Comunicação em seu estágio atual de existên-
cia, embora ainda no começo do novo século, deman-
dando primeiramente associá-la ao poder das novas
plataformas, ou ainda aos que se apropriaram da Comu-
nicação, exercendo o poder econômico de forma tanto
concreta quanto simbólica, para depois empreender a

20 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


complexa tarefa de entender a sociedade mediatizada
de massa, assim como os produtores de conteúdo que
veiculam seus trabalhos nos meios de difusão coletiva
com grande peso ideológico. No entanto, pensar mais e
ver mais longe, poder-se-ia dizer que, sem sombra ne-
nhuma de dúvida e nenhum medo de errar, tratar-se de
buscar as grandes referências para projetos que queiram
se vincular às práticas atuais, mas que necessitam, acima
de tudo, de justificativas teóricas que deem conta de um
sentimento impreciso que ainda se encontra em cons-
trução.
É nítida a presença dessa mistura ambígua nos arti-
gos que traduz opções e ênfases colocadas nas discipli-
nas dos cursos de graduação em comunicação. Acredi-
ta-se na necessidade de mapear o Campo no Brasil, em
constante mutação, cheio de armadilhas e contradições.
Neste território, há cruzamentos que colocam à mostra
os movimentos da academia, os questionamentos e dis-
cussões sobre as dificuldades de se ler e lidar com nossos
autores, pois os pesos e medidas recaem sempre posi-
tivamente nos autores internacionais. São empecilhos
aos avanços necessários, envolvendo tanto os teóricos
quanto os técnicos, que por sua vez também participam
autores da moda em um mercado de ideias em rotação,
estimulados, principalmente, por uma visão não muito
clara, e mais ainda, como nação recém-nascida que acei-
ta e recebe com fervor as concessões.
A cultura de massa tal como é praticada no Brasil,
merece uma abordagem especial, dado que, vivemos
e sofremos influências provenientes da Europa, EUA e

21 Apresentação
­ anadá, de visíveis consequências. O Cinema, a Televi-
C
são, o Jornalismo são o resultado da interação entre te-
orias e práticas importadas em processos contínuos sem
aclimatação, amadurecimentos e adequação à nossa re-
alidade. A antropofagia tão decantada cedeu seu lugar a
uma subserviência sem crítica, predatória e dominadora.
Por isso mesmo, Ciro Marcondes Filho alerta ironi-
camente, sem perder o rigor científico, que a Academia
não gosta de comunicar e de comunicação, preferindo os
discursos técnicos e vazios sobre as parafernálias. É nes-
te sentido que as ideias marcondesianas da Nova Teoria
da Comunicação ocupam importante espaço em nossas
reflexões. Diversas teorias que constam do catálogo, as-
sumidas como matrizes seminais não conseguem justi-
ficar um pensamento que tenha sido desenvolvido no
Brasil e na América Latina.
As consequências e os resultados dos usos políticos
das teorias da comunicação em quase todas as institui-
ções de ensino público e privado geram sentidos per-
versos no ensino e na pesquisa em comunicação. Não se
trata aqui de retomar a velha divisão proposta por Um-
berto Eco, entre apocalípticos e integrados, mas de uma
sequência de projetos políticos implantados no Brasil
cujos resultados são perceptíveis na formação de pes-
quisadores e docentes cujas identidades e consciência de
suas raízes, oscilam.
Faz parte da luta reconhecer o trabalho daqueles que
palmearam cada espaço, demarcando territórios, como
os bandeirantes. Por outro lado, reabilitar os pensado-
res brasileiros, é um dever em função não somente da

22 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


importância de suas ideias, mas também dos desdobra-
mentos da comunicação nos dias atuais.
À construção do Campo da Comunicação também
faz emergir implicações políticas e influências de ideias
dominantes que chegaram até aqui, mudando os modos
de pensar e praticar a comunicação no Brasil, maquian-
do as especificidades locais, substituindo o processo de
vivência e amadurecimento lento que redundaria, no
mínimo, na reconstrução dos conceitos.
Por isso, a comunidade acadêmica da área de Comu-
nicação, representada pelos livros e ideias dos autores
analisados ainda briga por estabelecer conceitos como
o de comunicação, fazendo valer aqueles outros que nos
chegam prontos, tarefa segura e facilitadora em todo
o processo de ensino e pesquisa. E o resultado, como
se constata tanto no Brasil como em toda a América
Latina, é o mesmo sentimento da atração vertiginosa,
diante do conquistador, como o Moctezuma suicida ao
receber historicamente, de maneira hospitaleira e cor-
dial, os espanhóis.
A Comunicação é um verdadeiro mercado de ideias
que circulam na academia sendo essa como locus hipo-
teticamente apropriado de reflexão, inclusive sobre o
próprio mercado. São polos antagônicos que, por um
lado, desvelam uma aquiescência ao pragmatismo, e
por outro, uma tentativa de conjugar uma consciência
crítica com conhecimento profundo que acabaria ga-
rantindo trabalho duradouro, independente das ondas
tecnológicas.

23 Apresentação
As distorções curriculares, neste sentido, sempre exis-
tirão, pois as universidades ainda não aprenderam uma
maneira de conviver com a tradição do país confrontada
com a universal, com um acurado cotejamento frente às
novidades. Por isso mesmo, dá-se o clichê da aparição
de forças de ação e reação que traduzem as tentativas de
ingerências do mercado na academia. Busca-se preser-
var, porém, em concomitância ao convívio com o novo,
com o sempre novo, sem cair nas armadilhas ideológicas
oriundas da crença de que a tecnologia resolve todos os
problemas e traz soluções infalíveis, inclusive da quali-
dade de ensino e pesquisa.
No contexto geográfico continental que habitamos, a
consciência do gigantismo nacional traz discussões que
exigem que não se deixe de ressaltar que os diálogos são
necessários entre as regiões do país, com enfrentamen-
to das suas diferenças e semelhanças nas abordagens da
comunicação, seja do ponto de vista dos conglomerados
comunicacionais, ou da academia, representando o en-
sino e a pesquisa. Pensa-se, sobretudo, em uma resistên-
cia crítica, necessária à inserção do pensamento univer-
sitário e também à convivência pacífica e utopicamente
construtiva com o mercado. E justo nessa problemática
é que se localiza um distanciamento entre Graduação e
Pós-Graduação.
As quase sempre sutis diferenças entre as teorias das
matrizes comunicacionais estadunidenses, europeias e
canadenses produzem seus efeitos e influências de modo
também diferenciado e de acordo com cada realidade da

24 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


América Latina. Neste contexto, as habilitações profis-
sionais em Comunicação de cada país latino-americano
ganham contornos que não deixam de se manifestar não
somente em diversidade de cores, mas também nas vo-
zes encarregadas de misturar diferentemente. São as cul-
turas que, multiplicadas em comunidades se alimentam
paradoxalmente de aparatos midiáticos, ao mesmo tem-
po em que tentam resistir a seu domínio e, elas próprias,
porém, já se sentindo melhor aparelhadas e preparadas
para o enfrentamento da ameaça que representa a força
cada vez maior do poder político e econômico. São os
choques culturais provocados pelas diferentes realida-
des socioeconômicas mostradas pelos meios de comu-
nicação de massa, contrastando com aquela vivida na
prática cotidiana.
O século XXI, diante dos avanços tecnológicos e do
acesso cada vez maior dos produtores/consumidores de
informação e de ideologias, demanda por teorias que
abarquem não somente a comunicação por meio de re-
des sociais, mas também incluir as novas práticas que
estes usos implicam.
As consequências desta grande mudança, começada
no final do século passado e que continua de maneira
aprofundada e muito mais acelerada no atual, ainda
não foram sequer imaginadas em sua totalidade, mui-
to menos configuradas, no que se refere a conceitos e
teorias. Assim, diante das dificuldades naturais de se
trabalhar com a contemporaneidade, entendida como
fenômeno ainda em processo, a realidade brasileira e a

25 Apresentação
c­ omunicação podem se constituir em um grande labo-
ratório, fornecendo elementos históricos, funcionando
como guia aos pesquisadores iniciantes, justo no intuito
de lhes instigar a prosseguirem em sua árdua e ao mes-
mo tempo prazerosa viagem.

Os organizadores

26 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


1ª Parte
Atualizações Conceituais e
Circularidades Teóricas
Capítulo 1
APRECIADOR OU CONSUMIDOR:
­reflexões acerca da massificação da
Arte na contemporaneidade.

Ana Beatriz Buoso Marcelino1

Introdução
A Comunicação resume-se em trocas simbólicas
de relações entre os seres humanos, nos mais diversos
níveis. Entender estes processos torna-se, contudo, de
suma importância à sobrevivência, e inteirar-se com os
diversos meios de comunicação significa participar da
vida ativa e crescer junto à sociedade.
No atual mundo contemporâneo, convivemos com
os mais diversos Meios de Comunicação (MC) eliciados

1. Mestranda em Comunicação Midiática (Faac / Unesp). Espe-


cialista em Educomunicação (USC), em Arte-educação (IA/
Unesp) e em Educação Especial (FJB). Graduada em Artes Vi-
suais (Faac/Unesp) e em Pedagogia (Uninove). Atua como arte-
-educadora no ensino público da rede estadual e municipal da
cidade de Bauru. E-mail: abbuoso@bol.com.br.

28
pelo Homem, ao longo de sua evolução histórica, sejam
eles impressos, interativos, imagéticos, sonoros, etc. Per-
meando o processo comunicativo, podemos perceber as
influências a serem digeridas por seu público alvo, em
várias dimensões.
Moran (1990) argumenta sobre este apontamento, re-
latando a importância da compreensão dos MC para se
passar de uma consciência ingênua para a crítica, supe-
rando-se preconceitos de modo a captar a complexidade
das dimensões envolvidas.
Dessa forma, educar para a Comunicação tornou-se
evidente ao longo das décadas, a partir de uma necessi-
dade advinda do contexto sistematizado, da qual se in-
sere o indivíduo na sociedade atual.
Neste aspecto, entretanto, destaca-se o suntuoso re-
curso paradigmático de ação dos MC na formação cul-
tural dos sujeitos. Daí a pertinência do termo Cultura
de Massa, oriundo das pautas dos críticos modernos do
século XX, que aparece entrelaçado à ideia de Indústria
Cultural – ainda que alguns teóricos se esquivem de
separá-los. Ambos, contudo, permeiam significações
voltadas aos diversos fenômenos decorridos dos am-
plos avanços tecnológicos da sociedade moderna, em
particular dos diversos modos de produção em sinto-
nia com a sociedade industrial e o Sistema Capitalista,
que realçados pelos Meios de Comunicação de Massa
(MCM), inferem diretamente no ser social, a questão da
individualidade, a ética, a política, os próprios sistemas
de comunicação, a cultura, a arte e a estética (ADORNO
e HORKHEIMER, 1985).

29 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Entre tantos efeitos causados pelos MCM, destaca-se
o uso abusivo de recursos culturais como estratégia de
persuasão, conforme já apontava Adorno (apud COHN,
1971), para justificar a Indústria Cultural. Assim, temos
a arte como eleita, gerando uma série de entremeios a
serem estudados com destaque para a questão de sua es-
sencialidade e supremacia.
Benjamin (1975) a coloca como fenômeno supra en-
tre tantos outros designados pelo ser humano, proferin-
do sobre a perda da aura da obra de arte justificando
sua complexa inserção na sociedade moderna, face aos
meios tecnológicos de reprodução em série.
Jauss (1979) reflete sobre as ideias de Benjamin ao expla-
nar sobre a Estética da Recepção, concebendo aos MCM o
resultante da sujeição da estética artística em sua essência
primeira conforme o processo fruitivo, o que denomina
“efeitos da arte”. Dessa forma, considera que a experiência
estética não se estabiliza através de um debate tradicional,
e volta-se a discussões teórico-histórico-filosóficas da arte,
ao apontar a influência da estética hegeliana que define o
belo como o aparecimento sensível da ideia.
Assim, a arte apresenta-se passível de estudo e análise
crítica, e também como peça de ação para o caminho da
Educomunicação. Contudo destaca-se o Ensino de Arte
como sistematização do processo de educação do olhar
dos sujeitos, investindo, contudo, na formação de cida-
dãos mais perceptivos, perspicazes e críticos ante aos
subsídios intrincados pelos MCM.
BUORO (2002) evidencia soluções no Ensino de
Arte para solucionar a formação do olhar crítico do

30 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


l­eitor, através da leitura de textos visuais, apoiando-se
na semiótica greimasiana e na metodologia pedagógica
da Proposta Triangular do Ensino da Arte: o apreciar, o
fazer, o contextualizar (BARBOSA, 2001):

A presença da obra de arte possui, na vida do su-


jeito leitor, várias possibilidades e manifestação.
Um olhar sensível e aberto, [...] é capaz de captar
ainda que intuitivamente os sentidos que a obra
de arte lhe disponibiliza. Ante aos processos
de massificação que as culturas imprimem ao
homem urbano contemporâneo, vetando-lhe
a capacidade de ver o mundo com nitidez, a
construção de um leitor dependerá do resgate
realizado no contexto de um trabalho sistemáti-
co e embasado de educação do olhar. (BUORO,
2002, p. 237)

Hernández (2000) complementa o posicionamento


de Buoro, acrescentando soluções práticas do Ensino
de Arte em ação transdisciplinar e íntegra na escola,
como disciplina fundamental para a formação de su-
jeitos críticos perante a Cultura Visual e seu universo
de significações. Moran (1990), entretanto nos aponta
a importância da inserção e participação dos Meios de
Comunicação na escola como pauta de estudo e análise,
o qual propõe reflexões e argumentos sobre esta proble-
mática, além de apontar soluções pragmáticas de ação,
através de uma série de estratégias embasadas na Arte-
-Educação como peça norteadora das ações educomu-
nicativas, a fim do desenvolvimento de um olhar c­ rítico

31 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


de mundo à formação de cidadãos mais conscientes,
sensíveis e perceptivos.

A Arte e a Indústria Cultural


O termo Indústria Cultural é considerado hoje por
alguns estudiosos como ultrapassado, no entanto,
é curioso como há mais de meio século ele ainda
permanece legítimo, tendo seu patriarca como uma
espécie de visionário. Quando Adorno (apud COHN,
1971) apontou sobre Indústria Cultural em um discurso
proferido durante uma conferência radiofônica na Ale-
manha em 1964, levantou a suspeita de que a ideologia
da Indústria Cultural havia anestesiado a atitude de ação
e persuasão dos sujeitos, que indefesos às “artimanhas
midiáticas” haviam se tornado o objeto de sua ação, re-
baixando sua posição de consumidor como o sujeito da
ação (“o rei”) para objeto – embora todas as providências
fossem tomadas para que se fosse entendido o contrário.
Em mesmo discurso, o autor descreveu que os meca-
nismos de manipulação eliciados pela Indústria Cultural
conferem efeitos de imediatismo calculado à autonomia
dos produtos, que por sua vez possuem eficácia compro-
vada, concluindo que o sujeito/objeto coagido é peça de
confiança à mercê dos detentores do poder, que via pro-
cessual tornam a distância social cada vez maior entre as
classes. Adorno questionou estes mecanismos para com
a questão da autonomia dos produtos gerados pela In-

32 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


dústria Cultural, apontando não só questões de relevân-
cia política e social, mas também cultural, exprimindo o
problema da arte em sua legitimidade, afirmando que a
obra de arte nunca havia existido de forma pura “sem-
pre foi marcada por conexões de efeito, [e agora] vê-se
no limite abolida pela Indústria Cultural” (apud COHN,
1971, p. 288).
Ao elucidar a Indústria Cultural, Adorno explana so-
bre o aspecto da sujeição da arte, afirmando que a mes-
ma distingue-se radicalmente da arte popular produzida
pela Cultura de Massa que a define, através de produtos
adaptados para o consumo das massas que por sua vez,
é determinado:

A indústria cultural é a integração deliberada, a


partir do alto, de seus consumidores. Ela força a
união dos domínios, separados há milênios da
arte superior e da arte inferior. Com o prejuízo
de ambos. A arte superior se vê frustrada de sua
seriedade pela especulação sobre o efeito; a infe-
rior perde, através de sua domesticação civiliza-
dora, o elemento de natureza resistente e rude,
que lhe era inerente enquanto o controle social
não era total. (in COHN, 1971, p. 287-288)

Adorno continua sua crítica, reiterando a questão da


mercadoria cultural, que é motivada pela Indústria Cul-
tural através da práxis do lucro às criações do espírito,
que acabam por se contaminar ao assegurar a vida de
tais produtos no mercado:

33 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


A autonomia das obras de arte que, é verdade,
quase nunca existiu de forma pura e que sempre
foi marcada por conexões de efeito, vê-se no li-
mite abolida pela indústria cultural. [...] As pro-
duções do espírito no estilo da indústria cultural
não são mais também mercadorias, mas o são
integralmente. (in COHN, 1971, p. 288-289)

O autor explana sobre a questão da aura da obra de


arte, ao relatar as ideias de Benjamin (1975), confirman-
do que a Indústria Cultural “serve dessa aura em estado
de decomposição como um círculo de névoa. Assim, ela
própria se convence imediatamente pela sua monstru-
osidade ideológica.” (apud COHN, 1971, p. 290), numa
posição extremamente apocalíptica.
O que para o autor já não era novidade, assim como
a arte, tudo se tornara mercadoria e objeto de consu-
mo, unicamente um produto gerador de lucro, detento
de um poder sutil e sedutor de induzir os indivíduos.
O progresso promíscuo e a geração do “insistentemente
novo” estandartizado havia se tornado o elixir do con-
sumo, do qual a sociedade não hesitava de se embriagar.
O individualismo havia se fortificado com os modos de
produção, norteados pela divisão do trabalho e o autor,
não obstante, condenou-o argumentando que “a indi-
vidualidade mesma contribui para o fortalecimento da
ideologia, na medida em que se desperta a ilusão de que
o que é coisificado e mediatizado é um refúgio de ime-
diatismo e de vida.” (apud COHN, 1971, p 289).
Adorno considera a informação gerida pela Indústria
Cultural como pobre e fútil e, segundo afirma, dá a falsa

34 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


sensação de abastamento, repercutindo em comporta-
mentos conformistas e a ilusão de uma vida verdadei-
ra, gerando o processo de uma dialética negada, onde
o indivíduo aceita sem defesa o “imperativo categórico”
da Indústria Cultural, negando a sua própria liberdade
de ação. O autor argumenta citando Platão: “quando ele
diz que o que é objetivamente, em si, falso, não pode
ser verdadeiro e bom subjetivamente, para os homens”
(apud COHN, 1971, p 293), em anteparo aos defensores
da mesma. Adorno, afirma que não há certezas concre-
tas passíveis de salientar o efeito regressivo da Indústria
Cultural, porém, a “gota d’água” conforme coloca, es-
taria no fato que “o sistema da indústria cultural reo-
rienta as massas, não permite quase a evasão e impõe
sem cessar os esquemas de seu comportamento” (apud
COHN, 1971, p 294), “furando” dessa forma a pedra da
consciência. Ainda conclui que “a dominação técnica e
progressiva, se transforma em engodo das massas, isto
é, um meio de tolher a sua consciência. Ela impede a
formação de indivíduos autônomos, independentes,
capazes de julgar e de decidir conscientemente” (apud
COHN, 1971, p. 295).
Todavia, o pensamento de Adorno beira a um negati-
vismo extremo. Pensar na apatia como uma fragilidade
para fisgar os sujeitos é deveras depressivo. No entan-
to, o autor não estava equivocado ao proferir sobre as
maquiavélicas artimanhas de persuasão utilizadas pelos
MCM. O que entra em discussão, entretanto, é a questão
dos sujeitos como seres subjugados e de fácil encanta-
mento. Segundo a Retórica de ARISTÓTELES (2006) a

35 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


denominação pathos2 pode elucidar tal pressuposto, já
que coloca o indivíduo na posição daquele que recebe
livremente a informação, sem imposições forçadas, po-
rém, que acaba sendo abduzido por sua própria emoção.
Daí a ideia de que o ser humano deve aprender a lançar
o seu olhar sobre os objetos de forma a desenvolver seu
senso crítico e então saber discernir o que é bom ou ne-
fasto para si.
Eco (2004) nos mostra um lado mais ponderado,
apontando tanto argumentos positivos quanto negativos
da Indústria Cultural, o que chama de “defesa” e “acu-
sação” da Cultura de Massa, colocando outro ponto de
vista sobre o fenômeno, apontando não só os efeitos ne-
gativos que os frankfurtianos defendiam, mas também
os positivos.
A defesa, conforme supõe, coloca pontos de relevân-
cia para a análise do fenômeno. Inicia afirmando que a
Indústria Cultural não é típica do Sistema Capitalista,
ela nasce de qualquer sociedade do tipo industrial, da
qual toda a massa de cidadãos se vê participando, com

2. Dos estudos de Aristóteles, Ethos, Pathos e Logos; Pathos se


refere à sensibilidade do auditório (aquele que recebe a infor-
mação), a variável em função das características do mesmo. A
ideia é que o orador deve selecionar as estratégias adequadas
para provocar em seu receptor as emoções e as paixões neces-
sárias para suscitar sua adesão e assim, induzi-lo a mudar de
atitude e comportamento. Para tanto é necessário que o orador
use de argumentos racionais sem deixar de usar o seu carisma
e a sua habilidade oratória. (ARISTÓTELES, 2006)

36 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


direitos iguais da vida pública, dos consumos e da frui-
ção das comunicações, portanto, considera a Cultura de
Massa como uma parte integrante da cultura, por isso
não pode ser unificada. Aponta também que os MCM
em sua natureza podem incitar estímulos à inteligência
(mentes mais críticas), o que denomina “mutação qua-
litativa”.
A cultura local, segundo Eco, seria valorizada a par-
tir da premissa que “a homogeneização do gosto [...]
contribuiria para unificar as sensibilidades nacionais,
e desenvolveria funções de descongestionamento anti-
colonialista em muitas partes do globo” (ECO, 2004, p.
47). Também a divulgação de conceitos seria estimula-
da e passível de aquisição, por valores mais acessíveis,
ampliando os repertórios de valores estéticos e culturais,
explicitados em “dimensões macroscópicas”. A sensibili-
zação do homem contemporâneo, segundo o autor, se-
ria elucidada pelo acervo de informações e o seu nível
de acesso, tornando-o mais participativo e sensível da
vida associada. Por fim, coloca o fenômeno da intensa
renovação estilística, precursora de novas linguagens,
promovendo o desenvolvimento.
Já em acusações conclui que a questão da originali-
dade é afetada pelas “médias de gostos”, repercutindo
em uma “cultura de tipo homogênea” interferindo por
sua vez nas características culturais de cada etnia, ori-
ginando o fenômeno da massificação. Em sintonia com
essa premissa, afirma que o processo de “embotação”
denota ao indivíduo a falsa sensação de aprendizagem
e abastamento, que incônscio de si “sofre as propostas

37 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


sem saber que as sofre” (ECO, 2004, p. 40). A secula-
rização do gosto e a sensibilização promíscua também
seriam afetadas pela Indústria Cultural, totalizando e
homogeneizando a cultura. Influindo também no sen-
tir, no pensar, segundo um processo de fruição profun-
damente afetado por sensações prontas e premeditadas.
Os MCM, então, sujeitos ao lucro, direcionam seus pro-
dutos ao “gosto” do consumidor, sugerindo ao público o
que ele deve gostar.
A cultura superior aparece assim, inferiorizada pelas
restrições de pequenas pinceladas que resumem o pen-
samento em fórmulas, desviando a atenção para outras
informações menos esclarecedoras. Eco (2004) afirma
que “Por isso, os MCM encorajariam uma visão passi-
va e acrítica do mundo. Desencoraja-se o esforço pes-
soal pela dose de uma nova experiência” (p. 41), além
de, segundo o autor, entorpecer a consciência histórica
informando somente o presente, às vezes exumando o
passado por um nível superficial que subjuga a aura dos
objetos, prejudicando assim, sua fruição.
A criação de tipos através da imposição de símbolos
e “mitos de fácil universalidade” fere, segundo aponta, o
processo empírico do desenvolvimento do ser humano.
A Indústria Cultural, segundo Eco é prolixa, reafirma o
pensamento em opiniões comuns, gerindo uma “ação
socialmente conservadora”. Impõe o conformismo no
campo dos costumes, introduzindo preconceitos, favo-
recendo assim “projeções orientadas para modelos ofi-
ciais”. E conclui que os MCM apresentam-se

38 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


[...] como o instrumento educativo típico de uma
sociedade de fundo paternalista mas, na super-
fície individualista e democrática, e substancial-
mente tendente a produzir modelos humanos
heterodirigidos. Vistos em maior profundidade,
surgem como uma típica “superestrutura do re-
gime capitalista”, usada para fins de controle e
planificação das consciências. Com efeito, apa-
rentemente, eles põem à disposição os frutos da
cultura superior, mas esvaziados de ideologia e
da crítica que os animava. Assumem os modos
exteriores de uma cultura popular mas, ao in-
vés de crescerem espontaneamente de baixo, são
impostos de cima (e, da cultura genuinamente
popular, não possuem nem o sal nem o humor,
nem a vitalíssima e sã vulgaridade). Como con-
trole das massas, desenvolvem uma função que,
em certas circunstâncias históricas, tem cabido
às ideologias religiosas. Mascaram, porém, essa
função de classe, manifestando-se sob o aspecto
positivo da cultura típica de uma sociedade do
bem-estar, onde todos têm as mesmas oportuni-
dades de acesso à cultura, em condições de per-
feita igualdade. (Eco, 2004, p. 42-43)

Em vista das proposições proferidas pelo autor, so-


mando-se às ideias destacadas pelos frankfurtianos te-
mos então um quadro bastante complexo, caracterizado
por um poder invisível que atinge as mentes ingênuas
das massas, sobretudo as camadas menos abastadas da
sociedade. Assim, levando-se em conta o grande con-
tingente populacional que se encontra suscetível a esta

39 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


ameaça, tem-se a educação como um recurso paradig-
mático de ação e, entre tantos efeitos causados pelos
MCM, elicia-se a arte como disciplina possível de se tra-
balhar ativamente, gerando uma série de entremeios a
serem estudados com destaques para a questão de sua
essencialidade e supremacia, como fenômeno supra en-
tre tantos outros designados pelo ser humano.
Benjamin (1975) argumenta sobre a autenticidade da
obra de arte, em consonância aos efeitos de reprodução
dos MCM, questionando a presença da aura (instância
de primeira natureza da obra de arte) nas reproduções
técnicas da Indústria Cultural. O autor afirma que a arte
em sua legitimidade torna-se ameaçada pelos efeitos
massificadores, sendo passível de uma fruição promís-
cua, permissiva do desenlace histórico-cultural:

[...] as técnicas de reprodução destacam o objeto


reproduzido do domínio da tradição [e] subs-
tituem por um fenômeno de massa um evento
que não se produziu senão uma vez [levando ao]
abalo da tradição, o que é a contraface da crise
que atravessa atualmente a humanidade e de sua
atual renovação [que] se mostra em estreita cor-
relação com os movimentos de massa, que hoje
se produzem. (BENJAMIN, 1975, pp. 211-212)

Ao explanar sobre o caráter de reprodução da arte,


cronologicamente, aponta anteparos aos meios de repro-
dução tecnológicos que surgiram junto a constante do
século XX e suas radicais mudanças que resultaram em

40 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


consideráveis divergências no cenário artístico da época
salvo as antigas técnicas de reprodução de obras de arte,
assim “... liberada de suas bases culturais pelas técnicas de
reprodução, a arte já não mais podia sustentar suas pre-
tensões de independência” (BENJAMIN, 1975, p. 219),
convergindo para uma mudança de atitude das massas
perante a obra de arte, onde o espectador conjuga o pra-
zer da apreciação a uma experiência vivida correspon-
dente, surtindo desta ligação uma importância social:

À medida em que diminui a significação social


de uma arte, assiste-se no público a um divórcio
crescente entre o espírito crítico e a fruição da
obra. Fruir-se, sem criticar, aquilo que é conven-
cional; o que é verdadeiramente novo, é criticado
com repugnância. (BENJAMIN, 1975, p. 229)

Ao descrever sobre autenticidade da obra de arte e


o fenômeno da unicidade e sua relação entre espaço e
tempo afirma que a mesma depende do contexto histó-
rico que a define, tornando-a autêntica, ratificando tudo
o que ela tem de “originalmente transmissível, desde sua
duração material até seu poder de testemunho históri-
co.” (BENJAMIN, 1975, pp. 210-211).
À aura define como a “única aparição de uma realida-
de longínqua, por mais próxima que ela possa estar” (p.
214) e argumenta com a fórmula espaço e tempo como
“valor cultual da obra de arte”, conforme explana sobre a
problemática da perda da obra de arte e seus efeitos para
com as massas:

41 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Despojar o objeto de seu véu, destruir sua aura,
eis um sintoma que logo assinala a presença
de uma percepção tão atenta ao que “se repe-
te identicamente no mundo”, que, graças à re-
produção, ela chega a estandartizar o que não
existe mais que uma só vez. Afirma-se assim, no
domínio intuitivo, um fenômeno análogo àque-
le que, no plano da teoria, é representado pela
crescente importância da estatística. A adequa-
ção da realidade às massas, bem como a conexa
adequação das massas à realidade, constitui um
processo de eficácia ilimitada, tanto para o pen-
samento quanto para a intuição. (BENJAMIN,
1975, pp. 213-214)

Em anteparo à natureza da arte ressalta a caracterís-


tica das massas em investir na perda da aura, ao tender
para o consumo de proximidade conforme relação es-
pacial e humana, acolhendo às reproduções propostas e
depreciando “o caráter daquilo que só é dado uma vez”.
Optam pela quantidade à qualidade. Entretanto, o au-
tor coloca que a arte em sua natureza é hábil de uma
renovação constante, pois “toda vez que aparece uma
exigência radicalmente nova, abrindo caminho para o
futuro, ela ultrapassa seus propósitos.” (BENJAMIN,
1975, p. 233).
Analisando-se o pensamento do autor à luz contem-
porânea surgem alguns apontamentos, no que diz res-
peito à arte enquanto representação da realidade. Nesse
aspecto podemos então definir seu caráter de totalidade,
já que tudo se trata de uma representação da realidade,

42 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


então, tudo supostamente seria arte? - remetendo-nos
ao Mito da Caverna de Platão (2002)3. Assim, como se-
res acorrentados por nossas próprias decisões, estaría-
mos todos condenados à castidade pelo simulacro?
Benjamin nos faz refletir através de questionamen-
tos inquietantes, sobretudo no que diz respeito ao seu
pressuposto de unicidade e à perda da aura. Nos dias
de hoje, em meio a uma revolução tecnológica constan-
te, nos cabe repensar tais conceitos para definir até que
ponto eles ainda poderiam persistir. Todavia, o senso
profético de Benjamin ainda reforça uma das principais
funções da obra de arte: a educação, daí a necessidade de

3. Alegoria que explica como, através do conhecimento, é possí-


vel se captar a existência do mundo sensível (conhecido atra-
vés dos sentidos) e do mundo inteligível (conhecido somente
através da razão).  O mito aborda sobre as representações de
sombras de estátuas projetadas nas paredes de uma caverna por
uma fogueira vistas por prisioneiros acorrentados desde o nas-
cimento. Os simulacros da realidade impressos pelas imagens
com temática cotidiana, instigam a interpretação de tais indi-
víduos que analisam e julgam tais situações. Uma suposta fuga
faria com que o sujeito entrasse em contato com a realidade e
então descobriria a farsa. Ao voltar à caverna, ávido em relatar
seu novo conhecimento adquirido, seria questionado já que os
demais prisioneiros somente teriam como modelo de realidade
a crença absorvida por seus sentidos. Platão (2002) nos conce-
be a ideia de que os seres humanos têm uma visão distorcida da
realidade, e que segundo o mito, os prisioneiros na realidade
poderiam ser nós mesmos, já que enxergamos e acreditamos
apenas em imagens criadas pela cultura, conceitos e informa-
ções que recebemos durante a vida. A caverna simbolizaria o
mundo, pois nos apresenta imagens que não representam a re-
alidade. Só sendo possível conhecer a realidade, quando nos li-
bertamos destas influências culturais e sociais, ou seja, quando
saímos da caverna.

43 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


se investir na alfabetização visual, para se ver melhor o
que já não se pode detectar na ingenuidade da primeira
vista. Torna-se necessário afastar-se do objeto para po-
der interpretá-lo criticamente.
Revolução Cultural é o termo que MARCUSE
(1973) utiliza para elucidar a necessidade de uma
transformação total da cultura tradicional, com vista
para seu potencial político, cujo objetivo geral estaria
na denúncia da realidade e na libertação, de modo a “...
romper o domínio opressivo da linguagem e imagens
que há muito se converteram num meio de domina-
ção, doutrinação e impostura.” (MARCUSE, 1973, p.
81). Tal caráter revolucionário que marca seu diálogo
parte da necessidade de se valorizar a arte local, vinda
de baixo, rompendo com a autonomia de uma “estética
burguesa”:

[...] uma linguagem que atinja uma população


que introjetou as necessidades e valores dos seus
amos e gerentes e os tornou seus, assim repro-
duzindo o sistema estabelecido em seus espíri-
tos, suas consciências, seus sentidos e instintos.
(MARCUSE, 1973, p. 81)

Tal pressuposto inconformista ecoa também em nos-


sos dias representado através da arte contemporânea e
sua complexidade de recepção, que contém muitas ve-
zes em seu corpo o caráter subversivo tão almejado pelo
autor, como um dos recursos possíveis para a revolução

44 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


cultural - que ele chamou de processo de dessublimação
da cultura, marca do divórcio entre a arte e a realidade,
que colocara em conflito a cultura intelectual à cultura
material (burguesa).
No entanto, essa complexidade de compreensão da
arte contemporânea vai além de uma simples aprecia-
ção. O que ocorre é que muitas vezes esta arte é pejorada
pela ludicidade ou como uma mera atividade de lazer,
além de muitas vezes estar sujeita a críticas negativas in-
fundadas. Fazer pensar, provocar e propiciar reflexões é
sua marca principal entrando diretamente em conflito
com suas relações de preterimento.
O alerta de Marcuse chama a atenção para a neces-
sidade de se desenvolver o discernimento em seus re-
ceptores, não como meros consumidores, mas como
legítimos apreciadores da arte, valorizando não apenas
a cultura oriunda de seu meio, mas como agentes revo-
lucionários e construtores culturais e, para que tal fato
não caia nas garras da ideologia torna-se necessário in-
vestir com seriedade nesta proposição, tendo a educação
como uma importante esfera de ação.
Entretanto, a visão apocalíptica traçada pelos pensa-
dores da Escola de Frankfurt nos faz pensar em soluções
extremistas, todavia, considerando-se a complexidade
individual dos sujeitos da contemporaneidade, seus pro-
cessos cognitivos, intelectuais e sensíveis, podemos en-
tão falar, de um ser que é pensante, ativo e pertencente
a uma esfera social. Daí o pressuposto de que o mesmo
pode construir-se criticamente e pragmaticamente.

45 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Receptores ativos, construtores culturais
Mesmo que seja considerada por alguns como an-
tiquada, a Teoria Crítica enraíza os pressupostos que
ainda conseguimos identificar na contemporaneidade,
ecoando questionamentos ainda em voga. Contudo,
voltando-se à questão da recepção da informação pelos
sujeitos, em anteparo às artimanhas utilizadas pela In-
dústria Cultural, podemos apontar as ideias dos pensa-
dores dos Estudos Culturais Ingleses.
Sob fundamentação marxista não ortodoxa, tais auto-
res concebem a cultura também como uma intervenção
ativa por meio dos discursos que ela profere, com foco nas
produções de sentido. Seu caráter pluralista aborda temas
transdisciplinares que vão desde posturas ideológicas até
o interesse pelas subculturas, conforme os paradigmas da
antropologia interpretativa e da sociossemiótica.
Segundo um eixo de observação que engloba as es-
feras da cultura, história e sociedade, a teoria elucida
o surgimento de uma cultura pop nitidamente influen-
ciada pelos MCM, sob a análise de múltiplos objetos,
confrontando com a cultura genuinamente popular, ele-
vando e destacando a mediação da classe trabalhadora,
como sujeitos que pensam e questionam, mesmo com
pouca erudição.
Tal vertente teórica, coloca em cheque o modelo de
pensamento marxista quanto à organização da socieda-
de. A cultura passa então, a assumir o papel de destaque,
torna-se centralizada (diferentemente da perspectiva
crítica que a considera horizontalizada).

46 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Por considerar e valorizar a cultura popular, rompe
com o pensamento hegemônico de erudição. Williams
(1969) mapeia a cultura e seus sentidos segundo uma
gama de elementos que a compõe, considerando a esfera
individual de cada ser e o meio que o cerca.
Já Thompson (1998) elenca o poder simbólico como
um dos poderes que ponderam as ações sociais dos in-
divíduos. O autor nos propõe, então, a ideia de uma cul-
tura mediada pelos MCM, no entanto, sem subjugar a
consciência de classe dos trabalhadores, já que, segundo
o autor, os indivíduos seriam capazes de absorver a cul-
tura em anteparo à passividade ou imposição, conforme
coloca:

[...] esta perspectiva crítica é também impreg-


nada de um conjunto de pressuposições que são
insustentáveis e que podem obstaculizar a com-
preensão da mídia e de seu impacto no mundo
moderno. Devemos abandonar a ideia de que os
destinatários dos produtos da mídia são espec-
tadores passivos cujos sentidos foram perma-
nentemente embotados pela contínua recepção
de mensagens similares. Devemos também des-
cartar a suposição de que a recepção em si mes-
ma seja um processo sem problemas, acrítico, e
que os produtos são absorvidos pelos indivídu-
os como uma esponja de água. (THOMPSON,
1998, pp. 30-31)

O autor parece aliviar nossos sentidos em antepa-


ro ao peso instaurado pela Teoria Crítica. Porém não

47 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


­ evemos nos esquecer de que ainda tais pesares são con-
d
cretos e estão impregnados em comportamentos do dia
a dia que são reforçados por uma suposta força atuante e
invisível da hegemonia cultural. A questão é: como po-
demos identificar e ponderar tais efeitos massificadores,
sem sermos negativistas ou otimistas demais? A solução
poderia estar numa mediação cultural que valorizasse a
pluralidade cultural, a diversidade e a formação dos in-
divíduos, mais uma vez apontando a esfera da educação
como uma das possíveis soluções mais pragmáticas.
Estudos contemporâneos realizados por Hall (2006)
consideram a teoria da recepção focada da ação ativa
dos sujeitos, da qual afirma que o significado depende
da interpretação de quem recebe a informação, não so-
mente de quem a transmite.
Essa posição ativa do sujeito também foi considerada
por uma falange dos Estudos Culturais que investigou as
questões estéticas, representada por Jauss, Iser e Costa
Lima (1979) que esclareceram alguns pontos através de
suas hipóteses sobre a recepção dos sentidos produzidos
pelos MCM.
Os autores argumentam sobre a Teoria Estética da
Recepção inserindo considerações sobre o que define
“efeitos da arte” discursados pelos MCM, afirmando que
a experiência estética ainda não se estabilizou com um
debate tradicional, voltando-se às discussões teóricas
histórico-filosóficas da arte.
Segundo Jauss (1979), a obra de arte como produto
é objetivado, hábil através do espaço e tempo produ-
zido, de desenvolver in actu a práxis histórica e social.

48 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Jauss aponta para o problema de como fruir um pro-
duto da arte em momentos históricos distintos, con-
solidando a experiência estética como particular do
repertório de cada espectador e não apenas privilégio
dos especialistas.
Voltando-se a Adorno como o sujeito de desligitima-
ção da arte moderna e contemporânea, Jauss posiciona-
-se como apologista da experiência estética (desacredi-
tada pelo teórico da Indústria Cultural), argumentando
que a teoria de Adorno teria despertado o preconceito
de que a arte de uma elite cultural cada vez maior, dian-
te da multidão crescente de consumidores da Indústria
Cultural, não teria mais salvação. Assim, considera que
o contraste entre uma arte de vanguarda, apenas voltada
para a reflexão, e uma produção dos MCM apenas volta-
da para o consumo, de modo algum faria justiça à situ-
ação atual. Tampouco estaria provado que a experiência
estética, tanto da arte contemporânea quanto da arte do
passado – que pelos MCM já não só atingiria a uma ca-
mada culta, mas se abriria para um círculo de destina-
tários até hoje nunca alcançados; aumentaria cada vez
mais a distância cultural entre as classes.
Jauss analisa a sujeição da arte a produtos mercadoló-
gicos apontando para o questionamento de sua essência,
conforme os processos de produção e reprodução, mes-
mo sob as condições da sociedade industrial, resultando
num processo de recepção passivo, um mero exercício
de atividade estética, pendente da aprovação e da recu-
sa. Segundo do autor, para sair do suposto “contexto de
enfeitiçamento” total da práxis estética ­contemporânea,

49 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


­everia ser restaurada a aura e sua contemplação
d
­solitária, como medidas estéticas de uma essencialidade
perdida.
Ao justificar a recepção estética, Jauss coloca a tríade
criação-comunicação-recepção como funções da lingua-
gem e aponta o controle por parte do receptor que vai
permitir a possibilidade de viver a experiência estética,
passando pela sensação de domínio da situação, justifi-
cando sua teoria da prática consensual da qual irá pro-
ferir o espectador, ao determinar uma escala de valores
que filtra e define a práxis da experimentação, permi-
tindo adesão ou rejeição estética. Também entidades da
pragmática da comunicação humana, movidas por um
processo contínuo incluindo o subconsciente, de clas-
sificação humana, atitudes como dedução, indução e
analogia seriam segundo o autor, mecanismos adotados
pelos sujeitos a todo o momento, sem que se possa re-
freá-los. Dessa forma, diferentemente dos apontamen-
tos de Adorno e Benjamin, Jauss acredita em um ser que
á ativo e capaz de se defender.

O PAPEL DA ARTE EDUCAÇÃO E DA EDUCOMUNICAÇÃO


A arte se apresenta não apenas como passível de es-
tudo e análise crítica, mas também como peça de ação
para o caminho da educomunicação e sistematização do
processo de educação do olhar dos sujeitos investindo,
contudo, na formação de cidadãos mais perceptivos,

50 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


perspicazes e críticos ante aos subsídios intrincados
­pelos Meios de Comunicação (MC).
Moran (1990) aborda sobre a intrínseca inserção
e participação dos Meios de Comunicação na escola
como pauta de estudo e análise, propondo reflexões e
argumentos sobre a problemática da educomunicação.
Ao colocar o que considera “poderosa influência” dos
MC na cultura, o autor exprime o caráter de reflexão,
recriação e atuação dos mesmos “que se tornam impor-
tantes socialmente tanto ao nível dos acontecimentos
(processo de informação) como do imaginário (são os
grandes contadores de estórias)” (MORAN, 1990, p. 21),
e afirma que desempenham também um importante pa-
pel educativo, considerando-os, na prática, uma segun-
da escola, paralela à convencional: “Os Meios são pro-
cessos eficientes de educação informal, porque ensinam
de forma atraente e voluntária” (Ibidem. p. 21).
O autor argumenta que cabe à escola “repensar ur-
gentemente” sua relação com os MC, procurando evi-
denciá-los de maneira pedagógica, apostando em uma
educação diversificada, pautada no senso crítico do
aluno. Reitera que não deve haver a intenção de imita-
ção, salvo o caráter lúdico que os cabe, cuidando de não
substituir a “organização da compreensão do mundo
e das atitudes” por entretenimento, usurpando de seu
usufruto a motivação como ponto de partida mais di-
nâmico rumo ao conhecimento. Aponta também a pro-
posta pedagógica da qual a instituição de ensino deve
valorizar a comunicação como um processo mais amplo
entre todos os entes do processo, de forma a promover

51 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


uma consolidação mais participativa entre os mesmos,
visando a construção de uma sociedade respaldada em
democracia. Coloca também, a possibilidade da escola
em abraçar uma disciplina específica em Comunicação,
sugerindo um profissional competente da área, capaz de
assessorar todas as ações comunicativas interna e exter-
namente, gerando um elo entre a instituição e a comu-
nidade.
Como “meios de motivação” o autor aborda propos-
tas e soluções práticas para o uso dos MC em sala de
aula, inerentes à construção do saber, sugerindo como
instrumentos pedagógicos meios impressos, o rádio, a
televisão, o cinema, etc., que acoplados a uma funda-
mentação escrita e explicativa, resultam em atividades
práticas como: confecção de programas audiovisuais,
slides, gravações sonoras, ou qualquer outro produto
que recrie os próprios Meios:

Essas novas formas de pesquisa, de produção, de


expressão conferem um novo dinamismo à rela-
ção Escola – Meios de Comunicação, superando
a dicotomia escrita-audiovisual, pois ambos são
antagônicos, devem ser praticados. Os alunos se
motivam muito mais, sem dúvida, com qualquer
proposta de expressão audiovisual. (­MORAN,
1990, p. 23)

Também como conteúdo de ensino, os MC segundo


o autor, são passíveis da educomunicação, como peça
chave do professor para ajudá-lo no desenvolvimento da

52 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


tarefa de se obter uma visão totalitária do conjunto, e se
educar para uma visão mais crítica.
Aqui entra a disciplina de arte, como componente
curricular importantíssimo para superação de tal si-
tuação. Buoro (2002) traça algumas soluções na Arte
Educação para solucionar a formação do olhar crítico
do leitor, através da leitura de textos visuais dos quais
apresentam as imagens artísticas, conforme argumenta:

A presença da obra de arte possui, na vida do


sujeito leitor, várias possibilidades e manifes-
tação. Um olhar sensível e aberto, [...] é capaz
de captar ainda que intuitivamente os sentidos
que a obra de arte lhe disponibilizam. Ante
aos processos de massificação que as culturas
imprimem ao homem urbano contemporâneo,
vetando-lhe a capacidade de ver o mundo com
nitidez, a construção de um leitor dependerá do
resgate realizado no contexto de um trabalho
sistemático e embasado de educação do olhar.
(BUORO, 2002, p. 237)

A autora afirma que a educação do olhar é permissiva


de uma interação mais satisfatória do indivíduo com o
meio o qual está inserido, e norteada por um trabalho
pedagógico respaldado em leitura de obras de arte, é
passível de aguçar o olhar do educando e sua percepção
visual, confluindo maior capacitação para o desenvolvi-
mento do senso crítico e sensível, inerentes ao ser huma-
no, conforme as condições do atual contexto político-
-sócio-cultural.

53 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Ressalta também a importância da construção de lei-
tores da imagem visual, operando no campo da sensi-
bilização para aquisição de competências, em busca da
mobilização de um olhar mais significativo sobre ima-
gens da pintura e sobre o mundo como imagem. Dessa
forma, aponta a necessidade de se educar o olhar desde
a educação infantil, possibilitando atividades de leitura,
para que além do fascínio das cores, das formas, dos rit-
mos, possa-se compreender o modo como a gramática
visual se estrutura, e pensar criticamente sobre as ima-
gens, que não deve ser associada à simples ação peda-
gógica, estratégia prevista em planejamentos e inserida
no quadro de ensino da arte de forma quase mecânica
e burocrática. Também nos chama a atenção para a ne-
cessidade de uma reciclagem contínua do profissional,
eliciando ações não permissivas de transgressões quanto
à atitude pedagógica, o que chama de “processo de cons-
cientização e formação do professor”.
Já Hernández (2000) explana sobre a Cultura Visu-
al acrescentando soluções práticas do Ensino de Arte
em ação transdisciplinar e íntegra na escola, como dis-
ciplina fundamental para a formação de sujeitos críti-
cos perante a mesma e seu universo de significações.
O autor justifica a arte na educação como instrumen-
to de formação da percepção crítica ante aos mecanis-
mos de manipulação dos MC, assim como meta a ser
superada enquanto conteúdo disciplinar, apoiando-se
à constante que determina as ideias em renovação e à
mudança das representações que atingem os indivíduos,
sugerindo uma proposta que ultrapasse o domínio da

54 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


disciplina como mera provedora de “habilidades manu-
ais ou tecnológicas, aproximações formalistas de cará-
ter essencialista, ou propostas didáticas baseadas num
conhecimento sem contexto” (HERNÁNDEZ, 2000, p.
10), complementando:

O universo do visual é, na atualidade, como


sempre foi, mediador de valores culturais (não
nos esqueçamos [...] que as referências estéticas
e artísticas também são construídas socialmen-
te). Mas o visual é hoje mais plural, onipresente
e persuasivo que nunca. As relações dos indiví-
duos, de maneira especial dos meninos, das me-
ninas e dos adolescentes, com esse universo não
conhece limites disciplinares e institucionais.
(HERNÁNDEZ, 2000, pp. 10-11)

Assim, eleva a arte ao caráter de “múltiplas direções”,


posicionando o artista como eliciador de “histórias
compartilhadas”, à medida que “move a coisa latente”
ao contar sua história, dialogando com a experiência do
espectador. Dessa forma, como disciplina repensada e
reformulada é passível de direcionar atitudes “superati-
vistas”. O autor elege os Meios de Comunicação – em
ressalvo à televisão - como educadores privilegiados
pelo público, ilustrando o cinema como mediadores das
representações da realidade “jogando” com o universo
do sensível; a publicidade como vendedora das “repre-
sentações ideais do eu”, amplificando identidades ine-
xistentes; e a Internet permissiva da substituição do real
pelo virtual “possibilitando a construção de identidades

55 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


inventadas e ocasionais e aproximando-se de lugares
que expandem ou dispersam a própria ideia de informa-
ção e de conhecimento” (HERNÁNDEZ, 2000, p. 11).
Contudo, reafirma a necessidade de uma resposta
educativa à altura, passível não só de introduzir uma
“noção de cultura visual”, mas também incitando uma
atitude por parte da educação, elevando os projetos
como solução superativa, salvo a despretensão de se li-
mitar aos “interesses corporativistas dos especialistas,
em que as relações entre ideologia, valores e práticas so-
ciais, propostas educativas e construções da identidade
(individual, de grupo e nacional) estão presentes de ma-
neira meridiana” (HERNÁNDEZ, 2000, p. 9), conforme
elucida a arte na educação em anteparo ao problema de
sua “posição de relevante marginalizada” como:

Um campo digno onde é possível organizar sem


excessivas pressões, propostas transdisciplinares,
a partir de problemas que vão além de uma dis-
ciplina e que são reflexos das mudanças que se
estão produzindo na sociedade. Mas que, sobre-
tudo, permitem interpretar o presente a partir do
conhecimento do passado e vincular as experiên-
cias educativas com as representações da realida-
de que constroem de si mesmos e do meio, com a
pressão dos meios e da indústria do consumo na
maioria dos casos, os meninos, as meninas e os
adolescentes. (HERNÁNDEZ, 2000, p. 9)

Coloca a proposta como norteadora de caminhos


que podem solucionar a situação, permissiva da quebra

56 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


de paradigmas impostos, consolidando a arte como ins-
trumento legitimador do processo em educação para a
Cultura Visual, embora assuma que:

[...] a dúvida, a incerteza e a curiosidade são ne-


cessárias para continuar enfrentando os desafios
que a educação apresenta hoje àqueles que con-
sideram que a escola (desde a primeira infância
à universidade) pode oferecer uma potência de
emancipação e de melhor conhecimento de si
mesmo e de transformação do mundo. (HER-
NÁNDEZ, 2000, p. 13)

Concluindo que “a compreensão da cultura visual


pode contribuir para realizá-lo.” (p. 13).
O processo de superação desta realidade pode ser
respaldado por tentativas de ações e inferências ante ao
duto fenomenológico do qual compõe seu corpo através
de estudos que apostem num método mais participativo
de pesquisa, investindo na resolução não só de dados
ou resultados, mas, sobretudo de um entendimento no
que compete ao processo como superação, para assim,
investir numa possível transformação do social.

Considerações Finais
Perpassando pela perspectiva crítica aos estudos
culturais podemos traçar um itinerário que elucida
parte do complexo processo de recepção da arte nos

57 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


dias de hoje. Através dos apontamentos frankfurtia-
nos conseguimos identificar as ações perniciosas da
Indústria Cultural e dos Meios de Comunicação de
Massa sobre a arte, passíveis de nos resumir a meros
consumidores. Já à luz dos estudos culturais revelou-
-se a possibilidade de se agir sobre tais inferências
como sujeitos ativos do processo, transformando em
nós mesmos a capacidade de nos tornarmos legítimos
apreciadores da arte.
Assim, educar para a comunicação e superar as cau-
sas e efeitos midiáticos nocivos aos sujeitos aparecem
como necessidades pertinentes de serem estudadas,
como já nos alertara tais teóricos. Do mesmo modo,
educar o olhar para a comunicação à mente crítica, evi-
dencia-se como consequência mesma de um trabalho
estruturado com os próprios Meios de Comunicação,
assim como, aliado à arte educação, através de ações
educativas concretas que subvertam os automatismos
da civilização, que privilegiem o exercício da leitura de
imagens, e capazes de desenvolver, além da perspicácia,
a sensibilidade essencial ao ser humano, por um olhar
mais perceptivo e crítico, para que o mesmo não cor-
ra o risco de ser massificado e devorado pela Indústria
Cultural.
Dessa forma, ficam aqui tais apontamentos, passíveis
de serem repensados, assim como abertos para reformu-
lações e direções, já que, como afirma Buoro (2002): “O
caminho continua a desdobrar-se em rotas e atalhos ao
infinito” (p. 238), concluindo a sugestão.

58 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Referências
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ca do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
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nior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento
Pena. 3ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moe-
da, 2006. (Col. Biblioteca de autores clássicos).
BARBOSA, Ana Mae. John Dewey e o Ensino de arte
no Brasil. São Paulo: Cortez, 2001.
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nicas de reprodução. São Paulo: Abril Cultural, 1975.
(Col. Os Pensadores)
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Cortez, 2002.
COHN, Gabriel. Comunicação e Indústria Cultural.
São Paulo: Edusp, 1971.
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HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Moderni-
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Luiz (Org. e Trad.). A literatura e o leitor: textos de
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59 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


MARCUSE, Herbert. Contra - Revolução e revolta. Rio
de Janeiro: Zahar, 1973.
MORAN, José M. Educação, Comunicação e Meios de
Comunicação. In TRUFFI, Ymair H. e FRANCO, Luiz
A. C. (coordenadores). São Paulo: FDE, 1990.
PLATÃO. A República. Rio de Janeiro: Editora Best Sel-
ler, 2002. Trad. Enrico Corvisieri.
THOMPSON, John B. A mídia e a Modernidade. Pe-
trópolis: Vozes, 1998.
WILLIAMS, R. Cultura e sociedade. São Paulo: Nacio-
nal, 1969.

60 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Capítulo 2
Conflitos Construtivos: Desafios
­introdutórios da pesquisa
em comunicação1

Ana Heloiza Vita Pessotto2

Introdução
A Comunicação vive uma incessante busca pela sua le-
gitimação como campo científico. Elementos essenciais,
dentro desse processo, são: o conceito de comunicação,
que permite a integração do campo; o reconhecimento
das suas teorias e metodologias, sendo elas originais do

1. Artigo apresentado para a conclusão da disciplina Teorias da


Comunicação, ministrada pelo docente Prof. Dr. Osvando Mo-
rais. Disciplina disponibilizada pelo Programa de pós-gradua-
ção em Comunicação UNESP – Bauru.
2. Mestranda do programa de pós-graduação em Comunicação
UNESP. Orientadora: Dra. Maria Teresa Kerbauy. Bolsista
­CAPES. E-mail: anahvp@gmail.com

61
campo ou incorporadas; e a delimitação dos objetos e da
centralidade dos processos comunicacionais. Permeiam
essa discussão o desenvolvimento do pensamento cien-
tífico, a crise dos paradigmas das ciências em geral (in-
cluindo as exatas e as naturais), e o papel do pesquisador
como ator da evolução da Comunicação.
Nos Estados Unidos, o Journal of Communication de
tempos em tempos retoma a questão da legitimação da
comunicação como centro de suas discussões. Nos anos
1980 os debates circulavam em torno do que ficou co-
nhecido como “crise do paradigma”, com base na ideia
de uma fragmentação do campo que seria impossível de
ser revertida, o que incentivou estudos que buscavam
a história da evolução do próprio campo, como forma
de compreender a fragmentação. Depois de 10 anos, em
1990 o tema discutido foi o futuro do campo, influencia-
do pela investigação do passado, no futuro estariam as
possibilidades de vencer o que tornara o campo frágil. A
publicação defendia a retomada da busca por um campo
legitimado da comunicação, pois o pluralismo teórico
e as concepções vindas de outros campos estavam im-
pedindo esse procedimento, mantendo a comunicação
fragmentada e sem disciplina (NAVARRO, 2003, p. 22-
23). O que a publicação demostra, além do foco de cada
edição, é a complexidade desse campo que tem uma di-
nâmica conflituosa e que seus conflitos são contínuos e
cíclicos, o que permitiu vastos diálogos sobre a episte-
mologia da comunicação e sua legitimação como ciên-
cia, instigando muitos pesquisadores a se debruçarem
sobre o tema.

62 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


A evolução dos meios de comunicação tem trazido à
tona mais uma vez o questionamento dos paradigmas,
mas vale destacar que os paradigmas já estavam sendo
questionados na década de oitenta, quando a internet e
os dispositivos móveis ainda não haviam se tornado po-
pulares. A crise de identidade e a busca por legitimação
como ciência parecem fazer parte da natureza da Comu-
nicação como campo.
Os conflitos constantes acabam sendo ocasionados
principalmente pelo fato dos estudos se pautarem em
uma relação em que se tem duas caixas-pretas: o “eu”
e o “outro”. São duas grandes lacunas dentro das inves-
tigações em comunicação, já que o “outro” nunca pode
ser conhecido por inteiro, e o “eu” interno nunca poderá
ser exprimido pelos meios de forma integral. “Mas não
posso aprisionar a mente do outro, pois ela é livre, pensa
o que quiser e eu jamais terei acesso às coisas que o outro
sente, deseja, quer.” (MARCONDES FILHO, 2008, p.32).
Marcondes Filho incentiva uma reflexão racional e de
lógica direta, em que nos leva a pensar em como estudar
a comunicação sendo que há um importante ponto cego
dentro das abordagens, o outro. O eu, contudo, não se
torna mais facilmente decifrável e compreensível dentro
do sistema, considerando que “as palavras reduzem nos-
sos sentidos a expressões convencionais.” (MARCON-
DES FILHO, 2008, p.81). O estudo do processo comuni-
cacional torna-se tão complexo quanto o processo em si.
Não há a pretensão aqui de elaborar a construção
de um olhar panorâmico desse quadro, principalmente
considerando as pontuações de Eco quanto aos perigos

63 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


dessa ampla abordagem, como o perigo de o autor ser
“acusado de imperdoáveis omissões” (ECO, 2002, p. 7).
Todas estas questões foram investigadas e discutidas por
diversos autores que propuseram mudanças em diferen-
tes direções, em sua maioria pesquisadores experientes,
com alta titulação e vasto repertório científico. O presente
artigo pretende elencar alguns pontos cruciais dos confli-
tos internos da comunicação, por meio de conexões que
permitem reflexões críticas baseadas em uma análise do
campo e do atual paradigma da ciência, com um recorte
pautado nos desafios encontrados no momento da intro-
dução do pesquisador no campo da Comunicação. Tendo
na centralidade da visão, o olhar do pesquisador iniciante
e as problemáticas com as quais terá de se relacionar du-
rante o fazer acadêmico no campo. Buscando demonstrar
a existência do conflito interno com a apresentação de
algumas linhas de raciocínio parcialmente convergentes
ou divergentes, com a intenção de comprovar a dinâmica
intrínseca da Comunicação e a forma como a relação do
pesquisador com esses conflitos podem ser construtivos
dentro do fazer científico em Comunicação, incentivan-
do-o a entrar em conflito com seu objeto, seu método e a
teoria que acredita ser a base de sua pesquisa.

Comunicação: O conceito
O conceito de comunicação é amplo, dando um vasto
leque de interpretações ao seu significado. Reconhecer

64 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


qual a ação à que se remete quando fazemos comuni-
cação é um passo que, para alguns autores, se mostra
importante para o reconhecimento e o entendimento da
comunicação como ciência e campo de pesquisa.
A multiplicidade de leituras do termo gerou olhares
distintos quanto o funcionamento do processo comuni-
cacional. Os possíveis usos de comunicação apresenta-
dos pela Encyclopédie são o ponto de partida da análise
de Giorgio De Michelis (2003). Os significados primor-
diais delimitados pela Encyclopédie se concentram na
ideia de “transmitir ao outro”, dando pouquíssimo des-
taque ao significado de comunicação como processo de
“tornar comum”, que pode ser extraído da etimologia da
expressão comunicar. A palavra comunicação deriva do
latim communis, que quer dizer “pertencente a todos ou
a muitos”, o termo se desdobra em comunicare, referente
a comunicar ou comungar, e em comunicationis, tornar
comum (DUARTE, 2003, p.42).
A concepção da comunicação com foco na transmis-
são e não no conceito mais amplo de “tornar comum”
possibilitou a evolução das teorias matemáticas, nas
quais se focava no processo de transmissão da men-
sagem e nos elementos “objetivos” que estão presentes
nesse processo. Claude Shannon e Warren Weaver ar-
ticularam o esquema em que a comunicação se resume
a uma fonte que emite, por um canal, um sinal que será
decodificado pelo destinatário. A mensagem sendo re-
cebida na íntegra, a comunicação é considerada efeti-
vada com sucesso. (GIORGIO DE MICHELIS, 2003).
Transmissão pressupõe a passagem de algo de um ponto

65 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


a outro, como acontece nos sistemas elétricos, por exem-
plo, ou nas ondas de rádio. A questão principal quanto
à centralidade dessa concepção é o fato de o esquema
desconsiderar que os envolvidos no sistema comuni-
cacional são seres humanos dotados de subjetividade.
O olhar direto e objetivo, que pressupõe que a mensa-
gem emitida é a mesma que a recebida, tem influência
do campo das ciências exatas, algo a se contestar, já que
todos os sistemas de transmissão possuem perdas, não
sendo a mensagem emitida equivalente à mensagem
recebida. O exemplo pode ser utilizado, contanto que
seja dada a devida proporção a cada caso. Os elementos
físicos e eletromagnéticos têm possibilidades restritas,
enquanto o ser humano tem uma multiplicidade indi-
vidual de significações para cada mensagem. O modelo
matemático foi proposto para ser voltado ao processo
físico da comunicação e o uso do modelo fora do âmbito
tecnológico causou, segundo Siegfried Schmidt, equívo-
cos teóricos (SAMPAIO, 2001).
A desmistificação do esquema matemático de comu-
nicação dá-se principalmente com a retomada do con-
ceito de comunicação como “tornar comum”, que prevê
a comunhão, mas não pressupõe decodificações. Miche-
lis elenca Barnett Pearce e o sociólogo Niklas Luhmann
como alguns dos teóricos responsáveis pela ascensão
do olhar para a comunicação de forma integrada com a
vida social e não como um sistema isolado, em contra-
partida à concepção de transmissão.

66 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


A comunicação é para Pearce a modalidade por
intermédio do qual os seres humanos realizam
a construção social da realidade. É, de fato, na
comunicação que eles podem entrar em acordo
sobre os valores que presidem suas ações e in-
terações (coordenação), construir história sobre
si mesmos e sobre o mundo (coerência) e en-
contrar uma identificação comum daquilo que
parece fugir do seu conhecimento (mistério).
Estas atividades comunicativas ou dimensões da
comunicação definem um sistema complexo de
relações entre pessoas e práticas. (MICHELIS,
2003, p. 117)

O receptor é um ser subjetivo e a sua criatividade,


identidade cultural e contexto social têm influência na
forma como recebe e interpreta a mensagem. Pearce for-
talece a comunicação como formação de comunidades.
Quanto à Niklas Luhmann, seu olhar sobre a comu-
nicação está voltado à recepção seletiva e a constituição
de comunidades, criando um elo entre os elementos
pertencentes a elas. Para o autor, a comunicação é um
processo seletivo, no qual cada indivíduo observa dife-
rentes elementos de forma destacada dentro de um texto
(seja verbal ou não verbal), uma das características que
possibilita multiplicidade de escutas. A mensagem não
chegará ao receptor da mesma forma que foi emitia pelo
emissor.

[...] a comunicação inventa sua própria memó-


ria num pulsar constante em que o sistema se

67 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


expande e se contrai com cada redundância e
com cada nova seleção. Nada que ver com “pe-
ças concretas” que precisassem ser reunidas por
alguém: a comunicação em Niklas Luhmann, é
a própria seletividade que se constrói na própria
comunicação. ( MARCONDES FILHO, 2005,
p.8).

O sociólogo “elegeu a comunicação como o opera-


dor central de todos os sistemas sociais”. (MARCON-
DES FILHO, 2005, p.7), é a comunicação que permite
a formação de comunidades, já que coloca em comum
indivíduos e proporciona a eles uma identidade coleti-
va, por meio do compartilhamento de sentidos e limites
(MICHELIS, 2003, p. 121).
A questão nesta concepção de Luhmann está exata-
mente na coexistência do ato singular, do fazer comuni-
cacional de cada indivíduo, e da constituição do sistema
social por meio da comunicação, pressupondo o “tornar
comum”, o compartilhamento de sentidos. Para Micha-
elis, aí está o segredo do processo. Ele se baseia nesse
paradoxo individual-seletivo/ coletivo-compartilhado.
“O processo comunicativo converge para além da diver-
gência de cada ato comunicativo singular.” (MICHELIS,
2003 p. 126). Luhmann é reconhecido pela elaboração
do conceito de sistemas.
A comunicação como transferência parece dar espa-
ço a uma ideia de tornar comum, comunhão, contudo
não há unanimidade quanto a essa concepção, principal-
mente por posicionar a comunicação como um ­campo

68 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


de interação com outras ciências, como a sociologia, a
filosofia e a psicologia e considerar a influência social
dentro do aspecto comunicacional.
Os conceitos acima citados não dão espaço para a
importância do meio dentro do processo. O canadense
Marshall McLuhan defende a concepção de que o meio
é a mensagem, buscando comprovar a importância do
suporte dentro do arranjo comunicacional.
Jürgen Habermans, filósofo, considera a comunica-
ção “concebida como um processo dialógico, através
do qual sujeitos, capazes de linguagem e ação, intera-
gem com fins de obter um entendimento.” (SAMPAIO,
2001), conceito no qual baseou sua teoria da ação comu-
nicativa, que pressupõe a chegada de um consenso, da
intenção de que chegar ao entendimento.
O filósofo Pierre Bourdieu elaborou uma concep-
ção de comunicação, na qual ela é vista como disputa.
Bourdieu tem seu legado baseado na focalização do
poder dentro das relações sociais e suas influências. A
comunicação se torna, nesse panorama, um campo de
conflito, “onde o processo de comunicação é compre-
endido como uma disputa simbólica pelas nomeações
legítimas.” (SAMPAIO, 2001). Os posicionamentos de
Bourdieu e Habermans se distinguem quanto à finalida-
de da comunicação. Habermans acredita na busca pelo
entendimento, que indica uma forma pacífica, pelo me-
nos a intenção da ação, enquanto Bourdieu direciona o
fazer comunicativo mais voltado à dominação, ao poder
e, portanto da manipulação, já que o discurso se torna
arma de dominação. Marcondes Filho dialoga com as

69 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


proposições de Bourdieu ao afirmar que “Todos os dis-
cursos são necessariamente vontades de manipulação.”
(MARCONDES FILHO, 2008, p.32).
Estes foram apenas exemplos de concepções de comu-
nicação por diversos autores. Sejam focando na etimologia
do termo, sejam voltadas a comunicação como processo, as
afirmações divergem e constituem um quadro complexo,
com convergências, divergências e pontos de intersecção.
Muitas são as visões quanto ao conceito de comunicação
e apesar das evoluções tecnológicas permitirem o acesso a
grande parte das informações sobre esses conceitos, o pes-
quisador que acaba de ser introduzido no campo acadê-
mico pode não ter tempo de acessá-las de forma integral,
considerando o sistema político-acadêmico atual, e isso
pode gerar um conhecimento sobre a comunicação que
se reduz a percepções superficiais dos conceitos, podendo
ocasionar confusões teórico-conceituais.

Reflexões sobre uma tal Comunicação: a epistemologia


da Comunicação e a interdisciplinaridade
Quando entram em pauta a discussão e o desenvol-
vimento da comunicação, vem também à tona a questão
da sua legitimação, gerando agitação tanto dentro quan-
to fora do campo. Epistemologia da Comunicação é um
tema corriqueiro e tem papel central nos conflitos co-
municacionais, principalmente como forma argumenta-
tiva de reforçar a legitimidade.

70 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Etimologicamente, epistemologia é a ciência que es-
tuda a ciência, Duarte descreve com mais clareza o fun-
cionamento e a função da disciplina:

[...] podemos dizer que epistemologia é um conjun-


to de conhecimentos teórico-metodológicos ligados
simbolicamente que permitem elaborar uma forma
de investigar um objeto. Epistemologia é o estudo
dos princípios de investigação que direcionam um
olhar para um tema. (DUARTE, 2003 p.42)

Levando em consideração a delimitação citada de


epistemologia, pode-se entender que a raiz da proble-
mática está: na fragilidade do conceito de comunicação
causada pela multiplicidade e pela ausência de unanimi-
dade, como já foi apresentado no tópico anterior; a di-
ficuldade de um enquadramento dos objetos no campo;
e os questionamentos dos conhecimentos teórico-me-
todológicos dentro dos estudos em comunicação, que
serão apresentadas a posteriori; fortalecendo um pano-
rama conflituoso da epistemologia da comunicação.
Contudo, enquanto autores como Eduardo Duarte
direcionam as discussões para as peculiaridades e insta-
bilidade dos conceitos base do campo, Navarro (2003),
usando como exemplo a mudança do paradigma da va-
lidação do conhecimento científico, desconectado do
empirismo lógico, considera a questão da epistemologia
distante das problemáticas tão pontuadas, ponto no cen-
tro da discussão o fato de a legitimação estar indissociá-
vel dos conflitos políticos.

71 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Quizá no sobra recordar que una vez que fue
desplazado el projecto del empírismo lógico del
centro de la discussíon filosófica sobre el cono-
cimiento científico, con las certezas dogmaticas
que proporcionaba a sus adherentes, la espis-
temologia de las ciencias, comenzando por las
naturales, se ve tensionada por la conviccion
de el conocimiento debe referirse válidamente
a alguna realidad, como sostenía Popper, y de
que es un conocimiento histórica y socialmente
construido, como la propos Kuhn. El “critério
de demarcación”, la distinción entre el conoci-
miento cientifcio y el no científico, es ahora, en
vez de norma de unificación, un objeto más de
discusión, sometido tanto a las condiciones de la
racionalidad como a las del poder.
Por ello en el campo científico los conflictos
epistemológicos son siempre, inseparablemente
conflictos políticos3. (NAVARRO, 2003, p. 20)

3. “Talvez valha a pena lembrar que uma vez que foi deslocado do
centro do projeto do empirismo lógico o centro da discussão filo-
sófica sobre o conhecimento científico, com as certezas os dogmas
que fornecidos aos seus membros, a epistemologia da ciência, co-
meçando com as ciências naturais, teve fragilizada a convicção de
que o conhecimento para ser validado deve se referir a qualquer
realidade, como Popper argumentou, e é uma construída histórica
e socialmente, como o conhecimento, propôs Kuhn. O “critério de
demarcação”, a distinção entre o científico e o conhecimento não
científico e, agora, em vez de unificação padrão, um novo objeto
de discussão, tanto nas condições de racionalidade quanto ao po-
der. Portanto, na ciência conflitos epistemológicos estão sempre
inseparavelmente conflitos políticos.” (Tradução livre).

72 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


A base conceitual da leitura de Navarro quanto às
problemáticas é a visão de Bourdieu de comunicação
como disputa e poder. O conhecimento estaria dentro
desse quadro comunicacional. A legitimidade é dada
pelo grupo de domínio segundo seus interesses, estan-
do o problema vinculado tanto a instituições de dentro
quanto de fora do campo científico, em um círculo de
interesses. A concepção incorporada por Navarro dia-
loga com Adorno quanto suas percepções relativas à
epistemologia. Adorno alega que os conflitos sociais de-
terminam as escolhas e os desdobramentos da ciência.
(MARTINO, 2003, p. 70).
Tal concepção pode ser compreendida por meio das
escolhas de linhas de pesquisa dentro de instituições
acadêmicas e até mesmo as preferências dentro das ins-
tituições de financiamento de pesquisas. As bases de im-
posição para a legitimação da Comunicação teriam um
forte traço político, assim como as relações humanas.
Eduardo Duarte não necessariamente discorda da vi-
são de Navarro, mas ainda crê que os problemas com
os elementos formuladores da ciência são um problema
ainda mais complexo que os desdobramentos políticos
da questão.

Mas o que é comunicação? Voltamos à mesma


questão. É possível chegar a uma definição úni-
ca de comunicação que inclua todas as outras?
Como pesquisadores da comunicação podem
desenhar suas possibilidades epistemológicas es-
tando longe de um conceito que unifique? Uma

73 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


possibilidade de responder a essas questões seria
a tentativa de formular um conceito que sirva de
referencial científico para os pesquisadores em
comunicação, independente das formas como o
termo surja no uso cotidiano e em outras disci-
plinas científicas, como os conceitos de Energia
e Força que são específicos na Física. Esbarra-
mos aí em um novo problema que é ainda mais
complexo que seus desdobramentos políticos:
devido à grande quantidade de aplicação do
uso da palavra comunicação entre os próprios
pesquisadores, como circunscrever esse objeto?
(DUARTE, 2003, p.42)

Posiciona como sendo o principal problema a mul-


tiplicidade de conceitos de comunicação e do processo
comunicacional, impedindo uma integração da comu-
nicação como campo científico.
Martino (2003) também tem o olhar mais direcio-
nado às questões que articulam a ciência como ciên-
cia. Entende que para discutir a epistemologia é preciso
aceitar certos pressupostos nos quais se fundamentam
a ciência, centralizando pontos mais próximos com as
concepções de Duarte, nesse caso. Propõe um diálogo
entre os dois posicionamentos, mas não abre mão da
necessidade de uma tomada de posição e a defesa dos
pressupostos científicos.

A discussão epistemológica começa a partir da


problematização dessa investigação objetiva do
real, mas não pode recuar nestes pressupostos

74 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


sem colocar em risco a própria condição de pos-
sibilidade de um saber científico, ou sem que
haja uma dissolução da questão epistemológica
no universo mais vasto da filosofia.
Sem se posicionar em relação a este engajamen-
to, todo debate epistemológico se vê privado
de sentido e, de antemão, condenado a recuar
a seus pressupostos elementares, sem realmente
poder avançar em nosso objetivo: a fundamen-
tação de um saber comunicacional. (MARTI-
NO, 2003, p.71)

Para Martino, o posicionamento radical de Adorno,


e o que o autor chama de “impossibilidade de levar as
últimas consequências a sua [Adorno] posição” dificulta
de forma argumentativa uma epistemologia que seja ba-
seada no fazer científico com ponto de partida do olhar
voltado as influências e o poder político e social. A es-
sência da ciência bem fundamentada e objetiva também
tem fragilidades dentro de suas delimitações, mas não
poderia ser desqualificada. O autor propõe direcionar
os diálogos sobre a epistemologia para debates possíveis.

Porque, antes de mais nada, discutir epistemolo-


gia é necessariamente uma tomada de posição.
Significa aceitar certos pressupostos que são
aqueles mesmos sobre os quais se funda a ciên-
cia: a possibilidade de conhecer o real a partir
de certos critérios de investigação, entre os quais
a reflexão crítica, a objetividade, a produção da
verdade pela argumentação e comprovação.
(MARTINO, 2003, p.70)

75 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


As questões da epistemologia da comunicação ain-
da não foram resolvidas nem no interior da disciplina.
A própria delimitação de correntes representativas do
trabalho epistemológico ainda é um desafio. Martino
destaca essa dificuldade, como reflexo dos conflitos e de
uma certa ausência do que chama de tomada de posição.
Um elemento que está diretamente ligado às proble-
máticas da epistemologia é a da autonomia do campo
científico. O fato de a comunicação ser um processo que
media as relações humanas, faz com que ela produza um
vasto leque de opções temáticas e de recortes de inves-
tigação, que podem estar dentro de campos distintos do
conhecimento, principalmente no que tange as ciências
sociais. Tal dinâmica pode ocasionar um conflito quanto
aos objetos, às teorias e aos métodos.
As relações envolvem homens, seus comportamen-
tos, suas reflexões sobre o mundo e também envolvem
a sociedade na qual estão inseridos, o que pode permitir
uma confusão quanto à distinção das ciências que se fo-
cam em cada um desses âmbitos que rodeiam o processo
comunicacional.
Duarte, tomando como referência o pensamento de
Merleau-Ponty com a conceituação de comunicação
como sendo o encontro entre fronteiras defende a in-
terdisciplinaridade. O encontro de fronteiras percepti-
vas se pontua como a forma de o “eu” ter consciência
do “outro”, por meio de compartilhamento. Ou seja, o
“eu”, em seu interior, só tem consciência do outro quan-
do se relaciona com algum “rastro” do “outro”, podendo
ser por meio de objetos ou discursos e textos. Para que

76 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


haja o encontro dos limites de suas fronteiras é preciso
partilhar algum elemento. Direcionando o conceito para
a discussão sobre a autonomia, a interdisciplinaridade e
o fazer científico, Duarte propõe que

Essa ideia pode ser entendida também para ou-


tros planos cognitivos que se encontram, como
as disciplinas do saber que aproximam suas
fronteiras de pensamento e “promiscuamente”
trocam referências teóricas e metodológicas so-
bre temas comuns. A aproximação de campos
como a Antropologia, a Biologia, a Psicologia,
a Linguística entre outros, que investigam fe-
nômenos comunicativos amplia não apenas os
horizontes dessas disciplinas, como permite o
surgimento de novas disciplinas, códigos emer-
gentes de um encontro. (DUARTE, 2003, p. 49).

Duarte defende a “troca” entre os campos, sem que


haja o questionamento quanto a sua integridade. O pa-
norama dos âmbitos que envolvem o processo comuni-
cacional, como um todo, faz parte de um quadro com-
plexo. Complexidade que deriva do latim complexus
com significado de “tear em conjunto” (DUARTE, 2003,
p.50). Com base nessa significação, as ciências dadas
como complexas tendem a olhares de diferentes pontos
para a construção do saber.
Raymond Williams (1958), pesquisador membro dos
estudos culturais ingleses também endossa essa concep-
ção menos fragmentada e pontual. Questiona os estu-
dos isolados da comunicação e da cultura deslocados de

77 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


seu contexto social. Como poderia ser possível pegar o
objeto cultural, isolá-lo e construir ao seu redor muros,
que impedem sua relação com os âmbitos com os quais
coexiste?
Mas existem muitas possíveis interpretações da in-
tenção do “não isolamento” do objeto, e nem todas di-
recionam ao mesmo caminho. Martino tece afirmações
quanto à interdisciplinaridade como não sendo um
processo válido no fazer científico, quando é resultado
de um paradigma do quebra-cabeça, impossibilitando
a delimitação da Comunicação como disciplina. Nesse
caso, a interdisciplinaridade acaba sendo tomada de for-
ma inconsciente, com a intenção de justificar a disper-
são teórica e epistemológica da comunicação. Como se a
interdisciplinaridade fosse uma desculpa para desconsi-
derar, o que o autor delimita como sendo, os problemas
do campo.
Enquanto Martino critica a interdisciplinaridade
como é posta na comunicação, Duarte defende a ideia,
mais uma vez pautado em comunicação como encon-
tro de fronteiras. A questão a ser discutida e observada,
neste caso, é qual procedimento está sendo considerado
como interdisciplinaridade. As teorias da comunicação
(problemática a ser apresentada mais detalhadamente
mais adiante) vão trazer essa discussão à tona, tendo em
sua constituição muitas influências e até mesmo teorias
consideradas da comunicação, vindas de outros campos,
como a sociologia, a filosofia e a psicologia.
A crise se mantém e os pesquisadores sempre à busca de
provar a legitimidade de uma pesquisa em ­Comunicação,

78 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


seja ela com a sua autonomia estrita e fixada pautada na
essência dos elementos científicos, seja ela na forma de
uma ciência que se estabelece unificada com base nas suas
características peculiares, que fazem dela uma ciência le-
gitimada e autônoma mesmo com a contribuição de ou-
tros campos ao seu repertório investigativo.
Ao pesquisador recém-introduzido no campo da co-
municação, as problemáticas da epistemologia e da in-
terdisciplinaridade são importantes para a compreensão
da dimensão dinâmica e conflituosa do fazer científico
dentro do campo, permitindo a construção de um olhar
sob o campo, e não a imposição de pressupostos. Cabe
a cada um a identificação com os argumentos de algu-
mas correntes e a produção de conexões que permitam
ao pesquisador uma concepção crítica da comunicação
como ciência. Pois é a partir dessa concepção que o pes-
quisador aguçará seu olhar e pela qual a investigação
será pautada.
Cabem reflexões, nesse processo, sobre como o pro-
cedimento constante de inquietação e de contestação
do campo da comunicação impede um congelamento
de paradigmas forjados que possam se solidificar em
dogmas dentro do fazer investigativo. O ato se discutir
constantemente a comunicação faz com que haja uma
evolução. Essa problemática, entretanto, corre o risco
de se manter restrita em discussões centradas entre pes-
quisadores altamente titulados, caso não seja estimulada
em aulas e programas de pós-graduação.
A necessidade de unificação convive com o medo de
fazer com que a pesquisa em comunicação acabe ­caindo

79 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


e esbarrando em outros campos, contudo, pensando que
o processo comunicacional é a base das relações, torna-
-se plausível ela se envolver com outros campos. A evo-
lução dos estudos psicanalíticos foi essencial para uma
compreensão dos processos conscientes e inconscientes,
influenciando as concepções anteriores de comporta-
mentos sociais, portanto influenciando a forma de en-
tendimento de comunicação e sua interpretação, além
das formações de conexões e grupos, muito importan-
tes para o entendimento de cultura e sua veiculação e
compartilhamento. Será que obter informações válidas
vindas de outros campos enfraquece a Comunicação ou
apenas a inclui em uma rede de fluxo de informação?
Como a Comunicação, que torna comum, poderia ficar
isolada em sua redoma científica?
Quando a questão é identidade, muitos pesquisa-
dores como Umberto Eco (1976) e Renato Ortz (1994)
usam a delimitação lacaniana do conceito, um com a
intenção de comparar a identidade e o funcionamento
do inconsciente com o funcionamento interno da lin-
guagem, outro buscando compreender as composições
de identidade cultural e nacional. Lacan defendia que
o estabelecimento da identidade é uma dialética entre a
inclusão e a exclusão. O “eu” se estabelece ao criar elos
e se relacionar com grupo a que pertence, com o qual
compartilha a cultura, e o “eu” só pode ser desenhado
em um quadro em que existe o “outro”, o qual o “eu”
não é. A Comunicação encontra-se nesse impasse. A ne-
cessidade da legitimação é a procura de um grupo com
o qual compartilhar concepções. A concentração dessa

80 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


busca está mais na questão da inclusão, do que da exclu-
são. Não estaria a Comunicação buscando os elementos
errados para se incluir, remodelando os elementos que
na verdade estão relacionados à sua exclusão? Seria uma
problemática dos paradigmas da comunicação ou do
paradigma da ciência?

A caça do objeto
O objeto é outro tópico importante dentro das dis-
cussões na área. Marcondes Filho e Duarte acabam dia-
logando quanto à busca de trazer a ideia de comunica-
ção de dentro do universo do ideal, conceitual, para uma
reflexão de objetos reais em um campo possível e cien-
tífico. Pensar em comunicação requer um investimento
vasto de tempo buscando distinguir o objeto da comuni-
cação, do objeto da psicologia, do objeto da sociologia,
o objeto da história, do objeto da linguística. Como en-
globar de alguma forma elementos desses campos e na
verdade não ser nenhum desses?
Na caça ao objeto da comunicação houve uma com-
paração de como as ciências naturais e exatas se relacio-
navam como seus objetos e como o selecionavam. Mas
é preciso compreender a comunicação dentro de seus
próprios limites. “Pensava-se que a comunicação era
coisa, um objeto. Quem trouxe essa confusão foram as
ciências físicas e da natureza, pois para elas, a comuni-
cação é isso. Mas nós não somos pedras, fios elétricos

81 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


nem líquidos. Somos seres humanos.” (MARCONDES
FILHO, 2008, p.15). Tal constatação não esclarece, pelo
contrário, abre precedentes para mais perguntas.
Com a intenção de solucionar o problema do objeto
em comunicação, alguns caminhos foram traçados. Lo-
pes (2005) delimita o objeto da comunicação como sen-
do “o estudo dos fenômenos da comunicação dentro da
cultura industrializada” (LOPES, 2005, p.14). A relação
dos estudos em comunicação com o conceito de indús-
tria cultural é muito próxima, tendo entre as primeiras
teorias da comunicação teorias que se voltavam a esse
propósito a investigação dos produtos culturais veicula-
dos pela indústria cultural. Bourdieu também reconhe-
cia tal posicionamento do objeto. Coloca a comunicação
como campo da indústria cultural, ou seja, dentro desse
campo encontra-se o objeto.
Tal delimitação ainda mantém uma grande gama de
possibilidades. Marshall McLuhan propõe o olhar aos
meios como forma de investigação. Com a afirmação o
meio é mensagem e com o repertório que inclui a obra
Galáxia de Gutenberg, o autor traça um raciocínio em
que defende a importância da tecnologia e do meio
como elemento de transformação da sociedade. (MAR-
CONDES FILHO, 2002, p.163). Outros autores coloca-
ram no centro da investigação o discurso e a linguagem,
focando no conteúdo.
Muitos são os possíveis objetos da comunicação. A
delimitação quanto a produtos da indústria cultural
apenas pode não ser mais um recorte decretado como
o objeto da comunicação, mesmo que em diferentes

82 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


âmbitos do processo. As comunicações independentes,
com base em relações não pautadas no poder fora dos
meios e discursos hegemônicos também têm espaço nas
pesquisas em comunicação. As indústrias criativas e ao
folkcomunicação tendem a esse olhar fora da concep-
ção da indústria cultural, que talvez também mereça
uma revisão mais apurada dentro das atuais percepções
comunicacionais com a introdução das dinâmicas dos
novos processos, como as interações sociais por meio de
dispositivos móveis e o consumo cultural no sistema por
demanda.
Mais do que tentar entender qual é o objeto da comu-
nicação, já que pode parecer a tentativa de formular um
universo imensurável, talvez a pergunta mais objetiva
seja como observar um objeto das relações sociais com o
olhar da comunicação, elaborando um recorte adequa-
do. A diferenciação entre a comunicação, a sociologia e
as ciências humanas em geral está no foco da investiga-
ção. Muitos temas podem ser abordados por mais de um
campo, vale delimitar o tema transformando-o em obje-
to pondo o processo comunicacional como o centro da
observação. A comunicação consiste em um processo de
mediação entre seres humanos por isso vai influenciar e
ser influenciada pelos âmbitos da vida cotidiana, impre-
terivelmente. Como lidar com objetos tridimensionais
como os da comunicação?
As amplas possibilidades de objetos e enquadra-
mentos do mesmo não são apenas problemas da co-
municação, são uma questão da ciência como um todo.
Mas a comunicação adiciona um obstáculo a mais: a

83 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


i­nstantaneidade do objeto. A comunicação acontece
aqui e agora. Um processo não se repete. Pode ser um
processo que aconteça todos os dias, mas todos os dias
ele vai ser diferente. Investigar um processo comunica-
cional ocorrido há um determinado período e sem estar
incluso no fenômeno é uma das formas de observação,
contudo, permite consideráveis perdas. No polo opos-
to, estar no momento do acontecimento e participar da
rede comunicativa também gera diferentes resultados,
mas seria preciso desconsiderar a distância do pesquisa-
dor quanto a seu objeto. Ou o pesquisador olha de fora,
com um olhar de “estranho”, impedindo a compreen-
são de alguns signos referentes apenas aos participantes
do processo ou pode estar extremamente envolvido e a
proximidade com o objeto pode impedir que o analise
com objetividade. Talvez haja a necessidade da escolha
ou elaboração de estruturas teórico-metodológicas que
permitam a observação desse objeto considerando sua
instantaneidade e também a sua rápida mudança como
significação.
A escolha do objeto é um difícil desafio ao pesquisa-
dor iniciante. Ter de escolher um tema com o qual vai
se relacionar por um longo período. Entretanto, como
afirma Eco, todos os temas têm grande potencial de
se tornarem grandes investigações, por isso o que vale
mais é a experiência de trabalho que a pesquisa compor-
ta. Vendo assim, um dos grandes enigmas, a escolha do
objeto, torna-se mais leve. A delimitação de um objeto
que lhe gere inquietações e a observação e interpretação
dessas inquietações com base em um repertório único,

84 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


i­ndividual e intransferível é a chave para um plano de
trabalho possivelmente satisfatório. É preciso o ama-
durecimento das ideias para que o objeto possa ser es-
colhido e sua observação seja centralizada no processo
comunicacional sem que esse procedimento pareça uma
imposição ao objeto, que como é instável e instantâneo
pode escapar por dentre os dedos. O recorte permite
um posicionamento mais claro quanto a que momento
se está discutindo o objeto, mas é preciso ficar claro que
ele não ficará estável a espera da investigação, por isso
torna-se interessante acompanhar os movimentos pos-
teriores do seu objeto, sem se perder entre as infinitas
mutações do mesmo nos anos de duração da elaboração
da sua pesquisa.

Teorias e Metodologias: formulação e crítica


Como se já não bastasse uma incerteza rondando o
conceito básico de Comunicação, os desafios não param
por aí. Pelo contrário, se iniciam se desenvolvem e re-
tornam ao ponto de saída. As discussões sobre o tema se
tornam cíclicas e o sistema começa e termina no concei-
to de comunicação.
As teorias de comunicação existem porque existe Co-
municação e a Comunicação só existe porque existem
teorias da Comunicação. Mas como saber ao certo se
elas existem? Para Martino, elas existem porque simples-
mente acredita-se que sim. “As teorias da ­comunicação

85 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


existem a despeito de todo e qualquer obstáculo coloca-
do à sua definição. Cremos em sua existência e isso pare-
ce nos bastar.” (MARTINO, 2007, p. 18). O autor baseia
sua crítica na forma como essa “crença” se dá dentro do
campo científico. A comunicação se desenvolveu sem
uma ordenação e ao ser “descoberta” não foram investi-
gadas as grandes questões que envolvem a área e os ele-
mentos que a introduzem ao universo científico. Dentre
os manuais e coletâneas de Teorias da Comunicação,
poucos são os que elaboram discussões e questionamen-
tos quanto ao conceito de comunicação, apenas crendo
na sua existência como algo dado. Outro fato estranho
dessas produções é não terem coesão interna como con-
junto dentro campo, já que seus conteúdos não são con-
vergentes, não sendo possível encontrar coletâneas em
que são citadas as mesmas teorias. Ao mesmo tempo, as
obras não esclarecem quais os parâmetros considerados
para a escolha de determinadas teorias e como e por que
as escolhidas estão “inseridas” no campo da Comunica-
ção (idem, p. 19).
Martino propõe uma forma de distinguir quando
uma teoria é a da Comunicação: “[...] uma teoria so-
mente pode ser considerada teoria da comunicação se
respeitar o preceito da centralidade do fenômeno comu-
nicacional. Isto significa dizer que a realidade humana
deve ser explicada (entendida, descrita) tomando-se a
comunicação como fator privilegiado.” (idem, p. 28).
O panorama conflituoso do campo inicia com uma
problemática que Berger (2007) aponta como sendo a
falta de desenvolvimento de teorias originais dentro da

86 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


comunicação e a grande apropriação de teorias direcio-
nadas de outras áreas para o campo comunicacional.
Observa-se que um grande número de pesquisas desen-
volvidas em pós-graduação usa como teoria de funda-
mento teorias criadas por profissionais e pesquisadores
de outra área, abrindo precedente para o questionamen-
to da comunicação e da autonomia da ciência. O autor
defende, como uma possível solução, os cursos darem
maior ênfase ao fazer teórico, com cursos voltados à pro-
dução teórica. Trata-se de uma crítica ao modo como os
programas de pós-graduação dividem e concentram seu
curto período de duração, dando uma excessiva ênfase
ao método. As disciplinas voltadas às teorias tendem a
elaborar resumos de teorias já consagradas na área, mas
não abre espaço para uma discussão questionadora da
construção da teórica.

[...] a obsessão nos métodos não apenas tende a


deslocar a importância do trabalho de elabora-
ção de teorias, ela também cria uma mentalida-
de do tipo ‘tendo um método, nós trabalhamos’,
que impele aqueles que se preocupam com isso
a usar sua competência metodológica para pes-
quisar qualquer problema, contanto que a pes-
quisa seja financiada. (BERGER, 2007, p.58-59)

Berger reforça sua crítica a algo que pode ser consi-


derado um “fetiche pelo método”, incluindo nessa pro-
blemática, a questão política envolvendo a ciência, abor-
dada no tópico anterior.

87 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


A crítica ao foco nos métodos também é um posicio-
namento de Umberto Eco, um entusiasta da exposição
do pesquisador e crítico dos investigadores simplistas
que fazem o uso do método como uma “bengala”. A es-
trutura, que está pautada na linha de evolução e de dire-
cionamento da investigação, é um “instrumento opera-
cional visando ao discurso sobre o campo concreto dos
fenômenos” (ECO, 2007). E essa utilização é uma esco-
lha consciente por um determinado ponto de vista com
o qual o objeto analisado será observado, já com a inten-
ção de comprovar determinado discurso. Escolher uma
estrutura definida e fechada parte da escolha de uma
abordagem prévia, que acaba por buscar encaixar o ob-
jeto em seus moldes para comprovar a hipótese. Em ca-
sos como este, a estrutura não se torna uma ferramenta
interessante, pois descola o objeto de estudo e o encaixa
em um modelo pré-determinado, não respeitando sua
natureza, permitindo um olhar incompleto. Eco propõe
um olhar que vá além das estruturas, o que ele chama
de ausência, que seria o local onde verdadeiramente se
desenvolvem as pesquisas e críticas relevantes. Trata-se
de um incentivo à desconstrução das estruturas teórico-
-metodológicas com a intenção de analisar a ausência,
observando seu objeto e sua pesquisa com olhar incon-
formado. Outra crítica de Eco ao uso rígido e até mes-
mo mecanizado da estrutura é o fato de que as pesquisas
realizadas nesses moldes se tornam até mesmo inúteis.

[...] toda pesquisa, se conduzida com rigor, deve


dar-me sempre e de qualquer modo, sob as

88 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


v­ ariações sobre as quais atua, o mesmo resultado;
e reduzir todo o discurso aos mecanismos do ou-
tro que o profere. Ora, visto que esses mecanis-
mos já são de antemão conhecidos, a função de
toda a pesquisa resume-se em verificar a Hipó-
tese por excelência. Concluindo: toda pesquisa
revelar-se-á verdadeira e frutífera na medida em
que disser aquilo que já sabíamos. (ECO, 2007)

A investigação realizada de forma mecânica, com um


molde que se direciona a validação de métodos e teorias
limita a descoberta. Idealmente, toda pesquisa é inédita
por causa do olhar único do pesquisador, ao limitar as
possibilidades desse olhar, a pesquisa só tende a perder
profundidade.
As teorias e metodologia são uma questão a ser dis-
cutida dentro do campo. O “fetiche do método” precisa
ser superado, e as críticas de Eco e Berger são válidas
dentro do processo de construção coletiva do conheci-
mento. O estudante ingressa no universo científico e seu
ingresso não deveria ser apenas para testar e confirmar
deduções teóricas já elaboradas. A participação daquele
novo membro da comunidade deve ser entendida como
um novo ator dentro da rede de conhecimentos. Suas
capacidades permitem um processo mais frutífero do
que a reprodução banal de ideias, como construção de
novas visões, mesmo que baseadas em ideias já elabora-
das, uma elaboração única por meio de uma conexão de
repertórios diferenciada e única.
A necessidade de novas teorias e novos métodos tam-
bém está atrelada às inovações do próprio campo. As

89 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


novas tecnologias modificaram as formas de interação e
surgem novos atores e elementos comunicacionais den-
tro do processo. A sociedade também sofre modificações
e as teorias precisam acompanhar essa evolução. Dispo-
sitivos móveis de conexão digital, interatividade, novas
formas de interação social. A simples incorporação de
antigos conceitos a novas formulações não basta. É ne-
cessário um envolvimento na reelaboração e análise crí-
tica do que já foi produzido, pois simplesmente começar
do zero também não parece uma opção coerente, consi-
derando que os elementos apresentados atualmente são
resultado da transformação de outros anteriormente co-
nhecidos, e a ciência depende de uma investigação das
transformações. O conhecimento anterior não pode ser
utilizado como se ainda fosse totalmente válido no atual
contexto e também não deve ser esquecido e ignorado,
dando lugar para algo completamente novo.
A internet e as novas possibilidades de interação abri-
ram um novo leque de possibilidades para as pesquisas
e suas interpretações em comunicação. Atualmente, as
mudanças têm ocorrido mais rapidamente e o tempo de
adaptação, consequentemente, diminuiu. As instantanei-
dades do objeto somadas à rapidez das atuais mudanças
dos meios tecnológicos transformando os comporta-
mentos desenham um novo panorama das comunica-
ções e para ele é necessário um esforço para a elaboração
de novas teorias que contemplem seus traços únicos.

Acreditamos não existir uma única teoria da co-


municação capaz de abarcar todos os ­fenômenos

90 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


interativos em virtude das experiências ainda
estarem por se dar. Do mesmo modo que a TV
Digital é classificada como um mix de mídias
convergentes, é possível talvez que haja a neces-
sidade de um mix de atuais para darmos con-
ta da multiplicidade de fenômenos provocados
pela interatividade, necessitando buscar as in-
tersecções entre as teorias em um diálogo cons-
tante. Por outro lado, a natureza interdisciplinar
da comunicação aponta para alguns caminhos
na superação dos obstáculos presentes nesse seu
começo de existência. (MORAIS, 2010, p.92)

Como propõe Morais, a mescla das teorias é uma


possibilidade que deve ser aberta aos pesquisadores em
comunicação. O olhar do pesquisador pode gerar novas
leituras e uma ampliação às possibilidades de interpre-
tação dos objetos estudados.
Contudo, exigir que os estudantes elaborem teorias,
considerando o sistema e a burocracia dos programas
de pós-graduação no Brasil e a política envolvendo a
titulação necessária para a docência, pode parecer ex-
tremamente pretencioso e inclusive utópico. Conside-
rando que muitos nem ao mesmo tiveram contato com
o conceito de teorias, produzi-las pode parecer um de-
safio assustador. A mudança para que esse modelo seja
alcançado deve ser contínua e gradual. As intenções de
Berger de incentivar discussões mais elaboradas sobre o
fazer teórico são válidas, e com um olhar mais humilde
e menos pretensioso, permitiria um maior contato do
pesquisador inexperiente com os conflitos dos conceitos

91 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


no campo e desenvolveria um olhar crítico em relação às
teorias nas quais pretende basear suas pesquisas. Talvez
a união de uma concepção mais real e possível do que
Berger pretende com a visão de Eco do fazer investigati-
vo, que se constitui da ausência, seja um caminho inte-
ressante para a evolução das pesquisas em comunicação.
Com pesquisadores que têm repertório e compreendem
o fazer teórico e que lidam de forma conflitante com o
objeto.
Acima das questões dos novos investigadores, há de
se lembrar de que a própria concepção de teoria se mo-
difica, assim como toda a sociedade, em um processo
contínuo, que faz com que se depare com momentos
chave para mudanças de paradigmas.

As definições convencionais de teoria estão


atrasadas em relação à prática: elas não refle-
tem mais a atual gama dos trabalhos teóricos do
campo. Este é o nosso presente estado de confu-
são. Carecemos até mesmo de um vocabulário
coerente, com o qual possamos discutir a gran-
de variedade de ideias que atualmente anun-
ciam a si próprias como teorias da comunicação.
(CRAIG, 2007, p. 86).

Como o novo pesquisador consegue lidar com todos


esses conflitos trançados em uma rede de conhecimento
complexa? Há ausência de experiência, de repertório e
maturidade para lidar com as principais questões.
O fato de a Comunicação ser classificada como ciên-
cia social aplicada gerou um olhar mais prático à mesma.

92 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Como a comunicação rege as relações, o campo inicia
suas questões na vida social ou mesmo no mercado de
trabalho, principalmente com o jornalismo e posterior-
mente publicidade, e migraram posteriormente para a
academia. Esse processo acaba gerando um ideal de que
“os pesquisadores em ciências sociais aplicadas estão
interessados em descobrir soluções para questões prá-
ticas” (BERGER, 2007, p. 53), o que pode enfraquecer o
interesse teórico no campo.
Muitos fatores podem direcionar o pesquisador no-
vato a determinado caminho, mas a rota e o rumo po-
dem ser modificados. Estaria mesmo ocorrendo o en-
fraquecimento das discussões quanto às teorias? Esse
processo favorece uma aceitação integral e sem critérios
das mesmas e enfraquece o fazer científico?
Não está sendo aqui defendida a negação das teorias
da comunicação, pelo contrário, é com base nelas que
todo o repertório do campo se desenvolveu e elas foram
e são muito importantes, não apenas em seus contextos,
mas como materiais a serem consultados e abordados
para uma compreensão da existência da crise do cam-
po e das possíveis atuais respostas. Um aprofundamento
quanto ao processo do “fazer teórico” poderia ser vanta-
joso, não para que sejam criadas mil teorias que substi-
tuam as clássicas, mas que o conhecimento do processo
de produção permita uma leitura crítica das teorias exis-
tentes. Como utilizar-se a teoria crítica sem um olhar
crítico para as qualidades e fragilidades da teoria, por
exemplo? Seria dissimular a base da elaboração do pró-
prio constructo teórico em pauta.

93 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Entretanto, a criação de teorias também pode ser
uma cilada. Disfarçando-se de novas respostas, essa op-
ção pode ser tão perigosa quanto a leitura e utilização
acrítica das teorias já existentes. Marcondes Filho des-
taca uma situação em que o novo é o antigo repaginado,
outro processo que mantém o saber na inércia, contudo,
com um falso sentimento de movimento.

Naturalmente, nem todos são assim, mas se


encontram inevitavelmente situações em que o
novo pode servir para revitalizar o velho, para
dotar os modelos de intervenção social ou de
controle de um equipamento teórico mais mo-
derno. Especialmente se a ótica permanecer
utilitarista, no sentido de mobilizar o aparato
científico para “resolver pequenos problemas
práticos”. (MARCONDES FILHO, 2002, 283)

Marcondes Filho, em sua obra O Espelho e a Más-


cara (2002), traça uma linha temporal da evolução do
pensamento científico e dentre as suas conclusões está a
de que o pensamento científico se constitui como “Uma
forma de retórica que aspirava à objetividade, a verdade
acima das opiniões particulares e subjetivas. Uma outra
forma, portanto, de fazer prevalecer às próprias posi-
ções.” (MARCONDES FILHO, 2002, p.219). Essa forma
se fortalece como uma muralha que reprime o novo e
tudo que se estabeleça com outra visão que não siga a
ordem lógica.
As afirmações de Marcondes Filho levam à observa-
ção dos possíveis obstáculos ao fazer investigativo.

94 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


No tópico sobre a epistemologia, foi discutido o cará-
ter político dos posicionamentos e a sua participação na
evolução das ciências. Torna-se, portanto, interessante a
um olhar sobre sistema político e burocrático no qual as
universidades estão inseridas no Brasil.

Imposições e a burocracia acadêmica: o sistema


Para a obtenção do título de mestre e de doutor em co-
municação no Brasil, há a necessidade de a elaboração de
uma dissertação e uma tese, respectivamente. O processo
para essa produção varia entre uma média de dois anos
para o nível mestrado e quatro para o nível doutorado.

O ideal seria uma sociedade mais justa, onde


estudar fosse trabalho pago pelo Estado àqueles
que verdadeiramente tivessem vocação para o
estudo e em que não fosse necessário ter a todo
custo o ‘canudo’ para se arranjar emprego, ob-
ter promoção ou passar à frente dos outros num
concurso. (ECO, 2002, p.3).

Longe do ideal, a realidade com que o campo se de-


para é a burocratização do diploma, fatores econômicos
e políticos influenciando em escolhas acadêmicas, teó-
ricas e metodológicas, principalmente com o poder das
agências de financiamento científico, impelindo, muitas
vezes, uma evolução diferente do campo, em direção a
uma renovação e evolução de olhares.

95 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


As exigências de produção, com base em quantidade,
somadas a formatação dos congressos científicos podem
ser um atraso para esse processo de novo olhar para o
campo. As agências exigem um número considerável de
publicações e participações em eventos, a dificuldade de
controlar as exigências de produtividade acaba introdu-
zindo essa questão e reduzindo a números as contribui-
ções e produções do pesquisador.

Conflitos iniciais e contínuos


A legitimação da Comunicação sempre esteve pre-
sente na sua existência e provavelmente é uma questão
que se manterá. Ainda não existe um conceito unifica-
do de comunicação, muitos menos uma unanimidade
quanto aos objetos que podem ser investigados por ela.
As teorias e os métodos são questionados e alvos das
principais críticas. Os conflitos internos são produtivos
no campo científico, pois a existência de olhares críticos
e a discussão contínua sobre o fazer investigativo impe-
dem o campo de solidificar concepções e paradigmas
que se constituam como dogmas.
Um pesquisador iniciante tem que se deparar com to-
das essas questões tendo um repertório, na maioria das
vezes, infinitamente menor do que o dos pesquisadores
titulados da área. Como lidar com esses pontos de vista
tão distintos que o pesquisador vai se deparando duran-
te sua pesquisa? Como ter acesso a essas informações
todas e pensar sobre o fazer comunicacional? Uma pos-

96 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


sibilidade para suprir as fragilidades e incentivar novas
construções acadêmicas é as disciplinas dos programas
de pós-graduação tornarem-se grandes grupos de dis-
cussão, trazendo à tona os conflitos da área. Os proble-
mas podem não ser solucionados com essa atitude, mas
não serão esquecidos ou deixados de lado e o risco de
um pesquisador em comunicação não conhecer a crise
de identidade de seu próprio campo torna-se conside-
ravelmente menor. Um pesquisador em comunicação
precisa, acima de tudo, ser um crítico.
O campo da Comunicação evolui continuamente, e
agora, o pesquisador iniciante faz parte desse processo,
é um ator cuja produção vai contribuir para esses confli-
tos. São conflitos iniciais e contínuos, que devem acom-
panhar os pesquisadores dentro do fazer investigativo,
estimulando o movimento da ciência e a não estagna-
ção. É preciso entender e aceitar que fazer comunicação
é estar dentro do furação, é fazer parte, é ser um agen-
te de construção do conhecimento. A ciência se exaure
quando todas as perguntas são respondidas. É no para-
doxal que a observação do objeto se constrói. A dialética
da construção por meio da desconstrução. Da Ausência
dentro da presença, como propõe Eco.

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97 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


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98 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


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99 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


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Maria Elisa Cevasco, Departamento de Letras, USP.

100 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Capítulo 3
Lei de Acesso à Informação:
­fortalecimento da comunicação
­pública na visão da esfera pública
habermasiana

Bruna Silvestre Innocenti Giorgi 1

Introdução
No Brasil, comunicação pública é um termo relativa-
mente jovem e, por isso, possibilita várias interpretações
e conceitos. Diante da diversidade, Brandão (2009) ali-
nha todas as concepções resumindo que a comunicação
pública é um processo que ocorre entre Estado, gover-
no e a sociedade com a intenção de estabelecer infor-
mações que auxiliem na construção de uma cidadania.
Conforme a autora, esses setores mencionados formam
uma esfera pública, sendo um espaço privilegiado de
negociação entre os interesses públicos diversos. Assim,

1. E-mail: bruna_sig@hotmail.com

101
percebe-se que a comunicação pública compõe o con-
texto político da sociedade, porém “não é um poder em
si, mas o resultado do poder do cidadão quando organi-
zado e constituído como sociedade civil” (BRANDÃO,
2009, p. 9).
Fica claro, portanto, que o diálogo entre Estado, go-
verno e sociedade deve proporcionar informações rele-
vantes de serviços e de divulgação de políticas públicas e
de órgãos do governo. Entretanto, a comunicação abar-
ca mais que disponibilizar informações, pois a intenção
é gerar um debate sobre assuntos de interesse público
(ZÉMOR, 2009). Kunsh (2012) compartilha da ideia
de Zémor (2009) e destaca que o interesse público é a
orientação da comunicação pública, já que ela faz parte
de um serviço público, e a discussão ocasionada por ela
é um substrato para o desenvolvimento da cidadania.
Essa discussão é associada à participação ativa dos ci-
dadãos. Conforme Duarte (2009) esse é o resultado da co-
municação pública que deve focar nos interesses coletivos
e na transparência. O cidadão deve ter “a possibilidade de
expressar suas posições com a certeza de que será ouvi-
do com interesse e a perspectiva de participar ativamente
como protagonista naquilo que lhe diz respeito”, (DUAR-
TE, 2009, p. 64). Por isso é um processo que demanda
tempo, pois a informação é apenas uma intenção, é pre-
ciso também “qualificar o cidadão para exercer seu poder
de voz, de voto e de veto nas questões que dizem respeito
à coletividade” (MONTEIRO, 2009, p. 40).
Faz-se, então, necessário especificar que a comunica-
ção pública discutida no presente artigo tem o viés de

102 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


comunicação estatal, que é aquela praticada pelo gover-
no e pela administração pública, “visando à prestação
de contas, ao estímulo para o engajamento da população
nas políticas adotadas e ao reconhecimento das ações
promovidas no campo político, econômico e social”,
(MONTEIRO, 2009, p. 38). Mas, segundo Monteiro
(2009), movimentos sociais e organizações não gover-
namentais também podem exercer essa comunicação, já
que ela também objetiva o interesse público e o diálogo.
De acordo com Duarte (2009), os instrumentos de
comunicação pública são divididos em informações e
diálogo. As informações advindas da comunicação pú-
blica, ainda conforme o autor, podem ser de ordem: ins-
titucional, de gestão, de utilidade pública, de interesse
privado, mercadológica, de prestação de contas e dados
públicos. Assim, é importante desenvolver mídias que
reúnam ferramentas que possibilitem a publicização de
informações relevantes e que ainda hospedem um espa-
ço para interação e participação. Com o desenvolvimen-
to de tecnologias da informação houve a possibilidade
de construção de canais e sites que disponibilizam a par-
ticipação, ouvidoria, consulta pública, pesquisa e outros
sistemas dialógicos.
Nesse momento não será aprofundada a crítica ide-
ologia tecnicista, mas o artigo não tem a intenção, con-
forme Wolton (2010, p. 29), de “subordinar o progresso
da comunicação humana e social ao progresso das tec-
nologias”. O que será entendido é que as novas tecnolo-
gias contribuem para a democratização da comunicação
e pela realidade de meios que proporcionem processos

103 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


deliberativos. Habermas (2008) acredita que apesar da
mediação feita por meios de comunicação não ter todas
as características necessárias para o desenvolvimento da
deliberação, é inegável o papel importante da mídia nes-
se objetivo.
Como é possível perceber, a comunicação públi-
ca tem um papel relevante na democracia e, assim, na
vida social e política das pessoas nas esferas em que elas
fazem parte. A informação acessível e o diálogo são o
centro desse processo. Esta pesquisa se vale da metodo-
logia bibliográfica e pretende legitimar a Lei de Acesso
a Informação (Lei 12.527/11) como ferramenta formal
para a garantia e o fortalecimento de uma esfera pública
e, assim, da consubstanciação de uma comunicação pú-
blica como processo interativo e dialógico. Além disso,
é uma forma de consolidar o conceito de comunicação
pública e, assim, fortalecer essa área da pesquisa em co-
municação.
Por isso, é válido expor os conceitos de esfera pública
e do agir comunicativo discutidos pelo filósofo Haber-
mas, com a intenção de situar o contexto da comunica-
ção pública. Portanto, o item a seguir traz uma leitura
sobre esses temas, desde a década de 1960 até sua re-
formulação com o capitalismo latente. No item 3, a Lei
de Acesso à Informação brasileira (LAI) será descrita
criticamente com a tentativa de unir os conceitos haber-
masianos. Em seguida, as considerações finais sobre o
objetivo do artigo e a tentativa de observar desmembra-
mentos da atual pesquisa.

104 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Esfera pública e outros conceitos de Habermas
O conceito de esfera pública está em constante trans-
formação e aprimoramento, por causa de sua relevân-
cia temática, complexidade e frequência nas discus-
sões. Isso ocorre, principalmente, porque esfera pública
está estritamente relacionada a outras definições tam-
bém profundas, como público, opinião pública e socie-
dade civil2. De forma simplificada, a esfera pública atual
se caracteriza pela interação e comunicação constante
entre os atores sociais com temas privados que têm a re-
levância pública. Nesse sentido, então, a esfera pública
é capaz de interferir direta ou indiretamente nas deci-
sões políticas do Estado. Para discorrer sobre essa ideia,
o filósofo, sociólogo e neomarxista3 alemão Jürgen Ha-
bermas oferece uma vasta bibliografia sobre o tema. 
Na obra  A Mudança Estrutural da Esfera Pública,
da década de 1960, Habermas conceitua a esfera públi-
ca com um viés identificável do mundo ideal, propondo

2. O centro da sociedade civil é formado por “associações e organi-


zações livres, não estatais e não econômicas, as quais ancoram as
estruturas de comunicação da esfera pública nos componentes
sociais do mundo da vida”, (HABERMAS, 2003c, p. 99).
3. Ele faz parte da segunda fase da Escola De Frankfurt e é conside-
rado neomarxista por se opor ao positivismo presente nessa cor-
rente. Embora Habermas concorde com Horkheimer que o papel
da Teoria Crítica é examinar a ideologia. Ele também acha que a
Teoria Critica deve animar a luta política capaz de revolucionar o
existente, e nos libertar da opressão do poder do sistema.

105 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


ser um espaço em que os indivíduos desenvolvem a opi-
nião pública a partir de assuntos de interesse coletivo e
de maneira racional. Essa racionalidade, para o filósofo,
era compositora fundamental da lógica comunicativa e
argumentativa que fomentaria a opinião pública. Além
disso, despia os interesses particulares, levando em con-
ta apenas o relevante coletivo (HABERMAS, 2003a). Ou
seja, havia uma diferença consubstancial entre esfera
pública e privada.
A diferenciação entre  público e privado  foi funda-
mental para o desenvolvimento da esfera pública  ha-
bermasiana. O filósofo alemão, de acordo com Barros
(2008), partiu da polis da Grécia Antiga, como espaço
comunitário de partilha, valorização e transformação da
cultura, esporte e opiniões entre os cidadãos. Essa de-
finição é clara porque a ideia de público acontecia na
ágora, a praça principal das cidades. “Nesse ambiente,
a liberdade e a igualdade entre os integrantes eram os
pressupostos básicos, condições para a realização da po-
lítica em seu sentido mais amplo, de discussão e de dis-
puta” (BARROS, 2008. p.24). 
O debate, a interação física e a formação de uma opi-
nião pública caracterizam esse conceito de esfera que,
conforme Habermas (2003a), era literária e também de-
nominada de burguesa – porque floresceu a partir dessa
classe e por restringir a participação de pessoas intelec-
tuais e com posse – e tinha sua origem em instituições
cotidianas e sem estrutura formal, como cafés e salões.
Observava  nos países centrais da Europa (Inglaterra,
França e Alemanha) do século XVIII, a esfera pública

106 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


burguesa se originou como oposição dessa classe ao Es-
tado para requerer direitos, majoritariamente, referentes
à regulação do comércio e do trabalho social.

Seu esquema inicial compreendia a esfera pri-


vada composta pelo espaço íntimo da família e
pela sociedade civil burguesa, atrelada ao traba-
lho e a troca de mercadorias; a esfera pública,
que era composta por uma esfera pública polí-
tica e uma esfera pública literária da qual a pri-
meira se originava. Sendo assim, a esfera pública
política teria a função fundamental de, através
da opinião pública, intermediar as relações entre
o Estado e as necessidades da sociedade. (LO-
SEKANN, 2009, p. 40). 

As conclusões dos debates na esfera pública eram vol-


tadas a jornais e folhetins com a intenção de despertar o
interesse dos formadores de opiniões e interferir nas es-
colhas do poder público. Esse modelo sofreu várias críti-
cas e trinta anos depois, Habermas revisou o conceito. A
perspectiva histórica e mediada entre Estado e Socieda-
de Civil da esfera pública burguesa é desenvolvida com
elementos normativos e  socioteóricos. Esses elementos
adicionais apontam para uma sociedade seccionada em
Mundo da Vida e Mundo do Sistema e são intrínsecos ao
contexto capitalista avançado, que está relacionado com
o progresso técnico e a redução de tarefas prático-polí-
ticas (HABERMAS, 2003c). Assim, esse conceito refor-
mulado é direcionado para a fomentação de uma esfera
pública comunicativa que atue entre essas duas esferas.

107 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Na obra Direito e Democracia, de Habermas, a esfera pú-
blica é constituída amplamente pela comunicação, como
uma rede propícia para a disseminação de conteúdos e a
criação de opiniões e posições. “Nela os fluxos comunica-
cionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se conden-
sarem em opiniões públicas enfeixadas em temas”, (HA-
BERMAS, 2003b, p.92).  Mais  adiante, neste item,  será
visto que a linguagem é a base do agir comunicativo que
comporta a esfera pública. Uma linguagem comum pro-
move a “compreensibilidade geral da prática comunicati-
va cotidiana.” (HABERMAS, 2003c, p. 92) 
Na reconstrução do conceito de esfera pública, as mu-
danças são observadas como um todo, principalmente
pelas consequências do sistema capitalista avançado,
mas, principalmente, é alterada a forma de entender
a  espacialidade, sua estrutura social e a multiplicidade
de esferas públicas. 
A espacialidade compreendida na esfera pública
moderna é bastante visível na atualidade, por causa do
avanço das tecnologias da informação (TICs) que aces-
sam a rede mundial de computadores. Ou seja, para
discutir-se uma temática, não é necessário estabelecer
uma relação física com outros indivíduos. Muitas vezes,
o emissor e receptor de uma mensagem estão distantes,
mediados por tecnologias ou mídias. E essa possibilida-
de, portanto, não é recente, é comum desde que surgiu a
imprensa moderna, mas muito mais consolidada e acio-
nada nos dias atuais.
Habermas (2003b) entende a esfera pública mo-
derna como uma estrutura flexível, com limites não

108 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


i­dentificáveis, diferentemente da esfera pública burgue-
sa, em que os cafés, salões e comunidades de burgueses
eram os antros do desenvolvimento da opinião pública.
Desse modo, é possível observar a mudança estrutural
da esfera pública na participação de todos os indivíduos,
leigos ou entendidos, com posse ou sem terra. A opi-
nião, então, pode ser emitida de forma individual, sem
a necessidade do apoio da sociedade civil organizada ou
de classes sociais. Além disso, a esfera pública é com-
posta não somente pela esfera pública política e literá-
ria. Habermas (2003b e 2003c) inicia essa discussão com
outra sobre o público e o privado no viés político. De-
senvolvendo os temas já mencionados, a esfera da vida
privada é a ambiência de maior vivência dos indivíduos,
o seio familiar, em que se desenvolvem laços fraternos,
os quais se depreendem questões inócuas à sociedade e
encaminhadas para o debate público no sistema político
para  serem  resolvidas. Essas demandas são manejadas
para exercer pressão na esfera normativa política e ape-
nas será legitimada, caso os argumentos se mostrem de
relevância pública (HABERMAS, 2003c), possibilitando
a influência de decisão na esfera pública. Ou seja, há um
fluxo que vai do privado ao público.
Dentro de uma mesma temática, assim, é possível
encontrar grupos que se diferem, reafirmem ou se con-
tradigam, tornando a esfera pública composta por uma
multiplicidade de outras esferas. Essa composição tam-
bém é facilmente observável na mídia e, principalmente,
na Internet, em que site, blogues e sites de redes sociais
emergem diversas opiniões. Mas, nesse aspecto da nova

109 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


forma de observar a esfera pública, a Internet tem o po-
tencial de aproximar as múltiplas opiniões, como tam-
bém segmentar as esferas.
É conveniente mencionar que associações da socie-
dade civil admitem importância na sociedade, já que os
cidadãos buscam nelas perspectivas relevantes no âm-
bito político e particular. Assim, acabam influenciando
de alguma forma a opinião e a vontade da sociedade.
São nessas organizações que se institucionalizam os dis-
cursos da esfera privada, tornando-os relevantes à esfera
pública política. Habermas (2003a) aponta esse processo
livre, junto com a liberdade de imprensa, como a base da
comunicação pública. Porém, de acordo com Habermas
(2003a, p. 88), essas associações são componentes de
uma “esfera pública dominada pelos meios de comuni-
cação de massa, a qual, através de seus fluxos comunica-
cionais diferenciados e interligados, forma o verdadeiro
contexto periférico”.
A mudança conceitual feita por Habermas da esfera
pública possibilita o entendimento de que a esfera públi-
ca é regida e rege o discurso da comunicação pública. “A
sociedade civil pode, em certas circunstâncias, dotada
de uma lógica racional legítima, ter opiniões públicas
próprias, capazes de influenciar o complexo parlamen-
tar (e os tribunais), obrigando o sistema político a mo-
dificar o rumo do poder oficial”, (HABERMAS, 2003b,
p. 106). Por isso, a comunicação pública deve ser conce-
bida facultando o fluxo comunicacional de interação e
que agregue vários – ou todos, de forma mais ingênua –
setores da sociedade. Por isso, faz-se necessário ­explanar

110 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


sucintamente a Teoria do Agir Comunicativo, muito
presente na obra  Consciência moral e agir comunicati-
vo, Habermas (2003c), que é a base para o entendimento
da comunicação pública na ótica de um beneficiamento
do fluxo comunicacional entre sociedade e Estado. 
Na década de 1980, a teoria da ação comunicativa é
exposta por Habermas e é resultado de outra discussão
muito marcante nos estudos habermasianos: a raciona-
lidade, reconhecida como base para qualquer estudo e
ação humana social. Para Habermas (1987), a racionali-
dade é propulsora do processo comunicativo-discursivo
por meio da linguagem, que é vista como um código
exato.
Habermas se aproxima, então, da Teoria da Informação
ao entender a informação como um código, a ser apren-
dido e compreendido por todos (GLEICK, 2013). Além
disso, essa Teoria advinda dos trabalhos de Alan Turing e
Claude Shannon propõe o princípio da incerteza que ad-
mite que a informação é formada por informação e, por
isso, não é possível conhecer toda a informação. Além do
subjetivismo, os usuários de uma linguagem comum rece-
bem e emitem informações e opiniões políticas, mas são
atingidos pelas ações políticas. Ou seja, ao necessitarem
de um serviço, muito possivelmente há uma mudança de
discurso. “Os problemas tematizados na esfera pública po-
lítica transparecem inicialmente na pressão social exercida
pelo sofrimento que se reflete no espelho de experiências
pessoais de vida”, (HABERMAS, 2003c, p. 97).
A teoria da ação comunicativa se resume pela ideia
de que os  indivíduos agem de forma comunicativa e,

111 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


por trás desse agir, baseia-se a racionalidade, que pode
ser pensada de duas formas: razão comunicativa e ra-
zão  instrumental. Desses aspectos é  possível  perceber
diferentes formas de ação social na interação entre os in-
divíduos: a ação direcionada para a compreensão mútua
ou ação comunicativa (razão comunicativa) e a ação vol-
tada ao êxito individual ou ação estratégica (razão ins-
trumental). Essas razões se expressam, na ordem,  pelo
mundo da vida e pelo mundo sistêmico.
Neste momento, serão privilegiadas as noções de
Agir Comunicativo e Agir Estratégico, pois os conceitos
se aproximam com a práxis da comunicação pública, no
viés de processo que objetiva a aproximação entre Esta-
do, governo e sociedade. Nesse sentido, a comunicação
pública deve ser desenvolvida dialogicamente, preocu-
pada com o desenvolvimento do diálogo entre as esferas
e na elaboração de fluxos de comunicação que propor-
cionem resultados interessantes, típicos de uma demo-
cracia, e que solucionem temas de interesse público.
De acordo com Habermas (2003c), o agir comunica-
tivo é o discurso destinado à cognição recíproca entre
indivíduos que conhecem a linguagem e têm possibili-
dade de ação. A fala, em si, é vista como uma integra-
ção social. “Falo em agir comunicativo quando os atores
tratam de harmonizar internamente seus planos de ação
e de só perseguir suas respectivas metas sob condição
de um acordo existente ou a se negociar sobre a situa-
ção e as consequências esperadas” (HABERMAS, 2003c,
p. 164-165). Ou seja, é necessário um diálogo para
que, após um consenso, seja possível tomar decisões.

112 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


A ­dimensão comunicativa,  desse modo, é condiciona-
da por processos de entendimento mútuo que objetiva
um compromisso que depende da aprovação racional
derivada de um conteúdo articulado e dialogado. “O
acordo não pode ser imposto à outra parte, não pode
ser extorquido ao adversário por meio de manipulações:
o que manifestamente advém graças a uma intervenção
externa não pode ser tido na conta de um acordo. Este
assenta-se sempre em convicções comuns”, (HABER-
MAS, 2003c, p. 165).  
Numa  atitude orientada para o entendimento mú-
tuo, o falante diz de forma inteligível as pretensões: que
o enunciado formulado é verdadeiro ou, compreende
aquilo sobre o que se entende como algo em um mun-
do, como algo que se desprendeu do pano de fundo do
mundo da vida para se ressaltar em face dele, o que é
explicitamente sabido separa-se das certezas que per-
manecem implícitas, os conteúdos comunicados assu-
mem o caráter de um saber que vincula a um potencial
de razões, pretende validade e pode ser criticado, isto é,
contestado com base em razões (HABERMAS, 2003c).
O termo habermasiano mundo da vida é a ambiên-
cia de interações entre os indivíduos, sendo estruturada
pela cultura, sociedade e personalidade. As situações de
ação se contextualizam no mundo da vida, que fornece
condições para o desenvolvimento interpretativo indi-
vidual, anulando a dificuldade do entendimento mú-
tuo originado em cada situação de ação (HABERMAS,
2003c). Essa contextualização desenvolve a comunida-
de da fala ou também entendido como práticas sociais

113 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


cotidianas, suas regras e normas, pareando com a iden-
tidade cultural dos sujeitos participantes. O mundo da
vida se refere a uma esfera de intersubjetivismos, da vida
privada, em que naturalmente as pessoas vivem.
Em contrapartida, o mundo intersubjetivo da vida é
frequentemente ameaçado por uma razão instrumental
que, muitas vezes, debilita a criticidade dos indivíduos,
abalando, em consequência, os processos de entendi-
mento. Essa ação baseada na razão instrumental é deno-
minada por Habermas (2003c) como ação estratégica,
que também prejudica a integração da ação na esfera da
vida privada, visando desarticular o viés de problemati-
zação do modo de vida dentro da esfera.
O agir estratégico, diferentemente do agir comuni-
cativo, é orientado para estabelecer o sucesso individu-
al. Os interesses particulares são sustentados, usando
o discurso para persuadir os outros agentes a favor do
próprio benefício, por meio de ameaças, seduções e pro-
messas. “O resultado da ação depende também de outros
atores, cada um dos quais se orienta pela consecução de
seu próprio êxito, e só se comporta cooperativamente
à medida que este resultado se encaixa em seu cálculo
egocêntrico de utilidades” (HABERMAS, 1987, p. 127).
Para Rüdiger, “neste caso, os processos de coordena-
ção da ação são de fatos assumidos por meios sistêmicos,
como o poder e o dinheiro” (2011, p. 109). O consenso
é omitido, e os processos de interação são direcionados
para um viés estratégico, egocêntrico, em que o interes-
se particular é imposto, distorcendo a comunicação. Ou
seja, a comunicação é usada de forma instrumental e

114 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


estratégica, destinada a um determinado objetivo, que
não o consenso ou o fortalecimento de culturas. As-
sim, o mundo da vida passa a ser controlado por sis-
temas particulares, pertencentes ao mundo do sistema,
em uma esfera sistêmica (HABERMAS, 2003c).  Nesse
mundo  sistêmico,  as elites passam a  dominar  o Esta-
do, que se deixa influenciar e se desinteressar pelos pro-
blemas sociais das grandes massas.
Mundo Sistêmico ou Sistema é  a esfera em que se
procede  trocas sociais formais, conduzidas por regras,
leis e normas advindas da cognição do homem. É ca-
racterizado pelos aspectos das organizacionais e corpo-
rativos, econômicos, pela lógica de mercado, política e
burocracia, em uma ordem capitalista – e não propria-
mente racional – e emanada do poder político e admi-
nistrativo, promovendo o controle social ou, sob a ótica
da civilidade, a organização social.
Para tudo o que foi comentado, a globalização dita-
da pelo estágio avançado do capitalismo, o mundo do
sistema – composto pela ação estratégica e razão instru-
mental – tenta “colonizar do mundo da vida”. Assim, a
produção da vida material domina o processo da vida
social, pois “a prática comunicativa cotidiana é raciona-
lizada de forma unilateral num estilo de vida utilitário”
(1987, p. 325). Sendo assim, a esfera privada é guiada
pelas regras econômicas e a esfera pública, pelo sistema
administrativo.
O capitalismo sistêmico se embrenha na estrutura
social-ideológica, penetrando na esfera pública do Es-
tado e, perigosamente, nas práticas sociais do cotidiano

115 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


da vida privada, provocando manipulação e a influência
das consciências, gerando o individualismo exagerado.
Para Habermas (1987, p. 325), essas condições quebram
os caminhos feitos para a promoção do agir comuni-
cativo, manipulando a “lealdade das massas” e, assim,
facilitando as ações unilaterais de decisões políticas e
assuntos de interesse público e cultural por quem está
no poder.
Assim, o mundo sistêmico está acima do mundo
da vida, deixando de lado os interesses públicos pelos
individuais. Essa ideia se estende, muitas vezes, a con-
cepção de comunicação pública. Pela lógica capitalista,
esse tipo de comunicação tem o foco em ser estratégica,
assim como na maioria das empresas. Entretanto, a co-
municação pública deveria ser pensada para estabelecer
uma comunicação que gere informação, conhecimento
e discussões sobre assuntos de congregação plural. A
educação política e bem-estar social são temas amplos
e que deveriam ser a base para um bom diálogo entre
sociedade, Estado e governo. 
Neuman (1977) como estudiosa da demoscopia tam-
bém discute sobre a opinião pública e sua hipótese da Es-
piral do Silêncio é bem-vinda neste momento. Seu pen-
samento é iniciado pela ideia de controle social que parte
da conceituação de opinião pública. Ela usa o conceito de
Speier (1950), que concebe a opinião pública como opi-
niões de assuntos de interesse nacional expressadas livre
e publicamente por pessoas não pertencentes ao governo
que acreditam que a sua opinião influenciem nas ações,
no pessoal e na estrutura do governo. Mas, depois, esse

116 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


conceito perde a força de pressão e passa ter a conotação
de tribunal, em que os indivíduos que têm outras opini-
ões que não as dos líderes ou da maioria são forçados a
ficarem calados, para se manterem em sociedade.
Por isso, a comunicação pública deve pertencer a
uma esfera pública moderna e plural. A informação é o
substrato para que argumentos se arranjem e, em outra
perspectiva, promover a aceitação à diversidade de opi-
nião, escolhas e modos de vida. Como uma democracia
pode fomentar tal aspecto informativo? Dificilmente a
resposta se dará em um âmbito natural. No caso do Bra-
sil, por exemplo, marcado por uma cultura do segredo e
pela corrupção, a dificuldade da transparência é notória,
acarretando em desconfiança e descrédito político dos
cidadãos. Dessa forma, como em muitos outros países,
foi regulamentado um direito já presente na Constitui-
ção de 1988 e em outras leis, o direito de acesso à in-
formação. Em 2011, foi sancionada a Lei 12.527/11, co-
nhecida por Lei de Acesso à Informação Pública ou LAI.
Sendo assim é válido descrevê-la e mostrar os principais
aspectos para que seja possível concluir e diagnosticar a
vantagem dessa lei no fortalecimento de uma esfera pú-
blica política e de uma comunicação pública dialógica e
transparente no mundo da vida e sistêmico.

Aspectos relevantes da lei de acesso à informação


A comunicação pública digital, dentro do agir co-
municativo, tem a potencialidade de desenvolver ou

117 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


c­ onsolidar a democracia deliberativa, em que os cida-
dãos dispõem de total possibilidade de participar das
decisões. Os sites governamentais de secretarias e outros
órgãos específicos, conforme Rothberg (2014), têm dois
propósitos: disseminar informações sobre o desempe-
nho de políticas públicas para que a sociedade exerça
controle e fiscalização; e tornar públicas “as estratégias
que devem orientar a mobilização dos diversos atores
sociais em torno de objetivos comuns, decididos em es-
paços de interação e negociação mantidos por conselhos
de políticas, secretarias de governo, órgãos gestores etc.”,
(p. 8). A esfera pública política é composta por Estado,
governo e cidadãos promovendo debates e discussões
proveitosas. Entende-se, portanto, que a informação é o
substrato para uma comunicação pública que objetiva a
interação com a sociedade.
A informação pode ser analisada como base do po-
der. Permitir ou restringir o acesso a dados organizados
que dizem respeito ao interesse público é uma questão
há muito tempo discutida em vários âmbitos discipli-
nares e temáticos. Na presente pesquisa, essa discussão
orbitará em termos sociais e políticos com a intenção de
aclarar a importância da consolidação de leis de acesso à
informação em prol de uma sociedade mais justa, trans-
parente e participativa.
Organizações governamentais ou privadas geram
impactos de várias ordens na sociedade e, desse modo,
deveriam disponibilizar dados em que influenciem dire-
tamente na vida dos cidadãos e comunidades. A partir da
definição de informação pública que apresenta o público

118 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


como oposto ao privado é possível pensar essa antinomia
desde a Roma Antiga, quando havia a divisão de coisas
divinas e coisas humanas. As divinas se referiam às ques-
tões de ordem religiosa, já as humanas eram segmentadas
em: bens particulares, coisas comuns e coisas universais.

As coisas comuns eram destinadas ao uso indis-


criminado de qualquer pessoa; as coisas públi-
cas eram as que pertenciam ao povo romano,
embora pudessem estar facultadas ao uso de
todos, como os portos, os rios e os caminhos
públicos; as coisas ‘universitatum’ pertenciam às
cidades e compreendiam duas classes: a das que
tinham natureza patrimonial, como dinheiro, os
bosques, as pastagens, as vinhas e as casas; e a
das atribuídas pelo poder público ao uso dos ha-
bitantes, como os teatros, os estádios etc. (MA-
SAGÃO, 1977, p. 127-8).

É possível imaginar que durante a Idade Média, as


concepções de público passaram para a dominação do
monarca. Conforme Masagão (1977), doutrinas jurídi-
cas surgiram e prediziam que as coisas de interesse co-
mum eram de dominação do rei e que o cidadão po-
deria usufruir, sem privilégios e com igualdade. Nesse
momento histórico, o monarca regulava e fiscalizava
o que era comum. Essa concepção perdurou até a Era
Moderna, quando dominou a ideia de república como
um sistema em que o poder é público e o segredo de
Estado se torna uma exceção amparada por leis. Diante
desse quadro, a informação pública se torna aquela que

119 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


é divulgada, publicizada, se assemelhando ao contexto
contemporâneo.
De acordo com Michener (2011, p. 7): “Quase me-
tade das leis de acesso do mundo foram promulgadas
nos últimos dez anos e apenas uma lei foi formalizada
antes de 1950 (Suécia, em 1766)”. E foi no século XX que
o assunto passou para a esfera internacional. Organi-
zações e grupos de países passaram a discutir sobre o
tema, principalmente com o viés de direitos humanos.
De acordo com Mendel (2008), isso se deve às transições
políticas para a democracia desde o início de 1990; os
avanços tecnológicos que mudaram as relações sociais e
a informação; e a forma como a informação é usada. “A
tecnologia da informação melhorou, em termos gerais,
a capacidade do cidadão comum de controlar a corrup-
ção, de cobrar dos líderes e de contribuir para os pro-
cessos decisórios” (MENDEL, 2008, p.4). O autor apon-
ta para esse fato o aumento da demanda pelo acesso à
informação. Entretanto, os aparatos tecnológicos estão
economicamente disponíveis para um grupo restrito de
cidadãos, marginalizando muitas classes sociais que não
têm acesso.
Na década de 1940, a Organização das Nações Uni-
das (ONU) reconheceu o direito à informação como um
direito humano (Carta das Nações Unidas), reforçando
a ideia da liberdade de informação, com a previsão de
solicitação nas organizações públicas internacionais. Em
1948, com a Declaração dos Direitos Humanos, esse re-
conhecimento foi reforçado, e está presente no artigo 19:
“Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e

120 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interfe-
rência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir
informações e ideias por quaisquer meios e independen-
temente de fronteiras”.
O direito à informação, no Brasil, é garantido pela
constituição de 1988, mas, até 2011, não havia uma legis-
lação reguladora. “XXXIII - todos têm direito a receber
dos órgãos públicos informações de seu interesse parti-
cular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão presta-
das no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressal-
vadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança
da sociedade e do Estado” (artigo 5º da Constituição Fe-
deral). Essa regulação é preponderante haja vista que o
país é marcado pela cultura do segredo, burocracia e por
uma História de ditadura militar, e foi estimulada por
pressões internacionais, já que o Brasil foi a 89ª nação
a sancionar uma lei. Desse modo, a Lei 12.527/11, tam-
bém conhecida como Lei de Acesso a Informação Públi-
ca ou LAI, é um reforço para que a comunicação pública
brasileira se situe nos conceitos de esfera pública e agir
comunicativo habermasiano. Por isso, neste momento,
será descrito criticamente os pontos mais relevantes da
LAI no contexto discutido até aqui.
Em novembro de 2011, a presidente da República
Dilma Rousseff sancionou a LAI, que entrou em vigor
no dia 16 de maio de 2012. Essa lei regulamenta o acesso
dos cidadãos às informações públicas de todos os órgãos
do governo, aplicáveis aos três Poderes da União, Esta-
dos, Municípios e Distrito Federal. A informação nos
parâmetros da lei pode ser entendida, de acordo com

121 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Batista (2010, p. 40), como “um bem público, tangível
ou intangível, como forma de expressão gráfica, sonora
e/ou iconográfica, que consiste num patrimônio cultu-
ral de uso comum da sociedade e de propriedades das
entidades/instituições públicas”. Essa informação pode
ser originada da administração pública, como dados
das políticas públicas, ou estar sob domínio dela, sen-
do classificadas em ultrassecretas, secretas e reservadas
ou ainda como dados pessoais. As informações restritas
são advindas da ideia de Habermas da esfera privada,
entretanto, diferentemente, assuntos da vida privada,
atualmente, não devem ser revelados para um debate e
possível solução do problema. Além disso, em geral, as
ultrassecretas são classificadas dessa forma, principal-
mente, quando há uma ameaça a segurança de grupos
específicos ou de toda a nação. A LAI prevê prazos para
que a comissão criada especificamente para isso revise
classificação das informações.
A Unesco (MENDEL, 2008) divulgou uma pesquisa
comparativa entre os países que têm a regulação e pro-
pôs nove princípios:

1. Máxima divulgação: a legislação deve ser fundada


no princípio de abertura máxima das informações
públicas. As restrições devem estar contidas na lei
e baseadas em segurança e privacidade;
2. Obrigação de publicar: além da demanda, os ór-
gãos públicos devem publicar informações volun-
tariamente. Esses registros incluem temas como

122 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


informação sobre a maneira em que o organismo
público opera (custos, objetivos, prestação de con-
tas, normas, obras em andamento, entre outros),
ações diretas (requerimentos e reclamações) que
o cidadão possa fazer sobre o organismo público;
orientações de eventos para o cidadão poder par-
ticipar e atuar; os tipos de documentos em posse
do governo que tenham caráter sigiloso; e decisões
que afetem os cidadãos de alguma forma.
3. Promoção de um Governo Aberto: é composto
por dois aspectos: divulgar os direitos dos cida-
dãos e promover uma cultura de abertura. O pri-
meiro refere-se ao cerne do direito à informação,
no sentido de promover outros direitos, como o
direito à educação, à saúde. Já o segundo, é a atu-
ação do Estado em estimular os cidadãos e fun-
cionários a receber e ofertar, respectivamente, as
informações necessárias.
4. Limitação da abrangência das exceções: na lei
deve estar claramente especificada quais são as
exceções, medidas na equação interesse público
e danos sociais. Tendo ciência de que o interesse
público se sobrepõe ao dano.
5. Procedimentos facilitadores: as informações soli-
citadas devem ser retornadas ao pedinte de forma
rápida, com imparcialidade e compreensível, ou
seja, atender as necessidades de analfabetos e de
pessoas que não entendem a língua original do

123 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


documento. As recusas devem ser revisadas em
três níveis, de forma clara: no próprio órgão de
solicitação, em um órgão administrativo indepen-
dente e aos tribunais. “De forma geral, os órgãos
públicos devem designar funcionários para pro-
cessar solicitações de informação e garantir que
os termos da lei sejam cumpridos”, (CANELA e
NASCIMENTO, 2009, p. 23).
6. Acesso econômico possível: não deve ser empeci-
lho para a garantia de solicitações de informações.
Ou seja, a disponibilização de informações em im-
presso, áudio, vídeo ou outro formato não deve ter
custo alto.
7. Divulgação de reuniões abertas: os cidadãos têm o
direito de saber o que os seus representantes estão
fazendo, por isso é importante constar nas legisla-
ções um prazo mínimo de divulgação de eventos
de interesse público.
8. Princípio de divulgação tem prioridade, estabele-
cendo que “as leis que não estejam de acordo com
o princípio da máxima divulgação devem ser revi-
sadas ou revogadas”, (MENDEL, 2008, p. 41);
9. Proteção aos denunciantes que revelem publica-
mente irregularidades e ilicitudes governamentais.

Conforme Rothberg, Napolitano e Resende (2013),


a LAI atende o primeiro, quarto e oitavo princípios
apontados por Mendel (2009). Em relação ao primeiro,

124 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


­ áxima divulgação, os pesquisadores pontuam que o
m
Brasil “se equipara às melhores práticas internacionais,
que não fazem distinção entre informação e sua presen-
ça em documentos específicos, e não permitem o ques-
tionamento do motivo do solicitante, que, no entanto,
deve ser identificado”, (ROTHBERG, NAPOLITANO,
RESENDE, 2013, p. 114).
A lei 12.527 consubstancia dois tipos de transpa-
rências: a ativa e a passiva. Na ativa, os órgãos públicos
governamentais são obrigados a manter atualizadas in-
formações, principalmente em seus sites (artigo 8 da
LAI), que sejam claras, objetivas, acessíveis, possível
de reproduzir e, principalmente, verídicas. Além disso,
os endereços eletrônicos devem disponibilizar dados
como: “endereços e telefones das unidades e horários de
atendimento ao público, dados gerais para acompanha-
mento de programas, ações, projetos e obras; respostas
e perguntas mais frequentes da sociedade” (CGU, 2012,
p. 15). Na transparência passiva, os cidadãos podem fa-
zer solicitações de informações específicas. Para isso, foi
criado o Serviço de Informação ao Cidadão (SIC), uma
plataforma digital, disponível na Internet, que serve
para fazer esses requerimentos. Desse modo, a LAI pre-
vê, além das já mencionadas na ativa, um prazo para o
retorno dessas informações, gratuidade no fornecimen-
to e a não necessidade de justificativa para um pedido.
Na LAI, o órgão responsável pela fiscalização da le-
gislação é a Controladoria-Geral da União (CGU). A
Controladoria foi criada em 2001, ligada à estrutura da
Presidência da República, cuja competência – definida

125 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


pela Lei 10.683/2003 – é prevenir e combater a corrup-
ção; fomentar auditorias públicas; fiscalizar como cor-
regedor; estar atento às ouvidorias e o desenvolvimen-
to de transparência da gestão. É um órgão estritamente
ligado ao bom funcionamento do acesso a informação.
“No entanto, a CGU não é, até o momento, um órgão
com competências e servidores especializados na gestão
da informação, como ocorre em agências de informação
especializadas” (JARDIM, 2012, p. 14). Além disso, é um
órgão vinculado ao Poder Executivo, o que demonstra
a tendência de um monitoramento menos rígido a esse
poder. Assim como os direitos humanos e constitucio-
nais, a Lei de Acesso à Informação deveria ser fiscalizada
pelo Poder Judiciário, o que asseguraria com mais efeti-
vidade o direito em todos os níveis de poder.
Batista (2012) acredita que a democracia só existe
com a participação dos cidadãos. “E sem acesso e apro-
priação social da informação pública não existe partici-
pação pública” (p. 208). Entretanto, vale destacar que a
informação é um dispositivo da comunicação pública,
que incentiva diálogos, troca de experiência e discussões
para a construção de uma sociedade mais justa social-
mente. A informação é baseada em um código linguísti-
co e quando usada dentro de um contexto para benefício
de interesses públicos, se torna a base para a edificação
de uma esfera pública abrangente.
A transparência é uma meta para dissolver a corrup-
ção, um problema que assola o Brasil, prejudicando o
crédito político e investimentos internacionais. Prestar
contas detalhadas e periódicas à população p­ roporciona

126 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


a abertura de poder, o diálogo com a sociedade e con-
tribui para uma sociedade mais engajada sociopoli-
ticamente. Nesse âmbito, a transparência advinda da
liberdade de informação ajuda a divulgar políticas so-
ciais, podendo atender melhor as pessoas ignoradas e
alvos desses programas, não as deixando vulneráveis as
trocas de voto e como vítimas do coronelismo (MAR-
TINS, 2011). Conforme Angélico e Teixeira (2012), esse
contexto de abertura de informação reduz a assimetria
informacional, caracterizando uma “situação comu-
nicacional em que os interlocutores relacionam-se no
mesmo nível” (p. 9).
A Lei de Acesso à Informação (12.527/11), apesar de
ser um mecanismo formal, característico do mundo sis-
têmico, reflete no mundo da vida e proporciona substra-
tos para promoção do agir comunicativo. A LAI oferece
o alicerce para a sociedade componente da esfera polí-
tica pressionar a esfera política formal a agir e exercer a
representatividade da democracia brasileira com o po-
der e a honestidade que a sociedade ofertou. Nesse sen-
tido, se verá indivíduos participativos e engajados com
problemas cotidianos, como a discriminação da mulher
no mercado de trabalho.

Considerações Finais
Após a breve explanação sobre alguns conceitos,
observamos que a comunicação pública deve ser vista
como um processo que também dispõe de mecanismos

127 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


para o incentivo de ações que gerem atitudes cidadãs,
a informação e o diálogo. Ela não deve ser fechada de
forma funcionalista, mecanicista ou positivista. Em sua
evolução conceitual, Habermas demonstra que a co-
municação é intrínseca à sociedade humana, de forma
subjetiva e também racionalizada e institucionalizada.
Diante do leque de princípios atribuídos à Comunicação
Pública, observa-se na dimensão comunicativa da ação
social de Habermas (2003c) a união para essa pluralida-
de de significados.
A comunicação pública está presente na esfera públi-
ca e visa à compreensão generalizada entre Estado, Go-
verno e Sociedade. O entendimento mútuo é qualificado
por Habermas (2003c), como ação social comunicativa
que, a partir do debate, pretende chegar a um consen-
so que ajuda a resolver um problema de interesse pú-
blico. Para esse entendimento mútuo é necessário haver
informação. No contexto cultural político brasileiro, a
omissão de dados é recorrente na esfera pública, prin-
cipalmente no que diz respeito à prestação de contas.
Por isso, a Lei de Acesso à Informação – apesar de fa-
zer parte do mundo sistêmico – é uma regulamentação
importante para o fortalecimento e ampliação de uma
esfera pública e privada. Principalmente, porque a LAI
também prevê um espaço público na Internet. As mí-
dias presentes nessa esfera têm a capacidade interativa e
de integrar pessoas de culturas diferentes para debater e
defender um mesmo assunto.
Assim, a comunicação pública deve ser enraizada
como fonte de informação, diálogo e interatividade com

128 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


o cidadão. O papel fiscalizador do cidadão em busca de
uma prestação de serviço e administração pública ideal
é importante, mas a comunicação pública tem o papel
adicional de publicizar esses serviços e outras ações,
como a LAI que padece de falta de divulgação, para o
conhecimento público.
Uma comunicação pública baseada no agir comuni-
cativo corrobora com a relação dialógica, o entendimen-
to mútuo, a independência opinativa dos indivíduos e o
conhecimento acionado no desenvolvimento de uma so-
ciedade mais plural e engajada. Rüdiger (2011, p. 99-100)
apreende que “a ação comunicativa baseia-se em um
processo cooperativo de interpretação, no qual os parti-
cipantes se referem simultaneamente a ações no mundo
objetivo, no mundo social e no mundo subjetivo”.
A interação advinda da comunicação pública está mais
amparada na esfera pública política. Entretanto, com a in-
serção e democratização do acesso à Internet, abre possi-
bilidades de o público se tornar ainda mais dissolvido ao
privado. O fluxo dialógico, que parte do privado em dire-
ção ao público, terá um sentido reverso. Essa concepção
é uma lógica plausível para o envolvimento dos cidadãos
na causa pública. A Lei de Acesso à Informação é uma
ferramenta que tem o potencial consolidador para que
assuntos de ordem pública sejam levados ao diálogo e a
discussão entre família, colegas e amigos. Temas que re-
fletem preconceitos e discriminação podem ser descarac-
terizados com esse fluxo desconstruído e de mão dupla.
Nesse contexto estruturado no presente artigo, como
a comunicação pública digital pode contribuir para uma

129 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


sociedade mais justa e nivelada socialmente e politica-
mente na imagem e pessoa da mulher? A esfera pública
tem poder de influenciar decisões e programas políticos?
Como a Internet é capaz de provocar essas mudanças?
Questões que orbitam ao redor e dentro dos conceitos
habermasianos e que pedem um estudo empírico, base-
ado em análise de informações dos portais eletrônicos, e
a base conceitual exposta aqui, podem contribuir para a
edificação de uma sociedade plural.

Referências
ANGÉLICO, F.; TEIXEIRA, M. A. C. Acesso à informa-
ção e ação comunicativa: novo trunfo para a gestão
social. In: Desenvolvimento em Questão, editora Unijuí,
ano 10, no. 21, setembro e dezembro de 2012. Disponível
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136 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Capítulo 4
A indústria cultural no contexto da
sociedade do conhecimento

Camila Silva Ferreira1

Introdução
De acordo com Temer e Nery (2009), o paradigma
crítico tem relação direta com as reflexões culturais
promovidas pela filosofia clássica alemã, além disso,
aproxima as pesquisas sociológicas às reflexões sobre te-
mas como a cultura, a ética, a psicologia e a psicanálise
de Freud. São estudados neste paradigma: a Escola de
Frankfurt, a Espiral do Silêncio e a Teoria da Ação Co-
municativa de Habermas.
As autoras destacam alguns conceitos como sendo os
principais neste paradigma, são eles: marxismo, psica-
nálise, mercadoria, ideologia, público passivo, indústria

1. Mestranda em Comunicação Midiática pela Unesp/Bauru.


­E-mail: camilaferreira.rp@gmail.com

137
cultural, manipulação, espiral do silêncio, capitalismo,
opinião, crítica, contexto histórico, comunicação e esfe-
ra pública. Ainda segundo as autoras, os mais importan-
tes são os que refletem a questão da ideologia de quem
detém os meios de comunicação, ou se utilizam deles
para o seu próprio benefício. Além disso, aponta-se o
uso intencional da manipulação, a questão dos concei-
tos marxistas (alienação, capital, força de trabalho), a
comunicação e a esfera pública.
O conceito de “Indústria Cultural” foi exposto pela
primeira vez em 1947, por Theodor W. Adorno e Max
Horkheimer, nos fragmentos filosóficos reunidos sob o
título de “Dialética do Esclarecimento”, termo que viria
contrapor o conceito “cultura de massa”, por tratar de
um fenômeno distinto quanto a sua natureza. Essa opo-
sição conceitual remete ao fato da cultura de massa se
ater a uma cultura espontaneamente advinda da própria
massa, da forma contemporânea chamada de arte popu-
lar. Assim, é importante destacar que enquanto a cultu-
ra popular teria um caráter mais espontâneo e nasceria
internamente, numa dada comunidade, a indústria cul-
tural constitui uma manifestação maquinal produzida
exteriormente – de acordo com as vias do capital.
As críticas feitas pelos filósofos de Frankfurt sobre a
indústria cultural têm a intenção de mostrar, na atual so-
ciedade, como a cultura transformou-se em uma grande
força capaz de transmutar a arte em qualquer mercadoria.
De acordo com Adorno, a Indústria Cultural se assemelha
a uma indústria quando destaca a estandardização de de-
terminado objeto e quando diz respeito à ­racionalização

138 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


das técnicas de distribuição. Entretanto, ela não se reduz
ao termo indústria, pois não se refere apenas ao processo
de produção. Cada objeto carrega em si a marca de sua in-
dividualidade (ADORNO, 1986, p. 94). E se tal objeto, ao
portar algum traço característico que o faz distinguir-se
dos demais, permite ao sujeito alguma forma de interven-
ção na sociedade, fazendo crer que a hegemonia da in-
dústria sobre a cultura não seja tão determinante, a ilusão
se esfacela quando as particularidades enrustidas nada
mais são do que mercadorias padronizadas que podem
ser trocadas e que cobram suas dívidas na consolidação
da sua individualidade danificada.
De acordo com Lemos e Fuks (1999 e 2003), a so-
ciedade contemporânea, conhecida como sociedade do
conhecimento, é compreendida como aquela na qual o
conhecimento é o principal fator estratégico de riqueza
e poder, tanto para as organizações quanto para os pa-
íses. Nessa nova sociedade, a inovação tecnológica ou
novo conhecimento, passa a ser um fator importante
para a produtividade e para o desenvolvimento econô-
mico dos países.
É constatado também que entre inovação e pesquisa
científica, existe uma relação positiva. Elementos como
criatividade, sustentam a inovação, mas, além disso, é
necessária uma base de conhecimento prévio principal-
mente tácito, e da pesquisa científica, que vai atuar como
um catalisador para ampliar os horizontes e quebrar pa-
radigmas estabelecidos.
Assim, este artigo pretende apresentar uma com-
preensão da lógica da Indústria Cultural, proposta por

139 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Adorno e Horkheimer, no contexto da sociedade atual,
também chamada “sociedade do conhecimento”.
Para tanto, a proposta é seguir um referencial teórico
crítico que consiga dar suporte para as reflexões sobre a
problemática em questão: como a indústria cultural se
posiciona no cenário atual de grandes transformações
tecnológicas, onde o acesso à informação é cada vez
mais facilitado pelos meios de comunicação?
Assim, optou-se por seguir as diretrizes do Prof. An-
tonio Hohlfeldt, que, ao buscar os estudos à Teoria da
Comunicação, teve como base a Escola de Frankfurt,
com uma visão crítica e de esquerda sobre os meios de
comunicação como fortes influenciadores das pessoas.
Com o decorrer do tempo, após mais vinte anos, há uma
mudança: o professor passa a refletir sobre o direito de
escolha dos receptores sobre os emissores, tendo uma
visão sobre os estudos de recepção e audiência.
Além disso, Hohlfeldt levanta uma reflexão sobre as
teorias da comunicação em um texto no livro “O campo
da Comunicação no Brasil”, organizado pelo Prof. José
Marques de Melo (2008). Em seu texto, Hohlfeldt indi-
ca uma obra como sendo o mais novo livro sobre o as-
sunto publicado por Ana Carolina Rocha Pessoa Temer
e Vanda Cunha Albieri Nery (2009). De acordo com o
professor, a obra faz uma leitura abrangente das diversas
teorias da comunicação dentro de paradigmas definidos
pelas autoras (HOLFELDT, 2008, p. 31). Diante dessas
considerações, além de Hohlfeldt, optou-se por escolher
essa obra também como uma referência. Temer e Nery
(2009) são atuais e inovadoras na maneira de agrupar as

140 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


teorias em determinados paradigmas. Dentre os outros
autores do referencial também estão: Schumpeter, Mat-
telart e Lipovetsky.

Panorama do paradigma crítico da comunicação


De maneira geral, o paradigma crítico visa explicar
os acontecimentos com base em situações histórico-so-
ciais específicas, de modo a estabelecer relações entre os
fenômenos e as forças sociais que lhes sirvam de mola
propulsora.
A questão da ideologia é um dos temas cruciais des-
se paradigma, particularmente no que diz respeito à in-
terpretação dos processos comunicacionais. De acordo
com Coelho:

Adorno e Horkheimer situam a ideologia com


base nas suas articulações com a dimensão eco-
nômica. O ideológico e o econômico não são
realidades autônomas. Só se pode compreender
a ideologia a partir de uma investigação da di-
mensão econômica. O pleno desenvolvimento
do capitalismo monopolista, com a existência
do consumo de massas e da mercantilização
da cultura, mudou a configuração da ideologia,
mas não gerou o seu fim, e sim o predomínio da
publicidade como o seu principal componente.
(COELHO, 2008, p.79)

141 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Assim, tem-se que, existe uma articulação entre a di-
mensão política com a ideológica e econômica. Coelho
(2008) afirma que, para Adorno e Horkheimer, assim
como para Marcuse, o triunfo do pensamento operacio-
nal, que aconteceu com a plena disseminação da lógica
mercantil por intermédio da linguagem publicitária da
indústria cultural, é a forma da dominação no capita-
lismo monopolista completamente desenvolvido. É a
dimensão dialética do esclarecimento. De acordo com
os filósofos de Frankfurt, a razão burguesa perdeu a sua
dimensão crítico-transformadora, reduzindo-se a uma
dimensão instrumental e mantenedora da exploração
econômica.
O paradigma crítico confirma, então, sua tendência
para a crítica dialética da economia política, tendo como
ponto de partida a análise do sistema de economia de
mercado, baseando-se em relações produtivas já não
adequadas à situação atual.
Temer e Nery (2009) apontam que são estudados
dentro do paradigma crítico: a Escola de Frankfurt, a
Espiral do Silêncio e a Teoria da Ação Comunicativa de
Habermas.

A indústria cultural sob a ótica de reflexões


­contemporâneas
Indústria cultural é o termo referido por Adorno,
Horkheimer, Marcuse e outros, para tratar da ­“conversão

142 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


da cultura em mercadoria, ao processo de subordina-
ção da consciência à racionalidade capitalista ocorrido
nas primeiras décadas do século XX” (RÜDIGER, 2001,
p.138). É uma expressão que designa uma prática social,
pois por meio dessa prática percebe-se a possibilidade de
consumo no mercado da produção cultural e intelectual.
Segundo Rüdiger (2001), o fenômeno da indústria
cultural, no princípio, consiste na produção ou adapta-
ção de obras de arte de acordo com padrões de gostos
pré-estabelecidos por já terem sido bem-sucedidos e,
a partir disso, desenvolver as técnicas necessárias para
colocá-las no mercado.
Numa outra fase, mais atual, senão contemporânea,
acontece a conversão da prática da indústria cultural em
um sistema que “tudo abarca e em todos os setores se
harmonizam reciprocamente” (RÜDIGER, 2001, p.138).
Isso porque a produção cultural começa a passar pelo
filtro da mídia enquanto máquina de publicidade, devi-
do ao aparecimento de inúmeras empresas multimídia
que conferem cada vez mais poder às tecnologias de re-
produção e difusão de bens culturais.

O problema não é apenas o fato de o conheci-


mento, a literatura e a arte, senão os próprios
seres humanos, se tornarem produtos de consu-
mo. No limite, acontece uma fusão entre esses
conceitos. As obras de arte e as próprias ideias,
senão as pessoas, são criadas, negociadas, e con-
sumidas como bens cada vez mais descartáveis,
ao mesmo tempo em que estes são produzidos
e vendidos levando em conta princípios de

143 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


c­ onstrução e difusão estética e intelectual que,
antes, eram reservados apenas às artes, às pes-
soas e ao pensamento. (RÜDIGER, 2001, p. 139)

Os pensadores de Frankfurt, com questões ampla-


mente ideológicas, afirmam que a prática da indústria
cultural não tem a intenção de mudar as pessoas neces-
sariamente. O que acontece é que ela se desenvolve a
partir de mecanismos de oferta e procura, explorando
predisposições individuais que são criadas pelo proces-
so histórico global da sociedade capitalista.
O que acontece, porém, é que essas ideias passaram
a ser vistas como produto de um enfoque bastante pes-
simista sobre o homem atual. Por isso, a partir do dese-
jo de mudar a situação vigente, verifica-se um processo
de reavaliação, baseado em estudos mais profundos, da
teoria crítica. Isso significa uma reconfiguração do pa-
radigma de acordo com ideias mais críticas ainda, que
percebem as teses dos filósofos de Frankfurt muito mais
valiosas para os dias atuais do que na época em que fo-
ram formuladas, porém existe essa importância em re-
visá-las e atualizá-las em vários aspectos. Diante disso,
Rüdiger (2001) afirma que “o entendimento simplista de
suas ideias como expressão de um pensamento apoca-
líptico vai passando”.
Assim, ao refletirmos sobre as questões amplamente
ideológicas discutidas pelos frankfurtianos, devemos nos
ater que as linhas gerais de suas críticas datam de 1940,
isto é, durante a Segunda Guerra Mundial. De lá para
cá, houve mudanças geopolíticas muito ­importantes.

144 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


­ rimeiro o Pós-Guerra, depois a Guerra Fria, em segui-
P
da a queda do muro de Berlim, e mais recentemente o
advento da globalização.
Por outro lado, houve também uma inimaginável
evolução tecnológica nos meios de produção e difusão
audiovisual. Vivemos a ruptura da passagem do cinema
preto e branco e mudo para o colorido e sonoro, a pas-
sagem do cinema para a televisão, o advento do home
vídeo, fazendo com que a interatividade se tornasse cada
vez mais importante. Esses dispositivos tecnológicos
modificaram a relação da indústria cultural com o seu
público.
Seguindo essa linha de raciocínio, devemos dialogar
com a essência do conceito de indústria cultural para que
seja possível uma compreensão da sua lógica no contex-
to da sociedade atual. Essa “essência” parte do princípio
de que a indústria cultural exerce uma apropriação de
meios tecnológicos para garantir um tipo específico de
dominação política e econômica que coexista com de-
mocracias liberais. E isso, apesar das mudanças tecnoló-
gicas e geopolíticas que aconteceram, não mudou de lá
para cá. Todas as mudanças foram sendo capitalizadas
como mais um elemento para a apropriação das deman-
das do público.
Assim, mesmo que a indústria cultural tenha se for-
talecido com o advento das tecnologias, já que a internet
se configurou como um meio de tornar contínua essa
pesquisa da indústria cultural em relação à demanda de
seu público, é de suma importância uma reflexão sobre
as mudanças na sociedade.

145 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Tendo em vista o contexto em transformação e a ne-
cessidade de compreender e investigar as mudanças que
se apresentam, cabe refletir sobre inovação e sociedade
do conhecimento.

Inovação e sociedade do conhecimento


A inovação pode ser conceituada de várias maneiras
e sob a ótica de diversos autores. Schumpeter (1983, p.
112), considera a inovação como o impulso fundamental
que inicia e mantém o movimento da máquina capitalis-
ta, do qual decorrem “novos bens de consumo, novos
métodos de produção ou transporte, novos mercados,
novas formas de organização industrial que a empresa
capitalista cria”. Segundo o autor, a inovação tem o in-
tuito de provocar transformações a partir das mudanças.
Isso acontece desde a interação entre os atores sociais
até os processos próprios da estrutura organizacional, e
vai além, atingindo a esfera dos ambientes econômicos,
políticos e sociais.
Schumpeter (1983), denomina “Destruição Criativa”
o processo no qual há uma busca contínua pela criação
de algo novo que destrói velhas regras, estabelecendo
novas, característica que o autor considera como fato es-
sencial acerca do capitalismo.
Por isso, a inovação adquire uma enorme importân-
cia à medida que se configura como processo criador de
valor, pois passa a ser uma vantagem competitiva, sendo

146 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


que na atualidade existem melhores condições para ino-
var devido às novas formas de disseminação de conheci-
mento proporcionadas pelas novas tecnologias.
Assim, o termo “sociedade do conhecimento” tem
sido, nos últimos anos, empregado em diversos contex-
tos e setores da sociedade para indicar o progresso in-
telectual e a sua rápida disseminação, bem como uma
pretensa e aparente universalização do conhecimento na
sociedade.
A sociedade de conhecimento é então posterior à so-
ciedade industrial moderna, na qual matérias primas e o
capital eram considerados como os principais fatores de
produção. Essa nova sociedade é impulsionada também
por contínuas mudanças, algumas tecnológicas como
a Internet e a digitalização, e outras econômico-sociais
como a globalização.
Segundo Fuks (2003), existe um conjunto de fatos so-
ciais que se relaciona com a sociedade do conhecimento.
Entre estes fatos estão: a ampliação da exclusão, a en-
trada da mulher no mundo do trabalho e o enfraqueci-
mento do Estado pela globalização. Fuks apresenta uma
abordagem mais otimista em relação aos fluxos de co-
municação e informação. De acordo com este autor, na
sociedade do conhecimento, a informação sobre ciência
e tecnologia é transmitida imediatamente produzindo
uma democratização do conhecimento. Já Mattelart
(2002, p.74) considera que “monopólios de informação”
são produzidos pelas desigualdades na velocidade das
comunicações, constituindo ao mesmo tempo um ins-
trumento e o resultado da dominação política.

147 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Além disso, na experiência atual, ainda que a trans-
missão e a disseminação do conhecimento possam
ocorrer facilmente, com rapidez e a baixo custo, nos pa-
íses subdesenvolvidos, grande parte da população não
tem um nível de letramento adequado, nem uma base de
conhecimento capaz de assimilar o conhecimento ino-
vador. Portanto, no curto prazo, a democratização do
conhecimento é quase impossível nesse aspecto.

Mídia e comunicação
Em 1940, década de publicação da obra “Dialética do
Esclarecimento”, Adorno e Horkheimer refletiam sobre
a tendência da publicidade tornar-se o principal veículo
ideológico da sociedade capitalista. Atualmente, isso é
um fato: com a total transformação da cultura e dos pro-
cessos comunicacionais em mercadorias, a cultura e a
comunicação passaram a ser dominadas pela linguagem
criada para a venda das mercadorias, a publicidade.
Além disso, de acordo com o que já foi abordado sobre
indústria cultural, a ideia era que os meios de comunica-
ção de massa submeteriam os indivíduos aos interesses de
consumo da indústria capitalista, transformando-os em
seres passivos. A mídia não os conduziria a uma reflexão
crítica acerca de suas condições de existência e trabalho.

As comunicações são importantes não porque


veiculem ideologias, mas sim porque, se de um
lado fornecem as informações que colaboram

148 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


para seu esclarecimento, de outro proporcio-
nam o entretenimento que elas procuram com
avidez e sem o qual talvez não pudessem supor-
tar o crescente desencantamento da existência
(RÜDIGER, 2001, p. 142).

O filósofo francês Lipovetsky (1989) é inovador à


medida que discorda da visão segundo a qual os teles-
pectadores apresentam uma posição totalmente passiva
no tocante aos produtos veiculados na mídia. De acordo
com ele, a cultura da mídia está em constante renovação
e questiona a visão da mídia como instrumento de alie-
nação e passividade. A mídia teria desempenhado um
papel histórico no sentido de difundir novos padrões
de comportamento (LIPOVETSKY, 1989, p.222), tendo
acelerado, sobretudo, o declínio de valores tradicionalis-
tas. Por exaltar o lazer, a felicidade e o bem-estar através
de uma ética consumista, a cultura de massa teria pro-
piciado a autonomia privada na modernidade. Ainda de
acordo com o autor, A mídia substituiu a Igreja, a escola,
a família, e outras instituições, como forma de socializa-
ção e meio de transmissão do saber.
É importante considerarmos o contexto atual da so-
ciedade do conhecimento, ainda assim, apesar de trazer
uma perspectiva que inova as teorias da comunicação
ao enfatizar o papel ativo dos consumidores em suas re-
lações com a mídia, questionando, sobretudo, as abor-
dagens de Adorno, Horkheimer, Lipovetsky exagera
ao considerar que a mídia democratiza a cultura. Isso
porque mesmo considerando a relevância da mídia para

149 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


informar as pessoas, a maioria das intenções é direcio-
nada para o consumo, confirmando a lógica da indústria
cultural.

Considerações finais
A atualidade do conceito de indústria cultural não
pode ser reconhecida se não levar em consideração que
este conceito foi elaborado visando a compreensão de
um fenômeno social, que não para de se desenvolver
acompanhando o desenvolvimento do capitalismo.
É no contexto da sociedade atual, também conhecida
como sociedade do conhecimento - devido às transfor-
mações nos espaços sociais, econômicos e produtivos,
tornando-se o conhecimento o principal fator de produ-
ção - que as tecnologias digitais propiciaram inovações
nos modos de produção e difusão da cultura.
É preciso reconhecer que, mesmo diante da impos-
sibilidade de generalização, o indivíduo da sociedade
do conhecimento é um ser dotado de vontade que não
possui uma relação passiva com os meios de comunica-
ção. Isto não quer dizer que a mídia seja democrática ou
siga a trajetória do século das luzes, como pensa Lipo-
vetsky. Nem todos têm o mesmo acesso aos bens cultu-
rais difundidos pela mídia. Há uma diferença drástica
entre as programações e as informações veiculadas pelas
emissoras de TV pagas e os canais abertos, assim como
o acesso à internet. Entretanto, é preciso reconhecer que

150 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


a mídia potencializa o acesso à cultura. O que é certo, é
que a compreensão da cultura como um lugar de disputa
permite enxergar a importância de uma abordagem que
leve em conta os aspectos industrializados da produção
midiática contemporânea.

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São Paulo: Paz e Terra, 2002.
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152 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Capítulo 5
O Agendamento no
­Jornalismo Popularesco:
­Considerações teórico-em-
píricas sobre os televisivos
­Documento Especial
e Aqui Agora

Carlos Alberto Garcia Biernath1

Introdução
Ciro Marcondes Filho (1994), citando Marshall
McLuhan, ressalta que a televisão tem a capacidade de unir
todos os sentidos do homem, algo único a todos os meios
de comunicação que existiam na época de seu nascedouro.
Bem antes da televisão, no século XIX, as pesso-
as buscavam entretenimento através de romances
­populares, que eram amplamente negociados às famílias
de baixa renda. Com esses livretos em mão, as pessoas

1. Graduado em jornalismo pela Universidade Sagrado Coração –


USC; Mestrando em Comunicação Midiática pela Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Bolsista FAPESP.

153
­ ermitiam-se sonhar, fantasiar e exprimir verdadeiras
p
sensações de ansiedade e prazer, algo que antes só era
possível dessa forma. Isso mostra o quanto o homem
sempre valorizou e buscou a fantasia. De tal modo, sua
influência junto à audiência é inegável, pois a televisão,
quando de seu surgimento, passou a ser “um algo a mais”
em relação à voz que vinha das ondas sonoras transmi-
tidas pelo rádio: a imagem apresentada ali parecia ser
uma companhia ao telespectador, que muitas vezes es-
tava sozinho no ambiente, mas sentia-se acompanhado
enquanto assistia a seus programas pela TV.
Documentários e telejornais são programas que fazem
parte do gênero jornalístico. Todavia, não é essa a única
função dos programas de cunho jornalístico. Há que se
considerar que, por vezes – ou talvez muitas vezes – esses
programas abusam de elementos que inferem diretamen-
te no imaginário das pessoas, influenciando a percepção
de desigualdades discursivas, como o imagético.
Para Marcondes Filho (1988, p. 54), no jornalis-
mo televisivo é possível observar dois ingredientes que
constam na produção dos programas: a fragmentação
e a personalização ou personificação, pontos estes que
também atuam diretamente nessa relação entre o teles-
pectador e o veículo televisivo.

Transmissora de notícias e fonte de entretenimento


O fato de estar assistindo televisão indica que o teles-
pectador está em busca de alguma maneira de encontrar

154 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


entretenimento, conhecimento ou algum meio de inte-
ração proporcionada por este veículo de comunicação.
Isto está intrinsecamente ligado ao fato da experiência
do homem ao olhar objetos, cenas e natureza, buscando
por meio delas – das cenas – esses sentimentos que po-
derá encontrar na televisão.
Como lembra Marcondes Filho (1994), a televisão não
trouxe somente mudanças na maneira de transmitir acon-
tecimentos e relatos, mas também foi responsável por uma
verdadeira transformação no ‘fazer’, sobretudo na narrati-
va, na qual é possível observar uma sensível mudança na-
quilo que estávamos habituados a ver no cinema.
Hoje, possivelmente, a grande diferença entre a te-
levisão e o cinema, como meios de comunicação, esteja
relacionada à publicidade: enquanto na televisão essas
taxas publicitárias são cobradas por minuto, no cinema
elas são cobradas em taxas inteiras, pois, neste, é garan-
tida a presença do público por pelo menos o tempo do
filme, enquanto na televisão o telespectador tem o poder
de mudar de canal a hora que quiser, o que poderá levar
a emissora a eventuais prejuízos. Assim, quando trans-
mitidos pela televisão, os filmes contam com intervalos,
já que essa pausa estratégica nas emoções trazidas pode
ajudar as mensagens publicitárias na venda de mercado-
rias, de acordo com Marcondes Filho (1994).
Com todas essas características que a tornaram ím-
par, a televisão atingiu grande ascensão desde o seu
surgimento, superando o cinema – até então mono-
polizador do público noturno – e o rádio – que deti-
nha o maior poder de penetração no dia-a-dia dos

155 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


lares –, ­convertendo-se no maior veículo de comuni-
cação de massas, exercendo grande fascínio junto aos
­telespectadores.
Por sua aptidão em trabalhar imagens como repre-
sentações, a televisão pode gerar dois tipos de olhar, de
acordo com Charaudeau (2012): o olhar de transparên-
cia e outro de opacidade.
O primeiro, embora chamado assim, trata-se de uma
ilusão de transparência, pois é com este olhar que o te-
lespectador entenderá que o veículo televisivo pretende
exibir o oculto, adentrar um lado desconhecido pela au-
diência até então. O segundo olhar, por sua vez, impõe,
conforme assevera Charaudeau (2012, p. 112), “sua pró-
pria semiologização do mundo, sua própria intriga, sua
própria dramatização”.
Estes olhares determinam a excelência da televisão,
como veículo de comunicação, em (re)tratar os dramas
do mundo – como os objetos deste trabalho faziam/fa-
zem –, e mesmo os conflitos ente o poder político e o
poder civil – através de debates.
Dentre os produtos televisivos que mais conquistam
identificação do público, os jornalísticos se destacam
nesse cenário.

Os jornalísticos televisivos
Documentários e telejornais são programas que fa-
zem parte do gênero jornalístico. Dessa forma, enten-
demos que sua função diz respeito unicamente ao ato

156 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


de informar, sem qualquer interferência nesse processo.
Todavia, não é essa a única função dos programas de
cunho jornalístico. Há que se considerar que, por vezes,
esses programas abusam de elementos que inferem dire-
tamente no imaginário das pessoas, influenciando a per-
cepção de desigualdades discursivas, como o imagético.
A junção desses componentes caracteriza o que é po-
pularmente chamado de “sensacionalismo” nesses tipos
de programas televisivos.

Entre o noticioso e o sensacionalista


Não há uma definição concreta sobre este termo. Co-
mumente, ele é empregado com o propósito de conotar,
de maneira pejorativa, um programa de cunho jornalís-
tico que exiba algum conteúdo demasiadamente voltado
para a violência, por exemplo. O porquê de isso aconte-
cer pode estar relacionado, para o telespectador, com o
contato com o drama alheio.
Na imbricação que faz entre o jornalismo e essa dra-
maticidade, J. S. R. Goodlad, citado por Marcondes Filho
(1988, p. 52), assevera que “o jornalismo e o telejornalis-
mo são parentes muito próximos dos dramas. Em ques-
tão de preferência popular, os noticiários ocupam, aliás,
o segundo lugar, logo após o drama”. Tal constatação nos
leva a imaginar que a junção desses dois elementos atrai
audiência e chama ainda mais a atenção do telespecta-
dor. Quando são mostradas notícias sobre um aconteci-
mento que envolve, por exemplo, um ­movimento social

157 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


de reinvindicação, possivelmente será criado um ver-
dadeiro ‘espetáculo’ na notícia, pois isso será mostrado
ao público como se fosse um acontecimento social, algo
como um produto de circo, dado o ‘show’ criado.

Por seu caráter festivo, esses fatos, sem quais-


quer vínculos com a realidade imediata do te-
lespectador, são politicamente esvaziados. A TV,
portanto, pode apresentar até matérias sobre
movimentos e partidos revolucionários, guerri-
lheiros e comunistas, pois a sua descaracteriza-
ção como fatos críticos e explosivos já foi feita
anteriormente – não direta e formalmente, mas
na sua apresentação. O cenário, o apresentador,
as cores e todas as ‘informações paralelas’ neu-
tralizam as notícias (MARCONDES FILHO,
1988, p. 52).

A essa ‘descaracterização’ do fato, sobrepujado pelo


‘espetáculo’ criado, entendemos ser a essência do sen-
sacionalismo. No exemplo anterior, o enfoque centrado
na movimentação – e nos consequentes conflitos ocor-
ridos entre manifestantes e a instituição responsável por
manter a ‘ordem’ –, ao invés de uma breve explicação
das causas daquele protesto, é um elemento pregnante
do “sensacionalismo”.
O discurso inerente a um produto jornalístico con-
siderado “sensacionalista” é bem peculiar quando com-
parado ao conteúdo discursivo de outras atrações. Com
elementos que visam chamar a atenção do telespectador,
esse gênero situa-se em:

158 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


(Um) modo de produção discursivo da infor-
mação de atualidade, processado por critérios
de intensificação e exagero gráfico, temático, lin-
guístico e semântico, contendo em si valores e
elementos desproporcionais, destacados, acres-
centados ou subtraídos no contexto de represen-
tação ou reprodução de real social (PEDROSO,
1983 apud ANGRIAMI, 1995, p. 14).

E este efeito “sensacionalista” traz em seu bojo algu-


mas marcas para a audiência, como a de alimentar um
desligamento da própria realidade – o que caracteriza
uma incongruência no âmago do ato de informar. As-
sim, o veículo que emprega o “sensacionalismo” em suas
produções:

Não se presta a informar, muito menos a formar.


Presta-se básica e fundamentalmente a satisfa-
zer as necessidades instintivas do público, por
meio de formas sádica, caluniadora e ridiculari-
zado das pessoas. Por isso, a imprensa sensacio-
nalista, como a televisão, o papo no bar, o jogo
de futebol, servem mais para desviar o público
de sua realidade imediata do que para voltar-se
a ela, mesmo que fosse para fazê-lo adaptar-se
a ela (MARCONDES FILHO, 1986 apud AN-
GRIAMI, 1995, p. 15).

Os objetos de estudo deste trabalho – Documento Es-


pecial e Aqui Agora –, são programas tidos como popu-
larescos por manterem em sua constituição certo modo

159 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


sensacionalista, explorando temáticas como a violência,
por exemplo, para buscar uma maior audiência.

O Documento Especial – Televisão Verdade


O programa estreou em agosto de 1989, em uma
quarta-feira, às 23h00, na já endividada TV Manchete.
Trazia um formato jornalístico semelhante ao adotado
no consagrado Globo Repórter, mas com temas polê-
micos e imagens consideradas ‘fortes’ e uma linguagem
peculiar investida de efeitos de sentido, o que o diferen-
ciava de outros programas do mesmo gênero e formato.
Por conta disto, não é exagero dizer que o Documento
Especial – Televisão Verdade seja considerado um marco
na televisão brasileira, por sua coragem em investigar e
exibir temas relacionados ao sexo, tráfico de drogas, tra-
vestis, submundo dos guetos, o invisível social que não
ia às telas.
Em maio de 1992, em meio à grave crise que assolava
a Manchete, culminando com a sua venda para o Grupo
IBF, Hoineff e a equipe do Documento Especial eram
contratados pelo SBT, mas sem a liberdade que possuí-
am na Manchete. Prova disto, foi a “censura” que o pro-
grama sofreu logo em sua primeira exibição no canal,
quando a edição “O país da impunidade”, já mencionada
neste trabalho, não pôde ir ao ar. Ficou no canal até
1995, quando saiu por desavenças entre Nelson Hoineff
e Sílvio Santos. Voltou ao ar em 1997 pela Rede Bandei-
rantes, onde permanece até 1998, ano em que foi extinto.

160 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Nas palavras de Mattos (2010), “um dos melhores
programas jornalísticos da TV Brasil. [...] Programa jor-
nalístico explícito, abordava temas polêmicos e sensa-
cionalistas como nenhuma outra emissora tinha conse-
guido produzir até então”.
Embora tenha se apresentado em formato de telejor-
nal, o Aqui Agora também manteve-se como represen-
tante do popularesco.

O Aqui Agora
Aliando o formato “sensacionalista” do rádio ao te-
lejornalismo, o Aqui Agora foi exibido inicialmente no
ano de 1991 e trazia o impactante slogan: “um jornal
vibrante, uma arma do povo, que mostra na TV a vida
como ela é”.
Contou com diversos apresentadores em sua 1ª fase,
quando absorvera o formato dos famigerados “O Ho-
mem do Sapato Branco” e “O Povo na TV”, como Ivo
Morganti, Christina Rocha (que já participara de “O
Povo na TV”), Sérgio Ewerton, Liliane Ventura. Poste-
riormente, assumiu de vez o formato jornalístico, em
1996, centrado em pautas mais noticiosas e sem tanto
requinte sensacionalista, quando passou a ser apresen-
tado por Eliakim Araújo e Leila Cordeiro.
Em sua equipe de repórteres, destacam-se César
Tralli, Celso Russomano, Gil Gomes, Wagner Montes
(que também já passou pelo “O Povo na TV”), Carlos
Cavalcanti, dentre outros.

161 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Sérgio Mattos (2010) coloca o Aqui Agora como um
“telejornal popular”, e discorre que a atração surgiu “co-
piando o modelo de jornalismo popular usado nas emis-
soras de rádios: sensacionalista, com notícias policiais e
muito apelo sexual”.
Em ambas atrações, que serão analisadas mais à fren-
te, há que se ressaltar, também, a adequação da notícia à
política das emissoras televisivas, que acabam moldan-
do a produção noticiosa de acordo com suas ideologias.
Este é um dos motivos que fazem com que algumas no-
tícias ganhem uma importância maior do que deveriam,
e outras acabem perdendo o espaço que mereciam. Isso
é, de certa maneira, a essência dos estudos da hipótese
do agendamento.

A hipótese do agendamento pelas mídias


Inicialmente, ressalvamos que o termo “teoria do
agendamento”, encontrado em algumas obras e ‘ma-
nuais’ de comunicação, será por nós trabalhado como
hipótese do agendamento. Isto porque, de acordo com
Hohlfeldt (1997), a hipótese de “agenda-setting” não
pode ser considerada uma teoria por não ser um para-
digma fechado, completamente calado a outras conjuga-
ções. Daí a diferença entre teoria e hipótese:

Uma hipótese é sempre uma experiência, um ca-


minho a ser comprovado e que, se eventualmen-
te não “der certo” naquela situação ­específica,

162 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


não invalida necessariamente a perspectiva te-
órica. Pelo contrário, levanta, automaticamen-
te, o pressuposto alternativo de que uma outra
variante, não presumida, cruzou pela hipótese
empírica, fazendo com que, na experiência con-
cretizada, ela não se confirmasse (HOHLFEL-
DT, 1997, p. 2).

Na hipótese do agendamento há a ideia de que a mí-


dia é quem impõe os assuntos que irão ao conhecimento
das pessoas, algumas vezes ofuscando um determinado
fato, mas, em contrapartida, omitindo muitos outros.
Nesse raciocínio, a hipótese da agenda-setting esteia que:

Em consequência da ação dos jornais, da televi-


são e dos outros meios de informação, o público
é ciente ou ignora, dá atenção ou descuida, enfa-
tiza ou negligencia elementos específicos dos ce-
nários públicos. As pessoas tendem a incluir ou
excluir dos próprios conhecimentos o que a mí-
dia inclui ou exclui do próprio conteúdo. Além
disso, o público tende a conferir ao que ele inclui
uma importância que reflete de perto a ênfase
atribuída pelos meios de comunicação de massa
aos acontecimentos, aos problemas, às pessoas
(SHAW, 1979, p. 96 apud WOLF, 2012, p. 143).

A ideia embrionária da hipótese surgiu em 1922, no


livro Public Opinion, do jornalista e escritor norte-ame-
ricano Walter Lippmann. Em suma, Lippmann coloca
que em um governo que se diz democrático, o poder está,
verdadeiramente, nas mãos dos grupos que c­ ontrolam a

163 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


informação. Assim, para o autor a mídia atua indireta-
mente na maneira de criar estereótipos imagéticos no
subconsciente da audiência, visando direcionar a opi-
nião pública ao sabor de seus próprios interesses.

Não devemos, pois, confundir notícia com ver-


dade. Cabe a verdade iluminar fatos escondidos,
relacionando-os com outros a fim de produzir
uma imagem da realidade que permita às pesso-
as agirem. Ao jornalismo caberia simplesmente
sinalizar os eventos (LIPPMANN, 2008, p. 15).

Posteriormente aos estudos de Lippmann, McCombs


aprofundou a pesquisa quando observou, despretensio-
samente, o papel das notícias na primeira página do Los
Angeles Times, objetivando entender se o impacto de um
evento é diminuído quando a história recebe um posi-
cionamento menos proeminente.
Já em 1968, uma pesquisa ‘definitiva’, que utilizava
a hipótese como epicentro, fora realizada analisando a
campanha presidencial dos EUA, com a aplicação de um
questionário para eleitores indecisos. A pressuposição
dessa pesquisa era que no meio público em geral, o gru-
po de eleitores indecisos estaria disponível à influência
dos media. Realizada em 24 dias, o trabalho continha
100 (cem) questionários, que visavam cobrir um uni-
verso variado de posição econômico-financeira, social
e racial. Aplicada a eleitores indecisos quanto ao voto
em Hubert Humphrey ou em Richard Nixon, a pesquisa
cobriu cinco jornais, dois canais de televisão e duas re-
vistas semanais.

164 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Findada, a pesquisa, além de confirmar a ideia
pressuposta de que os indecisos optariam por aque-
le candidato com mais influência midiática, também
mostrou que os próprios candidatos influenciaram-se
pela mídia, pois incluíram em suas agendas temas que
foram largamente trabalhados pela própria mídia, em
detrimento ao estabelecido inicialmente em suas cam-
panhas2.
Atualmente, as tendências da Communication Rese-
arch voltam-se para questões concernentes aos efeitos
da mídia a ao problema de como estes constroem a ima-
gem da realidade social. Se antes as pesquisas detinham
uma preocupação maior com os efeitos da mídia a curto
prazo, hoje essas pesquisas atêm-se aos efeitos da mídia
a longo prazo.
De certa forma, a hipótese da agenda-setting também
analisa a capacidade cognitiva da audiência, pois a mí-
dia acaba determinando a forma com que o indivíduo
encara a realidade e o compara com as representações
colocadas nos meios de comunicação de massa, poden-
do levá-lo a distorcer sua própria imagem.
No campo televisivo, ao que parece, o aumento de
consumo não indica, necessariamente, um maior efeito
da hipótese de agendamento. Wolf (2012) traz uma pes-
quisa de McClure e Patterson (1976) realizada na cam-
panha presidencial americana de 1972 que apresenta a

2. Este pode ser considerado um exemplo de Contra-Agenda-


mento, conforme veremos mais abaixo.

165 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


ideia de que o público que acompanhou as campanhas
pela televisão foi o que sofreu o menor efeito da agenda-
-setting.

Em cada análise dos dados de 1972, a compa-


ração entre a influência da informação televisi-
va e o poder de outros canais de comunicação
política (jornais, spots publicitário) mostra que
a exposição às notícias televisivas teve, invaria-
velmente, os menores efeitos sobre o público
[...]. Há uma confirmação limitada à hipótese da
agenda-setting. Em alguns temas, mas não todos,
os níveis de exposição aos meios de comunica-
ção de massa mostram uma influência direta
exercida pela agenda-setting. De tal modo, nor-
malmente o efeito direto correlaciona-se com o
consumo de jornais locais, e não com os noti-
ciários televisivos (MCCLURE-PATTERSON,
1976, pp. 24, 28 apud WOLF, 2012, p. 147).

Destarte, com base na pesquisa de McClure e Patter-


son (1976), é permissivo afiançar que cada meio de co-
municação possui capacidade variada de gerar influên-
cia nos indivíduos. Portanto, os meios de comunicação
acabam se ‘hierarquizando’ na relação entre a eficácia da
agenda-setting e a influência que este gera.
Por outro lado, pesquisas mais recentes trabalham
com o agendamento no sentido oposto, ou seja, quando
este efeito vem da sociedade – ou, no caso da pesquisa
que versa sobre, do terceiro setor – para a própria mídia.
Este fenômeno é chamado de contra-agendamento.

166 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


O Contra-Agendamento Midiático
Defendido por Silva (2006 APUD ROSSY, 2011), o
contra-agendamento parte do pressuposto de que a so-
ciedade pode, sim, agendar a mídia. Essencialmente,
esta ideia relaciona a eficácia de determinadas medidas
– como campanhas de ONGs, por exemplo – através de
sua exposição na mídia.

O contra-agendamento compreende um conjunto


de atuações que passam estrategicamente pela pu-
blicação de conteúdos na mídia e depende, para
seu êxito, da forma como o tema-objeto-de-advo-
cacia foi tratado pela mídia, tanto em termos de
espaço, quanto em termos de sentido produzido.
Pode-se então afirmar que o contra-agendamento
de um tema pode ser parte de uma mobilização
social ou parte de um plano de enfrentamento de
um problema, corporativo ou coletivo (SILVA,
2005, p. 2 APUD ROSSY, 2011, p. 7).

Como exemplo, a autora cita as campanhas de de-


sarmamento propostas pela ONU, que acabam fazen-
do parte da agenda política e midiática dos países. No
Brasil, talvez o maior exemplo, ainda de acordo com a
autora, seja a comoção que a também campanha contra
do desarmamento gerou em 2003, através de uma cami-
nhada, na praia de Copacabana, que reuniu 50 mil pes-
soas, entre artistas, políticos e população em geral. Ain-
da em 2003, o tema foi altamente explorado na novela
“Mulheres Apaixonadas”, da Rede Globo de Televisão.

167 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Com a abordagem da hipótese do agendamento em
dois programas popularescos da televisão brasileira, que
será objeto de análise deste estudo, abarcaremos tam-
bém a Análise de Discurso de tradição francesa, que nos
auxiliará como campo teórico-metodológico.

A análise do discurso como campo


teórico-metodológico
Essencialmente, a Análise de Discurso, como campo
teórico-metodológico, buscará depreender sentidos de
um discurso proferido por seu orador. Se um conteúdo
textual é aquele que denotará uma interação linguística
entre os interlocutores, o discurso será aquele que irá
determinar a posição ideológica dos interlocutores, ou
seja, o discurso pode ser entendido como o complemen-
to de um texto.
Orlandi (2012, p. 17) citando Pêcheux (1975) coloca
que “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem
ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ide-
ologia e é assim que a língua faz sentido”. Assim, para
Orlandi (2012, p. 17): “[...] discurso é o lugar em que
se pode observar essa relação entre língua e ideologia,
compreendendo-se como a língua produz sentidos por/
para os sujeitos”. A vertente francesa da AD resulta na
identificação dos discursos já instituídos – como o da
publicidade ou o da medicina – que foram incorpora-
dos pelo sujeito. Ou seja, caracteriza-se pela ênfase no

168 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


assujeitamento do emissor, que se expressaria mediante
a incorporação desses discursos sociais já instituídos: o
religioso, o filosófico, o jornalístico, o publicitário etc.
Isto é, todo discurso acaba por ser entrecortado por di-
versos enunciados.
Nesse processo de referir-se a que os interlocutores
estão submetidos, analisá-los vai além da compreensão
do processo comunicativo entre emissor e receptor, por
meio da mensagem. É preciso entender como um objeto
simbólico – que pode ser um enunciado, uma música,
uma pintura etc. – lança sentidos e deixa outros apensos.
Dessa forma, será possível compreender o que vai além
da mensagem colocada pela língua, e aí é que a AD 3será
fundamental, uma vez que ela “visa a compreensão de
como um objeto simbólico produz sentidos, como ele
está investido de significância para e por sujeitos” (OR-
LANDI, 2012, p. 26).
Nos estudos da AD, a língua não é entendida como
uma simples estrutura, mas sim como um acontecimen-
to, assim como também não há uma separação entre
forma e conteúdo discursivo. Deste modo, para a AD:

a. a língua tem sua ordem própria mas só é re-


lativamente autônoma (distinguindo-se da Lin-
guística, ela reintroduz a noção de sujeito e de
situação na análise da linguagem);

3. Doravante, utilizaremos o termo “AD” para nos referirmos à


Análise de Discurso.

169 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


b. a história tem seu real afetado pelo simbólico
(os fatos reclamam sentidos);
c. o sujeito de linguagem é descentrado pois é
afetado pelo real da língua e também pelo real
da história, não tendo o controle sobre o modo
como elas o afetam. Isso redunda em dizer que
o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e
pela ideologia (ORLANDI, 2012, p. 19-20).

Portanto, sob a égide da AD de tradição francesa e do


conceito de agendamento, iniciaremos nossas análises
em dois programas televisivos de cunho popularesco:
Documento Especial e Aqui Agora, que marcaram época
na televisão brasileira.

O (re)trato da impunidade no Documento Especial


Em 1992, quando o Brasil atravessava uma crise no
governo do então presidente Fernando Collor de Mello,
o Documento Especial produziu uma edição chamada
“O país da impunidade”. A edição deveria ir ao ar pelo
SBT, naquele que seria o programa de estreia na emis-
sora, mas acabou por ser censurada “por uma série de
razões”, de acordo com Nélson Hoineff. Somente anos
mais tarde, mais precisamente em 2007, o programa foi
ao ar pelo “Canal Brasil”.
Logo no início da edição, Roberto Maya, apresenta-
dor do programa, diz: O Brasil já foi palco de inúmeras
tragédias na construção civil. Incêndios e desabamentos

170 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


sempre resultam da falta de segurança e manutenção. En-
tre mortos e feridos, o que resta é a indignação e revolta
de quem espera por punição aos culpados. A fala do apre-
sentador já deixa clara a intenção do programa: mostrar
punições que não foram aplicadas aos culpados. Con-
forme o país atravessava uma forte crise política na épo-
ca, durante o governo Collor, escândalos de corrupção
afloravam. Talvez o mais notório deles tenha sido o que
ficou conhecido como “O Esquema PC Farias4” – prin-
cipal motivo para o impeachment de Fernando Collor –,
que envolveu o tesoureiro da campanha do presidente.
As próximas cenas do programa apresentam popu-
lares protestando contra o presidente Fernando Collor
e PC Farias, acompanhadas por uma trilha dramática
que sonorizava imagens de tragédias ocorridas no país,
como a queda do viaduto Paulo de Frontin, no Rio de
Janeiro, ocorrida em 1971 e que resultou na morte de 29
pessoas; o incêndio ocorrido no Edifício Joelma, em São
Paulo, que vitimou 189 pessoas – as imagens mostram
pessoas se atirando do alto do prédio para a morte certa;
e o naufrágio da embarcação Bateau Mouche, que levou
55 pessoas a óbito. Em todas essas tragédias mostradas,
a edição deixa claro que não houve condenações ade-
quadas àqueles que seriam responsáveis pelas mortes;
houve, sim, penas leves.

4. O esquema, após revelado, mostrou que o então tesoureiro,


com o poder que tinha durante o governo, conseguiu manipu-
lar dinheiro público e desviá-lo para contas fantasmas. Fonte:
<http://www.terra.com.br/noticias/especial/pc/esquema01.
htm>. Acesso em: 08 jun 2015.

171 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Ficam apensas, durante a edição, a intenção dos pro-
dutores do programa em atrelar a ideia da impunidade
ocorrida com os responsáveis pelas tragédias, com a im-
punidade que os membros do governo Collor poderiam
receber. Dessa forma, é permissivo entender que o pro-
grama buscou agendar sua audiência à essa possível im-
punidade, visando chamar a atenção dos telespectadores.
Isso porque, conforme afirmou Wolf (2012, p. 143 citando
SHAW, 1979, p. 96): “o público tende a conferir ao que
ele (o conteúdo midiático) inclui uma importância que
reflete de perto a ênfase atribuída pelos meios de comu-
nicação de massa aos acontecimentos, aos problemas, às
pessoas”. Tal constatação vem ao encontro do que Cha-
raudeau (2012) chama de “olhar de transparência”, pois a
televisão, especialmente neste caso, pode(ria) ter buscado
uma ilusão de transparência ao exibir o oculto – ou seja,
a impunidade dos responsáveis pela tragédia que poderia
atingir aos governantes –, desconhecido até então.
Nas cenas em que exibe corpos de pessoas vitimadas
pelas tragédias, como no caso do Bateau Mouche e da-
queles que se jogavam do alto do edifício Joelma para
a morte certa, o Documento Especial parece tentar se
apropriar do elemento “sensacionalista” para atingir ain-
da mais sua audiência. Todavia, cabe a reflexão de Mar-
condes Filho (1986, APUD ANGRIAMI, 1995, p. 15),
que questiona se o uso de tais elementos não acaba por
“desviar o público de sua realidade imediata”.
Outro programa telejornalístico que parecia se utili-
zar da dramaticidade para chamar a atenção dos teles-
pectadores, talvez até agendando-os, foi o Aqui Agora.

172 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Os elementos de dramaticidade do Sujeito-Jornalista
Indignado
Na edição de 13/02/1995, a última reportagem exibi-
da pelo Aqui Agora trazia o repórter Gil Gomes – conhe-
cido jornalista que realizava coberturas policiais no rá-
dio, com sua fala e trejeitos bem peculiares – indignado
com a morte de um idoso, de 77 anos, que aguardava na
fila do INSS pare receber o benefício da aposentadoria.
Posicionado em um parque que aparenta estar vazio,
Gil Gomes destoa seu discurso de indignação com o
ocorrido: “O que se espera depois de 35, 40 anos de tra-
balho? É que a pessoa, pelo menos, tenha um pouco de
dignidade no fim da vida. O aposentado, que possa sen-
tar num banco, que possa desfrutar de uma vista bonita
como essa. Mas é isso que acontece no Brasil? Os senho-
res tomaram conhecimento. O Aqui Agora noticiou, os
jornais falaram. Mas ninguém gritou. Um velhinho, 77
anos de idade, obrigado a chegar às 4h da manhã numa
fila do INAMPS5. 4 horas da manhã para que ele pudesse
ter o direito dele. E de repente, nessa fila, o homem de 77
anos de idade começa a se sentir mal. Começa a passar
mal. Mas não podia deixar a fila. Ele fica, até que suas
forças o sustentem de pé. Mas, sentou. Chamaram uma

5. Autarquia criada pelo regime militar em 1974, foi um desmem-


bramento do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS)
e era responsável pelo atendimento médico aos contribuintes
da Previdência Social. Fonte: <http://sistemaunicodesaude.we-
ebly.com/histoacuteria.html>. Acesso em: 23 mar 2015.

173 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


a­ mbulância para atendê-lo. 1 hora! 1 hora foi a espera
para a ambulância. E o velhinho, que contribuiu para a
Previdência Social durante 35 anos, no mínimo, morreu
nessa fila. Algo que é revoltante. Algo que dói, que machu-
ca e que alguém precisa falar.
De princípio, é possível entender que o sujeito-jorna-
lista – aqui representado por Gil Gomes – se colocou em
um parque cercado por natureza, em um ambiente bucó-
lico, para mostrar que o idoso deveria estar neste parque,
em descanso, usufruindo de sua retirada do mercado de
trabalho. Para além, a fala do repórter é acompanhada,
durante os 6’14” de duração da reportagem, por uma
trilha sonora dramática. A imagem do repórter em um
parque aparentemente vazio – dando a entender que o
idoso de 77 anos não estava lá por ter falecido na noite
anterior – aliada à trilha sonora, conferem uma imagem
de teor dramático à reportagem. J. S. R. Goodlad, citado
por Marcondes Filho (1988, p. 52), assimila o telejorna-
lismo como um parente bem próximo dos dramas, sendo
os dois tipos de programas preferidos pelos telespectado-
res. Este modo de jornalismo praticado pelo programa
parece buscar identificação junto à audiência.
Outrossim, Gil Gomes, fazendo uso dos elementos ci-
tados acima, busca chamar a atenção do público do Aqui
Agora para o falecimento do idoso na fila no INAMPS,
por conta do mau atendimento da instituição. Essa seria
uma maneira de buscar agendar o descaso com a saú-
de em sua audiência. A junção do ‘dramático’, colocado
pelo apresentador, ao jornalismo – a notícia da morte do
idoso – parece criar uma certa verdade jornalística. No

174 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


esteio de Lippmann (2008, p. 15), essa ‘verdade’ traria à
tona fatos escondidos, produzindo uma imagem de real,
e no jornalismo é que estes eventos seriam sinalizados.
O sentido dramático do sujeito-jornalista também
pode ser assimilado em seu discurso. Além dos elemen-
tos que compõem este sentido, como a trilha sonora e o
ambiente em que o repórter se encontra, a fala do repór-
ter traz à baila certas questões. Quando diz que “o Aqui
Agora noticiou, os jornais falaram. Mas ninguém gritou”,
referindo-se às condições do sistema de saúde no país,
Gil Gomes afirma que os veículos de comunicação mos-
traram essas condições ruins, mas que não houve ne-
nhum grito. De tal modo, se é na língua que observamos
os sentidos, conforme pontou Orlandi (2012), é possível
perpetrar que há uma tentativa de chamar a atenção da
audiência para este problema.

À guisa de considerações
Por serem veiculados em um meio de comunicação
que une os sentidos da visão e audição por excelência,
os jornalísticos popularescos parecem obter ainda boa
identificação junto à audiência. Programas que se uti-
lizam de um formato que explora a tragédia alheia para
chamar a atenção da audiência existem há décadas, e se
mantiveram com a mesma intensidade.
Não obstante, Documento Especial e Aqui Ago-
ra – atrações estudadas por este trabalho –, mesmo
se ­apoderando de elementos do popularesco, quando

175 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


a­ bordam temáticas envoltas à violência, buscam trazer
à tona alguns assuntos pré-determinados. Isso pode ser
considerado um exemplo de agendamento.
A edição País da impunidade, gravada em 1992, mas
que não chegou a ir ao ar, buscava resgatar algumas tra-
gédias que causaram comoção nacional com o intuito
de mostrar que os responsáveis por tais tragédias nada
ou pouco sofreram. No ano de sua gravação, o país atra-
vessava uma séria crise política no governo Fernando
Collor, com acusações de desvio de dinheiro público. De
certa forma, o programa pareceu ter a intenção de en-
xertar na audiência a ideia de que no Brasil a impunida-
de imperava. Isto, talvez, com o propósito de engendrar
a sociedade para o que acontecia. Todavia, o programa
acabou censurado e não foi ao ar.
Já o Aqui Agora, em uma edição de fevereiro de 1995,
teve no repórter Gil Gomes um sujeito-jornalista indig-
nado que se apropriou de uma narrativa envolta em ele-
mentos dramáticos para sinalizar as más condições do
sistema de saúde da época.
Através do falecimento de um idoso de 77, que per-
deu a vida esperando na fila do atendimento, a reporta-
gem explorou o elemento sensacionalista para chamar a
atenção de um tema que já era trazido pelas mídias na-
quele ano – de acordo com o próprio Gil Gomes. Assim,
buscando criar certa verdade jornalística, a reportagem
se utilizou do alcance da televisão, da carga dramática
e do jornalismo para ressaltar sua própria indignação
com aquele fato. Isso pode, de certa forma, ter agendado
a audiência para este problema.

176 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Referências
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tudo do sensacionalismo na imprensa. São Paulo: Sum-
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CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São
Paulo: Contexto, 2012.
HOHLFELDT, Antonio. Os estudos sobre a hipótese
de agendamento. In: Revista Famecos, n. 7, 1997. Dis-
ponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/in-
dex.php/revistafamecos/article/viewFile/2983/2265>.
Acesso em: 09 fev. 2015.
LIPPMANN, Walter. Opinião Pública. Tradução e Pre-
fácio: Jacques A. Wainberg. Editora Vozes: Petrópolis,
2008
MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão. São Paulo:
­Scipione, 1994
______.  Televisão: a vida pelo vídeo.  São Paulo:
Moderna, 1988
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princí-
pios e procedimentos. Campinas: Pontes Editores, 2012.
ROSSY, Elizena. Contra-agendamento: o Terceiro Setor
pautando a mídia. In: Anais do II Encontro Compolíti-
ca, Belo Horizonte, 2011. Disponível em: <http://www.
compolitica.org/home/wp-content/uploads/2011/01/
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177 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo: tribo jor-
nalística: uma comunidade interpretativa transnacional.
Florianópolis: Insular, 2005.
WOLF, Mauro. Teorias das comunicações de massa.
São Paulo: Martins Fontes, 2012.

178 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Capítulo 6
Espiral do silêncio, opinião pública e
representação da mulher na mídia

Daniele Ferreira Seridório


Laís Modelli Rodrigues

Introdução
No percurso do Mestrado, o professor da disciplina
de Teorias da Comunicação convidou-nos para escrever
um artigo e-book como resultado dos ricos debates em
sala de aula. Na obra, cada aluno deveria apoiar-se em
alguma teoria discutida em classe, nós, contudo, esco-
lhemos duas hipóteses, a Espiral do silêncio e o Agen-
damento. Claro que não negamos o apego científico das
teorias, mas hipóteses nos parecem mais provocativas e
discutíveis. Quando trabalhamos com hipóteses cons-
truímos o conhecimento inacabado e, como mestrandas,
damos a nossa – pequena - contribuição à academia.

uma teoria, como enfatizei anteriormente, é


um paradigma fechado, um modo “acabado” e,
neste sentido, infenso a complementações ou

179
conjugações, pela qual “traduzimos” uma de-
terminada realidade segundo um certo “mode-
lo”. Uma “hipótese”, ao contrário, é um sistema
aberto, sempre inacabado, infenso ao conceito
de “erro” característico de uma teoria. Assim,
a uma hipótese não se pode jamais agregar um
adjetivo que caracterize uma falha: uma hipóte-
se é sempre uma experiência, um caminho a ser
comprovado e que, se eventualmente não “der
certo” naquela situação específica, não invalida
necessariamente a perspectiva teórica (HOHL-
FELDT, 1999, p. 43).

Neste artigo partimos da concepção da opinião pú-


blica e das suas relações com as hipóteses do Agenda-
mento e da Espiral do Silêncio. Enxergamos esses três
conceitos como construtores uns dos outros. Enquanto
o Agendamento molda a opinião pública, essa coloca a
Espiral do Silêncio em movimento.
No trabalho, utilizaremos os estudos da alemã Elisa-
beth Noelle-Neumann para conceituar a opinião públi-
ca e a Espiral do Silêncio. A pesquisadora desenvolveu
suas observações entre as décadas de 1960 e 1980, em
um contexto nacional da Alemanha dividida pelo Muro
de Berlim e em um contexto internacional de Guerra
Fria. É espantoso, então, que uma hipótese que surgiu
em meio ao caos geopolítico e social continue a explicar
as relações comunicacionais da nossa sociedade atual-
mente. Esperávamos que com as nossas reflexões fosse-
mos nos distanciar cada vez mais da hipótese proposta
por Noelle-Neumann, contudo, isso não foi observado.

180 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


É inevitável relacionar esses temas aos movimentos
sociais, e no nosso caso, ao feminismo. A mídia é excep-
cionalmente cruel ao retratar e representar as mulheres,
tem importante papel na disseminação da cultura do es-
tupro e não torna agenda pública a discussão de temas
fundamentais às mulheres, como a legalização do abor-
to, por exemplo.
A intensificação do uso dos meios digitais e o novo
conceito de comunicação de todos para todos, com pos-
sibilidades interativas e de desconcentração do fluxo
comunicacional, deram novas esperanças aos teóricos
entusiastas, que veem na internet a possibilidade de mo-
dificar o parâmetro oligopolizado e homogeneizado da
comunicação de massas.
Pensamos que as Ciências da Comunicação avançam
de maneira peculiar a cada passo dos entusiastas e dos
pessimistas. Parece-nos que essas posições divergentes
são essenciais para a reflexão e posicionamento crítico
frente aos fenômenos comunicacionais. Aqui, nos coloca-
mos com uma visão cética frente à contribuição da inter-
net para o incremento da pluralidade da opinião pública,
dos efeitos do Agendamento e da Espiral do Silêncio.
É inegável, contudo, reconhecer as suas contribui-
ções, mas, por enquanto, a mídia digital parece ter repro-
duzido as mensagens do oligopólio da mídia tradicional.
E, embora, crie espaço de visibilidade para movimentos
sociais, como a luta das mulheres, ainda obedece aos in-
teresses de corporações capitalistas norte-americanas.
Portanto, a nossa exposição buscará relacionar os
conceitos de opinião pública, Agendamento e Espiral do

181 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Silêncio aplicados a percepção da mulher sobre a sua re-
presentação na grande mídia e na sociedade.

Opinião Pública
Noelle-Neumann ilustra a opinião pública em sua
obra pela história de um balé que assistiu quando era
professora na Universidade de Chicago. No espetáculo,
os habitantes de uma pequena cidade sempre se escan-
dalizam com as atitudes de um poeta que vivia um pou-
co afastado do centro urbano. Porém, quando o conde
e a condessa da cidade também tomavam as mesmas
atitudes, logo o ato se tornava comum e os habitantes
habituavam-se a isso. Para a autora, o nome do balé
também poderia ser “A opinião pública”, pois o conde
e a condessa são os líderes e formadores de opinião. Ela
ainda coloca que se apoiássemos as ideias e atitudes do
poeta enquanto essas eram escandalizadas, estaríamos
negando a nossa natureza social. Ademais, a autora (p.5)
se coloca em defesa do conde e da condessa, pois os ca-
racteriza como os moderadores, como “los lideres de
opinión que la sociedad necesita”.

Ni siquiera pensamos em el esfuerzo que rea-


lizan lãs personas que vivem em uma unidad
social parar amntener unida La comunidad.
Actuamos como si la posesión de uma rica tra-
dicion histórica y cultural y de instituciones
protegidas por la ley no exigiera n constante

182 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


esfuerzo de adaptación de incluso conformidad
(NOELLE-NEUMANN, p.4).

Noelle-Neumann coloca a opinião pública como fun-


damentadora das atitudes dos indivíduos de uma comu-
nidade. A fim de investigar o que vem a ser a opinião
pública, parte essencial em seus estudos sobre a teoria
da espiral do silêncio, Noelle-Neumann dedica todo um
capítulo de seu trabalho a essa discussão.
Voltando às origens da Espiral do Silêncio, vemos
que a cientista política é impulsionada a teorizar sobre o
“silêncio” na Alemanha de 1965, quando estudos apon-
taram que, durante as eleições, mesmo que crescesse a
expectativa de vitória de um dos grupos, as intenções
de voto da população não necessariamente mudavam.
Desde o primeiro parágrafo, a teórica aponta que não
é tarefa fácil definir de maneira clara o conceito, uma
vez que nas décadas de 50 e 60 houve um movimento
entre os acadêmicos para que o termo fosse colocado no
esquecimento. “Se decía que la opinión pública era una
ficción que pertenecía al museo de la historia de las ide-
as” (NOELLE-NEUMANN, p.1).
Somente na década de 60, aponta a autora, foram
identificadas 50 literaturas que definiam a opinião pú-
blica, porém sempre de maneira não objetiva, como
“Algo que flota y fluye” (ONCKEN, 1914, apud NOEL-
LE-NEUMANN), ou como “no es el nombre de ningu-
na cosa, sino una clasificación de un conjunto de cosas”
(DAVISON, 1968, apud NOELLE-NEUMANN).
Sem uma resposta concreta e objetiva sobre o que
vem a ser a opinião pública, Noelle-Neumann, ao ­pensar

183 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


no porque as intenções de voto não mudaram em 1965,
chega a uma primeira conclusão sobre o termo, e ainda
que não fosse uma definição de opinião pública, relacio-
nava esse conceito com a hipótese da Espiral do Silêncio.
“La espiral del silencio podría ser unas de las formas de
aparición de la opinión pública. Podría ser un proceso
por el que creciera una opinión pública nueva, joven, o
por el que se propagara el significado transformado de
una opinión antigua” (NOELLE-NEUMANN, p.2).
Ao refletir sobre o termo “opinião”, a alemã busca
a definição de David Hume, de 1739, que o chama de
“common opinion”, em que este teria um sentido de
acordo e de comunidade. Assim, a cientista entende a
“opinião” como “algo considerado aceptable, teniendo
en cuenta, pues, el elemento de consenso o acuerdo”
(NOELLE-NEUMANN, p.2).
Ao refletir sobre “público”, dentre as várias definições
que o termo pode assumir, Noelle-Neumann conclui
que, quando associado à opinião, é algo que se refere a
todos, associado ao bem-estar geral, que difere da esfera
privada e que denota alguma participação do Estado.
A opinião pública é algo, pois, que lembra ao indiví-
duo que ele não está isolado na sociedade. O medo de
“aislamiento, a la mala fama, a la impopularidade; es la
necesidad de consenso” (NOELLE-NEUMANN, p.4) é
o que edifica a opinião pública, ou, “opiniones sobre te-
mas controvertidos que pueden expresarse en público
sin aislarse” (NOELLE-NEUMANN, p.5).
O julgamento do público, segundo Noelle-Neumann,
tem o peso de um tribunal. Seguir a opinião adotada pela

184 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


maioria é, portanto, uma estratégia individual para não
ser colocado no isolamento pelo grupo. Mesmo diante
de uma definição tão dura e impositiva, a cientista re-
conhece que nesse espaço também podem surgir novas
ideias emergentes capazes de desmoronar as concepções
existentes. A Espiral do Silêncio, neste contexto, seria
uma reação a aprovação ou desaprovação dessas opini-
ões cambiantes de valores, “ese silencio que tanto influye
en la construcción de la opinión pública” (NOELLE-
-NEUMANN, p.21).
Ainda sobre opinião pública, a autora reflete sobre os
diferentes momentos de uma sociedade e a sua relação
com a vigente opinião pública. Em épocas revolucioná-
rias, a opinião pública e seu julgamento dos indivíduos
se torna mais forte, uma vez que ela também funciona
como uma “guardiana de la moralidad y de las tradicio-
nes” (NOELLE-NEUMANN, p.25). Romper o consenso
geral é o mesmo que se expor publicamente, em qualquer
momento histórico, mas em momentos revolucionários
ou instáveis socialmente, a exposição pública é percebi-
da como uma ameaça pelos indivíduos do grupo. Saber
como a maioria se porta e se adequar a esses comporta-
mentos e opiniões é, pois, estratégia de convivência.

A hipótese do agendamento
O Agendamento é na comunicação a força dos meios
para moldar a opinião pública. Esse processo ocorre,

185 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


principalmente, pelas ferramentas do jornalista de cri-
tério de noticiabilidade, definição da pauta, das fontes
e edição.

Trata-se de um efeito não-intencional do pro-


cesso de construção da actualidade informa-
tiva na configuração do ambiente político em
que se forma a opinião pública. Ao excluírem,
incluírem e hierarquizarem os acontecimentos
diários, os jornalistas orientam a atenção do
público para os assuntos destacados: a agenda
dos media torna-se a agenda pública (BORGES,
2010, p. 137).

O conceito do Agendamento nasceu das pesquisas em


comunicação política. Contudo, pode ser estendido para
outros estudos dos efeitos dos meios de comunicação.

O conceito foi formulado por Maxwell McCom-


bs e Daniel Shaw, em 1972, no artigo da Public
Opinion Quarterly sobre o estudo realizado du-
rante a campanha presidencial de 1968, em Cha-
pel Hill, na Carolina do Norte. O cruzamento da
cobertura noticiosa com as opiniões de eleitores
indecisos sobre os temas prioritários na eleição
revelou como os media moldam o ambiente po-
lítico da audiência (BORGES, 2010, p. 137).

É complicado afirmar, contudo, que os efeitos do


Agendamento não são intencionais. Os efeitos dos meios
de comunicação na opinião pública são ­ inevitáveis,

186 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


­ orém a escolha dos assuntos e o enquadramento par-
p
tem de escolhas conscientes dos editores ou dos donos
dos meios. O uso de ferramentas jornalísticas é necessá-
rio, porém, os profissionais e, principalmente, as empre-
sas, sabem que é a partir do Agendamento que vão mol-
dar não só a opinião pública, mas o seu posicionamento
editorial. A reunião de pauta é um momento racional e
consciente em que profissionais decidem qual assunto
entrará na pauta. E qual assunto não entrará.
Hohlfeldt (1997) coloca três pressupostos para a hi-
pótese do Agendamento. Primeiramente, o fluxo de
informações é contínuo, ou seja, a todo o momento os
indivíduos recebem um grande volume de informa-
ções gerando um efeito enciclopédia (MCCOMS apud
HOHLFELDT, 1997), então a recepção não é um ciclo
fechado. E por consequência disso, os meios de comu-
nicação influenciam não em curto prazo, mas a médio
e longo prazo. Já o terceiro pressuposto afirma que os
meios de comunicação não são capazes de impor uma
agenda pública, mas influenciam os assuntos debatidos
pela opinião pública.

Ou seja, dependendo dos assuntos que venham


a ser abordados – agendados – pela mídia, o
público termina, a médio e longo prazos, por
incluí-los igualmente em suas preocupações.
Assim, a agenda da mídia termina por se cons-
tituir também na agenda individual e mesmo na
agenda social (HOHFELDT, 1997, p. 44).

187 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Borges (2010) define cinco fases para o desenvolvi-
mento dos estudos do Agendamento. No primeiro mo-
mento residiu na redescoberta dos efeitos dos meios de
comunicação, já que a os estudos pairam sobre o paradig-
ma dos efeitos limitados. Depois, os autores começaram
a pesquisar as condições para o efeito do Agendamento,
como a agenda interpessoal, as audiências e o tempo de
cobertura de cada assunto. A terceira fase é fundamen-
tada nos estudos de enquadramento, que são “esquemas
interpretativos que organizam o pensamento, apresen-
tam uma perspectiva dominante sobre um objecto que
condiciona a sua interpretação” (BORGES, 2010, p. 140).
A quarta e quinta fase desenvolvem-se amparadas
na luta simbólica pelo espaço midiático. Na quarta fase,
Borges (2010) coloca os estudos pela luta dos atores so-
ciais por espaço de visibilidade na mídia, seja para fins
de personalização ou de lutas e reivindicações. A outra
vê a quinta fase como ampliação nos estudos, pois nes-
se momento os pesquisadores passaram a considerar a
existências de múltiplas agendas.

A quinta fase de evolução do agendamento am-


plia o seu campo de estudo à diversidade de
agendas que coexistem na sociedade, em áreas
como a educação, a religião, o desporto ou os
negócios, e aprofunda a sua sustentação teórica,
elaborando o conceito de necessidade de orien-
tação (BORGES, 2010, p.141).

A popularização das mídias digitais pode inaugurar uma


sexta fase nos estudos de Agendamento. Já que com essas

188 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


ferramentas, além de receptores, os cidadãos passam tam-
bém a produzir e a interagir com o conteúdo (JENKINS,
2009). As mídias digitas e a internet seriam, então, a plata-
forma que os excluídos, ou os silenciados, poderiam utili-
zar para alcançar a visibilidade na opinião pública.

A crescente acessibilidade a múltiplas fontes de


informação alternativas, que tem acompanha-
do a fragmentação do público, representa um
desafio à função de agendamento dos media,
mas pode também constituir uma oportunidade
para a reconfiguração das complexas relações de
influência inter-agendas, contribuindo para um
processo de agendamento público mais inclusi-
vo e democrático (BORGES, 2010, p. 143).

O que queremos discutir, contudo, não é como o agen-


damento constrói a agenda pública, mas sim, como esse
efeito deixa de fora da sua cobertura alguns temas e grupos
importantes. Para compreendermos melhor esse silêncio
imposto a esses grupos e personagens, temos a hipótese da
Espiral do Silêncio. Se por um lado temos o Agendamento
determinando a opinião pública, por outro, temos a opi-
nião pública colocando em ação a Espiral do Silêncio.

A hipótese da espiral do silêncio


Enquanto trabalhava em um instituto de pesquisa na
Alemanha, em 1965, Noelle-Neumann percebia que a as
intenções de voto modificavam muito próximo ao dia das

189 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


eleições. A esse efeito ela deu o nome de “efecto del carro
ganador”, como se as pessoas, sabendo que o seu candida-
to perderia as eleições – pela divulgação de pesquisas elei-
torais - mudassem de opinião para não ficarem do lado
perdedor da disputa. A autora percebia ainda com suas
pesquisas, que após o resultado final, a porcentagem de
eleitores que afirmavam ter votado no candidato vence-
dor era maior que os números atingidos por ele de fato.
Noelle-Neumann atribuiu esses fenômenos ao medo
do isolamento social – inclusive o subtítulo de seu livro
é “Opinião Pública: a nossa pele social”. Então, para per-
tencer a um grupo ou a uma comunidade, as pessoas
sentiriam a necessidade de estar em conformidade com
a opinião pública em torno de determinado assunto.
Nesse processo de inclusão e pertencimento esses in-
divíduos se silenciariam e seus posicionamentos entra-
riam em uma “espiral do silêncio” até a sua extinção.

Las observaciones realizada en unos contextos


se extendieron a otros e incitaron a la gente a
proclamar sus opiniones o a tragárselas y mante-
nerse en silencio hasta que, en un proceso en es-
piral, un punto de vista llegó a dominar la escena
pública y el otro desaparición de la conciencia
pública al enmudecer sus partidarios. Éste es el
proceso que podemos calificar como de espiral
del silencio (NOELLE-NEUMANN, p.11).

Segundo a Espiral do Silêncio, os indivíduos têm ten-


dência a expressarem suas opiniões, quando essas estão
em conformidade com a opinião generalizada. Para isso,

190 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


os indivíduos têm a capacidade de perceber o clima de
opinião, ou seja, têm uma tendência a captá-lo. Noelle-
-Neumann fez diversos experimentos empíricos tentan-
do comprovar sua hipótese, e segundo a autora, é essa
capacidade de percepção que levaria as pessoas a atua-
rem em conformidade com o social.

Cruzando variáveis aos níveis micro e macro, a


TES é uma teoria sociopsicológica dinâmica que
pretende explicar a formação, a continuidade e a
alteração da opinião pública, bem como as suas
funções e efeitos. Indirectamente, é pois uma te-
oria dos efeitos mediáticos. No seu cerne está a
tese de que após sondarem o clima de opinião
sobre um determinado tema (issue), o medo da
exclusão social leva os indivíduos a não expres-
sarem opiniões que os próprios percepcionam
como sendo minoritárias ou tendencialmente
minoritárias, o que leva, a termo, à afirmação,
no espaço público, de uma opinião dominante
(ROSAS, 2010, p.157).

Poderíamos entender, então, que o receptor percebe


os assuntos tratados como a opinião pública e a partir
daquilo vai moldar o seu comportamento. É nessa hipó-
tese de percepção que os meios de comunicação “voltam
a ser aqui muito importantes, como se depreende, já que
constituem uma das fontes desse- meio- informacional
global, a par da observação directa e da discussão in-
terpessoal dos temas” (ROSAS, 2010, p. 160). Essa hi-
pótese quando observada da perspectiva da Teoria do

191 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


­ gendamento dá ainda mais força à Espiral do Silêncio,
A
já que o agendamento leva à priorização de determina-
dos temas e o silenciamento de outros.

Embora não sejam as únicas fontes do ambiente


informacional, os media são essenciais à teoria
a partir do momento em que estabelecem posi-
ções claras sobre temas cuja componente moral
é elevada. A par da observação directa e da dis-
cussão interpessoal, os media produzem efeitos
importantes nas percepções sensoriais dos indi-
víduos sobre o clima de opinião. Sem o apoio nos
media, mesmo uma maioria não está disposta a
expressar-se, passando a maioria silenciosa. Por
outro lado, uma posição clear-cut dos media so-
bre um tema pode apoiar uma minoria e torná-la
mais fortes no clima de opinião, pelo menos até
os adversários serem reduzidos a um hard core
de resistentes ou a uma vanguarda motivada que
esteja mais motivada a expressar publicamente
as suas posições (ROSAS, 2010, p. 162).

A Espiral do Silêncio repousa sobre a premissa fun-


damentalista e sobre os estudos de conformidade. E de-
vemos reconhecer que as dinâmicas sociais se mostram
demasiadamente complexas para se encaixarem no pa-
radigma fundamentalista. Principalmente, se atuamos
no campo da comunicação, por exemplo, o jornalismo
teria a função de ser guardião do interesse público na
sociedade, contudo, a configuração comercial e oligo-
polizada da mídia eletrônica é um dos fatores que não
permite a instituição dessa função.

192 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


A primeira premissa é uma hipótese retirada do
funcionalismo clássico. Para garantir a coesão
do todo, ou do sistema, a sociedade ameaça com
o isolamento todos aqueles que violam o con-
senso de que aquela necessita para sobreviver.
[...] A segunda premissa é uma hipótese base-
ada nos chamados estudos da conformidade. O
medo do isolamento motiva os indivíduos a não
formarem quaisquer opiniões, apenas aquelas
que são conformes, ou estão alinhadas, com as
dos restantes membros do grupo ou dos grupos
aos quais pertencem (ROSAS, 2010, p. 159).

Quando alinhamos a Espiral do Silêncio ao Agenda-


mento, chegamos a discussões interessantes, principal-
mente no que diz respeito a grupos periféricos e revindi-
cações sociais. Se pensarmos, então, em como o conteúdo
midiático molda a identidade dos indivíduos e aplicar
essa ideia à Espiral do Silêncio, poderíamos tecer consi-
derações a respeito das distorções de identidade e como
a falta de pluralidade das abordagens midiáticas distorce
a percepção das pessoas - não somente sobre o clima de
opinião, mas também - a respeito do que elas são.
Não podemos, no entanto, cair na falácia da hipóte-
se da Agulha Hipodérmica e imaginar que os recepto-
res interiorizam todas as informações sem criticidade.
A Teoria dos Efeitos Limitados existe para nos lembrar
que nem tudo que é recepcionado através da mídia é in-
teriorizado sem resistência. Mas, é crucial preocupar-se
com o silenciamento de opiniões e temas na sociedade,
por isso, recorrer a essas hipóteses é fundamental para
garantirmos a pluralidade desejada.

193 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


A internet e seus efeitos comunicacionais
A massificação dos meios digitais fez surgir novas
pesquisas em torno do Agendamento e da opinião pú-
blica. A internet e outras ferramentas de comunicação
digitais, que permite a criação interativa de conteúdo,
representa, para alguns teóricos, um ambiente comuni-
cacional mais plural na construção da opinião pública,
já que mais vozes podem estar presentes no discurso.
Isso teria também o efeito na Espiral do Silêncio, já que
é a opinião pública que a constrói.

Qual é a grande diferença entre a opinião pú-


blica das redes e a opinião pública das mídias
de massa anteriores? É que a opinião pública
das mídias de massa anteriores era a opinião
publicada. Era a opinião criada por um líder de
opiniões, por políticos, por jornais e jornalistas
que escreviam – aqueles que a estipulavam (DI
FELICI, 2014, p. 32).

Então, a internet possui um grande potencial de de-


mocratizar o fluxo de informação. Para Akutsu e Pinho
(2002, p. 724) o crescente uso da internet, no âmbito pú-
blico, cria “uma oportunidade ímpar para que o governo
crie novos serviços, com melhor qualidade e menor cus-
to, e para que a sociedade possa participar de uma forma
mais efetiva na gestão governamental”.
Mas esses mesmos autores também recordam que
a informação não é somente um conceito, mas tam-
bém um termo carregado de ideologia. Enquanto isso,

194 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


S­ traubhaar e LaRose (2004, p.50) colocam que a in-
formação pode estar sendo tratada somente como
­commodity de valor comercial, sem considerar o seu ca-
ráter de recurso público.
Cabe a discutir se os fluxos de informação estão re-
almente descentralizados, ou se, assim como na mídia
chamada tradicional ou grande mídia, ainda algumas
empresas controlam a visibilidade do espaço midiático
na internet.

Google and Yahoo! agree on the top search re-


sult 90 percent of the time. The top10 websites
receive 25 percent of all traffic. Traffic to politi-
cal websites is relatively sparse, about one-tenth
of one percent of all web traffic, a drop in the bu-
cket compared to the 10 percent of all traffic that
goes to porn sites. Moreover, the demographic
for political sites is skewed toward older people.
The internet has hardly proven to be the solu-
tion to political estrangement among young pe-
ople. Additionally, traffic to political sites is also
highly concentrated, with the top 50 of 773,000
political sites tracked receiving 41 percent of
all political site visits, most of it concentrated
among the top eight (MOSCO, 2009, p. 1397).

Ou seja, se estabelecemos o agendamento como um


propulsor da opinião pública como ponto central da es-
piral do silêncio, percebemos que, na medida em que o
mercado de mídia digital reproduz o modo concentra-
do dos meios tradicionais, essas hipóteses continuarão a
surtir efeito na recepção da comunicação.

195 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Acho ingênuo acreditar que aquilo que se vê nas
redes sociais representa a opinião pública, pois
não representa. O que se vê no feed de notícias
do Facebook é predefinido por um algoritmo
cuja principal finalidade é maximizar os lucros
da empresa. Então, aquele algoritmo é progra-
mado para entregar o conteúdo que é mais va-
lioso para determinado usuários, que seja capaz
de atrair sua atenção por mais tempo (LEMOS,
2014, p. 29).

A internet possui um papel fundamental na abertura


de um canal mais rápido e interativo de comunicação
entre emissor e receptor. Contudo, ela não quebra a ló-
gica oligopolizada do mercado de meios de comunica-
ção, e mesmo dentro do conteúdo produzido para mídia
digital institui-se a figura do líder de opinião, mesmo
que de maneira diferente e em menor nível de influ-
ência. Ainda assim, devemos considerar que agora os
movimentos sociais e pautas até então silenciadas, por
exemplo, têm mais espaço para compartilhar e divulgar
suas reivindicações.
A pauta da luta das mulheres, por exemplo, tem ga-
nhado um novo fôlego no Brasil desde que a informação
difundida por blogs e redes sociais na internet foi pos-
sibilitada.

Se, por um lado, a imprensa apaga dizeres so-


bre o feminismo e evidencia discursos patriar-
calistas, as redes sociais virtuais constituem-se,
então, como um espaço de confronto a esses

196 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


discursos hegemônicos. A popularização da
internet contribuiu para fazer circular massiva-
mente discursos de valorização do feminismo
(LIMA, p1, 2013)

O movimento Slut Walk, nascido no Canadá, em


2011, por universitárias que se recusaram a concordar
com a fala de um policial que, durante uma palestra de
prevenção ao estupro na Universidade de Toronto, afir-
mou que mulheres deveriam evitar se vestirem iguais a
“putas” para não serem estupradas. No dia seguinte, foi
postado no Facebook um evento público que convocava
mulheres canadenses a marcharem nas ruas de Toronto
em protesto às formas de repressão e violência contra
o corpo feminino. O movimento se alastrou no mes-
mo ano para demais países da América e outros além
do continente, como Suécia, Nova Zelândia, Inglaterra
e Israel. No Brasil, chegou com o nome de Marcha das
Vadias e atua, no online e off-line, até o momento. En-
quanto a grande mídia e o próprio governo silenciam as
pautas ligadas à legalização do aborto no Brasil, meni-
nas e mulheres da Marcha das Vadias levam o tema para
o blog e redes sociais do movimento e organizam, com a
ajuda da internet, passeatas pelo país todo.
No time dos entusiastas e otimistas, essa comunica-
ção mediada pela internet tem surtido um efeito estru-
tural na sociedade conectada. Para Recuero (2009, p.16),
“Esses fenômenos representam aquilo que está mudan-
do profundamente as formas de organização, identida-
de, conversação e mobilização social: o advento da Co-
municação Mediada pelo Computador.”

197 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Mas, em um contexto em que a internet é uma esfera
pública complementar, esses meios ainda dependem da
mídia tradicional para alcançar visibilidade, e essa mídia
nem sempre é amigável aos movimentos sociais, inclusi-
ve, no caso do movimento feminista. A própria internet,
por sua vez, tem reproduzido os padrões de violência de
gênero.

Estas relações desiguais de poder se expressam


não só na intimidade do casal ou em casa. Tam-
bém se voltam para a esfera pública, no local de
trabalho, nos espaços de participação política e
cidadania, onde as mulheres devem seguir fa-
zendo frente a velhos preconceitos, menospre-
zos e abusos pelo simples fato de ser. As relações
desiguais não deixam nenhum lugar sem do-
minação. Os espaços digitais da comunicação e
participação são novos âmbitos onde continuam
ocorrendo essas questões, às vezes chegando a
violência de gênero tal como ocorrem no espaço
real. (PLOU, 2013, p.122)

Para Plou (2013), a violência praticada contra mulhe-


res nas redes sociais virtuais, como “perseguição, assé-
dio, o roubo de informações e a publicação de fotos e
vídeos íntimos sem autorização ou a distorção dos seus
conteúdos já resultam em algo usual”. A banalização da
violência contra a mulher já atingiu, pois, a internet e
sabemos que quase nunca as denúncias dessas violações
resultam em alguma punição ao agressor.

198 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Representação da mulher na mídia
Conforme discutido na exposição teórica, a cons-
trução da mulher na mídia tem papel fundamental na
construção da percepção da mulher sobre si mesma e
no agendamento e silenciamento de temas com relação
à mulher.
Em 2013, o Instituto Patrícia Galvão e o Data Po-
pular lançaram os resultados da pesquisa “Representa-
ções das mulheres nas propagandas na TV”. Na ocasião,
1.501 pessoas com mais de 18 anos e de 100 municípios
brasileiros foram ouvidas em maio de 2013. Dos vários
resultados obtidos sobre a representação da mulher na
televisão, gostaríamos de destacar os seguintes dados or-
ganizados na tabela abaixo.

Tabela 1. Representações das mulheres nas


propagandas na TV

Mulheres Homens
Não acreditam que as
propagandas na TV mostram 59% 52%
a mulher da vida real.
Propagandas na TV não
mostram a mulher que, além
62% 61%
de ser esposa e mãe, trabalha
e estuda

199 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Concordam que a mulher
nunca é apresentada como
39% 30%
uma pessoa inteligente em
propagandas na TV

Concordam que o padrão


de beleza nas propagandas
67% 64%
na TV é muito distante da
realidade da brasileira

Consideram que as mulheres


ficam frustradas quando não
61% 60%
têm o padrão de beleza das
propagandas na TV

Concordam que o corpo


da mulher é usado para
promover a venda de 84% 84%
produtos nas propagandas
na TV

Defendem punição
aos responsáveis por
72% 68%
propagandas que mostram a
mulher de modo ofensivo

Fonte: Instituto Patrícia Galvão, 2013.

200 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Em pesquisa anterior, aplicada em 2010, a Fundação
Perseu Abramo e o Serviço Social do Comércio – Sesc –
divulgaram o resultado da pesquisa “Mulheres brasilei-
ras e gênero nos espaços público e privado: uma década
de mudança na opinião pública”, que entrevistou 2.365
mulheres e 1.181 homens nas 25 unidades federativas
do país. A pesquisa aborda diversos temas relacionados
à mulher desde relações de trabalho até participação po-
lítica. Ela foi comparada aos dados de 2001. A pesquisa
possui muitos dados, mas destacaremos aqui alguns nos
quais é possível discutir as relações entre opinião públi-
ca, percepção e silenciamento.
A tabela abaixo mostra o resultado para a seguinte ques-
tão “Opinião sobre a exposição do corpo da mulher na TV”.

Tabela 2. Opinião sobre a exposição do corpo da


mulher na TV

2001 2010

É ruim 77% 80%

Para as mulheres que se


exibem assim, mas isso é 21% 29%
problema delas.

Porque dá muita atenção só


para o corpo e isso desvaloriza 56% 51%
toas as mulheres.

201 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


É bom 21% 18%

Para as mulheres que


aparecem, sorte delas que têm 14% 12%
idade e corpo para se mostrar.

Para todas as mulheres


porque isso valoriza a mulher 7% 6%
brasileira.

NÃO SABE 1% 2%

Fonte: VENTURINI; GODINHO, 2013, p. 442.

Pelos dados de ambas as pesquisas, é possível obser-


var que a sociedade acredita ser ruim a exposição do
corpo da mulher na TV. Na pesquisa do Instituto Patrí-
cia Galvão, é gritante os dados de que 84% dos entrevis-
tados homens e mulheres veem que o corpo da mulher
é usado na TV para vender produtos e a média de 70%
defendem punição aos responsáveis por propagandas
ofensivas à representação da mulher na TV.
Ainda sobre a pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero
nos espaços público e privado: uma década de mudança
na opinião pública”, o trabalho investigou a opinião dos
brasileiros sobre a pauta da luta das mulheres mais po-
lêmica dos últimos anos no país e que vem sendo total-
mente silenciada na mídia: Opinião sobre mudança na
atual lei do aborto.

202 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Tabela 3. Opinião sobre mudança na atual lei do aborto

MULHERES HOMENS
2011 2010 2010
A LEI DEVE FICAR
59% 61% 69%
COMO ESTÁ
O ABORTO DEVERIA
SER PERMITIDO EM
16% 20% 16%
TODOS/MAIS CASOS
ALÉM DESSES
Anencefalia 6% 4%

Miséria/pobreza/falta
5% 4%
de condições materiais

Mãe muito jovem 2% 2%

Outras respostas 5% 3%

O ABORTO DEVERIA
SER PROIBIDO POR
22% 17% 12%
LEI EM TODOS OS
CASOS
OUTRAS RESPOSTAS 2% 2% 1%
NÃO SABE 2% 1% 1%
Fonte: VENTURINI; GODINHO, 2013, p. 465.

203 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Quanto ao potencial e rejeição de voto, 92% das mu-
lheres e 91% dos homens afirmaram que votariam em
algum candidato mulher. Esse índice cai para 63% das
mulheres e 59% dos homens quando o candidato é ho-
mossexual.
Contudo, quando discutimos políticas como a do
aborto, por exemplo, 57% das mulheres e 56% dos ho-
mens afirmaram que nunca votariam em um candida-
to ou candidata que se colocasse a favor da legalização.
16% das mulheres e 20% dos homens dificilmente vota-
riam. E 23% das mulheres e 21% dos homens poderiam
votar. 4% das mulheres e 3% dos homens não sabem ou
não responderam.
Ao analisarmos os dados da pesquisa, vemos que
poucos entrevistados acreditam que o aborto deveria
ser proibido por lei em todos os casos (mulheres 17%
e homens 12%), porém mais da metade dos homens e
mulheres ouvidos afirmaram que nunca votariam em
um candidato ou candidata que se colocasse a favor da
legalização, demonstrando qual é a verdadeira opinião
pública, aquela que regula a moral e os costumes dos
brasileiros: o aborto não deve ser legalizado no Brasil.
O caso acima pode ser exemplificado pelas Eleições
Presidenciais 2014. Enquanto candidatos que defendiam
a legalização do aborto e mais direitos ligados ao corpo
da mulher na saúde pública, como Eduardo Jorge (PV)
e Luciana Genro (PSol), eram tidos como excêntricos e
fora dos padrões, os ditos candidatos sérios, aqueles que
tinham chance de ganhar, como Dilma Rousseff (PT) e
Aécio Neves (PSDB), não podiam se pronunciar sobre

204 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


a questão. Mais que expressarem uma opinião negativa
sobre a legalização do aborto no Brasil, eles silenciaram
totalmente o tema em seus debates televisionados. Sa-
biam esses candidatos qual era o clima de opinião dos
seus eleitores, pois, e não queria perder votos. Na me-
táfora da opinião pública de Noelle-Neumann, o atual
momento de instabilidade social e política está deixan-
do a opinião pública cada vez mais na condição de um
tribunal inquisidor, guardião dos bons costumes. Com
medo de serem julgados por esse tribunal e perderem as
eleições, ou serem isolados pelo grupo, Dilma e Aécio
fugiram de temas que fossem contra a opinião pública.

Considerações
Ao abrir as considerações, é preciso retomar que,
como foi dito no início deste artigo, é espantoso que a
hipótese da Espiral do Silêncio, que surgiu em um con-
texto social conturbado e em guerra do século XX, possa
explicar as relações comunicacionais da sociedade brasi-
leira atuais sobre a condição da mulher na mídia.
Foi apontado que o julgamento do público, segundo
Noelle-Neumann, tem o peso de um tribunal, e que por
isso, seguir a opinião adotada pela maioria é uma estra-
tégia individual para não cair no isolamento. Se as pes-
quisas abordadas neste trabalho, a “Mulheres brasileiras
e gênero nos espaços público e privado: uma década de
mudança na opinião pública” e a “Representações das

205 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


mulheres nas propagandas na TV”, apontam que a mu-
lher brasileira não se sente representada pela publicidade
nacional, por que essas publicidades continuam sendo
realizadas e naturalizadas pela sociedade sem que nada
seja feito para impedi-las ou até punir os seus idealiza-
dores? Uma das respostas pode ser a Espiral do Silêncio:
somos um país de opiniões machistas e por isso, mesmo
que as pessoas reconheçam o machismo na TV e nas
publicidades, não manifestam essas opiniões em outros
meios e espaços que não os das pesquisas apresentadas.
Por que se silenciam sobre esse assunto em outros espa-
ços? Têm, eles, medo de serem julgados pelo tribunal da
opinião pública no país? Tem, a grande mídia, o poder
de silenciar opiniões que discordem dessas representa-
ções machistas da mulher e continuarem reproduzindo
esses estereótipos sem medo de ser punida?
Diante de tais questionamentos, podemos afirmar que
fica claro que, conceitualmente, a construção da opinião
pública é comprimida entre os efeitos do Agendamento
e da Espiral do Silêncio. Se de um lado o agendamento
vai determinar o que é discutido na opinião pública, do
outro, a capacidade de percepção do clima de opinião vai
silenciar vozes que não alcançaram a opinião pública.
Afinal, conforme teorizou Noelle-Neumann, o silêncio
tem grande influência na construção da opinião pública.
Como já foi apontado, tal efeito do silêncio pôde ser
visto nas últimas eleições presidenciais de 2014 no Bra-
sil. Enquanto o movimento feminista nacional exigia o
debate de propostas para a pauta da legalização do abor-
to no país, os principais candidatos presidenciáveis se

206 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


esquivavam do tema, sem emitir qualquer opinião sobre.
Sabiam os candidatos que era preciso ignorar a pauta do
aborto e silenciá-lo se quisessem ganhar a aprovação da
opinião pública.
Foi constatado que o silêncio de temas importantes
ligados a luta das mulheres do Brasil são silenciados e
mensagens machistas são agendadas, contudo, por ou-
tro lado, não estamos em uma sociedade funcionalista.
Assim, felizmente, as vozes excluídas pelas mídias pro-
curam outros meios para se expressarem, seja nas ruas,
pelas mídias alternativas ou na internet. As mídias di-
gitais, no entanto, ainda não alcançaram todo o seu po-
tencial de dar pluralidade às vozes, já que os meios de
comunicação ditos tradicionais ainda enxergam grande
influência na construção da opinião pública.
Apesar de quase não vermos, ouvirmos ou lermos
opiniões que vão contra a representação atual da mulher
na mídia, elas aparecem vez ou outra na própria grande
mídia. Na internet e nas ruas também podemos ver a
manifestação dessas opiniões. Segundo apontamos em
Noelle-Neumann, a teórica considera que momentos
de instabilidade política e social novas opiniões podem
romper a barreira do silêncio e o medo de ser julgado
e isolado pelo grupo. Assim, a instabilidade atual que
vivemos nos permite fazer mais um ponto de contato
com a Espiral do Silêncio, mas isso não quer dizer que a
reação à essas opiniões diferentes não será forte e com o
objetivo de silenciá-las.
Uma das maiores reações contrárias às opiniões femi-
nistas têm sido expressadas pelos próprios ­congressistas

207 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


brasileiros, advindos ou apoiados pela bancada religiosa.
Eles passaram a manifestar nos meios, opiniões precon-
ceituosas contra mulheres e homossexuais para manter
o voto do seu eleitorado, que se torna cada vez mais con-
servador toda a vez que uma opinião contra o machismo
é manifestada em espaços públicos e midiáticos. Vide os
casos de agressão verbal no Congresso contra as depu-
tadas Maria do Rosário (PT), agredida pelo deputado
Jair Messias Bolsonaro (PP) em 2014, que afirmou que
mulher feia não “merece” ser estuprada, e a agressão do
deputado Alberto Fraga (DEM) contra a deputada Jan-
dira Feghali (PCdoB) afirmando que “Mulher que par-
ticipa da política como homem, tem que apanhar como
homem”. Como foi apontado anteriormente, em épocas
revolucionárias e instáveis, a opinião pública vigente se
comporta como uma guardiã da moralidade, sendo a
moralidade nesse contexto a cultura do estupro e o re-
baixamento da figura da mulher quando comparada à
figura do homem.
Sobre o novo contexto comunicacional inaugurado
sobre a comunicação mediada pelo computador (RE-
CUERO, 2009), as hipóteses do Agendamento e da Es-
piral do Silêncio continuam a surtir efeito na comuni-
cação digital e, por isso, essas relações tornam-se um
conceito fértil para pesquisas empíricas que continuam
a corroborar as hipóteses e a tecer novas considerações.
Acreditamos que a construção do conhecimento em tor-
no dessas hipóteses ainda é frutífera e só tem a prosperar
na internet.

208 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


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La Crujía, 2013. Disponível em: http://gigaufba.net/in-
ternet-em-codigo-feminino/. Acesso em 23 junho 2014.

210 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Capítulo 7
Comunicação: Inquietações da Área

Emanuelly Silva Falqueto1

Introdução
Realizar pesquisa sobre e em comunicação requer que
tenhamos, mesmo que não esquematizada sistematica-
mente, alguma noção sobre o que seja a área. ­Teoricamente,

1. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação


da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Univer-
sidade Estadual Paulista Júlio Mesquita (FAAC-UNESP), na li-
nha de “Processos Midiáticos e Práticas Socioculturais”. Possuo
pós-graduação latu sensu em Comunicação e Semiótica (2014)
pela Universidade Estácio. Graduação em Comunicação Social
com habilitação em Jornalismo (2011) pela Universidade Fe-
deral do Acre (UFAC). Participo do grupo de pesquisa “Mídia
e Sociedade” da UNESP. Atuei profissionalmente nas áreas de
produção televisiva, produção de matéria para impresso e web
e organização de eventos. Email: manufalqueto@gmail.com

211
o conhecimento científico produzido acerca de uma área
deveria abordar e discutir conceitos e questões imanentes
da própria área. Mas, tal ponto é nebuloso, contraditório
e repleto de melindres ao tratar-se da Comunicação como
área do saber. Pois, a Comunicação carece de uma base
identitária compartilhada pelas várias frentes de pesquisa
empreendidas em seu nome. Mas, diante do nosso cená-
rio – as transformações nos processos comunicativos pela
presença maciça dos meios e dispositivos tecnológicos
que fazem a obsolescência ser certeza sobre o destino das
questões que nos cercam – será que uma base compar-
tilhada pelos pesquisadores não se tornaria uma camisa
de força, que sufocaria a observação e análise apenas em
procedimentos a serem seguidos?
Diante do exposto, das dúvidas que nos rondam faz-
-se necessário discutirmos algumas questões que ainda
assombram a área. Mesmo que tomemos como defini-
ção a indefinição. Mesmo que discordemos e desqualifi-
quemos essa reflexão como um labirinto sem saída que
atrasa o desenvolvimento das pesquisas. Ou até que já
partamos do pressuposto que é uma questão resolvida. É
importante compreendermos que essa problematização
ainda suscita debates e pesquisas e faz parte da compo-
sição histórica identitária da Comunicação como área
do saber. Afinal, esta discussão nos permite conhecer as
fragilidades, fronteiras e problemas que não podemos
ignorar, para que não desemboquemos em uma cons-
trução científica anacrônica e tautológica.
Então, apresentamos neste trabalho a discussão so-
bre tais questões. Antes, porém, explicitamos que não se

212 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


trata de definição ou enquadramento, mas apontamen-
tos reflexivos sobre as dificuldades encontradas na área,
a partir da exposição de alguns pensadores/pesquisa-
dores, na tentativa de colaborar com a construção das
problematizações comunicativas. O texto não pretende
ser um tratado epistemológico da Comunicação, apesar
de trazer alguns dos problemas epistemológicos da área.
Mas, esforça-se por mostrar a discussão de maneira di-
dática. Tecer uma breve sistematização, para pincelar os
problemas sobre a consolidação da Comunicação como
uma área do conhecimento.
Procuramos, portanto, a compreensão didática das
dificuldades que para alguns é considerada apenas fan-
tasmagórica que nos deparamos quando propomos fa-
zer pesquisa em comunicação. Como a delimitação de
fronteiras da pesquisa comunicativa, diante dos nossos
objetos imbricados nos contextos e processos sociais,
culturais, econômicos e históricos. Existe objeto especí-
fico da Comunicação desprendido do escopo contextual
que o cerca? Qual é o objeto de pesquisa dessa área? A
Comunicação tem ou não uma estrutura teórico-meto-
dológica própria? Ela deve manter a interdisciplinarida-
de? Mas, a interdisciplinaridade não pode enfraquecer a
área como campo de pesquisa autônomo?
Inquietações que permeiam todo o texto, não na pre-
tensão de estabelecermos definições. Mas, no intuito de
acrescentar ao debate acadêmico uma análise para inte-
grar o conjunto das investigações acerca da comunica-
ção enquanto área do saber científico. Fica cada vez mais
evidente o quanto os meios de comunicação exercem

213 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


efeitos socializantes e o quanto estamos nos relacionan-
do mediados pelos veículos de comunicação e dispositi-
vos de informação (SODRÉ, 2002). Os meios de comu-
nicação divulgam representações que chegam aos mais
diversos cantos do globo. Desse potencial mediador e
da capacidade de atingir milhões advêm a preocupação
com o papel da comunicação na nossa vida.

Problemas na e da Comunicação
Propomos debater sobre os questionamentos em tor-
no da autonomia da Comunicação como área do saber
através da observação dos seguintes pontos nevrálgicos: a
interdisciplinaridade, o objeto de pesquisa comunicativo
e a constituição metodológico-teórica da área. A Comuni-
cação vivencia esta crise de identidade por não conseguir
estabelecer um consenso entre aqueles que a pesquisam
sobre as definições desses elementos. Pois, como não pode-
mos apreender a Comunicação, devido a sua confluência e
relação com outras áreas e também por sua imaterialidade
acaba-se gerando múltiplas interpretações e definições.

Um dos poucos consensos, se não o único, é de


que a área é bastante variada: objetos de pesqui-
sa, metodologias, domínios temáticos, aborda-
gens, interpretações... tudo, no campo comuni-
cacional, parece ir ao encontro da diversidade e
da polêmica, salvo a própria constatação da di-
versidade mesma. (MARTINO, 2006, p.44)

214 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Há diversidade de compreensão sobre a nossa área
e de seu estatuto epistemológico. Martino (2006) cha-
ma a Comunicação de área do conhecimento em for-
mação, mostrando que a dificuldade de caracterização e
consolidação vem da própria abrangência existente nos
processos comunicativos, que se relaciona com diversas
outras disciplinas e âmbitos da nossa rotina.

É natural, então, que tenham sido formadas


compreensões muito variadas sobre as teorias
e mesmo sobre a própria natureza do processo
comunicacional, o que praticamente inviabiliza
qualquer trabalho de síntese e deixa pouco
espaço para afirmações categóricas. (MARTI-
NO, 2006, p.34)

Interdisciplinaridade
O debate da interdisciplinaridade na Comunicação
trata-se de questionar em que medida as questões tra-
balhadas com a interdisciplinaridade são comunicativas
ou pertencem a outras áreas do saber. É fácil compreen-
der a interseção da Comunicação com a antropologia,
sociologia, psicologia, mas desvencilhar, encontrar o ob-
jeto comunicativo é um processo que caminha na linha
tênue, do isolamento dos contextos acrítico e o risco de
se perder da Comunicação. Além de tentar compor te-
orias e metodologias que sejam próprias e deem conta
dos problemas de pesquisa, pois, a maioria das teorias

215 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


da Comunicação e os procedimentos metodológicos que
usamos são de outras áreas, ou seja, interdisciplinares.

Muitos teóricos contemporâneos equivocada-


mente entendem a formulação do campo comu-
nicacional como o somatório dessas iniciativas
e suas correntes de estudo, tomando-as como
peças de um impossível quebra-cabeças, cuja
solução nos daria a unidade da “ciência da co-
municação”, ou simplesmente, se contentam em
denunciar essa impossibilidade de síntese, ape-
lando para o plural (ciências da comunicação),
de modo cômodo e irrefletido. (MARTINO,
2006, p.37)

José Luiz Braga (2001) critica o uso da interdiscipli-


naridade na Comunicação, quando os objetos e aborda-
gens acabam sendo de outra área e disciplina. “É como
se este fosse uma espécie de terreno vazio, sem outra
existência senão pelo fato de que todas as disciplinas hu-
manas e sociais tivessem alguma coisa a dizer sobre o
tema” (BRAGA, 2001, p.13). Mas, afirmar que a solução
seria o uso da interdisciplinaridade como uma interface
para consolidação e consistência teórica das pesquisas.

Ser ou não ser: o objeto da comunicação


O problema da interdisciplinaridade da comunica-
ção permeia toda a composição dessa área, inclusive a
definição do objeto comunicacional. Porque se não nos

216 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


a­ termos acabaremos tomando objetos de outras discipli-
nas, como estudos dos comportamentos, sociológicos,
culturais. É uma questão de delimitação de fronteira,
onde perdemos o objeto comunicacional e nos apropria-
mos de objetos de pesquisa de outras áreas.
Mas, as pesquisas realizadas mostram uma multipli-
cidade de objetos e recortes. Portanto, é insensato taxar-
mos a comunicação estabelecida através da mediação
técnica como único objeto. A velocidade de proces-
samento, entre a descoberta do objeto e sua análise, é
muito aquém do necessário, pois, o que era considerado
processo comunicativo ontem, hoje já não é mais. Os
objetos comunicativos aparecem/transformam-se mais
rápido do que a capacidade acadêmica de acompanhar.
Braga (2001) agrupa os objetos que são pesquisados em:
os que se portam como holísticos, procurando dar conta de
tudo e os objetos específicos. O pesquisador argumenta que
o objeto holístico por considerar tudo como comunicação
acaba não sendo nada, um objeto inapreensível de tão di-
luído que está o universo. “A comunicação, espalhando-se
como objeto por todas as áreas, estando em todas as pautas,
não está em nenhum lugar” (BRAGA, p.14).
Enquanto a eleição de objetos específicos pode acar-
retar consequências tais como a exclusão de outras pes-
quisas que não compreendam como objeto aquilo que
foi posto como certo. Por sua vez, isso gerará investi-
gações setorizadas e que se opõem entre si, cada frente
trará/desenvolverá sua concepção de comunicação.
Além disso, temos que considerar as novas maneiras
de pensar e discutir a comunicação. Objetos de pesquisa

217 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


que eram considerados periféricos ou até marginaliza-
dos, por exemplo o futebol, estão sendo incluídos nas
pesquisas, na tentativa de abarcar as transformações nos
meios tradicionais de comunicação. Baitello Junior ao
expor os avanços do financiamento nas pesquisas em
Comunicação pela Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo, FAPESP, aponta para essa diversi-
ficação dos objetos, pelo menos no que se refere ao ce-
nário das pesquisas financiadas pela FAPESP no Estado.

Enquanto antes se falava quase exclusivamente


de jornalismo impresso, hoje a diversidade te-
mática, a quantidade de projetos que lidam com
os novos meios de comunicação ao lado da tele-
visão e rádio, também internet, websites, redes
sociais, twitter, games, websites, blogs, animês,
cosplay, - está crescendo exponencialmente.
(BAITELLO JUNIOR, 2015, p.20-21)

Problema teórico-metodológico
Ainda dentro dos desdobramentos ocasionados pela
interdisciplinaridade nos deparamos com a constituição
de modelos teóricos-metodológicos próprios da área.
Pois, por recorrermos a outras disciplinas acabamos uti-
lizando teorias e métodos que não foram desenvolvidos
tendo como foco as questões pertinentes à Comunicação.
França (2010) explica que da relação entre teoria e
prática é que emerge o objeto a ser estudado. A r­ ealidade

218 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


nos apresenta os problemas/questões e somente a partir
de uma organização sistemática, que siga estruturas de
pensamentos pode-se fazer dos problemas advindos da
realidade um objeto científico. Então, depois, da apreen-
são daquele objeto fazemos a compreensão, interpretação
e geramos conhecimento que retorna para a realidade,
no circulo que a pesquisa estabelece de retroalimentação.
Ao servir-nos com material teórico alienígena, con-
feccionado em outra realidade, em contextos e tempo
histórico diferentes, estamos contribuindo e fazendo
pesquisa em Comunicação? Nossas pesquisas, por ve-
zes, são amparadas em teorias aplicadas a objetos fora
dos contextos temporais e espaciais originários daquele
pensamento. Mas, se não recorrermos a outras visões
nosso objeto não ficaria desconectado das relações so-
ciais que o compõem, gerando um conhecimento iso-
lado que não pode ser aplicado? Pois, foi montado em
situações não compatíveis com a práxis.
O pesquisador Martino (2006) enfatiza que a Co-
municação carece de teoria própria. “Em nossa área
estamos longe de ter um corpus teórico mínimo, reco-
nhecido como constitutivos do saber comunicacional.
A dispersão teórica é realmente notável e marcante”
(MARTINO, 2006, p.47). Enquanto França (2010) elen-
ca como as dificuldades para o estabelecimento de um
aparato teórico-metodológico sólido para a área da co-
municação; a predileção da atividade prática em vez do
desenvolvimento da temática acadêmica,

O próprio espaço acadêmico foi inaugurado


ou estimulado por um investimento de ordem

219 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


pragmática: cursos profissionalizantes na área
de comunicação – (o de jornalismo, sobretudo)
– antecederam a criação das teorias, que vieram
quase a reboque, complementando a formação
técnica e abrindo-a para sua dimensão huma-
nista e social. (FRANÇA, 2010, p.48)

Outra razão apontada por França (2010) é a diversi-


dade empírica da comunicação, bem como a constante
mutação das práticas comunicativas que geram um ob-
jeto em permanente mudança. Por fim, a heterogenei-
dade dos suportes teóricos usados em sua compreensão,

De tal maneira que aquilo que chamamos “te-


oria da comunicação”, principalmente em seus
primórdios, apresenta-se como um corpo he-
terogêneo, descontínuo e mesmo incipiente de
proposições e enunciados sobre a comunicação,
fruto de investigações oriundas das mais diver-
sas filiações (sociologia, antropologia, psicolo-
gia, entre outras) – cada uma refletindo o olhar
específico e o instrumental metodológico de
sua disciplina de origem. Essa herança heteró-
clita tanto enriquece os olhares quanto dificulta
a integração teórica e metodológica do campo.
(FRANÇA, 2010, p.40-50)

A partir da concepção de comunicação como impal-


pável, Marcondes Filho (2008) também nota os objetos
comunicativos em constante transformação. Observando
que é preciso ter ferramentas teóricas metodológicas não
engessadas que possam acompanhar esse dinamismo.

220 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Para investigar o acontecimento comunicacional
reconhecendo que a comunicação é um enigma,
que não se materializa empiricamente, que não
se constitui nenhum objeto que permita apre-
ensão automática e duradoura, o procedimento
de pesquisa deve ser tão ágil quanto seu objeto.
Optamos, assim, por operar com um “quase-mé-
todo”, que se propõe a capturar o transitório, a
aceitar o desafio da apreensão daquilo que não se
consolida. (MARCONDES FILHO, 2008, p.57)

Devido à falta de Teoria originalmente da Comunica-


ção. Os manuais teóricos são todos elaborados com base
em teorias de diversas áreas, com uma seleção arbitrária
e pouco explicativa ou crítica quanto à seleção de uma
ou outra corrente para composição da obra. Sodré (2012)
apresenta as dificuldades teóricas de constituição do cam-
po da comunicação, declarando que as argumentações te-
óricas sobre a comunicação foram construídas baseadas
na abordagem dos efeitos dos meios de comunicação.

Esta é de fato a via teórica trilhada pela maioria


das pesquisas e obras reflexivas sobre a comu-
nicação. Configura-se como um paradigma, no
qual se encaixam desde as teorias mais antigas
até as mais recentes como a da recepção ativa,
a do contexto social, a do contexto institucional
da comunicação, a do impacto das mensagens
midiáticas na organização das opiniões e das
crenças etc. Até mesmo as concepções politica-
mente ativistas ou praxiológicas da ­comunicação
(ou seja, que concebem comunicação como

221 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


i­nstrumento para a consecução de fins sociais),
orientadas para a esquerda ou para a direita, en-
tram nesse paradigma. (SODRÉ, 2012, p.12)

Enquanto Rosana de Lima Soares (2007) Destaca que


a maioria dos trabalhos em comunicação empregam te-
orias que de uma forma ou de outra acabam vinculadas
ao modelo clássico de comunicação (emissor-mensa-
gem-receptor), não condizente com o cenário atual de
produção do conteúdo comunicativo. Lembrando-nos
da declaração taxativa de Marcondes Filho (2008) de
que “As teorias da comunicação estão cansadas” (p.51),
e conjugando a isso as mudanças nos processos comu-
nicativos ocasionadas pelas tecnologias e processos, jo-
gamos mais uma incerteza no apanhado de problemati-
zações postos até agora. Esse aporte teórico é capaz de
compreender todo esse cenário?

O mundo tecnológico deu saltos extraordinários


e as teorias ficaram obsoletas. É hora de se pen-
sar numa teoria que alcance seu objeto, que seja
tão ágil quanto ele, que procure, pelo menos,
caminhar segundo seu ritmo. É hora de refazer
toda a teoria da comunicação. (MARCONDES
FILHO, 2008, p.51)

Pesquisas em Comunicação no Brasil


Compreendemos que tais desdobramentos não
advêm puramente do debate e epifania científica, a

222 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


­ aneira como surge a formação acadêmica voltada para
m
a Comunicação contribui também. O cenário brasileiro
apresenta-se como âmbito onde primeiro formou-se o
mercado depois os centros de formação desses profis-
sionais para então estabelecer as pesquisas. Marque de
Melo (2011) elucida que as primeiras faculdades nascem
no início do século XIX como centros de formação para
o mercado onde se transmitia conteúdos de outros paí-
ses. “Não foi tranquila a implantação dos estudos comu-
nicacionais nas universidades brasileiras. Resistências
corporativas impediram sua rápida evolução. Precon-
ceitos intelectuais retardaram sua legitimação social”
(MARQUES DE MELO, 2011, p.18).
Com o desenvolvimento dos cursos de pós-gradua-
ção a “[...] comunicação deixa de ser um campo tipica-
mente profissional para se converter em área acadêmica,
legitimada pelo sistema nacional de fomento à ciência e
tecnologia” (MARQUES DE MELO, 2011, p.20).
Atualmente acontece nas Universidades públicas do
Brasil a implementação da mudança na grade curricu-
lar dos cursos de graduação para tornar os cursos mais
atrativos, diminuir a evasão escolar e capacitar melhor
o discente para os desafios que irá enfrentar na sua car-
reira profissional e/ou acadêmica. Contudo, apesar da
proposta ambicionar dar mais identidade as faculdades
e setores de atuação da Comunicação, como o jornalis-
mo, a publicidade, a relações públicas, o cinema entre
outras, a mudança tira a grande área, a Comunicação,
deixando as graduações mais específicas. Mas, essa é a
solução? Essa medida não vai gerar uma concentração

223 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


na ­formação universitária voltada amplamente para
a prática e ignorar as reflexões sobre a Comunicação?
Correremos o risco que Sodré (2012) mostra da acade-
mia tornar-se lugar de reprodução e não produção.

Em alguns casos, no ensino público, tenta-se


romper com o campo dito comunicacional,
priorizando o jornalismo como ciência centra-
lizadora, mas sem dizer com clareza o que se en-
tende por ciência, fora dos chavões positivistas.
É igualmente comum que as disciplinas teóricas
dos currículos espelhem simplesmente os par-
ticulares interesses acadêmicos dos docentes, às
vezes sem um laivo qualquer de coerência epis-
temológica. (SODRÉ, 2012, p.25)

Enfim, comunicação
Diante das questões e inquietações apresentadas,
buscamos apresentar algumas formulações no sentido
de instigar a reflexão crítica sobre a Comunicação como
área do conhecimento. Para então, podermos lidar com
nossos objetos e procurar estabelecer um caminho teó-
rico-metodológico cientes de todos os obstáculos e bre-
chas no percurso. A princípio, aderimos ideia da comu-
nicação como impalpável, não é um objeto constituído
de matéria física. França (2010) assim como Ciro Mar-
condes (2008) lançam a argumentação sobre a imateria-
lidade da comunicação e seus processos.

224 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


A comunicação derruba o estatuto da metafísi-
ca, a ideia historicamente consolidada de que no
processo comunicacional estejamos diante de um
fenômeno capturável, apreensível e compreensí-
vel, que através dos estudos de jornalismo, cine-
ma, televisão e internet, cheguemos à natureza do
fenômeno comunicacional, tenhamos “isolado
seu objeto”, tenhamos apreendido efetivamente a
coisa (MARCONDES FILHO, 2008, p.52).

Compreendemos que a comunicação não é mera


transmissão de um polo ao outro. Essa visão carrega
o reducionismo de pensar a área apenas em termos de
transferência. Reducionismo superado na década de
30, com as pesquisas administrativas que revelaram,
até para a pesquisa com objetivos mercadológicos, que
não acontece uma simples transmissão nos processos de
comunicação. Assim, consideramos a comunicação um
processo, sujeito às intempéries que constituem a socie-
dade e as transformações, até as evoluções da técnica e
tecnologia. Isso implique pensar no que o aparato técni-
co que media alguns processos de comunicação altera as
dinâmicas e processos sociais.
Outra premissa que pretendemos apontar é a de
que a comunicação só é compreensível no interior da
cultura. Ela é algo que produz sentido e está imbrica-
da nos processos de socialização, e, consequentemente,
de formação de identidades e conhecimento acerca do
que consideramos como mundo e realidade. A comu-
nicação tem “[...] reconhecidamente um lugar hegemô-
nico no que concerne aos processos de socialização e de

225 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


c­ onformação de identidades coletivas” (RIBEIRO, 2004,
p.6). Masi e Pepe (2003) ao abordarem o conceito da co-
municação a enxergavam como parte existente nos pro-
cessos sociais.

Em particular, a comunicação veio a ocupar um


papel central na caracterização dos fenômenos
sociais, acompanhando, de um lado a difusão
dos jornais, da rádio, da televisão, ou seja dos
modernos sistemas de comunicação de massa,
dos mass media, de outro, o desenvolvimento
daquelas tecnologias de transmissão e elabora-
ção de sinais contínuos e (sobretudo em tempos
mais recentes) discretos, de base incialmente
eletromecânica e, em seguida microeletrônica,
que configuram os vários meios da comunica-
ção (as disciplinas relevantes neste campo são a
cibernética, com a teoria da comunicação e da
informação, a informática, a engenharia de te-
lecomunicações e a telemática, que absorve as
duas últimas) (MASI, PEPE, 2003, p.111).

Edgar Morin (1997) já expunha no século passa-


do que a cultura está ligada de maneira estrita com os
meios de comunicação, esses por sua vez, realizam a
industrialização do simbólico colonizando e interagin-
do com cada um para a estruturação das identidades,
através das suas mensagens que estimulam relações de
identificação e projeção. O pensador argumentava que
as representações espetaculares incitam a identificação
do espectador com o que está sendo mostrado como

226 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


modelo, seja o modelo de conduta, de romance, ou de
parecer os personagens bem sucedidos das narrativas.
Simultaneamente, as representações convidam a pro-
jeção nas imagens/representações que não podem ser
concretizadas por ficarem no plano do imaginário.

No meio de todas essas projeções funciona uma


certa identificação; o leitor ou o espectador, ao
mesmo tempo em que libera fora dele virtualidades
psíquicas, fixando-as sobre os heróis em questão,
identifica-se com personagens que, no entanto, lhe
são estranhas, e se sente vivendo experiências que
contudo não pratica. (MORIN, 1997, p.82)

Dialogando com tais ideias podemos confirmar a co-


erência no sentido de que a terceira cultura, como de-
nominou Morin (1997), oriunda “[...] da imprensa do
cinema, do rádio, da televisão, que surge, desenvolve-se,
projeta-se, ao lado das culturas clássicas – religiosas ou
humanistas – e nacionais. (p.14)” foi evoluindo, ou seja,
transformando-se, intensificando-se e modernizando-
-se conforme ocorriam os avanços das técnicas dos pro-
cessos sociais. Isso gerou uma ampliação vertiginosa nas
formas de comunicação: aumentando velocidade, elimi-
nando distâncias, colocando à disposição um caudal de
plataformas, meios, técnicas para realização e transmis-
são de informações. Essa capacidade de alcance e po-
tencialidade do discursivo dos meios de comunicação os
convertem em ferramentas/formas influentes na viabi-
lização das discussões, e o fornecimento de conteúdos
diversos, dados e modelos de identidade.

227 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Os sentidos veiculados pela comunicação são cons-
tituídos baseados na cultura e nas relações sociais, esta-
belecidas em conformidade com os costumes e normas
vigentes do período histórico em que estão situados.
Afinal, na configuração social atual do Brasil não teria
relevância a circulação de informações sobre maneiras
de controlar um escravo ou manter submissa sua mu-
lher/esposa. Pois, a cultura evoluiu e os processos de co-
municação não podem ater-se a coisas que já não fazem
parte da vivência social. Se trouxerem representações
que não dizem respeito ou não tenham ligação com a
realidade na qual estão imersos seriam inúteis na função
de mediar.
As representações geradas dessa relação imbricada
entre sentidos sociais, culturais, históricos e os meios de
comunicação trazem noções sobre as identidades. “Uma
concepção distributiva considera as representações men-
tais, os processos sociológicos e as representações medi-
áticas como instâncias que incidem umas sobre as outras
e retroagem, de forma dinâmica” (SOARES, 2009, p.23).
A Comunicação apresenta-se/expressa-se por meio
das representações, feita através do discurso composto
pela linguagem que também opera como representação,
formação (no sentido de dar forma) ao pensamento.
Mediante esses discursos representativos estabelecemos
relações sociais e vice-versa. Os processos de comuni-
cação mediados por técnicas, equipamentos, pessoas
e empresas/instituições estabelecem, usando seus pro-
dutos representacionais, relações com as pessoas. Essas
lidam com as mensagens transmitidas desvendando-as
segundo suas práticas significantes construídas ao longo

228 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


dos discursos vivenciados historicamente, social, cultu-
ral como também os discursos midiáticos. Dessa forma,
usando os sentidos gerados por meio de processos co-
municativos, sejam eles convencionados culturalmente
ou fornecidos pelos meios de comunicação, elaboramos
pensamentos, concepções e ações, que por sua vez, vão
tornar-se elementos culturais, que os meios de comuni-
cação utilizam nas suas construções discursivas.
Também para pensarmos e pesquisarmos a Comu-
nicação temos que considerar o contexto atual de trans-
formações, além dos obstáculos ou dependendo da
perspectiva pontos de partida apresentados sobre a in-
definição da área. Porém, apesar dessas transformações
que podem ser interpretadas como estabelecimento de
processos democráticos e participativos, a Comunica-
ção ainda faz parte do capitalismo.

Para começar, o capitalismo financeiro e comu-


nicação formam hoje, no mundo globalizado,
um par indissolúvel. O capitalismo contempo-
râneo é ao mesmo tempo financeiro e midiáti-
co: financeirização e mídia são as duas faces de
uma moeda chamada sociedade avançada, essa
mesma a que se vem apondo o prefixo pós (pós-
-industrialismo, pós-modernidade etc.). Se an-
tes a comunicação e a informação, sob a égide
da sociedade produtivista, podiam ser analisa-
das como despesa extra do capital, hoje elas têm
lugar de destaque no processo de unidade do
conjunto, com biombo da financeirização, isto é,
de um novo modo de ser da riqueza. (SODRÉ,
2012, p.16)

229 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Como afirma o pensador brasileiro “[...] ela tornou-
-se uma questão importante para o equilíbrio social,
cultural e político da polis colocada sob o império das
finanças” (SODRÉ, 2012, p.22-23). Masi e Pepe (2003)
também observam essa configuração:

Na sociedade da informação, em suma, as rela-


ções sociais parecem cada vez mais reduzidas a
relações econômicas: cada coisa, cada serviço
é caracterizado por seu custo (único reflexo de
seu valor traduzido em termos econômicos) e
por quem o paga, enquanto os outros valores,
aqueles não redutíveis a termos econômicos,
como os valores mais especialmente sociais e
humanos, não apenas são registrados no plano
institucional, mas tendem a assumir conotações
distorcidas e regressivas. (MASI, PEPE, p.137)

Portanto, ao nos depararmos com o desafio de fazer


pesquisa em Comunicação temos que nos questionar:
qual nosso incômodo comunicativo? Considerando o
papel central dos processos comunicativos nos fenôme-
nos sociais. E, que ela só pode ser compreensível em seus
contextos, sociais, culturais, econômicos e histórico.

(In) Conclusão
O pensamento comunicacional ainda é questionado en-
quanto área autônoma do conhecimento científico. É uma
área que carece de unidade, mas será? Um estatuto da área

230 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


comunicativa não deixaria a pesquisa engessada? Sem tais
definições não somos levados a questionar os limites ou au-
sência deles e incentivar o pensamento crítico em relação a
Comunicação como área? Ao nos propormos mergulhar
no devir contínuo, corremos o risco crasso de perdermos
de vista o objeto e a construção de conhecimento para a
área. Contudo, ater-se a questão da falta de uma identidade
delineada e usar isso como empecilho para encontrar a co-
municação enquanto área do conhecimento é perder rumo
da prosa na pesquisa, pelo menos, das realizadas no âmbito
das pós-graduações em Comunicação.
Pretendíamos ao delinear algumas inquietações da
área da Comunicação nos conscientizar dos percalços e
desafios inerentes da pesquisa a ser empreendida nessa
área. Pois, por mais que não discutamos propriamente
a definição da Comunicação como um conhecimento
científico, nossos trabalhos serão avaliados a partir do
que seja considerado Comunicação, enquanto saber
próprio. Portanto, estando alertas sobre essas problema-
tizações poderemos tentar construir objetos comunica-
cionais conscientes das suas limitações e diluições em
outras áreas do conhecimento.
No espectro de questões não respondidas nesse traba-
lho, o conselho acadêmico que recorremos é o p ­ roposto
por José Luiz Braga (2001), é necessário um trabalho de
desentranhamento do objeto da comunicação que tra-
gam nossos incômodos comunicativos. Compreenden-
do que não se trata de um objeto interdisciplinar, mas
entendermos que os processos comunicacionais são
complexos em suas interações.

231 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


Para a consolidação da Comunicação é preciso que
pesquisadores façam uma reflexão continuada para de-
monstrar o objeto comunicacional dos demais conhe-
cimentos sociais e/ou humanos. Buscando o que há de
comunicacional no campo das diversas disciplinas hu-
manas. Sendo que o movimento inverso já é feito pelas
outras áreas do conhecimento.
Essa não deve ser uma discussão estéril e monóto-
na. Deve ter por resultado brechas para que possamos
seguir instigando, questionando, pesquisando. Pois,
quando tudo está dado e pronto não existe o movimento
criativo que produz conhecimento.

Se nossa inquietação surge de uma falta, des-


necessário dizer que não pretendemos pre-
enchê-la; ao tentar trazê-la para dentro das
margens da comunicação, é como falta que
queremos fazê-lo, mantendo seu sentido de
brecha, abertura. Não pretendemos, portan-
to, trazer soluções mágicas ou uma fórmula
definitiva para pensar a comunicação, mas
nos atrevemos a interrogá-la a partir de um
ausente: a linguagem e suas implicações no
sujeito. (SOARES, 2007, p.130)

Claro que nesse texto não existem respostas, cons-


titui-se muito mais de questionamentos do que defi-
nições e delimitações tanto por estarmos no início da
caminhada acadêmica, quanto por nos lançarmos na
pesquisa de um conhecimento sem uma corporificação
material e atingido pela constante e veloz mudança e

232 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


transformação, mais rápido do que o tempo de aquisi-
ção e elaboração do conhecimento científico é capaz de
acompanhar.

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usp.br/index.php/matrizes/article/view/336/pdf>, aces-
sado em maio de 2015

235 Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas


2ª Parte
A Comunicação, Meios e Interações
Capítulo 8
Jornalismo e história: o jornal como
fonte e objeto dos estudos históricos

Aline Ferreira Pádua1

Introdução
O verbete fonte pode ser descrito como “Documento
ou pessoa que fornece uma informação; Texto de autor
considerado como uma referência; Texto ou documento
original, usado como referência”, conforme as definições
7, 8 e 9 do Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa.
Já o termo objeto, entre outras características, aparece

1. Mestranda do Programa de Comunicação Midiática: Processos


Midiáticos e Práticas Socioculturais da Faculdade de Arquitetura,
Artes e Comunicação da UNESP. Possui graduação em Comu-
nicação Social - Jornalismo pela mesma instituição (2014). De-
senvolve pesquisa na área de História da Imprensa interiorana,
com foco para as publicações de São José do Rio Preto. (Bolsista
FAPESP/CAPES). E-mail: aline_ferreira_padua@hotmail.com

237
como o “assunto, matéria, causa, motivo”, na definição
3. Em sentido mais específico encontramos, no Dicio-
nário de Conceitos Históricos (SILVA e SILVA, 2009), o
termo fonte, atrelado a palavra histórico, com a seguinte
definição: fonte histórica, documento, registro, vestígio
são todos termos correlatos para definir tudo aquilo
produzido pela humanidade no tempo e no espaço; a
herança material e imaterial deixada pelos antepassados
que serve de base para a construção do conhecimento
histórico. Também objeto, quando pensado como objeto
de estudo, está definido, na Enciclopédia Intercom de
Comunicação (2010), como aquilo que é utilizado, no
campo comunicacional, como material de estudo de ori-
gens variadas “começando pelo telegrafo e os jornais, até
a internet e a telefonia celular, para não falar do cinema,
rádio e televisão”. O estudo desses objetos, segundo a
Enciclopédia, deve manter “o foco no caráter mediador
de todos esses meios em relação ao processo histórico
mais amplo, sobretudo nos aspectos sociais, políticos,
econômicos e culturais”.
Esses termos, fonte e objeto, mais especificamente,
os papéis por eles desempenhados na relação entre os
campos da história e da comunicação, no que concerne
à construção da narrativa histórica, constituem a base
da discussão que se pretende levantar no presente artigo.
Partindo dessa relação, das definições de fonte e objeto
e entendendo, como Ribeiro (2000), que o jornalismo
exerce importante função na formação da ideia de his-
tória, de um lado, indicando os fatos cotidianos que de-
vem ser recordados no futuro e, de outro, por constituir

238 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


em si mesmo um registro tido como “objetivo” de seu
tempo, propormos aqui uma discussão acerca do lugar
dos meios de comunicação de massa, sobretudo o jornal
impresso, na pesquisa histórica.
Nosso debate se inicia com uma revisão bibliográfica
que situa o jornal impresso em dois polos da pesquisa
acadêmica: o lugar de fonte; e o lugar de objeto. Para
tanto, nos valemos das contribuições de Barbosa (2007,
2009, 2012), Alves e Guarnieri (2007), Hohlfeldt (2011)
e Ribeiro (2000). Tais autores problematizaram a relação
entre o campo da história e o campo da comunicação,
tratam da ligação deles com o passado, das possibilida-
des de narrativa histórica, do lugar da mídia nessas nar-
rativas e das perspectivas e desafios para a composição
da história da imprensa.
Posteriormente, deteremos nossa atenção ao uso dos
jornais impressos enquanto objeto de estudo para a nar-
rativa da história da mídia impressa e do jornalismo.
Para a compreensão desses estudos, trazemos a análise
dos trabalhos publicados nos Grupos Temáticos Histó-
ria do Jornalismo e História da Mídia Impressa no 9º
Encontro Nacional de Pesquisadores de História da Mí-
dia, da Rede Alcar, realizado na Universidade Federal de
Ouro Preto, em 2013 e no XXXVII Congresso Brasileiro
de Ciências da Comunicação, da Intercom, ocorrido em
Foz do Iguaçu, em 2014.
Para o estudo foram considerados os 65 artigos publi-
cados no Grupo Temático (GT) História do Jornalismo
da Rede Alcar, os 46 trabalhos do GT História da Mídia
Impressa da Rede Alcar e os 30 papers do GT História do

239 A Comunicação, Meios e Interações


Jornalismo da Intercom. Nossa análise busca entender,
quantitativa e qualitativamente, a presença dos jornais
impressos como objeto nos estudos atuais de história da
comunicação e do jornalismo. Para isso, tabulamos da-
dos referentes ao objeto utilizado nos trabalhos publica-
dos, temática abordada, período temporal da pesquisa e
metodologia de estudo.

A imprensa e a escrita da história


Ao abordar a relação entre história e comunicação,
há que se considerar, inicialmente, como exprime Ma-
rialva Barbosa (2007), o “universo de possíveis” que a
envolve. São múltiplas as formas de se fazer história, de
se fazer comunicação, de considerar cada campo. Assim,
múltiplas, são também as formas de visualizar história e
comunicação em relação uma à outra.
O olhar teórico e metodológico que cada campo faz
dessa relação é o que Barbosa estabelece como um “uni-
verso de possíveis”. De um lado, a comunicação enxerga
a história como possibilidade de adentrar o passado e
nele recuperar fontes que possam trazer o passado para
o presente, do outro, a história considera enfaticamen-
te os meios de comunicação como ferramentas para a
compreensão mais ampla do que está localizado no pas-
sado. Para Barbosa, esse olhar teórico e metodológico é
que determina a forma como a pesquisa será realizada.
Considerando o passado como algo que pode ser recu-
perado a partir de rastros, as fontes e os documentos que

240 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


chegam do passado até o presente serão privilegiados na
análise. Por outro lado, se o que chega do passado é visu-
alizado como vestígios de memória, permanentemente
modificados e atualizados, o que ganhará destaque é a
capacidade de narrativa ou invenção narrativa.
Na relação entre os campos, como defende Barbosa,
história é comunicação e comunicação é história. As-
sim, ao se fazer história do jornalismo e da comunicação
produz-se, também, história, por meio da demarcação
de temporalidades, definição de significados do passa-
do da comunicação e da constituição de seu contexto
(BARBPSA & RIBEIRO, 2009). É a partir de restos e ves-
tígios, ou seja, de fontes históricas, que chegam até nosso
tempo, que podemos recontar as histórias que envolvem
particularmente os atos comunicacionais do passado. É
assim que a história, que afinal é comunicação, se torna
história da comunicação. Em sentido inverso, quando
o objetivo é recuperar a historicidade dos meios de co-
municação em determinado espaço e tempo, é preciso
estabelecer sentidos a partir das narrativas próprias de
outros tempos e que chegaram até nós sob a forma de
rastros. No olhar que se lança para a história como co-
municação, segundo Barbosa, duas noções teóricas são
fundamentais: a questão da narrativa e a noção de ras-
tro e vestígio. Por sua vez, na visão de comunicação en-
quanto história, ou mais especificamente, no olhar que
se lança para a história dos meios, é fundamental a no-
ção de vestígio. Assim, temos os meios de comunicação
em dois polos de pesquisa: o jornal como fonte, como
restos e vestígios para a construção da história; o jornal

241 A Comunicação, Meios e Interações


como objeto, como vestígios para narrativa da história
dos meios.
Foi na segunda metade do século XX que os meios de
comunicação passaram a ser tomados como fonte his-
tórica (ALVES e GUARNIERE, 2007; RIBEIRO, 2000).
Desde os anos 1930, com os trabalhos iniciais da Esco-
la de Annales, os estudos históricos vinham ganhando
novos ares. A visão positivista do fato histórico, em que
os jornais eram tidos apenas como porta-vozes de ideo-
logias e interesses políticos, não compactuando com os
estudos racionalistas e objetivos da época, perde força e
a noção de fonte histórica se amplia. Nesse contexto, o
documento deixa de ser apenas o registro político e ad-
ministrativo, pois para a história interpretativa mais que
a veracidade do documento, importam as questões que
são remetidas pelo historiador. Como explica Ribeiro, se
antes eram considerados válidos apenas os documentos
escritos que o historiador pudesse, através da crítica in-
terna e externa, certificar-se da sua autenticidade ou da
sua sinceridade e exatidão, agora, qualquer documento
– falso ou verdadeiro – é passível de tornar-se uma fonte
histórica.
Posteriormente, na década de 1960, os adeptos da
Nova História modificariam ainda mais o conceito de
documento. Essa corrente elegerá cada vez mais como
fontes fragmentos do passado, podendo ser estes os mais
diferentes objetos e escritos, desde que capazes de indi-
car acontecimentos específicos (ALVES e GUARNIERE,
2007). Hoje, o fato histórico é visto pelos historiadores
não como um elemento objetivo, observável apenas a

242 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


partir dos documentos, mas como um produto de práti-
cas sociais significantes (RIBEIRO, 2000).
A mídia assume não somente o papel de fonte para o
registro da história, ela passa também, segundo Ribei-
ro, a ser o principal lugar de memória e/ou de história
das sociedades contemporâneas. Com a inserção das
tecnologias de comunicação nas sociedades industriais,
a história deixou de ter papel central na construção da
memória oficial. Para a autora, a partir, sobretudo, do
século XXI, os meios de comunicação ocuparam lugar
institucionalizado de fala sobre a realidade social. As-
sim, a história passou a ser aquela que aparece nos jor-
nais, revistas, rádio e televisão, órgãos de comunicação
de massa que detêm o poder de elevar os acontecimentos
cotidianos ao patamar de fatos históricos. O que fica de
fora dos noticiários é visto, pelo consenso social, como
sem importância.
Tal fenômeno, como acredita Ribeiro, se deve ao de-
senvolvimento da ideia do jornalismo informativo, base-
ada nos conceitos/mitos de imparcialidade e neutralida-
de, surgidos nos Estados Unidos em meados do século
XIX, e que se consolidaram no século XX. No Brasil,
esses ideais se consolidaram mais tarde, na década de
1950, com as reformas editoriais dos grandes jornais na-
cionais e a introdução do modelo norte-americano de
produção de notícias.
Com as novas regras de redação, linguagem e apre-
sentação das matérias, o jornalismo noticioso perdia, su-
postamente, seu caráter emotivo e participante. Citando
Bahia (1990), Ribeiro coloca que “se antes, o ­jornalismo

243 A Comunicação, Meios e Interações


havia sido o lugar do comentário sobre as questões sociais,
da polêmica de ideias, das críticas mundanas e da produ-
ção literária”, ele passa, a partir daí, a ser o “espelho” da
realidade. Assim, o fato jornalístico aproxima-se do fato
histórico tal como o definia a corrente histórica positivista:
“Localizado em um tempo e em um espaço determinados,
o fato é marcado pela unicidade. O acontecimento único
revela-se, então, como o fator da transformação social,
como o motor da história” (RIBEIRO, 2000).
Ainda segundo expõe Ana Paula Goulart Ribeiro,
o jornalismo exerce papel importante na formação da
ideia de história. De um lado, porque ele indica dentre
todos os fatos da realidade, da cotidianidade, aqueles
que devem ser recordados no futuro, de outro, por se
constituir em um dos principais registros “objetivos” do
seu tempo, podendo ocupar também lugar de objeto.
Ao tomar os meios de comunicação, mais precisa-
mente a imprensa escrita, como fonte para a pesquisa, é
preciso segundo Luca (2005), considerar algumas ques-
tões teórico-metodológicas. A autora apresenta, então,
algumas indicações para o pesquisador que deseja se
debruçar sobre arquivos periódicos. Como primeiro
passo, para a autora, está a observação da materialidade
do impresso. Deve-se ter em vista a variação na aparên-
cia das folhas, fator resultante dos métodos e técnicas de
impressão disponíveis num dado momento e lugar em
que se produziram tais periódicos. Luca expõe que

“[...] Nas páginas dos exemplares, inscreve-se a


própria história da indústria gráfica, dos prelos

244 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


simples às velozes rotativas até a impressão ele-
trônica. O mesmo poderia ser dito em relação
ao percurso das imagens, que se insinua de for-
ma tímida nos traços dos caricaturistas e dese-
nhistas, e chega a açambarcar o espaço da escri-
ta com a fotografia e o fotojornalismo” (LUCA,
2005).

O olhar para fonte requer, segundo a autora, ter em


conta as condições técnicas de produção utilizadas à
época de circulação do jornal, bem como os fatores so-
ciais e históricos que propiciaram a seleção de um ou
outro modo de produção entre os que se dispunha.
O pesquisador que trabalha com a imprensa como
fonte deve, também, investigar aspectos como: a forma
que os impressos chegaram às mãos dos leitores; aparên-
cia física do impresso (formato, tipo de papel, qualidade
de impressão, capa, presença/ausência de ilustrações); a
estruturação e divisão do conteúdo; relações que man-
teve (ou não) com o mercado, a publicidade, o público.
Esses fatores, ligados às condições materiais e técnicas,
como ressalta Luca, se relacionam a contextos sociocul-
turais determinados que permitem situar a fonte em um
grupo ou série de fontes impressas com as mesmas ca-
racterísticas.
Tendo em vista que o pesquisador que utiliza peri-
ódicos como fonte trabalha com aquilo que se tornou
notícia/propaganda, Tânia Regina Luca aponta a ne-
cessidade de se observar os critérios de noticiabilidade
que transformaram um fato em notícia e as motivações

245 A Comunicação, Meios e Interações


que levaram a dar espaço a um e não a outro tema. Para
tanto, deve-se observar que tipo de destaque se deu ao
ocorrido, ou seja, em qual espaço do periódico foi pu-
blicado, já que o espaço ocupado pela notícia informa
muito da intencionalidade dos agentes responsáveis por
sua publicação.
Ainda, segundo as indicações de Luca, é importan-
te identificar cuidadosamente o grupo responsável pela
linha editorial do veículo, suas relações políticas, eco-
nômicas e sociais, os ideais que defendem. Também as
redações podem ser consideradas como espaços que re-
únem diferentes posicionamentos políticos, estéticas e
linguagens de redação, compondo redes que conferem
estrutura ao campo intelectual e permitem refletir sua
formação e estruturação.
Por fim, a autora defende que a utilização da impren-
sa como fonte não se limita a pesquisa de um ou outro
texto isolado, mas vai além, requer uma avalição minu-
ciosa do seu lugar de inserção e delineia, assim, a im-
prensa em uma abordagem que a faz, ao mesmo tempo,
fonte e objeto de pesquisa.
Por sua vez, Antonio Hohlfeldt (2011), abordando
mais especificamente o jornal como objeto, trata das
perspectivas e dos desafios para compor uma história
da imprensa e indica “o que o pesquisador precisa saber
e a que deve se dispor”. Como primeira observação, o
autor coloca que, se de modo geral, qualquer pesquisa
implica uma grande articulação coletiva que ultrapas-
sa tempo e espaço, na pesquisa histórica, isso se torna
ainda mais necessário. Conhecer o chamado “estado

246 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


da tarde”, as “coisas primeiras” do campo de pesquisa,
por meio de uma revisão aprofundada, é fundamental,
sobretudo nesse tipo de pesquisa, para sabermos “onde
nos encontramos, de onde vamos sair e, assim, melhor
esboçar onde queremos chegar” (HOHLFELDT, 2011).
Ter a consciência de que a pesquisa envolve estraté-
gias materiais nem sempre claras, não se referindo ape-
nas às questões intelectuais, é o segundo problema que
o pesquisador deve ter em conta ao trabalhar na com-
posição da história da imprensa. Esse problema, muitas
vezes difícil de ser resolvido, deve-se à precariedade e
deficiência, em geral, dos arquivos e museus brasilei-
ros. O autor cita como exemplo, o “Museu de Imprensa
Hipólito José da Costa”, em Porto Alegre (RS), fruto de
fusões de diversas instituições culturais, que ao longo de
décadas, armazenaram de formas variadas as publica-
ções de imprensa. Como resultado, têm-se coleções em
péssimo estado de conservação, com algumas já retira-
das de consulta.
Cada pesquisa exige infraestrutura própria, que va-
ria conforme as condições de conservação e disponi-
bilização do material que compõe o corpus do estudo.
Isso significa, consequentemente, dinheiro, tempo, tra-
balho, por vezes em equipe, além de soluções técnicas
nem sempre dominadas pelo pesquisador. Por outro
lado, destaca Hohlfeldt, com o avanço da tecnologia, o
maior desafio para o pesquisador deixou de ser o aces-
so aos antigos exemplares de jornal. Diferentes institui-
ções, como exemplo, a Biblioteca Nacional, reuniram
coleções ao longo do tempo e vem trabalhando em sua

247 A Comunicação, Meios e Interações


­ igitalização, fator que facilita e garante o acesso perma-
d
nente ao material.
Outro fator importante é o cuidado necessário na
leitura e interpretação dos jornais antigos. Para Hohl-
feldt, ler jornais antigos nos obriga, a partir de nosso
olhar contemporâneo, tentar compreender os princípios
que nortearam aquelas publicações, não pretendendo
aplicar padrões e conceitos do jornalismo do presente
ao jornalismo do passado. No mesmo sentido, Alves e
Guarniere indicam a relevância de se fazer críticas inter-
nas e externas aos documentos impressos, procurando
observar o ambiente em que foram produzidos, a que
tipo de sociedade estavam vinculados, quais os valores e
circunstâncias da época. Esse cuidado, para os autores,
evitaria o que consideram como “um dos piores pecados
do historiador”, o anacronismo. Esse pensamento corro-
bora com o exposto por Thompson (2008), em Mídia e
Modernidade: uma teoria social da mídia. O autor inglês
afirma que a comunicação não pode ser entendida fora
do seu contexto social, já que este se estrutura de diver-
sas maneiras, influindo diretamente na comunicação de
certo tempo e espaço. Considerar a comunicação como
uma forma de ação requer analisá-la como tal e, assim,
considerar seu caráter socialmente contextualizado,
uma vez que por meio dessa ação não só relatamos ou
descrevemos o estado das coisas, mas também estabele-
cemos e renovamos relações uns com os outros.
Também como desafio a ser enfrentado temos o que
Hohlfeldt chama de “conjunto de critérios de historici-
dade para escrever uma história da imprensa”, ou seja,

248 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


mecanismos próprios à imprensa, que estejam ligados
à evolução do meio e não a acontecimentos externos a
ele. Assim, como exemplifica o autor, a periodização da
pesquisa não levaria em conta, estritamente, a Indepen-
dência do Brasil, mas sim, o conjunto de decretos que
suspenderam a censura no país, alterando o modo de
fazer imprensa. Para o autor, é claro que existem rela-
ções e influências entre os fatos históricos, econômicos,
tecnológicos, culturais e a história da imprensa em si.
Porém, é apenas “enquanto deflagradores de mudanças”
ou “enquanto refletindo-se em novas conquistas para a
imprensa” que eles vão nos interessar.
Fechando seus apontamentos para o pesquisador de
história da imprensa, Antonio Hohlfeldt coloca que

“Quem se dispuser, pois, a pesquisar a história


da imprensa, deve se munir de paciência e tem-
po; saber que vai enfrentar problemas de locali-
zação de coleções; acessibilidade e condições de
consulta; qualidade do material disponibilizado
eventualmente ainda existente; necessidade de
montar espaços e estratégias para documenta-
ção, guarda e reprodução do material encon-
trado; compromisso ético e profissional em se
preocupar em dar acessibilidade máxima pos-
sível ao material encontrado; continuidade da
pesquisa porque, a todo momento, estão sendo
publicados novos materiais ou dados a respei-
to de uma publicação ou de uma época que nos
ajudam a entender ou ler melhor determinado
periódico ou período. Eu diria, pois, que um
verdadeiro pesquisador de história da ­imprensa

249 A Comunicação, Meios e Interações


está dedicado full time a seu trabalho, mesmo
quando não esteja diretamente envolvido com
ele.” (HOHLFELDT, 2011, p.42)

Narrativas históricas sobre imprensa: trabalhos


­publicados nos eventos da Rede Alcar (2013) e I­ ntercom
(2014)
Antes de partir para análise dos 141 trabalhos que
compõem nosso corpus de estudo, consideramos opor-
tuno apontar o perfil de cada um dos Grupos Temáticos
considerados na amostra (GT História do Jornalismo da
Rede Alcar, GT História da Mídia Impressa da Rede Al-
car e GT História do Jornalismo da Intercom).
A Rede Alfredo de Carvalho – Rede Alcar foi funda-
da em cinco de abril de 2001, na sede da Associação Bra-
sileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro. Dois anos
mais tarde, em junho de 2003, a entidade realizaria seu
primeiro Encontro Nacional, com o tema “Mídia Bra-
sileira: 2 Séculos de História”. O GT História da Mídia
Impressa (Jornal, Revista e Livro) figura entre os grupos
de trabalhos desse primeiro encontro nacional. O GT
História da Mídia Impressa apresenta, hoje, a seguin-
te ementa: Aborda a história da imprensa como mídia
(massiva, erudita ou popular), valorizando sua relevân-
cia como mais antigo suporte industrial da informação
no Brasil. O grupo tem recebido predominantemente

250 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


trabalhos sobre a produção, a edição e a leitura de jor-
nais, mas está aberto aos estudos sobre revistas, livros,
volantes, enfim sobre os processos comunicacionais que
fluem através dos impressos brasileiros.
No II Encontro Nacional da Rede Alcar, realizado em
abril de 2004, aparece o grupo temático História do Jor-
nalismo. Os trabalhos aceitos para publicações nesse GT
devem abordar, segundo a ementa, os temas: História do
jornalismo: aspectos teóricos e conceituais. Estudos de
jornalismo: aspectos históricos. Os jornais como lugares
de construção historiográfica. Os jornais como objeto de
estudos históricos. Aspectos da conformação do campo
profissional. A trajetória histórica do jornalismo e dos
jornalistas no Brasil. Estudos de caso referentes a espa-
ços sociais e veículos determinados. Os jornais como
fonte historiográfica.
A Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Inter-
disciplinares da Comunicação foi criada em 12 de de-
zembro de 1977, em São Paulo, objetivando o fomento e
troca de conhecimentos entre pesquisadores e profissio-
nais da área. Na, entidade, o GT História do Jornalismo
surgiu em 2009, com a divisão do Núcleo de Estudos em
Jornalismo em áreas de investigação específicas de tra-
balho. Desde então, o grupo abarca: conceitos sobre his-
tória da comunicação e do jornalismo; conceitos e prin-
cípios de periodização para uma história do jornalismo;
discussões sobre periodizações comparadas entre o jor-
nalismo português, brasileiro e colonial português; estu-
dos específicos sobre determinados períodos; diferentes
possibilidades de histórias do jornalismo; discussões

251 A Comunicação, Meios e Interações


sobre os conceitos de imprensa e de jornalismo; perso-
nagens da história do jornalismo; publicações; concei-
tos sobre imprensa e jornalismo que circulam em cada
momento; modos de produção do jornalismo em dife-
rentes momentos; diferentes produtos de jornalismo,
editorias, conceitos sobre o produto jornal, revista, etc.;
desenvolvimento do jornalismo, desde o manuscrito até
o ciberjornalismo; relações entre jornalismo, editoração
e publicidade/propaganda; presença dos gêneros jorna-
lísticos (sob a ótica histórica).
Feito isto, passaremos agora para a apresentação e
análise dos dados coletados. Como já exposto, foram
tabulados 65 trabalhos do GT História do Jornalismo
(Rede Alcar), 46 trabalhos do GT História da Mídia Im-
pressa (Rede Alcar) e 30 trabalhos do GT História do
Jornalismo (Intercom), com a observação dos seguin-
tes itens: objeto, temática, metodologia e período. Para
tanto, nos valemos da leitura de resumos e introduções
dos artigos, bem como da observação das referências bi-
bliográficas utilizadas, nos casos em que algum dos itens
analisados, sobretudo, a metodologia, não estavam indi-
cados no texto.
O primeiro item observado refere-se ao objeto de es-
tudo abordado pelos artigos. Foram encontrados 18 ti-
pos de objetos nos 141 trabalhos analisados, sendo eles:
jornal, revista, jornalismo, mídia, rádio, curso de jorna-
lismo, livro-reportagem, agência de notícia, televisão,
narrativa, fotografia, grade curricular, código de ética
dos jornalistas, Imprensa, livro, mídia impressa, meios
de comunicação e almanaques. O jornal figura como

252 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


objeto mais utilizado nas pesquisas, com 81 artigos. Na
sequência, aparece revista, presente em 28 trabalhos, e
jornalismo, com seis papers.
O jornal figura como objeto mais utilizado nos três
grupos temáticos analisados. No GT História do Jor-
nalismo (Rede Alcar) aparece em 40 dos 65 artigos,
com percentual de 61,5% de frequência. O GT Histó-
ria do Jornalismo (Intercom) é o que apresenta maior
percentual de trabalhos com este objeto, sendo 63,3%,
com 19 artigos entre os 30 publicados. Já no GT Histó-
ria da Mídia Impressa (Rede Alcar), jornal é indicado
como objeto em 22 dos 46 trabalhos, com frequência
de 47.82%. Nesse caso, há pouca diferença na incidên-
cia de trabalhos utilizando objeto jornal e revista. Esta
aparece em 39,13% dos trabalhos. Nos outros dois gru-
pos, História do Jornalismo (Rede Alcar e Intercom),
a utilização da revista como objeto é menos expressi-
va, representando apenas 10,7% e 10% dos trabalhos,
respectivamente. Neste caso, por possuir ementa mais
abrangente, os grupos de História do Jornalismo, re-
cebem trabalhos que utilizam objetos diversos, em
abordagem mais ampla do universo do jornalismo,
aparecendo enquanto objeto de estudo, inclusive, os
cursos de jornalismo, a grade curricular, o código de
ética profissional, entre outros, como já exposto ante-
riormente. Já o objeto jornalismo, que aparece como
o terceiro mais utilizado nos trabalhos, está presente
apenas nos GT História do Jornalismo (Rede Alcar e
Intercom), com seis artigos.

253 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Gráfico 1. Tipos de Objeto (GT História do Jornalismo – Rede Alcar)
Gráfico 2. Tipos de objeto. (GT História do Jornalismo – Intercom)
Gráfico 3. Tipos de objeto (GT História da Mídia Impressa – Rede Alcar)
No segundo eixo de análise, o item temática2, obser-
vamos os temas abordados nos trabalhos publicados nos
dois grupos de trabalhos da Rede Alcar e um da Inter-
com que abordam história e jornalismo. Encontramos
a ocorrência de 60 temáticas diferentes nos 141 artigos
tabulados e analisados. Entre os temas mais frequentes,
destacam-se: trajetória de personagem/empresa (14),
cobertura de guerra, eleições, tragédias (11), ditadura
(10), jornalismo regional e local (7), feminino (6), jor-
nalismo e memória (6), jornalismo internacional (4) e
pesquisa histórica (3). Apenas as temáticas “trajetória de
personagem/empresa” e “feminino” aparecem nos três
grupos de trabalhos.
Ao observamos os grupos de trabalho individual-
mente notamos uma variação de temáticas mais recor-
rentes. No GT História do Jornalismo (Rede Alcar), que
apresenta 65 papers, os temas trajetória de personagem/
empresa e cobertura de guerras, eleições, tragédias,
juntos, estão presentes em 21,5% dos artigos, com sete
trabalhos cada. Em segundo lugar está o tema ditatura,
com cinco artigos e frequência de 7.69%. Na sequência,
aparece o tema jornalismo internacional, com quatro ar-
tigos e frequência de 6,15%. É importante notar, ainda,

2. Deve-se ressaltar que as denominações das temáticas foram


mantidas de acordo com os resumos ou introduções dos arti-
gos podendo, por vezes, estarem próximas, em relação à abor-
dagem de conteúdo, de temáticas que aparecem com outra
nomenclatura. Opta-se, assim, por manter a classificação de
temário escolhido pelos autores dos papers.

257 A Comunicação, Meios e Interações


que entre os 65 trabalhos apresentados, 19 trazem temá-
tica com única ocorrência, no total de 31 temas. Por sua
vez, com 46 trabalhos, o GT História da Mídia Impressa
(Rede Alcar), traz 20 papers com temática única, entre
20 temas diferentes. A maior frequência de temática,
nesse grupo, foi de ditadura, que corresponde a 10,8%
dos trabalhos. Na sequência, aparecem os temas jorna-
lismo regional e cobertura de guerra, eleições, tragédias,
com quatro artigos cada. Em terceiro lugar, com apenas
três ocorrências, está o tema cultura/jornalismo cultu-
ral. Também o GT História do Jornalismo (Intercom)
traz como principal temática a ditadura, com 5 traba-
lhos e 16,6% de frequência. Esse grupo temático é o que
apresenta maior diversidade de percentual de temas,
com 50% dos artigos apresentando temática de única
ocorrência, 13,3% dos artigos com temática de dupla
ocorrência e 3,3% dos artigos com temática de tripla
ocorrência. No total, foram 28 temas diferentes aborda-
dos pelo GT.

Temáticas Ocorrências
Ditadura 5
Feminino (mulheres na Imprensa) 3
Cobertura (guerra, tragédias, eleições, etc.) 7
Trajetória de personagem/ empresa 7
Jornalismo, cidade e sociedade 2
Pesquisa Histórica 3

258 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Jornalismo local e regional 3
Jornalismo internacional 4
Modernização jornalística 2
Jornalismo e Memória 3
Ética 2
Tabela 1. Temáticas. Frequência maior que um. (GT História do
Jornalismo Rede Alcar)

Temática Ocorrência

Trajetória de personagem/ empresa 5

Cidade e sociedade 2

Proposta didática 2

Jornalismo e literatura 2

Feminino (mulher na imprensa) 2

Memória e Jornalismo 3

Tabela 2. Temáticas. Frequência maior que um. (GT História do


Jornalismo Intercom)

259 A Comunicação, Meios e Interações


Temática Ocorrências
Cultura e Tecnologia 2
Ditadura 5
Jornalismo regional 4
Cobertura (guerras, tragédias, eleições, etc.) 4
Jornalismo e entrevista 2
Publicidade 2
Cultura/ Jornalismo Cultural 3
Trajetória de personagem/ empresa 2
Jornalismo popular 2

Tabela 3. Temáticas. Frequência maior que um. (GT História da


Mídia Impressa Rede Alcar)

O terceiro item analisado neste artigo foi a metodolo-


gia aplicada aos trabalhos dos GT’s. Foram encontradas
19 metodologias de estudo utilizadas nos 141 artigos dos
três grupos temáticos. A metodologia mais recorrente é
a Pesquisa Bibliográfica, que aparece em 96 artigos. Na
sequência está o método da Análise de Conteúdo, com
57 trabalhos. Em terceiro lugar figura a Entrevista, com
10 ocorrências. Deve-se notar, também, que é comum
a indicação de dois ou mais métodos de análise em um
mesmo paper, sendo mais comum o uso de Pesquisa Bi-
bliográfica em conjunto com Análise de Conteúdo.
A metodologia Pesquisa Bibliográfica foi a mais uti-
lizada no GT História do Jornalismo (Rede Alcar), pre-
sente em 52 artigos dos 65, e GT História do Jornalismo

260 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


(Intercom), presente em 25 dos 30 artigos. No GT His-
tória da Mídia Impressa a metodologia mais recorrente
foi a Análise de Conteúdo, utilizada em 22 artigos dos 46
publicados no grupo. O método Pesquisa Bibliográfica
aparece na sequência, em 19 artigos.
Entre os métodos de estudo utilizados pelos autores
dos artigos encontramos métodos de análise de textos,
como Análise de Conteúdo, Análise do Discurso e Análise
de Enquadramento, métodos para a análise de imagens,
tais como Análise Iconográfica, Leitura de imagens e Te-
oria da Imagem, além de métodos ligados aos estudos
históricos como História oral, Levantamento Histórico e
Nova História.

Gráfico 4. Metodologia (GT História do Jornalismo Rede Alcar)

261 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Gráfico 5. (GT História do Jornalismo - Intercom)
Gráfico 6. Metodologia (GT História da Mídia Impressa Rede Alcar)
Por fim, como quarta categoria de análise tem-se o
recorte temporal de cada artigo, constituindo o item pe-
ríodo. Os recortes temporais adotados nos trabalhos dos
GT’s História do Jornalismo (Rede Alcar e Intercom) e
GT História da Mídia Impressa (Rede Alcar) privilegiam
os séculos XX e XXI. Os trabalhos analisados abordam
objetos e temas que se estendem desde o século XV até
a atualidade. Os papers que trazem estudos situados no
século XX são maioria nos três grupos de trabalhos,
com 83 artigos. Na sequência, aparecem os artigos com
estudos situados no século XXI, no total de 20 artigos.
Em terceiro estão os trabalhos que abordam temáticas
relacionadas à transição entre os séculos XIX e XX, com
18 papers. É importante apontar ainda que sete artigos
não tinham período definido.
No GT História do Jornalismo (Rede Alcar) encon-
tramos 36 trabalhos relacionados ao século XX, 11 que se
referem à transição entre os séculos XIX e XX ou a segun-
da metade do século XIX e primeira metade do século
XX, e nove trabalhos que se situam no século XXI. Nesse
grupo aparecem também dois estudos que analisam o sé-
culo XVIII e um que faz um panorama histórico do tema
e objeto entre os séculos XV e XX. Do mesmo modo, no
GT História do Jornalismo (Intercom) há prevalência de
estudos situados no século XX. Por outro lado, há mais
trabalhos ligados à transição entre os séculos XIX e XX
ou a segunda metade do século XIX e primeira metade
do século XX (4) do que ao século XXI (2). Nesse grupo
de trabalho também encontramos um paper que estabe-
lece um traçado histórico, que se ­estende do século XVI

264 A Comunicação, Meios e Interações


ao XXI. Por fim, o GT História da Mídia Impressa (Rede
Alcar), apresenta maior quantidade de trabalhos ligados
ao século XX (29). Em segundo lugar aparecem os arti-
gos com objetos e temas situados no século XXI (9) e, na
terceira posição, papers referentes ao século XIX (4).

Período Ocorrências
Século XV - XX 1
Século XVII 1
Século XVIII 2
Século XIX 1
Século XIX para Século XX 11
Século XX 36
Século XXI 9
Tabela 4. Período. (GT História do Jornalismo Rede Alcar)

Período Ocorrências
Século XVI - XXI 2
Século XVII 1
Século XIX 1
Século XIX para Século XX 4
Século XX 18
Século XXI 2
Tabela 5. Período. (História do Jornalismo Intercom)

265 A Comunicação, Meios e Interações


Período Ocorrências
Século XV - XXI 1
Século XIX 4
Século XIX para Século XX 2
Século XX 29
Século XXI 9
Tabela 6. Período. (GT História da Mídia Impressa Rede Alcar)

Conclusão
Ao problematizar as relações entre jornalismo e his-
tória na narrativa da história dos meios de comunicação
buscamos compreender, a princípio, o papel da mídia,
sobretudo, do jornal impresso, como fonte e objeto dos
estudos em História da Imprensa e da Comunicação. A
revisão bibliográfica nos levou a compreender a relação
entre o campo da história e o campo da comunicação,
suas ligações com o passado, as diversas abordagens de
narrativa histórica, o lugar da mídia nessas narrativas,
além dos desafios a serem enfrentados pelo pesquisador.
A partir disso, foi possível visualizar a imprensa em uma
abordagem que a faz fonte e objeto de pesquisa, como
exprime Luca, ao trabalhar com a exploração complexa
de textos e uma avalição minuciosa do seu lugar de in-
serção e contexto.

266 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Por meio do levantamento de artigos publicados em
grupos temáticos que tratam sobre a História do Jorna-
lismo e da Mídia Impressa foi possível observar a rele-
vância do uso do jornal, notadamente o impresso, como
objeto de estudo nas narrativas da história da própria
comunicação e do jornalismo. Dos 141 papers anali-
sados, 81 trazem jornal como objeto. Outro objeto em
destaque é a revista, presente em 28 artigos. Mesmo nos
GT’s História do Jornalismo (Rede Alcar e Intercom),
que apresentam ementas mais abrangentes em relação
aos conteúdos a serem abordados pelos artigos, há a
prevalência do objeto jornal. Nesses grupos, porém, ve-
mos a maior variedade de objetos, quando comparados
ao GT História da Mídia Impressa (Rede Alcar), que
delimita os envios de trabalhos aos estudos que abar-
cam impressos. Ainda, podemos apontar como possível
justificativa da utilização de jornais impressos e revis-
tas como principais objetos de estudo, a preservação e
arquivamento desses materiais em Arquivos Públicos,
Museus e Bibliotecas, que apesar de apresentarem defi-
ciências, como coleções incompletas ou em mau estado
de conservação, estão ao acesso do pesquisador.
Em relação à temática abordada pelos trabalhos
analisados notamos grande variedade, sendo 60 temas
diferentes em 141 artigos publicados. Entre os temas
mais recorrentes estão trajetória de personagem/empre-
sa, cobertura de guerra, eleições, tragédias e ditadura.
É interessante notar a tendência por artigos que façam
narrativas de trajetórias de personagens ou empresas,
sendo comum a análise de um aspecto do jornalismo

267 A Comunicação, Meios e Interações


ser embasada na figura de um jornalista ou empresa.
Outro ponto a ser destacado é o interesse dos autores
por estudos de assuntos ligados às temáticas temporal-
mente próximas ao pesquisador, tais como cobertura de
guerras, eleições e tragédias, como no caso do incêndio
da Boate Kiss, abordado em um dos artigos. Esse fator
indica grande quantidade de artigos ligados a aconteci-
mentos recentes e pontuais, de apelo social, e que muitas
vezes não estão vinculados às pesquisas mais extensas,
sendo por vezes tema explorado apenas para a redação
do artigo a ser publicado em evento. Ainda, ao analisar
a incidência do tema ditadura nos grupos de trabalhos
analisados, fica claro que a escolha pelo tema está rela-
cionada à data que marca os 50 anos do Golpe de 64 e da
Ditadura no Brasil, ocorrido abril de 2014.
No quesito metodologia verificamos a prevalência
dos métodos Pesquisa Bibliográfica, Análise de Conteúdo
e Entrevista. O uso recorrente da Pesquisa Bibliográfica
justifica-se, uma vez que, toda pesquisa deve estar base-
ada num prévio conhecimento do assunto a ser aborda-
do, numa espécie de reconstrução do “estado da arte”, já
trilhado por outros pesquisadores. No caso dos estudos
históricos em comunicação, a contextualização é funda-
mental para evitar o anacronismo da pesquisa (ALVES e
GUARNIERE, 2007). No entanto, é importante indicar
que muitos artigos se valem apenas deste método apre-
sentando revisões bibliográficas sobre os temas tratados.
Já a Análise de Conteúdo, por constituir um método
que se aplica a discursos diversificados, baseado na in-
ferência, e que possui um conjunto de técnicas próprias

268 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


(BARDIN, 2009), se aplica de forma abrangente nos es-
tudos de jornalismo e comunicação.
Por sua vez, no item período, notamos a opção por
objetos e temáticas situados nos séculos XX e XXI. Mais
uma vez, a escolha do recorte temporal é aquela mais
próxima ao tempo presente do autor. Como fator de
influência na tomada de decisão dos pesquisadores ao
delimitar o corpus de análise está o acesso aos materiais
a serem utilizados no estudo. Os arquivos de jornais im-
pressos, por exemplo, muitas vezes não são arquivados
de forma adequada, apresentando páginas apagadas, re-
cortadas, rasgadas e, inclusive, em decomposição, sobre-
tudo, os mais antigos. Além disso, grande parte desses
materiais precisa ser digitalizada pelo pesquisador que
deverá dedicar longo tempo de estudo nesta tarefa. Tais
fatores, como exposto por Hohlfeldt (2011), dificultam
o trabalho do pesquisador em História da Imprensa, daí
a escolha por recortes temporais mais próximos do pre-
sente, cujos materiais podem ser encontrados com mais
facilidade e em melhor estado de conservação.
Por fim, cabe apontar que os levantamentos e análises
aqui realizados compõem uma investigação inicial, por
isso mesmo aberta, da utilização da mídia enquanto ob-
jeto de estudo nas investigações acadêmicas sobre Histó-
ria do Jornalismo e Mídia Impressa, tomando como base
as publicações recentes dos GT’s História do Jornalismo
(Rede Alcar e Intercom) e GT História da Mídia Impres-
sa (Rede Alcar). A partir deste panorama, que apontou
as características das pesquisas em quatro frentes (obje-
to, temática, metodologia e período), podemos entender,

269 A Comunicação, Meios e Interações


em parte, a atual composição das pesquisas e trabalhos
desenvolvidos por estudantes e acadêmicos dentro dos
grupos temáticos. Apontamos, ainda, que as possibili-
dades de análise e problematização desses trabalhos são
amplas abrangendo itens que não foram abordados aqui.
Destacamos a relevância, por exemplo, de se realizar um
levantamento que leve em conta as referências bibliográ-
ficas utilizados nos artigos, de modo a indicar, entre ou-
tros fatores, autores e correntes privilegiados nos estudos
que relacionam jornalismo e história no Brasil.

Referências
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270 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


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plinares da Comunicação, 2010.

271 A Comunicação, Meios e Interações


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compor uma história da imprensa: o que o pesquisa-
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Celio José e VICENTE, Maximiliano Martin (Orgs). Im-
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Petrópolis, RJ: Vozes, 2008

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http://www.portalintercom.org.br/index.php
http://www.ufrgs.br/alcar
http://www.dicionariodoaurelio.com/

272 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Capítulo 9
Henry Jenkins e Andrew Keen:
A Cibercultura sob diferentes olhares1

Felipe de Oliveira Mateus2

Definições de Cibercultura
O constante desenvolvimento tecnológico da internet
e dos dispositivos digitais de comunicação que se utili-
zam dela, aliado à cultura envolvida em seus usos evi-
denciam a emergência da cibercultura enquanto temá-
tica de estudos dentro do campo da comunicação. Tais
estudos sustentam-se na definição de Lévy (1999) a res-
peito da cibercultura. Segundo o autor, ela se ­apresenta

1. Artigo apresentado como trabalho de conclusão da disciplina


Teorias da Comunicação, do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Unesp, campus de Bauru, ministrada pelo
prof. Dr. Osvando de Morais, no 2º semestre de 2014.
2. Mestrando em Comunicação pela Unesp, campus de Bauru.
­E-mail: felipe.omateus@hotmail.com.

273
como “o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais),
de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de
valores que se desenvolvem com o crescimento do cibe-
respaço” (1999, p. 17).
A partir dessa definição norteadora, é possível desta-
car o viés duplo que os estudos tomam, sendo dedicados
tanto à análise do desenvolvimento tecnológico em si,
quanto dos usos culturais que dão sentido às tecnolo-
gias. Incorporadas às práticas sociais contemporâneas,
as tecnologias dão origem a novas formas de interação
social. Conforme sustenta Lemos (2013), a cibercultu-
ra configura-se como uma forma de convergência entre
o social e o tecnológico, já que as novas mídias advin-
das do desenvolvimento tecnológico promovem novas
formas de sociabilidade. Lemos (2013) assim coloca a
cibercultura como a “sociedade estruturada pela conec-
tividade”.
Dessa forma, analisa-se que a cibercultura não deve
ser encarada como uma forma de cultura que surge sem
antecedentes, ou que começa a se manifestar apenas
com o desenvolvimento da internet. Ela é um sistema de
práticas e valores que se desenvolve com a incorporação
e mediação dos dispositivos digitais, mas que se ancora
nas práticas e valores já existentes em um determinado
sistema cultural e que se desenvolveu por meio de um
longo processo midiático caracterizado pela progressiva
personalização das tecnologias e conteúdos midiáticos
aos quais temos acesso (SANTAELLA, 2003).
Segundo Santaella (2003), essa personalização,
responsável por dar origem ao cenário cultural que

274 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


­ enominamos como cibercultura, possibilitou que, em
d
um primeiro momento, produtos culturais pudessem
ser consumidos de forma individual, rompendo com a
lógica massiva vigente até então. Isso se tornou possível
graças a tecnologias surgidas nos anos 1980 e 1990, tais
como o videocassete, o walkman, o CD player. O efei-
to dessa evolução na produção cultural foi a criação de
produtos destinados a esse consumo individualizado e
passíveis de customização. Porém, com a conexão à in-
ternet e seus respectivos recursos digitais, a personali-
zação colocada por Santaella (2003) avançou no sentido
de permitir ao antigo consumidor passivo, o receptor do
modelo comunicacional de Lasswell, ou a massa, na vi-
são crítica dos frankfurtianos (WOLF, 2009) a também
se tornar um produtor de mensagens e de conteúdos
que, também pelos meios digitais, podem ser divulga-
dos e consumidos.
De uma forma simplificada e com viés estritamente
tecnológico, este foi o caminho percorrido pelas mídias
que hoje conformam o cenário cibercultural. Essencial
para a formação desse cenário e que é tema de grande
parte dos estudos em cibercultura são os usos culturais
feitos dessas tecnologias midiáticas, sua incorporação
nos sistemas culturais e sociais e as novas práticas sur-
gidas dessa incorporação. Esse caráter dado aos estudos
comprova a definição de Lévy (1999) que considera a
cibercultura um conjunto de valores e práticas estabele-
cidos a partir da mediação digital.

275 A Comunicação, Meios e Interações


A Classificação de Rüdiger
Dadas as constantes mudanças pelas quais passam
seus objetos e os efeitos culturais que delas surgem, a
cibercultura hoje ocupa um importante espaço no rol
de temáticas das pesquisas em comunicação. Isso pode
ser comprovado na multiplicação de obras teóricas e de
autores que se dedicam ao assunto. Tais pesquisas ga-
nham visibilidade por meio de eventos e instituições de
pesquisa, tais como os grupos de trabalho com a temáti-
ca cibercultural existentes nos congressos da Sociedade
Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunica-
ção (Intercom) e da Associação Nacional dos Programas
de Pós-Graduação em Comunicação (Compós), além
das produções realizadas pela ABCiber, Associação Bra-
sileira de Pesquisadores em Cibercultura. Devido a essa
expansão e visibilidade conquistada não só nas institui-
ções de pesquisa brasileiras, mas também de outros pa-
íses, sobretudo norte-americanas e europeias, várias são
as perspectivas empregadas na análise da cibercultura
enquanto novo paradigma da comunicação e da cultura
contemporânea.
Um dos principais nomes dos estudos teóricos no
Brasil, Francisco Rüdiger explora as definições atribuí-
das à cibercultura como forma de cultura que se desen-
volve por meio das tecnologias de comunicação e chega
a um pensamento que envolve o conceito de mediação.
Segundo o autor (2013), a comunicação que ocorre por
meio das tecnologias digitais deixa de ser simplesmen-
te imediata, dependente apenas da linguagem, e passa

276 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


a depender das mídias. Com isso, podemos considerar
que a mediação digital torna-se um dos pilares da cena
cibercultural.
Porém, ao mesmo tempo em que o autor atribui
aos processos comunicacionais um novo fator de me-
diação no cenário digital, se analisarmos as práticas de
comunicação e cultura digital aos olhos das teorias clás-
sicas da comunicação, que levam em conta modelos con-
sagrados como o de Lasswell, ao mesmo tempo em que
deve ser considerada a mediação digital proposta por
Rüdiger (2013), é possível considerarmos que há outra
nova configuração da medicação existente no processo
de produzir e acessar mensagens. Da mesma forma em
que os suportes tecnológicos dão origem a uma nova
mediação tecnológica, a possibilidade de os usuários
das mídias produzirem, divulgarem e acessarem outras
mensagens e conteúdos produzidos por outros usuários
exclui a necessidade de haver a mediação de pessoas,
empresas e instituições nos processos de comunicação.
Ao analisar o panorama de perspectivas dadas à ciber-
cultura, principalmente por conta dos fatores mencio-
nados acima, Rüdiger (2013) propõe uma classificação
que agrupa essas visadas em três chaves de pensamento.
De acordo com o autor, os estudos podem ser classifi-
cados como: “populistas tecnocráticos”, grupo ao qual o
autor atribui uma visão otimista a respeito da cibercul-
tura e que seria ligado a pesquisas de caráter empresa-
rial e mercadológico; “conservadores midiáticos”, esfera
formada por autores alinhados a formas tradicionais de
comunicação e de cultura e que veem a cibercultura com

277 A Comunicação, Meios e Interações


maus olhos; e os “cibercriticistas”, grupo que se preocu-
pa em estabelecer uma visão de caráter dialético à ciber-
cultura, refletindo sobre suas relações com as esferas de
poder e os problemas que podem surgir a partir disso.
A partir do que refletimos a respeito da mediação
tecnológica e da imediação institucional que a cibercul-
tura proporciona, podemos analisar que as diferenças
existentes entre as perspectivas teóricas mencionadas
por Rüdiger (2013), principalmente em relação aos dois
primeiros grupos, de visões antagônicas, devem-se as
considerações feitas justamente pelo novo cenário ciber-
cultural que exclui a necessidade de haver uma media-
ção institucional nos processos de comunicação digital.
Assim, aqui analisaremos as ideias defendidas por
dois autores que, segundo Rüdiger (2013), pertencem a
esses grupos e suas obras são influentes na difusão de
seus pontos de vista: Henry Jenkins, alinhado às visões
progressistas e otimistas (“populistas tecnocráticos”) e
Andrew Keen, ligado ao pensamento conservador. Ain-
da que defensores de perspectivas diferentes acerca de
um mesmo universo cultural, Jenkins e Keen compar-
tilham em muito conceitos e fenômenos que são anali-
sados sob suas óticas opostas. Isso se explica por serem
membros de uma mesma geração intelectual que herdou
os conhecimentos basilares a respeito da cibercultura de
autores que são fundamentais para a formação do co-
nhecimento a respeito do tema. O que mais se destaca
dentre as referências utilizadas para a reflexão a respei-
to da cibercultura é Pierre Lévy, que juntamente com
Manuel Castells, analisa a forma como ela se estabelece

278 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


como uma cultura digitalmente mediada. Porém, todo
esse conhecimento construído sobre a cibercultura tem
origem nas reflexões feitas por Marshall McLuhan, vi-
sionário canadense que pensou, nos anos 1960, como
seria o mundo interconectado em redes.

A Herança de Mcluhan
Marshall McLuhan foi um dos mais influentes teóri-
cos alinhados à chamada Escola de Toronto, grupo de
pesquisadores ligados à Universidade de Toronto que
se destacou por difundir a Teoria do Meio dentro dos
estudos comunicacionais. Conforme analisa Martino
(2014), a Teoria do Meio põe como foco de atenção as
características dos meios de comunicação e como eles
interferem na configuração das mensagens.
O autor sustenta que, para seus intérpretes da Escola
de Toronto - além de McLuhan, destacam-se Harold In-
nins, Joshua Meyrowitz e Derick de Kerckhove - os mo-
dos de compreender o mundo são determinados con-
forme as gerações interagem com suas mídias. Assim, a
perspectiva apregoada pelos membros do grupo coloca
os meios em uma posição de protagonismo nas análises
comunicacionais, ponto de vista inovador até então, já
que a maior parte das correntes teóricas da comunica-
ção voltavam sua atenção às intenções dos produtores
das mensagens ou aos efeitos destas nos públicos recep-
tores (WOLF, 2009).

279 A Comunicação, Meios e Interações


De acordo com a análise colocada por Martino
(2014), McLuhan considera que a comunicação se es-
trutura a partir das conexões que as mídias estabelecem
entre as pessoas. Tomando os modelos comunicacionais
consagrados como exemplos, na relação existente entre
emissor, produtor da mensagem, e o receptor, está uma
forma de mídia. Na visão de McLuhan, cabe a este ele-
mento o papel principal no ato comunicativo. Por conta
disso, a grande questão colocada pelo autor ao longo de
seus estudos é a forma como os meios de comunicação
interferem na maneira como vemos e temos acesso à re-
alidade, já que são eles os responsáveis por estabelecer as
relações entre as pessoas (MARTINO, 2014).
McLuhan tornou-se célebre ao elaborar importantes
conceitos que deram sustentação aos estudos focados na
cibercultura dentro do contexto de expansão da internet
nos anos 1990, tendo Pierre Lévy como grande referência.
Dentre os conceitos que se destacam nesse sentido estão o
de Aldeia Global e o de que os meios de comunicação são
extensões do homem. Há que se ressaltar que as ideias de
McLuhan foram elaboradas nos anos 1960, dentro de um
contexto midiático em que a maior inovação era a televi-
são. Porém, o caráter visionário de sua obra nos permite
aplicá-la em estudos recentes sobre mídias digitais.
Logo no início de seu «Os Meios de Comunicação
como Extensões do Homem» (2007), sua principal obra,
McLuhan antevê o que a cultura mediada pelos meios
seria capaz de realizar, cenário que denomina como
«simulação tecnológica da consciência» e que hoje é
­comparável ao que a internet se tornou.

280 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Hoje, depois de mais de um século de tecnologia
elétrica, projetamos nosso próprio sistema ner-
voso central num abraço global, abolindo tem-
po e espaço (pelo menos naquilo que concerne
ao nosso planeta). Estamos nos aproximando
rapidamente da fase final das extensões do ho-
mem: a simulação tecnológica da consciência,
pela qual o processo criativo do conhecimento
se estenderá coletiva e corporativamente a toda
a sociedade humana, tal como já se fez com nos-
sos sentidos e nossos nervos através dos diver-
sos meios e veículos. (MCLUHAN, 2007, p. 17)

Assim, o autor coloca que por meio da conectivida-


de elétrica, o mundo torna-se uma vila, a chamada al-
deia global. O que McLuhan (2007) expressa por meio
do conceito é o fato de que a expansão midiática que à
época tinha como maior avanço a plenitude dos meios
eletrônicos, comparável com o que hoje são as mídias
digitais, possibilitaram também a expansão do universo
simbólico ao qual temos acesso por meio de nossos sen-
tidos. Isso ocorre em tal proporção que todo o mundo
torna-se conectável por meio das mídias.
Para que o homem então dê conta desse vasto uni-
verso que se torna acessível de forma mediada, para
que haja esse “abraço na humanidade”, McLuhan (2007)
analisa que os meios atuam como nossas extensões, am-
pliando nossos sentidos que permitem o acesso ao uni-
verso sensível. Pelo fato de este universo permanecer em
constante expansão, o autor analisa que o homem sente-
-se motivado a criar novas extensões de si mesmo por

281 A Comunicação, Meios e Interações


meio das mídias. Por isso, sustenta que o homem é ca-
paz de modificar e ser modificado pelas mídias, que são
suas extensões. Dessa forma, McLuhan (2007) confirma
o protagonismo dos meios não apenas nas relações co-
municativas simples, mas como operadores de mudan-
ças que ocorrem na sociedade a partir de mudanças tec-
nológicas. Essas ideias inspiraram autores que, a partir
da popularização da internet nos anos 1990, puderam
aplicar conceitos antes futuristas em fenômenos reais e
cotidianos, tais como Pierre Lévy e Manuel Castells.
O grande mérito de Lévy (1999) ao pensar a ciber-
cultura como um sistema cultural que se desenvolve a
partir da expansão do ciberespaço é o de ter pensado
os meios como fatores que proporcionam aos homens,
agentes produtores e transformadores da cultura, a
possibilidade de criar novos hábitos e valores, que pas-
sam a configurar a cibercultura. Como o próprio autor
defende, as tecnologias são produtos culturais, já que
carregam consigo sentidos que são culturalmente de-
terminados, como seus próprios usos e a forma como
estes interferem no cotidiano da sociedade. Assim, Lévy
(1999) propõe que as tecnologias, como os meios de co-
municação, não determinam, mas dão condições para
que a cibercultura exista. A ideia vai ao encontro do que
Manuel Castells interpreta como a formação da cultura
da internet.

Os sistemas tecnológicos são socialmente pro-


duzidos. A produção social é estruturada cul-
turalmente. A internet não é exceção. A ­cultura

282 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


dos produtores da internet moldou o meio. Es-
ses produtores foram, ao mesmo tempo, seus
primeiros usuários [...] A cultura da internet é
a cultura dos criadores da internet. (CASTELLS,
2003, p. 34)

Assim, os dois autores expõem sua concordância ao


afirmar que, sendo a cibercultura uma forma de cultu-
ra mediada através das mídias digitais, os usos culturais
feitos dos meios tecnológicos fazem deles instrumentos
não apenas técnicos, mas humanamente definidos, o
que exclui das análises acerca da cibercultura o chamado
determinismo tecnológico. Para os autores, apesar de as
tecnologias terem papel importante, a cibercultura é um
produto cultural humano.
A partir disso, Lévy (1999) dedica-se à análise de
conceitos que surgem com a evolução dos meios digi-
tais, como a inteligência coletiva, forma com a qual a
cibercultura é construída, a virtualidade e a interativi-
dade. Tomando a referência de McLuhan (2007) de que,
através dos meios o homem é capaz de abarcar toda a
humanidade, Lévy (1999) propõe que o ciberespaço é
marcado por sua “universalidade não totalizante”, o que
significa não ter limites em seu formato de rede e que
cada integrante desta rede pode ser um emissor de in-
formações.
Este é outro fator em comum nas definições teóri-
cas do cenário cibercultural, a possibilidade de todos os
indivíduos terem acesso aos meios digitais de comuni-
cação, serem produtores de informações e difundirem

283 A Comunicação, Meios e Interações


seus conteúdos por meio das redes. Se considerarmos a
perspectiva de McLuhan (2007) de que os meios são ex-
tensões de nossos sentidos para termos acesso ao amplo
universo sensível, a partir do momento em que as mí-
dias digitais de comunicação tornam-se utilizáveis, elas
se tornam nossas extensões não apenas com a função de
tornar o universo acessível, mas também estendem nos-
sas capacidades de produzir informações e difundi-las.
Ou seja, as mídias não são extensões apenas para o con-
sumo de informações, mas também para a produção de-
las, o que configura um cenário em que cada habilidade
estendida - a de acessar informação e a de produzi-la -
alimentam-se reciprocamente. Tal condição possibilitou
não somente a difusão da internet nos anos 1990, como
também o surgimento de redes sociais nos anos 2000,
comprovando a perspectiva de Lemos (2013) de que a
cibercultura possibilita novas formas de sociabilidade.
Retomando a perspectiva de Rüdiger (2013) a res-
peito da comunicação, o fato de o autor colocar que a
troca de informações, antes imediata, agora depende da
mediação digital faz referência à visão aqui colocada de
que as mídias atuam como extensões de nossa capaci-
dade comunicativa. Porém, ao mesmo tempo em que a
extensão de acessar informações cria uma nova forma
de mediação, ao estendermos nossa capacidade de pro-
duzir informações e difundi-las pelas mesmas mídias,
dispensamos a necessidade de que haja nesse processo
a mediação institucional de empresas midiáticas ou de
profissionais que tenham o domínio técnico e/ou buro-
crático dos meios. Assim, ao mesmo tempo em que uma

284 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


nova mediação técnica é criada, outra institucional é re-
tirada do processo. Ao classificar as diferentes visões a
respeito da cibercultura e propor os três grupos teóricos,
o que Rüdiger (2013) explicita são as diferentes visões
a respeito dessa reconfiguração da mediação. Partimos
então para a verificação de como Henry Jenkins e An-
drew Keen expõem suas visões opostas a respeito desse
novo cenário da comunicação.

Henry Jenkins: da convergência à conexão


Autor que conquistou visibilidade no campo da co-
municação a partir da segunda metade dos anos 2000,
Henry Jenkins destaca-se hoje tanto no meio acadêmico
quanto no mercado de comunicação, tendo seus concei-
tos em muito explorados por estudiosos e profissionais
das mídias e do marketing. Tal perfil reforça o viés mer-
cadológico descrito por Rüdiger (2013) em sua classifi-
cação dos estudos que considera “tecnocráticos”.
O autor tem como marca de sua produção teóri-
ca as visões dadas aos usos midiáticos realizados pelo
público. Sua grande preocupação está na utilidade, na
valorização, no aproveitamento e no consumo de conte-
údos produzidos pelas antigas audiências passivas, hoje
produtoras e difusoras de informação. Por conta dessa
prioridade dada a esse tipo de produção, Jenkins (2009)
volta-se em muito às produções midiáticas advindas de
comunidades de fãs, os chamados fandoms.

285 A Comunicação, Meios e Interações


A grande difusão de suas ideias foi obtida com a pu-
blicação de “Cultura da Convergência” (2009), obra em
que reflete sobre o cenário cultural da convergência de
mídias e como ele modifica os usos midiáticos feitos pelo
público. Tais reflexões tiveram continuidade com “Cul-
tura da Conexão” (2014), obra recente, publicada em
coautoria com Sam Ford e Joshua Green, parceiros de
Jenkins em grupos de estudos de mídia ligados ao Mas-
sachusetts Institute of Technology (MIT). O livro parte
para a análise de como ocorre a circulação de conteúdos
nesse cenário convergente já analisado. Pode-se verificar
que tanto Cultura da Convergência, quanto Cultura da
Conexão, colocam a audiência ativa e produtora de con-
teúdos em posição de protagonismo, sendo que a im-
portância desses agentes nas relações comunicacionais
ocorrem graças às mídias que tornam o cenário possível.
O conceito de convergência é definido por Jenkins
(2009) como o fenômeno que possibilita o fluxo de con-
teúdos entre suportes midiáticos, o trânsito do público
entre eles na busca por novos conteúdos e o trabalho em
conjunto de mercados de mídia. É a partir da ideia de
convergência que o autor conceitua o conteúdo trans-
mídia, que é aquele criado para transitar entre diferentes
suportes que se complementam e que oferecem ao pú-
blico essa opção de consumo de várias mídias. Por con-
ta disso, o conceito acabou se tornando mais aplicável
a narrativas criadas em diferentes suportes midiáticos,
como filmes, seriados, animações e games.
Apesar de a convergência ocorrer por conta do de-
senvolvimento tecnológico das mídias, o autor deixa

286 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


c­ laro que ela é um fenômeno cultural que envolve os
usos dos suportes midiáticos e que a cultura envolvida
nesses usos é o motor de tal transformação simbólica.

a convergência representa uma transformação


cultural, à medida que consumidores são incen-
tivados a procurar novas informações e fazer co-
nexões em meio a conteúdos de mídia dispersos.
(JENKINS, 2009, p. 29-30)

Tais usos culturais favorecem o desenvolvimento de


conformações comunicacionais e midiáticas em muito
exploradas pelo autor dentro dos fenômenos analisados:
a cultura participativa de mídias, que surge com a audiên-
cia sendo capaz de também ser produtora de conteúdos,
e a inteligência coletiva, conceito criado por Pierre Lévy,
que faz referência ao potencial de as redes possibilitarem
a criação de comunidades de conhecimento. A partir das
reflexões sobre os usos das mídias, Jenkins (2009) analisa
as possibilidades de essas comunidades se concretizarem.
O autor deu continuidade à reflexão sobre os conteú-
dos criados e difundidos pelas audiências com o desen-
volvimento do conceito de “propagabilidade” (JENKINS;
FORD; GREEN, 2014). A ideia pode ser entendida como
uma continuação do cenário de mídia previsto pela con-
vergência, agora englobando a circulação de conteúdos
por meio do compartilhamento ativo do público.

A “propagabilidade” se refere aos recursos técni-


cos que tornam mais fácil a circulação de algum

287 A Comunicação, Meios e Interações


tipo de conteúdo em comparação com outros,
às estruturas econômicas que sustentam ou res-
tringem a circulação, aos atributos de um texto
de mídia que podem despertar a motivação de
uma comunidade para compartilhar material e
às redes sociais que ligam as pessoas por meio da
troca de bytes significativos. (JENKINS; FORD;
GREEN, 2014, p. 26-27)

A partir dos conceitos desenvolvidos pelo autor e da


visão dada por ele à cultura envolta nos usos dos suportes
midiáticos e na produção de conteúdos pelas audiências,
fica clara a herança teórica de Pierre Lévy e sua obra, prin-
cipalmente com base em evidências como o uso do concei-
to de inteligência coletiva. Também é possível identificar a
sustentação que as ideias de McLuhan (2007) fornecem às
de Jenkins (2009; 2014). Ao longo do desenvolvimento de
suas teorias a respeito dos meios enquanto extensões do
homem, McLuhan (2007) analisa que o público usuário
e consumidor de mídias demonstra ter fascínio por suas
extensões, já que as tais dão a ele o acesso a um universo
simbólico amplo e sua criação é motivada por um cenário
cultural em que «o estímulo para uma nova invenção é a
pressão exercida pela aceleração do ritmo e do aumento
de carga» (MCLUHAN, 2007, p. 60). Ou seja, o autor con-
sidera que apesar do protagonismo dos meios, são as con-
dições culturais vigentes que induzem os homens a criar
e a utilizar novos meios, novas extensões. Remetendo isso
ao pensamento de Jenkins (2009; 2014), são as mesmas
condições que geram fascínio no público por suas exten-
sões que o leva a produzir e compartilhar conteúdos, além

288 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


de tornar os meios aptos à cultura do compartilhamento,
de dotá-los de propagabilidade.
Já em relação à perspectiva colocada do Rüdiger
(2013) de que a comunicação digital consiste na inclusão
de uma nova modalidade de mediação pelos suportes
digitais no processo comunicacional, é perceptível que
Jenkins (2009; 2014) demonstre uma visão positiva acerca
do novo cenário da comunicação. Seus conceitos também
reforçam a visão proposta aqui de que, enquanto se in-
clui uma mediação técnica na comunicação, excluem-se
antigas mediações institucionais. Justamente por valori-
zar a produção informativa das audiências, por celebrar a
formação de uma cultura participativa, possibilitada pelas
mídias e pelo cenário cultural já verificado por McLuhan
(2007) e Lévy (1999), e ainda por analisar a necessidade
dos meios de ofereceram condições de que o público aces-
se e compartilhe conteúdos, evidencia-se o otimismo de
Jenkins (2009; 2014) em relação à nova configuração das
mediações envolvidas na comunicação e o porquê de ele
ser considerado por Rüdiger (2013) como um tecnocra-
ta. Tais características ficam ainda mais evidentes quando
comparadas às ideias de Andrew Keen, autor ligado às
ideias conservadoras em relação às mídias.

Andrew Keen: o público como amador


Classificado por Rüdiger (2013) em sua análise das
visões teóricas acerca da cibercultura como um “conser-
vador midiático”, Andrew Keen conquistou visibilidade

289 A Comunicação, Meios e Interações


entre os estudiosos e profissionais da comunicação da
mesma maneira que Henry Jenkins o fez, tendo sua tra-
jetória em muito associada aos grandes grupos de mídia
digital, como o próprio autor relata no início de “O Cul-
to do Amador” (2009), obra em que expõe seu ponto de
vista sobre a cultura da internet.
Ao contrário de Jenkins (2009; 2014), que exalta os
benefícios do desenvolvimento de uma cultura baseada
na produção midiática ativa das audiências, Keen (2009)
expressa uma visão extremamente negativa a respeito
desse cenário participativo. Sua produção é marcada
pela argumentação de que a possibilidade concedida às
audiências de serem produtoras e difusoras de conteú-
dos, por meio de suportes que oferecem tais recursos a
seus usuários, de que o ambiente de cultura participati-
va e de mídias propagáveis celebrado por Jenkins (2009;
2014) representa, na verdade, uma ameaça às institui-
ções e valores culturais consagrados. Para ele, a valoriza-
ção dos conteúdos produzidos por agentes e instâncias
não ligados a esferas institucionais é um culto ao ama-
dorismo, o que dá nome a sua principal obra.
É possível perceber na trajetória de Keen, em especial
na difusão de suas reflexões nas referências disponíveis
no Brasil, um progressivo incremento teórico de seus ar-
gumentos acerca da cultura digital contemporânea. Sua
primeira obra, «O Culto do Amador» (2009), é marcada
por análises feitas a respeito da situação atual do cam-
po cultural e das comunicações, em muito baseadas em
suas próprias visões sobre a questão. Ao longo do livro,
demonstra possuir uma visão conservadora a respeito

290 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


da eliminação da mediação institucional de profissio-
nais e empresas nos processos de comunicação com as
massas. Para o autor, dotar as audiências de capacidade
para produzir e difundir informações por meio das mí-
dias significa colocar em xeque a qualidade e a confiabi-
lidade de tais conteúdos.

o conteúdo gratuito e produzido pelo usuário


gerado e exaltado pela revolução da Web 2.0
está dizimando as fileiras de nossos guardiões da
cultura, à medida que críticos, jornalistas, edi-
tores, músicos e cineastas profissionais e outros
fornecedores de informação especializada estão
sendo substituídos (“desintermediados”, para
usar um termo da FOO Camp) por blogueiros
amadores, críticos banais, cineastas caseiros e
músicos que gravam no sótão. [...] Pois a con-
sequência real da revolução da Web 2.0 é menos
cultura, menos notícias confiáveis e um caos de
informação inútil. (KEEN, 2009, p. 20)

O autor segue ao longo da obra com exemplos de


como esse cenário é prejudicial a instituições culturais
tradicionais, como a indústria fonográfica, o cinema, a
televisão e o jornalismo.
Já em sua obra subsequente, “Vertigem Digital”
(2012), Keen demonstra um tom mais analítico e maior
solidez teórica em suas reflexões. O autor passa a fo-
car seus estudos nos usos e na penetração que as redes
sociais têm na cultura humana. Partindo da premis-
sa de que elas são responsáveis por um processo de

291 A Comunicação, Meios e Interações


i­solamento social pelo qual passam os indivíduos, ao
invés de promover a integração entre as pessoas, Keen
(2012) argumenta a respeito de como as práticas de di-
vulgação e compartilhamento de informações pessoais
tornam-se as principais fontes de lucro das novas em-
presas de mídia digital, o que leva ao comprometimento
e à ameaça da privacidade dos usuários, conceito que
Keen considera ter ressignificado no contexto da cultura
digital (2012, p. 57).
Tal solidez teórica mencionada acima acerca das re-
flexões feitas em “Vertigem Digital” pode ser identifi-
cada pelas referências utilizadas pelo autor para validar
seus argumentos. Para justificar a atração que os usuá-
rios de mídia têm pelas redes sociais, o autor se utiliza
do conceito de hiper-realidade de Baudrillard, que ex-
pressa a forma como as tecnologias anulam as barreiras
entre realidade e irrealidade, para conceituar o que con-
sidera como “hipervisibilidade”. De acordo com Keen
(2012), o conceito seria uma aplicação da definição de
Baudrillard aos usos das redes sociais, que promoveriam
o apagamento das fronteiras entre a visibilidade e a invi-
sibilidade (2012, p. 22). O que o autor quer dizer é que,
tendo a própria imagem mediada pelas redes, o homem
torna-se, ao mesmo tempo, visível a todos, por conta da
difusão que adquirem as informações nas redes, e invi-
sível, dado o isolamento social que estas promoveriam.
Ainda na reflexão sobre as motivações para os usos
das redes sociais, Keen (2012) preocupa-se em buscar
a origem da cultura de valorização do social que existe
nas redes, o que se mostra como fator determinante nos

292 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


hábitos de compartilhamento de informações nas redes.
Nessa busca, o autor situa o surgimento dessa cultura no
contexto contracultural nos anos 1960, período em que
se valorizava o coletivo e o social em detrimento do in-
dividual. Assim mesmo, ao longo da obra, fica claro que,
na visão de Keen (2012), tal motivação cultural foi frus-
trada, já que defende a ideia de que as mídias promovem
o isolamento ao invés da integração.
O que se destaca da busca teórica feita por Keen
(2012) das origens dessa cultura social que permeia os
usos midiáticos é o fato de o autor também compartilhar
da visão de que as tecnologias são social e culturalmente
determinadas. Conforme já foi visto, tal ponto de vista
também é empregado por Jenkins (2009; 2014) e encon-
tra sustentação nas reflexões tanto de Lévy (1999), quan-
to de McLuhan (2007). Ainda sobre este último, Keen
também se utiliza do conceito de Aldeia Global para jus-
tificar o ímpeto dos usuários de mídia em difundir suas
informações em rede.

Os argumentos de McLuhan, em especial - em


livros como A Galáxia Gutemberg (1962) e
Compreender os Meios de Comunicação (1964),
sobre o ciberespaço como união de toda a hu-
manidade numa só “aldeia global” - se tornaram
uma das crenças centrais no Vale do Silício, en-
tre empreendedores de rede social como Mark
Zuckerberg (KEEN, 2012, p. 122)

Ou seja, a visão do autor aponta que aquele desen-


volvimento tecnológico que permite ao homem abraçar

293 A Comunicação, Meios e Interações


toda a humanidade apregoado por McLuhan (2007) nos
anos 1960 é o que hoje baliza os usos das mídias sociais
e as relações estabelecidas por elas. Isso se dá com base
no desenvolvimento de suportes que, ao mesmo tempo
que estabelecem novas mediações tecnológicas, dispen-
sam mediações institucionais. No entanto, ao contrário
de outros autores que veem tal cenário com otimismo,
como é o caso de Jenkins (2009; 2014) e dos próprios
Lévy (1999) e McLuhan (2007), Keen (2009; 2012) se
utiliza destes conhecimentos já constituídos para com-
por uma argumentação conservadora e pessimista a res-
peito desse cenário.

Perspectivas: diversidade de visões sobre


um mesmo tema
Assim como em outros estudos das ciências humanas,
o exercício de analisar as perspectivas teóricas acerca de
um tema é proveitoso por mostrar como as diferentes
visões colocadas pelos principais teóricos de uma área
de pesquisas podem derivar de uma mesma matriz de
pensamento, o que possibilita a identificação de pontos
comuns em suas produções, mesmo no caso de defen-
sores de pontos de vista opostos. No que diz respeito às
visões teóricas que perpassam os estudos em cibercultu-
ra e nos usos das mídias digitais, o objetivo deste estudo
foi o de verificar as ideias expostas por Henry Jenkins
e Andrew Keen, autores de grande difusão na área dos

294 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


estudos ciberculturais e que, de acordo com o que Rüdi-
ger (2013) analisa, sustentam visões antagônicas sobre o
mesmo fenômeno cultural.
Desde o início da análise, foi possível identificar nas
ideias colocadas por ambos o consenso de que a ciber-
cultura é um sistema cultura que se caracteriza pela
incorporação dos suportes midiáticos nas práticas cul-
turais existentes e que, a partir disso, novas práticas e va-
lores se desenvolvem com a mediação digital desses su-
portes. Além disso, há uma concordância entre Jenkins
(2009; 2014) e Keen (2009; 2012) sobre o fato de que o
que move e caracteriza a cena cibercultural são os usos
culturais das tecnologias digitais de comunicação. Por
isso, negam o chamado determinismo tecnológico, re-
conhecendo a ação humana nesse processo.
Essa essência comum identificada nos autores permi-
te com que se possa verificar uma tradição teórica den-
tro dos estudos em cibercultura, iniciada pelas reflexões
de McLuhan (2007), que foram incorporadas aos estu-
dos de autores que se ocuparam em desvendar o desen-
volvimento e a popularização da internet nos anos 1990,
sendo o principal deles Pierre Lévy. O próprio contexto
de desenvolvimento de tais estudos, que acompanharam
o crescimento da internet e dos dispositivos digitais, fi-
zeram com que os autores vissem as mídias como su-
portes culturalmente determinados, já que eram cons-
truídos culturalmente à medida em que eram utilizados
socialmente.
No entanto, mesmo compartilhando de uma mes-
ma matriz teórica, Jenkins (2009; 2014) e Keen (2009;

295 A Comunicação, Meios e Interações


2012) apresentam divergências no que diz respeito aos
aspectos positivos e negativos da conformação cultural
que analisam. Como foi visto, são as visões antagônicas
a respeito da capacidade do público de produzir e difun-
dir suas próprias mensagens e conteúdos e consequente
reconfiguração das mediações envolvidas na comunica-
ção que levam Jenkins (2009; 2014) a desenvolver uma
perspectiva otimista do novo cenário de mídia e Keen
(2009; 2012), pessimista e negativa.
Ambas as visões podem ser explicadas pelo caráter
que os estudos em cibercultura adquiriram de acompa-
nhar o próprio desenvolvimento das tecnologias que se
tornam objetos de estudo. McLuhan (2007) desenvol-
veu suas reflexões sobre a sociedade na era da televi-
são enquanto esta se popularizava. Lévy (1999) pensou
conceitos como o da inteligência coletiva conforme as
plataformas que tornaram a internet acessível ao grande
público, como a World Wide Web, eram construídas. Da
mesma forma, Jenkins (2009; 2014) e Keen (2009; 2012)
observam a cena comunicacional atual, com o desen-
volvimento de novos suportes móveis de comunicação
e a integração convergente destes pelos recursos digi-
tais, além da consolidação de uma cultura comum aos
usuários da internet e das mídias digitais de produzir,
divulgar e consumir conteúdos veiculados em platafor-
mas como as redes sociais. As diferenças entre os autores
surgem por Jenkins (2009; 2014) destacar as possibilida-
des que o público passa a ter de participar dos processos
comunicativos e de como isso pode ser lucrativo às em-
presas de mídia, enquanto Keen (2009; 2012) observa a
necessidade de adaptação que toda a cultura - composta

296 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


por indivíduos e instituições - deve passar para manter-
-se atual dentro desse novo cenário.
Mesmo que sustentem visões opostas, os argumen-
tos utilizados pelos dois autores devem ser interpretados
de forma articulada, complementando-se e favorecendo
uma visão crítica a respeito da cena cultural digital. Ao
mesmo tempo em que o pensamento de Jenkins (2009;
2014) pode ser utilizado como um incentivo à criativida-
de tanto de usuários como de empresas, e também como
um reconhecimento do potencial que as redes têm de de-
mocratizar as relações comunicacionais, as observações
pessimistas de Keen (2009; 2012) servem como um aler-
ta aos que supõem ser a cibercultura um sistema perfeito.
Sendo social e culturalmente determinada, a tecnologia
pode ser utilizada tanto para o cenário integrativo previs-
to por Jenkins (2009; 2014), quanto o de total isolamento
e de destruição cultural advertido por Keen (2009; 2012).
Ainda sobre a perspectiva de Keen, pode-se analisar
que o autor está progressivamente se aproximando do que
Rüdiger (2013) considera como terceira visada teórica, a
dos cibercriticistas, saindo da posição de apenas conser-
vador midiático. Lançado em 2015, ainda sem versão em
língua portuguesa, seu mais recente livro “The internet is
not the answer” (“A internet não é a resposta”) avança na
análise das implicações sociais da cultura da internet. De
acordo com entrevistas e conferências ministradas pelo
autor, a obra preocupa-se em verificar como os grandes
problemas mundiais que ocorrem desde o fim do sécu-
lo XX têm relações com o desenvolvimento de todo um
sistema econômico baseado nas redes. Tal ponto de vista

297 A Comunicação, Meios e Interações


vai ao encontro da definição de Rüdiger (2013) sobre os
cibercriticistas, que se preocupam com as relações entre
cibercultura e poder. Podemos analisar tal postura como
um aperfeiçoamento de sua visada teórica.
As visões plurais a respeito do atual cenário cibercul-
tural continuarão a surgir e a coexistir dentro do campo
de estudos. Isso se deve ao fato de a cultura digital ser
um fenômeno que se desenvolve continuamente e tam-
bém por conta de todos, sejamos tecnocráticos, conser-
vadores ou críticos, estarmos inseridos nela e dela não
podermos fugir. Dessa forma, é necessário que a diver-
sidade teórica a respeito da cibercultura seja valoriza-
da e incentivada. Isso contribui para a consolidação das
tradições comuns aos estudos como bases teóricas do
campo científico e ainda a respeito de fenômenos que
surgem a todo momento e continuarão a surgir e a intri-
gar pesquisadores e leigos no futuro.

Referências
CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões
sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janei-
ro: Zahar, 2003.
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. 2 ed. São
Paulo: Aleph, 2009.
JENKINS, Henry; GREEN; Joshua; FORD, Sam. Cultu-
ra da conexão: criando valor e significado por meio da
mídia propagável. São Paulo: Aleph, 2014.

298 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


KEEN, Andrew. O culto do amador: como blogs, MyS-
pace, YouTube e a pirataria digital estão destruindo nossa
economia, cultura e valores. Rio de Janeiro, Zahar, 2009.
______. Vertigem digital: por que as redes sociais estão
nos dividindo, diminuindo e desorientando. Rio de Ja-
neiro: Zahar, 2012.
LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social
na cultura contemporânea. 6 ed. Porto Alegre: Sulina,
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linguagens, ambientes e redes. Petrópolis: Vozes, 2014.
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como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2007.
RÜDIGER, Francisco. As teorias da cibercultura: pers-
pectivas, questões e autores. 2 ed. Porto Alegre: Sulina,
2013.
SANTAELLA, Lucia. Cultura e artes do pós-humano:
da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus,
2003.
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dia. 2014. 10’53’’. Disponível em <https://www.youtube.
com/watch?v=hLy8PjCnc-8> Acesso em 25 mai. 2015.
WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. 10 ed. Lisboa:
Presença, 2009.

299 A Comunicação, Meios e Interações


Capítulo 10
Hiperlocal como um elemento de
­convergência entre a digitalização
e o reforço de identidades

Giovani Vieira Miranda

Algumas considerações iniciais


As mudanças tecnológicas ocorridas no final do sécu-
lo XX e que ainda estão em curso nos primeiros anos do
século XXI afetaram amplamente todos os domínios do
conhecimento humano. No campo da comunicação não
foi diferente: novas tecnologias propiciam novos modos
de produção, distribuição e consumo de informação nas
mais diferentes plataformas e meios. Esses rearranjos
nas mídias conduzem a remodelações de práticas e mo-
delos de negócios, inclusive no jornalismo, que luta para
encontrar novas bases para se sustentar, além de afetar
as relações sociais.
As atuais tecnologias empreendem uma nova lógica,
onde parece haver a dissolução do paradigma clássico da
comunicação (emissor>mensagem>receptor). As tecno-

300
logias permitem a fruição de conteúdo em tempo real,
em qualidade e quantidade antes jamais imaginadas, ao
mesmo tempo em que possibilitam a interação, o com-
partilhamento e a criação de novos conteúdos a partir
daquilo que está sendo consumido. Diante da emergên-
cia desses dispositivos, algumas tendências caminham a
se sobressair e merecem ser analisadas para que a com-
preensão sobre o que está acontecendo seja mais ampla.
No Jornalismo, a criação de conteúdo colaborativo e de
caráter hiperlocal aparece como prática oriunda desses
novos tempos.
Na prática, as tecnologias atuais derivam dos ajustes
estruturais do liberalismo global e alimentam trans-
formações que incidem diretamente sobre os meios de
produção e sobre os modos de trabalho material e sim-
bólico. Elas afetam também as relações econômicas, a
cultura e as sociabilidades cotidianas, sejam individuais
ou coletivas. Também se acredita que a possibilidade de
alteração de determinados padrões de produção e con-
sumo seja derivada, principalmente, do fato dos consu-
midores passarem a dispor dos recursos tecnológicos
para interferir nos produtos de comunicação midiática.
O desenvolvimento de diversas ferramentas de intera-
tividade permitiu a criação de um movimento crescente
de usuários ativos, que passaram a rejeitar a condição
de consumidores passivos de conteúdos midiáticos, al-
terado dessa forma, um ecossistema já traçado até então.
Assim, surgiu um contexto no qual parcelas crescentes
do público realizam intervenções criativas e alteram os
produtos que recebem em seus dispositivos, um fator

301 A Comunicação, Meios e Interações


que dificulta para as indústrias criativas a preservação
da integridade dos sentidos de seus conteúdos originais.
Dessa forma, o movimento de constante inovação tec-
nológica dos meios e recursos de comunicação faz com
que aumentem no território virtual do ciberespaço as
intervenções não autorizadas dos usuários em produtos
comerciais, assim como as manifestações e produções
culturais, autorais ou coletivas.
Por outro lado, em um momento quando há uma
tendência de homogeneização das identidades globais
devido a globalização e a intensificação dos fluxos de in-
formação, surge o contraponto, a valorização do local,
como se o cidadão, frente a tanta diversidade cultural
e de valores, buscasse uma ancoragem na qual possa se
referenciar e se identificar. Assim, o jornalismo de âm-
bito hiperlocal pode atuar como ponto de referência e
identificação para culturas locais.

A emergência de uma sociedade informacional


Vivemos no final do século XX e no inicio do sécu-
lo XXI um raro intervalo, “cuja característica é a trans-
formação da nossa ‘cultura material’ pelos mecanismos
de um novo paradigma tecnológico que se organiza em
torno da tecnologia da informação” (CASTELLS, 2001,
p.67). A atual revolução pode ser comparada a Revolu-
ção Industrial do século XVIII, por induzir um padrão
de descontinuidade nas bases materiais da economia e

302 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


cultura. As revoluções são caracterizadas por sua pene-
trabilidade, ou seja, por interferir em todos os domínios
da atividade humana. São voltadas para os processos,
além da criação de novos produtos. O cerne da nova re-
volução está nas tecnologias da informação, comunica-
ção e processamento.

A tecnologia da informação é para esta revolu-


ção o que as novas fontes de energia foram para
as revoluções indústrias sucessivas, do motor a
vapor à eletricidade, aos combustíveis fósseis e
até mesmo à energia nuclear, visto que a geração
e distribuição de energia foi o elemento princi-
pal na base da sociedade industrial (CASTELLS,
2001, p. 68).

As novas tecnologias não são meras ferramentas, mas


processos sendo desenvolvidos. A mente humana é uma
força direta de produção, não apenas mais um elemen-
to no sistema produtivo. Ressalta-se ainda a amplitu-
de dessa revolução. Enquanto as revoluções anteriores
ocorreram apenas em algumas localidades e demoraram
muito para se espalhar de maneira uniforme pelo globo,
as atuais novas tecnologias da informação se dissemina-
ram de maneira muito rápida ao redor do globo entre
as décadas de 70 e 90, conectando o mundo através da
tecnologia da informação.
A partir disso, surge a “sociedade informacional”
(CASTELLS, 2001) e a criação de um novo paradigma
informacional (embora nem todos os países estejam no

303 A Comunicação, Meios e Interações


mesmo nível de desenvolvimento para que possamos
afirmar a existência de uma sociedade informacional
global) Dessa forma, as mudanças que iniciaram na dé-
cada de 70 foram de fundamental importância para o re-
arranjo socioeconômico da década de 80 e de tudo que
ocorreu nos anos 90.
Pode-se listar, de acordo com Castells (2001), quais
são os aspectos centrais do atual paradigma da tecnolo-
gia da informação: 1º aspecto: informação como matéria
prima; 2º aspecto: penetrabilidade dos efeitos das novas
tecnologias, de forma a que todos os campos do conhe-
cimento humano sejam de alguma forma afetados pela
evolução da tecnologia; 3º aspecto: lógica das redes; 4º
aspecto: flexibilidade, de modo que processos, organi-
zações e instituições podem ser mudados pela reorgani-
zação de seus componentes; 5º aspecto: convergência de
tecnologias para um sistema altamente integrado.
Em resumo, o novo paradigma caminha não para o
fechamento como um sistema, mas para a transforma-
ção em uma rede de acessos múltiplos, adaptável em seu
desenvolvimento. A disposição em forma de rede seria
o principal atributo do novo paradigma informacional.

Cultura da convergência
Embora a ideia de convergência midiática não seja
nova, Henry Jenkins (2008) oferece a ideia de que o an-
tigo paradigma comunicacional baseado no broadcast

304 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


(um para muitos) está sendo substituído por uma con-
fluência de fenômenos aos quais ele denomina como
“cultura da convergência”. O autor define convergência
como um:

fluxo de conteúdos através múltiplas plataformas


de mídia, à cooperação entre múltiplos merca-
dos midiáticos ao comportamento migratório
dos públicos dos meios de comunicação que vão
a qualquer parte em busca das experiências de
entretenimento que desejam (JENKINS,2008,
p.29).

Jenkins aponta ainda que o surgimento da cultura da


convergência não é apenas resultado da evolução tecno-
lógica, e sim resultados da alteração do relacionamento
das pessoas com a mídia e das indústrias de mídia entre
si. “[...] a convergência representa uma transformação
cultural, à medida que consumidores são incentivados a
procurar novas informações e fazer conexões em meio a
conteúdos de mídia dispersos” (JENKINS, 2008, p.30).
O fenômeno da cultura da convergência estaria
apoiado em três bases: convergência dos meios de co-
municação, o surgimento de uma cultura participativa
e a inteligência coletiva. A convergência dos meios de
comunicação pode ser entendida como a convergência
entre as diferentes mídias, produtores e consumidores.
A convergência acaba alterando a relação entre os dife-
rentes atores, tornando o público capaz de produzir con-
teúdo e mudando a forma como a indústria opera. Antes

305 A Comunicação, Meios e Interações


de qualquer coisa, a convergência se dá nos processos
(JENKINS, 2008). A convergência, assim, é um proces-
so corporativo, que flui de cima para baixo, quanto um
processo de consumidor, de baixo para cima.
Ambos os modelos de convergência coexistem, mas
atuam de maneiras diferentes. Enquanto a convergência
corporativa (de cima para baixo) se concentra na diver-
sificação e ampliação para a produção e distribuição de
conteúdos em diferentes plataformas a convergência do
público se dá através de criações coletivas e amadoras, que
são compartilhadas na internet de maneira espontânea.
A noção de cultura participativa se centra na ideia de
que a cultura da convergência não depende apenas da
evolução dos aparatos tecnológicos, mas na possibilida-
de de interações sociais entre os consumidores e produ-
tores de conteúdo. Para o autor, a cultura participativa
envolve também as interações incentivadas pela mídia,
como caixas de comentários, enquetes e participações
do público, embora as práticas mais comuns da cultu-
ra participativa estejam desvinculadas das empresas de
conteúdo, como vídeos e paródias de programas. Logo,
os consumidores deixam de ser passivos e passam a fa-
zer parte da cadeia produtiva, embora isso possa acarre-
tar problemas, principalmente envolvendo questões de
propriedade intelectual
Por fim, a ideia de inteligência coletiva utilizada por
Jenkins segue o que pensa Pierre Lévy. Ou seja, a inteli-
gência coletiva é aquela onde o conhecimento de todos
os integrantes de um grupo é reunido em prol de um
objetivo. “Nenhum de nós pode saber tudo; cada um

306 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


de nós sabe alguma coisa; e podemos juntar as peças,
se associarmos nossos recursos e unirmos nossas habi-
lidades” (JENKINS, 2008, p. 30). Essa união de conhe-
cimento pode trazer benefícios além do entretenimento,
criando especialistas em áreas onde eles não existem e
propiciando aos participantes possibilidades de fazerem
melhores escolhas.
Jenkins foca sua atenção em mídias de entretenimen-
to e não no jornalismo de maneira específica. Mas a par-
tir de suas ideias, podemos apontar alguns aspectos da
cultura da convergência no jornalismo atual. A noção
de uma cultura participativa está em alta no jornalismo.
Cada vez mais a participação da antes passiva audiência
está sendo requisitada pelos meios de comunicação. E
quando essa participação não é requisitada, ela se dá de
maneira espontânea através das redes sociais e de fóruns
de discussão na internet.
Com a cultura participativa, a ideia de inteligência
coletiva parece ganhar força com a cultura da conver-
gência. A teoria da inteligência coletiva presume que
num universo em que todos os indivíduos têm algum
conhecimento, esses conhecimentos podem ser unidos e
produzir conhecimentos sólidos e confiáveis. Essa teoria
pode ser aproveitada pelo jornalismo, onde o conheci-
mento produzido por um grupo pode passar a integrar
o conteúdo produzido por jornalistas. Em outros casos,
pode até substituí-lo. Está se tornando normal indivídu-
os escolherem restaurantes ou filmes para assistir atra-
vés de comentários de outras pessoas em sites e aplica-
tivos especializados. Parece haver uma deslegitimazação

307 A Comunicação, Meios e Interações


do especialista, pelo menos em algumas áreas. Por últi-
mo, o fenômeno da convergência dos meios modificou
sobremaneira os processos de produção jornalísticos,
além de colaborar com a cultura colaborativa, descrita
anteriormente. Fluxos de informação foram acelerados,
atividades de edição e distribuição facilitadas com os
avanços tecnológicos.

O jornalismo pós-industrial
Nessa sociedade informacional e convergente, pro-
cessos disruptivos vêm atingindo setores da impren-
sa que sempre basearam suas receitas na produção em
escala industrial de informação e na venda de espaço
publicitário. Com a falência desse modelo, já se fala no
surgimento de um jornalismo “pós-industrial”. O termo
ganhou fôlego em relatório da Universidade de Colum-
bia, nos Estados Unidos, e aponta que mudanças no
ecossistema do jornalismo estão provocando alterações
no processo de produção das notícias. Se no século XX
as empresas jornalísticas seguiam uma lógica industrial,
essa lógica deixou de fazer sentido no começo deste sé-
culo, dando origem ao que os autores denominam como
jornalismo pós-industrial. Na atual conjuntura, é cres-
cente a fuga de publicidade dos meios tradicionais, o
que financiou o jornalismo durante o século passado. E
o cenário não é muito animador quanto à retomada da
publicidade perdida através da internet, onde as marcas

308 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


podem chegar diretamente ao consumidor sem o inter-
médio de um meio de comunicação de massa. Assim, se
as atuais empresas quiserem sobreviver deverão repen-
sar seus métodos de trabalho e criar novas formas de
produção baseadas nos meios digitais. Para isso, o papel
dos jornalistas e das instituições é fundamental.
Anderson, Bell e Shirky (2013) listam as cinco gran-
des convicções a respeito do jornalismo: O jornalismo
é essencial; o bom jornalismo sempre foi subsidiado; a
internet acaba com o subsídio da publicidade; a reestru-
turação se faz, portanto, obrigatória; há muitas oportu-
nidades de fazer um bom trabalho de novas maneiras. A
fuga de publicidade, que financiou o jornalismo durante
boa parte do século passado dos meios tradicionais, se
mostra ainda mais preocupante quando o futuro não
é muito animador quanto à retomada da publicidade
perdida através da internet, onde as marcas podem che-
gar diretamente ao consumidor sem o intermédio dos
meios de comunicação tradicionais. A partir de então
o papel de jornalistas, das instituições e do ecossistema
no atual momento do jornalismo se tornam diferentes, e
mudanças se tornam urgentes.
Os jornalistas não vão ser substituídos, mas terão
seu trabalho modificado. Em meio ao turbilhão de in-
formação trafegando na rede, o jornalista pós-industrial
teria a obrigação de dar ordem a essa enxurrada de in-
formações, verificando, interpretando e dando sentido
ao que é recebido, muitas vezes de pessoas que não são
jornalistas. Dessa forma, em alguns casos as multidões
e os amadores podem exercer o papel de um jornalista

309 A Comunicação, Meios e Interações


de maneira satisfatória em determinados casos, mas que
em outros o jornalista sempre será melhor. Num tercei-
ro momento, as máquinas podem substituir o jornalista,
principalmente com algoritmos capazes de produzir re-
latos de fatos previsíveis.

Entender a reviravolta na produção de notícias


e no jornalismo, e decidir qual a maneira mais
eficaz de aplicar o esforço humano, será crucial
para todo e qualquer jornalista. Para determinar
qual o papel mais útil que o jornalista pode de-
sempenhar no novo ecossistema jornalístico é
preciso responder a duas perguntas correlatas:
nesse novo ecossistema, o que novos atores po-
dem fazer, hoje, melhor do que jornalistas no
velho modelo? E que papel o jornalista pode
desempenhar melhor que ninguém? (ANDER-
SON; BELL; SHIRKY, 2013, p.42)

O jornalista pós-industrial deve ter uma lista de ha-


bilidades desejáveis. Essas habilidades são divididas em
“soft skills” (mentalidade, capacidade de articular redes,
eficiência, originalidade e carisma) e “hard skills” (co-
nhecimento especializado, capacidade de interpretar
dados, personalidade, habilidade de gerir projetos, com-
preender dados públicos, conhecimentos em programa-
ção e habilidades narrativas)
As instituições, para os autores, são, acima de tudo,
“uma série de normas sociais que criam padrões está-
veis de comportamento” (ANDERSON; BELL; SHIRKY
2013, p.57). Essas instituições estariam vivendo um

310 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


momento tanto de desgraça, quanto de ressurgimento.
No atual cenário, instituições estão colapsando, outras
estão surgindo e algumas estão se reinventando ao mes-
mo tempo em que enfrentam um dilema: enquanto essa
inflexibilidade de normas e padrões foi benéfica a eles
em um contexto anterior, no atual estado do jornalismo
estaria dificultando a tomada de medidas necessárias
para que elas se adaptem ao novo paradigma. Essa ina-
dequação de processos costuma ser ainda mais visível
em redações que produzem conteúdos para plataformas
digitais, mas ainda estão presos a métodos anacrônicos
de trabalho. A nova concepção de modelo de produção
rompeu com a linearidade industrial presente até então
nas empresas de mídia. As bruscas mudanças provoca-
das pela internet estão levando ao fim da linearidade dos
processos e a passividade do público.
Ao falar de “ecossistema” os autores dão a entender
que todas as instituições sempre foram interdependentes.
A chegada da internet não trouxe um novo ator ao ecos-
sistema anterior, mas sim programou um novo ecossiste-
ma totalmente diferente do anterior. Diante dessa nova
situação seria necessário que as instituições jornalísticas
aprendessem a aturar em parceria com indivíduos, orga-
nizações e redes para aumentar seu alcance e diminuir
custos. Segundo eles, tudo o que estará em alta daqui a
sete anos já está criado, mas ainda não se popularizou de
maneira satisfatória. O exemplo maior é You Tube, que já
existia em 2006. Além disso, a mudanças nos processos
de produção se aprofundarão e será papel de jornalistas e
instituições proporem as ­alterações necessárias.

311 A Comunicação, Meios e Interações


O jornalismo hiperlocal e a questão de identidade
Práticas do chamado jornalismo pós-industrial refor-
çam uma tendência bastante interessante: a importância
do local na cobertura jornalística. Assim, pode-se inclu-
sive tentar conceituar o surgimento de um jornalismo
hiperlocal, onde o interesse pelo local seria a principal
fonte de notícias. O jornalismo hiperlocal consiste em
“uma conjunção de funções pós-massivas e massivas,
onde o usuário pode ter informações mais precisas so-
bre o seu local de interesse a partir de um cruzamento de
notícias dos jornais, dos blogs, do Twitter, da polícia, da
prefeitura, etc.” (LEMOS, 2011, p.12).

A dimensão hiperlocal no jornalismo (já que


ele é sempre local) refere-se, em primeiro lu-
gar, a informações que são oferecidas em fun-
ção da localização do usuário (sobre o bairro, a
rua, etc.), e em segundo lugar, pelas caracterís-
ticas pós-massivas desse novo jornalismo onde
qualquer um pode ser produtor de informação.
Essa é uma das tendências atuais do jornalismo:
vinculação de notícias cruzando diversas fontes,
oficiais, profissionais e cidadãs à geolocalização.
(LEMOS, 2011, p.3)

Com as mídias massivas, “a opinião pública é enqua-


drada e agendada pelos mass media, havendo debate a
posteriori, fruto do consumo de informação editada por
grandes conglomerados de empresas de comunicação
e jornalistas profissionais” (LEMOS, 2011, p.1). Essa

312 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


e­ sfera midiática cria a noção de público e opinião pú-
blica ao mesmo tempo em que enfraquece o debate e a
participação política, devido a crescente confusão entre
fatos e entretenimento.
As mídias pós-massivas, por sua vez, se caracterizam
principalmente pela capacidade de gerar comunicação
e diálogo entre “consciências engajadas em romper o
isolamento e em compartilhar uma atividade conjun-
ta” (MARTINO, 2001). Essas mídias são marcadas por
“um novo formato de consumo, produção e circulação
de informação que tem como característica principal a
liberação do polo da emissão, a conexão planetária de
conteúdos e pessoas e, consequentemente, a reconfigu-
ração do espaço comunicacional” (LEMOS, 2011, p.2)
Assim, Lemos aponta que nesse inicio de século estamos
diante de um sistema comunicacional onde convivem
mídias massivas e pós-massivas, possibilitando assim o
surgimento de uma esfera comunicacional onde a con-
versação se dá no seio mesmo da produção e das trocas
informativas, entre atores individuais ou coletivos (LE-
MOS,2011) Essa nova esfera marca uma mudança para
mídias mais conversacionais do que informativas, devi-
do ao fato de que troca se dá mais próxima ao diálogo do
que a emissão-recepção. A ampliação e o refinamento
do que é discutido nessa nova esfera pode resolver os
problemas do engajamento político e levar a uma maior
ação política e a uma ampliação da participação pública.
A relação entre local e mídia é muito importante
na cibercultura, uma vez que a visão que nós temos de
nós mesmos que influenciada pelas mídias de massa

313 A Comunicação, Meios e Interações


e, ­agora, pelo o que produzimos e compartilhamos na
internet. “Podemos dizer que a nova prática do jorna-
lismo hiperlocal é mais um exemplo que ilustra a am-
pliação da conversação aplicada a uma dimensão mais
local, permitindo maior engajamento comunitário e
político” (LEMOS,2011, p.13). Engana-se quem pensa
que o jornalismo hiperlocal seja uma criação das novas
tecnologias. A noção de hiperlocalidade na produção de
notícias surgiu na Europa, durante o século XIX, através
dos Penny Press (jornais de centavo, em tradução livre).
Esses jornais surgiram em contraponto aos grandes jor-
nais, que eram seis vezes mais caros, passando a focar
em notícias de âmbito local. De alguma forma, foram os
precursores dos jornais sensacionalistas que ainda exis-
tem (CASTILHO, 2011).
Mesmo com o surgimento dos meios de comunicação
de massa, as mídias locais ainda continuaram a existir. O
rádio, a TV e os jornais, mesmo atingindo um grande
público, ao nascer, eram mídias de abrangência local ou
regional. A partir da década de 1960, com o surgimen-
to do video-tape e das transmissões via-satélite, veículos
como rádio e televisão deixaram de ser majoritariamen-
te locais e passaram a ter alcance nacional. Apesar disso,
Peruzzo (2005) constata:

Com o desenvolvimento da globalização da


economia e das comunicações, num primei-
ro momento, chegou-se a pressupor o fim da
comunicação local, para em seguida consta-
tar o contrário: a revalorização da mesma, sua

314 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


e­ mergência ou consolidação em diferentes con-
textos e sob múltiplas formas (PERUZZO, 2005,
p.70).

Na Europa as bibliografias sobre mídias locais surgem


em grande número já a partir da década de 80, enquan-
to no Brasil esse fenômeno só foi percebido na década
seguinte. Isso se dá por razões históricas e culturais,
além do grau de importância da mídia local em cada re-
gião.  As regiões autônomas europeias (Catalunha, País
Basco, Galícia) devido a especificidades linguísticas e
culturais tendem a desenvolver seus próprios veículos de
comunicação, enquanto no Brasil a ideia de integração
nacional vinda da época da Ditadura militar ainda pre-
valece nos meios de comunicação (PERUZZO, 2005)
Ainda assim, os conteúdos locais não estão totalmen-
te ausentes dos veículos de âmbito nacional, mas quase
sempre estão presentes por interesses puramente mer-
cadológicos. Os conteúdos veiculados são quase sempre
jornalísticos, com tempo bastante limitado, em horários
pouco favoráveis, além de seguirem obrigatoriamente
os padrões e estruturas das grandes redes, o que inibe o
aparecimento de traços culturais locais, como o sotaque,
por exemplo, (PERUZZO, 2005).
Ao se discutir a questão do local nos meios de co-
municação algumas questões surgem: a primeira delas é
a questão das fronteiras: os meios de comunicação têm
por hábito transgredir fronteiras, tornando-se impossí-
vel delimitar com clareza o que é local, o que é regional
ou que é comunitário. A segunda questão é o aspecto

315 A Comunicação, Meios e Interações


do território. Além de um marco geográfico, o território
pode ser de base cultural, linguística, ideológica, entre
outras. Esses aspectos podem ser tão ou mais impor-
tantes que o conceito físico de território, uma vez que
podem unir grupos através da construção de laços além
do espaço geográfico. A terceira questão foca nas rela-
ções entre a globalização e o local: superou-se a ideia de
que a globalização iria sufocar o local. “A realidade vai
evidenciando que o local e o global fazem parte de um
mesmo processo: condicionam-se e interferem um no
outro simultaneamente” (PERUZZO, 2005, p.74)
A superposição e aproximação do local-global deu
origem ao termo “glocal”, uma aproximação entre o que
está próximo e o que está distante pelas relações dos flu-
xos comunicacionais.

“Glocal é um neologismo usado para indicar a su-


perposição de um conceito global a uma realidade
local, a partir de um meio de comunicação, prio-
ritariamente (mas não exclusivamente) operando
em tempo real. No ambiente glocalizado, o sujeito
se vê em um contexto simultaneamente local (o
espaço físico do acesso, mas também o seu meio
cultural) e global(o espaço mediático da tela e da
rede, convertido em experiência subordinativa da
realidade).Sem o fenômeno da glocalização, su-
porte comunicacional das trocas em escala global,
a derrubada das fronteiras para a circulação de
produtos, serviços, formas políticas e ideias esta-
ria prejudicada ou impossibilitada” (COZELATO,
2007, p. 49 apud ROCHA, 2014, p. 157).

316 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Alguns teóricos defendem a atualização do termo
globalização por glocalização, enquanto Castells aponta
a internet, por suas características próprias, como uma
grande representante dessas ligações entre global-local.
Ao mesmo tempo em que pode provocar desterriora-
lidades, a internet desperta novamente o interesse pelo
local, e por que não, o surgimento de novas identidades
e terrioralidades.
Além de propiciar uma maior pluralidade de infor-
mações e oferecer novas oportunidades de inovação e
emprego no jornalismo, as práticas de hiperlocalidade
reforçam a noção de identidades culturais cada vez mais
fortes mesmo diante de um mundo extremamente globa-
lizado, onde parece haver uma homogeneização das iden-
tidades. Identidades locais, comunitárias e regionais têm
se tornado mais importantes ao mesmo tempo em que a
globalização parece provocar uma homogeneização das
culturas. Concomitantemente, junto com o impacto do
global, um novo interesse pelo local parece emergir.
De acordo com Hall (2000) a “globalização” afeta a
questão da identidade cultural e que as sociedades mo-
dernas se baseiam na noção de descontinuidade, frag-
mentação e ruptura. Hall define a globalização como
“processos, atuantes numa escala global, que atraves-
sam fronteiras nacionais, integrando e conectando co-
munidades e organizações em novas combinações de
espaço-tempo, tornado o mundo, em realidade e em ex-
periência, mais interconectado”. (HALL, 2000, p.67). A
globalização, para ele, deslocou as identidades culturais
no final do século XX.

317 A Comunicação, Meios e Interações


Diante da morte do sujeito moderno, as culturas na-
cionais emergem como formadoras da identidade cultu-
ral. “[...] as identidades nacionais não são coisas com as
quais nascemos, mas são formadas e transformadas no
interior da representação” (HALL, 2000,p.48). As cul-
turas nacionais buscam unificar seus integrantes numa
identidade única, sem levar em conta termos de classe,
gênero ou raça. As culturas nacionais não devem ser pen-
sadas como culturas unificadas, e sim como um disposi-
tivo discursivo que representa a diferença como unidade
ou identidade. As identidades culturais nacionais servem
para costurar as diferenças numa única identidade.

Segue-se que a nação não é apenas uma entidade


política, mas algo que produz sentidos- um siste-
ma de representação cultural. As pessoas não são
apenas cidadãos/dãs legais de uma nação; elas
participam da ideia da nação tal como represen-
tada em sua cultura nacional. Uma nação é uma
comunidade simbólica [...] (HALL, 2000,p.49).

A globalização então deslocou as identidades no final


do século XX. Para Hall, a globalização se constitui em:

[...] processos atuantes numa escala global, que


atravessam fronteiras nacionais, integrando e
conectando comunidades e organizações em
novas combinações de espaço-tempo, tornado
o mundo, em realidade e em experiência, mais
interconectado. (HALL, 2000, p.67).

318 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


As consequências da globalização para as identidades
culturais podem ser resumidas em três pontos:

-As identidades culturais nacionais estão se desintegran-


do, como resultado do crescimento da homogeneização
cultural e do “pós-moderno global”
-As identidades nacionais e outras identidades “locais”
ou particularistas estão sendo reforçadas pela resistência
a globalização
-As identidades nacionais estão em declínio, mas novas
identidades híbridas estão tomando em seu lugar.

Hall aponta que alguns teóricos acreditam que um


dos efeitos desses processos globais seria enfraquecer ou
solapar formas nacionais de identidades culturais. Iden-
tidades locais, comunitárias e regionais têm se tornado
mais importantes ao mesmo tempo em que a globaliza-
ção parece provocar uma homogeneização das culturas.
Ao mesmo tempo, junto com o impacto do global, um
novo interesse pelo local parece emergir.
Castells também aponta para uma nova valorização
do local diante do novo paradigma que se torna presente,
mostrando que as mudanças em nosso tempo (onde as
instituições perdem força) estão fazendo com que a busca
da identidade se torne fonte básica de significado social.

As novas tecnologias da informação estão in-


tegrando o mundo em redes globais de ins-
trumentalidade. A comunicação mediada por

319 A Comunicação, Meios e Interações


c­ omputadores gera uma gama enorme de comu-
nidades virtuais. Mas a tendência social e políti-
ca característica da década de 90 era a constru-
ção da ação social e das políticas em torno de
identidades primárias- ou atribuídas, enraizadas
na história e geografia, ou recém construídas, em
uma busca ansiosa por significado e espirituali-
dade. Os primeiros passos históricos das socie-
dades informacionais parecem caracterizá-las
pela preeminência da identidade como seu prin-
cípio organizacional. (CASTELLS, 1999, p. 57)

Diante do reforço das identidades locais perante a


homogeneização das culturas provocadas pela globali-
zação dos fluxos informacionais, o jornalismo hiperlo-
cal pode oferecer narrativas que relatem as identidades
locais, fazendo com que perfis históricos e culturais pos-
sam se sustentar, além de valorizar a memória do lugar
(LEMOS; PEREIRA, p.4,2011).
Ao favorecer a abordagem local, o jornalismo se tor-
na importante fomentador de práticas cidadãs. Uma vez
que, na infinidade das metrópoles a uniformidade de
identidades parece mais latente, valorizar a localidade
pode criar maneiras de sociabilização, principalmente
nas regiões mais periféricas

Especialmente os setores populares, ou seja, os


que não têm carro ou telefone tendem a restrin-
gir o horizonte da cidade ao próprio bairro: ali
se elaboram as redes de interação que desem-
penham modalidades distintas dentro de uma

320 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


mesma cidade, e só se abrem- limitadamente- às
grandes veias da metrópole quando seus habi-
tantes têm de atravessá-la nas viagens para o tra-
balho, realizar um negócio ou buscar ou serviço
excepcional (CANCLINI, 2005, p.102-103).

Somada a políticas públicas eficientes, o jornalismo


hiperlocal pode ajudar a promover e contribuir para que
se mantenham traços históricos que distinguem os habi-
tantes de determinado lugar, e assim despertar a respon-
sabilidade dos seus cidadãos (CANCLINI, 2005).
Se com o surgimento dos satélites já se imagina
uma interligação “local-global”, pois seria possível ver
imagens em tempo do globo todo, a internet acentuou
essa sensação e permitiu ainda mais próxima a relação
“local-global”. A internet, devido a seu funcionamento
descentralizado permite diversos usos e a divulgação de
variadas vozes, inclusive no jornalismo. Assim, surgem
ao mesmo as edições eletrônicas de grandes jornais e
portais de notícias junto com sites enfocadas na infor-
mação de proximidade e de serviços específicos.
No cenário convergente em que vivemos, a colabo-
ração passa a ser fator determinante. Ao mesmo tem-
po em que jornalistas desenvolvem coberturas cada vez
mais rápidas, o consumidor de informação é convidado
a participar do relato, enviando todo tipo de conteúdo
possível através das redes sociais. (CARVALHO; CAR-
VALHO, 2014)

[...] o jornalismo passa por uma transformação


que transita entre a circulação da informação

321 A Comunicação, Meios e Interações


em tempo real, dinâmica e de grande alcance e a
necessidade de adaptar a produção de conteúdo
para o público local. De modo geral, o hiperlo-
cal atua em duas frentes: uma editorial e uma
comercial. Na primeira, com o surgimento da
necessidade do leitor de encontrar aquilo que
realmente quer com facilidade, em uma navega-
ção cada vez mais direcionada (favoritos, RSS,
Twitter), os veículos que destacam o trânsito, a
segurança ou o time de uma cidade, bairro ou
rua, têm chance maior de sucesso. No quesito
comercial, o oferecimento de produtos que te-
nham o foco definido, com potencialidade de
criar um relacionamento estreito com o leitor, é
um grande atrativo para o anunciante (CARVA-
LHO; A.M.G.;CARVALHO, J.M.; 2014, p.74).

Devido ao seu caráter colaborativo, o jornalismo hi-


perlocal só se torna possível com a participação do públi-
co na produção das notícias. Contudo, experiências exis-
tentes já demonstraram que de nada adianta centenas
de leitores enviarem conteúdo, uma vez que não haverá
condições de analisar todo material (CASTILHO, 2012).
Alternativas viáveis existem e podem criar novas formas
de dar fôlego às combalidas empresas jornalísticas e aos
pequenos jornalistas produtores de notícias locais.
Castilho (2012) sugere que sejam feitas trocas de con-
teúdo por audiência entre os independentes, que podem
assim ter acesso ao grande público e podem criar novas
formas de financiamento, desde os tradicionais anúncios
até a elaboração de reportagens patrocinadas através de

322 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


financiamentos coletivos. Diante de uma situação de
crise dos modelos de negócio do jornalismo tradicional,
voltar as atenções para o hiperlocal pode se tornar uma
nova esperança, mesmo com todas as incertezas desse
novo modelo.

A cobertura comunitária voltou a ser uma preo-


cupação da imprensa no auge da crise do mode-
lo de negócios dos jornais, principalmente nos
Estados Unidos. O segmento é visto como uma
espécie de tábua de salvação no momento em
que o público perde interesse nas notícias po-
líticas bem como na informação internacional.
(CASTILHO, 2011)

Antes praticado apenas por ONG’s e Universidades,


os grandes veículos vêm aos poucos adotando práticas
de jornalismo hiperlocal (CASTILHO,2011). O New
York Times lançou o projeto The Local, onde notícias de
bairros da cidade de Nova York eram produzidos através
do material enviado pelos leitores. No Brasil, uma expe-
riência similar foi desenvolvida no site Bairros.com, vin-
culado a Globo.com, que divulgava notícias de pequenas
localidades da região metropolitana do Rio de Janeiro.
Além disso, as experiências hiperlocais no jornalismo
brasileiro são focadas em pequenas atividades envolven-
do redes sociais como o Facebook, Twitter e Orkut, além
de sites de compartilhamento de vídeos como o YouTu-
be. (LEMOS; PEREIRA, 2011).
Mesmo com várias perspectivas em torno das possi-

323 A Comunicação, Meios e Interações


bilidades de práticas hiperlocais, os veículos que se aven-
turarem por esse caminho terão que solucionar alguns
problemas. O primeiro deles é conseguir constituir um
público grande o suficiente, aumentar sua visibilidade e
conseguir conhecer as características da sua audiência.
O segundo problema é semelhante ao enfrentado por
qualquer outro veículo jornalístico: o financiamento.
Pouco se sabe como veículos de jornalismo hiperlocal
podem ser tornar sustentáveis. No Reino Unido, a maio-
ria deles recorre aos tradicionais anúncios, mas há alter-
nativas, como financiamentos coletivos e editais. Ainda
assim, poucos são lucrativos (WILLIANS, 2014).

Algumas considerações
As mudanças tecnológicas estabelecidas no final do
século XX mudaram radicalmente o ecossistema dos
meios de comunicação e tocam nesse início do sécu-
lo XXI todos os domínios da vida humana. Com o jor-
nalismo em específico não foi diferente. A alteração do
papel do jornalista, o uso massivo de redes sociais e o
crescimento de coberturas colaborativas questionam o
modelo industrial de jornalismo que se consolidou no
século passado. Além da mudança no processo, as em-
presas jornalísticas passaram a sofrer para se manterem
sustentáveis financeiramente.
A valorização da cobertura de âmbito local pode ofe-
recer alguma esperança nesse momento de incerteza do

324 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


jornalismo. Embora algumas incertezas se mostrem,
o enfoque no hiperlocal pode proporcionar um maior
envolvimento da audiência. Juntamente com a criativi-
dade, a prática jornalística calcada na localidade pode
trazer grandes ganhos ao jornalismo em um momento
de incertezas e dificuldades. Resta tirar proveito disso
e equacionar questões como fidelização e ampliação da
audiência, além de melhorar questões relativas ao finan-
ciamento para que a inovação propiciada pela criativi-
dade e pela tecnologia possa trazer desenvolvimento
econômico e social, não só para o jornalismo.
Ademais, o jornalismo hiperlocal fornece um impor-
tante referencial de sustentação das identidades cultu-
rais locais e assim colaborar com a participação cidadã
mais qualificada e envolvida com as questões inerentes a
cada local, principalmente aqueles em que as mídias tra-
dicionais e hegemônicas costumam excluir da cobertura
praticada atualmente.

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325 A Comunicação, Meios e Interações


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326 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


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327 A Comunicação, Meios e Interações


Capítulo 11
Jornalismo de dados: influência da
construção narrativa no agendamento
midiático1

Kelly De Conti Rodrigues2

Introdução
Quando se aborda a representação objetiva da realida-
de, é comum a utilização de números e estatísticas com a
intenção de mostrar precisão a respeito do tema tratado. A

1. Trabalho apresentado na disciplina “Teorias da Comunicação”,


ministrada pelo Prof. Dr. Osvando José de Morais, do Programa
de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Faculdade
de Arquitetura Artes e Comunicação da Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FAAC-UNESP).
2. Discente do Programa de Mestrado em Comunicação Midiáti-
ca da Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicação da Uni-
versidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FAAC-
-UNESP) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (Fapesp). E-mail: decontik@yahoo.com.br

328
matematização das ideias, portanto, age como legitimado-
ra das informações. Esse fenômeno ocorre tanto na ciência
quanto em práticas profissionais, sobretudo aquelas que se
fazem assumir como referenciais, como no jornalismo.
Neste, aliás, os números conferem credibilidade à in-
formação, fazendo com que o público passe a acreditar
com mais segurança no conteúdo descrito. Nesse con-
texto, os infográficos passaram a preencher papel im-
portante ao detalhar os dados e torná-los visualmente
mais atrativos.
A proposta desta pesquisa é abordar como a cons-
trução discursiva influencia o efeito de sentido e, con-
sequentemente, o entendimento das matérias jornalís-
ticas. Focamos nos casos do Estadão Dados e do jornal
Folha de S. Paulo em matérias que utilizam o jornalismo
de dados e infografia.

A hipótese do agendamento midiático


A hipótese – ao contrário da teoria – é um sistema
aberto, sempre inacabado, composto de previsões sobre
determinado fenômeno e de seu comportamento. Trata-
-se de uma experiência dentro de um caminho de pes-
quisa. A agenda-setting se enquadra nessa perspectiva,
uma vez que se caracteriza como uma seleção de temas
e de conhecimentos sobre a mediação simbólica, que
exercem influência sobre a realidade social e seus efeitos
de sentido. Mais precisamente:

329 A Comunicação, Meios e Interações


Em consequência da ação dos jornais, da tele-
visão e dos outros meios de informação, o pú-
blico sabe ou ignora, presta atenção ou descu-
ra, realça ou negligencia elementos específicos
dos cenários públicos. As pessoas têm tendência
para incluir ou excluir dos seus próprios conhe-
cimentos aquilo que os mass media incluem ou
excluem do seu próprio conteúdo. Além disso, o
público tende a atribuir àquilo que esse conteú-
do inclui uma importância que reflete de perto
a ênfase atribuída pelos mass media aos acon-
tecimentos, aos problemas, às pessoas. (SHAW,
1979, p.96 apud WOLF, 2001, p.144).

A origem do conceito de agendamento está no pensa-


mento do jornalista norte-americano Walter Lippman,
que trabalhou com muitas pesquisas de opinião nos Es-
tados Unidos na primeira metade do século XX. Para
ele, a notícia não é um simples espelho das condições
sociais. Ele aproxima os conceitos de notícia e opinião
pública.
Contudo, a formulação clássica do conceito surge nos
Estados Unidos no final da década de 1960 com Maxwell
McCombs e Donald Shaw. O primeiro trabalho de in-
vestigação empírica relacionado ao agendamento surgiu
aplicado a um estudo das campanhas políticas das eleições
estadunidenses de 1968. Ele tinha como objetivo analisar
a influência da mídia no eleitorado. A amostra teve como
base cem eleitores indecisos, que foram submetidos a
uma questão de agendamento sobre os assuntos sociais
de maior atenção naquele determinado m ­ omento. De

330 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


acordo com as respostas obtidas, foi p ­ ossível estabelecer
a agenda pública de questões eleitorais que mais preocu-
pavam os eleitores (MCCOMBS, 2009).
Com isso, pode-se dizer que essa hipótese configura-
-se como um processo que correlaciona a agenda midi-
ática e a agenda pública. A partir disso, é possível notar
que a capacidade da mídia de influenciar a projeção dos
acontecimentos na opinião pública impacta a “figuração
da nossa realidade social, isto é, de um pseudoambiente,
fabricado e montado quase que completamente a partir
dos mass mídia” (MCCOMBS; SHAW, 1977, apud TRA-
QUINA, 2001, p.14).
A ação da mídia no conjunto de conhecimentos so-
bre a realidade social forma a cultura e age sobre ela.
Para Noelle Neumann, ao abordar a espiral do silêncio,
essa ação tem três características básicas: a acumulação
(a capacidade da mídia para criar e manter relevância de
um tema), a consonância (as semelhanças nos processos
produtivos de informação tendem a ser mais significati-
vas do que as diferenças) e a onipresença (o fato da mí-
dia estar em todos os lugares com o consentimento do
público, que conhece sua influência).
Nessa ação sobre a cultura, para Alsina (2009, p. 11),
o discurso noticioso como construção de uma realidade
simbólica, pública e cotidiana “são, como todo o mun-
do, construtores da realidade ao seu redor. Mas também
conferem estilo narrativo a essa realidade, e, divulgan-
do-a, a tornam uma realidade pública sobre o dia-a-dia”.
Isso demonstra a importância do estudo dos enunciados
jornalísticos e suas intencionalidades.

331 A Comunicação, Meios e Interações


O discurso jornalístico e a construção da realidade
A construção discursiva da autoridade nas narrativas
jornalísticas é um assunto que vai além da mera tenta-
tiva de adequação de um processo de investigação com
uma estrutura de narração específica. Como nos lembra
Certeau (2008), o jornalismo se configura como uma
escritura desdobrada que, a partir de diferentes procedi-
mentos discursivos e técnicas de investigação específicas
da prática, tem a missão tripla de convocar o aconteci-
mento, mostrar as competências do jornalista (dono das
fontes de informação) e convencer o espectador.
Desde o famoso texto de Roland Barthes (1984) so-
bre o efeito de real nas narrativas que se pretendem re-
ferenciais, essa construção discursiva da autoridade é
muitas vezes posta nos termos de uma narrativa que se
constrói a partir do mascaramento do enunciador, de
forma que se crie a impressão de que o acontecimento
se narra sozinho.
O que Barthes propõe nesse texto é o delineamento
de um tipo de modelo de verdade que está calcado em
estratégias textuais comumente utilizadas nos discur-
sos referenciais tais como a história, o jornalismo ou as
narrativas literárias realistas. Quando Barthes fala de
“ilusão referencial”, ele está se referindo a uma série de
estratégias que criam a ilusão de que o que é represen-
tado pode ser misturado ao próprio real, revestindo o
discurso dos privilégios do aconteceu.
O efeito de real, portanto, em seu entendimento, é
um efeito de sentido que se dá a partir do uso de um

332 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


­ eterminado número de técnicas discursivas que dão
d
sustentação e embasamento a esse tipo de modelo de
verdade.
No nível da enunciação, uma das técnicas principais
está na tentativa de apagamento dos signos relacionados
ao anunciante do discurso. Esse apagamento, contudo,
impõe uma quantidade considerável de problemas, na
medida em que, se uma narrativa pode prescindir de um
destinatário manifesto no texto (não é preciso convocar
o leitor para que haja estória), toda narrativa, necessa-
riamente, precisa de um narrador.
Pêcheux (2008) também aborda essa tentativa de
ocultamento do enunciador. Para ele, o narrador, ao
pensar sobre aquilo que quer dizer, faz uma interpre-
tação do(s) discurso(s) que norteia(m) a narrativa que
irá produzir. A partir dessa ideia, Pêcheux afirma que
interpretar é produzir um enunciado que “traduza” o
enunciado de origem. Por esse motivo, defende que o
ato de descrever se trata de um processo que não pode
ser dissociado da interpretação.
Já Sousa (2006) também aponta os títulos como im-
portantes elementos textuais na produção do discurso
jornalístico, pois ajudam a construir o formato no qual
um conteúdo será apresentado. Além de informar, os tí-
tulos também têm a função de despertar a atenção do
leitor para a leitura de determinada matéria. Segundo
o autor, os títulos ainda são utilizados como estratégia
para não somente atrair o leitor, mas também direcionar
sua compreensão e interpretação, colaborando para que
o discurso jornalístico seja consumido da forma como

333 A Comunicação, Meios e Interações


foi pensado e construído pelo jornalista ou veículo de
comunicação.
Assim, a realidade observada em textos jornalísticos
pode projetar uma imagem que, se analisada mais am-
plamente, destoará o conteúdo dos textos do objeto às
quais se referem. Em resumo,

[...] o texto jornalístico mantém relações com


a realidade, mas constrói jornalisticamente um
mundo que o leitor pode confundir como sendo
o mundo extra-mental. Na verdade, o jornalis-
mo apresenta aos leitores um tratamento da re-
alidade, mas que pode ser confundido com um
retrato do mundo (SILVA, 2006, p. 15).

A partir disso, pode-se concluir que o discurso jor-


nalístico se enquadra no que o filósofo Chaïm Perelman
(2005, p. 347) descreve como “argumento de autorida-
de”. Trata-se de uma forma de indução retórica, utilizada
pelo enunciador, capaz de facilitar o processo de persu-
asão do auditório.
Ele explica que é mais difícil fazer questionamentos
sobre os discursos de alguém que tenha credibilidade
junto ao público do que aceitar passivamente os aponta-
mentos de um orador que não goze desse prestígio. Por
esse motivo, é possível afirmar que o jornalista é alguém
que dispõe dessa prerrogativa social para dizer/descrever
“a verdade”, com menor desconfiança sobre seus aponta-
mentos. Mesmo que o “eu” não apareça diretamente no
discurso proferido, ele está previamente autorizado pela

334 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


credibilidade da classe dos jornalistas, bem como pode
ser corroborado pela confiança sobre a instituição que
representa. Somando-se a isso, o produtor do discurso
jornalístico ainda utiliza vários recursos para aumentar a
fidedignidade de sua narrativa. Como afirma Perelman,

As autoridades invocadas são muito variáveis:


ora será ‘o parecer unânime’ ou ‘a opinião co-
mum’, ora certas categorias de homens, ‘os cien-
tistas’, ‘os filósofos’, ‘os Padres da Igreja’, ‘os pro-
fetas’, por vezes a autoridade será impessoal: ‘a
física’, ‘a doutrina’, ‘a religião’, ‘a Bíblia’; por vezes
se tratará de autoridades designadas pelo nome
(PERELMAN, 2005, p.350).

Nesse contexto, ganha cada vez mais evidência a


utilização de dados numéricos, sobretudo oriundos de
pesquisas de instituições de credibilidade perante a so-
ciedade em geral, para legitimar o discurso jornalístico.

O jornalismo de dados
A utilização de bases de dados numéricas no jorna-
lismo ganhou mais recorrência sobretudo no final da
década de 1960. Nesse momento, houve o desenvolvi-
mento do chamado Jornalismo de Precisão – a partir do
qual derivaram as técnicas do Jornalismo Guiado por
Dados, conforme ficou mais conhecido atualmente –
com ­Philip Meyer, então repórter do Detroit Free Press.

335 A Comunicação, Meios e Interações


O jornalista desenvolveu a reportagem “The People
Beyond 12th Street” (posteriormente comtemplada pelo
Prêmio Pulitzer), em 1967, que propunha a utilização
de metodologias de pesquisa das Ciências Sociais para
conhecer as causas e as características dos participantes
de motins urbanos que aconteciam com frequência em
Detroit. A cidade passava por um período de distúrbios
sociais após uma invasão policial a um bar clandestino
em 23 de julho. Esse acontecimento foi o estopim para
que outros moradores locais se inflamassem e promo-
vessem manifestações durante cinco dias. O resultado
foi a destruição de várias ruas da cidade, além de deixar
43 mortos e 7 mil pessoas detidas. Não se sabia o moti-
vo exato do que ocorreu, mas duas teorias predomina-
vam: 1) Grupos de camadas econômicas mais baixas e
com baixo grau de escolaridade causavam esses motins
como forma de expressão; 2) Imigrantes, sobretudo des-
cendentes de africanos, do sul da cidade causavam esses
motins pois enfrentavam dificuldades para serem assi-
milados na cultura do norte (ROSEGRANT, 2011, s.p.).
Após passar um ano estudando Ciências Sociais em
Harvard, o repórter Philip Meyer participou da cober-
tura dessas manifestações e sugeriu a aplicação de um
questionário baseado em uma amostra representativa
da população dos bairros afetados. O resultado mostrou
que não havia correlação entre condição econômica e
participação nos distúrbios e que os nativos da cidade
eram três vezes mais propensos a participar de saques,
agressões, homicídios e incêndios do que os imigrantes
do Sul (TRASEL, 2014, p. 97).

336 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Anos depois, Meyer publicou o livro “Jornalismo de
Precisão”, no qual defende a volta da objetividade às re-
dações – naquele momento, o New Journalism possuía
grande espaço nos veículos de comunicação – por meio
dos números. O repórter, aliás, defende a cientificidade
desse processo.

O novo jornalismo de precisão é um jornalismo


científico. [...] Isso significa tratar o jornalismo
como se ele fosse uma ciência, adotando método
científico, objetividade científica e ideais cien-
tíficos em todo o processo de comunicação de
massa (MEYER, 1991).3

Com o passar dos anos, a incorporação de dados nu-


méricos em matérias jornalísticas ficou mais recorrente
e ganhou ares de legitimação do discurso. Essa constru-
ção narrativa por meio de números, ainda mais aliada à
infografia, passa por seleções e interpretações do profis-
sional. Com o auxílio de computadores, tanto o acesso e
a análise de pesquisas quanto a produção de infográficos
se tornou mais fácil e frequente nos veículos de comuni-
cação e, como vimos anteriormente, há diversos aspec-
tos que influenciam a produção discursiva dos enuncia-
dos que se utilizam desses recursos.

3. The new precision journalism is scientific journalism. […] It


means treating journalism as if it were a science, adopting sci-
entific method, scientific objectivity, and scientific ideals to the
entire process of mass communication.

337 A Comunicação, Meios e Interações


Apesar da defesa da objetividade desse tipo de fazer
jornalístico, o próprio Meyer (2002, p.19) cita que “os
números são como fogo. Eles podem ser usados para o
bem ou para o mal. Quando mensurados, eles podem
criar ilusões de certeza e importância que nos tornam
irracionais”4.
É essa tensão entre a objetividade e a subjetividade da
construção discursiva que guia esta pesquisa. Traremos,
com isso, algumas observações sobre essa relação por
meio da análise de alguns infográficos do corpus sele-
cionado.

O discurso inquestionável dos números


Uma das percepções que parte do público tem da fo-
tografia é a sensação de “congelamento” do fato repre-
sentado na sua exata forma, portanto inquestionável.
Contudo, é sabido que muitos fatores são, evidente-
mente, influenciadores em uma narrativa fotográfica, a
exemplo do enquadramento. Outro recurso muito utili-
zado quando se deseja legitimar uma informação é re-
correr a algumas fontes “autorizadas”, como instituições
governamentais e especialistas de determinadas profis-
sões.

4. Numbers are like fire. They can be used for good or ill. When
measured, they can create illusions of certitude and importance
that render us irrational

338 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Ao abordar a representação objetiva da realidade,
os dados numéricos, sobretudo oriundos de pesquisas
de instituições de credibilidade perante a sociedade em
geral, funcionam como ferramentas para mostrar pre-
cisão a respeito do tema tratado. Contudo, esse papel
dos números no jornalismo pode ser ilusório, uma vez
que os organizadores das informações que irão compor
o produto final utilizam mecanismos retóricos e dis-
cursivos para atribuir sentido. Como destaca Pêcheux
(2008, p. 53), todo discurso está exposto ao que chama
de “equívoco da língua”, ou seja, “todo enunciado é in-
trinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de
si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido
para derivar para um outro”.
A respeito dos discursos midiáticos, aliás, Certeau
(1994, p. 288) afirma que esses relatos têm “o duplo e
estranho poder de mudar o ver num crer, e de fabricar
o real com aparências”. Ou seja, ele reflete sobre essa
ideia da abordagem das cenas sociais por meio de ins-
trumentos linguísticos que pretendem mostrá-las como
uma realidade visível, e não apenas representações das
mesmas.

O grande silêncio das coisas muda-se no seu


contrário através da mídia. Ontem constituído
em segredo, agora o real tagarela. Só se veem
por todo o lado notícias, informações, estatís-
ticas e sondagens. Jamais houve uma história
que tivesse falado ou mostrado tanto. Jamais,
com efeito, os ministros dos deuses os fize-
ram falar de uma maneira tão contínua, tão

339 A Comunicação, Meios e Interações


­ ormenorizada e tão injuntiva como o fazem
p
hoje os produtores de revelações e regras em
nome da atualidade. Os relatos do-que-está-
-acontecendo constituem a nossa ortodoxia.
Os debates de números são as nossas guerras
teológicas. Os combates não carregam mais as
armas de ideias ofensivas ou defensivas. Avan-
çam camuflados em fatos, em dados e aconte-
cimentos. Apresentam-se como os mensagei-
ros de um “real”.

É por meio das afirmações (e também dos oculta-


mentos) que a mídia cria narrativas que objetivam con-
quistar a confiança do público em torno da sua credi-
bilidade. Partindo da Análise de Discurso de tradição
francesa como campo teórico-metodológico para este
trabalho, abordaremos aspectos que conformam o dis-
curso, como a noção de “dito e não dito”. Tal ideia faz
menção aos pressupostos em um discurso, ou seja, algo
que não foi colocado claramente, mas que guarda rele-
vância para o analista que pretende depreender senti-
dos discursivos.

Construção da realidade por meio de dados: análise do


Estadão e da Folha De S. Paulo
Para a análise a respeito das reflexões trazidas ante-
riormente, este estudo utilizou como corpus os conteú-
dos publicados pelo Estadão Dados na aba “Gráfico do

340 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Dia” e no jornal Folha de S. Paulo, entre os dias 03 de
outubro de 2014 e 07 de abril de 2015, que utilizam da-
dos numéricos como eixo da matéria. A partir destes,
sorteamos algumas delas para análise e trazemos dois
desses casos a seguir.
Em “Confiança do consumidor para de cair após 5
meses – e isso não é ruim para Dilma”, publicado em 7
de abril de 2015, a escolha das palavras e da organização
destas são importantes na produção de sentido. O título
possui forte carga semântica. A segunda parte do enun-
ciado – “e isso não é ruim para Dilma” – aparece logo
após um hífen. Essa construção cria uma ênfase para
essa conclusão. Outro ponto em destaque é que dizer
que “para de cair” e “não é ruim” são formas que criam
um tom mais negativo da situação. Outra organização
para o enunciado poderia ser “confiança do consumidor
se mantém estável” e “isso é bom para Dilma”.
Pode-se ainda contestar esse discurso de autoridade
dos dados numéricos – que tenta isentar de dúvidas a
sua veracidade – a partir da maneira como estão dis-
postos. No caso do conteúdo de “Confiança do consu-
midor para de cair após 5 meses – e isso não é ruim para
Dilma”, a projeção leva a crer que a taxa de confiança do
consumidor tem relação direta com o saldo de popula-
ridade da presidente, como aponta a frase “desconfian-
ça do consumidor prenuncia queda de popularidade”
acima do gráfico. Contudo, é preciso lembrar que vários
outros fatores podem determinar a elevação ou queda
de cada um deles. O Índice Nacional de Expectativa do

341 A Comunicação, Meios e Interações


Consumidor (INEC), por exemplo, é um indicador que
avalia o sentimento do consumidor quanto a fatores
que afetam sua disposição de compra. As informações
são coletadas por intermédio de pesquisa de opinião
pública, e o INEC ajuda a prever variações no ritmo
da atividade econômica, estimando alterações no nível
de consumo das famílias. Essa medida da confiança do
consumidor depende do poder de compra, da varia-
ção salarial, dos índices de desemprego, das variações
cambiais etc. Ou seja, é difícil avaliar uma relação tão
íntima, de causa e consequência, com a popularidade
presidencial.
Até mesmo o design escolhido influencia a leitura,
uma vez que a relação diretamente proporcional que se
busca criar fica mais evidente na estrutura escolhida.
Um olhar superficial já é suficiente para perceber que as
barras que indicam o INEC acompanham a curva de po-
pularidade presidencial. Se os dados estivessem em ar-
tes separadas, ou até mesmo ambas dispostas em barras,
essa visualização seria mais difícil. A proposta do jornal
é passar essa perspectiva de que os elementos estão cor-
relacionados, ou seja, verifica-se, com isso, a marca da
interpretação do enunciador, do “eu” que está escondido
por trás dos números.

342 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Figura 1. Infográfico divulgado pelo Blog Estadão Dados, em 2013, comparando a popularidade da presidente Dilma
Rousseff e o Índice de Expectativa do Consumidor
Os elementos analisados, portanto, mostram algu-
mas das estratégias discursivas de convencimento das
ideias que se pretendem transmitir por meio de elemen-
tos como os números estatísticos e o ocultamento do
enunciador.
O outro infográfico da amostra foi divulgado pelo
jornal Folha de S. Paulo no dia 07 de dezembro de
2014. A matéria em questão destaca o resultado de
uma pesquisa Datafolha, realizada pelo mesmo grupo
de comunicação, e o infográfico combina os atuais nú-
meros com resultados da mesma consulta de opinião
em anos anteriores. Assim como no primeiro exemplo,
ele aborda alguns índices relacionados ao governo da
presidente Dilma Rousseff, reeleita em 26 de outubro
de 2014.
O infográfico é composto pelos seguintes tópicos:
a) a responsabilidade da presidente Dilma no caso Pe-
trobras; b) o grau de conhecimento dos entrevistados
sobre o caso; c) níveis de combate à corrupção nos
mandatos dos seis últimos presidentes do Brasil; d) a
expectativa quanto ao desempenho de cada um dos úl-
timos cinco presidentes dias antes de suas respectivas
posses.
Inicialmente, é preciso contextualizar que o “caso
Petrobras” se refere a uma operação, iniciada em 2014,
que investiga um suposto esquema de lavagem e des-
vio de dinheiro envolvendo essa empresa estatal brasi-
leira, grandes empreiteiras do país e políticos. A maté-
ria, cuja chamada de capa foi “Brasileiro responsabiliza
Dilma por caso Petrobras”, associa a figura da chefe do

344 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


­ xecutivo ao escândalo, tanto por meio da manchete ta-
E
xativa quanto pela forma como elenca os dados.
Um elemento que pode ter influenciado o número
que recebeu mais destaque do jornal é a forma como
ocorreu a elaboração da pergunta “Dilma tem respon-
sabilidade sobre o caso?”. O termo “responsabilidade”
se torna muito genérico nesse contexto. Por exemplo, as
respostas afirmativas podem ter interpretações como:
“ela sabia das irregularidades, mas nada fez”; “ela teve
participação ativa, portanto estava diretamente envolvi-
da nos desvios”; “ela tem responsabilidade, mas porque
escolheu ou aprovou os gestores da Petrobras”; dentre
outras variadas formas de observar essa pergunta. Desse
modo, nota-se a dificuldade de representação da reali-
dade concreta e imutável em um discurso, o que influen-
cia nos índices apresentados.
Já a respeito da maneira como os números foram
divulgados no infográfico em questão, nota-se que,
enquanto a pergunta destacada pelo jornal aponta
uma avaliação negativa do governo, os demais índices
mostram o oposto. Se os números positivos para Dil-
ma fossem o destaque da manchete e também da or-
dem disposta no infográfico (na publicação da Folha,
o gráfico sobre o caso da estatal é consideravelmente
maior e está no topo em relação aos outros), a percep-
ção a seu respeito poderia tomar contornos afirmativos.
A hierarquia escolhida para a apresentação dos dados,
portanto, também é importante na produção de senti-
do, uma vez que aquilo a que se confere mais destaque

345 A Comunicação, Meios e Interações


possui uma probabilidade muito maior de também ser
recebido como ponto mais importante pelo público. O
fato de ser o índice com maior ênfase também tem a
possibilidade de criar um estado de espírito no receptor
capaz de influenciar a forma de recepção das demais
informações.
Também observando sob essa perspectiva, o gráfico
que aborda a ligação da presidente no caso Petrobras
está dividido entre aqueles que atribuem muita (43%)
e pouca (25%) responsabilidade, que se encontram so-
mados totalizando o índice de 68%. Uma outra forma
de interpretação possível seria unir aqueles que acredi-
tam que ela não tem nenhuma relação com o caso (20%)
aos que conferem pouco envolvimento, resultando em
45%, ou seja, a maioria. Neste caso, a manchete poderia
afirmar, por exemplo, que os brasileiros acreditam que
a presidente não é a principal responsável no caso, uma
vez que a maioria dos entrevistados apontou que ela não
tem responsabilidade ou que tem apenas uma pequena
parcela de culpa.
Não se trata, portanto, de apontar um erro no gráfico
em questão, mas de verificar que, a partir de um mesmo
conjunto numérico, é possível criar diferentes narrati-
vas. A interpretação do jornalista e a forma como orga-
niza o discurso, portanto, são importantes na produção
de sentido.

346 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Figura 2. Infográfico divulgado pelo jornal Folha de S. Paulo, em
dezembro de 2014, com resultado de pesquisa Datafolha

347 A Comunicação, Meios e Interações


Considerações finais
A matematização das ideias no jornalismo, em gran-
de parte dos casos, é utilizada para legitimar as infor-
mações. Contudo, conforme abordado anteriormente,
esses elementos também fazem parte de um discurso, a
partir do qual o emissor pretende gerar conhecimentos
e transmitir determinados pensamentos.
A combinação de dados faz com que cada um destes
ganhe um novo valor. Ou seja, a exemplo do que Maingue-
neau (2002, p.25) coloca a respeito das citações em um tex-
to, trata-se de “retirar um material já significante de dentro
de um discurso para fazê-lo funcionar dentro de um novo
sistema significante”. Nesse novo contexto, ganham novos
valores simbólicos e criam diferentes narrativas.
Conforme destacado nas análises, entre os fatores
que contribuem para influenciar as interpretações estão
as representações gráficas, as informações/dados esco-
lhidos, as fontes de coleta destas, além da própria inter-
pretação primária realizada pelo jornalista ao observar
os documentos. Os sentidos, portanto, são construídos
a partir de subsídios como os mencionados.
Essas escolhas dos fatos que farão ou não parte das
matérias, bem como da hierarquia e das formas com-
posicionais, são determinantes para o público formar a
imagem sobre determinados assuntos. Isso corrobora na
construção da agenda, tanto no que se refere ao que deve
ser mais discutido quanto à importância e percepção
atribuída apelo público aos acontecimentos. Ou seja,
influenciam o modo como os destinatários organizam

348 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


a sua imagem do ambiente. Afinal, “o modo de hierar-
quizar os acontecimentos ou os temas públicos impor-
tantes, por parte de um sujeito, assemelha-se à avaliação
desses mesmos problemas feita pelos mass media, como
um efeito cumulativo” (SHAW, 1979, p.102).

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350 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. Editorial Pre-
sença, Lisboa, 2001.

351 A Comunicação, Meios e Interações


Capítulo 12
A construção da notícia:
­correlacionando conceitos de Rodrigo
Alsina e Wolf

Renan Milanez Vieira1

Introdução
O presente artigo visa correlacionar duas visões de
teóricos acerca do Jornalismo. O primeiro deles é Mi-
quel Rodrigo Alsina, com a obra A construção da no-
tícia e o segundo é Mauro Wolf e as suas ideias sobre o
­Newsmaking por meio do livro Teorias das Comunica-
ções de Massa. A fim de cumprir essa meta serão apre-
sentadas as concepções de ambos os autores para que,
seguidamente, possam ser comparadas, indicando no
que se assemelham e em que divergem. Com os resulta-

1. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação


da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP,
Bauru/SP, sob a orientação do Prof. Dr. Carlo José Napolitano.
E-mail: renanmilanez@hotmail.com

352
dos dessa análise, inclui-se também apresentar proble-
máticas contemporâneas relacionadas às perspectivas da
mídia impressa na sociedade atual, marcada pela massi-
ficação da internet e das tecnologias digitais.
A estrutura desse trabalho está definida da seguin-
te maneira. No tópico O fazer jornalístico para Rodrigo
Alsina são detalhadas as concepções do pesquisador. De
todo o seu estudo, foi definido um recorte, o qual com-
preende quatro capítulos que englobam noções sobre o
acontecimento, sua determinação pela mídia, as fontes e
o trabalho jornalístico.
Em O Newsmaking e a produção da notícia para Wolf
compreende-se a exposição dessa abordagem teórica
para esse estudioso, que contempla os conceitos de No-
ticiabilidade e Valores-notícia, demonstrando sua ori-
gem, suas lógicas e como enquadram e interpretam as
etapas da produção da informação.
Já no tópico Análise: correlacionando a visão dos au-
tores será feito o cruzamento das ideias. Sua esquemati-
zação parte inicialmente de um esboço que detalha as
principais fases da construção noticiosa, elaborado pelo
autor desse texto e que tem por finalidade ser um parâ-
metro de comparação. A partir dele será possível consta-
tar as temáticas abordadas, as semelhanças e as diferen-
ças, ou seja, detalhar os resultados conquistados.
Finalmente, em Considerações: possibilidades e desa-
fios do jornalismo impresso na era da sociedade digital é
contemplado o desdobramento alcançado, que se pro-
põe a refletir sobre o cenário social atual, marcado pela
expansão das tecnologias e pelo seu uso na obtenção de

353 A Comunicação, Meios e Interações


informações. São descritas as principais mudanças de
paradigmas surgidos com a comunicação digital e, em
seguida, demonstra-se sugestões de possibilidades para
os veículos impressos alcançarem uma renovação que os
permita expandir sua abrangência para os novos públi-
cos.

O fazer jornalístico para Rodrigo Alsina


A construção da notícia pode ser esquematizada se-
gundo Rodrigo Alsina (2009) em três grandes núcleos:
acontecimento, fonte e notícia, sendo o primeiro desses
elementos o marco inicial, ou seja, o princípio de onde
começam todas as problemáticas a se julgar.
Quanto à sua concepção, uma premissa relevante
refere-se à enquadrá-lo como um produto da ação hu-
mana, ou seja, eles são criados e não necessariamente
pode-se defini-los enquanto algo espontâneo, que ocor-
re sem planejamento ou sem intenções. Para conceituá-
-lo, o autor o situa diante das seguintes condições. Ele é
sempre gerado por meio de fenômenos que serão sem-
pre externos para o sujeito e entre eles há uma relação
de dependência, isto é, um não existe sem o outro. Para
que ele alcance forma, é necessário que um indivíduo
aplique seu conhecimento e o resultado desse ato de sig-
nificação é o que fará com que o ocorrido alcance sua
estrutura final (RODRIGO ALSINA, 2009, p. 114).
Assim, é preciso situá-lo também como uma ocor-
rência social, alvo de forças culturais e históricas que

354 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


podem agir na projeção de repertórios para os integran-
tes da sociedade. Dessa maneira, as pessoas em si não
são necessariamente os protagonistas desse processo;
há uma hierarquia que pode ser detalhada pela seguinte
sequência: as instâncias sociais, culturais, educacionais
agem no modo de pensar dos seres humanos e estes se
utilizam daquilo que aprenderam por meio de julga-
mentos, classificando o que deve ser significado e vali-
dado, e o que será despercebido. Portanto, trata-se de
uma decisão de escolha/exclusão, segundo um sistema
cultural específico. (RODRIGO ALSINA, 2009, p. 115).
Convém questionar de que forma estão inseridos os
meios de comunicação. Para o teórico, estes se situam
numa lógica em que:

Poderíamos considerar então que a mídia é


um sistema que funciona com alguns inputs, os
acontecimentos, e que gera alguns outputs que
transmitem: as notícias. E essas notícias são re-
cebidas como acontecimentos pelos indivíduos
receptores da informação. Ou seja, todo e qual-
quer output pode ser também um input de outro
sistema e todo e qualquer input também pode
ter sido um output de um sistema anterior. (RO-
DRIGO ALSINA, 2009, p. 133, grifo do autor).

Pode-se supor que os eventos funcionam conforme


uma espécie de matéria-prima para os jornalistas se
apropriarem na transformação em notícia. Muitas ve-
zes, aquilo que é captado engloba o fenômeno completo
ou ele pode ser apenas um ponto de partida, levando

355 A Comunicação, Meios e Interações


o comunicador a explorar um assunto mais abrangente.
Quando o conteúdo é produzido e, consequentemente,
veiculado, sua recepção pelo público também é conside-
rada um acontecimento. Ou seja, o jornal pode ser um
suporte, um intermediador no qual coloca à disposição
dos leitores vários fatos, prontos para serem lidos, in-
terpretados e ressignificados em novas pautas para os
meios, gerando-se assim o círculo conceituado pelo au-
tor. Trata-se de uma relação dinâmica, cujo foco estará
sempre na figura do público, pois a mídia depende dele
para o surgimento de temáticas e elas são estruturadas
de acordo com o seu interesse e o seu feedback.
Uma variação desse conceito é o que Rodrigo Alsina
(2009, p. 139) intitula acontecimento jornalístico, que
“[...] é toda variação comunicada do ecossistema, atra-
vés da qual seus sujeitos podem se sentir implicados.”
Por ecossistema, entende-se o mundo, a sociedade onde
vivem as pessoas. A partir dessa noção, pode-se pensar
nos seguintes elementos como sendo fundamentais para
que um evento atinja esse status: a variação do ecossiste-
ma, a comunicabilidade do fato e a implicação dos sujei-
tos. (RODRIGO ALSINA, 2009, p. 134-140-142).
O segundo item é o fator que pode diferenciar o con-
ceito tradicional do específico, ou seja, se o fenômeno
percebido for compartilhado coletivamente, alcança-se
esse novo grau, podendo ser ainda mais atrativo para a
imprensa escolhê-lo nos seus processos produtivos. Vale
ressaltar que qualquer um dos dois modelos é alvo dos
meios, contudo a quantidade de pessoas significando
pode ser um critério de noticiabilidade, com um peso

356 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


maior do que um ocorrido que for captado de maneira
individual.
A partir dessa relação entre sujeito, fatos e mídia, cabe
a esta desenvolver lógicas e princípios que deem conta de
selecionar aquilo que for relevante, de interesse público,
que mereça se tornar notícia. Todavia, nessa prática deve-
-se levar em conta que as possibilidades para se destacar
algo são praticamente infinitas, por outro lado, os meios
são limitados e incapazes de alcançar essa demanda e é
por isso que se pensa nos critérios definidos pelos veículos
na escolha daquilo que é propenso a se divulgar. O autor
inclui na sua abordagem uma reflexão sobre a concepção
dessas regras de seleção (valores-notícia), para que, em se-
guida, possa teorizar sobre as fontes. Esse tópico pode ser
organizado a partir de dois eixos - o papel das fontes na
construção do discurso e as problemáticas inerentes das
relações entre elas e o jornalista ou a empresa midiática.
Recorrer a profissionais para fundamentar ou dar voz
a um personagem diretamente ligado àquilo que é re-
portado são recursos que visam dar mais propriedade ao
conteúdo e torná-lo também mais próximo à realidade.
Dentro dessas possibilidades, são esquematizados dois
tipos de fontes. A primeira refere-se às oficiais, conside-
radas muitas vezes de fácil acesso, legitimadas, mas que
levam consigo intenções próprias. Já a segunda catego-
ria diz respeito às não rotineiras, àquelas que estão fora
do círculo das instituições e das assessorias de imprensa
(RODRIGO ALSINA, 2009, p. 171-172).
Na definição entre qual caminho escolher, encontra-
-se uma variável: o tempo. São as pressões decorrentes

357 A Comunicação, Meios e Interações


dos prazos, das finalizações e das entregas que podem
induzir a dependência às vozes consagradas. Obviamen-
te, elas serão necessárias em determinados momentos,
contudo o estudo e a investigação contribuem para in-
centivar a pluralidade de opiniões no discurso comu-
nicacional, um elemento benéfico para a promoção da
democracia, pois permite trazer a visão e o pensamento
de outros atores sociais.
É possível descrever duas situações oriundas do cho-
que de interesses e do desentendimento dessas partes,
ligadas a procedimentos de punição ou de premiação.
Os primeiros ocorrem com um conflito, ou seja, quando
o jornalista explora um assunto até determinado ponto
que não convém aos interessados ou quando este faz crí-
ticas a alguma empresa estratégica para o veículo. Tudo
isso pode por em risco sua estabilidade no emprego. Já o
segundo ponto surge quando organizações utilizam es-
tratégias de persuasão, dando prêmios e cortesias para
que possam criar uma relação de gratidão com os profis-
sionais midiáticos, utilizando-a para seu benefício (NE-
VEU, 2001, p. 57-58 apud RODRIGO ALSINA, 2009, p.
167-168). Em linhas gerais, desenvolve-se um jogo em
que os produtores precisam de pessoas adequadas para
se interpretar ou opinar sobre um conteúdo e, do outro
lado, há corporações que necessitam de espaço em busca
de visibilidade ou de marketing estratégico.
Definidas as fontes, parte-se para o início da reda-
ção, a qual está estruturada em dois processos - sele-
ção das informações a serem contempladas e hierar-
quização das mesmas. Esses dois pilares demonstram

358 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


que a escrita envolve ajustes ao suporte e às especifi-
cidades técnicas e organizacionais do respectivo meio.
Em uma notícia, quando angulações são determinadas
e ênfases aplicadas, pode-se considerar também que
houve um ato de tematização (RODRIGO ALSINA,
2009, p. 184-185).
Existem duas possibilidades que levam a esse con-
ceito: a tematização como efeito, relacionada aos prin-
cípios da Teoria da Agenda-setting e a resultante da
produção, que envolve o direcionamento da atenção
do público para temas específicos. Para diferenciá-los,
deve-se entender que a primeira linha refere-se à capa-
cidade da mídia em criar a opinião pública, enquanto
que a segunda é decorrência do ato de valorização de
problemáticas a partir da seleção de um evento (RO-
DRIGO ALSINA, 2009, p. 191-192-193). É uma ação
indireta, que presume a capacidade do indivíduo em
criar uma teia de significações e ir além do que foi apre-
sentado, embora muitas vezes não se pode prever se um
determinado assunto leva a sociedade a indagar ou não
outras questões
Portanto, a partir do recorte definido para a análi-
se, percebe-se que são demonstradas teorizações sobre
o que é e como é construído o acontecimento, quais as
lógicas e os princípios para a seleção deste pela mídia, a
necessidade de se recorrer a especialistas na fundamen-
tação do discurso e os problemas inerentes à relação
com as fontes, as consequências do ato de produção de
conteúdo, ligadas ao desdobramento direto e/ou indire-
to de influência à opinião pública.

359 A Comunicação, Meios e Interações


O Newsmaking e a produção da ­notícia
para Wolf
A perspectiva do Newsmaking corresponde a um viés
teórico capaz de fornecer subsídios para a análise da
notícia, permitindo identificar os eventuais fatores que
a influenciaram a adquirir determinada forma ou dire-
triz. Para Wolf (2012, p. 193-194), esse modelo pode ser
enquadrado dentro dos seguintes eixos: “[...] a cultura
profissional dos jornalistas; a organização do trabalho
e dos processos de produção. As conexões e as relações
entre os dois aspectos constituem o ponto central desse
tipo de pesquisa.”
A concepção que essa abordagem defende é a de que
as ações midiáticas são alvos de pressões por conta dos
prazos e da necessidade de se levar diariamente infor-
mativos à população. Isso faz com que seja necessário
adotar práticas sistemáticas e critérios para que as es-
colhas e as atividades feitas pelos comunicadores sejam
rápidas e eficazes.
É preciso levar em conta também a incapacidade dos
meios de veicular tudo o que ocorre na sociedade, ou
seja, torna-se necessário desenvolver noções que pos-
sam dizer dentre todas as possibilidades, o que pode ser
julgado válido a ser de conhecimento público. É a par-
tir disso que se situa a Noticiabilidade, que diz respeito
aos critérios exigidos pelos fatos para se adequarem à
estrutura de trabalho presente nos órgãos informativos
e à visão profissional para que assim possam adquirir o

360 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


posto de notícia (WOLF, 2012, p. 195). Uma outra noção
a classifica como o

[...] conjunto de critérios, operações e instru-


mentos com os quais os aparatos de informação
enfrentam a tarefa de escolher cotidianamen-
te, de um número imprevisível e indefinido de
acontecimentos, uma quantidade finita e ten-
dencialmente estável de notícias. (WOLF, 2012,
p. 196).

Sendo assim, esse conceito compreende as estraté-


gias que as empresas midiáticas usam para se enquadrar
diante das demandas de produção e, muitas vezes, den-
tre elas podem estar inseridos critérios próprios e espe-
cíficos do que um veículo define ser válido a se noticiar.
Pode-se então considerá-lo como o recurso que torna
viável as etapas noticiosas, possibilitando que se leve ao
público um relato daquilo julgado relevante na socieda-
de em um espaço de tempo.
Um outro item teórico que integra o anterior são os
valores-notícia. Estes contribuem ao permitir o deta-
lhamento das ações dos jornalistas, mapeando os argu-
mentos aplicados por eles na realização de seu ofício. Por
definição, eles «[...] representam a resposta à seguinte per-
gunta: quais acontecimentos são considerados suficiente-
mente interessantes, significativos, relevantes, para serem
transformados em notícias?” (WOLF, 2012, p. 202).
Esses tópicos apresentam uma nuance mais quali-
tativa, ou seja, eles refletem a essência da justificativa

361 A Comunicação, Meios e Interações


a­ plicada para dizer por que um fato foi escolhido (sendo
que muitas vezes essa ação reflete a exclusão de outro).
Assim, pode-se relacionar ambos os conceitos no auxílio
para explicar as técnicas aplicadas na organização, na se-
leção de conteúdo e na descrição dos porquês da opção
realizada.
É importante destacá-los enquanto critérios direta-
mente enraizados na cultura profissional da classe jor-
nalística, ou seja, eles correspondem a conhecimentos
que são comuns a qualquer pessoa dessa área, indepen-
dente do setor de atuação ou da empresa para qual fa-
zem parte. Além disso, são dinâmicos, ou seja, alteram-
-se no tempo e podem muitas vezes não continuar a ser
os mesmos (WOLF, 2012, p. 205).
Nesse sentido, não é possível enquadrá-los como sa-
beres subjetivos; na verdade, estão mais próximos de um
código, cuja natureza é consensual, compartilhada por
todos. Isso permite que qualquer membro da imprensa
possa compreender facilmente por que um outro cole-
ga realizou determinada escolha e direcionamento para
uma produção. Mesmo que se cruzem mídias concor-
rentes, as lógicas aplicadas são semelhantes, ou quase as
mesmas.
Sendo saberes específicos, pode-se imaginar de onde
eles provêm. Sua origem não está restrita apenas a fase
de seleção dos fatos. Tudo o que se liga às escalas comu-
nicacionais pode gerar novos valores-notícias. A classifi-
cação de Wolf (2012, p. 207) orienta que eles podem ser
desenvolvidos a partir de:

362 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


[...] admissões implícitas ou de considerações
relativas a:
a. os caracteres substantivos das notícias; o seu
conteúdo;
b. a disponibilidade do material e os critérios re-
lativos ao produto informativo;
c. o público;
d. a concorrência.

O primeiro item refere-se à avaliação direta do fato


em termos de importância e de interesse e são denomi-
nados como critérios substantivos. Já o segundo, con-
templa a disponibilidade e as adequações que o mate-
rial escolhido necessita ter diante das particularidades
técnicas e organizacionais do veículo. Uma espécie de
subitem são os critérios relativos ao meio, que proble-
matiza a tendência pela preferência de acontecimentos
que se enquadrem mais facilmente às matrizes e formas
midiáticas. Por exemplo, no telejornalismo haverá sem-
pre preferência para um fenômeno que forneça boas
imagens para sua composição. O terceiro diz respeito à
imagem que os comunicadores têm do seu público. O
último relaciona de que modo a competição pode refle-
tir e reforçar esses conceitos (WOLF, 2012).
Contudo, é possível levar em conta outras proble-
máticas e fenômenos contemporâneos, relacionando-
-os com esses elementos. A popularização da internet,
o desenvolvimento e a ampliação dos dispositivos mó-
veis podem ser um exemplo, além da convergência e da
massificação das mídias digitais, que são cada vez mais

363 A Comunicação, Meios e Interações


usadas enquanto fontes de informação. Ou seja, as tec-
nologias promovem novas relações entre os produtores
e os receptores e isso consequentemente levará a impli-
cações sobre como aqueles irão estruturar e determinar
o seu trabalho.
Pode-se pensar também nas relações entre a impren-
sa e na conexão com as práticas jornalísticas. Isso ocor-
re inicialmente quando se considera os seus bastidores
enquanto um forte critério de seleção e de garantias de
atenção, uma vez que os veículos fazem parte do dia a
dia de toda a população e grande parte dela tem a curio-
sidade em saber o que ocorre nesse ambiente.
Outra ponderação reflete a notícia sobre a mídia
como uma ferramenta estratégica, ideológica, a favor
dos interesses de um determinado grupo. Essa lógica
pode estar presente quando os conflitos e os desenten-
dimentos nessa área ganham o status de ser de conheci-
mento do público ou por serem julgados de seu interesse
ou por utilizar esse espaço para transmitir indiretamen-
te uma crítica ou transparecer uma posição contrária a
um concorrente específico ou ao mercado em geral.
Por outra perspectiva, tem-se o papel do Estado. Por
meio da Constituição, é expresso no Direto à Comu-
nicação a sua preocupação em dar garantias para que
as práticas nesse setor sejam estimuladas e não sofram
restrições, dentro dos limites e parâmetros legais (NA-
POLITANO, 2009). Ou seja, haver concorrência pode
significar mais conteúdo e um estímulo a sua diversi-
dade, elementos que para a sociedade podem ser algo
benéfico.

364 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Assim, para o Newsmaking a cultura profissional dos
jornalistas é um ponto de análise do qual se permite
compreender as formas de produção, as quais estão in-
seridas num cenário marcado por um ritmo constante e
considerável de demandas e isso exige que se desenvol-
vam estratégias que permitam alcançar as metas exigi-
das pelas organizações midiáticas e pela sociedade.

Análise: correlacionando a visão dos autores


A realização da análise está estrutura em três etapas. Na
primeira será apresentada uma visão padrão, elaborada
pelo autor deste artigo, que visa descrever as fases tradicio-
nais que envolvem a construção da notícia. Na segunda eta-
pa, as ideias de Rodrigo Alsina e de Wolf serão comparadas
com esse parâmetro próprio, com o objetivo de identificar
em quais pontos esses autores oferecem relatos teóricos e
em quais não são enfatizados. Finalmente, na terceira eta-
pa, os resultados obtidos entre os dois serão comparados,
para que assim possa se deduzir novas problemáticas.
Tomando como base o conhecimento e a experiên-
cia do pesquisador, foram definidos os seguintes passos
para a análise comparativa. Após cada um deles, há uma
breve descrição:

1 - Escolher e definir o direcionamento da pauta


Ações realizadas na delimitação dos assuntos a serem
trabalhados para um suporte e o que pode decorrer disso.

365 A Comunicação, Meios e Interações


2 - Determinar e entrevistar a(s) fonte(s)
Processos relacionados à escolha e à realização das
entrevistas com especialistas
3 - Produção, revisão e edição da notícia
Realização da redação e das adaptações de linguagem
para o respectivo meio.
4 - Adequações antes da finalização do produto
Diz respeito aos imprevistos que podem ocorrer com
um conteúdo, impedindo sua veiculação momentos antes
do fechamento, seja por conta do teor abordado, de ques-
tões relacionadas a estratégias definidas pela redação, por
interesses organizacionais ou pressões comerciais.
5 - Recepção e desdobramentos do assunto reportado
Reflexões sobre a recepção e como o público pode
contribuir para a continuidade do tema pela mídia.

Dentre as ideias formuladas por Rodrigo Alsina, fo-


ram encontradas teorizações que se relacionam com os
tópicos 1, 2 e 3. As explicações sobre o acontecimento:
como ele é construído, o papel da mídia e os seus fun-
damentos de seleção contemplam relatos para se en-
caixar no item 1. A definição do papel das fontes e as
problemáticas que são resultados da sua interação estão
diretamente ligadas ao item 2 enquanto que a noção de
tematização pelo viés da produção jornalística pode ser
indicada para o item 3. Os itens 4 e 5 não são possíveis
de ser conectados dentro do recorte apresentado.
Quanto ao Newsmaking para Wolf, as definições
sobre essa linha teórica contemplam saberes correla-
cionados ao item 1. Os conceitos de Noticiabilidade e

366 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Valores-­notícia correspondem aos itens 1 e 3. Os cri-
térios substantivos, os relativos ao produto e ao meio
problematizam assuntos ligados aos itens 1 e 3, descre-
vendo os julgamentos aplicados na escolha das temáti-
cas de trabalho, considerando as restrições do veículo e
os formatos noticiosos praticados como limitadores da
mensagem. Já os critérios relativos ao público e à con-
corrência podem ser indicados aos itens 5 e 4 respec-
tivamente. Levar em conta determinadas preferências
pode ser uma tentativa de garantir uma recepção mais
efetiva e também um eventual desdobramento. Por ou-
tro lado, a questão da concorrência entre os meios pode
impossibilitar a veiculação ou a adequação de uma notí-
cia prestes a ser distribuída junto a um suporte.
Os resultados obtidos com essa análise comparati-
va demonstram que as explanações de Rodrigo Alsina
contemplam estudos que buscam conhecer mais sobre
as etapas iniciais e intermediárias da prática midiática,
ou seja, as definições, o planejamento, a apuração e a re-
dação. Todavia, as influências que podem ocorrer por
conta de forças sociais, da concorrência entre os meios
e do público não são diretamente contemplados. Pode-
-se supor que se trata de uma teorização cujo marco de
análise se dá a partir das competências e atribuições do
comunicador ao longo do seu trabalho.
As considerações para Wolf comprovam a noção de
que o Newsmaking compreende de fato um referencial
cujo ponto de partida se dá pela produção, contudo
cada base das quais se derivam os valores-notícia auxi-
lia a expandir seu alcance, ou seja, as etapas de ­pauta,

367 A Comunicação, Meios e Interações


c­onstrução, forças limitadores internas e externas e
recepção são levadas em conta. O único item que não
foi contemplado refere-se à questão das fontes e da sua
potencial capacidade de influência. Talvez, seja esse um
dos pontos a se ponderar para a formulação de novas
matrizes que contribuam para esse modelo.
O que há de comum entre ambos os pesquisadores
é o fato de centralizarem o seu olhar sobre a figura do
jornalista e a partir dele deduzirem outras problemáti-
cas por meio da sua relação com elementos que fazem
parte do seu cotidiano profissional: as rotinas e as práti-
cas produtivas, a ideologia da empresa de comunicação,
as fontes e a lógica capitalista, principalmente para os
meios comerciais.
Dessa lista, pode-se acrescentar uma variável de
grande potencial para trazer novos paradigmas: tra-
ta-se do avanço das tecnologias e da construção de
uma sociedade fundada essencialmente pelas mídias
digitais.
Uma questão de natureza contemporânea e que re-
presenta um desafio para os atuais pesquisadores está
em relacionar se a popularização dessas ferramentas
pode fazer com que as pessoas recorram a outros su-
portes para se informarem. Isto é, os sites e os portais
podem se tornar uma fonte mais consultada do que os
meios tradicionais? Nesse eventual cenário, como se si-
tuam os veículos impressos e de que forma é possível
direcionar métodos e estratégias para eles?

368 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Considerações: possibilidades e desafios do jornalismo
impresso na era da sociedade digital
O cenário atual no qual se encontra nossa sociedade
é marcado pela expansão dos fenômenos digitais e esse
crescimento provoca transformações que alteram pro-
cessos consagrados e até então estabilizados. A popula-
rização da internet e a chegada de dispositivos móveis
contribuem no desenvolvimento de relações marcadas
principalmente pela instantaneidade e isso reflete no
consumo de informações, gerando uma necessidade
cada vez mais imediata de se situar sobre os fatos que
ocorrem na sociedade. Nesse sentido, é oportuno des-
crever como cada uma das matrizes básicas utilizadas
pelo Jornalismo pode responder a essa demanda.
O jornal é um espaço que se utiliza da notícia no pa-
norama dos eventos sociais ocorridos diariamente, con-
tudo o fator tempo é algo a se indagar pois o seu ciclo
exige a ação de diversos profissionais e o seu suporte, o
papel, é um limitador. O radiojornalismo apresenta pos-
sibilidades de explorar a agilidade, embora dependa de
condições e aparatos técnicos que muitas vezes podem
interferir na concretização da transmissão. O telejorna-
lismo alcança essa meta com a veiculação de plantões
para narrar algo extraordinário, mas dentre todos os
mencionados é o que mais necessita de recursos e cola-
boradores para se concretizar.
As mídias on-line, principalmente as comerciais,
apresentam condições de serem mais efetivas diante

369 A Comunicação, Meios e Interações


dessa necessidade, visto que a transmissão e atualização
de dados não sofrem tantas restrições e podem ser feitas
com relativa velocidade. Justamente, o que se constata é
que a notícia encontrou aqui um terreno propício para
que seja explorada e aprimorada. Além disso, há outros
três pontos que favorecem esse campo tecnológico e que
merecem ser destacados: o potencial dos blogs, as redes
sociais e os aplicativos.
O primeiro item permite que novas vozes possam se
utilizar dessa rede para noticiar. Atualmente é também
uma área alternativa em que comunicadores conseguem
expor outros olhares mais analíticos sobre a sociedade.
O viés democrático permite que um usuário sem liga-
ções com grandes empresas a explore, levando à plurali-
dade de relatos, concretizando, por hipótese, as diretri-
zes constitucionais acerca da comunicação social.
Já o segundo item, apesar de apresentar uma fina-
lidade de cunho mais interacional, pode ser utilizado
também como um ambiente de promoção de conteúdos
(pelo lado dos veículos hegemônicos), ou também pode
contribuir para a mesma lógica na qual atuam os blogs
- possibilitar um meio para que outros atores possam se
expressar e divulgar informações.
O terceiro item corresponde a um fenômeno muito
recente e ainda um pouco impreciso de ser analisado. A
forte presença de smartphones e tablets favorece o desen-
volvimento de lugares comunicacionais e os aplicativos
podem ser um meio pelo qual o Jornalismo pode se uti-
lizar amplamente, seja na transmissão ou na promoção
de diálogos, buscando estruturar relações significativas,

370 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


rompendo assim a visão unidirecional das práticas mi-
diáticas.
Portanto, o que se vê com esses exemplos é que o es-
paço digital proporciona inovações que podem transfor-
mar os métodos e as técnicas. Nesse sentido, é possível
indagar como fomentar recursos modernos para as mí-
dias tradicionais? Com o objetivo de auxiliar à reflexão,
serão apresentados alguns apontamentos, que nada mais
são do que indicações de possibilidades a serem explo-
radas, principalmente pelos jornais impressos.
A primeira tendência reflete-se na ampliação e no
aperfeiçoamento das reportagens. Enquanto a notícia irá
colaborar para a constatação do fenômeno, a reportagem
acrescentará um olhar mais contextualizado ou um des-
dobramento do mesmo. Articular esse gênero pode fazer
com que as novas gerações recorram aos meios tradicio-
nais quando quiserem saber mais e se fundamentar, de-
senvolvendo uma opinião mais crítica. Explorar a reda-
ção segmentada, isto é, abordar os interesses de um grupo
específico é também um caminho para a diferenciação.
Os suplementos são um ponto a se destacar. É fato
que um dos objetivos dos informativos diários está cir-
cunscrito no relato do que mais de interessante ocorreu
nesse intervalo de tempo, contudo, buscar temáticas
que atravessem essa delimitação corresponde a uma
inovação referenciada em parte à estrutura adotada pe-
las revistas. Dessa forma, esses cadernos representam a
oportunidade de se contemplar assuntos que não estão
presentes nas seções convencionais, com profundidade
e relativa abrangência.

371 A Comunicação, Meios e Interações


Uma maneira capaz de ilustrar essa ideia refere-se à
construção de 5 cadernos segmentados que abordem a
questão da crise hídrica no mundo, por exemplo. Para
cada um deles pode-se abordar um subtema, ou seja, sua
concepção irá exigir o planejamento e a estipulação de
objetivos tanto pelo lado da produção como pelas ex-
pectativas de recepção. Em linhas gerais, eles represen-
tam um local de experimentação de projetos, refletindo
em novos formatos, novas abordagens e novas lingua-
gens que podem ser testadas.
A questão da linguagem é um espaço propício a se
aprofundar. O ambiente digital é marcado por um dife-
rencial ligado à interação. É possível relacionar conteú-
dos, destacá-los, compartilhá-los e tudo isso leva à esti-
mulação de novas participações pelo receptor. Seguindo
essa lógica para os meios não digitais, promover uma
técnica que se aproprie de recursos linguísticos para
dialogar mais efetivamente com o leitor representa um
caminho capaz de trazer um senso de aproximação e re-
sulta na conscientização em querer conhecê-lo melhor,
em valorizar seus feedbacks e instiga ainda a se pensar na
importância da colaboração mediada.
Portanto, refletir e problematizar sobre tudo o que foi
levantado é um desafio para o campo científico da Co-
municação como também para as Teorias do Jornalismo,
uma vez que essas novas condições de articulação com
o público motivam a se ponderar sobre a construção da
notícia e efetivamente se o modo de atuação do jornalis-
ta pode ser modificado na contemporaneidade.
Em suma, a sociedade contemporânea é marcada por
um antagonismo de culturas: de um lado expõe grupos

372 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


sociais diretamente ligados ao uso das tecnologias e do
outro é composto por uma relativa faixa de pessoas que
transitam nessa realidade mas que apresentam uma
longa experiência nos suportes convencionais. Logo, é
preciso trabalhar com essa dicotomia para encontrar
caminhos que se fundamentem na solidez daquilo que
é tradicional e, consequentemente, se utilize dos novos
fenômenos como parâmetro para aperfeiçoá-lo. Isto é,
na articulação entre eles se situa a renovação.
Essa coerência tem também relação quanto à essên-
cia das práticas metodológicas e científicas. Para Bache-
lard (2004, p. 19), a construção do conhecimento cor-
responde a um método de criação contínua, em que os
alicerces antigos e clássicos servem de parâmetro para
explicar o novo, assimilando-se a este, ou ainda, o fe-
nômeno atual reforça o antigo, reorganizando-o. Isso
significa que para enxergar caminhos para o jornalismo
impresso num cenário predominado pelo digital é pre-
ciso se manter na sua essência, buscando novas possi-
blidades que o renovem, que o façam comunicar com
todos os receptores, que estão cada vez mais complexos,
com interesses específicos, querendo se relacionar mais
com os emissores.

Referências
BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento
aproximado. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2004.

373 A Comunicação, Meios e Interações


PENA, Felipe. Teoria do jornalismo. 3. ed. São Paulo:
Contexto, 2013.
RODRIGO ALSINA, Miquel. A construção da notícia.
Tradução: Jacob A. Pierce. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
MARCONDES FILHO, Ciro. O capital da notícia: jor-
nalismo como produção social da segunda natureza. 2.
ed. São Paulo: Ática, 1989
NAPOLITANO, Carlo José. Direito fundamental à co-
municação. In: VICENTE, Maximiliano Martin (org.)
Comunicação e Cidadania. Bauru: EDUSC, 2009. p.
9-26
TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo: A tribo
jornalística - uma comunidade interpretativa transna-
cional. 3. ed. rev. Florianópolis: Insular, 2013. V.2.
WOLF, Mauro. Teorias das comunicações de mas-
sa. Tradução: Karina Jannini. 6. ed. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2012.

374 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Capítulo 13
Memória: de reminiscências
­particulares a instrumento de
­comunicação organizacional

Wanessa Valeze Ferrari Bighetti

Quando o termo memória é utilizado, comumente, a


primeira definição que vem à mente é a que envolve as
funções psíquicas do cérebro, bastante estudadas por di-
versas áreas do conhecimento biológico, capazes de tra-
zer à tona fatos do passado que de alguma forma ficaram
gravados nas lembranças de seu detentor. É um registro
pessoal carregado de influências do ambiente em que foi
gerado, fermentado por sentimentos e emoções revisita-
das no tempo presente.
Contudo, há alguns anos, o termo deixou de se res-
tringir às reminiscências particulares. Com a evolução
da sociedade, a memória alcançou o patamar de coleti-
vidade, ganhou linhas de estudo, novas funções, possi-
bilidades e desafios, tornando-se a aposta das organiza-
ções modernas, que enxergam nela uma ferramenta em
potencial para a criação da identidade organizacional,

375
manutenção da imagem da empresa e para a gestão de
crises, entre outras atribuições. Preservar a memória,
para as sociedades modernas, tornou-se o antídoto con-
tra o tempo e o implacável esquecimento.
Para entender como se deu esta transição, antes, é
preciso recorrer aos conceitos básicos que envolvem o
tema. As diferenciações entre história e memória, suas
limitações e confusões, bem como a evolução dos con-
ceitos no decorrer dos anos serão trabalhados no tópico
a seguir.

História e memória: conceitos e confusões


Ao mergulhar neste campo, antes de tudo, é preciso
distinguir dois conceitos que se conversam, se misturam
e, por vezes, se confundem, mas que essencialmente são
diferentes entre si: são os conceitos de história e de me-
mória. Para isso, nada melhor do que iniciar pela análise
da etimologia da palavra.
A palavra história vem do grego antigo historie, que
denota conhecimento por meio de investigação. É ainda
forma derivada do grego histor, que significa testemu-
nha no sentido de aquele que vê, que presencia um fato
ou acontecimento, que toma conhecimento. Com a mes-
ma raiz etimológica, há ainda a palavra historein, que em
grego antigo significa procurar saber (LE GOFF, 1996).
Desta forma, cruzando definições, é possível enten-
der a história como investigação sobre o passado com

376 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


i­ ntenção de reconstruí-lo e documentá-lo, transforman-
do-o em conhecimento.
Neste sentido, a relação da história com o tempo é
aparente, visto que o passado é sua principal matéria-pri-
ma, o combustível para entendimento do presente. Ou
como melhor define Le Goff (1996, p.12) “Matéria fun-
damental da história é o tempo; portanto, não é de hoje
que a cronologia desempenha um papel essencial como
fio condutor e ciência auxiliar da história”. Isso porque
é por meio da cronologia que a história se estabelece, se
organiza, investiga e torna possível a reconstrução do
passado e o estabelecimento do conhecimento.
Sendo assim, entende-se que é função da história
juntar documentos, analisá-los, entender sua relação
com o passado em que um dia estiveram inseridos e
transformá-los em prova de um tempo vivido que se foi
e não volta mais, porém, que deixou reflexos na socie-
dade atual e se definiu como percurso. “A história reco-
lhe sistematicamente, classificando e agrupando os fatos
passados, em função das suas necessidades atuais. É em
função da vida que ela interroga a morte. Organizar o
passado em função do presente: assim se poderia definir
a função social da história” (FEBVRE, 1949, citado por
LE GOFF; 1996).
Com base nas reflexões anteriores, é possível afir-
mar que uma das principais características da história
é o fato de ela se pautar em documentos na tentativa de
reconstruir o passado. Fotografias, filmes, textos, depoi-
mentos e documentos orais, fósseis e todo tipo de mate-
rial que traga pistas sobre um tempo longínquo são, para

377 A Comunicação, Meios e Interações


a história, fonte de conhecimento. A essa história que
‘caça’ em diversos elementos do presente pistas sobre o
passado Le Goff, Chartier e Revel (1998) dão o nome de
“História Nova”.
Partir do pressuposto de que a história é uma espé-
cie de colcha de retalhos tecida com base em rastros do
passado na tentativa de registrar uma época, a sociedade
em que nela viveu, seus costumes e tradições e explicar
as influencias que esse passado tem sobre o tempo atual
é também assumir que a história não deve ser entendi-
da como absoluta. Apesar da pretensão de atuar como
reconstrução fiel do passado, pautada em provas docu-
mentais, a história é uma narração e, como tal, sujeita
às interferências de seu narrador e dos elementos que
ele teve à disposição para sua (re)construção. Ou, como
melhor explica Le Goff (1996, p. 21), “A história quer ser
objetiva e não pode sê-lo. Quer fazer reviver e só pode
reconstruir. Ela quer tornar as coisas contemporâneas,
mas ao mesmo tempo tem de reconstruir a distância e a
profundidade da lonjura histórica”.
O fato de o documento não ser em si mesmo uma
prova imparcial, inocente, exige ressalva crítica sobre a
exatidão da história. Isso porque a construção da rea-
lidade histórica se dá por meio de dois elementos fun-
damentais: o historiador e os documentos pelos quais
ele pauta seu trabalho. Considerando que cabe ao his-
toriador fazer uma seleção dos documentos, que fo-
ram produzidos em uma época determinada, de forma
consciente ou inconsciente, com diferentes intenções, e
que é com auxílio desses documentos que reconstruirá

378 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


o passado de uma comunidade, ressalta-se a necessida-
de de ponderação de que a história não é e nem deve
ser tratada como verdade absoluta. E é essa vertente de
parcialidade que coloca em cheque a categorização da
história como um campo da ciência.
Para Georges Duby (DUBY; LARDREAU, 1980, cita-
do por NASSAR, 2007, p.110), por exemplo, a história é,
acima de tudo, arte: “[...] uma arte essencialmente literá-
ria. A história só existe pelo discurso. Para que seja boa,
é preciso que o discurso seja bom”.
Pierre Nora (1993), em seu texto entre Memória e
História, classifica a história como uma “reconstrução
sempre problemática e incompleta do que não existe
mais”, e reforça a necessidade de análise e discurso críti-
co para sua construção.
COSTA (2008, citado RIBEIRO, 2013, p. 57) também
pondera sobre o assunto, ao salientar que a construção
histórica é evidentemente passível de influência do his-
toriador e dos elementos que a compõem.

As relações entre o historiador e a sociedade ca-


minham numa via de mão dupla. O trabalho do
historiador, queira ele ou não, é produto da so-
ciedade e do tempo em que vive. A vivência do
presente afeta a construção do passado. Ao mes-
mo tempo, o posicionamento do historiador na
sociedade marca os limites de sua visão. Suas ex-
periências definem suas motivações e explicam
o por quê e para que ele se debruça sobre a histó-
ria. Seu projeto inspira-se por problemas sugeri-
dos pela posição que assume na ­sociedade. Seus

379 A Comunicação, Meios e Interações


temas e seu método são função dos objetivos
que pretende alcançar e das razões que o levam a
estudar a história. Sua própria definição do que
é história nasce a partir dessas coordenadas.

Contudo, Costa deixa claro que a possível parciali-


dade não deve anular as conquistas obtidas por meio do
registro histórico. Para ele, para que a história cumpra
com seu papel, é preciso, antes de tudo, compromisso
por parte do historiador e rigidez de método.

[...] a versão que o historiador apresenta do pas-


sado contribui para a preservação ou para a mu-
dança da sociedade. Isso confere ao historiador
enorme responsabilidade e requer de todo aque-
le que se dedica a essa tarefa uma profunda re-
flexão sobre a natureza dessas relações, a fim de
evitar que venha a descobrir tarde demais que
tomou a via errada (COSTA, 2008, citado por
RIBEIRO, 2013, p.57)

Le Goff partilha da mesma opinião. Embora o pes-


quisador encare a história com ressalvas e aponte para
problemas como a falta de objetividade do historiador
e a não inocência do documento, ele também faz um
apelo a sua importância e alerta que é preciso deixar de
lado o ceticismo com relação à objetividade histórica e
à crença de que no processo de reconstrução do passa-
do prevalece o abandono da noção de verdade. “[...] Os
contínuos êxitos no desmascaramento e na denúncia das

380 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


mistificações e falsificações da história permitem um re-
lativo otimismo a esse respeito” (1996, p.11). E acrescen-
ta ainda que a seleção de documentos feita pelo histo-
riador “não significa arbitrariedade nem simples coleta,
mas sim construção científica” (LE GOFF; CHARTIER;
REVEL, 1998, p. 32).
Desta forma, crer na cientificidade da história como
instrumento organizador do passado é crer no potencial
de preservação de fatos importantes para uma comuni-
dade/sociedade. É crer que, apesar de passível de inver-
dades, a história atua como importante ferramenta para
que as sociedades contemporâneas tomem conhecimen-
to de seu passado, seu percurso e, desta forma, vislum-
brem o futuro. É crer ainda que a história é um elemen-
to em constante transformação, que pode - e deve - ser
revista, redescoberta e reconstruída ao longo dos anos,
sempre com mais rigor e método.

Tendo claro o significado do termo história, sua etimo-


logia, importância e problemática, é preciso, então, estu-
dar os conceitos relacionados à memória, de fundamental
importância para a compreensão do presente trabalho.
Antes, porém, de entender os meandros que envol-
vem o termo, é necessário compreendê-lo em seu senti-
do mais puro, ligado ao campo das ciências biológicas.
Jacques Le Goff (1998, p. 423) traz sua contribuição ao
relembrar o sentido inicial da palavra, associando-a às
funções psíquicas do corpo humano, que permitem ao
homem conservar certas informações e atualizar im-
pressões ligadas ao passado.

381 A Comunicação, Meios e Interações


Ele destaca que a memória é a quinta operação da re-
tórica. “[...] depois da inventio (encontrar o que dizer), a
dispositio (colocar em ordem o que se encontrou), a elu-
cotio (acrescentar o ornamento das palavras e das figu-
ras), a actio (recitar o discurso como um ator, por gestos
e pela dicção) e enfim a memória (memoriae mandare,
‘recorrer à memória’)” (LE GOFF, 1998, p. 441-442).
Em outras palavras, é possível definir a memória
como a capacidade de registrar fatos, armazená-los ao
longo dos anos, reordenar as informações de acordo
com as necessidades particulares de cada pessoa, con-
siderando o tempo presente, em um processo de relei-
tura, e que é passível de recurso e revisitas sempre que
necessário.
Mas é importante lembrar que o termo memória é
mais amplo e não reside apenas no pensamento dos in-
divíduos. Está abrigado também “no gesto e no hábito,
nos ofícios onde se transmitem os saberes do silêncio,
nos saberes do corpo” (NORA, 1993, p.14). Além disso,
é necessário não esquecer que, com a evolução tecnoló-
gica, a memória passou a ser também uma ferramenta
sintetizada na funcionalidade das máquinas.
Para compreender a abrangência do termo, Paulo
Nassar (2007, p.113) recorre a Bergson (1999) e a Chauí
(1999) e divide o emprego da palavra em seis categorias,
cada qual com uso diferente, são elas: a) memória bioló-
gica da espécie, ligada ao código genético que caracteriza
os diferentes tipos de vida na Terra; b) memória artificial,
relacionada às máquinas e à tecnologia, que funciona a
partir da simplificação da estrutura do ­cérebro ­humano;

382 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


c) memória pura, que é responsável por registrar aconte-
cimentos e resgatá-los posteriormente em forma de lem-
branças; d) memória hábito, que se cria e fixa na mente
encenando o passado em função de um objeto presente,
é adquirida pelo esforço da atenção e da repetição; e)
memória perspectiva, que é indispensável por permitir
reconhecer coisas, lugares, pessoas, objetos, entre outros
elementos presentes na vida cotidiana; f) memória so-
cial ou histórica, fixada por uma sociedade por meio de
registros, documentos, relatos, nomes, lugares que pos-
suem significado para a vida coletiva.
As categorizações conduzem ao entendimento de
que a memória, apesar de referenciada principalmente
como uma característica inerente ao ser humano, liga-
da à individualidade, pode ser também um instrumento
de organização, interpretação e registro da vida coletiva,
responsável pela partilha de valores e significados, cam-
po em que adquire a importância típica da construção
social da realidade por meio de representações. É sob a
regência desta vertente compartilhada da memória que
vamos estruturar o pensamento a partir deste momento.

A memória coletiva, também chamada de memória


social ou histórica, corresponde às recordações que um
determinado grupo tem sobre um fato vivenciado no
passado. São lembranças compartilhadas, formadas por
uma teia de memórias individuais que, juntas, adquiri-
rem significado e ganham importância na construção
da realidade social. “Os quadros coletivos da memó-
ria não se resumem em datas, nomes e fórmulas, eles

383 A Comunicação, Meios e Interações


r­epresentam correntes de pensamento de experiência
onde reencontramos nosso passado porque este foi atra-
vessado por isso tudo” (HALBWACHS, 2004, p.71).
Assim, é possível afirmar que a memória coletiva é
capaz de deixar registrados fatos do passado, comuns a
um grupo de indivíduos, de forma que essas lembranças,
no futuro, sejam passíveis de revisitas e interpretações.
Tal recurso, sob o olhar pautado em um sentimento co-
letivo presente no momento em que esses registros de
percepção da realidade foram gerados, permite desven-
dar de que forma as experiências coletivas colaboraram
para a produção de sentido e significação em um dado
momento.
Em outras palavras, a memória coletiva “indica o lu-
gar, o tempo e a percepção de coerência dos elementos
que formam o sujeito histórico” (ALMEIDA in MAR-
CHIORI, 2013, p. 46). A validade da memória como
forma de entendimento do passado, portanto, advém de
seu caráter plural, comunitário, que garante a ela a ver-
dade necessária para que seja aceita como oficial.
Por ter essas propriedades, desde os primórdios da
humanidade, o ser humano tenta, de diversas formas,
manter viva sua trajetória por meio do registro da me-
mória. Tal tentativa não é simplesmente precaução
no sentido de preservar o fato por si só, mas, sim, de
preservar a informação e transformar a memória em
aprendizado passível de recorrência em demandas fu-
turas. “Desde um ponto de vista prático, a memória dos
homens e dos animais é o armazenamento e evocação
de informação adquirida através de experiências; a

384 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


aquisição de m
­ emórias denomina-se aprendizado.” (IZ-
QUIERDO, 1989, s.p). Foi com base em experiências
passadas que se deu a evolução da humanidade.

Leroi-Gouhran (1964, citado por LE GOFF, 1996, p.


426), divide a trajetória da memória coletiva em cinco
períodos: o da transmissão oral, o da transmissão escrita
com tábuas ou índices, o das fichas simples, o da meca-
nografia e o da seriação eletrônica. As divisões apresen-
tadas pelo autor representam, sobretudo, a evolução das
formas de registro da memória coletiva, assim como a
crescente importância da memória como ferramenta de
conservação do passado para a humanidade. Para en-
tender posteriormente o caminho percorrido pela me-
mória como ferramenta de produção de sentidos, seja
na sociedade, seja nas organizações, é necessário ater-se
ao menos brevemente a esta questão.
A transmissão oral da memória teve início nas socieda-
des primitivas, que não tinham a cultura da escrita. Nes-
te cenário, a memória cumpria o papel de perpetuar co-
nhecimentos através de gerações. Os “homens-memória”,
como são nomeados por Le Goff (1996), eram os princi-
pais responsáveis por cumprir com esta função. Segundo
o historiador, neste período, a preocupação em perpetuar
a memória atendia três grandes objetivos: “a idade cole-
tiva do grupo que se funda em certos mitos, mais pre-
cisamente nos mitos de origem, o prestígio das famílias
dominantes, que se exprime pelas genealogias, e o saber
técnico que se transmite por fórmulas práticas fortemente
ligadas à magia religiosa” (LE GOFF, 1996, p. 431).

385 A Comunicação, Meios e Interações


A invenção do papiro, do pergaminho e, posterior-
mente, do papel revolucionou a forma de se registrar
a memória. O documento escrito foi responsável por
transformar a memória oral em memória física, con-
ferindo a ela a função de armazenar informações que
possam comunicar através do tempo e do espaço. Essa
forma de registro físico cumpre ainda com a função per-
mitir e facilitar o reexame, reordenação e ressignificação
do passado. Com estas ferramentas, os “homens-memó-
ria” das sociedades antigas passaram a ser conhecidos
como arquivistas.
Mas foi somente com o surgimento da imprensa, no
século XIV, que a memória deixou de ser objeto restri-
to a uma comunidade específica e ganhou novos lares.
Com a imprensa, “não só o leitor é colocado em presen-
ça de uma memória coletiva enorme, cuja matéria não
é mais capaz de fixar-se integralmente, mas é frequente-
mente colocado em situação de explorar textos novos”
(LEROI-GOURHAN, 1964, citado por LE GOFF, 1998,
p. 457).
Atualmente, a revolução tecnológica é a forma mais
promissora dentre as existentes de as sociedades – e
também os indivíduos – perpetuarem suas memórias
individuais e coletivas. O rádio e a televisão foram pre-
cursores nesse sentido, mas na contemporaneidade é
a internet que vem instigando e atraindo a atenção de
pesquisadores em comunicação. A quebra de limites
impostos pelos meios tradicionais, como a escassez de
espaço, o alto custo de produção, as barreiras geográ-
ficas e o domínio de pequenos e poderosos grupos de

386 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


i­nteresses ­favorecidos pelas políticas vigentes, fez com
que a ferramenta ganhasse adeptos em toda a parte do
mundo e passasse a ser uma opção de baixo custo e
grande efetividade.
Vale citar aqui também outras ferramentas paralelas
que permeiam essa evolução nas formas de registro da
memória e que, por serem de grande importância, me-
recem ser lembradas: a fotografia e a criação de lugares
de memória. A fotografia, segundo Le Goff, representa
uma significativa revolução nas formas de registro da me-
mória, uma vez que “multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe
uma precisão e uma verdade nunca antes atingidas” (1998,
p. 446). Já os lugares de memória, conhecidos como mu-
seus ou arquivos, são espaços físicos que cumprem com
a função de cristalizar lembranças e experiências, servin-
do de acervo para quem não participou efetivamente do
momento onde se deu a produção de sentidos. “[...] a ra-
zão fundamental de ser um lugar de memória é parar no
tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um
estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o ima-
terial, [...] prender o máximo de sentido em um mínimo
de sinais [...]” (NORA, 1993, p. 22).
Entender a evolução das formas de registro de me-
mória é um percurso importante para esta pesquisa pois
conduz ao olhar crítico sobre tal evolução. Assim sendo,
é preciso ter em mente que, seja nas sociedades onde
a transmissão oral era a única forma de perpetuar co-
nhecimento, ou na contemporaneidade, fermentada por
ferramentas favorecidas pela tecnologia, como a inter-
net, a memória sempre foi vista por grupos de interesse

387 A Comunicação, Meios e Interações


como instrumento de poder. E é neste fator que reside
o interesse por sua preservação e, consequentemente, o
aprimoramento de meios que permitam efetivar esses
registros de maneira eficiente.

[...] o passado filtrado pela memória como ele-


mento explicativo de interesses de indivíduos
nas coletividades tornou-se um tópico capaz de
dar contornos tangíveis a mudanças de territó-
rios geográficos, status social, formas de conví-
vio, soluções de bem-estar, ajustes e desajustes
emocionais e de culturas que se conferem, con-
frontam, aceitam ou refutam (MEIHY, p.31, in
MARCHIORI, 2013)

Portanto, a memória, entendida como o passado que


se foi e não volta mais, mas que merece ser assinalado,
adquire contornos de instrumento de manipulação com
vistas para o poder, passando a fazer parte do interesse
de grupos dominantes que buscam oficializar, promover
ou salvaguardar determinadas memórias particulares,
que falam em benefício próprio e que se utilizam muito
mais do esquecimento coletivo do que da recordação.
São grupos que enxergam na memória uma ferramenta
capaz de levar ao poder, com interesse em determinar
o que pode ou não ser dito, o que merece ou não ser
lembrado.
O esquecimento, nesse sentido, cumpre papel tão im-
portante como a lembrança. O que não é rememorado
permanece nas sombras do passado e, portanto, é dado

388 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


como se nunca tivesse feito parte da realidade. Assim, a
memória enquanto prática de reconstrução seletiva do
passado é parcial, um recorte da realidade marcado por
interesses. Fatos marcantes são tirados do fundo do baú
enquanto ocorrências que possam interferir no discurso
dominante são deixados de lado.“As memórias definidas
por um trabalho de “enquadramento/oficialização”
compõem o tecido social, apontando variadas estruturas
organizacionais, permeadas por esquecimentos e
silêncios [...]” (ALMEIDA in MARCHIORI, 2013, p. 46)
Assim, ter domínio sobre a memória coletiva signi-
fica dominar também o sentido que determinada socie-
dade histórica confere à sua existência e ao contexto em
que ela está inserida. “Os esquecimentos e os silêncios
da história são reveladores desses mecanismos de mani-
pulação da memória coletiva” (LE GOFF, 1996, p. 426).
Souza (2014, p.79-80) resume bem este entrave entre
a veracidade do discurso memorialístico e seu processo
seletivo de construção. “[...] a lembrança e o esqueci-
mento; os bem-ditos, os não-ditos e mal-ditos; o válido
e o inválido. É a partir dessa relação dialógica que se es-
truturam a memória, a comunicação e o poder”.
Nesse sentido, é possível entender a memória cole-
tiva como uma ferramenta poderosa para aqueles que
buscam estabelecer laços entre uma comunidade e seus
interesses, fazendo surgir uma identidade compartilha-
da carregada de significados e legitimada coletivamente.
Nora (1993, p. 7) critica o uso da memória como
instrumento de poder e deixa claros os riscos que este
emprego pode trazer à sociedade. “Com a globalização,

389 A Comunicação, Meios e Interações


democratização, massificação, a memória pura, verda-
deira, foi substituída pela ânsia de preservar o passado,
de não deixar perder as origens. Mas essa aceleração
cria uma memória ditatorial, autoritária, organizadora
e todo-poderosa”.

Compreendidos o conceito de história, os processos


de sua produção e imbróglios que envolvem a questão
da cientificidade, e as definições de memória, sua abran-
gência, relação com a construção da realidade social e
importância, é possível, neste ponto, diferenciar clara-
mente os termos história e memória.
Apesar de convergirem sob o imenso guarda-chuva
que é o passado, história e memória são termos bastante
diferentes em sua concepção. De forma simplificada, é
possível afirmar que, por não pretender-se isenta, a me-
mória é combustível para a criação de valores e visões de
mundo. Sua força de representação da realidade social
reside, portanto, na vivência legitimada da experiência,
seja ela coletiva ou individual. A história, por sua vez,
tem caráter científico. Apesar de esbarrar em problemas
relativos à imparcialidade da recuperação do passado, o
objetivo da história é reconstruir, com base em docu-
mentos e com rigor de método, um tempo que se foi e
não volta mais.

“A memória, como construção social, é forma-


ção de imagem necessária, para os processos de
constituição e reforço da identidade individual,
coletiva e nacional. Não se confunde com a His-

390 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


tória, que é a forma intelectual de conhecimen-
to, operação cognitiva. A memória, ao invés, é
operação ideológica, processo psicossocial de
representação de si próprio, que reorganiza sim-
bolicamente o universo das pessoas, das coisas,
imagem e relações, pelas legitimações que pro-
duz” (MENEZES, 1992, p.22).

A memória é, portanto, um elo carregado de afeti-


vidade entre o passado e o presente. Sua principal ca-
racterística é o fato de ela se referir a - e se constituir de
- fatos vivenciados por uma sociedade. Por ser intensa e
simbólica, contudo, a memória, muitas vezes, pode ser
composta mais de esquecimentos do que de lembranças.
E são justamente esses esquecimentos que podem defor-
mar o passado rememorado, fazendo prevalecer deter-
minados recortes da realidade, posicionados sob pontos
de vista de interesses. A história, por sua vez, é uma re-
presentação do passado, apoiada em análise e discurso
crítico. Comparando, a memória é, por natureza, “múl-
tipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A
história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o
que lhe dá vocação para o universal” (NORA, 1993, p. 9)
Outra diferenciação entre os termos é apresentada
por Barbosa (in MARCHIORI, 2013, p. 66), que afir-
ma que “[...] a memória produz a autenticidade do tes-
temunho como algo vivido no passado. O testemunho
dá ao portador daquela reminiscência a autoridade de
ter presenciado algo que aconteceu e que pode ser tra-
zido de volta”, enquanto, na história, “o passado chega,

391 A Comunicação, Meios e Interações


i­ndicando a presença imoralizada do pretérito. O docu-
mento tem valor inquestionável”.
Sarlo (2007, p.9) também dá sua contribuição para a
diferenciação entre os termos ao afirmar que memória e
história nem sempre são complementares e que, muitas
vezes, estabelecem uma relação conflituosa e concorren-
te. “Por vezes, o que um grupo lembra é diferente do que
a história registrou. [...] porque nem sempre a história
consegue acreditar na memória, e a memória desconfia
de uma reconstituição que não coloque em seu centro os
direitos da lembrança [...]”.
Apesar de diferentes em suas raízes e objetivos, me-
mória e história têm relação e caminham próximas,
sempre ‘de olho’ no passado. Há quem abrigue a memó-
ria sob o guarda-chuva da história, classificando-a como
um de seus diversos componentes constitutivos. Afinal,
a memória é um dos elementos que atuam na constru-
ção da história. “Na mistura, é a memória que dita e a
história que escreve” (NORA, 1993, p.24).

Memória organizacional
A transição da memória do campo da coletividade
para o campo organizacional se deu de maneira natu-
ral, visando suprir uma necessidade da contempora-
neidade. No mundo atual dos negócios, marcado pela
globalização e pela forte competitividade, as empresas
precisam provar dia a dia seu valor, oferecendo aos seus

392 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


stakeholders diferenciais que a destaquem perante suas
concorrentes. O advento da tecnologia, porém, nivelou
técnicas, acesso à matéria prima e modo de produção,
fazendo com que a qualidade dos produtos oferecidos
por diferentes empresas se tornasse similar. Neste ce-
nário, os valores intangíveis passaram a ser, para as or-
ganizações, o caminho das pedras para o destaque no
mercado.
Assim, é preciso que as empresas sejam mais do que
produtoras de bens materiais, é preciso que elas refor-
cem aos seus stakeholders quem elas são, quais são seus
objetivos, de que forma lutam para alcançá-los, o que a
comunidade onde ela está inserida ganha em apoiá-la,
por que ela é digna de confiança, entre outras coisas. Em
resumo, “[...] cada vez mais seus gestores têm como de-
safio administrar a dimensão simbólica dos negócios, o
imaginário de suas ações” (NASSAR, 2004, s.p).
Essa tarefa, contudo, é mais complicada do que se
pressupõe. Administrar o imaginário produzido pela
organização não se resume em aplicar ações pontuais de
marketing ou investir em publicidade esporadicamen-
te, mas, sim, realizar um trabalho contínuo, deixando
sempre fresco na lembrança dos stakeholders a marca, a
identidade e os pontos que diferenciam a organização de
seus concorrentes.
O resgate e preservação da memória organizacional
surge nesse contexto como uma ferramenta eficaz para
a perpetuação e manutenção de valores simbólicos. Isso
porque a “memória é um mapa simbólico que perpassa e
organiza tanto o indivíduo quanto o coletivo. É com esta

393 A Comunicação, Meios e Interações


perspectiva que as organizações se apropriam da memó-
ria como ferramental estratégico para construção das
identidades institucionais” (SANTA CRUZ, 2012, p.8).
Antes, porém, de se aprofundar nos benefícios que
a preservação da memória organizacional pode trazer
para as organizações modernas, é preciso entender o
conceito de memória organizacional e de que forma ele
passou a compor o planejamento estratégico das organi-
zações brasileiras.

A definição elaborada por Paulo Nassar e Rodrigo


Cogo aponta que

A memória organizacional é um processo inse-


rido no pensamento e nas operações de comuni-
cação organizacional nas quais uma empresa ou
instituição tem que conservar e recuperar infor-
mações de sua história, disponíveis no âmbito
de suas dimensões humanas e sociais (memórias
biológicas) e tecnológicas (memórias artificiais).
Por sua vez, a organização é um produto cotidia-
no de sua memória e das vozes que falam se sua
tradição (NASSAR; COGO, in MARCHIORI,
2013, p. 86).

Santa Cruz (2012, p. 6) reforça a definição de Nassar


e Cogo ao entender a memória como uma operação feita
pela organização em busca de resgatar o afeto de seus
stakeholders. “É uma recuperação do elemento humano
e individual nas organizações: construção do passado a
partir de vivências individuais e coletivas”.

394 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Analisando a definição dos autores, é possível afir-
mar que a memória organizacional é um bem intangível
das organizações modernas, produzido diariamente por
clientes, funcionários, fornecedores, administradores,
pela comunidade com que a organização se relaciona,
etc. Essa memória é, portanto, uma colcha de retalhos
formada pelo relacionamento que cada stakeholder
mantém com a organização. Recuperar fragmentos des-
ta colcha de retalho, conferindo a ela uma unidade, é
recuperar tradições que dizem respeito a sua trajetó-
ria. Recuperar a memória organizacional é recuperar o
DNA da empresa.
Karen Worcman colabora para o entendimento do
termo ao definir memória empresarial a partir do ponto
de vista e dos interesses da organização. Para ela, memó-
ria organizacional é, sobretudo, “o uso que uma empresa
faz de sua história” (2004, p. 23). E vai além ao afirmar
que a história da organização não é escrita apenas por
um grande líder: “Uma empresa é uma reunião de pes-
soas que também fazem parte de outros grupos sociais.
A partir dessa compreensão, definimos que a história de
uma empresa é resultado de história e da contribuição
de cada uma dessas pessoas [...]” (WORCMAN, 2004,
p. 26)
Santa Cruz (2012, p. 6) também trabalha o termo sob
esta perspectiva e afirma que a memória organizacional
pode ser encarada como “Um esforço das empresas em
fazer de uma determinada versão a base da identidade
da instituição bem como um elemento de seu reconhe-
cimento e legitimação”.

395 A Comunicação, Meios e Interações


Já Paulo Nassar (2005, p.179) apresenta uma defini-
ção ainda mais prática e simplista sobre memória orga-
nizacional, que para ele “É o conjunto de sensações, lem-
branças e experiências, tanto boas quanto ruins, que as
pessoas guardam de sua relação direta com uma empre-
sa”. E ressalta que “[...] mais do que produtos e serviços,
as empresas compartilham, seja com seus colaboradores
seja com a comunidade, seu imaginário organizacional”.
Compilando as definições apresentadas é possível
constatar que a memória organizacional não é algo que
possa ser produzido/criado pela empresa com as portas
fechadas, mas sim, pressupõe o relacionamento da orga-
nização com seus stakeholders, em um processo de cons-
trução colaborativa e gradual. Entende-se ainda que é a
partir dessa construção diária que se torna possível dei-
xar claro quem de fato a empresa é, os motivos de sua
atuação, seus objetivos e importância para seus consu-
midores e a comunidade com a qual ela se relaciona. Em
outras palavras, a memória organizacional é a responsá-
vel por dizer o que uma empresa tem de diferente – e de
melhor - do que sua concorrente.

Mas abrir as portas para que os stakeholders se tornas-


sem coautores da trajetória e tradição organizacional não foi
um processo simples de ser aceito e implantado pelas orga-
nizações que durante muito tempo trabalharam sob a vi-
gência do modelo fordista de administração, que pressupõe
a produção em escala como chave do sucesso empresarial.
Santos (2014, p. 65), em seu artigo História e legiti-
mação organizacional: reflexões acerca das narrativas

396 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


histórico-organizacionais, ressalta que, no início, quando
o resgate da memória organizacional passou a ser consi-
derado uma ferramenta de comunicação capaz de fazer
com que a empresa se destacasse perante a concorrência,
houve resistência por parte dos gestores da organização,
para quem resgatar a memória significava retrocesso e
estagnação, palavras que seguiam na contramão da tão
perseguida evolução. Além do que o retorno ao passado
poderia “tirar do armário alguns esqueletos”, trazendo à
tona segredos, falhas e omissões da organização.

Neste ponto, é interessante retomar o caminho evo-


lutivo dos estudos relacionados à memória organiza-
cional. Segundo Gagete e Totini (2004), o conceito de
memória empresarial começou a ser desenvolvido na
década de 20, com a criação da Business Historical So-
ciety, nos Estados Unidos, e com a criação da disciplina
de História Empresarial, em Harvard. Contudo, nesses
primeiros empreendimentos, a memória organizacional
era estudada e aplicada sob a perspectiva funcionalista:
a ideia era analisar a biografia de empresários de sucesso
na intenção de aprender técnicas de direção que permi-
tissem expandir o negócio, conquistar o público e, des-
ta forma, aumentar a lucratividade. Esses estudos eram
desenvolvidos principalmente em países europeus e nos
Estados Unidos.
Na década de 40 e 50, as pesquisas relativas à me-
mória organizacional deram um passo à frente em di-
reção a um conceito mais amplo, passando a abranger
estudos com olhares multidisciplinares. “[...] como o

397 A Comunicação, Meios e Interações


­ esenvolvimento de produtos, parcerias, processos de
d
mudança de estrutura corporativa, entre outros” (GA-
GETE; TOTINI, 2004, p.113).
Contudo, foi somente na década de 70 que a memória
deixou de ser vista como uma ferramenta econômica e assu-
miu a dimensão do simbólico, passando a ser um elemento
capaz de colaborar na construção e consolidação de signifi-
cados culturais e sociais para a organização. Gagete e Totini
(2004, p.115) lembram em seu texto uma entrevista que o
historiador francês Maurice Hamon, criador do centro de
arquivos Saint Gobain, concedeu à edição número 22 da
revista Memória Eletropaulo, publicada em 1.995, sobre a
mudança de foco nos estudos de memória organizacional.
Maurice resumiu a guarda e exploração da memória coletiva
pelas empresas com uma finalidade precisa: “compreender
melhor o passado para viver o presente e preparar o futuro”.
Essa consciência de que a memória poderia ser um
instrumento de comunicação estratégica para as orga-
nizações chegou ao Brasil anos mais tarde, em 1.960. O
atraso está ligado, principalmente, à tardia consolida-
ção dos setores industriais e de serviço no país. Assim,
o entendimento do conceito de memória organizacio-
nal como importante componente na administração de
valores simbólicos passou a ser efetivamente aplicado
por empresas tupiniquins na década de 80, quando as
instituições, sofrendo com a crise econômica, buscavam
formas de se diferenciar de suas concorrentes.

As empresas perceberam que diante de tantas


transformações, um dos maiores desafios era

398 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


promover as necessárias mudanças, sem per-
der sua identidade. Por conseqüência, tomavam
consciência de que sua identidade estava direta-
mente ligada à sua memória, aos processos que
vivenciaram, aos erros e acertos, às inovações,
superações e vitórias que marcaram sua trajetó-
ria histórica (GAGETE; TOTINI in NASSAR,
2004, p.119)

Na atualidade, marcada pela constante mudança de


cenários, preservar a memória se tornou uma urgência
para as organizações modernas, que têm como objetivo
deixar sua marca em um mercado cada vez mais compe-
titivo, volátil e efêmero. As potencialidades da aplicação
da memória organizacional como ferramenta de gestão
estratégica serão abordadas no capítulo a seguir.

Referências
ALMEIDA, Juniele Rabêlo de. Historicidade, sujeito e
oralidade. In: MARCHIORI, Marlene. História e Me-
mória. São Caetano do Sul, SP: Difusão Editora, 2013;
Rio de Janeiro: Editora Senac Rio de Janeiro, 2013. p.
43-52.
BARBOSA, Marialva Carlos. História e memória como
processo de reflexão e aprendizado. In MARCHIORI,
Marlene. História e Memória. São Caetano do Sul, SP:
Difusão Editora, 2013; Rio de Janeiro: Editora Senac Rio
de Janeiro, 2013. p.62-73.

399 A Comunicação, Meios e Interações


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403 A Comunicação, Meios e Interações


3ª Parte
Críticas e Processos Comunicacionais
Capítulo 14
1
As Jornadas de Junho e as abordagens
de Gohn e Traquina: uma
revisão bibliográfica

Ana Cristina Consalter Amôr1

Introdução
No ano de 2013, o país inteiro foi surpreendido por
uma série de manifestações que ocorreram em junho e
nasceram da reivindicação contra o aumento da tarifa
para trens, ônibus e metrô. Posteriormente essas mani-
festações expandiram suas pautas e levantaram bandei-
ras mais difusas e menos pontuais em sua fase final.
Tais manifestações podem ser consideradas as
maiores desde as “Diretas Já” e os “Caras pintadas”,
e, de uma maneira geral, de acordo com Silva et al
(2014, p. 7), podem ser pensadas “como parte de no-
vos processos de ação coletiva que vêm se desenhan-
do nas últimas décadas”.

1. Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita” (Unesp), Bauru, SP

405
É preciso destacar que um dos elementos de grande
importância neste processo é a comunicação social por-
que tanto os meios mais tradicionais quanto os meios
mais recentes desempenharam papéis importantes por-
que serviram de eco para vozes de diversos atores que
participaram do evento.
Torna-se interessante então verificar como os meios
se comportaram diante do evento que sacudiu as princi-
pais capitais do país e como as pesquisas em comunica-
ção analisaram o processo, percebendo como atendem
às teorias do jornalismo e às teorias dos movimentos
sociais, baseadas nas ideias de Gohn e Taquina. Foi pos-
sível verificar ainda com que qualidade e comprometi-
mento cidadão e social os meios desempenharam o pa-
pel/dever de informar.
Para constituição do corpus de análise, fizemos o res-
gate dos artigos científicos, sintetizando as afirmações
e conclusões do estado do conhecimento que direcio-
nou seu olhar/pesquisa para as manifestações de junho
de 2013, considerando todo o conhecimento produzido.
Buscamos durante o mês de abril de 2015, bancos de
dados de artigos de revistas acadêmicas da comunica-
ção2, nos anais dos Grupos de Trabalho da Intercom3 e

2. http://www.revistas.univerciencia.org/
3. http://www.portalintercom.org.br/index.php?option=com_
content&view=article&id=1081&Itemid=134

406 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Compós4 e no Portal de periódico da Capes5, por artigos
científicos que estivessem em língua portuguesa, com a
abordagem voltada para área da comunicação e obser-
vassem as jornadas e sua relação com a comunicação.
Nos Anais dos congressos da Intercom, procuramos
limitar a seleção apenas aos artigos publicados em ca-
tegorias que permitissem trabalhos de pós-graduandos,
mestres e doutores, com exceção de três trabalhos publi-
cados no Intercom Junior 2014, devido à relevância de
seus objetos.
Como procedimento de coleta, recorremos aos me-
canismos de busca dos sites enumerados acima, em-
pregando as palavras: manifestações de junho de 2013
e protestos de junho de 2013. E, nos bancos de dados/
portais que não tinham essa ferramenta examinamos
cada um dos grupos e/ou divisões temáticas.
Destacamos que a pesquisa apresentada, assim como
toda construção simbólica, se compromete com as ques-
tões tratadas, por intencionar conhecer as maneiras que
os movimentos sociais são abordados nas mídias e nas
pesquisas em comunicação, assim produzir conheci-
mentos que possam ser utilizados como caminho/fer-
ramenta para a construção de mais conhecimento e da
consolidação da cidadania nos meios.

4. http://www.compos.org.br/biblioteca.php
5. http://www.periodicos.capes.gov.br/

407 Críticas e Processos Comunicacionais


As jornadas de junho: breve histórico
A partir do início do mês de junho de 2013 intensas
manifestações se espalharam pelas principais capitais e
regiões metropolitanas do país para protestar contra o
aumento das passagens de ônibus, trem e metrô. Com
grande repercussão e cobertura noticiosa nos meios
jornalísticos, essas manifestações também protestaram
contra o aumento dos alimentos, dos alugueis, da pre-
cariedade dos serviços públicos no Brasil (educação,
saúde, moradia) e do atual ambiente político, pautado
em diversos casos de corrupção. A repressão policial às
manifestações também chamou atenção da sociedade e
foi motivo para intensificar os protestos.
Grande parte das mobilizações foi organizada através
das redes sociais, tendo como precursores os membros
do Movimento Passe Livre (MPL). O termo “vandalis-
mo” e a violência policial acabaram ganhando as páginas
e as imagens dos veículos de comunicação, quando co-
meçaram os registros violentos durante os atos, resul-
tando em manifestantes e policiais feridos.
Sem lideranças unânimes e sem o predomínio de
grandes partidos, essas manifestações surgiram como
uma forte onda social nas principais praças e ruas e reu-
niram milhares de pessoas.
Em São Paulo, os protestos começaram em dois de
junho de 2013. Em dez  de junho, as ruas da cidade
se transformaram num campo de batalha, onde fo-
ram protagonizadas cenas de vandalismo, truculência
policial e destruição do patrimônio. Três dias depois,

408 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


simpatizantes do Movimento Passe Livre (MPL) ocu-
param uma das principais avenidas do centro do Rio,
a Presidente Vargas, bloqueando as pistas.  
No dia 17 de junho, o Rio também foi palco de uma
grande passeata que reuniu mais de 100 mil pessoas que
protestaram contra os gastos para a Copa do Mundo,
das Confederações, a corrupção e, principalmente, o au-
mento das tarifas de transporte público. O protesto foi
quase todo pacífico. Porém, no final do ato, um grupo
infiltrado de manifestantes radicais promoveu um festi-
val de pancadaria. O Palácio Tiradentes, sede da Assem-
bleia Legislativa do Rio (Alerj), foi invadido e depreda-
do. Era o cartão de visita dos chamados Black blocs no
cenário das manifestações no estado. 
Com repercussão e reflexo em todo território na-
cional e internacional, o governo brasileiro passou a
atender algumas reivindicações: o  Congresso votou a
favor de a corrupção ser tratada como crime hedion-
do, arquivou a PEC 37 (que dava poder exclusivo à
polícia para realizar investigações criminais, retirando
essa possibilidade do Ministério Público) e proibiu as
votações secretas. Governos estaduais voltaram a pra-
ticar os preços antigos das passagens. Nas ruas, crescia
o número de pessoas nas passeatas. As manifestações
no Brasil foram comparadas aos protestos Primavera
Árabe, em países árabes, Los Indignados, na Espanha e
o Occupy Wall St, nos Estados Unidos.  Configurou-se
um movimento com protestos amplos e generalizados
em todo o país, fato que não acontecia desde 1992, com
o movimento “caras pintadas”.

409 Críticas e Processos Comunicacionais


De acordo com Locatelli (2013, p. 9), o processo que
desaguou nas manifestações não surgiu do nada e nem
foi obra do acaso. “Ele teve origem dez anos antes, quan-
do jovens se revoltaram com o aumento das passagens
em Salvador”. Mais tarde o MPL se consolidaria, em
2005, durante o Fórum Mundial de Porto Alegre.
Para Locatelli (2013, p. 11), com a criação do MPL a
pauta dos transportes voltava a ter atenção e a questão
da mobilidade urbana passa a ser meta fundamental
para este grupo específico. Por isso, mesmo sem lide-
ranças marcantes, é impossível abordar as manifesta-
ções de 2013, sem abordar um histórico de lutas do
MPL, movimento que contribuiu efetivamente para a
realização de vários atos que perduraram os anos se-
guintes até eclodirem as manifestações em questão
(MARICATO ET AL, 2013, p. 13).
Para Maricato et al (2013, p. 13), as revoltas popu-
lares em torno da questão dos transportes fazem parte
da história das metrópoles brasileiras há muito tempo,
desde sua formação, na verdade. “Num processo em que
a população é sempre objeto em vez de sujeito, o trans-
porte é ordenado de cima, segundo os imperativos da
circulação de valor”. A população acaba sendo excluída
da própria organização da cidade.
Maricato et al (2013, p. 15) aponta que as catracas
seriam “barreiras físicas que discriminam” de acor-
do com a concentração de renda. Há aqueles que po-
dem circular prazerosamente pela cidade e há aque-
les condenados à exclusão urbana devido à falta de
mobilidade e/ou ao seu acesso. “Para a maior parte

410 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


da população explorada, o dinheiro para a condução
não é suficiente para pagar mais do que as viagens
entre a casa, na periferia, e o trabalho, no centro: a
circulação do trabalhador é limitada, portanto, à sua
condição de mercadoria, de força de trabalho”.
De acordo com Silva (2014, p. 10), as manifestações de
junho devem ser entendidas como um fenômeno com-
plexo, político e social e que não possui apenas uma cau-
sa, mas sim um histórico de carências e deficiências que
foram amplamente difundidos e sentidos principalmen-
te por aqueles com menor poder aquisitivo. “Já a pauta
do transporte público é altamente sensível por abarcar
não apenas as classes trabalhadoras, mas a classe média
e, de forma mais específica, o segmento estudantil”.

As teorias do jornalismo e as teorias dos movimentos


sociais: os paradigmas de Gohn e Traquina
Considerando que todas as pesquisas analisadas neste
estudo estabelecem uma relação estrita entre as manifes-
tações de junho e a comunicação e que ainda sim há todo
um contexto social, político e econômico precedente, tor-
na-se necessário sistematizar teorias e paradigmas cor-
respondentes sobre os movimentos sociais na produção
das ciências sociais, porque situam os protestos dentro de
uma perspectiva da comunicação, sistematizam e apon-
tam as características desses movimentos enquanto espa-
cialidades comunicativas e também de ativismo em rede,

411 Críticas e Processos Comunicacionais


por exemplo. Para tal, utilizamos os paradigmas contem-
porâneos apresentados por Maria da Glória Gohn, em
especial o paradigma explicativo, utilizado para os estu-
dos dos movimentos sociais na América Latina.
Por outro lado, 28 artigos do corpus apresentam
uma análise voltada para a cobertura do evento ou de
seus personagens pelos meios noticiosos ou ainda ana-
lisam a atuação de um meio alternativo, como o Mídia
Ninja, por exemplo. Nesse sentido, o papel dos meios
de comunicação foi um item fundamental na evolução
dos eventos. Por isso, atingir uma melhor compreensão
das notícias, segundo Nelson Traquina, também é um
dos objetivos desse estudo porque é interessante veri-
ficar como os meios se comportaram diante do evento
que sacudiu as principais capitais do país e como as
pesquisas em comunicação analisaram o processo, per-
cebendo então, como atendem às teorias do jornalis-
mo e às teorias dos movimentos sociais, baseadas nas
ideias de Gohn e Traquina.

Uma compreensão teórica das notícias

Como atestou Traquina (2001, p. 25), diversas teorias


acerca das notícias avançaram e configuraram a comple-
xidade de fatores que ajudam a construir o produto jor-
nalístico final, o que aponta para a tese de que conhecer
de fato a notícia implica um conhecimento da cultura
jornalística e de seus profissionais como “agentes espe-
cializados” do campo jornalístico.

412 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Traquina (2005, p. 15) também atenta para o fato de
que desde o início do século XXI, o poder dos media é
algo que tem sido sublinhado nos mais diversos estudos
porque seriam o principal elo de ligação entre os acon-
tecimentos e as pessoas, ou melhor, entre os aconteci-
mentos no mundo e as imagens ou os pensamentos que
as pessoas têm sobre esses acontecimentos.
O jornalismo tem sua devida importância não ape-
nas na projeção social de um acontecimento ou de uma
realidade, mas no seu poder de enquadrar esse aconteci-
mento “como um recurso de discussão pública”, concei-
to de Lippmann (1922) que já antecipava o surgimento
da teoria do agendamento, identificada por Traquina
(2005, p. 16) como uma redescoberta do poder do jor-
nalismo não só para selecionar os acontecimentos noti-
ciáveis, mas enquadrar, organizar esses acontecimentos.
A notícia então não seria um relato, mas uma cons-
trução e, compreender porque as notícias são como são
tem sido objeto de diferentes teorias ao longo dos tempos.
Nelson Traquina dá sua interessante contribuição nesse
sentido porque traz uma reflexão sobre a trajetória his-
tórica do jornalismo e sobre a prática do jornalismo en-
quanto profissão e seu recurso social, ou seja, a notícia e
sua construção, abordando os polos econômicos e ideoló-
gicos que dominam o campo jornalístico contemporâneo.
Este autor também lança dois importantes questiona-
mentos para adentrar ao mundo das notícias: “o jorna-
lismo é apenas um espaço fechado de reprodução ideo-
lógica, ou pode ser um espaço aberto a todos os agentes
sociais na luta política e social”? Com sua obra, Traquina

413 Críticas e Processos Comunicacionais


(2005, p. 26) afirma que a resposta é que “o campo jorna-
lístico pode ser utilizado como recurso pelos agentes so-
ciais que oferecem voz alternativa, mas para isso precisam
jogar o xadrez jornalístico” (TRAQUINA, 2005, p. 26).
Traquina (2005, p. 54), relata toda a história do sur-
gimento da imprensa, suas características e entraves e
aponta que com o desenvolvimento de uma nova im-
prensa no século XIX, liberta do conceito de porta-voz
partidária, pôde oferecer uma diversidade maior de no-
tícias, mas contadas de uma maneira sensacionalista,
o que predominou na Europa do século XVIII. Antes
mesmo disso foi possível vislumbrar um jornalismo que
noticiou coisas bizarras, fatos sobre casamentos, divór-
cios, adultérios e outros absurdos. Já chamado de “quar-
to poder”, encontra legitimidade na teoria da opinião
pública e nas ideias dos utilitaristas ingleses do século
XIX (na chamada “época de ouro da imprensa”).
Esse jornalismo combate a imagem de uma força re-
volucionária e perigosa, especificamente neste século e
se transforma ao longo dos anos com o objetivo de al-
cançar mais leitores. Começa a repensar suas questões
econômicas e surge então “uma nova empresa jornalís-
tica” que, competitiva, se viu disposta a correr atrás da
notícia. Essas empresas se tornaram cada vez maiores,
mais complexas e mais burocráticas, com estrutura de
indústria e divisão de trabalho.
A divisão no trabalho fez emergir a profissão de jor-
nalista e a ilustre figura do repórter, o desenvolvimento
de novas técnicas de reportagem, o crescente poder da
imprensa e a constituição de lead que se tornou prática

414 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


recorrente. Toda essa e outras evoluções se devem, se-
gundo Traquina (2005, p. 35), à “evolução do sistema
econômico, os avanços tecnológicos, fatores sociais e
a evolução do sistema político no reconhecimento da
liberdade rumo à democracia”.
No entanto, Traquina (2005, p. 55) solicita atenção
às qualidades mais permanentes do jornalismo e às suas
possibilidades, como atividade criativa, com uma auto-
nomia relativa e condicionada por pressões cotidianas e
em uma democracia. Atenta para a questão dos chama-
dos “polo econômico” (o jornalismo como negócio e as
notícias como mercadoria) e “polo ideológico” (ideolo-
gia profissional de servir ao público para que o cidadão
seja participante assíduo na democracia) e uma tensão
permanente entre eles.
Para Traquina (2005, p. 206), este “quarto poder” não
é mesmo um campo fechado e pode sim ser mobilizado
por diversos movimentos de contestação em uma luta
simbólica das sociedades democráticas. E é claro que
pode também atuar como contrapoder, de acordo com
a força de valores. O campo econômico, por sua vez, é
uma força importantíssima na atividade jornalística e,
de fato, o poder do jornalista é relativo e condicionado.
Por fim, Traquina finaliza seu primeiro volume com
uma informação crucial para este trabalho em espe-
cial: essa atividade comunicativa e criativa chamada
jornalismo será sempre transformada por inovações
tecnológicas e as novas capacidades que o ciberespaço
oferecem e as novas oportunidades de acesso para as
vozes alternativas “são fatores que apontam para a de-

415 Críticas e Processos Comunicacionais


bilitação do controle do jornalismo e para a existência
dum campo jornalístico que é cada vez mais uma are-
na de disputa entre todos os membros da sociedade”
(TRAQUINA, 2005, p. 210)

As contribuições de Gohn e os movimentos sociais no


Brasil na era global

De acordo com Gohn e Brigel (2012, p. 7), vários


paradigmas têm sido abordados de diferentes pers-
pectivas desde a institucionalização acadêmica dos
movimentos sociais.
Importante torna-se apresentar primeiro o concei-
to de paradigma como um conjunto de “teorias, con-
ceitos e categorias de forma que podemos dizer que o
paradigma X constrói uma interpretação Y sobre de-
terminado fenômeno ou processo da realidade social”.
Gohn (2012, p. 13) cita o responsável pelo termo, T.
Kuhn, que afirmava o surgimento de um paradigma
toda vez que surge a dificuldade em envolver, inserir
novos dados em velhas teorias.
Os clássicos seriam os provenientes principalmente da
Europa e dos Estados Unidos e a partir de então alguns enfo-
ques passaram a ser revistos e/ou redescobertos. As aborda-
gens críticas, advindas do marxismo, dos novos movimen-
tos sociais, da teoria da mobilização social e mobilização
política desenvolveram na América Latina outros desdo-
bramentos e reconstrução de teorias que buscam inúmeras
respostas para os movimentos sociais contemporâneos.

416 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Para Gohn (2012, p. 9), motivações e razões não fal-
taram para caracterizar tais paradigmas, afinal foi possí-
vel identificar uma ausência significante acerca de pes-
quisas que tenham se dedicado ao estudo das teorias dos
movimentos sociais. O que se vê, enfim, são questões de
ordem prática, estudos de natureza mais empírico-des-
critiva, estudos de caso e de objetos que têm omitido a
questão teórica. “Destaque-se ainda a ínfima importân-
cia dada neste debate à própria existência dos movimen-
tos na América Latina” (GOHN, 2012, p. 10).
A partir da década de 60, os movimentos ganharam
visibilidade e as teorias sobre as ”ações coletivas” foram
se desenvolvendo gradativamente. Um deslocamento de
interesse levou o foco das atenções para a sociedade civil
e não mais para o Estado, objeto central de investigação
dos cientistas sociais. E mesmo com o boom dos movi-
mentos sociais, muitos problemas de pesquisa também
surgiram, como por exemplo, o próprio conceito de mo-
vimento social e outras questões emergentes.
Segundo Gohn e Brigel (2012, p. 7), do final do sé-
culo XX para cá, novas formas de dominação foram
rearticuladas e muitos fatores desencadeados pelas
novas políticas econômicas, pelos novos mecanismos
de atuação dos mercados e agentes financeiros, novas
políticas, novas práticas sociais, novas tecnologias de
informação e comunicação e demais transformações
que caracterizam uma nova era global, uma “globali-
zação assimétrica” que também reestruturou as formas
de organização e de ações de protestos coletivos dos
movimentos sociais.

417 Críticas e Processos Comunicacionais


E ao expor novos interesses acadêmicos para revelar
o papel dos movimentos sociais contemporâneos, Gohn
e Brigel (3012, p. 11) conceituam:

Pensamos que os movimentos sociais continu-


am sendo atores centrais (ainda que logicamente
não exclusivos nem portadores da “melhor” ou
“única” mensagem transformadora) dos proces-
sos e dinâmicas de protestos e luta por mudan-
ças e justiça social no mundo contemporâneo.
Uma questão de fundo tem a ver com a própria
definição do que os diferentes atores e agentes
sociais, que se apresentam como movimentos
sociais, estão entendendo por movimento social
(ou ressignificando alguma prática social como
movimento) (GOHN e BRIGEL, 2012, p. 11).

Como explica Gohn (2012, p. 337), a temática trata


de uma área clássica da sociologia e da política, e não
apenas um momento da produção sociológica redu-
zindo as manifestações à própria existência do fenô-
meno. Inicialmente os estudos dos movimentos sociais
estavam relacionados a contextos de mudanças sociais
e revoluções, revoltas, tensões, fontes de conflito e atos
anômalos em comportamentos coletivos vigentes. A
categoria “trabalhador” e o conceito de luta de classes
sempre estiveram centralizados em todas as análises e
utilizados inclusive, em acepções mais amplas, como
períodos históricos grandes, e em questões de refor-
ma ou revolução nas abordagens críticas, associadas à
perspectiva marxista.

418 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Os diferentes contextos históricos, temporais e ge-
ográficos permitiram o surgimento de novas modali-
dades de movimentos sociais e novos personagens. “O
tema se ampliou e passou a enfocar outras dimensões
das ações coletivas como os “protestos sociais” e em
um quadro de pesquisas e pesquisadores que se alte-
rou profundamente ao longo dos anos após a década
de 60” (GOHN, 2012, p. 337).
De acordo com a autora, a produção norte-ameri-
cana entra em diálogo com a produção europeia, algo
não abordado no Brasil, país de significante produção
sobre os movimentos, mas ambas as teorias, ou seja,
o paradigma norte-americano e a teorias dos Novos
Movimentos sociais, cresceram, se desenvolveram e
depois se estagnaram, o que deixou as pesquisas na
América Latina bem debilitadas por estarem muito
presas aos referenciais clássicos.
Para Gohn (2012, p. 211), falar do paradigma la-
tino-americano é falar de um paradigma muito dife-
renciado ao comparar seus movimentos sociais com
os movimentos europeus, canadenses e norte-ameri-
canos, por exemplo, a despeito das diferenças histó-
rico-culturais e os processos econômicos, políticos e
sociais muito distintos.
Gohn (2012, p. 212) explica que mesmo com tan-
tas diferenças, seguiu-se os modelos clássicos como
a teoria da modernização e as teorias elaboradas pela
CEPAL (Comissão Econômica para Desenvolvimento
da América Latina), fundadas no paradigma das fases
moderna e atrasada. O que se destaca é a contribui-

419 Críticas e Processos Comunicacionais


ção dos estudos acerca da participação social dos in-
divíduos como parte do processo de integração social
(Germani, Solari e Lipset) que, ainda sim, estudavam
grupos mais elitistas. Grupos populares eram rara-
mente citados. Prosseguindo, Cardoso e Falleto, com a
teoria da dependência, inovaram e chamaram atenção
para as especificidades da América Latina. Entretanto,
foi difundida num momento de militarização genera-
lizada. Mas possibilitou releituras e abriu caminhos
para análises mais críticas como a teoria da margina-
lidade (Kowarick) (marginalização como um processo
muito mais complexo).
Em suma, Gohn (2012, p. 221) contextualiza que
os movimentos sociais na América Latina foram bas-
tante diferenciados em termos de distribuição, em-
bora tenham ocorrido em todos os países. Surgiram
nos grandes centros, seguiram para outras regiões e se
organizaram até em vilarejos (em países de estrutura
econômica mais agrária), com agendas diferenciadas,
tais como questões étnicas, suprimentos de gêneros e
serviços sociais, como demandas por alimentos, terra,
moradia, educação e ainda questões de gênero.
No Brasil, segundo Gohn (2012, p. 222), os movi-
mentos se concentraram nas últimas três décadas, o
que ela atribui, talvez, à sua extensão territorial e à
sua população em relação aos outros países latinos.
Por isso a abordagem da autora a partir da década
de 90, período de intensas mudanças no processo de
desenvolvimento brasileiro, as quais abarcam novas
estratégias de intervenção social para enfrentar a cha-

420 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


mada “capacidade reguladora de mercado”, além do
crescimento da economia informal. “As relações de
trabalho deixam de ser o principal foco das lutas dos
trabalhadores. A luta básica passa a ser pela manuten-
ção de um emprego”.
As mudanças não param por aqui.

O tempo se altera em função dos novos meios


de comunicação. A mídia, principalmente a
TV e os jornais de grande imprensa, passa a
ser um grande agente de pressão social, uma
espécie de quarto poder, que funciona como
termômetro do poder de pressão dos grupos
que têm acesso àqueles meios. As organizações
não governamentais, por sua vez, ganham pro-
eminência sobre as instituições oficiais quanto
à confiabilidade na gerência dos recursos pú-
blicos (GOHN, 2012, p. 298).

A fome e a miséria passam a ser objeto de diagnósti-


cos de políticas públicas e a exclusão passa a ser “exclu-
são integradora”, em um cenário de construção de uma
economia popular vinculada diretamente à economia
pública e capitalista. Neste contexto perdem força os
sindicatos e os movimentos populares porque as polí-
ticas de integração aqui solicitam interlocução com or-
ganizações institucionalizadas. As ONGs se destacam e
se destacam também: crise econômica com deslocamen-
to da economia formal para a informal com suporte de
políticas econômicas e fomento à abertura de negócios,
porém com fragmentação das atividades produtivas se-

421 Críticas e Processos Comunicacionais


miartesanais. A falta de moradia e a violência crescem
absurdamente, mesmo com a economia estável com o
plano real (GOHN, 2012, p. 300).
Gohn (2012, p. 300) contextualiza a situação com o
cenário internacional, nada positivo, com reformulação
da globalização, da primazia do mercado sobre o Esta-
do, a intensificação do capital especulativo, sem a menor
preocupação com os processos de desenvolvimentos das
nações, além das economias ilegais (tráfico de drogas,
armas e rede paralela de recursos econômicos).
O que se percebe é a constituição de um sistema ex-
cludente, que moderniza muitas regiões do país, mas
desloca pessoas em função de mão de obra barata que
almeja qualificação. Que é contraditório porque cria
um sistema produtivo fragmentado e competitivo, de
saberes codificados e não especializados num ciclo de
mais miséria e desemprego.
Vale então destacar, que não só esses fatores macro-
estruturais explicam a “centralidade da miséria dos indi-
gentes”, mas também provém de uma conquista de gru-
pos e movimentos sociais organizados. O Estado então
estaria respondendo a pressões da sociedade civil, tam-
bém estaria transferindo parte de suas responsabilidades
para o setor privado. Ele se reorganiza e se torna mais di-
nâmico no cenário produtivo e enxuga a máquina estatal
e diminui conflitos internos. “Observamos, portanto, no
cenário brasileiro dos anos de 1990 um conjunto enor-
me de profundas alterações estatais no modo de operar a
economia, as políticas públicas, e na forma de se relacio-
nar com a sociedade civil” (GOHN, 2005, p. 303).

422 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


E resumo, tem-se o desenvolvimento de uma nova
concepção de sociedade civil e o surgimento de novos
atores sociais, além de novos espaços, novos formatos e
participação e relações sociais, basicamente construídos
pelos movimentos populares nas décadas de 70 e 80 e
por ONGs, na década de 90, a partir de relações basea-
das em direitos e deveres,
A partir de então, de acordo com Gohn (2012, p.
307), se redefine o cenário das lutas sociais no Brasil.
Entram em crise movimentos de militância, de mobi-
lização, de participação cotidiana e de credibilidade e
confiabilidade nas políticas públicas e instituições. Cres-
ce o movimento popular rural. Destaca-se o MST (Mo-
vimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra), criado
em 1979, com sólida organização, mas com dificuldades
de operações devido às diferenças culturais. Em 1990 e
1996, a chacina de trabalhadores rurais chamou atenção
internacional e para a criação da União Ruralista Bra-
sileira (URD) e o MST transformou-se então no maior
movimento do Brasil, se ampliando de maneira singular
entre 1994 e 1997. A reforma agrária começa a ser aceita
com perspectiva de fixar o homem no campo, diminuin-
do índices de violência na cidade.
A autora relata que outros movimentos surgiram com
inúmeros propósitos. Há de citar, por exemplo o Movi-
mento de Ética na Política, da Ação da Cidadania contra
a miséria e pela Vida, Movimento Nacional de Meni-
nos e Meninas de Rua, o Movimento dos Aposentados,
movimentos que pediram pela revalorização da Cida e
contra a violência como o Viva Rio. Este caracterizou-

423 Críticas e Processos Comunicacionais


-se como movimento de novas práticas coletivas porque
não firmou vínculos com partidos, ocupou notável es-
paço simbólico e agiu por meio de projetos culturais.
Destaca-se ainda o fortalecimento e/ou criações de
entidades como a ABONG (Associações Brasileiras de
ONGs), a CMP (Central de Movimentos Populares),
que passou a reunir movimentos que estavam em conso-
nância com a CUT (Central Única dos Trabalhadores), a
instalação de ONGs internacionais no Brasil, como Gre-
enpeace, Rainforest e Anistia Internacional, entidades já
presentes desde a década de 80, como a CONAM (Con-
federação Nacional das Associações de Moradores), a
CGT (Confederação Geral dos Trabalhadores) e progra-
mas sociais criados por meio da LBA (Legião Brasileira
de Assistência). O MST, ainda com notoriedade, passa a
ser um interlocutor para a formulação de uma reforma
agrária no país, e a temática ganha adeptos e fomenta
pressões, como por exemplo o lançamento do livro de
Sebastião Salgado, “Terra”, episódio relevante para a cau-
sa, além de pressões morais e advindas do clero católico,
embora na década de 90, os movimentos sociais tenham
perdido grande apoio desta grande aliada, a Igreja Ca-
tólica (especificamente a ala da Teologia da Libertação),
que reviu suas práticas, doutrinas e diretrizes.
No Brasil há destaque então para a década de 90,
quando segundo Gohn (2012, p. 317), os movimen-
tos tornaram-se mais qualificados e estruturados, com
ações motivadas com mais organização e menos pres-
são, que trouxeram, sobretudo, uma nova cultura e
contribuições dos diferentes tipos de movimentos para

424 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


o processo de democratização do país para reconstru-
ção de valores democráticos.
A crise de alguns movimentos, ou a chamada “crise
de mobilização”, nas análises de Gohn (2012, p. 324), se
refere mais às mudanças, às transformações internas e
externas do que propriamente a um processo de crise,
como um momento de amadurecimento, uma “adequa-
ção à institucionalização democrática, quando a auto-
ra se pauta em outros autores como Harber e Oliveira.
Os chamados novos movimentos sociais, ligados às lu-
tas por questões de direitos no plano da identidade ou
igualdade, declinaram e, depois de reorganizados, cres-
ceram. “Em síntese, está havendo uma mudança nos va-
lores e orientações que informam e fundamentam a ação
social (GOHN, 2012, p. 327).
Por fim, Gohn (2012, p. 339) reflete que a tendên-
cia que predomina na análise dos movimentos sociais
a partir dos anos 90 é de unir abordagens provenientes
de teorias macrossociais e teorias que priorizam aspec-
tos micros da vida cotidiana. Há a necessidade de uma
teoria que busque uma síntese, com ações e conteúdos
articulados com diferentes disciplinas (economia, polí-
tica, sociologia, antropologia, psicologia, psicanálise, fi-
losofia e comunicações). “Diferentes olhares, diferentes
ângulos de apreensão dos fatos da realidade: esta é uma
necessidade imperiosa, numa era na qual tudo se des-
faz rapidamente, tudo fica obsoleto em frações de tempo
muito menores que nossa capacidade de memorização”.
E lança a hipótese de que talvez o paradigma postu-
lado venha se realizar com a fusão de vários procedi-

425 Críticas e Processos Comunicacionais


mentos metodológicos e pensado para analisar fenô-
menos que estão ocorrendo na contemporaneidade do
terceiro mundo.

Metodologia do trabalho
Para contribuir com a problematização em torno de
como as manifestações foram abordadas nas pesquisas
em comunicação, concatenamos os trabalhos científicos
que retrataram a questão. Primeiro, fizemos a busca, se-
leção e identificação desses trabalhos. Constituímos um
corpus com 44 artigos científicos que analisaram de al-
guma maneira manifestações de junho de 2013. Poste-
riormente, realizamos a leitura e sistematização das in-
formações dos textos em uma tabela onde destacamos: o
título, autores, objetivos, metodologia, contextualização
e pressupostos e principais conclusões.
Em princípio o estudo tentou abarcar apenas traba-
lhos sobre a cobertura de diversos veículos em relação
às manifestações. Porém, devido à escassez de trabalhos
com essa delimitação nas bases de dados, decidimos en-
globar então todos os trabalhos que estabeleceram certa
relação entre a comunicação e as jornadas de junho.
Dos artigos selecionados, oito são do Intercom 2013,
nove são do Intercom 2014, três são, excepcionalmente,
do Intercom Junior 2014, por sua relevância e objeto, 15
são do portal Univeciência, quatro são da Compós, qua-
tro do banco de dados da Capes e um estudo, organizado

426 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


em seis capítulos e coordenado pelo professor Sivaldo Pe-
reira da Silva, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal)
e da Universidade de Brasília (UnB), apresenta uma aná-
lise comparada e descritiva da cobertura dos jornais no
momento significativo de mobilização social.
A seguir, tais pesquisas foram descritas brevemente,
atentando-se para seus objetivos, objeto, metodologia
e principais resultados. Em seguida, em reflexões fi-
nais, a correlação com as abordagens de Gohn acerca
do fenômeno dos movimentos sociais e suas caracte-
rísticas contemporâneas e na abordagem de Traquina
a respeito das notícias e como se dão na representação
deste fenômeno social pelos meios.

As pesquisas: as manifestações de junho, os movimen-


tos sociais e a comunicação
Novamente enfatizamos que para constituição do
corpus de análise, fizemos o resgate dos artigos cientí-
ficos, sintetizando as afirmações e conclusões do esta-
do do conhecimento que direcionou seu olhar/pesquisa
para as manifestações de junho de 2013, considerando
todo o conhecimento produzido. Buscamos durante o
mês de abril de 2015, bancos de dados de artigos de re-
vistas acadêmicas da comunicação, nos anais dos Gru-
pos de Trabalho da Intercom e Compós e no Portal de
periódico da Capes, por artigos científicos que estives-
sem em língua portuguesa, com a abordagem voltada

427 Críticas e Processos Comunicacionais


para área da comunicação e observassem as jornadas e
sua relação com a comunicação. Nos Anais dos congres-
sos da Intercom, procuramos limitar a seleção apenas
aos artigos publicados em categorias que permitissem
trabalhos de pós-graduandos, mestres e doutores, com
exceção de três trabalhos publicados no Intercom Junior
2014, devido à relevância de seus objetos.
Como procedimento de coleta, recorremos aos me-
canismos de busca dos sites enumerados acima, em-
pregando as palavras: manifestações de junho de 2013
e protestos de junho de 2013. E, nos bancos de dados/
portais que não tinham essa ferramenta examinamos
cada um dos grupos e/ou divisões temáticas.
Dos 44 artigos encontrados, 27 analisam cobertura
dos meios noticiosos em relação ao evento supracitado.
Do XXXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Co-
municação, realizado em Manaus em 2013, foi possível
coletar oito artigos. Desses, cinco analisam como a mí-
dia representou as jornadas de junho.
Ao analisar as reverberações midiáticas sobre os me-
gaeventos que aconteceram no Rio paralelo às manifes-
tações através da cobertura de O Globo e O Dia, Frei-
tas (2013) aponta que a mídia encontra um ambiente
de grande produção de narrativas jornalísticas sobre o
medo e o pânico na violência que acontece no Rio de
Janeiro, uma estratégia que vende jornal e espaço publi-
citário nos meios de comunicação de massa.
Sobre a produção de sentidos no Discurso de Veja
acerca das manifestações de Junho, Pádua (2013) per-
cebe-se o trabalho tendencioso de seleção e organização

428 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


das informações para construir um discurso coerente e
persuasivo com a intenção de influenciar a forma como
a população percebia o movimento.
Moraes, Machado e Tomazetti (2013) analisam as
representações midiáticas das manifestações de rua no
Brasil em relação aos seus personagens, através das notí-
cias veiculadas em três emissoras de televisão. Eles afir-
mam que os meios apresentam os personagens de uma
maneira maniqueísta: manifestantes pacíficos e vânda-
los. Inicialmente são desfavoráveis ao evento, repreen-
dendo os excessos de uma minoria sem compreender a
complexidade do acontecimento.
Sobre a cobertura da Folha de S.Paulo (capas dos jor-
nais, das páginas de Opinião, Painel do Leitor e Cader-
no Cotidiano), Maradei (2013) conclui que o veículo foi
obrigado a reconhecer o significado das manifestações.
Confirma-se a premissa de que houve uma mudança de
comportamento editorial do jornal após atos violentos
cometidos pela Polícia Militar contra manifestantes,
ocorridos em 13 de junho em São Paulo.
Por fim, com metodologia qualitativa, através do
modelo de Thompson, Sena e Rocha (2013) analisam o
discurso jornalístico do programa Brasil Urgente/Band e
identificam a manipulação ideológica durante a cober-
tura feita das manifestações populares em junho de 2013
no Brasil. Inicialmente a cobertura desqualifica o evento
como ação criminosa e reafirma o modelo de Thompson
como um instrumento analítico bastante esclarecedor.
As demais pesquisas apresentam a utilização das lin-
guagens no contexto da mobilização social via internet

429 Críticas e Processos Comunicacionais


para manifestações que ocorreram em todo o Brasil em
junho de 2013, analisam a comunicação realizada nas
redes sociais virtuais para fins de mobilização social,
aprofundam as discussões acerca dos meios textuais que
facilitaram essa propagação através do facebook, com-
preendem como o uso das Tecnologias da Informação e
Comunicação (TIC’s) promoveu o desenvolvimento do
processo de mobilização social brasileiro em 2013 e traz
à luz conceitos de convergência e conversação mediada
pelo computador, buscando compreender a importância
das redes sociais e das redes sociais online nas manifes-
tações e protestos democráticos no Brasil.
Foram nove artigos coletados do XXXVII Congres-
so Brasileiro de Ciências da Comunicação, em Foz do
Iguaçu, no ano de 2014. Destes, quatro focam o evento
de maneira midiatizada.
Roldão (2014) reflete acerca do espaço ocupado pelo
jornalismo alternativo no Brasil, identifica inúmeras
experiências de comunicação alternativa, abrangendo
jornal e revista impressa, portais na web ou, simultanea-
mente, nas duas versões, como o Jornal Brasil de Fato, Le
Monde diplomatique, A Nova Democracia e Carta Maior.
Abarca alguns movimentos sociais e algumas coberturas
destes. E conclui que a relação de experiências de jorna-
lismo alternativo que busca apresentar perspectiva dife-
rente da sociedade globalizada é extensa. Esse jornalis-
mo combate uma ditadura, mas nem sempre a ditadura
do mercado, da contemporaneidade.
Ao abordar a cobertura d’O Estado de S. Paulo so-
bre o Movimento Passe Livre (análise sobre as matérias

430 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


publicadas na seção Metrópole, destinada a cobertura
da região da Grande São Paulo, entre os dias 7 e 24 de
junho de 2013) e sua correlação com a cidadania, Arau-
jo, Filho e Nunes (2014) observam que “à medida que a
população sai às ruas em todo o país e as demandas ori-
ginalmente apresentadas pelo MPL se amplificam e se
desdobram o jornal O Estado de São Paulo vai mudando
seu posicionamento paulatinamente”. Este reconheci-
mento da retomada do protagonismo político dos su-
jeitos significa para o autor uma nova forma de exercer
a cidadania, de ocupar espaço social e de reposicionar a
mídia convencional diante dos movimentos sociais or-
ganizados da sociedade civil.
Oliveira (2014) analisa as manifestações na página do
Campo Grande News no facebook, em relação à duração
e a interação dos usuários com essas notícias e verificou-
-se que os critérios de proximidade e de novidade/atua-
lidade, que são recorrentes nas listas de critérios de no-
ticiabilidade, também se apresentaram recorrentes nas
publicações feitas pelo Campo Grande News. A análise
foca mais nos estudos de jornalismo online do que pro-
priamente n a cobertura do evento.
Justen (2014) traça um diagnóstico do cenário midiá-
tico para entender a ascensão das novas mídias a partir da
noção foucaultiana de relações de poder. E chega à óbvia
reflexão de que cada um à sua maneira transmite um fato
com suas representações mais fiéis e com pontos de vista,
que variam mediante circunstâncias e atores sociais.
Em especial, Leske (2013), por meio de pesquisa
documental de caráter empírico, realiza um panorama

431 Críticas e Processos Comunicacionais


acerca das pesquisas contemporâneas sobre os estudos
de comunicação sobre Movimentos Sociais na América
Latina. Torna-se uma pesquisa interessante porque en-
volve estudos publicados acerca de MS/NMS nos Anais
do Intercom Nacional. Os principais conceitos citados
estão atrelados ao enquadramento do fenômeno (Fra-
ming), à construção da notícia de forma geral (News-
making) e à inserção de um tema na agenda social (Agen-
da Setting). “Assim, evidencia-se que a mídia influencia
o posicionamento da sociedade diante dos assuntos por
ela expostos”. No caso estudado, a visão hegemônica dos
meios midiáticos tradicionais apresenta-se de forma ne-
gativa, prejudica a imagem dos movimentos e enfraque-
ce o resultado das ações.
Pinto e Fossa (2014) trazem considerações teóricas
acerca dos movimentos sociais a partir de autores como
Castells (2013) e Scherer-Warren (2011) para entender
de que forma os movimentos sociais contemporâneos
caracterizam-se enquanto atores sociais e de que forma
sua atuação concretiza-se no espaço físico social. Per-
cebe-se que atualmente “os movimentos sociais nascem
de forma diferenciada, sem lideranças, com variadas
contestações, mobilizam-se por meio das redes sociais,
tomam as ruas, arregimentam muitas pessoas que indig-
nadas postulam do poder público medidas para a me-
lhoria social”. Funcionam com autonomia que não foi
dada, mas que foi aceita e é autossupervisionada.
Através da cartografia, Oliveira (2014) apresenta refle-
xões sobre o uso do paradigma qualitativo nas pesquisas so-
bre práticas comunicacionais e movimentos sociais popu-

432 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


lares, a partir da experiência de pesquisa no assentamento
Barra do Leme. Trata-se de uma pesquisa de compreensão
e intervenção como parte de um atuar em campo nas pes-
quisas de comunicação e nas Ciências Sociais e Humanas.
Oliveira (2014), por meio de uma abordagem teórica e
da observação do contemporâneo, situa os protestos den-
tro da perspectiva da comunicação, sistematiza e aponta
as características destes movimentos enquanto espaciali-
dades comunicativas e de ativismo em rede. O autor crê
no potencial de ação e comunicação das redes e movi-
mentos sociais com todas as suas interações e possibilida-
des com uso das tecnologias. Porém, torna-se difícil en-
xergar mudanças mais profundas em curto e médio prazo
em questões que se anunciam com profundidade.
Teixeira (2014) tem a mesma intenção ao estudar a
mobilização gerada a partir das páginas da rede social
Facebook no mês de junho de 2013, que redundaram nas
manifestações ocorridas pelas ruas da Grande Vitória. E
aponta que é impossível imaginar na atualidade, qualquer
manifestação ou decisão para uma nação que não passe
pelas articulações geradas pelas redes sociais digitais.
Excepcionalmente, do Intercom Junior de 2014, des-
tacamos três pesquisas. Amancio e De Paula (2014) ana-
lisam o papel das mídias digitais durante a organização e
realização da manifestação e notam que através delas foi
possível organizar e promover a manifestação em me-
nos de uma semana, em diversas capitais do Brasil. Essas
mídias estariam sim modificando costumes e hábitos da
sociedade, proporcionando uma transmissão de mensa-
gem mais eficaz e completa.

433 Críticas e Processos Comunicacionais


Roque et al (2014) analisam a diferença de tratamen-
to dado ao grupo Black Bloc pelas revistas CartaCapital
e Veja, durante as manifestações de junho de 2013. A
cobertura neutra, descritiva, analítica e ética de Carta se
contrapõe à cobertura negativa e tendenciosa de Veja.
Esta confere ao grupo uma conotação animalesca e de-
sorganizada, totalmente desqualificada.
Othon (2013) analisa o trabalho jornalístico desen-
volvido pelo grupo de mídia independente Mídia Ninja
e destaca que esses grupos de mídia independente têm
exercido um importante papel em propor novas formas
de produzir e consumir a informação. O Mídia Ninja
teria conseguido captar o espírito desse novo jornalis-
mo ao camuflar o repórter em meio aos manifestantes e
transmitir os anseios do povo e ações que aconteciam no
interior das manifestações.
No Portal da Produção Científica em Ciências da
Comunicação (Univerciência) foi possível encontrar
15 pesquisas sobre as manifestações de junho de 2013.
Dentre elas, 12 abordam a mídia e as manifestações.
De acordo com Rosa (acesso em abril, 2015), que faz
uma análise comparativa das fotografias dos jornais Zero
Hora e Sul21 através da semiótica de imagens, o jornal
Zero Hora midiatizou as imagens por um viés pró-Estado
enquanto que o Sul21 manteve uma postura diferencia-
da, veiculando imagens que abrandasse a imagem dos
manifestantes e denunciasse ações abusivas da polícia.
Barros (acesso em abril, 2015) faz uma análise das re-
ferências ao Anonymous nos portais Folha.com e G1, com
o objetivo de investigar a legitimidade do hacktivismo

434 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


como prática de protesto através das ações do coletivo ci-
berativista. Por meio da análise de conteúdo, ficou claro
que esses “novos” protestos são resultado das possibili-
dades que a rede proporciona, como a diversidade, por
exemplo, que pode beneficiar ou não o movimento. E que
através do Anonymous, o hacktivismo cumpriu seu papel
de participante importante no processo. O hacktivismo e
o ciberativismo estão imanentes um ao outro.
Carvalho (acesso em abril, 2015), analisa a cons-
trução textual do folheto de Abraão Batista, onde o
cordelista aborda as características mais marcantes
das manifestações e tece seus comentários sobre o
que apreendeu pela mídia de massa. Percebe-se que a
Folkcomunicação auxilia a construir um olhar sobre a
prática dos cordelistas e sobre os conteúdos apresenta-
dos nos folhetos. A teoria ajudou a compreender a uti-
lização que o poeta fez de um veículo de comunicação
popular como instrumento de luta, representando o
posicionamento de um grupo que também se mostrou
insatisfeito com a situação socioeconômica do país.
Com “O Papel das Revistas Veja e Carta Capital na
Formação da Opinião Pública Brasileira acerca das Ma-
nifestações Populares”, Gonçalves (acesso em abril, 2015)
conclui que cada revista primou pelos seus posiciona-
mentos politicoideológicos, deixando em segundo plano
a imparcialidade. “Tendo grande influência na opinião
pública, esses veículos comunicativos comprometeram a
construção social da opinião do eleitor fazendo-o cami-
nhar em direção as suas ideologias, o que viola a principal
premissa do jornalismo que é a informação”.

435 Críticas e Processos Comunicacionais


Ao analisar as imagens no jornalismo de revista acer-
ca da cobertura das manifestações em Carta Capital,
Veja, Época e IstoÉ, Rodrigues (acesso em abril, 2015),
à luz da análise de conteúdo, com base no estudo do
fotojornalismo por Jorge Pedro. Em suma, mais uma
vez Veja se destaca por sua cobertura exótica. Respon-
sabilizou o governo petista por todas as insatisfações,
representou manifestantes como baderneiros e a polícia
apenas agindo de maneira enérgica e não violenta.
Brasil e Frazão (acesso em abril, 2015) investigam
como se constroem as estratégias de cobertura pela mí-
dia tradicional e mídia alternativa, a partir da revisão
de artigos divulgados na imprensa e vídeos disponíveis
na internet. Para eles, o novo modelo de cobertura jor-
nalística televisiva aponta a importância da participação
de novos atores sociais com novas ferramentas digitais
poderosas, apoiadas pela nova cultura informacional
das redes sociais. E atentam que “é necessário estudar
as transformações não só das tecnologias e das mídias,
mas, igualmente, investigar o surgimento de novas nar-
rativas informacionais, fluxos comunicacionais e rela-
ções cada vez mais híbridas entre emissor e receptor”.
Ao analisar parte da cobertura impressa desses pro-
testos, na Folha de S. Paulo e no O Estado de São Paulo,
e outras informações compartilhadas nas mídias sociais
pela mídia ninja, Lima e Loose (acesso em abril, 2015)
verificam que a cobertura das manifestações pela im-
prensa tradicional precisou se adequar diante de outras
informações que emergiram das mídias alternativas di-
gitais, como a mídia ninja. Estas “constituem uma nova

436 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


e poderosa variável que incide sobre as práticas de jor-
nalismo tradicional e sobre a reflexão a respeito de que
novos caminhos o campo deve seguir para manter suas
grandes pretensões históricas nas democracias”.
Em “Política sem partido e notícia sem empresa jorna-
lística – um olhar sobre a crise evidenciada nas manifes-
tações de junho de 2013”, Thomé (acesso em abril, 2015),
responde a algumas questões referentes ao movimento e
o futuro do jornalismo num contexto de agressões. Para
o autor, nesta cobertura, a crise do jornalismo veio à tona
com força total com um discurso que retoma a questão
do mito da imparcialidade. “O jornalismo cidadão abre
possibilidades de apresentação de múltiplos olhares, de
ângulos diversos, viabiliza que outros fatos sejam “pesca-
dos”, ampliando a oferta de informação e de versões”.
Zanotti (acesso em abril, 2015) avalia a guinada
que se observou na tonalização das coberturas jorna-
lísticas relativas à evolução dos protestos através do
método de investigação que associa a análise discur-
siva a uma discussão sobre estratégias e fundamentos
do jornalismo. Este foi aplicado a editoriais e textos
noticiosos publicados no jornal Correio Popular, da
cidade de Campinas/SP, entre os dias 13 e 24 de junho
de 2013. O autor concluir que o jornal em questão, as-
sim como os demais, abriu mão de seus compromis-
sos com qualquer grau de objetividade porque recorre
às adjetivações, “fenômeno que culminou com o uso
da metáfora hiperbolizada de um país que se levanta
de seu berço esplêndido, em texto que deveria se res-
tringir à informação”.

437 Críticas e Processos Comunicacionais


Bergamaschi (acesso em abril, 2015) apresenta um
estudo sobre a cobertura midiática dos movimentos que
ocorreram em junho em Porto Alegre, pelos jornais im-
pressos Zero Hora e Correio do Povo e especificamente
como caracterizaram a corporação policial. A mídia for-
taleceu a representação dos manifestantes como vânda-
los e em relação à polícia as representações reforçam a
perpetuação de um modelo de polícia autoritária e vio-
lenta e ainda com julgamento positivo por parte da so-
ciedade, que reproduz o que a mídia dissemina.
Para Zardo (acesso em abril, 2015), que analisou os
editoriais da Folha de São Paulo e do The New York Ti-
mes, que versaram sobre os protestos de junho (2013) e
sobre o Occupy Wall Street (2011), a partir da análise de
conteúdo, foi possível perceber: em relação ao Occupy, o
The New York Time, embora, tivesse posturas de apoiar
o movimento, exigia o tempo todo que se respeitassem
as leis e não lançassem mão da violência. Em relação aos
protestos de junho, os editoriais do mesmo veículo os
saudaram como “um despertar para o Brasil”, mesmo sa-
bendo dos episódios de violência. A postura do veículo é
bem contraditória. Interessante até a colocação do autor
que utiliza o famoso ditado popular que diz que “a gra-
ma do vizinho é sempre mais verde”.
Em relação aos editoriais da Folha, fica nítido que o
veículo apresenta muitas variações. Há de se dar desta-
que para o famoso editorial “Retomar a Paulista” que de-
manda uma atitude mais incisiva da polícia. O veículo
ora apresenta os manifestantes como vândalos ora como
manifestantes pacíficos, portadores de reivindicações

438 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


justas. Assim ocorre com a polícia, abordada ora como
a que exercia o uso legítimo da força contra abusos co-
metidos pelos vândalos ora atuaria de forma excessiva
e despreparada. Para o autor, ambos os veículos teriam
um discurso que dialoga com a sociedade e fornece in-
formações de interesse, mas também pauta sua agenda
própria, de acordo com interesses específicos.
Rocha (acesso em abril, 2015) analisa o papel dos
meios de comunicação de massa e das redes sociais na
internet na repercussão das manifestações de junho. A
análise é feita a partir de Manuel Castells (espaço de dis-
seminação) e Wilson Gomes para estudar a repercussão
nas redes sociais e na Folha de S. Paulo. Percebe-se então
uma clara mudança no papel dos veículos de comunica-
ção de massa na esfera de discussão pública devido ao
avanço dos canais digitais. Nesse sentido, as redes so-
ciais teriam fornecido as ferramentas para que as mani-
festações ocorressem.
Grohmann (acesso em abril, 2015) explorou os pro-
cessos de midiatização e circulação de sentidos, na esfera
digital, culminando na análise de um anúncio publicitário
e sua circulação na rede. O objetivo foi compreender as
relações entre midiatização, consumo e manifestações nas
redes. A pesquisa analisou o evento “enquanto fenôme-
no midiatizado por excelência”, através da campanha da
montadora Fiat (“Vem pra rua”), “que se tornou, acima de
tudo, produto de consumo simbólico, marcado por uma
massiva reapropriação e ressignificação dos discursos mi-
diáticos na rede”. O autor observa como a dimensão do
consumo se faz presente, ainda que em comentários liga-

439 Críticas e Processos Comunicacionais


dos às manifestações e afirma que o território das mani-
festações é expandido, elas “tomam caráter midiatizado
e circulam pelas mais diversas arenas em que o controle
político do discurso fica mais difícil, seja pelos atores po-
líticos, seja pelos grandes atores midiáticos”.
Ao mostrar como a sociabilidade online é capaz de
contribuir com o exercício do que aqui se trata por ci-
berdemocracia e do grande contingente de pessoas que
essa interação é capaz de atingir, Tavares (acesso em
abril, 2015), pela teoria da espiral do silêncio, conclui
que a internet como meio de exercício da democracia se
mostrou eficiente. A sociabilidade online não só permi-
tiu como embasou a ciberdemocracia. As redes sociais
permitiram a expressão das opiniões acerca dos interes-
ses, da organização do protesto e da inclusão de pessoas
no processo de mobilização social.
Por fim, Recuero, Zago e Bastos (acesso em abril,
2015), a partir da análise de conteúdo, analisam o con-
teúdo do Twitter (a partir de um recorte) acerca dos
protestos e apontam, no geral, um conceito positivo do
evento e que apesar de um fio condutor principal, que
permeou as narrativas de todas as regiões, não houve
uma percepção única em todos os discursos. “Notada-
mente, a homogeneização da estrutura das coocorrên-
cias parece sugerir o Twitter não como um espaço de
debate e organização, mas de narrativa e mobilização”.
Mais uma vez nota-se: esses dois últimos trabalhos, mes-
mo partindo de uma análise social não midiática, omitem a
questão teórica dos movimentos sociais, bem como os de-
mais, de ordem prática e de estudos de casos e coberturas.

440 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Dos encontros da Compós de 2013 e 2014 coletamos
quatro artigos.
Castro (acesso em abril, 2015) aborda a ascensão das
massas como um fenômeno característico da moderni-
dade, e relacionado com três diferentes lógicas: a eco-
nômica, a do regime de dominação e a comunicacional.
Ele contextualiza historicamente e sociologicamente a
esfera midiática, os líderes e identificações nas massas
e nas redes, modelos teóricos de psicologia das massas e
a mobilização política das massas às redes citando casos
mais recentes. É mais um ensaio do que propriamente
uma análise especifica.
Polydoro (acesso em abril, 2015) analisa imagens e
narrativas audiovisuais feitas da perspectiva dos mani-
festantes, do evento em questão, de autoria de jornalistas
independentes, membros de grupos ativistas ou filma-
gens anônimas/sem autoria informada – tendo como
enfoque seu estatuto de contradiscurso. O autor verifica
se tais objetos audiovisuais podem perder a força de re-
sistência, uma vez inseridas no fluxo de imagens na web.
Ele faz uma análise vídeo a vídeo.
“Imagens das ruas e das redes: análise das jornadas
de junho a partir da hashtag #VemPraRua”, traz aponta-
mentos sobre as manifestações a partir dessas imagens
publicadas em rede e coletadas por meio da hashtag
#VemPraRua. Ao identificar mais de 85 mil imagens,
Gouveia et al (acesso em abril, 2015) explicam que se-
guir os rastros de narrativas imagética e textuais pode
ajudar a compreender aspectos importantes de um acon-
tecimento. Problemas e potencialidades da rede não de-

441 Críticas e Processos Comunicacionais


vem estar dissociados da subjetividade e ao encontrar
padrões visuais foi possível mapear comportamento de
imagens, seus usos e apropriações.
Alde e Santos (acesso em abril, 2015) analisam as se-
melhanças e as dinâmicas das manifestações que ocorre-
ram na cidade do Rio de Janeiro e a dinâmica de casos de
desobediência civil que obtiveram apoio massivo após a
repressão policial. Tratou-se de uma análise comparativa
e revisão por meio do projeto Civil Resistance & Power
Politics (Roberts e Ash, 2009) e através da associação en-
tre o conceito de redes policêntricas (Gerlach, 2001).
Do sistema de banco de dados da Capes, acessado
pelo modo VPN do Banco de dados da Unesp, pes-
quisamos as seis primeiras páginas após busca com as
palavras “Manifestações 2013” e “Protestos 2013” e
encontramos quatro trabalhos.
Mendonça e Daemon (acesso em abril, 2015) apon-
tam regularidades discursivas implícitas no enfoque
dado às manifestações de 2013 pela grande imprensa.
Não foi realizada uma análise empírica de reportagens,
mas recorreu-se a exemplos emblemáticos que permi-
tiram fazer os registros. Afirmam que a fatalidade dos
desdobramentos está na criminalização do evento e na
aceitação de práticas violentas e abusivas, em um círculo
de estabilização de sentidos que se fecha mais uma vez
com garantia da legitimação da mídia.
Em seu artigo, Enne (acesso em abril, 2015) a categoria
semântica “vândalos” no decorrer das manifestações que
ocorreram, em especial, no Rio de Janeiro. Foi possível
perceber que esse signo foi eleito pela mídia hegemônica

442 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


como termo síntese das ações violentas dos manifestan-
tes, e permitiu a construção, via indústria cultural, de uma
série de representações sociais sobre as manifestações, os
manifestantes e seus atos. Foram abordadas duas matérias
do jornal O Globo (dos dias 16 e 17/10), com as respectivas
manchetes “Lei mais dura leva 70 vândalos ao presídio”
e “Vândalos deixam rastro de destruição após confronto
com PMs do Rio”.
Em sua dissertação, Silva (acesso em abril, 2015)
apresenta de que forma o Facebook foi um espaço de re-
verberação e mobilização social durante os protestos que
de 2013 no Brasil, com as abordagens de alguns concei-
tos e autores clássicos. A pesquisa escolheu o dia 18, que
concentrou as principais passeatas e ocupações de locais
públicos em todo o país. A partir desta data, buscou-se
nos perfis do Facebook do jornal O Globo, do coletivo
Mídia Ninja, do jornal El País (Espanha) e do Semanário
Sol (Portugal) as publicações que foram realizadas nes-
te dia sobre as manifestações. Por meio de metodologia
específica para análise de conteúdos de web, utilizamos
métodos qualitativos e quantitativos. Silva conclui que
“a rede social oferece ferramentas importantes para o
debate público, assim como a possibilidade de amplia-
ção do espaço democrático. Contudo, a utilização deste
canal precisa acontecer de forma mais crítica e consis-
tente, tanto pelos media, como pelos cidadãos”.
Lifschitz (acesso em abril, 2015) analisa, através de
um ensaio, as manifestações e seus personagens, fazen-
do alusão ao filme V de Vingança, e percebe que naque-
les dias de junho um modelo de representação política

443 Críticas e Processos Comunicacionais


extravasou. Não havia liderança, não havia partido. Um
movimento de massas sem representação e sem media-
ção. Para o autor, o mascarado, em seu transitar perfor-
mático, fez drama. “A questão do drama é a perplexida-
de, e V dialoga com esse sentimento”.
“[...] se as mídias digitais serviram como ferramenta
de mobilização e ampliação dos protestos, de que forma
ocorreu a cobertura dos mass media? Como os principais
jornais brasileiros trataram do tema e de seus atores”?
Para responder a essas duas questões, o coletivo Intervo-
zes, através da organização de Silva et al (2014) analisam
a cobertura dos jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S.
Paulo e O Globo sobre os protestos de junho de 2013. A
pesquisa abarca os 19 primeiros dias de junho de 2013 e o
objetivo principal foi trazer uma visão concreta, baseada
em análise de material empírico, sobre essa cobertura.
Na pesquisa de Silva et al (2014), a análise de 964 ma-
térias permitiu conhecer que os resultados demonstra-
ram que os veículos seguem padrões de cobertura bas-
tante parecidos em todos os indicadores estudados. As
diferenças são pontuais e pouco significativas. “O estudo
traz elementos suficientes para colocar em evidência di-
versas fragilidades do jornalismo brasileiro atual”.

Reflexões finais
Através deste estudo, com a descrição das pesquisas
coletadas, foi possível verificar o estado do conhecimento

444 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


acerca das manifestações que ocorreram em junho de 2013
e suas relações com o campo da comunicação, com base
em 44 trabalhos em língua portuguesa pesquisados nos
bancos de dados supracitados.
Pode-se afirmar que é possível fornecer uma com-
preensão histórica e mediática do que significaram as
manifestações de junho e ainda servir como registro da
ação mediadora dos meios no processo de manifestação
social baseada nas ideias de Gohn e Traquina, além ve-
rificar como as pesquisas em comunicação e suas teorias
problematizam as manifestações sociais.
Os principais achados analíticos dos autores nos
permitem apontar que dos 44 trabalhos, 27 analisam
cobertura dos meios noticiosos em relação às manifes-
tações que ocorreram em junho de 2013. Essas pesqui-
sas analisaram capas de jornais, editoriais de jornais e
demais seções informativas dos jornais, imagens e nar-
rativas audiovisuais (cobertura televisiva), narrativas
imagéticas e textuais, páginas e conteúdos de redes so-
ciais, blogs, ou páginas digitais de veículos tradicionais
ou de mídias alternativas (como é o caso do Mídia Nin-
ja), matérias e imagens de revistas e uma peça publi-
citária, através de: análise do discurso, análise de con-
teúdo, análise de sentido e representações midiáticas,
análise de estratégias de fundamentos do jornalismo
e constituição textual de cordel. Uma delas estabelece
correlação com a questão da cidadania.
As demais pesquisas apresentam a utilização das lin-
guagens no contexto da mobilização social via internet
para manifestações que ocorreram em todo o Brasil em

445 Críticas e Processos Comunicacionais


junho de 2013, analisam a comunicação realizada nas
redes sociais virtuais para fins de mobilização social,
aprofundam as discussões acerca dos meios textuais
que facilitaram essa propagação através do facebook,
desenvolvem os conceitos de ciberespaço e ciberde-
mocracia e compreendem como o uso das Tecnologias
da Informação e Comunicação (TIC’s) promoveram
o desenvolvimento do processo de mobilização social
brasileiro em 2013 e traz à luz conceitos de convergên-
cia e conversação mediada pelo computador, buscan-
do compreender a importância das redes sociais e das
redes sociais online nas manifestações e protestos de-
mocráticos no Brasil. Estas englobam pesquisas docu-
mentais de caráter empírico, cartografia, observação,
ensaios e análises de exemplos emblemáticos.
A quase totalidade dos trabalhos omitem a questão
teórica dos movimentos sociais. Cerca de 10% desses
trabalhos fazem menção aos trabalhos de Gohn e con-
textualizam mais profundamente este fenômeno social.
Castro (acesso em abril, 2015), por exemplo, analisa a
ascensão das massas e relaciona o tema com três dife-
rentes lógicas: a econômica, a do regime de dominação
e a comunicacional. Ele contextualiza historicamen-
te e sociologicamente a esfera midiática, os líderes e
identificações nas massas e nas redes, modelos teóricos
de psicologia das massas e a mobilização política das
massas às redes citando casos mais recentes.
De fato, como reflete Gohn (2012, p. 339) é possível
perceber que a tendência que predomina na análise dos
movimentos sociais já parte de várias abordagens oriundas

446 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


de teorias macrossociais e também que priorizam aspectos
micros da vida cotidiana. Ainda sim, omitem a questão te-
órica dos movimentos sociais, como por exemplo, do pró-
prio MPL e a questão dos transportes e da mobilidade ur-
bana permanece uma lacuna. Há de se reafirmar a citação
que destaca os anseios de Gohn acerca da necessidade de
uma teoria que busque uma síntese, com ações e conteúdos
articulados com demais disciplinas. “Diferentes olhares, di-
ferentes ângulos de apreensão dos fatos da realidade: esta
é uma necessidade imperiosa, numa era na qual tudo se
desfaz rapidamente, tudo fica obsoleto em frações de tem-
po muito menores que nossa capacidade de memorização”.
Em relação aos estudos de jornalismo há de destacar
a forte presença das redes e das mídias sociais, com as
quais fica evidente a fragilidade das práticas tradicionais
de jornalismo. É evidente que a rede social oferece fer-
ramentas importantes para o debate público, assim como
a possibilidade de ampliação do espaço democrático. As
informações que emergiram das mídias alternativas
digitais, como a mídia ninja, “constituem uma nova e
poderosa variável que incide sobre as práticas de jor-
nalismo tradicional e sobre a reflexão a respeito de que
novos caminhos o campo deve seguir para manter suas
grandes pretensões históricas nas democracias” (LIMA
e LOOSE, acesso em abril, 2015).
Em sua pesquisa, Thomé (acesso em abril, 2015)
aponta que a importância do jornalismo cidadão e afir-
ma que a crise do jornalismo veio à tona com força to-
tal com um discurso que retoma a questão do mito da
imparcialidade. “O jornalismo cidadão abre possibili-

447 Críticas e Processos Comunicacionais


dades de apresentação de múltiplos olhares, de ângulos
diversos, viabiliza que outros fatos sejam “pescados”,
ampliando a oferta de informação e de versões”.
Assim, retomamos Traquina (2005, p. 2010) acerca
das transformações tecnológicas e pelas novas oportuni-
dades que o ciberespaço pode oferecer para “a existência
dum campo jornalístico que é cada vez mais uma arena
de disputa entre todos os membros da sociedade” (TRA-
QUINA, 2005, p. 210).

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460 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Capítulo 15
1
Aves que não cantam: paralelos entre
a ornitologia e a comunicação

Guilherme Sementili Cardoso1

Introdução
O interesse do homem pela interação entre orga-
nismos é marcante. Desde a origem dos agrupamentos
humanos, a sobrevivência do homem é vinculada à ne-
cessidade de interpretar corretamente os pistas deixadas
fornecidos pelo ambiente. O avanço da tecnologia e da
ciência pode mascarar esta dependência, mas grande
parte das atividades humanas ainda está atrelada aos
ciclos biogeoquímicos mais basais do planeta, como o
regime de chuvas, as estações do ano e a obtenção de
alimento. As primeiras representações pré-históricas da

1. Pós-Graduação em Zoologia, pela Universidade Estadual


Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus Botucatu. gui-
semcar@yahoo.com.br

461
relação entre os animais e homem é relatado nas pintu-
ras e gravuras rupestres. Elas são as representações da
percepção do homem pré-histórico sobre o meio. Mui-
tas delas ilustram as atividades de caça e coleta, essen-
ciais para que tais comunidades prosperassem no con-
texto pré-histórico. Contudo, as constantes mudanças
no contexto das sociedades humanas também exercem
modificações na percepção que os indivíduos inseri-
dos nestes contextos têm acerca das relações entre or-
ganismos. Mais do que isto, os níveis de compreensão
desta relação se modificam junto com as mudanças no
contexto. Da caça realizada pelo homem pré-histórico
às pesquisas em epigenética molecular contemporâne-
as, as premissas básicas de compreensão se mantêm as
mesmas: as relações dos organismos entre e si e com o
ambiente. Por serem pautadas pela visão de mundo hu-
mana, esta relação é estudada e compreendida por um
viés antropocêntrico.
Por estarmos contidos numa esfera de “conhecimen-
to humano”, os “fenômenos não humanos”, que relacio-
nam um conjunto de elementos não humanos entre si
e com o ambiente, são compreendidos por uma visão
antropocêntrica do fenômeno. Como estamos excluídos
do processo, nossa parca compreensão do todo é base-
ada nos fragmentos de contexto sociocultural humano,
o que pode levar a uma apreensão de sentido equivoca-
da. Um processo de comunicação animal, por exemplo,
deve levar em consideração fenômenos físicos, evoluti-
vos, ecológicos, contextuais e econômicos que são en-
tendidos de modo distinto entre os organismos. Muitas

462 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


vezes, esses organismos não se dão conta da complexi-
dade destes fenômenos, já que tal capacidade demanda
um nível de abstração simbólica.
Contudo, é inegável que não podemos abandonar o
“conhecimento humano” para compreender os “fenô-
menos não humanos”. Quando observamos um fenôme-
no natural ocorrer, é crucial que haja uma relação entre
o observador e o fenômeno que atraia a atenção deste. A
partir desta observações e de fenômenos similares, um
observador poderá fazer reflexões e abstrações sobre as
fundamentações e motivações daquele acontecimento.
Desta relação que incialmente é esporádica, o observa-
dor deixa de ser apenas espectador e se torna participan-
te daquela relação.
Os problemas ocorrem a partir do momento em que o
espectador-objeto se torna um replicador do fenômeno.
Também é extremamente natural que, ao passar pelos
filtros de contexto interno dos organismos, um fenôme-
no puro se torne um evento mediado. Cada organismo
vivencia um fenômeno de maneira distinta e o transmite
deste modo, que vai ser compreendido de uma terceira
forma por um outro organismo. Esta corrente de trans-
missão cultural é inata de qualquer organismo social.
Entretanto, em determinado ponto, a “compreensão”
do fenômeno se torna demasiadamente mediada por
inúmeros intermediários. Neste ponto, a “compreensão
do fenômeno” transforma-se no próprio fenômeno e as
suas bases são esquecidas. Neste caso, a aproximação en-
tre o observador e o fenômeno nubla uma construção
de conhecimento mais ampla. Ao nominar, explicar, dia-

463 Críticas e Processos Comunicacionais


gramar e dissecar um “fenômeno não humano” pela óti-
ca do “conhecimento humano”, um novo observador em
potencial estará tão absorto no contexto que sua limita-
da compreensão do fenômeno que se baseará apenas em
observação de terceiros. A partir daí, é necessária uma
nova reflexão sobre toda a construção e, muito provavel-
mente, um retorno ao fenômeno puro.
A Bioacústica Ornitológica sofre com este fenôme-
no. O estudo das vocalizações é uma importante ferra-
menta dentro do estudo da ornitologia, porque as aves
utilizam a comunicação sonora como intermediária de
vários processos vitais, como reprodução, alimentação e
organização social. As ondas sonoras emitidas por um
indivíduo atravessam um meio e são percebidas por re-
ceptores em potencial, que podem agir ou não de acordo
com este sinal. Os processos físicos desde a emissão até
a recepção são bem conhecidos e foram muito pesqui-
sados no decorrer do desenvolvimento da comunicação
ao final do século XX. Contudo, devido às heranças es-
téticas e artísticas, a ornitologia ainda sofre com a “hu-
manização” das aves.
Muito do que se conhece sobre as relação entra as
aves e os homens pré-históricos é derivado das pinturas
rupestres. Registros de diversas civilizações da Antigui-
dade demonstram a relação entre os homens e as aves.
Muitos destes registros se relacionam diretamente com
as atividades diárias de rituais religiosos e de caça. O
simbolismo das aves era representado através de imita-
ções de seus displays e vocalizações, ou através das suas
penas. As crenças, lendas e cerimônias variam de acordo

464 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


com cada cultura, mas geralmente os espíritos das aves
eram invocados para prover força, sabedoria, cura aos
doentes, fertilidade, alimentos e chuva. Alguns povos
associavam a mudança das estações aos padrões migra-
tórios das aves, onde estas comunidades acreditavam
que as aves eram capazes de controlar o tempo, trazendo
chuvas. Outro aspecto importante imitado por algumas
culturas tradicionais era o elaborado cortejo exibido por
algumas espécies de aves. Nestas imitações, os padrões
de display e de vocalizações das aves estavam sempre as-
sociados aos rituais e cerimônias importantes, associa-
dos à fertilidade e à reprodução humana.
Contudo, foi com Aristóteles (384-322 a.C.), na obra
Historia Animalium, que as primeiras abordagens cien-
tíficas foram realizadas, com a classificação das aves por
caráteres etológicos, morfológicos e ecológicos. Com o
decorrer da Idade Média, outros autores, como Plinio,
d’Arborea e Tardiff, tentaram propor sistemas semelhantes
ao aristotélico para classificar as aves. Grande parte dos co-
nhecimentos sobre comportamento das aves é devido ao
desenvolvimento das atividades de falcoaria durante o im-
pério mongol de Gengis Khan (MASI, 2007). Para realizar
a caça com falcões, os criadores e caçadores precisavam
conhecer a biologia das aves, tanto das raptoras quanto das
presas. Estas atividades de observação começaram a ser
difundidas, não só através do império mongol, como tam-
bém através da Europa, principalmente através do tratado
De arte venandi cum avibus (“A arte de caçar com aves”)
formulado por Frederico II da Germânia, imperador do
Sacro Império Romano-Germânico. Mais do que um sim-

465 Críticas e Processos Comunicacionais


ples manual de falcoaria, o tratado realiza importantes ob-
servações fisiológicas, etológicas e ecológicas sobre aves.
Posteriormente, estudos científicos e sistemáticos dentro
da ornitologia foram difundidos durante o Renascimento,
com as publicações das observações de Willian Turner, re-
alizando uma revisão das obras de Aristóteles e Plínio. No
século XVIII, a ornitologia se difundiu como ciência, fa-
zendo com que as pesquisas ganhassem ampla divulgação
na comunidade científica emergente da época.
Apesar da ornitologia estar sedimentada como ci-
ência, a bioacústica emergiu como ciência a partir do
final da Primeira Guerra Mundial. As técnicas de trans-
missão e armazenamento sonoro foram desenvolvidas a
partir da indústria de inteligência e espionagem. Ante-
riormente, as aproximações entre a ciência e o som das
aves ocorria através de um intermediário: a música. As
similaridades estéticas entre a vocalização de uma ave e
uma melodia musical são marcantes. Mais do que isso,
durante séculos, a relação afetiva e sentimental entre as
vocalizações e as atividades humanas foi estreitada pela
produção dos compositores da época. Numa das obras
mais expressivas da renascença francesa, Clément Ja-
nequin (1485-1558) utiliza figuras onomatopaicas para
imitar as vocalizações de aves através do canto coral.
Nesta peça, denominada Les chant des oyseaux (“O can-
to das aves”), características ecológicas e comportamen-
tais das aves são comparadas às ações humanas, como,
por exemplo, no caso do parasitismo de ninho executa-
do pelo cuco-canoro (Cuculus canorus), que na obra é
associado à traição e à enganação humana.

466 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


O estudo das vocalizações das aves também passou
por tal aproximação entre a música e as aves. O principal
obstáculo dentro desta disciplina é o modo de descrever
o som. Muitas das técnicas de manipulação sonora sur-
giram apenas no século XX. As primeiras tentativas de
descrição de vocalizações das aves foram as imitações
através de onomatopeias. As diferentes espécies eram
reconhecidas de acordo com sua vocalização, as quais
eram atribuídas determinadas onomatopeias que me-
lhor transcreviam o som. Contudo, a oralidade e a subje-
tividade deste método dificultavam a validade científica
das observações. Muitas destas onomatopeias variavam
de acordo com o sistema linguístico empregado pelas
comunidades. Deste modo, as vocalizações tinham dife-
rentes representações em várias comunidades.
O padre jesuíta alemão Athanasius Kircher (1602-
1680), em seu tratado Musurgia Universalis, estabelece
sua visão sobre a música. Ele acreditava que a harmo-
nia musical refletia as proporções do universo. Deste
modo, ao sistematizar a visão da música, ele buscava
um meio de mensurar o universo. O “canto” das aves,
por representar a música da natureza, também poderia
ser quantificada e seguir uma notação musical. Deste
modo, ele tentou transcrever as vocalizações de aves em
notas musicais nos padrões da época. Outras tentativas
modernas de notação musical aplicada ao “canto” das
aves são expressivas, principalmente na obra do com-
positor francês Olivier Messiaen (1908-1992). O com-
positor e ornitólogo não só transcreveu as vocalizações
de aves para o sistema de notação musical contemporâ-

467 Críticas e Processos Comunicacionais


neo, como também aplicou estas notações em diversas
obras, como “Oiseaux exotiques” e “Quatuor pour la Fin
du Temps”. Outras notações distintas foram propostas,
como nos trabalhos de Aretas Saunder (1884-1970),
onde linhas verticais e horizontais representavam a du-
ração, o tom e o volume de cada elemento constituinte
da vocalização. Atualmente, a representação dos sons
animais ocorre através de sistemas gráficos, onde as ca-
racterísticas acústicas de frequência, amplitude e tempo
são representadas. As ferramentas mais conhecidas são
os espectrogramas, sonogramas e osciligramas. Estes
gráficos permitem que as variáveis bioacústicas das vo-
calizações sejam quantificadas, gerando dados que pos-
sam ser analisados empiricamente.
Devido ao apelo estético visual e sonoro, as aves são
associadas a ideais de liberdade, beleza e amor. Gran-
de parte desta sensibilidade ocorre pela proximidade
afetiva que o canto das aves desperta nos seres hu-
manos. O desenvolvimento da ciência da ornitologia
iniciou-se com a relação das aves com o cotidiano dos
seres humanos. Esta proximidade e afetividade, con-
tudo, foi sendo substituída por um estudo mais siste-
mático e empírico, que forneceu conhecimentos im-
portantes sobre outros aspectos da vida das aves, até
então desconhecidos por falta de estudos. Contudo, a
aplicação da notação, dos sistemas e, principalmente,
da nomenclatura musical não se mostra viável dentro
dos estudos em bioacústica ornitológica, já que pode
levar a uma interpretação equivocada dos fenômenos
de comunicação sonora das aves.

468 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Por isso busca-se uma alternativa viável à utilização
de parâmetros musicais (carregados de simbolismos es-
téticos e afetivos) para designar os processos de comu-
nicação das aves. O principal foco da discussão será um
único termo: a palavra “canto”. Será que as aves realmente
produzem “cantos”? Quais as implicações de afirmar que
uma ave “canta”? Quando uma ave “canta”, estaria ela pro-
duzindo o mesmo fenômeno que um ser humano? Para
iniciar esta discussão, discutiremos o que é um “canto”.

O problema da definição
O substantivo “canto” pode ser definido da seguin-
te maneira:

“canto. [Do lat. cantu] S. m. 1. Som musical


produzido pela voz do homem ou de outro
animal. [...]. 2. Música vocal. 3. Poesia lírica;
canção. [...] 5. Mus. Melodia principal de uma
composição, geralmente no registro agudo. 6.
Mus. Título geral dado a composições (vocais
ou instrumentais) sem forma determinada.
[...].” (FERREIRA, 2009, p. 390).

Tal definição, extraída de um dicionário clássico da


língua portuguesa, faz ressalvas importantes sobre a na-
tureza do substantivo “cantar”. As definições são todas
vinculadas aos preceitos musicais. A terminologia utili-
zada (“composição”, “música vocal” e “registro agudo”)

469 Críticas e Processos Comunicacionais


é importada do estudo da música estrutural. A primeira
definição é a que mais se aproxima de uma perspectiva
animal, onde afirma-se que é o canto é um “[...] som mu-
sical produzido pela voz do homem ou do animal [...]”.
Esta sentença levanta uma série de questionamentos que
serão abordados posteriormente.
Considera-se, para todos efeitos de tradução, que
o termo “canto” é equivalente ao termo “song”. Deste
modo, este último termo também é dotado de um sim-
bolismo musical indissociável do significado real. De-
signar que a vocalização de uma ave é “canto” ou “song”
é atribuir os mesmos simbolismos musicais à comuni-
cação das aves. Definições mais aplicadas à ornitologia
podem ser encontradas em diversas publicações especí-
ficas para vocalizações de aves.

“In general, ‘songs’ tend to be long, complex,


vocalisations produced by males in the breeding
season. Song also appears to occur spontane-
ously and is often produced in long spells with a
characteristic diurnal rhythm. But to these fea-
tures there are innumerable exceptions. How-
ever as far as complexity is concerned, it is not
easy to generalise and […] species differ enor-
mously in how varied their songs are”. (CATCH-
POLE & SLATER, 2008, p. 8).

Este trecho, retirado da publicação “Bird Song”, já


aborda algumas das deficiências da terminologia “song”.
O autor evita os simbolismos musicais do termo ao afir-
mar que “songs” são produzidos por machos na estação

470 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


reprodutiva. Deste modo, ele se evade de alguns proble-
mas de significado ao transportar o termo da área musi-
cal para a comunicação de aves. Contudo, é importante
salientar que mesmo assim, “song” é um termo vago e
restrito, já que é produzido por machos na estação repro-
dutiva através de longas emissões em ritmos diurnos. Para
cada uma destas condições estreitas, existem inúmeras
exceções. Ao estabelecer este parâmetro, fica claro que
apenas aves de regiões temperadas produzem “songs”, já
que muitas aves Neotropicais não se enquadram em ne-
nhum destes parâmetros. Estas exceções são abordadas
ao final da consideração. O autor assume uma postura
mais comedida ao afirmar que “is not easy to generalise
and […] species differ enormously in how varied their
songs are”. Entretanto, mais uma vez, ele utiliza o termo
“song”, mesmo definindo-o de modo obscuro.
Outros autores abordam a temática de modo explíci-
to e se posicionam claramente.

“A traditional distinction exists between ‘songs’


and ‘calls’. The term ‘song’ refers primarily to the
loud, often long, vocal display of territorial male
birds. Specific, repeated patterns are often pleas-
ing to the human ear. The term ‘call’ connotes
short and simple vocalization, usually given by
either sex. […]. There is, however, no real di-
chotomy between songs and calls in their acous-
tical structure, delivery, physiology, develop-
ment, function and taxonomy. […] Despite the
lack of a single accepted definition, we continue
to use the term song because it is so entrenched

471 Críticas e Processos Comunicacionais


and because we lack better alternatives.” (GILL,
2007, p. 217-218).

Ao definir o que é “song”, o autor se vale das mesmas


prerrogativas abordadas por Catchpole e Slater anterior-
mente. Contudo, ele adiciona um elemento estético que
vem pautando as discussões dentro da área da bioacús-
tica ornitológica. Ao afirmar que “[…] Specific, repeated
patterns are often pleasing to the human ear […]”, o au-
tor retoma as discussões sobre a relação entre o homem
e natureza intermediados por padrões estéticos. Neste
caso, uma das condições para que uma ave produza
um “song” é que este seja algo aprazível, que ressoe de
modo agradável aos ouvidos de um receptor. Pode-se
questionar qual o real papel da percepção estética de um
“song” na comunicação de aves. O fato de um som ser
agradável é realmente relevante na escolha do receptor
para receber uma mensagem? Se observarmos pelo viés
antropocêntrico, fica claro que o reconhecimento entre
o receptor e o emissor pode ser influenciado pelos pa-
drões estéticos. Contudo, tal abstração é cabível na co-
municação animal? Um conceito de “song” ou “canto”,
que apresenta restrições e exceções, e que também tem
suas bases nas percepções subjetivas e estéticas indivi-
duais não é viável em tal situação.
Este trecho ainda demonstra uma dicotomia assumi-
da entre “songs” e “calls”. “Song” corresponderia a um
tipo de vocalização específica, enquanto “call” seria uma
vocalização mais simples, curta e executada por ambos os
sexos. Contudo, não é especificado o que é considerado

472 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


simples ou curto neste caso. Além disso, a emissão de
vocalizações por ambos os sexos também pode ocorrer
nos “cantos”, fato comum em espécies Neotropicais. Esta
divisão incerta é explorada pelo autor no seguinte trecho:
“[...] There is, however, no real dichotomy between songs
and calls in their acoustical structure, delivery, physiol-
ogy, development, function and taxonomy [...]”. Assim, a
classificação de uma vocalização em “canto/chamado” ou
“song/call” se mostra artificial, já que estrutural e contex-
tualmente, ambas as vocalizações são idênticas.
Então, qual a justificativa para a utilização desta ter-
minologia subjetiva e restritiva? O próprio autor dá ideia
de que seu uso é devido às convenções históricas: “[...]
we continue to use the term song because it is so en-
trenched and because we lack better alternatives.” Deste
modo, o uso do termo é justificável apenas pela tradição
histórica e musical. A fundamentação científica por trás
do termo é substituída por características subjetivas de
percepção sensorial e aproximação afetiva.

Música animal?
Para continuarmos a discussão, é preciso abordar a
comunicação vocal dos animais com maior profundida-
de. Peter Marler, etólogo norte-americano, em seu tex-
to “Origins of Music and Speech: Insights from Animals”
(2000) revisa os principais tópicos atuais dentro do es-
tudo da comunicação simbólica e afetiva nos animais.

473 Críticas e Processos Comunicacionais


Para o autor, animais só podem apresentar um sistema
de comunicação simbólico se o sinal for codificado e de-
codificado de um modo não icônico tanto para emissor
quanto para o receptor.
Estudos sobre a vocalização de primatas demonstram
que em situações de perigo, os indivíduos em guarda
emitem um sinal adequado para cada tipo de predador.
Ao adentrarem na savana, os primatas ficam sujeitos a
uma grande variedade de predadores. Deste modo, di-
ferentes sinais desencadeiam diferentes respostas ecoló-
gicas no grupo. Caso o sinal seja específico para preda-
dores que voam, os macacos escondem-se em arbustos
e começam a procurar o predador no céu. Se o sinal for
específico para felinos, os animais se escondem na copa
das árvores mais próximas. Isto é um indicativo de que
cada sinal tem seu significado distinto, mesmo sendo
produzidos pelo mesmo mecanismo e em contextos si-
milares (CHEYNEY & SEYFARTH, 1990). Estas espé-
cies de animais apresentam classes de sinais distintos
que desencadeiam ações físicas e não icônicas em outros
indivíduos. Algo similar ocorre com as aves, onde uma
mesma classe de sinais (emissões vocais) pode funcionar
de modo referencial para os indivíduos. As aves emitem
vocalizações de alerta sobre fontes de alimento que não
indicam apenas a localização, mas sobre a quantidade e
a qualidade do alimento.
Para o autor, tais sinais só constituem uma linguagem
se forem compostos de sentenças. Para que estas senten-
ças sejam construídas, é necessária uma dupla organiza-
ção temporal dos seus constituintes. Estes dois níveis de

474 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


organização sintática são denominados “sintaxe fonoló-
gica” e “sintaxe lexical”. A sintaxe fonológica tem como
base a recombinação de elementos estruturais (e.g. fone-
mas) em diferentes sequências (e.g. palavras), onde cada
componente não apresenta significado sozinho. Já uma
sintaxe lexical é uma recombinação destas sequências
em diferentes ordens (e.g. sentenças), onde o significado
reside em dois níveis. Os significados da sentença final
dependem não apenas dos elementos, mas também da
organização destes elementos na sentença.
Marler afirma que atualmente não há registros de
animais que satisfazem completamente os critérios de
uma sintaxe lexical. Na comunicação animal, não exis-
tem exemplos de espécies que possuam a capacidade de
criar sequências combinando diferentes elementos sim-
bólicos em sentenças com novos significados. Contudo,
há casos de sintaxe fonológica, onde os sinais são dota-
dos de conteúdo afetivo mas sem significado simbólico.
O caso mais comum é do repertório em aves, onde uma
ave pode apresentar diversos tipos de vocalização modi-
ficando a sintaxe fonológica dos elementos componen-
tes de suas vocalizações. Estes repertórios são ampliados
através da utilização das mesmas estruturas acústicas
(também denominadas “elementos” ou “notas”), porém
em sequências diferentes. Estas “notas” não apresentam
sentido sozinhas, mas quando agrupadas, formam uma
sentença dotada de significado para as aves. Contudo,
ao se traçar paralelos entre este tipo de sintaxe e a lexi-
cal, observa-se que diferentes combinações das mesmas
notas ainda sim apresentam a mesma mensagem básica.

475 Críticas e Processos Comunicacionais


Deste modo, apesar de emergir uma combinação de no-
tas nova, esta não constitui uma sentença com significa-
do simbólico diferente das anteriores.
Estudos com aves do gênero Poecille (conhecidas
como “chickadee”) demonstram como a sintaxe fonoló-
gica é estruturada durante o desenvolvimento do indi-
víduo. (HAILMAN ET AL., 1985). O repertório desta
ave consiste em recombinações do mesmo conjunto de
componentes em diferentes formas. Cada macho apre-
senta um repertório que varia de cinco a dez vocaliza-
ções distintas. A análise destas vocalizações revela que
elas compartilham um conjunto de elementos compo-
nentes, mas que são arranjados de maneiras distintas.
Quando um jovem macho inicia a fase de aprendizado,
ele ouve e aprende diferentes conjuntos de vocalizações
dos adultos. Em fases posteriores do desenvolvimento,
ele fragmenta essas estruturas complexas em elementos
mais simples. Assim, a ave adulta rearranja este conjunto
prévio de elementos em novas vocalizações.
Marler ainda ressalta que a composição de uma
vocalização deste tipo remonta a evolução da própria
linguagem humana. A criação de um vasto repertório
depende dos mesmos mecanismos de produção de um
léxico. A reestruturação dos elementos de comunica-
ção em uma ave (denominados “notas”) para a criação
de uma sinal significativo (denominado vocalização) é
muito semelhante aos processos primitivos da recom-
binação de fonemas para criação de palavras. Contudo,
a semelhança termina no momento em que as diferen-
tes sequências de vocalizações de aves não apresentam

476 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


diferentes significados. Elas são ricas em conteúdo afe-
tivo, mas ainda não apresentam o conteúdo simbólico
característico da linguagem humana.
Os princípios ontogenéticos do desenvolvimento do
repertório aprendido das aves são muito parecidos com
os processos criativos de produção musical. Neste pon-
to, Marler ressalta que as semelhanças das vocalizações
das aves com os padrões musicais humanos são maiores
até que aquelas produzidas por outros primatas. Ao se
comparar vocalizações de aves e primatas superiores,
observa-se que a semelhança entre as duas é grande.
Ambas são sinais não simbólicos, ricos em conteúdo
afetivo, altamente individualistas, limitadas pela sintaxe
fonológica. Contudo, a complexidade estrutural acústi-
ca das aves, somada à capacidade de ampliação e criação
de um repertório conferem aos sinais vocais das aves
uma proximidade grande com as composições musicais
humanas. As aves, ao reestruturarem suas “notas” em
vocalizações distintas, apresentam marcas de proces-
so criativo muito semelhantes àquelas produzidas por
humanos. As vocalizações apresentam uma ordem cla-
ra e não randômica, passíveis de transmissão cultural
através de gerações por aprendizado. Contudo, outros
paralelos entre a vocalização de aves e a música ainda
se mostram obscuros. A questão da apreciação estética
ainda é muito forte dentro da música. O próprio autor
cita que ainda são necessários maiores estudos, e que
o modo como as aves percebem uma emissão sonora
pode ser muito semelhante aos dos seres humanos (in-
clusive com indícios de apreciação estética).

477 Críticas e Processos Comunicacionais


Mas a principal questão ainda permanece aberta:
as aves produzem música? O ornitólogo Peter J. Sla-
ter (2000) afirma que esta questão é mais complexa do
que se imagina. É conhecido que muitos animais apre-
sentam emissões sonoras rítmicas e tonais. Os meca-
nismos físicos de produção e conservação de energia
durante a transmissão ambiental justificam a existên-
cia destes padrões acústicos na natureza. A seleção se-
xual também surge como fator de seleção importan-
te na evolução de padrões complexos e intrincados
de vocalização. Em ambientes como florestas, onde a
comunicação acústica é importante, a competição na
transmissão sonora é crucial, o que justifica a pressão
seletiva para que novos padrões espectrais e temporais
se desenvolvam no decorrer evolutivo.
Sendo assim, fica claro que os padrões de complexi-
dade tonal e rítmica são justificáveis em um ponto de
vista evolutivo. No entanto, devemos levar em conside-
ração a diversidade de espécies. Existem cerca de 4000
espécies de pássaros que apresentam um canto apren-
dido (também denominados Passeriformes Oscines).
Tendo em vista esta grande variedade de aves que são
passíveis de transmissão cultural, Slater afirma que é
muito provável que o surgimento de aves que vocalizem
utilizando sistemas que são semelhantes às escalas mu-
sicais humanas (e.g. uirapuru-verdadeiro, Cyphorhinus
arada, em DOOLITTLE & BRUMM, 2012) é produto
de uma convergência evolutiva, e não de um ancestral
comum entre aves e seres humanos.

478 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Evolução Musical
Apesar de aves não possuírem um sistema simbólico
de produção musical, ainda sim suas vocalizações são
complexas o suficiente para levantar questionamen-
tos sobre suas semelhanças com a música. Como dito
anteriormente, aves possuem sistemas de vocalizações
que compartilham elementos (como tonalidade, ritmo
e afetividade) comuns à música. Deste modo, em algum
ponto da história evolutiva humana, os sistemas primi-
tivos de comunicação em primatas se modificou em um
sistema simbólico de produção abstrata de sentido. Jean
Molino (2000), em seu texto “Toward an Evolutionary
Theory of Music and Language”, aborda uma ideia pro-
missora: a música não é derivada da linguagem, mas sim
tem raízes comuns em novas formas de comunicação
que surgiram na evolução dos hominídeos.
Para desenvolver suas ideias, Molino retoma a dico-
tomia evolutiva entre Lamarck e Darwin. Ele conceitua
evolução como um processo dependente da replicação
de uma variação populacional. Deste modo, tal varia-
ção deve ser selecionada por um agente que, através do
isolamento das populações variantes, vai manter estável
tal caráter variável. Já a evolução cultural tem aspectos
distintos de uma evolução biológica. Molino se apoia
na definição de Durham sobre a “cultura”, onde estas
seriam sistemas de fenômenos conceituais codificados
simbolicamente que são transmitidos social e histori-
camente dentro e entre populações. Deste modo, um
novo sistema de heranças pode ser adicionado no siste-

479 Críticas e Processos Comunicacionais


ma de herança genética para determinar as caracterís-
ticas de um ser vivo. Este novo sistema é parcialmente
dependente de um sistema genético, já que está sujeito
às mesmas leis de mudança manifestadas na evolução
biológica. Contudo, segundo Molino, um sistema cul-
tural se diferencia de um sistema genético em duas ca-
racterísticas principais. Primeiramente, uma evolução
cultural é dotada de mecanismos Lamarckistas. A evo-
lução em sentido biológico é não regida pela herança
de caracteres adquiridos, enquanto uma evolução em
sentido cultural permite que uma informação adqui-
rida por uma geração seja transmitida para a próxima
de modo completo. Outra diferença entre os sistemas
é que modificações no genótipo só ocorrem de modo
randômico. Não existe nenhum direcionamento evo-
lutivo dentro de processos biológicos. O que ocorre é
uma seleção dos caracteres pelas forças de seleção im-
posta pelo ambiente sobre determinada característica
variável. Já uma evolução cultural, apesar de poder
ocorrer de modo aleatório, apresenta mecanismos di-
recionados ao contexto em que surgem, se desenvol-
vendo para solucionar problemas de maneira direta.
A música como conhecemos atualmente em toda a
sua pluralidade é muito complexa para surgir de um úni-
co evento histórico na evolução cultural. Deste modo,
o termo “música” é uma generalização para as diversas
práticas rítmicas, melódicas, simbólicas e afetivas que
compõem um conjunto de práticas surgidas pela evo-
lução cultural. Por isso não podemos considerar música
um “gênero natural”. Não existe uma “música” por si só.

480 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Ela é um conjunto de capacidades motoras e cognitivas
que convergiram para a produção de um gênero cultu-
ral. Neste ponto, Molino abandona a ideia de música
como aquela concebida pelos moldes dos grandes clás-
sicos da música europeia ocidental já que se distancia
dos fundamentos antropológicos da música humana em
geral. Do mesmo modo, uma linguagem que tenha sur-
gido através de uma sintaxe lexical simbólica não pode
ser considerada um gênero natural pois não evoluiu
exclusivamente de uma raiz filogenética conjunta, mas
sim de práticas e processos culturais ortogenéticos que
convergiram pela necessidade cultural gerada por uma
evolução dirigida.
Dentro dos componentes comuns entre as constru-
ções culturais da música e da linguagem, o autor ressal-
ta a importância da aproximação afetiva, já que é o elo
entre a representação semântica abstrata e as respostas
cognitivas neurais. A afetividade intervém na forma em
que a resposta será emitida. O poder emotivo encontra-
do na linguagem e na música está associado a uma raiz
comum no sistema nervoso humano. Assim sendo, fica
claro que a música e a linguagem dependem dos mesmos
mecanismos para serem difundidos na espécie humana.
Por compartilharem muitas características, é pro-
vável que a música e a linguagem tenha uma raiz em
comum. Não é certo se a coordenação dos módulos
neurais necessários para a execução evoluíram de uma
única origem, mas muito provavelmente tiveram origem
a partir de atividades de movimentação cinética (como
a atividade de lançar), já que estas demandam uma “sin-

481 Críticas e Processos Comunicacionais


taxe geral”, onde diversos elementos são combinados
em sequências a fim de atingir determinado objetivo.
Esta atividade contribuiu no para o desenvolvimento
do controle muscular e neural dos movimentos corpo-
rais, exercido pelo córtex cerebral. Deste modo, ativida-
des que demandam uma sintaxe dependente de ritmo,
como a linguagem e a música, seriam beneficiadas por
este refinamento na coordenação de movimentos, prin-
cipalmente em porções como a musculatura associada
à laringe e aos movimentos faciais. Esta evolução nas
capacidades rítmicas musculares e neurais foi a grande
precursora da organização temporal de atividades abs-
tratas, já que os módulos rítmicos são a fundamentação
de qualquer tipo de sintaxe.
Outro fator crucial no desenvolvimento da lingua-
gem e da música é a aprendizagem. Molino cita as pes-
quisas de Piaget e Wallon sobre a imitação de crianças
e sua influência na ontogenia de certas potencialidades
humanas. Diversos níveis de compreensão sobre a imi-
tação e o aprendizado devem ser considerados. Num
nível primordial, “imitação” pode se referir ao “mi-
metismo” ou “atividade de mímica”. Este que é um ato
reflexo de reprodução de uma imagem. Um segundo
nível corresponderia a uma “imitação” em senso estri-
to, onde algum nível de abstração seria incluído neste
ato reflexo. Num terceiro nível, o ato de reflexo seria
reproduzido na ausência de modelos, o que constitui-
ria uma representação, e não apenas uma imitação. A
evolução de uma cultura dotada de representações sim-
bólicas e abstratas teria que passar por estes estágios,

482 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


devido à necessidade do símbolo para o coletivo. Neste
ponto, o intuito não é simplesmente “imitar algo” mas
sim “imitar para alguém”. Desta necessidade, surge o
que Piaget denomina função simbólica, que consiste
na habilidade de representar algo através de diferentes
significantes para atingir esta representação. Esta seria
uma origem de uma protolinguagem, onde as cenas do
contexto cotidiano daqueles indivíduos seriam repre-
sentadas simbolicamente a partir da imitação. A música
e a linguagem, então, teriam emergido de processos de
representações da abstração simbólica e de processos
refinados de controle neural e muscular. A combinação
destes dois fenômenos evolutivos paralelos é a grande
chave para a evolução da música. Um indivíduo capaz
de reproduzir símbolos, no intuito de melhorar sua re-
presentação sobre algo, tentaria aperfeiçoar o controle
sobre seus movimentos, através da divisão de um movi-
mento contínuo em frações mais simples.
Esta é uma teoria para explicar a origem da sin-
taxe combinatória aplicada aos símbolos abstratos,
presentes na música e na linguagem humana. A cul-
tura mimética se resume à transmissão desses sím-
bolos por meio de ensino e aprendizagem, criando
uma forma efetiva e transformadora de evolução
cultural. Para transportar esta abordagem para a co-
municação das aves, realizaremos uma comparação
dos tópicos apresentados com a ideia de comunica-
ção mediada por gestos.

483 Críticas e Processos Comunicacionais


A vocalização como gesto
Já foram discutidas as premissas básicas da música:
uma construção cultural dotada de articulação sintática
em nível simbólico, apresentando também um forte ape-
lo afetivo (traduzido em termos de reconhecimento es-
tético). Contudo, a questão da vocalização de aves como
música só pode ser finalizada se discutirmos qual o valor
da vocalização para uma ave para os seres humanos. A
compilação de ideias de George H. Mead na obra “Mind,
Self and Society: from the Standpoint of a Social Behavio-
rist” traz o conceito de “gesto”, importante para a com-
preensão do desenvolvimento dos símbolos nos animais.
Mead estabelece o “gesto” como o ponto de partida da
interação social. Na sua compreensão, a interação me-
diada por gestos é o ponto de partida para a evolução de
uma linguagem. Um gesto corresponderia a um estímulo
a outros indivíduos dentro de um mesmo contexto so-
cial. A partir da “conversação de gestos”, indivíduos de-
flagram ações e respostas uns nos outros. Um indivíduo
emite um gesto com significado simples e único dentro
do contexto. Isto faz com que o receptor internalize este
gesto e emita um outro em resposta ao primeiro. Deste
modo, cria-se uma relação tríplice, onde relacionam-se
o gesto de um emissor, a resposta de um receptor e o fe-
edback recebido pelo emissor. Contudo, esta interação
mediada por gestos não pode ser confundida com uma
linguagem articulada, porque apesar de haver uma ação
comunicativa, ela não é participativa. Os indivíduos que
interagem através de gestos não compartilham símbolos.

484 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Um emissor, ao emitir um gesto, espera uma resposta
gestual de um receptor, mas não age em torno de seu pró-
prio gesto. De um mesmo modo, um receptor emite um
gesto ajustado para o emissor, mas não responde à sua
própria resposta. Para Mead, é na internalização dos ges-
tos que surge o potencial semântico de uma linguagem,
já que as interações mediadas por gestos começam a se
tornar disponíveis em níveis simbólicos.
A relações estabelecidas entre as trocas de gestos são
cruciais para este significado simbólico. Segundo Ha-
bermas (2009), um gesto só adquire valor simbólico
quando os significados deste deixam de valer apenas
para um indivíduo e se tornam disponíveis para todos
os integrantes da interação. Posteriormente, a participa-
ção dos indivíduos faz com que o seu comportamento
se modifique: de uma relação entre estímulo e reação,
os indivíduos passam a interagir de modo interpessoal,
onde ambos se relacionam por meio de uma intenção
comunicativa. Um gesto, então, diferiria do símbolo na
maneira que é exposto na interação. Se é gesto, não pas-
sa de um reflexo das ações. Se é símbolo, é interioriza-
do, apropriado e representado de uma maneira distinta,
onde um indivíduo se relaciona tanto com o tema ex-
posto quanto com os componentes da ação comunica-
tiva. Não se trata de puro reflexo, mas sim de símbolos
que emergem numa relação social intersubjetiva.
O gesto vocal tem uma importância diferenciada dos
outros tipos de gestos. Por depender do som, a vocali-
zação se propaga por um ambiente e envolve todos os
que estão dentro de seu alcance. Isto inclui o próprio

485 Críticas e Processos Comunicacionais


emissor. Assim, um indivíduo pode modular as caracte-
rísticas de sua expressão se ouve a si mesmo e relaciona
a maneira como tal gesto foi recebido por outros. Este
gesto vocal dotado de significado tanto para um emissor
quanto para um receptor é dotado de simbolismos para
os elementos da interação. Quando analisamos a ativida-
de vocal de aves, entretanto, não é possível afirmar que
este nível simbólico é atingido. Mesmo em aves de canto
aprendido, onde a influência do feedback auditivo é im-
portante, a vocalização se restringe a um reflexo, não a
uma representação simbólica. Mead cita o exemplo de
um pardal que imita a vocalização de um canário quan-
do o ouve. Se o pardal utiliza os elementos vocais do
canário, ele está apenas refletindo o gesto que recebeu.
O pardal enfatizará as respostas vocais a estes elemen-
tos quando o canário emitir um gesto semelhante. Este
comportamento exibido pelo pardal se tornará mais fre-
quente se ele continuar a ouvir a vocalização do canário.
Apesar do gesto emitido por ambos ter uma estrutura
muito, o pardal não está executando o papel de canário,
pois o significado de seu gesto não é compartilhado de
modo simbólico entre os dois. O pardal aprende e in-
corpora este gesto vocal em seu repertório, mas ele não
é compartilhado pelo canário. Mead também discute os
gestos vocais nas relações intraespecíficas das aves. Se-
gundo o autor, o estímulo vocal produzido influencia o
próprio indivíduo a ajustar este gesto. A resposta é pro-
duzida não só no receptor, mas também no emissor. Se
este gesto enfatiza determinada resposta, ele não vai ser
apenas enfatizado pelas respostas dos receptores, mas

486 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


também pelo próprio emissor. Nestes casos, os sons que
são emitidos servem de estímulo para a produção de no-
vos sons. A vocalização de uma ave, portanto, não confi-
gura um símbolo abstrato pois, mesmo quando aprendi-
do e reproduzido, a ave vocaliza para outras, e não para
si mesma. A relação com o gesto vocal é direcionada
apenas para terceiros. Um símbolo precisa ter influên-
cia tanto para outros indivíduos quanto para si próprio,
numa relação de comunicação interpessoal.

Conclusão
Afirmar que “aves não cantam” é difícil, já que a tra-
dição histórica aproxima a música humana e a comuni-
cação animal. Durante séculos, o apelo estético das aves,
com suas plumagens exuberantes e suas vocalizações
melodiosas, foi justamente o fator que impulsionou as
pesquisas científicas e permitiu que os conhecimentos
básicos acerca da biologia destes animais fossem desven-
dados. Todavia, não há mais necessidade de se pautar o
conhecimento científico em bases estéticas e subjetivas.
Ao dizer que uma ave “canta”, um pesquisador deve estar
ciente de todo o simbolismo por trás do termo. Como foi
discutido aqui, ainda não há provas conclusivas de que
aves são capazes de produzir sentenças que apresentem
uma sintaxe lexical típica das composições humanas.
Ainda que algumas delas vocalizem em padrões seme-
lhantes ao modos tonais e rítmicos da música humana, a

487 Críticas e Processos Comunicacionais


mensagem passada por suas vocalizações ainda não atin-
ge um nível simbólico abstrato que permita comparar a
evolução deste “canto” das aves com a música humana.
Sendo assim, a vocalização de uma ave, mesmo em toda
a sua complexidade, ainda constitui um gesto, onde a re-
lação se dá através de uma troca de sinais e de respostas.
Para considerá-la música, ela deveria se encaixar em um
contexto social e cultural onde a troca de sinais entre os
componentes possuísse um conteúdo que afetasse não
somente aos receptores potenciais mas também ao emis-
sor, criando um vínculo interpessoal dotado de significa-
do e afetividade. Quando observa-se as aves na natureza
(mesmo as que apresentam uma estrutura social), não
encontra-se evidências de que uma evolução cultural di-
rigida que tenha surgido desta organização.
Mesmo quando especialistas se referem aos gestos
vocais das aves como “cantos”, ainda não existe um con-
senso. As definições são pontuadas com imprecisões e
exceções que as tornam infundadas e subjetivas. Dizer
que um único tipo de vocalização é o “canto da espé-
cie” implica em valorizar excessivamente um gesto em
detrimento de outros, que podem estar relacionados
aos mesmos contextos que estes denominados “cantos
específicos”. Quando um pesquisador realiza um levan-
tamento de repertório vocal de aves em banco de dados
específicos, não é raro ele encontrar uma amostra muito
abundante de apenas um tipo de vocalização, enquan-
to outras são restritas a poucas dezenas de arquivos, ou
até mesmo negligenciadas. E o que determina o valor de
importância de uma vocalização não é a sua relevância

488 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


científica, e sim, infelizmente, princípios estéticos de
beleza e harmonia. O reconhecimento e a aproximação
afetiva são importantes para a conservação de aves e o
desenvolvimento das pesquisas em ornitologia. Contu-
do, as abordagens românticas de apreciação naturalista
devem ser empregadas com cautela, pois estamos per-
dendo dados importantes sobre a comunicação de aves
em função deste romantismo.

Referências
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logical Themes and Variations. 2ª Ed. Cambridge: Cam-
bridge University Press, 2008, p. 8.
CHENEY, D. L.; SEYFARTH, R. M. How monkeys see
the world: inside the mind of another species. 1ª ed.
Chicago: Chicago University Press, 1990.
DOOLITTLE, E.; BRUMM, H. O canto do uirapuru:
Consonant interval and patterns in the song of the mu-
sician. Journal of Interdisciplinary Music Studies, v. 6,
n. 1, p. 55-85, 2012.
FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário da língua por-
tuguesa. 4ª ed. Curitiba: Ed. Positivo, 2009, p. 390.
GILL, F. Vocalizations. In:______. Ornithology. 3ª
ed.  Nova Iorque: W. H. Freeman and Company, 2007.
p 217-218.

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HAILMAN, J. P., FICKEN, M. S. & FICKEN, R. W. The
‘chick‐a‐dee’ calls of Parus atricapillus: a recombinant
system of animal communication compared with writ-
ten English. Semiotica , v. 56, n. 1, p. 191–224, 1985.
HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo. Vol. 2:
sobre a crítica da razão funcionalista. 1ª ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 6-79.
MARLER, P. Origins of music and speech: insights
from animals. In: WALLIN, N. L.; MERKER, B.; BRO-
WN, S. The origins of music. 1ª ed. Massachusetts:
MIT Press, 2000, p. 31-47.
MEAD, G. H. Mind, self and society: from the stan-
dpoint of a social behaviorist. 1ª ed. Chicago: Chicago
University Press, 2009.
MOLINO, J. Toward an evolutionary theory of music
and language. In: WALLIN, N. L.; MERKER, B.; BRO-
WN, S. The origins of music. 1ª ed. Massachusetts: MIT
Press, 2000, p. 165-176.
SLATER, P. Birdsong repertoires: their origins and
use. In: WALLIN, N. L.; MERKER, B.; BROWN, S.
The origins of music. 1ª ed. Massachusetts: MIT
Press, 2000, p 49-63.

490 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Capítulo 16
1
O cenário globalizado no jornalismo
internacional: expectativas,
desafios e influências

Maria Carolina Vieira1

Abra uma página qualquer de um site de notícias


ou variedades. É muito provável que apareçam em sua
tela fatos que abrangem a economia nacional, os resul-
tados da rodada de esportes, alguma polêmica recente
do Oriente Médio, os últimos atos políticos nos Esta-
dos Unidos, o que aconteceu na novela, as tendências
de moda que badalam a Europa e muito mais. Nunca
antes se teve o mundo tão ao alcance das mãos: basta
um clique para sair da sala de sua casa e se transportar
– se quiser, com direito a Street View do Google – para
qualquer lugar do globo. Porém, por mais relativamente
fácil que seja este acesso, por que interessa o que se pas-
sa no Japão, por exemplo? O que liga tantas realidades,

1. E-mail: mcarol.srvieira@gmail.com

491
por vezes tão desconexas? O que faz um acontecimento
longínquo parecer ter tamanha importância para quem
está distante? Enfim, como se coloca “ordem” em um
mundo tão conectado quanto complexo? Ainda que
nesta modernidade tardia o individualismo predomine
e tudo o que faz referência ao tradicional e institucional
perca o valor, não é difícil enxergar que o jornalismo
ainda tem a capacidade de responder a tais questiona-
mentos, principalmente por meio de suas funções, por
vezes clássicas, por vezes repaginadas, mas sempre de
caráter mediador e democrático. O jornalismo interna-
cional, por sua vez, vê esta capacidade aumentada ao
ser o elo não só entre fatos e localidades, mas, sobre-
tudo, entre ideias e pessoas. Diante de tais considera-
ções, este capítulo busca trazer um panorama geral da
situação do jornalismo (e, em especial, do jornalismo
internacional) hoje, sob a luz de como ele adapta suas
funções e potencialidades diante das mudanças trazidas
por um contexto cada vez mais globalizado e regido por
interesses alheios aos ideais jornalísticos.

Desafios e expectativas no jornalismo do século XXI


Verdade. Liberdade. Independência. Credibilidade.
Equilíbrio. Estas são palavras que podem ser ligadas aos
ideais do jornalismo clássico, aquele que nasceu com a
aura de guardião dos cidadãos e da democracia. Tra-
quina (2005) chega a citar a frase proferida por Thomas

492 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Jefferson de que “não há democracia sem liberdade de
imprensa” ao listar os grandes valores do jornalismo. Al-
guém mais cético fatalmente diria que este jornalismo
não tem condições de existir em pleno século XXI, era
na qual as redações são comandadas pela lógica do mer-
cado, a atualização frenética é prestigiada como quali-
dade editorial e os grandes conglomerados industriais
ditam as regras do jogo. Estaria lá a mídia preocupada
em seguir qualquer ideologia? Os desafios são grandes, é
verdade, no entanto nota-se que os valores jornalísticos
perseveram em sua sobrevivência, principalmente entre
aqueles que o exercem. Os jornalistas e pesquisadores
americanos Bill Kovach e Tom Rosenstiel fizeram um
amplo estudo sobre os grandes princípios que norteiam
a prática jornalística contemporânea, ouvindo os pró-
prios profissionais da imprensa. O resultado é que, mais
do que nunca, o fazer do jornalismo está ligado, pelo
menos no campo ideológico, à democracia e à cidada-
nia. Os autores listam nove elementos altamente presen-
tes no conceito do que é jornalismo hoje, quais seriam
suas obrigações e o que pode se esperar dele:

1- A primeira obrigação do jornalismo é com


a verdade. 2- Sua primeira lealdade é com os
cidadãos. 3- Sua essência é a disciplina da ve-
rificação. 4- Seus praticantes devem manter in-
dependência daqueles a quem cobrem. 5- O jor-
nalismo deve ser um monitor independente do
poder. 6- O jornalismo deve abrir espaço para
crítica e o compromisso público. 7- O jorna-
lismo deve empenhar-se para apresentar o que

493 Críticas e Processos Comunicacionais


é significativo de forma interessante e relevan-
te. 8- O jornalismo deve apresentar as notícias
de forma compreensível e proporcional. 9- Os
jornalistas devem ser livres para trabalhar de
acordo com sua consciência. (KOVACH & RO-
SENSTIEL, 2003; p. 22, 23).

Se palavras como liberdade, verdade e compromis-


so público estão ainda tão presentes no imaginário
da profissão, por que hoje existe certa resistência em
conferir ao jornalismo os valores que, em princípio,
foram-lhe tão inerentes?
Traquina (p. 61) enxerga algumas tendências jor-
nalísticas históricas comuns a diversos países, as quais
ocorreram praticamente de forma cronológica: a expan-
são da imprensa; a sua crescente comercialização; um
número crescente de pessoas que ganha a sua vida traba-
lhando nos jornais; e uma crescente divisão do trabalho
no jornalismo, com uma também crescente especializa-
ção na profissão. Na primeira fase, que remete ao século
XIX, é que se começa a moldar as funções da mídia que
perdurariam, mesmo que sob o olhar de suspeita, até
hoje. É já nestes primórdios que o jornalismo passa a ser
chamado de Quarto Poder – não como uma forma de
legitimar sua influência, mas como uma denominação
para sua característica de guardião em uma sociedade
que prezava cada dia mais pela liberdade:

Os pais fundadores da teoria democrática têm


insistido, desde o filósofo Milton, na liberdade

494 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


como sendo essencial para a troca de ideias e
opiniões, e reservaram ao jornalismo não apenas
o papel de informar os cidadãos, mas também,
num quadro de checks and balances (a divisão
do poder entre poderes), a responsabilidade de
ser o guardião (watching) do governo. Tal como
a democracia sem uma imprensa livre é impen-
sável, o jornalismo sem liberdade ou é farsa ou é
tragédia. (TRAQUINA, 2005, p. 22, 23)

Assim, segundo o autor, o jornalismo encontra na


opinião pública a justificativa para seu lugar crescente
na sociedade. Afinal, como ela poderia se expressar –
em um tempo sem internet ou redes sociais, é claro –
senão pela mídia? O jornalismo se constitui, então, não
só como o elo entre cidadãos e instituições governan-
tes, mas também o guardião que “tira as pessoas da le-
targia e oferece uma voz aos esquecidos” (KOVACH &
ROSENSTIEL, 2003, p. 31). Nasce aí sua finalidade pri-
mordial, intrinsicamente ligada aos ideais democráticos,
também apontada por Kovach & Rosenstiel, de “forne-
cer aos cidadãos as informações de que necessitam para
serem livres e se autogovernarem” (p. 31). Segundo eles,
os conceitos de jornalismo e comunidades democráti-
cas são tão intrínsecos que é difícil até mesmo separá-
-los, utilizando-se de um ótimo argumento de que “o
jornalismo é tão fundamental para essa finalidade que
as sociedades que querem suprimir a liberdade devem
primeiro suprimir a imprensa” (p. 32).
Tudo pareceria um perfeito conto de fadas se outros
fatores também não entrassem nesta história. Kovach &

495 Críticas e Processos Comunicacionais


Rosenstiel apontam que a teoria e a finalidade do jorna-
lismo, tão duradouras até aqui, são agora desafiadas de
uma forma nunca antes vista (p. 32). É que se chega à
segunda fase do jornalismo, apontada por Traquina, na
qual industrialização e comercialização da mídia entram
em cena. Devido principalmente à nova organização das
empresas jornalísticas, o fazer jornalístico fica submeti-
do a outros interesses e sua independência acaba dissol-
vida no meio da informação comercial e da autopromo-
ção (KOVACH & ROSENSTIEL, p. 32). Neveu (2006,
p. 158) acredita que a expressão jornalismo de mercado
“não designa a simples e velha obrigação de uma pu-
blicação de equilibrar seu balanço financeiro, mas um
conjunto de evoluções pelas quais a busca de uma renta-
bilidade máxima vem redefinir a prática jornalística”. Já
Thompson (2005, p. 110) considera a transformação das
instituições de mídia em interesses comerciais de grande
escala uma das três grandes tendências desse ramo de
trabalho desde o século XIX, ideia compartilhada tam-
bém por Traquina (p. 125). Este novo cenário acaba por
criar uma polarização no jornalismo como campo de
conhecimento, no qual o polo positivo está relacionado
aos ideais clássicos da imprensa, identificando-a como
elemento fundamental da teoria democrática: “o jorna-
lismo é visto como um serviço público em que as notí-
cias são o alimento de que os cidadãos precisam para
exercer os seus direitos democráticos”, afirma Traquina
(p. 125, 126). Já o polo comercial seria identificado como
o negativo, embora seja ele que sustente economicamen-
te as redações e empresas:

496 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Para os jornalistas e para muitas vozes da socie-
dade, o polo negativo do campo jornalístico é
o polo econômico, que associa o jornalismo ao
cheiro do dinheiro e a práticas como o sensacio-
nalismo, em que o principal intuito é vender o
jornal/telejornal como um produto que agarra
os leitores/os ouvintes/a audiência, esquecen-
do valores associados à ideologia profissional.
(TRAQUINA, 2005, p. 27)

Com a entrada do caráter comercial no fazer jorna-


lístico, era de se esperar que mudanças ocorressem em
sua prática. É o que Traquina chama de penny press – o
jornalismo vendido a centavos, afinal, quanto mais gen-
te comprando, maior o lucro. Sim, o lucro, por fim e sem
sombra de dúvidas, é o que rege este novo jornalismo.
Neveu (p. 158) aponta algumas evoluções no dia a dia
na profissão com a entrada do jornalismo de mercado,
entre elas a prioridade dada às editorias julgadas mais
propícias a maximizar os públicos, o aumento das soft
news e a tendência da perda de autonomia das redações
em face dos departamentos de gestão. Esta última, inclu-
sive, propiciou uma relação cada vez mais rachada en-
tre o departamento comercial e a redação. O resultado,
além do eterno embate entre repórteres e editores, é que,
segundo Kovach & Rosenstiel (p. 95), algumas práticas
de negócios, contrárias aos melhores interesses jornalís-
ticos e da população, passaram a ser usadas na redação.
Traquina ainda aponta outras mudanças oriundas do
jornalismo de mercado, como o surgimento do infoen-
tretenimento, a valorização do jornalismo de informação

497 Críticas e Processos Comunicacionais


em detrimento do de opinião e o culto aos fatos, o que
direciona as notícias aos acontecimentos por si só, es-
quecendo-se de contextos, causas e desdobramentos. Já
Oliveira Filha & Moreira (2014), focando no jornalismo
impresso, observam que, às transformações mercadoló-
gicas, somam-se as provindas de uma crise da própria
linguagem escrita em relação à linguagem audiovisual, o
que obriga o jornalismo – não só o impresso, mas tam-
bém como campo propriamente dito – a se reinventar.
Seria, então, por meio da reinvenção de suas práticas
que o jornalismo tentaria se manter íntegro? Como, por
fim, o jornalismo lida com este cenário tão desafiador e
em constante mudança? A questão é tão grave que Ne-
veu (p. 168) chega a dizer que a legitimidade do próprio
jornalismo é contestada devido a episódios que põem
em xeque o respeito às suas regras deontológicas. Então,
como balancear o inevitável caráter comercial com seus
ideais de democracia, verdade e liberdade? Kovach &
Rosenstiel defendem que a imprensa deve ser indepen-
dente diante da ameaça dos conglomerados midiáticos:

Somente uma imprensa livre de censores gover-


namentais pode contar a verdade. Num contexto
moderno, essa liberdade expandiu-se de forma
a significar independência de outras institui-
ções também – partidos políticos, anunciantes,
negócios e outras fontes. A conglomeração de
negócios informativos ameaça a sobrevivência
da imprensa como instituição independente, à
medida que o jornalismo se converte em um se-
tor subsidiário dentro das grandes corporações

498 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


essencialmente voltadas para os negócios. (KO-
VACH & ROSENSTIEL, 2003; p. 53)

Assim, é possível ver uma luz no fim do túnel com


tendências jornalísticas recentes, impulsionadas não
só pelas novas tecnologias, mas também pelo esforço –
ou até mesmo necessidade – de manter a credibilidade
jornalística com um mínimo de reputação. Neveu (p.
171) destaca algumas renovações no jornalismo con-
temporâneo, que se constituem como uma resistência
à dominação total do lucro sob o jornalismo voltado
para os cidadãos. Entre elas, estão o jornalismo etno-
gráfico, mais próximo do cotidiano; o jornalismo de
reportagem, que fixa na evocação de pessoas comuns e
passa do ponto de vista de quem decide para o dos efei-
tos de suas decisões; e o jornalismo cívico, que aparece
como “preocupação explícita em contribuir para um
debate social que procure renovar os locutores legíti-
mos e rediscutir o monopólio dos especialistas e dos
políticos sobre a hierarquia dos temas debatidos”. Além
desses, Kovach & Rosenstiel (p. 51, 52) ainda apostam
em três forças causadoras do jornalismo ligado à cons-
trução cívica: a primeira seria a natureza das novas tec-
nologias, em especial a internet, que dissociaram o jor-
nalismo da geografia e, inclusive, mudaram o papel do
jornalista, já que este não decide mais o que o público
deve saber, mas, sim, o ajuda a pôr “ordem nas coisas”;
a segunda seria a globalização, tema a ser tratado mais
adiante; e a terceira se daria com a conglomeração e
surgimento de novas redes de notícias.

499 Críticas e Processos Comunicacionais


De qualquer forma, seguindo lógicas comerciais e
empresariais ou não, o jornalismo segue encontran-
do caminhos diante de novos desafios e tentando
manter sua primeira lealdade com a missão de infor-
mar seu leitorado de forma íntegra, já que só “des-
sa maneira que nós, cidadãos, acreditamos numa
empresa jornalística. É essa a fonte de sua credibi-
lidade – a certeza de que não sofrem influência de
terceiros” (KOVACH & ROSENSTIEL, p. 83). Além
disso, os autores concluem afirmando que o jorna-
lismo não está sozinho em suas batalhas diárias: os
próprios cidadãos devem fazer parte da construção
de uma mídia cada vez mais voltada para os prin-
cípios deontológicos tão celebrados no passado e
ainda hoje prezados por seus profissionais, mesmo
que mais fortalecida no campo ideológico do que no
mercadológico. Assim,

Os jornalistas devem fazer com que o público


participe do processo pelo qual são produzi-
das as notícias. [...]. Dessa forma, o público
se equipa com informação que lhe permite
comparar com outras alternativas à mão.
Mais importante ainda, o leitor passa a con-
tar com uma base sobre a qual pode julgar
se é esse mesmo tipo de jornalismo que quer
estimular. Nesse sentido, os cidadãos passam
também a ter algum tipo de responsabilidade
no processo informativo. (KOVACH & RO-
SENSTIEL, 2003; p. 289)

500 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Enfim, se o cenário geral do jornalismo se encon-
tra nestes termos, como se dão as especificidades do
jornalismo internacional?

O que é notícia no jornalismo internacional


Enquanto o jornalismo segue buscando maneiras de li-
dar com as transformações do mundo contemporâneo, com
a editoria internacional não poderia ser diferente. Embora
a globalização traga maior sentido – e importância – a este
setor especializado da mídia, ele é um dos que mais sofre as
consequências do jornalismo de mercado: pouco rentável
comercialmente e com um público seleto, os investimentos
provindos das empresas midiáticas diminuem ano após ano.
Carlos Eduardo Lins da Silva, jornalista e ex-correspondente
internacional em Washington (EUA) pelo jornal Folha de
São Paulo, sintetiza bem tal dilema ao dizer que:

O início do século XXI, quando a globalização che-


ga ao apogeu, é assim, contraditoriamente, o perío-
do em que a necessidade da atuação dessa categoria
de jornalista é, em princípio, mais urgente e justi-
ficável, mas também em que ela se tem contraído
como raramente antes, devido à impossibilidade de
as empresas darem conta de seus elevados curtos.
(LINS DA SILVA, 2011, p. 10).

Mesmo com problemas em se sustentar financeira-


mente, contudo, o jornalismo internacional se mantém

501 Críticas e Processos Comunicacionais


como uma editoria importante no quadro geral dos veí-
culos de comunicação, muito pelo fato de que “publicar
notícias sobre outros países sempre foi associado a pres-
tígio para o veículo jornalístico que as divulgasse” (LINS
DA SILVA, p. 25). Hohenberg (1981) observa que há
bons sinais, pelo menos entre o público americano, de
que há mais pessoas seguindo o noticiário internacio-
nal, lembrando que o jornal The New York Times, mes-
mo fora de períodos de crise estrangeira, publica uma
média de 16 a 18 colunas diárias de material referente
ao contexto mundial. Natali (2004, p. 23) vai mais longe
e chega a afirmar que o jornalismo nasceu internacio-
nal, já que, ainda nos formatos rudimentares do século
XVII e XVIII, ele serviria basicamente como instrumen-
to de coleta e difusão de notícias produzidas em terras
distantes. O autor remonta à formação deste segmento
da imprensa, passando pelo papel das newsletters – já
utilizada por banqueiros do século XVI para receber in-
formações úteis aos negócios – e dos correios; pelo au-
mento do interesse do público em saber o que se passava
fora de sua região – ele cita a Revolução Francesa como
marco para a ampliação do espaço público de troca de
ideias, ou o denominado “espaço de pauta” (p. 26) – até
chegar ao que ele chama de fase adulta do jornalismo
internacional, iniciado durante a Guerra Civil america-
na, que foi acompanhada por nada menos do que 150
correspondentes de guerra.
É também a partir deste período, em meados do sé-
culo XIX, que as agências de notícias entram no cená-
rio midiático. Ainda hoje mantendo “suas posições de

502 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


liderança no sistema internacional de coleta e dissemi-
nação de notícias e outras informações” (THOMPSON,
p. 205), elas chegam para, como afirma Natali (p. 31) dar
visibilidade econômica ao noticiário internacional, já
que distribuir centenas de textos a jornais que assinam
seus serviços sai incomparavelmente mais barato do que
um texto enviado por um correspondente, por exemplo.
Porém, mesmo detentoras do crédito de exponenciar
o jornalismo internacional, o autor ainda aponta certo
apartidarismo como uma séria consequência da gene-
ralização dos serviços das agências. Generalização, aliás,
que já é reflexo dos cortes de gastos nesta editoria: “não é
uma postura ética, que isso fique bem claro. É uma pos-
tura de mercado. Como há clientes de diferentes orien-
tações editoriais, nenhuma agência puxaria a azeitona
para o lado de uma só empada”. (NATALI, p. 31).
Não se pode esquecer da importância do repórter
inserido na produção de conteúdo para o noticiário in-
ternacional, tão envolto de particularidades que recebe
outro nome: correspondente. O correspondente, “jor-
nalista sediado em um país que não o seu de origem
com a missão remunerada de reportar fatos e carac-
terísticas dessa sociedade em que vive para a audiên-
cia da sua nação materna por meio de um veículo de
comunicação” (LINS DA SILVA, p. 15), é por muitos
considerado um orientador cultural:

É muito comum que ele se ache não apenas a


elite da elite, mas também um guia das massas,
influência fundamental no processo de decisões

503 Críticas e Processos Comunicacionais


políticas, orientador cultural de seu público,
formador de opiniões a respeito do país de que
reporta. Provavelmente ele é muito menos do
que se imagina, embora naturalmente um pou-
co disso tudo a maioria realmente seja. (LINS
DA SILVA, 2011, p. 118)

Além de carregar esta fatídica responsabilidade, é o


correspondente internacional que precisa lidar com di-
lemas tão rotineiros quanto inerentes da editoria focada
nas notícias estrangeiras. Entre eles, o risco de se nacio-
nalizar no país em que se encontra sediado (LINS DA
SILVA, p. 33), ou seja, pensar como suas fontes e não
como seu público alvo; ou ainda outros, listados por Na-
tali (p. 8, 9), como o manejo de reclamações sobre o viés
partidário na apresentação da notícia; o pouco acesso a
fontes que estão na origem da informação publicada, já
que este sofre intermediação de agências, consulados e
comentaristas estrangeiros; e, claro, as limitações oriun-
das de trabalhar com uma língua estrangeira.
Além disso, o correspondente não fica ileso das res-
trições financeiras das empresas midiáticas, o que acaba
exigindo uma maior qualificação destes já especialistas.
Uma saída mais drástica, mas, ainda assim, cada vez mais
frequente, é o corte do repórter alocado em outro país,
que vem a ser substituído por profissionais que trabalham
direto da redação. Mesmo que pareça uma troca desfa-
vorável ao noticiário internacional, que não terá olhos in
loco para cobrir os fatos, Natali consegue ser otimista gra-
ças ao que ele chama de revolução trazida pela internet:

504 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Ela fez com que o redator abandonasse seu papel
passivo diante dos telegramas das agências. Deu
a ele um poder de intervenção inimaginável na
elaboração mais pessoal de um texto noticioso”.
[...]“Vejam que o uso da internet não substitui a
existência de uma boa rede de correspondentes.
Mas a falta dessa boa rede é em parte compensa-
da por profissionais familiarizados com os múl-
tiplos recursos disponíveis na rede mundial de
computadores. (NATALI, 2004, p. 57-59)

Diante de certas mudanças no jornalismo internacio-


nal, como as causadas pela influência dos cortes de orça-
mento, pela adaptação à realidade mercadológica e pelas
novas funções atribuídas a quem está por trás do teclado
que redige seus textos, ao menos uma característica per-
manece praticamente intacta: sua gigantesca guilhotina
da notícia. É a maneira de Natali (p. 10) de dizer que ne-
nhuma outra editoria precisa utilizar critérios tão refi-
nados e qualificados de seleção. Ele também logo refuta
esta ideia de seleção como sinônimo de censura, já que
ela seria baseada em critérios claros de noticiabilidade:

Nem tudo o que é notícia aparece no noticiário


internacional. O noticiário não constrói um re-
trato do mundo com determinado grau de exa-
tidão. Muita coisa que será vista no futuro como
de capital importância histórica é diariamente
deixada de lado. E, ao mesmo tempo, certos te-
mas sem importância histórica nenhuma acabam
virando notícia porque interpelam a mitologia de
nosso mundo cotidiano. (NATALI, 2004, p. 12)

505 Críticas e Processos Comunicacionais


Tal afirmação nos leva, então, à teoria do gatekeeper,
para a qual o processo de produção da informação é
concebido como uma série de escolhas onde o fluxo de
notícias tem de passar por diversos gates, isto é, ‘por-
tões’” (TRAQUINA, p. 150), sendo tais portões as áreas
de decisão nas quais o jornalista escolhe se a informação
é ou não notícia. Porém, ao contrário do que Traquina
acredita ser um processo subjetivo e arbitrário, baseado
em um conjunto de experiências, atitudes e expectativas
do próprio gatekeeper (p. 150), o jornalismo internacio-
nal segue um mínimo de padrão quando se refere aos
valores-notícia, que seriam “qualidades atribuídas, pelo
jornalista, ao acontecimento, que permitem que o fato
seja incluído na lista dos noticiáveis” (MURAD, 2002, p.
4). Tais valores-notícias, tanto na editoria internacional
como no jornalismo como um todo, podem ser enxer-
gados como parte da cultura jornalística, como afirma a
comunicadora social Fabiane Barbosa Moreira:

Os valores-notícia não são naturais, mas fruto


da cultura jornalística e de uma intenção prévia,
e esta pode originar-se em um nível pessoal, or-
ganizacional, social, econômico, ideológico, etc.
Tanto os sujeitos como as rotinas e também cer-
tos segmentos sociais, por exemplo, são agentes
de valoração e construção das notícias. (MO-
REIRA, 2006, p. 40)

Diante destas constatações sobre o que determina a


transformação de um fato em notícia, quais seriam, afinal,

506 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


os grandes valores-notícias que norteariam o jornalismo
internacional na comunicação contemporânea? O primei-
ro fator a se considerar é o leitorado desta editoria. Natali
afirma que o leitor desta editoria faz parte de um segmen-
to minoritário, metropolitano e mais bem informado do
público, o que consequentemente o faz mais exigente (p.
55). Lins da Silva complementa ao dizer que, embora não
seja massivo, este leitorado, em grande parte, “determina
os rumos da sociedade” (p. 171). Estas características, por-
tanto, devem ser pesadas na hora da escolha e posterior
encaminhamento da notícia.
Outro fator específico a ser ressaltado é a acessibili-
dade, tanto geográfica quanto editorial, à notícia, como
lembra Natali (p. 15). Países de difícil acesso ou com li-
berdade de informação muito restrita dificilmente che-
gam às páginas (impressas, eletrônicas ou virtuais) dos
meios de comunicação. Já partindo para os valores-no-
tícia clássicos do jornalismo, é presumível que eles tam-
bém estejam presentes na editoria internacional. Porém,
o contexto globalizado e cada vez mais multimídia das
comunicações acaba influenciando e trazendo mudanças
mesmo a este quesito. Critérios de noticiabilidade como
importância, interesse, brevidade, qualidade da história,
uma composição equilibrada do noticiário, material vi-
sual disponível, exclusividade, entre outros listados por
Murad (p. 5) são acompanhados por fatores que chegam
com destaque nos dias de hoje: a atualidade – trazida pelo
aumento da velocidade provinda das tecnologias digitais,
ela faz com que se busque o encurtamento do tempo en-
tre o transcorrido e a publicação da notícia (MURAD, p.

507 Críticas e Processos Comunicacionais


6), mas também resulta em certa negligência com a apu-
ração dos fatos – e a frequência, que se caracteriza pela
atualização constante das informações, a fim de “promo-
ver sua audiência por meio de uma continuidade da co-
bertura informativa” (MURAD, p. 6).
Por último, mas não menos importante, vemos hoje
com certa frequência no jornalismo internacional um
embate entre o interesse público (com significado políti-
co, social, cultural...) e o interesse do público (aquilo que
pode despertar curiosidade). Reflexo da predominância
do jornalismo de mercado, vê-se que, na maioria das si-
tuações, o interesse do público acaba ganhando, já que
“a pressão do mercado e da concorrência impõe, muitas
vezes, na prática, a subvalorização da importância, isto
é, a subordinação do interesse público ao interesse do
público” (BIANCHI & HATJE. 2006, p. 174).
Assim, a partir deste histórico, destas características
e destes critérios de seleção é que se molda o jornalis-
mo internacional hoje: embora passando pelas (quase)
mesmas mudanças e obstáculos do jornalismo em ge-
ral, consegue visualizar que tem um papel fundamen-
tal – ainda que dependente de fatores mercadológicos
e editoriais – em “transformar cidadãos nacionais em
cidadãos globais” (LINS DA SILVA, p. 10), transforma-
ção necessária em um cenário que, segundo o autor,
exige cada vez mais que as pessoas estejam informadas,
especialmente sobre o que acontece além de suas pró-
prias fronteiras. É a globalização, mais uma vez, im-
pondo sua chegada – ou melhor, sua permanência. O
que nos leva ao próximo tópico.

508 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Reflexos da globalização no jornalismo
O cientista social interdisciplinar Toby Miller, em seu
trabalho sobre cidadania cultural, diz que, à medida que
a globalização impõe e convida à mobilidade, prolifera-
-se o intercâmbio de práticas culturais – muitas vezes,
guiado pela mídia – como se cada vez existissem mais
indivíduos e organizações transnacionais. Neste cenário,
o autor enxerga a emergência inevitável de uma “cida-
dania global” (2011, p. 61). Enquanto algumas linhas de
pensadores tomam esta tendência como a decadência da
tradição e das identidades nacionais, outras a conside-
ram a celebração da diferença, sem contar os que sim-
plesmente a focalizam como um novo nicho mercadoló-
gico. Divergências à parte, o fato é que a globalização é
um fenômeno intrínseco ao nosso tempo e já reflete na
relação indivíduo x mundo.
A formação da globalização como característica
organizacional do globo remete ao século XIX, mas,
segundo Thompson, ela é um fenômeno típico do sé-
culo XX, já que foi durante esse período que “o flu-
xo de comunicação e informação em escala global se
tornou uma característica regular e penetrante da vida
social” (p. 208). O autor conceitua globalização como
a “crescente interconexão entre as diferentes partes do
mundo, um processo que deu origem às formas com-
plexas de interação e interdependência” (p. 197). Para
ele, o fenômeno só surgiria quando atividades que en-
volvem algum grau de reciprocidade e interdependên-
cia acontecem e são organizadas numa arena global. Já

509 Críticas e Processos Comunicacionais


Hall (2002, p. 67), afirma que globalização se refere aos
processos que tornam o mundo mais interconectado e
foca em suas consequências.
Uma destas consequências, a compressão do espaço-
-tempo, tem reflexos diretos na prática do jornalismo
internacional. Segundo o autor, a aceleração dos pro-
cessos globais, com os quais há a impressão que o mun-
do é menor e as distâncias mais curtas, faz com que “os
eventos de um determinado lugar tenham um impacto
imediato sobre pessoas e lugares situados a uma gran-
de distância” (p. 69). Além disso, essa disjunção entre
o espaço e o tempo possibilita a simultaneidade, com
a qual se pode experimentar eventos simultâneos que
acontecem em lugares completamente distintos. O sen-
tido de “agora” não é mais ligado a uma determinada
localidade, nas palavras de Thompson (p. 58). Muda-
-se também a relação entre espaço x lugar: enquanto o
lugar permanece fixo, “o espaço pode ser cruzado num
piscar de olhos” (THOMPSON, p. 72) – ou melhor, em
um acesso a um site de notícias. Ocorrem agora, como
parte da mudança destas relações, os eventos globais,
que são “acontecimentos catárticos que reúnem em
torno de si notícias, reportagens e programas, os pú-
blicos nacionais e locais os mais diversificados” (MAT-
TELAR, 2000, p. 158). Não dá para negar que o mundo
nunca foi tão incrivelmente pequeno.
Porém, embora tudo isso pareça positivo, a globaliza-
ção não é um processo que ocorre de forma uniforme,
e aí se encontra o que poderia ser chamado do outro
lado da moeda. Para Hall, a globalização é “desigual e

510 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


tem sua própria geometria de poder” (p. 80). É o que
Canclini (2005, p. 32) também aponta como a submis-
são das manifestações culturais aos valores de mercado,
ou seja, a substituição de cidadãos por consumidores.
Em uma sociedade baseada nestas regras, não importa
o quão interconectadas se encontram as nações, man-
da quem tem maior poder econômico. E as perspectivas
não seriam muito animadores para os acadêmicos. O
especialista em jornalismo Luis Álvares Pousa acredita
que os agentes da globalização “buscam rentabilizar ao
máximo seu objetivo básico, que é alcançar um controle
absoluto [...] criando assim condições para que se pro-
duza uma primeira grande fragmentação social: a dos
consumidores” (POUSA, 2004, p. 72). Já Mattelard (p.
62) vê, decorrente da interdependência mundial, uma
uniformização da cultura planetária, claro que coman-
dada pelas nações ocidentais de primeiro mundo. Can-
clini não é mais otimista ao constatar que as pessoas se
sentem, hoje, mais consumidoras do que cidadãs, muito
porque as respostas de perguntas próprias dos cidadãos,
por exemplo, “a que lugar pertenço” ou “como posso me
informar”, hoje são respondidas através do consumo de
bens privados e dos meios de comunicação de massa. É
onde reencontramos aquele tal quarto poder designado
à mídia, desta vez com moldes contemporâneos. Contu-
do, a própria imprensa também não se encontra isenta
dos reflexos da globalização.
A globalização impõe à mídia o papel de mostrar o
mundo “sem fronteiras” ao seu público. Thompson fala
inclusive de uma “mundanidade mediada” (p. 61), já que

511 Críticas e Processos Comunicacionais


nossa compreensão do mundo fora do nosso alcance pes-
soal estaria sendo modelada cada vez mais pelas formas
simbólicas, construídas, ora, pela mídia. A fim de cumprir
esse suposto dever, Mattelard (p. 37-44) chega a listar algu-
mas utopias em relação à comunicação universal, entre elas
a associação universal de homens em busca de um mesmo
objetivo; o encurtamento não só entre distâncias, mas entre
uma classe e outra graças à interligação de redes; a propa-
gação de ideias pelas redes sociais; e a superação das desi-
gualdades entre classes, grupos e nações. Porém, os efeitos
de uma comunicação globalizada são muito mais profun-
dos e bem menos utópicos do que os abordados pelo autor.
A começar que “a globalização da comunicação no
século XX é um processo dirigido principalmente por
atividades de conglomerados de comunicação em gran-
de escala” (THOMPSON, p. 209), que, ao mesmo tempo
em que organizam suas atividades baseados em estraté-
gias efetivamente globais, também promovem uma frag-
mentação de seu público “a fim de competir em todas as
partes e com todos os tipos de suporte, o que obriga a
criar sinergias midiáticas, que vão contra a diversidade
de conteúdo” (POUSA, p. 73). Além disso, embora o de-
senvolvimento de novas tecnologias expanda o mercado
global e crie uma arena internacional de circulação de
produtos da mídia, para Thompson existem um acesso e
um fluxo desiguais de informação:

O material produzido em um país é distribu-


ído não apenas no mercado doméstico, mas
também – e em níveis sempre crescentes – no

512 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


mercado global. Já é sabido, entretanto, que
o fluxo internacional dos produtos da mídia
é um processo estruturado no qual certas or-
ganizações detêm o controle predominante,
levando algumas regiões do globo à extrema
dependência de outras para o suprimento de
bens simbólicos. (THOMPSON, 2005, p. 212).

Estas características, somadas à cultura do efêmero e


da velocidade, leva, segundo Pousa, a uma sensação de
caos, com a qual os indivíduos não conseguem entender
e se comunicar com o mundo a sua volta. Para o autor,
tampouco o jornalismo tem a capacidade de encarar a
complexidade do mundo globalizado:

O modelo de jornalismo que emerge das ruí-


nas do industrialismo [...] nunca poderá assim
encarar os desafios de um mundo tão proble-
matizado. Tampouco poderá desativar as cau-
sas que explicam desde a proximidade à grave
deteriorização que sofrem os meios, e muito
menos reconquistar os valores que conformam
a argamassa da democratização informativa”
(POUSA, 2004, p. 78).

Assim, a globalização nos moldes atuais imporia “ti-


ranias” à pratica do jornalismo, que trariam consequên-
cias bastante específicas em sua prática, por exemplo as
citadas por Pousa (p. 78): a valorização da função con-
sumista das audiências por cima de qualquer outra fun-
ção ativadora; o surgimento do que o autor chama de

513 Críticas e Processos Comunicacionais


distorções, como o infoentretenimento, que limitaria a
capacidade interpretativa da audiência e levaria ao ques-
tionamento do tipo “o que é jornalismo e o que não é?”;
o condicionamento do conceito de atualidade a apenas
o que tem impacto visual ou emocional, o que também
mostraria o poder de significação dado exclusivamente
à imagem; a variação do tempo da informação, já que o
que é instantâneo teria sempre mais valor. Em seguida, as
consequências chegam à própria mensagem jornalística,
seja ela local ou internacional, como continua Pousa (p.
79), ao observar, entre tais consequências, a fragmenta-
ção da realidade em cenas soltas, sem dar importância ao
contexto dos acontecimentos; a desestruturação e frag-
mentação do argumento, submetendo-o à leitura rápida;
a espetacularização, contando mais com a capacidade
emotiva do que com o valor de verdade; a dramatização,
baseada no impacto que a mensagem pode fazer; a cria-
ção de mitos; a engenharia dos acontecimentos, ou seja, a
fabricação de fatos noticiáveis; a obsessão pelo presente;
a figuratividade, na qual contam as aparências dos fenô-
menos e suas manifestações visíveis, etc. Mas fica o ques-
tionamento final: mais do que a globalização, não seriam
todas essas consequências ligadas às mudanças do pró-
prio jornalismo contemporâneo? Seja lá qual for a fonte
de seus desafios atuais, é certo que a imprensa e seus re-
presentantes vivem um contínuo caminho de adaptações
– ora apostando no que já é sólido, ora se lançando para
o desconhecido – para se adequar a um mundo cada vez
mais globalizado e subordinado às leis do mercado, sim,
mas também muito mais interessante e imprevisível.

514 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Considerações finais
Ao abordar os aspectos atuais da mídia, partindo do
jornalismo como um todo, passando pela especificidade
da editoria internacional e finalizando nas consequên-
cias da globalização não só na estrutura da mídia, mas
na prática jornalística em si, pode parecer que, no cená-
rio geral, os desafios se sobreponham às soluções ou, de
uma forma simplista, a uma rotina de simples calmarias.
Mas quem iria esperar que um campo dinâmico e vi-
sionário por sua essência iria preferir se manter parado,
vendo “o bonde passar” sem ele? O desenvolvimento de
tecnologias, a configuração mercadológica das empre-
sas de comunicação e a nova configuração do mundo
como uma arena interligada de culturas e conhecimento
– nem sempre tão equilibrada em seus fluxos, que fique
claro – transformam as funções e as maneiras de agir da
mídia, o que não deixa de se constituir como uma crise.
Em chinês, a palavra “crise” é representada por dois ide-
ogramas: o que significa “perigo” e o que diz “oportuni-
dade”. Digressões à parte e considerando tudo o que já
foi abordado, acredito ser preferível seguir pelo segundo
caminho, o da oportunidade, e vejo que é essa exata rota
que o jornalismo está tomando. Thompson afirma que o
papel da mídia nas transformações culturais é agir como
uma multiplicadora de mobilidade, superando qualquer
limitação imposta pelas características dominadoras dos
grandes conglomerados midiáticos, do jornalismo de
mercado e até mesmo da globalização: “a mídia permite
que indivíduos experimentem vicariamente eventos que

515 Críticas e Processos Comunicacionais


acontecem em lugares distantes, e por isso estimula sua
capacidade de imaginar alternativas às formas de vida
características de seus locais imediatos”. (p. 245).
Além de representar uma saída ou, ao menos, um
ponto de partida para que os próprios indivíduos bus-
quem alternativas para sua realidade, a mídia continua
sendo detentora do tão aclamado e temido “quarto po-
der”. Mas, em um mundo cada vez mais conectado e
informado, este poder também pode se modificar para
tornar os meios de comunicação, enfim, em integradores
de conhecimento. Quem defende isso é Pousa, o mesmo
que alarmou tanto sobre os estragos provocados pela
cultura do efêmero no jornalismo: “meios e jornalistas
estão, pois, obrigados a ser instrumentos integradores do
conhecimento, conscientes de que processam informa-
ção para a sociedade do conhecimento” (p. 80). No jor-
nalismo internacional, então, poderia se ver a integração
de conhecimentos além-fronteiras como jamais visto.
Dessa forma e seguindo pelo caminho de que a im-
prensa não se perdeu entre cifrões, velocidade sem funda-
mentação ou preponderância total dos agentes do merca-
do (além de lembrar que, pelos levantamentos de Kovach
& Rosenstiel, os valores tão clássicos quanto importantes
do jornalismo, como o compromisso com a verdade, a in-
dependência e os cidadãos, estão extremamente presentes
no imaginário dos profissionais que atuam nas redações)
o resultado seria um jornalismo de significação, “que é o
modelo em que se vai fundamentar as estratégias de resis-
tência e de alternativa a quanto desnaturaliza as funções
sociais e culturais dos meios e jornalistas profissionais”

516 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


(POUSA, p. 80). E seria, assim, tanto o resultado quanto
também uma possível e acertada solução para qualquer
maior obstáculo que venha a aparecer nesta rota ao futuro
do jornalismo, tão bifurcada quanto permanente.

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518 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


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519 Críticas e Processos Comunicacionais


Capítulo 17
1
Estudos culturais e comunicacionais
como forma de auxiliar na inclusão
do homossexual masculino no
ambiente organizacional1

Matheus José Prestes

Apresentação do tema

Introdução

Nos dias atuais, vem surgindo na grande mídia no-


ticiosa e de entretenimento elementos que vêm dando
notabilidade e legitimidade aos movimentos homosse-
xuais. Bem ou mal, essas informações trazem à tona a
discussão para dentro da sociedade, em seus mais di-
versos ambientes.

1. Artigo apresentado como trabalho final da disciplina de Teo-


rias da Comunicação do Programa de Mestrado em Comuni-
cação Midiática. Unesp Bauru, turma 2014.

520
O enfoque deste artigo se dá principalmente sob a re-
lação organizacional, onde as relações gênero/sexualidade
nunca foram tidas como elementos a serem discutidos. As
empresas sempre foram um ambiente heteronormativo,
onde as minorias são silenciadas e não levadas em consi-
deração a inter-relação de seus membros, assim como suas
características relativas à interculturalidade. Sem dúvida,
tais elementos podem influenciar a produtividade e a sa-
tisfação no ambiente de trabalho junto aos colaboradores.
Ao se pautar esta decisão, espera-se gerar um maior espa-
ço de discussão e aceitação desta temática, derrubando-se os
tabus envolvendo tais temas. Nota-se que estas mudanças se
dão em função da pressão dos movimentos sociais no sentido
da inclusão desta junto às políticas públicas, cobrando assim
direitos. Este trabalho tem a intenção de fazer uma análise
bibliográfica que possa abranger desde informações teóricas,
onde possa buscar definições muitas vezes desconhecidas e
pouco divulgadas sobre o assunto, dando uma ênfase, neste
ponto à educação sobre o tema, suas relações culturais, tendo
em vista mais especificamente o ambiente das organizações,
envolvendo assim conceitos baseados em teorias da comu-
nicação, a necessidade de se realizar a interculturalidade e a
quebra de paradigmas decorrentes deste padrão cultural he-
teronormativo dentro do ambiente laboral.

As teorias da comunicação e a homossexualidade

Dá-se início a este texto, abordando-se de forma su-


cinta, dentro das teorias da comunicação, as linhas dos

521 Críticas e Processos Comunicacionais


estudos culturais, apontando para autores ingleses e la-
tino-americanos, assim como, o estudo da teoria da es-
piral do silêncio, associando-os ao tema relacionado às
minorias sexuais e sua inclusão, principalmente no que
diz respeito à cultura organizacional.
Ao teorizar sobre os estudos culturais, Fernandes
(2010, p.3) publica um artigo em que diz que estes surgi-
ram na Inglaterra no final dos anos 50, onde politizados
pesquisadores como Raymond Williams, Richard Ho-
ggart e Edward Thompson, unidos mais adiante a Stu-
art Hall (1964), utilizaram-se das teorias de Karl Marx
como fonte para seus estudos, alinhando-se assim, aos
pensamentos da Nova Esquerda Inglesa
Segundo Regina (2011), a Nova Esquerda Inglesa tinha
seu pensamento alinhado aos ideais democráticos, que
buscava valorizar a relação do ser humano em sociedade.
Iniciativa esta que tinha em seus objetivos a substituição
do pensamento alinhado a figura aos ideais economicis-
tas do homem que caracterizava a sociedade capitalista.
Assim, a Nova Esquerda propunha estudar o homem que
participava das relações sociais e da história, valorizando-
-se a sua consciência social e experiências pessoais.
Tendo em vista isso, a autora Ana Carolina D. Es-
costeguy (2001, p. 271-272), nos apresenta em seu li-
vro uma entrevista datada de fevereiro de 2007, com o
Prof. James Curran, da Universidade de Londres, cujo
foco se dá exatamente nos debates sobre os estudos
culturais britânicos, e seu viés social e político. O pro-
fessor, que faz parte do departamento de comunicação
e mídia, atualmente, concentra sua produção em cima

522 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


das áreas de história, economia política e suas influên-
cias sobre as audiências.
Ao ser indagado, o professor explicitou seu posicio-
namento com relação aos estudos culturais, onde denota
o porquê de seu encantamento, e ao mesmo tempo, sua
frustração no que diz respeito aos estudos britânicos das
mídias. O entrevistado afirma à autora, que tais estudos
eram os que existiam de mais dinâmicos e excitantes nos
idos dos anos de 70 e 80, pois via neles uma aproximação
com o que era dito “popular”, tornando-se assim verda-
deiramente relevante suas publicações e pretensões.
Considerava que o encontro de áreas distintas do
conhecimento (assim como as teorias: literária, psi-
canalítica, história etc.) passou a olhar para “todos os
lados, para qualquer disciplina ou temática, mas aten-
ta aos porquês” (ESCOSTEGGUY, 2001, p. 272). Ou
seja, buscavam aprofundar seus estudos frente à cultu-
ra popular, mas com o intuito de realizar verdadeiras
mudanças sociais, tendo assim, um verdadeiro e sério
projeto conectado as suas pesquisas.

Os estudos culturais britânicos eram um mo-


vimento radical que pretendia encontrar uma
forma de olhar a cultura popular como o modo
pelo qual as pessoas expressam sua identidade
e suas relações com os outros, conectada a di-
ferentes grupos. Pretendiam um entendimento
da natureza essencial do cotidiano, para cons-
truir uma frente popular que transformaria a
sociedade. Tal projeto, como eu o entendi, esta-
va articulado à política. O propósito de estudar

523 Críticas e Processos Comunicacionais


a cultura popular envolvia mudar muitas das
instituições da sociedade, portanto, o objeti-
vo era mudar a sociedade. Isso envolve ganhar
eleições, estar envolvido na política conven-
cional. Se você olha os escritos de Gramsci, ele
sempre viu a cultura mobilizando apoio ao es-
tado capitalista, isso foi visto em termos revo-
lucionários, eu não vejo assim porque sou um
social democrata. A atração pelos estudos cul-
turais gira em torno de uma mobilização libe-
radora da classe trabalhadora, das feministas,
dos gays, dos ambientalistas e outros grupos
numa campanha conjunta para mudar a so-
ciedade. Esse é meu entendimento dos estudos
culturais. (ESCOSTEGGUY, 2001, p. 272)

Apesar do professor, reafirmar seu entusiasmo com


relação aos estudos culturais, este coloca que abando-
nou tal linha teórica, pois os estudiosos deixaram de
ser “radicais”, passando apenas a serem liberais. Coloca
também que muitos destes teóricos se posicionaram
como antiestatistas, o que poderia parecer um tipo de
radicalismo, o que é negado pelo entrevistado, haja vis-
to, que no país britânico este posicionamento liga-se à
um contexto de direita, dando bases a sua frustração
com seu encaminhamento teórico-político, negando
assim suas origens Marxistas.
Ainda assim, tal teoria se mostra relevante, pois,
como afirma Richard Johnson (2006. apud FERNAN-
DES, 2010, p.4.), são três as principais contribuições de
Marx para os Estudos Culturais:

524 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


1) os processos culturais estão intimamente
vinculados com as relações sociais, especial-
mente com as relações e as formações de classe,
com as divisões sexuais, com a estruturação ra-
cial das relações sociais e com as opressões de
idade; 2) cultura envolve poder, contribuindo
para produzir assimetrias nas capacidades dos
indivíduos e dos grupos sociais; 3) cultura não
é um campo autônomo, mas um local de dife-
renças e de lutas sociais.

Tratando-se ainda dos estudos britânicos, Beltrão


(1980, apud FERNANDES, 2010, p. 4) classifica alguns
grupos como marginalizados. Para este estudo, o enfo-
que será dado apenas aos que ela denomina como “mar-
ginalizados culturais”, onde o interesse se volta especifi-
camente aos nomeados como os “erótico-pornográficos”,
que são pessoas que iriam contra a ordem moral e sexu-
al, ditada como padrão pela sociedade. Deles fazem par-
te as feministas, as prostitutas e os homossexuais.
Assim, Beltrão (1980, apud FERNANDES, 2010, p.
4) nos transporta aos conceitos de hegemonia propos-
tos por Gramsci, os quais são utilizados amplamente
pelos Estudos Culturais. O pesquisador propõe com es-
tes estudos a observação de duas vertentes distintas, a
cultura hegemônica (tida como “dominante”) e a cultura
contra-hegemônica (chamada também de “folk”), prin-
cipalmente no que se diz respeito às lutas das minorias
por reconhecimento e seguridade de direitos, para que
se assemelhem aos grupos hegemônicos, inclusive no
que possa dizer respeito à comunicação.

525 Críticas e Processos Comunicacionais


O indivíduo marginal [...] muitas das vezes
se apresenta dentro das normas socialmente
aceitas, pois ele teme ser rechaçado por deter-
minados grupos, porém, quando está junto ao
seu grupo folk ele pode assumir sua identidade
dentro desse grupo. Por exemplo, é difícil para
um homossexual se declarar gay nos ambientes
de trabalho e escolar, porém, quando está junto
a outros homossexuais ele (pode) não tem (ter)
problemas em si assumir como tal, desde, é cla-
ro, que já tenha passado pelo processo de come
out (sair do armário). (FERNANDES, 2010, p. 4)

Garcia (2002) pontua, a partir de sua entrevista com


Curran, que se pode pontuar o contexto da homossexu-
alidade através de estudo inter/transdisciplinar. Afirma
também que “o universo da homocultura mobiliza o di-
reito e o respeito à diferença, quando investe sobre um
conhecimento que observa e absorve acordamento, acei-
tação e inclusão das ditas minorias sexuais”. Ainda de-
monstra a pertinência deste estudo e sua afinidade com
as relações entre tais minorias e o mundo do trabalho.
Ferreira (2007, p. 31) contribui em seus estudos o
que nos diz a alemã Elisabeth Noelle-Neumann, e sua
teoria do Espiral do Silêncio. Essa autora mostra como
vozes em minoria podem ser silenciadas. Partindo dessa
colocação a cientista alemã explicita que os indivíduos
tendem a expressar suas verdadeiras opiniões apenas
quando o ambiente externo lhes é favorável. Estes in-
divíduos analisam o ambiente ao qual estão inseridos,
determinam qual a posição dominante, majoritária, em

526 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


detrimento da minoritária. “O que essa teoria revela é
que opinião nenhuma é expressa se não houver apoio e
suporte por parte dos colaboradores envolvidos.”
Brito (2014, p. 61), utiliza-se da mesma teoria para
afirmar que uma minoria pode ser isolada ou mesmo re-
jeitada, caso não siga um consenso imposto pela maioria
das pessoas. E isso pode ser visto claramente no contex-
to de heteronormatividade, que dita normas dentro do
ambiente organizacional, que pode levar as pessoas, nes-
ta condição de homossexualidade, a agir sob uma pos-
tura reservada, ou mesmo, perder a naturalidade de seus
contatos, causando assim insatisfação pessoal, e possi-
velmente uma perda diante do seu potencial laboral.

A cultura homossexual e a heteronormatividade nas


organizações

Tendo em mente os dados assim expostos no tópico an-


terior, dá-se continuidade a esta análise utilizando-se dos da-
dos expostos por Ferreira (2007, p. 20), onde se pode concei-
tuar que a cultura homossexual surge dos anseios de pessoas
homossexuais que ao manterem relação/convívio podem es-
tabelecer identidades, obtendo assim elementos de represen-
tatividade e reconhecimento frente à sociedade, a partir do
compartilhamento de pensamentos, valores, símbolos, ati-
tudes e comportamentos próprios. Ainda segundo o autor:

a cultura homossexual é um fenômeno socialmen-


te construído com vistas a lidar com a alienação
e o preconceito. (KATES, 1998, apud NUNAN,

527 Críticas e Processos Comunicacionais


2003, p. 137). Seguindo esse raciocínio, define-
-se cultura homossexual como consequência das
sociedades complexas em que não existe sistema
de valores único e uniforme que seja válido para
todos os indivíduos. A realidade social é hetero-
gênea e inclui a coexistência e inter-relações entre
diferentes sistemas de classificação da sexualida-
de. (MÈNDES-LEITE, 1993, p. 272)

Esta visão de que não existe um sistema de valores


únicos e uniformes, muitas vezes não é partilhada pelas
organizações brasileiras. Segundo Reis (2003, p. 24), a
maioria destas vê seus colaboradores sobre uma “óptica
completamente tecnicista”, como se não houvesse dife-
rentes grupos sociais, além daquelas definidas por suas
posições hierárquicas.
Quando falamos de sexualidade, o debate sempre se
centrou nos estudos que seguiam um padrão normativo, e
praticamente todos se davam em cima destes “iguais”. No
entanto, Candau (2008, p. 46) sugere que, não se deixan-
do de lado as questões sobre igualdade, mas os enfoques
das discussões têm se dado atualmente mais às diferenças.
A autora afirma, inclusive, que tais diferenças assumem
uma importância especial, transformando-se num direito
“não só o direito dos diferentes a serem iguais, mas o di-
reito de afirmar a diferença [...] não se trata de afirmar um
polo e negar o outro, mas de articulá-los de tal modo que
um nos remeta ao outro (2008, p. 47)”.
Para tanto, partimos na nossa reflexão utilizando a
definição proposta por Reis (2013, p. 18), quando coloca

528 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


que as características padrão esperadas do trabalhador,
da pessoa que tomam frente, sob a ótica da sociedade
brasileira é a do homem, branco e heterossexual. Afir-
mação essa, a qual é repetida por vários autores, e deverá
ser retomada ao longo deste tópico.
O Manual de Comunicação LGBT (MARTINS, RO-
MÃO, LINDNER, REIS, p. 13) carrega a definição da ex-
pressão heteronormatividade, como uma suposta nor-
ma social relacionada a esse comportamento esperado,
tipo como um padrão heterossexual. Onde explicita que
este tipo de postura cultural e social seja o único váli-
do, colocando assim quem não o segue em desvantagem
frente aos demais cidadãos. A partir destes argumentos
discriminatórios se embasam discussões sobre a cons-
tituição de família e expressão pública da sexualidade.
Ferreira (2007, p. 11) traz em sua obra a confirmação
destes relatos, reforçando que existe um caráter do silên-
cio e da anormalidade atribuídos a um sistema de classi-
ficação cultural, que direciona a homossexualidade, tor-
nando-o um assunto quase que impenetrável. O autor
afirma, ainda, que “a herança cultural brasileira deixou
a homossexualidade no campo do proibido, em que fa-
lar, defender, produzir conhecimento ao seu redor, lutar
por sua visibilidade, possui um aspecto de transgres-
são”. Afirma-se que no momento, “até mesmo pesquisas
sobre o tema no ambiente empresarial enfrentam inú-
meras barreiras com o receio da exposição” (Promoção
dos direitos humanos de pessoas LGBT no mundo do
Trabalho, p. 66). Ainda que considerem o embasamento
científico sobre o tema deficiente, os autores Sicherolli,

529 Críticas e Processos Comunicacionais


Medeiros e Valdão Júnior (2011, p. 3) afirmam que os
estudos existentes têm colhido seus dados a partir ex-
periências vividas nas organizações e no trabalho dos
profissionais, tanto de recrutamento, como as minorias,
possibilitando uma enorme gama interpretações, como
a da “diversidade de pessoas, costumes, tradições e ori-
gens, entre outras”.
O Instituto Ethos (2003, p. 24) afirma que, além dos
conceitos históricos, culturais e ideológicos atribuídos a
“normalidade” como ser homem, branco e heterossexu-
al (REIS, 2013), há também características como a de ser
magro, não deficiente e católico. Atributos estes ligados
aos ditos graus “de normalidade, moralidade, beleza e
capacidade para decidir e liderar as organizações”.
Tendo em vista a predominância deste perfil, Coutinho
(2006, apud PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
DE PESSOS LGBT NO MUNDO DO TRABALHO, 2014,
p. 14) vê como impraticável o ato de se colocar em prática
o tema da diversidade nas organizações brasileiras, já que
os homossexuais ainda precisam omitir a sua orientação
sexual para manter-se em seus postos de trabalho.
Reis (2013, p. 11) explicita tais dificuldades, quando
afirma que podem ser imputadas às relações laborais, al-
guns tipos de sanções e/ou “punições” devido à orientação
sexual do indivíduo, limitando assim a atuação do homos-
sexual em seu ambiente de trabalho. Reforça, ainda, que
diferentemente dos casos dos portadores de deficiência fí-
sica, por exemplo, os homossexuais não possuem proteção
legal contra este tipo de violência, ainda mais que, muitas
vezes essas sanções são feitas de forma camuflada.

530 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Segundo Ferreira (2007, p. 30), pode-se elencar que as
principais barreiras encontradas pelos gays, lésbicas e bis-
sexuais são a “discriminação, inapropriação de profissões
para os homossexuais, homofobia, estereótipos negativos,
estigmas sociais e o medo da AIDS no ambiente de traba-
lho”. Jardim (2004, apud. REIS, 2013, p. 11) endossa esta
afirmação ao dizer que “quando um indivíduo se mostra
de forma singular, distinto do sistema e dos outros indi-
víduos, ele sofre com os preconceitos de uma sociedade
que aparenta zelar pela liberdade e singularidade”.
Ferreira (2007, p. 32) e Reis (2013, p. 11-12), afirmam
que não se assumir no ambiente de trabalho acarreta
um fardo, um sofrimento, sentindo-se incompleto em
seu ambiente profissional. Dispende-se muita energia
em esconder sua sexualidade, de forma a criar e se man-
ter uma camuflagem, portando-se de maneira que este
segredo não seja revelado. Esta homofobia internalizada
gera baixos níveis de bem-estar e satisfação de vida, as-
sim como a existência de um constante medo de rejeição
e retaliação, ceifando suas qualificações profissionais,
expondo-o a uma realidade onde tem sua intimidade
invadida, submetendo-o a julgamentos constantes de
um ambiente opressor, dominador e/ou violento (PRO-
MOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DE PESSOAS
LGBT NO MUNDO DO TRABALHO, 2014, p. 14-15).
Além do receio de que sofram agressões ou atos de dis-
criminação, os mesmos constantemente policiam suas
atitudes ligadas ao seu estilo de vida pública.
A heteronormatividade, os preconceitos e as dis-
criminações imbuídos neste contexto, fazem com que

531 Críticas e Processos Comunicacionais


sejam deixadas de lado as competências profissionais,
ou mesmo o mérito, razões estas que deveriam ser re-
quisitos para a contratação ou ascensão a novos cargos.
Tais impactos são sentidos não apenas pelo candida-
to, mas na gestão empresarial, e mesmo, porque não
dizer, no âmbito da própria sociedade (PROMOÇÃO
DOS DIREITOS HUMANOS DE PESSOAS LGBT NO
MUNDO DO TRABALHO, 2014, p. 15-16).
Segundo Reis (2013, P. 18), faz-se necessária aderru-
bada de alguns estereótipos já estigmatizados pela so-
ciedade, como a afirmação de que todo homossexual
masculino seja mais sensível e efeminado para os ditos
padrões masculinos, ou mesmo, ao contrário, que o ho-
mossexual feminino seja uma mulher com atributos e
atitudes masculinizadas.
Ferreira (2007) observa que os aspectos ligados à re-
lação entre o indivíduo que mantém segredo ou revela
sua orientação sexual, devem ser discutidos pelos estu-
dos organizacionais, não tendo seu centro ligado apenas
a aspectos pessoais, sociais e culturais. Questões como:

desempenho, relacionamento interpessoal, sa-


tisfação no trabalho [são] importantes para a
melhor compreensão da diversidade existente
nas organizações, vez que nesses espaços, assim
como fora deles, existe um ambiente heterosse-
xual por excelência, onde não há espaço para a
diversidade relacionada à orientação sexual mi-
noritária (FERREIRA, 2007, p. 14).

532 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Tais questões ou considerações poderão ser vistas
de forma mais aprofundada a seguir, onde trataremos
da diversidade cultural e a inserção do homossexual
nas organizações.

Diversidade cultural e a inserção do Homossexual


nas organizações

A diversidade cultural é condição sine qua non para o


diálogo intercultural e vice-versa (UNESCO, 2009, p. 31).
Ao definir a diversidade, Reis (2013, p. 13) coloca que
esta não pode ser resumida a uma ou outra caracterís-
tica, como raça ou gênero, mas a uma enorme gama de
atributos pertencentes a determinados indivíduos ou
grupos. Fleury (2000, p. 20), define a diversidade cul-
tural como um “mix de pessoas com identidades dife-
rentes interagindo no mesmo sistema social”. O autor
observa que nestes sistemas há a coexistência de grupos
de maioria e minoria, onde ainda “os grupos de maioria
são os grupos cujos membros historicamente obtiveram
vantagens em termos de recursos econômicos e de po-
der em relação aos outros”. Eccel e Flores-Pereira (2008,
apud REIS, 2013, p. 13) afirma que a diversidade pode
ser considerada como “o que se afasta de uma identi-
dade: homem branco, heterossexual e sem deficiências”.
Reis (2013, p. 13) acrescenta que a diversidade, segundo
Thomas (1990, apud NKOMO E COX JR. 1999, p. 334-
335) [...] estende-se à idade, história pessoal e corpora-
tiva, formação educacional, função e personalidade. In-

533 Críticas e Processos Comunicacionais


clui estilo de vida, preferência sexual, origem geográfica,
tempo de serviço na organização, status de privilégio ou
de não privilégio e administração ou não administração.
Segundo o relatório da Unesco (2009, p. 22) atual-
mente é fator chave para as empresas que almejam par-
ticipar com sucesso deste mercado internacionalizado
que se atentem para os desafios impostos pela diversi-
dade cultural, considerando não apenas suas políticas
de emprego, mas todas as suas operações, “quer se trate
da concepção dos produtos, da criação da sua imagem
de marca ou da elaboração de estratégias de comercia-
lização, ou ainda da organização das empresas ou das
suas políticas de emprego”.
Portanto, é necessário, segundo Thomas (1996, apud
FLEURY, 2000, p. 20) que a gestão desta diversidade cul-
tural tenha uma visão holística de forma a desenvolver
em todos os seus colaboradores a potencialidade neces-
sária para atingir os objetivos da empresa. Neste ponto,
segundo Candau (2008, p. 46) faz-se observar que:

a relação entre questões relativas a justiça, re-


distribuição, superação das desigualdades e de-
mocratização de oportunidades e as referidas ao
reconhecimento de diferentes grupos culturais
se faz cada vez mais estreita [...] a problemáti-
ca dos direitos humanos, muitas vezes entendi-
dos como direitos exclusivamente individuais e
fundamentalmente civis e políticos, amplia-se e,
cada vez mais, afirma-se a importância dos di-
reitos coletivos, culturais e ambientais.

534 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Os impactos individuais e organizacionais da diver-
sidade, são consequência destas diferenças individuais
(físicas e culturais) com este “clima de diversidade”, que
responde por fatores individuais, grupais e organiza-
cionais inter-relacionados. Tais resultados podem ser
medidos em variáveis de afetividade e desempenho,
impactando diretamente na qualidade do trabalho, na
lucratividade, no nível de atendimento e até mesmo nas
admissões e demissões (FLEURY, 2000, p. 20).
Muitos gestores podem se sentir desestimulados a
apoiar este processo de inclusão da diversidade, levan-
do em conta a demora ao vislumbrar as consequências
desta estratégia administrativa (SICHEROLLI; MEDEI-
ROS; VALADÃO JÚNIOR, 2011, p. 6). No entanto, estas
relações devem ser vistas como estratégicas nas organi-
zações, visto que podem comportar relações positivas,
quando possuem papéis de inclusão social, ou negativas,
quando representam exclusão (FERREIRA, 2007, p. 23).
Fleury (2000, p. 20) afirma que é de suma importân-
cia avaliar o contexto organizacional, buscando analisar
de que forma os impactos são positivos ou negativos
da diversidade presente nas organizações, levando em
consideração as pretensões organizacionais e individu-
ais. Informa também, em concordância ao que afirma
Dessler (2003. Apud SICHEROLLI; MEDEIROS; VA-
LADÃO JÚNIOR, 2011, p. 4) que este posicionamen-
to deve melhorar a relação e a experiência entre os dois
grupos, maioria e minoria, maximizando as vantagens e
minimizando as desvantagens potenciais, como discri-
minações e preconceitos.

535 Críticas e Processos Comunicacionais


Segundo Knomo e Cox (1996. apud. FLEURY, 2000, p.
20) “notamos, por exemplo, que o não-gerenciamento da
diversidade pode conduzir a forte conflito intergrupal entre
membros da maioria e da minoria, reduzindo os resultados
efetivos do trabalho para homens de ambos os grupos”.
Green et al (2002, apud SICHEROLLI; MEDEIROS;
VALADÃO JÚNIOR, 2011, p. 1) corrobora com esta
afirmação, ao colocar que uma empresa que investe no
recrutamento de pessoas pertencentes a grupos de diver-
sidade, a partir de uma gestão ativa destas diversidades,
possibilita o aumento de sua capacidade criativa, além
da manutenção de uma imagem positiva da organização.
Diante da distribuição mais justa das posições de
trabalho, apoiados numa legislação mais igualitária,
justificáveis inclusive, pelas mudanças demográficas e
pela globalização de mercado, vislumbrando-se um fu-
turo não tão distante, os postos de trabalho serão ocu-
pados cada vez mais por mulheres e minorias, afirma
Dessler (2003, apud SICHEROLLI; MEDEIROS; VA-
LADÃO JÚNIOR, 2011, p. 2). Segundo Saraiva (2009,
apud REIS, 2013, p. 14-15):

as políticas de diversidades aplicadas nas em-


presas são constituídas de modo a: “tratar di-
ferentes com igualdade”. Assim sendo os dis-
cursos empresariais acerca dos programas de
diversidade “atuam em múltiplos níveis e em
diferentes frentes – difundem uma nova visão
de organização, tratando de aspectos díspares
e, ao mesmo tempo, complementares, na tessi-
tura de uma visão de cidadão (mais do que de

536 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


empregado), e da comunidade (mais do que da
empresa), em busca de legitimidade.

Tendo, portanto, esta noção de diferenças indivi-


duais, as empresas devem inserir em seus conheci-
mentos de diversidade, a orientação sexual. Afinal,
nem todos os seus colaboradores são heterossexuais.
Segundo Pope (1995, apud FERREIRA, 2007, p. 31),
é extremamente relevante saber se existe e como é a
revelação da orientação sexual, e como esta afeta ou
não a rotina e as relações interpessoais no trabalho;
se estas revelações interferem em posicionamentos
trabalhistas, e mesmo outros assuntos relevantes a
estes respectivos colaboradores.
Como já citado anteriormente, a saída ou não do
armário no ambiente de trabalho, depende em gran-
de parte de um ambiente favorável para tal, que seja
aberto à diversidade, com respeito e aceitação dos co-
legas e superiores. Segundo Ferreira (2007, p. 109),
um ambiente aberto à diversidade “contribui, de al-
guma maneira, para não haver mudanças negativas de
relacionamento interpessoal, bem como restrições de
oportunidades no que se refere à ascensão de carreira
e crescimento profissional”.
Ferreira (2007, p.37) afirma também que os gays as-
sumidos são propensos a procurar carreiras que per-
mitam expressar sua orientação sexual dentro e fora
do ambiente de trabalho. Enquanto os não assumidos,
buscam escolhas laborais voltadas a valores tradicionais,
como status e estabilidade.

537 Críticas e Processos Comunicacionais


Segundo a cartilha que trata da “Promoção dos direi-
tos humanos de pessoas LGBT no mundo do Trabalho”
(2014, p. 11), atualmente há uma desaprovação e uma
contestação de práticas de intolerância, que antes eram
aceitas ou mesmo ignoradas. As pessoas pertencentes
trazem ao ambiente de trabalho um ambiente plural,
que acaba questionando “normas, estilos, padroniza-
ções, processos e políticas que antes eram impostos e
obedecidos sem tantos questionamentos”.
Nota-se que ainda há uma falta de repertório, tanto
para a atuação dentro das empresas, quanto no ambiente
social no que se diz respeito à cultura da diversidade. No
mundo organizacional, há pessoas que tentam ignorar,
outras que enfrentam os desafios deste novo paradigma.
Deve-se ter a consciência de que organizações que não
lutam em prol de melhores condições de trabalho, am-
pliação dos direitos trabalhistas, lutando contra práticas
discriminatórias e violentas, visando a minimização de
preconceitos e estigmas, findam por gerar pessoas in-
felizes, e não trilham assim um caminho em busca de
resultados e sucesso em suas operações (PROMOÇÃO
DOS DIREITOS HUMANOS DE PESSOS LGBT NO
MUNDO DO TRABALHO, 2014, p. 12, p. 15).
Para tanto, Thomas (1996, apud MEDEIROS; VALA-
DÃO JÚNIOR, 2011, p. 4) sugere cautela, para que as
campanhas de inclusão não sejam minimizadas a apenas
restritas a ações antidiscriminatórias, mas a uma com-
pleta gestão da diversidade, de forma a atingir os obje-
tivos traçados pela organização a partir do engajamento
de todos os seus membros.

538 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Expectativas relacionadas aos homossexuais e seus
direitos nas organizações

Nem tudo numa empresa existe para gerar lucro e,


por outro lado, a conduta ética pode estar relacionada
ao lucro, dando a ele os contornos de sua legitimidade
(INSTITUTO ETHOS, 2003, p. 31).
Antes vitimados por um histórico de marginaliza-
ções, atualmente os homossexuais procuram um novo
posicionamento no qual aspiram se relacionar de uma
nova forma em busca de um novo espaço social. Isso se
reflete também, nas relações de trabalho como meio de
colocação profissional (CARRIERI; AGUIAR; DINIZ,
2010 apud REIS, 2013).
No entanto, os gays ainda não têm seus direitos ga-
rantidos, diferentemente do que acontece com os di-
reitos da mulher, por exemplo. Não há uma legislação
dentro da sociedade brasileira que garanta os direitos
humanos inerentes aos grupos LGBT, nem mesmo com
relação à criminalização da homofobia. Ainda existe a
carência de uma legislação de amparo a não discrimina-
ção e a não violência, por parte dos órgãos públicos de
governo ou de justiça, ficando aberto a interpretações
das autoridades cabíveis a cada situação (INSTITUTO
ETHOS, 2003, p. 30).
O Instituto Ethos, que diz respeito ao compromis-
so das empresas com os direitos humanos dos LGBT
(2003, p. 31), afirma que direitos devem ser garantidos
a todos que possuem a condição de membros de uma
família humana. Há uma busca muito mais do que por

539 Críticas e Processos Comunicacionais


direitos específicos ou diferentes dos oferecidos para as
pessoas heterossexuais, mas sim, a igualdade de trata-
mento. Não se deseja negar o direito de ninguém, nem
nada além, apenas se desejam que todos tenham os
mesmos direitos.
Segundo Ferreira (2007, p. 19), o movimento homos-
sexual encontra-se no momento de sair do armário em
busca de uma identidade coletiva, capaz de obter direi-
tos civis em patamar de igualdade aos dos casais homos-
sexuais. Dentre estes direitos, o autor propõe: “direito à
herança, partilha de bens, declaração conjunta de ren-
da, inclusão do parceiro como dependente em planos
de saúde e previdência, aquisição de nacionalidade (nos
casos em que o parceiro é estrangeiro), entre outros”.

Conclusão
Partindo-se de um contexto histórico do movimento
LGBT, desde suas primeiras lutas por direitos, até sua
atual representatividade, como a comunicação através
de suas mediações pode agir de forma colaborativa/
transformadora na implantação/desenvolvimento de
uma cultura organizacional inclusiva, envolvendo con-
ceitos de responsabilidade social empresarial, a criação
de um ambiente organizacional favorável para que a
pessoa LGBT possa viver harmoniosamente e ter seus
direitos respeitados em nível de igualdade, minimizan-
do-se assim os efeitos da homolesbotransfobia.

540 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Este estudo mostrou a existência de uma atração dos
estudos culturais sobre assuntos como a classe trabalha-
dora, o feminismo, os homossexuais, entre outros. Este
se dá, exatamente, através do vínculo dos processos cul-
turais a suas relações sociais.
Estudos estes que passando por estes grupos, inevi-
tavelmente dialogam sobre conceitos de hegemonia e
marginalização discutidos no decorrer do texto.
Ainda dentro deste raciocínio, conceitos como o es-
piral do silêncio, demonstram como alguns indivíduos
tendem a guardar suas opiniões verdadeiras sobre deter-
minados assuntos, visto que os ambientes externos não
lhes favorecem à abertura, comprovando assim a neces-
sidade de uma adequação nos ambientes laborais.
Tendo estes dados, o estudo percorreu a forma com
que as empresas realizam, ou não, a inclusão do homos-
sexual masculino, e obtiveram-se indícios de que as em-
presas trabalham sob uma óptica totalmente tecnicista,
onde se tem a impressão de que ainda é como se não
houvesse diferenças entre seus grupos sociais, além da-
quelas definidas por suas posições hierárquicas. Inclu-
sive, não favorecendo a pesquisa das formas destas ex-
pressões culturais e de inclusão.
Os estudos atuais focam principalmente no direito de
ser diferente (e não mais nos aspectos ligados a igualda-
de), e principalmente no que isto pode trazer de positivo
frente ao ambiente laboral, tema abordado com cuidado
e profundidade durante este trabalho.
Afinal, como nos afirmou Ferreira (2007, p. 30), pôde-
-se elencar que as principais barreiras encontradas pelos

541 Críticas e Processos Comunicacionais


gays, lésbicas e bissexuais são a “discriminação, inapro-
priação de profissões para os homossexuais, homofo-
bia, estereótipos negativos, estigmas sociais e o medo da
AIDS no ambiente de trabalho”. E dentre estas e outras
causas, veem suas expectativas e estímulo laboral mina-
dos por tais políticas organizacionais que não valorizam
a diversidade cultural dentro do ambiente empresarial.
Tal texto buscou se colocar como motivador para
que se possa iniciar uma reflexão sobre o assunto em
um mundo cada vez mais diverso e inclusivo. Tal tema
se mostra atual e relevante, suscitando discussões nos
mais diversos campos sociais, como também à pesquisa
científica, principalmente o que diz respeito à comuni-
cação e suas teorias.

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545 Críticas e Processos Comunicacionais


Capítulo 18
1
Intertexto da literatura para o cinema:
um estudo sobre Bakhtin e a adapta-
ção cinematográfica do gênero noir 1

Natália de Oliveira Conte Delboni2

Introdução
Infidelidade, traição, violação... Esses e outros termos
são usualmente utilizados para se referir a uma adap-
tação literária. Comumente tida como cópia de um ro-
mance, o filme adaptado de uma literatura tende a ser
cobrado pela sua fidelidade à obra original e cria expec-
tativas ao telespectador leitor.

1. Artigo apresentado na disciplina Teorias da Comunicação, mi-


nistrada pelo Professor Osvando Moraes.
2. Natália de Oliveira Conte Delboni é mestranda no Programa de
Pós-graduação em Comunicação Organizacional da Unesp –
FAAC – Bauru/SP. Pesquisa baseada nas relações intertextuais
do cinema e a literatura, em especial adaptações cinematográfi-
cas do gênero noir. É orientada pelo Prof. Marcelo Bulhões

546
Porém, é necessário partirmos do pensamento do
teórico russo Mikhail Bakhtin para teorizar que, além
da liberdade de cada artista ao dirigir a sua adaptação,
devemos considerar a prática intertextual e o dualismo
já citado há muitos anos pelo linguista.
Os estudos sobre os diálogos entre signos surgiram no
meio do século XIX, quando Bakhtin começa a tratar em
suas obras sobre semiótica e estética da linguagem as re-
lações existentes em diversos textos, como se esses se en-
trelaçassem formando uma trama com seus significados.
Stam justifica a relação de Bakhtin com diversas áreas
dos estudos culturais. Segundo ele, embora os estudos
do filósofo russo tenham destaque no campo da linguís-
tica, suas disciplinas vão de encontro à critica literária
e à antropologia, revelando-se ainda, um campo fértil
para os estudos de cinema. “Até o momento, na historia
da reflexão sobre o cinema, Bakhtin tem sido conside-
rado o teórico do carnaval e das inversões rituais, tais
como refletidos nas diegeses dos filmes e, quando fil-
trado através de Kristeva e Genette, como um dos pen-
sadores seminais das discussões contemporâneas sobre
“intertextualidade””. (STAM, pg. 59, 1992).
Segundo o estudioso da comunicação e cinema
Robert Stam, em seu ensaio “Teoria e Prática da
Adaptação: da fidelidade à intertextualidade”, a se-
miótica estruturalista das décadas de 1960 e 1970,
tratava somente das significações compartilhadas
pelos sistemas textuais. No entanto, com os estudos
de Julia Kristeva e Gerad Genette, no final da déca-
da de 70, a teoria da intertextualidade ganha força

547 Críticas e Processos Comunicacionais


diante das questões sobre adaptação cinematográfi-
ca. “Similarmente, enfatizam a interminável permu-
tação de textualidades, ao invés da “fidelidade” de
um texto posterior a um mundo anterior, e desta for-
ma também causam impacto em nosso pensamento
sobre adaptação” (STAM, 2006, p. 21).
Ele ainda ressalta que um filme enquanto “cópia”,
pode ser original para as cópias subsequentes, é só
observar as inspirações literárias que temos com o
passar dos anos no mundo da sétima arte. “O “origi-
nal” sempre se revela parcialmente “copiado” de algo
anterior; A Odisseia remonta à história oral anônima,
Don Quixote remonta aos romances de cavalaria, Ro-
binson Crusoé remonta ao jornalismo de viagem, e as-
sim segue ad infinitum”. (STAM, 2006, p. 22).
Com o passar dos tempos, muitos romances foram
grandes inspiradores para adaptações cinematográficas.
Na década de 40, com a ascensão dos romances poli-
ciais, surge o gênero noir: um estilo de filme que se cons-
titui basicamente de adaptações de romances e contos de
revistas: as chamadas pulp magazine.
Assim, esse trabalho vai permear pelas teorias do fi-
lósofo russo e outros teóricos que vão agregar conceitos
que serão favoráveis ao estudo. No primeiro momento,
será abordada toda a trajetória de Bakhtin sobre os es-
tudos de linguagem e signos. Seguido de apontamentos
sobre a noção de dialogismo e intertextualidade, junto
com Kristeva. E para finalizar, a análise de quadros de
três filmes que são objetos desse trabalho.

548 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Mikhail Bakhtin e seus estudos
Mikhail Mikhailovitch Bakhtin nasceu em 16 de
novembro de 1895, em Orel, pequena cidade ao sul de
Moscou. Seu contato com diversidade de línguas come-
çou na infância, quando viveu em cidades como Vilna e
Odessa – áreas de grande diversidade linguística, grupos
étnicos e classes sociais, o que lhe proporcionou a poli-
glossia, característica que marcou sua obra.
Inicia seus estudos na Universidade de São Peters-
burgo, se formando em História e Filologia, momento
em que apoiou a Revolução Russa de 1917. Torna-se
professor em Nevel, onde forma um círculo de amigos
pensadores e estudiosos que, mais tarde, serão conheci-
dos como “O Círculo de Bakhtin”. Entre os participantes
temos Matvei Issaévitch Kagan, Valentin Nikolaévitch
Voloshinov e Pável Nikolaévitch Medvedev.
A vida de Bakhtin foi marcada por uma grave doença
óssea que lhe causou a perda de uma das pernas, por um
período de prisão por problemas com a igreja ortodoxa,
por fases de desemprego e pelo final de sua vida como che-
fe do Departamento de Estudos Literários da Universidade
de Mordóvia. E também, pelo exílio de grandes círculos
acadêmicos. “Teve, no entanto, ao longo de sua vida, uma
intensa atividade de reflexão e escrita, que fez dele um dos
grandes pensadores do século XX” (FIORIN, p. 11, 2006).
Segundo Fiorin, Bakhtin tem uma obra ampla e com-
plexa. Primeiro por que seus textos seguiram duas ver-
tentes: uma que vê a realidade como uma unidade e ou-
tra que considera a diversidade e o dialogismo. Situação

549 Críticas e Processos Comunicacionais


esta, que fez com que muitos questionassem a autoria de
seus textos entre os companheiros do “Círculo”.
No Ocidente, torna-se conhecido em 1967, quan-
do Júlia Kristeva publica uma apresentação na Revista
Critique com o título: “Bakhtin, o discurso, o diálogo, o
romance”. Inclusive, foi Kristeva que desenvolveu os pri-
meiros estudos de Bakhtin sobre dialogismo, chegando
ao termo intertextualidade.
Mesmo com toda diversidade da obra do filósofo rus-
so, Fiorin exemplifica que é possível identificar várias ca-
racterísticas do autor, entre elas o Bakhtin pós-moder-
nista, o Bakhtin interacionista, o Bakhtin modernista e
o Bakhtin linguista: o teórico da literatura. “No entanto,
ele não produziu uma teoria acabada da linguagem e dos
diferentes níveis da língua, nem uma teoria da literatura
completa”. (FIORIN, p. 16, 2006).
Foi a partir desse processo de estudo linguístico bakhti-
niano que surge o conceito de dialogismo, ou seja, a noção
de que a língua, em toda sua totalidade possui a proprieda-
de de ser dialógica. Não somente em sua composição, mas
também em como elas ocorrem filosoficamente.
Em seus estudos sobre gêneros e discursos, Bakhtin
mostra que os estudos sobre a língua não podem basear-
-se somente na relação de locutor e enunciado. Para ele,
a multiplicidade de locutores não pode ser ignorada.

“Às vezes a coletividade linguística é encarada


como uma espécie de personalidade coletiva
– o ‘espírito de um povo’, etc. – e é-lhe atri-
buída uma importância capital (na psicologia

550 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


dos povos), mas a verdade é que, mesmo nes-
ses casos, a multiplicidade dos locutores – os
outros para cada determinado locutor – perde
sua substância”. (BAKHTIN, p. 290, 2000).

Percebemos o tema central dos estudos sobre lingua-


gem de Bakhtin: o eu e o outro. Segundo Stam, o eu, para
Bakhtin, não é autônomo existindo somente em diálo-
gos com outros eus. “O eu necessita da colaboração de
outros para poder definir-se e ser “autor” de si mesmo”
(STAM, pg. 17, 1992). Para Bakhtin, o eu humano, não
existe se não passar pela convivência com o meio am-
biente social que estimula a capacidade de reflexão, mu-
danças de estados e de respostas e estímulos.
Em seus estudos sobre os eus autorais, Bakhtin com-
partilha de princípios marxistas quanto à tendência de
alienação das sociedades capitalistas onde o receptor
cessa o seu próprio poder de definição do pensar, geran-
do ideias de legitimadores culturais. Porém, ele se afasta
desse pensamento quando passa a identificar nas análi-
ses de discurso uma visão mais comunitária da dialética
social que como uma determinação econômica.
O pesquisador russo identifica que o autor tem pa-
pel primordial e decisivo, não sendo uma figura estática,
mas uma energia disponível em interação com outros
personagens. “Trata-se, afinal, da relação entre o texto
e todos os seus “outros”: o autor, o leitor e o intertexto”
(STAM, p. 18, 1992). Assim, a existência de cada indi-
víduo está inter-relacionada com a sua experiência par-
ticular e a do outro, o que, segundo Bakhtin, seria uma

551 Críticas e Processos Comunicacionais


relação dialógica entre eu e o outro gerando diversas di-
cotomias conceituais.
O enunciado parte de uma única língua, porém que,
também partilha de um plurilinguismo social e histórico.
“Trata-se da língua do dia, da época, de um grupo social,
de um gênero, de uma tendência, etc. É possível dar uma
análise concreta e detalhada de qualquer enunciação, en-
tendendo-a como unidade contraditória e tensa de duas
tendências opostas da vida verbal”. (BAKHTIN, p. 82, 1993)
É importante nesse momento ressaltar, o conceito de
enunciado. Como já foi visto, todo enunciado é dialó-
gico. Todo enunciado constitui-se de outro enunciado,
que geraria outro enunciado, gerando uma cadeia dia-
lógica de sentidos. Fiorin (2006, pg. 24), explica que em
cada enunciado, ouve-se pelo menos duas vozes, mes-
mo que elas não se manifestem etimologicamente no
discurso. Para ele, o enunciado é sempre heterogêneo,
levando consigo sempre duas posições: aquela que lhe é
nata e aquela que lhe é gerada.
Todo texto possui relações de diálogo e dialética em
seu caráter extralinguístico, em uma bipolaridade de
cada texto, em um sistema compreensível ao consen-
so coletivo. “O texto como enunciado na comunicação
verbal (na cadeia de textos) de uma dada esfera. O tex-
to como mônada específica refrata (no limite) todos os
textos de uma dada esfera. Interdependência do senti-
do (na medida em que realiza através do enunciado)”.
(BAKHTIN, pg. 331, 2000).
É a partir dessa contextualização que podemos defi-
nir o dialogismo como a relação necessária entre o um

552 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


enunciado e outro. Não somente em relações explícitas
como debate, polêmica e paródia, mas em afinidades
mais sutis como o que deixou de ser dito e o que foi de-
duzido. Assim, chegamos ao conceito de intertextuali-
dade, cunhada por Julia Kristeva.

Revendo a noção de intertextualidade


A noção de intertexto diz respeito à incorporação de
elementos de outros textos, podendo-se reconhecer tal
atributo quando um autor constrói sua obra com refe-
rências verbais, imagens ou sons, a outras obras e auto-
res (e até da sua própria), como uma forma de “comple-
mento” ou de elaboração de novos sentidos.
Laurent Jenny, em artigo na Revista Poétique 27, ex-
plica que a intertextualidade não só direciona a defini-
ção de um código, mas está explicitamente presente em
relação ao conteúdo formal da obra. “Assim sucede em
todos os textos que deixam transparecer a sua relação
com outros textos: imitação, paródia, citação, monta-
gem, plágio, etc.” (POÉTIQUE 27, Pg. 06).
O conceito de intertextualidade surgiu com Julia Kris-
teva na década de 60, a partir de estudos e contribuições
de Mikhail Bakhtin, filósofo russo, teórico da cultura e
da linguagem humana. Com influência do marxismo,
Bakhtin embutia em seus estudos de linguística, ques-
tões sociais e filosóficas calcadas do materialismo histó-
rico. Os signos para Bakhtin tinham função ideológica

553 Críticas e Processos Comunicacionais


e não somente estrutural. Ele propôs categorias teóricas
diversas de relações entre os signos, como dialogismo,
cronotopo, polifonia, campo, anunciação, entre outros.
Antes, o termo dialogismo, expressão cunhada por
Bakhtin na década de 1930, remetia à necessária relação
entre qualquer texto e todos os demais textos. Segundo
Stam, (2010, p. 225), “um enunciado, para Bakhtin, diz
respeito a qualquer “complexo de signos”, de uma frase
dita, um poema, uma canção, uma peça, até um filme”.
Bakhtin defende que não existe estrutura narrativa to-
talmente pura ou imparcial, imune a algum tipo de in-
fluência. Todas as construções discursivas existentes têm
a sua derivação, por mais singelas que sejam. “Os enun-
ciados não são indiferentes entre si, nem se bastam cada
um a si mesmo, uns conhecem os outros e se refletem
mutuamente uns nos outros”, (BAKHTIN, 2003, p.297).
“Para Julia Kristeva, que introduziu o termo intertex-
tualidade a partir das contribuições de Bakhtin, o dis-
curso é um cruzamento de superfícies textuais, um di-
álogo de várias escrituras, um cruzamento de citações.”
(FIORIN, 2008. p. 51). Ela considera que uma narrativa
é encontrada também em outras narrativas, podendo
pertencer ou não à mesma natureza, o que podemos
chamar de um processo intertextual.

“O sentido do verossímil não tem mais objeto


fora do discurso, a conexão objeto-linguagem
não lhe diz respeito, a problemática do verda-
deiro e do falso não tem nada a ver com ele. O
sentido verossímil finge preocupar-se com a

554 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


verdade objetiva; o que a preocupa efetivamente
é sua relação com um discurso cujo <<fingir-
-ser-uma-verdade-objetiva>> é reconhecido,
admirado e institucionalizado. O verossímil não
conhece; não conhece senão o sentido que, para
o verossímil não tem a necessidade de ser ver-
dadeiro para ser autêntico (KRISTEVA, in BAR-
THES at all, 1972)

Jenny indica que a intertextualidade traz um proble-


ma “delicado” de identificação e levanta questões como:
“A partir de que altura se pode falar de presença dum
outro texto noutro, em termos de intertextualidade? Va-
mos tratar do mesmo modo a citação, o plágio, e a sim-
ples reminiscência” (POÉTIQUE, 1979, p. 12).
Barros e Fiorin lembram que qualquer discurso, seja
ele qual for, nunca é totalmente autônomo. “Suportado
por toda uma intertextualidade, o discurso não é falado
por uma única voz, mas por muitas vozes geradoras de
muitos textos que se entrecruzam no tempo e no espaço,
a tal ponto que se faz necessária toda uma escavação”.
(BARROS E FIORIN, 1999, p.45). Ou seja, todo texto é
absorção e transformação de outro texto.
Stam ainda sustenta que a intertextualidade é um
conceito teórico a ser estudado atenciosamente, princi-
palmente à medida que um texto se relaciona com ou-
tros sistemas de representação: “Até mesmo para discutir
a relação de uma obra com suas circunstâncias históri-
cas, devemos situar o texto no interior do seu intertexto,
para não relacionar tanto o texto com o intertexto a ou-

555 Críticas e Processos Comunicacionais


tros sistemas de séries que constituem o seu contexto.”
(STAM, 2010, p. 227).
Vele atentar ao fato de que para Bakhtin (1995, p.41),
um signo nunca surge de forma genuína. Sempre um sig-
no provém de outro signo e geraria outro signo, forman-
do uma cadeia infinita de relações signitárias. As palavras
são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e
servem de trama a todas as relações sociais em todos os
domínios. É, portanto claro que a palavra será sempre o
indicador mais sensível de todas as transformações sociais.
Assim, acessamos a associação entre literatura de mas-
sa e o campo audiovisual da ficção midiática: “Transpon-
do tal noção para o domínio da ficção midiática, pode-se
falar em intertextualidade quando uma narrativa torna
claro o processo de assimilação dos procedimentos cons-
titutivos de outra narrativa.” (BULHÕES, 2009, p. 128).
Roman Jakobson foi o primeiro teórico a utilizar o
termo tradução intersemiótica em texto que aborda as-
pectos linguísticos da tradução. Jakobson estabelece três
tipos de tradução: a intralingual, a interlingual e a in-
tersemiótica, sendo esta última definida por ele como
“interpretação de signos verbais por meios de sistemas
de signos não verbais” (JAKOBSON, 1968, p.65). Julio
Plaza envolve-se analiticamente com a tradução inter-
semiótica, atuando na dinâmica que envolve diversas
formas artísticas. No âmbito geral das artes, ele chama
o fenômeno de “trânsito criativo”, delineando as pró-
prias formas ao se transformar um discurso verbal em
diversas formas artísticas, em que atuem interferências
de tempo e espaço. “Os princípios normativos de uma

556 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


forma estética impõem um comportamento a essa for-
ma que afeta a sua configuração, ao mesmo em que essa
ordem se reflete no interior de seu sistema” (2010, p.72).
A importância de se analisar teoricamente adapta-
ções cinematográficas demonstra a importância de rela-
cionar teóricos como Julio Plaza e Bakhtin. Os sistemas
de linguagem se relacionam como uma Tradução Inter-
semiótica de planos de expressões diferentes, como por
exemplo, a obra literária e o cinema que constitui cam-
pos atraentes para estudos dos âmbitos intertextuais.

O noir literário e a intertextualidade


O gênero noir tem sua origem a partir das narrativas
literárias de investigação, com inspiração em detetives
“clássicos” como Dupin, de Edgar Allan Poe, ou Sherlock
Holmes, de Conan Doyle. No entanto, o que se tornaria co-
nhecido como literatura noir, deixaria os clássicos padrões
do protagonista para a permanência de um detetive mais
profissional e refletindo a realidade da sociedade da época.
Em 1938, Dashiell Hammett, lança o verdadeiro íco-
ne da literatura noir, que mais tarde inspiraria direta-
mente outros romances, entre eles obras de Raymond
Chandler, o detetive Sam Spade. Esse tipo de literatura
popular não demoraria a chegar nas telas do cinema.
Filmes passaram a ser produzidos sob sua inclinação di-
reta, buscando refletir as marcas reconhecíveis daquelas
histórias, quando não são diretamente adaptados de tais

557 Críticas e Processos Comunicacionais


obras conhecidas como pulp fiction, levando à grande
tela a encarnação de personagens já queridos do público.
Na década de 40, ao final da Segunda Guerra Mundial,
e com a abertura dos países envolvidos no conflito, essas
películas chegam à França. A partir de então, essas obras
passam a ser denominadas como filme noir pela primeira
vez. Marcel Duhamel, em 1945, cria a Série Noire, onde
publicavam histórias policiais de autores como Dashiell
Hammet e Raymond Chandler, entre outros. “Film noir
foi a expressão inventada pelos críticos franceses do perí-
odo imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial
para designar um grupo de filmes criminais americanos,
produzidos a partir dos anos 40, com certas particula-
ridades temáticas e visuais que os distinguiam daqueles
feitos antes da guerra”. (MATTOS, 2001, p. 11).
É preciso perceber a mudança de paradigmas que o
noir proporcionou à narrativa de enigma clássica. Basi-
camente, a literatura clássica de enigma foi criada por
Edgar Allan Poe, com o seu detetive C. Auguste Dupin.
Suas principais obras foram os contos “Assassinatos na
Rua Morgue”, “O Mistério de Marie Roget” e “A Car-
ta Roubada”. Influenciado pelo positivismo de August
Comte, Dupin é uma máquina de raciocínio imune aos
acontecimentos criminosos, pois, já na narrativa, não
haverá perigos derivados do crime em questão. Dupin
desvenda os maiores mistérios de dentro de sua casa,
sentado em sua poltrona, somente com seus poderes
incríveis no uso do pensamento lógico, cujos fatos são
narrados por um fiel amigo-narrador, do qual nada sa-
bemos, mas com o qual nos identificamos, já que, como

558 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


nós, ignora os motivos do crime e não possuímos os
incríveis dons de raciocínio de Dupin. Essa inclusão de
um mesmo personagem em diferentes histórias sem ser
uma sequência, como uma trilogia, por exemplo, tam-
bém será uma das contribuições de Poe.
Para Reimão (1983, p. 19), a própria invenção
do gênero policial é, na verdade, consequência de
uma nova concepção da literatura proposta por Poe;
é essa concepção que fará com que o autor consiga
imaginar uma novela policial, isto é, uma combina-
ção de ficção não mais com o deixar-se tomar pela
inspiração e pela fantasia, ou com o liberar potencial
de criatividade, mas sim uma combinação de ficção
com raciocínio e interferências lógicas.
Então, surge outro personagem que conquistaria o
gosto de leitores com extraordinário sucesso. O mais
famoso dos detetives nasce da inspiração em Poe e pas-
sa a ser um verdadeiro ícone da literatura policial. Seu
autor, Conan Doyle, leva Sherlock Holmes para quatro
romances e cinco livros de contos que, anos depois, se
traduziriam para o cinema com o ator Basil Rathbone,
considerado por muitos o melhor intérprete do célebre
detetive. Talvez Holmes seja um dos primeiros persona-
gens adaptados para o cinema, e um dos que ganharam
maior visibilidade mundial. Holmes e Dupin possuem
características muito próximas, como se pode perce-
ber numa leitura sumária das obras em que aparecem,
as quais consolidariam o gênero, que passaria, com o
tempo, a ser reconhecido como de narrativa “clássica”
de enigma. Passado o início do século XX, chegada a

559 Críticas e Processos Comunicacionais


década de 30, podemos observar uma mudança na lite-
ratura policial. Estando às vésperas da Segunda Guerra
Mundial e da queda da Bolsa de Nova York em 1929, o
mundo vive uma reviravolta em distintas áreas.
E, ao nível das ideias, Reimão (p.55, 1983), destaca
que, nesse período, estamos presenciando uma impor-
tância crescente da filosofia de Nietzsche, do vitalismo
de Bergson, da psicanálise e os primórdios do Existen-
cialismo, que engendram um clima natural que se opõe
ao otimismo racionalista oriundo do Positivismo.
Surge a Série Negra ou a Série Noire, criado por
Dashiell Hammet, em especial com seu romance O
Falcão Maltês. Seu detetive, Sam Spade, foge do perfil
de Holmes ou Dupin. A educação, elegância, sutileza
dos detetives da narrativa “clássica” de enigma dão lu-
gar a um novo perfil. Spade é o primeiro investigador
rude, vulgar, áspero, deselegante, para quem resolver
casos criminais é uma fonte de renda. E vale lembrar
que, ao contrário dos clássicos detetives, que decifra-
vam racionalmente um crime que já aconteceu, na
narrativa do noir outros assassinatos poderão ocorrer,
até a última página. Não há seguranças ou garantias
para o detetive, que se vê em teias num mundo da
escória da grande cidade. E se o véu da suspeita se
estende a todos, os supostos assassinos, a polícia ou
sedutoras mulheres, o detetive deve agir também para
proteger a própria pele.

560 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Análise da Narrativa Visual
Segundo Reis e Lopes, o termo “narrativa” pode ser
compreendido por diversas nuances: “enquanto enun-
ciado, como conjunto de conteúdos apresentados por
esse enunciado, como o ato de os relatar ou como a for-
ma que nos interessa nesse trabalho “narrativa como
modo (v.), termo de uma tríade de “universais” (lírica,
narrativa e drama) que, desde a Antiguidade e não sem
hesitações e oscilações, tem sido adotada por diversos
teorizadores”. (REIS E LOPES, p. 66, 1998)
Segundo Jullier e Maria (2009, p. 23) para o cinema,
em suas formas mais habituais, a narrativa tem suas
acepções intimamente ligadas a forma em que a câmera
coloca o telespectador como testemunha, proporcionan-
do ponto de vista imparcial, invisível ou privilegiada.
Para nós, o importante é salientar que a narrativa
do cinema também segue a mesma linha da narrativa
textual e aplicada no audiovisual. Isso influencia dire-
tamente a linguagem cinematográfica que convertida
em estética ganha forma e uma narrativa também vi-
sual. Esse capítulo vai fazer algumas análises estilísti-
cas de quadros dos filmes Bellini e a Esfinge, O Falcão
Maltês e À Beira do Abismo, sendo os dois últimos
clássicos do gênero noir.
Aqui, não vamos nos ater aos parâmetros sobre as re-
lações entre as versões de romance e filme dos nossos
objetos. Mesmo trabalhando com filmes que são adap-
tações literárias, o nosso objetivo é mostrar as relações
intertextuais existentes nas obras cinematográficas e

561 Críticas e Processos Comunicacionais


buscar verificar se há nesse processo manifestações in-
tertextuais também entre os meios livro e cinema.
Os quadros abaixo são dos filmes Bellini e a Esfinge e
O Falcão Maltês. Ambos mostram uma proximidade de
mise-en-scène na composição de um dos cenários mais
importantes do gênero noir: o escritório do detetive. Os
quadros possuem a mesma composição visual dos ele-
mentos presentes. É possível observar a presença de li-
nhas delimitando a profundidade de campo, priorizando
a localização das personagens da cena. A profundidade
de campo proporciona maior significação narrativa da
trama, o que é proporcionada pela relação com a luz.
“Em uma concepção clássica do cinema ligando o fundo
à forma, a profundidade de campo fraca permite repre-
sentar um personagem perdido em seus pensamentos,
ou que deixe de prestar atenção no que se passa a sua
volta”. (LULLIER E MARIE, 2009, p. 31).
Nesse caso, a profundidade exprime a seriedade e
tensão do momento. Em ambos casos é o primeiro en-
contro do detetive com personagens secundários da
história. No gênero noir, a profundidade de campo é
um fator importante, pois, para consegui-lo é preciso
algumas observações técnica: quanto maior a quanti-
dade de luz que cai sobre a cena, mais fácil obter gran-
de profundidade de campo. No noir, o jogo de luz é im-
prescindível para o contraste entre o branco e o preto
tão característico. Nos quadros abaixo, podemos per-
ceber o contraste da luz muito presente e favorecendo
a profundidade de forma incisiva.

562 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Bellini e a Esfinge, 2001. Direção: Roberto Santucci

O Falcão Maltês, 1941. Direção: John Huston

563 Críticas e Processos Comunicacionais


Não podemos falar de noir, sem citarmos a ques-
tão da iluminação. Em todos os filmes do gênero po-
demos observar o uso intensivo da luz para os con-
trastes de cores, acentuando os efeitos e sombras.
Nos quadros já comentados e nos quadros abaixo é
possível perceber o quanto esse recurso é utilizado
com maestria.
O jogo de luz e sombra do estilo é o grande prota-
gonista desse gênero no cinema. É com a iluminação
que conseguimos transpor para a tela a dramaticida-
de dos romances, assim como a tensão entre persona-
gens que é possível perceber nos textos.
A primeira imagem é uma reprodução de À Beira
do Abismo, no filme, o detetive Philip Malowe é to-
mado pelo único feixe de luz do quadro, refletindo
em sombras no fundo que mostram a obscuridade do
local. Já em O Falcão Maltês, o uso da luz, além do
clima de tensão que proporciona, o elemento sombra
nos traz uma percepção de uma nova narrativa atra-
vés da sombra de prédios da cidade que está ao lado
de fora do escritório de Sam Spade.
Entre essas duas obras, por pertencerem a um mes-
mo período histórico e, também, por terem o mesmo
protagonista a identificação de cada título. Os ele-
mentos estilísticos são muito próximos. Vale lembrar
que os dois filmes são adaptações de grandes autores
da literatura investigativa. O Falcão Maltês, obra de
Dashiell Hammett e À Beira do Abismo, de Raymond
Chandler, sendo que esse último teve clara influência
do primeiro escritor.

564 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Através de uma relação intertextual, podemos ver
que em Bellini e a Esfinge, o uso da luminosidade é
elevado ao grau máximo do suspense noir. Nesse qua-
dro, a luz é tão contrastante que não é possível obser-
var com nitidez o nosso detetive, que deixa claro so-
mente a sua silhueta. Esse contraste todo só é possível
pela proporção de luz que existe no elemento túnel
atrás da imagem de Bellini, o que indica o que foi dito
acima, sobre a intensidade luminosa para o efeito de
profundidade de campo.
É importante perceber que a mesma sensação de
tensão que temos nos filmes tradicionais do gênero, re-
tratada através do uso da luminosidade, também acon-
tece em Bellini e a Esfinge.

À Beira do Abismo, 1946. Direção: Howard Hawks

565 Críticas e Processos Comunicacionais


O Falcão Maltês, 1941. Direção: John Huston

Bellini e a Esfinge, 2001. Direção: Roberto Santucci

566 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Conclusão
Nesse trabalho pudemos obervar que Bellini e a Es-
finge tem ligações estéticas vinculadas ao gênero noir
tradicional das décadas de 40 e 50. Isso foi possível mos-
trar através da teoria da intertextualidade de Mikhail
Bakhtin e Julia Kristeva.
Pudemos ver que a relação entre signos acontece através
de uma dependência de significações, onde no cinema é pos-
sível dizer que encenação de situações discursivas. Bakhtin
mostra grande diversidade de gêneros discursivos, como os
orais, escritos e audiovisuais. Para ele, os gêneros primários
de discurso (ações de convivência do dia a dia) se relacio-
nam com a sua mediação secundária – a cinematográfica.
Como o dialogismo se refere à relação entre o texto e
os seus outros. Embora a sua definição seja interpessoal,
ela também se aplica às relações entre língua, linguagem,
signos, estilos e gêneros. E foi o que vimos nessa pesqui-
sa: uma relação dialógica presente nos quadros dos filmes
Bellini e a Esfinge, O Falcão Maltês e À Beira do Abismo.
Através das referências intertextuais dos quadros
analisados entre os três filmes desse trabalho, locali-
zamos influências visuais estilísticas entre eles. O que
nos comprovou que Tonny Belloto e Roberto Santucci
foram buscar nas raízes do noir elementos para abri-
lhantar Bellini e a Esfinge. Através das duas concepções
de profundidade de campo e iluminação foi possível
fazer essa comprovação.
Bellini não só é um detetive com características nar-
rativas muito próximas de detetives da narrativa c­ lássica

567 Críticas e Processos Comunicacionais


de investigação como Sam Spade e Philip Marlowe,
como também, explora alguns elementos como o exces-
so de bebida, sagacidade e a sedução com as persona-
gens Femmes Fatales do noir.
É importante acrescentar que o gênero noir é propí-
cio para sua análise através dos conceitos sobre inter-
textualidade devido a sua origem. Podemos afirmar que
o gênero nasce a partir das influências estilísticas da li-
teratura policial, desde Sir Conan Doyle. Além disso, a
partir das histórias publicadas nas chamadas pulp ma-
gazine surgiram filmes adaptados para a grande tela do
cinema, iniciar com a literatura de Dashiell Hammet e o
seu O Falcão Maltês.
Sendo assim, a comprovação intertextual presente
mostra que essa é uma teoria propícia para análises de
materiais audiovisuais, em especial em adaptações cine-
matográficas que mostram as relações entrelaçadas nas
vertentes entre literatura x cinema e cinema x literatura.

Referências
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Martins Fontes. São Paulo, 2000.
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Unesp. São Paulo, 1993.
BORDWELL, David. Sobre a história do estilo cinema-
tográfico. Campinas: Editora Unicamp, 2013.

568 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


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sobre a narrativa nos meios audiovisuais. São Paulo:
Ática, 2009.
COVALESKI, Rogério. Cinema Publicidade e Interfa-
ces. Curitiba: Editora Maxi. 2009.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de
Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.
KRISTEVA, Julia. A Produtividade dita Texto. IN:
BARTHES, Roland ET AL. Literatura E Semiologia:
Seleção de Ensaios da Revista “Communications”. Ed.
Vozes. Petrópolis, 1972.
_______. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspec-
tiva, 1974.
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Brasiliense.São Paulo, 2003.
MATTOS, A. C. Gomes. O outro lado da noite: Filme
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MICHEL, Marie. Lendo as imagens do cinema. São
Paulo: Senac. 2009.
NACIMENTO, Geraldo Carlos. A intertextualidade em
atos de comunicação. São Paulo. Ed. AnnaBlume, 2006.
STAM, Robert. A Literatura Através do Cinema. Ed.
UFMG. Belo Horizonte, 2008.
_______. Bakhtin: Da Teoria Literária à Cultura de
Massa. Ed. Ática. São Paulo, 1992.

569 Críticas e Processos Comunicacionais


_______. Introdução à teoria do cinema. Campi-
nas: Papirus, 2010
_______. Teoria e prática da adaptação: Da fidelidade
à intertextualidade. Revista Ilha do Desterro A Journal
of English Language, Literatures in English and Cultural
Studies, ISSN - 2175-8026, Florianópolis, Brasil. - Dis-
ponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/des-
terro/article/view/2175-8026.2006n51p19/9004. Acesso
em 11 de maio de 2015.

570 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Capítulo 19
1
Seriados fora do fluxo: possibilidades e
recursos narrativos na criação de
ficções seriadas televisivas distribuídas
por serviços sob demanda

Octavio Nascimento Neto1

A ficção seriada se destaca como formato televisi-


vo. O sucesso e apelo das ficções seriadas audiovisuais
podem ser atribuídos a muitos fatores característicos
do seu formato e conteúdo. Um fator vital relaciona-
do diretamente tanto ao formato quanto ao conteúdo
é a estrutura narrativa. Não se pode deixar de observar
que dentro do conjunto de formatos televisivos a ficção
seriada se revela a de maior proximidade com o cine-
ma, como afirma Cannito (2009): “É devido à constante
comparação entre a linguagem do cinema e da TV que
a ficção em televisão é considerada o gênero mais no-
bre da telinha e costuma ser o mais debatido” (p. 17).
Esse formato pode apresentar os mais diferenciados gê-
neros, de suspense a romance, drama a comédia, além

1. E-mail: octavio.n.neto@gmail.com

571
de policial, terror, aventura, fantasia e diversos outros,
assim como visto no cinema. Os personagens de uma
série são sempre muito bem definidos desde o primeiro
capítulo. Grande parte do sucesso do seriado depende
de o espectador criar empatia por esses personagens e
querer acompanhar as suas trajetórias, afinal, estender-
-se-ão vários episódios em torno deles.
O desenvolvimento de uma planejada disposição do
enredo de acordo com o caráter episódico é essencial
para garantir que a produção seja bem-sucedida. Re-
lacionado a essa questão está a frequência de acompa-
nhamento destes fragmentos por parte do público. De
acordo com Médola:

Os episódios apresentam em sua estrutura tan-


to as características dos unitários, quanto a de
capítulos de minisséries e telenovelas. Ocorre
que o discurso teleológico do unitário, com co-
meço meio e fim, restringe-se ao episódio, mas
enquanto série, essa só pode ser percebida no
conjunto dos episódios, adquirindo dessa forma
‘nuances’ de capítulo que se pauta pela continui-
dade. (MÉDOLA, 2004, p. 2)

As principais séries de maior sucesso de público são


as produzidas pelos Estados Unidos, que adotaram o
modelo de exibição semanal de episódios. Estes seria-
dos foram se espalhando para vários países pela compra
do conteúdo para exibição em emissoras locais. Geral-
mente esses conteúdos são feitos com o planejamento

572 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


de uma temporada completa, mas com final em aberto.
O futuro deles depende do público. Quando sucesso de
audiência ou crítica, a emissora renova para uma nova
temporada no ano seguinte. É comum a história conti-
nuar até que não esteja mais trazendo o retorno espera-
do pela emissora e, então, é cancelado, dando um final a
narrativa ou não.
Há séries como Law & Order, no ar desde 1990, que
de tanto sucesso gerou três outras séries: Law & Order:
Special Victims Unit, Law & Order: Criminal Intent e Law
& Order: Trial by Jury. E, por outro, lado, existem séries
como Terra Nova (2011), produzida por Steven Spielberg,
importante nome no universo cinematográfico, mas que
não foi o suficiente para manter o seriado no ar. Os bai-
xos índices de audiência fizeram a série ser cancelada ao
final de sua primeira temporada - para tristeza dos fãs
que acompanharam a história ficou sem um desfecho.
Sobre as características do formato seriado televisi-
vo, Machado (2000) distingue em três diferentes tipos.
Primeiro, o mais comum, aqueles em que há uma única
narrativa, ou várias entrelaçadas, que vão se desenvol-
vendo ao longo dos episódios, um conflito base é explo-
rado do começo ao fim da série. Séries como Lost e Twin
Peaks se encaixam nesse modelo. Sobre esse tipo de se-
riado, Machado explica que:

[...] se resume fundamentalmente num (ou mais)


conflito(s) básico(s), que estabelece logo de iní-
cio um desequilíbrio estrutural, e toda evolu-
ção posterior dos acontecimentos consiste num

573 Críticas e Processos Comunicacionais


empenho em restabelecer o equilíbrio perdido,
objetivo que, em geral, só se atinge nos capítulos
finais” (MACHADO, 2000, p. 84)

O segundo tipo de série é aquele em que cada episó-


dio é autônomo, tem começo meio e fim. Os persona-
gens são os mesmos e o formato do episódio se repete.
Como se tivesse uma forma base e o que muda são ape-
nas as variantes. Nesse tipo podemos enquadram séries
como CSI e Law and Order, por exemplo. Já o terceiro
tipo, além de histórias diferentes por capítulos, ele apre-
senta também personagens diferentes, atores, cenários,
tudo diferente. O que se mantém ao longo da temporada
são os estilos das histórias. Nesse tipo encontra-se mais
exemplos em terror e comédias, com diferentes contos
a cada episódio. Exemplos: The Outer Limits e Comédia
da Vida Privada. Claro que essa divisão feita por Macha-
do (2000) é mais um guia, algumas séries não se enqua-
dram perfeitamente em nenhum desses três. E ainda, há
algumas outras que pode considerar um misto de dois
desses tipos. Levando em consideração o primeiro tipo
de série, o espectador precisa acompanhar o seriado por
meses, ou até anos para que veja por completo o desen-
volver da narrativa, episódio após episódio e temporada
após temporada, até chegar ao fim.
Outra característica importante dos seriados é a es-
trutura de seu formato na televisão:

Uma emissão diária de um determinado progra-


ma é normalmente constituída por um conjunto

574 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


de blocos, mas ela própria também é um segmento
de uma totalidade maior – o programa como um
todo – que se espalha ao longo de meses, anos, em
alguns casos até décadas, sob a forma de edições di-
árias, semanais ou mensais. Chamamos de seriali-
dade essa apresentação descontínua e fragmentada
do sintagma televisual. (MACHADO, 2000, p. 83)

Esta continuidade que pauta a estrutura tanto do


episódio quanto da temporada assume então um papel
fundamental na produção de sentido da série, e é, des-
te modo, fator considerado na criação e estruturação da
história. O público deve ser constantemente instigado
para que siga a programação da exibição dos episódios.
É objetivo dos produtores e roteiristas que o espectador
daquela série considere importante acompanhar cada um
dos episódios e não perder o desenrolar da história. Deste
modo, a distribuição e veiculação tornam-se importan-
tes na própria construção narrativa. Assim, esse trabalho
pretende revisar as características do meio televisivo fren-
te aos recentes processos comunicacionais e averiguar as
alterações na concepção das narrativas seriadas.

As características da TV em fluxo
Para entender esse novo modo de veiculação dos se-
riados é necessário compreender como eles são trans-
mitidos em fluxo na TV. A televisão segue uma pro-
gramação. O espectador tem opção de ligar/desligar e

575 Críticas e Processos Comunicacionais


mudar os canais, mas dentro dos canais ele está sujeito à
programação da emissora. Para que o espectador tenha
um conhecimento prévio da programação foi estrutura-
do uma grade de programação (CANNITO, 2009). Essa
grade tem dois sentidos: vertical (diário) e horizontal
(semanal). O autor discute a relevância dessa grade de
programação na hora de determinar qual conteúdo tele-
visivo se enquadra melhor com cada tipo de audiência,
ou seja, levando em conta o público em cada horário e
determinar os formatos que esse público tem preferência:

A organização da grade dialoga diretamente


com a temporalidade padrão de cada povo. O
padrão é dividir por turnos: manhã para crian-
ças e donas-de-casa, tarde para público jovem,
novela das seis ainda para dona-de-casa e novela
das oito para o público em geral. Isso é o padrão.
Mas outra estratégia comum de contra-progra-
mação é colocar programas para públicos dife-
renciados em horários inusitados, preenchendo
uma demanda de audiência e conquistando par-
te do público. (CANNITO, 2009, p. 27)

Desse modo, o espectador, mesmo sem ter parti-


cipação ativa na programação pode prever o tipo de
conteúdo que estará sendo exibido naquele momento.
O fluxo televisivo traz um comprometimento por par-
te do público, porque ele precisa se manter na rotina
estabelecida pela emissora para acompanhar o seu se-
riado. Portanto, acompanhar uma série que tem seu
episódio inédito transmitido às terças oito horas da

576 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


noite significa manter-se em casa sempre nesse horá-
rio para não perder a transmissão. Como diz Cannito,
“Trata-se de um “eterno ao vivo”, ainda que o “ao vivo”
tenha sido gravado previamente”.
Por estar inserido nesse fluxo televisivo, os seriados
adquiriram algumas características desse modelo de
transmissão. O modelo de televisão divide sua progra-
mação em diferentes programas e por sua vez são divi-
didos em blocos, esses blocos são separados por um in-
tervalo comercial. Nesse intervalo anunciantes expõem
seus produtos. Esse é o modelo tradicional que sustenta
a TV comercial. Por esse motivo criou-se uma estratégia
com intenção de segurar a audiência da emissora du-
rante o intervalo comercial: os seriados posicionam aos
finais dos blocos e episódios os ganchos da narrativa - a
história é cortada no meio de uma cena e não no final
dela. Dessa forma, o público, curioso para ver como ter-
mina aquela sequência se mantém na emissora para não
perder nenhum segundo do episódio quando voltar do
comercial. Esses ganchos são feitos, geralmente, em ce-
nas importantes do episódio, ou pelo menos, cenas que
pareçam importantes. O final dos episódios, por sua vez,
também se estrutura com importante gancho para o
próximo episódio, a fim de garantir que o público fique
curioso e se mantenha atento à programação para não
perder o início desse próximo capítulo.
Além dos ganchos, outra importante ferramenta
criada para manter o público fã da série e atento ao flu-
xo foi a recapitulação no início dos episódios. Pensan-
do que ao longo das semanas o público pode esquecer

577 Críticas e Processos Comunicacionais


detalhes importantes da narrativa, os seriados adquiri-
ram um modelo de colocar um resumo no começo dos
capítulos, que apresenta as cenas necessárias para que
os telespectadores relembrem os pontos relevantes para
que o episódio a seguir seja compreendido. Essa recapi-
tulação acabou servindo também como ferramenta de
atualização da narrativa para aqueles que perderam al-
gum capítulo ao longo da temporada.
Para não perder o público que depende dessa rotina e
serialidade para acompanhar o fluxo, algumas emissoras
criaram um esquema de reprises desses conteúdos, mas
ainda assim o espectador depende de uma programação
imposta, em que muitas vezes, não corresponde com
seus horários disponíveis para o entretenimento.
O advento do videocassete foi um ótimo aliado
do telespectador, dando a ele o controle de gravar e
assistir no momento que escolhesse a sua programa-
ção. Com um outro aparelho conectado à televisão
foi possível o arquivamento pessoal dos conteúdos
televisivos de maneira programada para ser assistido
em qualquer horário do dia. O espectador conquis-
tou a possibilidade de mesmo sem disponibilidade
de ver TV nos horários de seus programas preferi-
dos, poder deixar o videocassete programado para
gravação e depois ter posse desse material, sem mais
depender da transmissão da emissora. Depois do ví-
deo cassete, o público contou com outras maneiras,
através da tecnologia, de gravar e assistir aos progra-
mas fora do fluxo.

578 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


TV sob demanda
Na última década, com a difusão da internet banda
larga, a televisão vem se transformando com a chega-
da de novos serviços e produtos. A avanço tecnológico
trouxe a multiplicação e mobilidade de telas (compu-
tadores, tablets e smartphones) e o avanço da internet
móvel. Essas mudanças proporcionaram a distribuição
e disseminação de vídeos on demand (em português, ví-
deos sob demanda). Sobre essa modalidade de distribui-
ção de conteúdos audiovisuais, Machado aponta que:

[...] se pode ver o que se quer, em qualquer ho-


rário, a partir de um menu de possibilidades,
pagando especificamente por aquele conteúdo
acessado (modalidade muito utilizada nos dispo-
sitivos móveis, através de download, mas também
nos serviços de cabo). (MACHADO, 2011, p. 88)

Antes de prosseguir, faz-se necessário pensar também


nas práticas de consumo do conteúdo televisivo por parte
do público. Um dos papéis da TV é fazer companhia para
o espectador: ela está ligada durante o jantar em família,
nas noites de insônia, na manhã enquanto se faz os afaze-
res da casa, o jornal durante o almoço, e assim por diante.
O espectador passa a ter um relacionamento muito dife-
rente com o conteúdo audiovisual se compararmos com o
cinema, por exemplo. Em sua maior parte, a TV não exige
do telespectador 100% de sua atenção, então ela passa a
ser companhia enquanto realiza outras ações.

579 Críticas e Processos Comunicacionais


Fechine (2014) considera dois modos de “ver TV”,
um realizado de forma secundária e o outro de forma
primária. O primeiro pensando em uma TV ligada
como companhia, e o segundo modo seria com toda a
atenção no seu conteúdo. Para a autora:

No regime da “olhadela”, o espectador apenas


“acompanha” a televisão, muitas vezes enquan-
to realiza outras atividades, dedicando-lhe uma
atenção intermitente ou esporádica. Nesse caso,
a TV é tão somente uma atividade secundária,
que sugere agora uma investigação da nossa pró-
pria relação com o fluxo contínuo da sua pro-
gramação. No regime do “olhar”, ao contrário, o
espectador é absorvido pelo que vê na TV, confe-
rindo uma grande atenção àquilo que está sendo
transmitido. Agora, assistir à TV é uma atividade
primária, que nos permite, a partir de uma pres-
suposta relação do espectador com programas
específicos, analisar os efeitos de sentido por es-
tes produzidos. (FECHINE, 2014, p. 117)

Na TV sob demanda, o telespectador se torna um


“interator”, porque ele define a programação e tem pos-
sibilidade de assistir quando e onde quiser, e ainda pau-
sar a transmissão caso precise, perdendo a característica
de “passivo”. Segundo Machado,

A atual evolução da televisão caminha em duas


direções diferentes e aparentemente contraditó-
rias, pressupondo duas modalidades de especta-
dores, munidos dos mais variados equipamentos

580 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


de acesso. De um lado, parte da audiência prefere
permanecer “passiva”, cumprindo o seu papel de
espectador na sua sala de estar, sobretudo dian-
te da atual e farta oferta de material audiovisual.
De outro lado, o surgimento no cenário audio-
visual de novos protagonistas, os interatores,
está forçando mudanças cada vez mais radicais
em direção a modelos de conteúdos que possam
ser buscados a qualquer momento, em qualquer
lugar, fruídos da maneira como cada um quiser
e abertos à intervenção ativa dos participantes.
(MACHADO, 2011, p. 87 e 88)

Pode-se concluir então, que o conteúdo sob demanda


em sua maior parte é visto de maneira a contemplar o
“regime do olhar” e não o da “olhadela”.
O desenvolvimento e barateamento de uma banda
larga mais rápida, o uso de tecnologias de compressão
de vídeo e o surgimento de serviços variados de vídeo
online, em destaque o YouTube em 2005, fizeram com
que os usuários usassem cada vez mais a internet como
um espaço para o consumo de vídeo. O YouTube é um
site que permite que seus usuários carreguem e compar-
tilhem vídeos em formato digital. Hospeda uma grande
variedade de filmes, videoclipes e materiais caseiros. Em
2011 a estimativa era que a cada minuto eram enviados
48 horas de vídeos para o servidor do YouTube2. Sobre

2. Dados retirados do tecmundo.com.br. Disponível em: <(http://www.


tecmundo.com.br/infografico/10502-com-quantos-videos-se-faz-
-um-youtube-infografico-.htm)>. Acesso em: 07 jun. 2015.

581 Críticas e Processos Comunicacionais


essas novas práticas de consumo audiovisual, Machado
ressalta que:

Hoje, com o crescimento da disponibilidade de


canais on demand, da autoprogramação e dos
dispositivos de busca na internet, parte cada vez
mais expressiva da audiência está se deslocando
para além do nicho, em direção a formas de re-
cepção (ou participação) individualizadas. Com
a crescente convergência das telecomunicações
com a internet e inúmeras alternativas de recep-
ção (celulares, televisores portáteis, dispositivos
para automóveis, players multiuso tipo IPod
etc.), tanto a indústria, quanto os provedores de
conteúdos estão se defrontando com níveis de
complexidade, dinâmicas de mudança e pres-
sões para inovar jamais experimentados em
tempos anteriores (MACHADO, 2011, p. 87)

O surgimento desses novos modelos de distribuição


modifica também a maneira de assistir a um produto au-
diovisual. O espectador agora não depende da programa-
ção da emissora, nem da espera pelo próximo episódio de
seu seriado. Agora o usuário decide como assiste e pode
até mesmo assistir mais de um episódio em seguida, ou até
mesmo a temporada toda no mesmo dia. Essa novidade al-
tera a serialidade do conteúdo, e, portanto, influencia a es-
trutura narrativa dos episódios da série, tornando possível
modificações nos modos de produção do conteúdo. Quais
são as mudanças na concepção narrativa dos seriados tele-
visuais quando a recepção muda de fluxo para on demand?

582 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


A Netflix
Fundado em 1997 como uma locadora de filmes online
no Vale do Silício, a Netflix chegou ao mercado americano
como uma opção àqueles que não queriam sair de casa para
alugar DVDs. Os títulos eram escolhidos através do site e o
locador os recebia via correio. Cerca de dois anos depois, a
empresa lançou o modelo de assinatura mensal, ou seja, to-
dos os clientes tinham um valor fixo para pagar por mês e po-
diam locar uma quantidade determinada de DVDs simulta-
neamente e assim que devolvessem podiam locar mais. Sem
multas e sem atrasos, além da comodidade de fazer tudo sem
sair de casa, a empresa foi crescendo cada vez mais.
Em 2007, surgiu o serviço que reinventaria a empresa: a
capacidade de o assinante assistir cerca de 1.000 filmes e epi-
sódios de seriados através do computador. Com a promisso-
ra forma de exibição de vídeo o VoD (video on demand) já
disseminada pelo YouTube em 2005, a Netflix ganha novos
objetivos de mercado. Segundo a página oficial do Netflix
Brasil no Facebook3, são cerca de 57 milhões de assinantes
em quase 50 países, assistindo a mais de dois bilhões de horas
de conteúdo ao mês em praticamente qualquer tela, e pagan-
do um valor fixo de aproximadamente R$ 20,00. Ainda em
sua página, a empresa destaca as vantagens para o assinante:

O assinante Netflix pode assistir a quantos filmes


e séries quiser, quando e onde quiser, em pratica-

3. Disponível em: <https://www.facebook.com/netflixbrasil>. Acesso


em: 07 jun. 2015.

583 Críticas e Processos Comunicacionais


mente qualquer tela com conexão à Internet. O as-
sinante pode assistir, pausar e voltar a assistir a um
título sem comerciais e sem compromisso4.

Antes do VoD o modelo já consagrado de compartilha-


mento de arquivos online era o modelo peer-to-peer atra-
vés do BitTorrent para baixar vídeos, músicas, imagens e
softwares, sendo que 99% desses arquivos digitais disponí-
veis são piratas. Mesmo no YouTube, o compartilhamento
é feito através dos próprios usuários sem a intermediação
dos detentores dos direitos autorais das obras audiovisuais.
Ou seja, o conteúdo consumido através da internet em sua
maioria era de forma ilegal.
Depois de consolidada como serviço legal de trans-
missão online sob demanda e conquistado público em
diversos países, os seus idealizadores acreditavam que
a empresa podia ir além. Pensando no universo dos se-
riados de TV e com a preocupação na insatisfação dos
fãs com a espera da programação das emissoras de TV
(fluxo), Reed Hasting, um dos fundadores e atual CEO
da empresa, rumou a Netflix na direção da produção de
conteúdo próprio. Com objetivo de liberar os fãs dessa
espera semana após semana, entre os episódios.
Em 2011 a Netflix iniciou sua produção de conteúdo.
Com parcerias com outros estúdios e produtoras, no final
do ano a empresa lançou duas temporadas de Lilyham-
mer, seu primeiro seriado. E ainda no mesmo ano, depois

4. Disponível em: <https://www.facebook.com/netflixbrasil>. Acesso


em: 07 jun. 2015.

584 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


de adquirir o direito de continuar a série cancelada Arres-
ted Development, anteriormente da Fox, lançou a quar-
ta temporada completa. Em fevereiro de 2013, a Netflix
lançou de uma só vez todos os 13 episódios da primeira
temporada da série House of Cards, um drama político
criado por Beau Willimon e produzido por David Fin-
ch, uma adaptação do romance homônimo escrito por
Michael Dobbs. A série já colocou um marco na história
ao receber 14 indicações nos prêmios Emmy da televisão
norte-americana e vencer em três categorias: melhor di-
retor, elenco e fotografia. Tornando-se a primeira série
produzida exclusivamente para uma plataforma online
a alcançar este feito, todas as outras concorrentes eram
produzidas e exibidas por emissoras em fluxo.
Esse destaque na premiação (Emmy), sua audiência e
o sucesso de críticas consolidaram o modelo de produ-
ção e exibição da empresa. A partir de House of Cards a
Netflix continuou na produção de conteúdo próprio. Se
em 2013 foram 4 séries lançadas pelo canal online, nos 6
primeiros meses de 2015 já foram 6 séries, todas com as
temporadas disponibilizadas na integra. O serviço ain-
da disponibiliza em seu catálogo séries em parceria com
emissoras, que são lançadas semanalmente.

O Binge Whatching
Binge whatching é uma expressão comum para os nor-
te-americanos. Também usada como binge viewing, em

585 Críticas e Processos Comunicacionais


uma tradução livre significa “assistir até se entupir”. Ou
seja, seria a prática conhecida no Brasil como maratonas.
Consiste em um espectador assistir a vários episódios em
sequência, acompanhar a mesma série até se cansar.
No Brasil, alguns canais de TV por assinatura já apre-
sentavam essa possibilidade. Depois de já exibidos os epi-
sódios inéditos de forma semanal, ao fim da temporada
ou início de uma nova, algumas emissoras exibem em
maratonas vários episódios, muitas vezes a temporada in-
teira. A prática do binge whatching já é contemplada, mas
ainda de forma a seguir o fluxo e não por opção do teles-
pectador. Defendendo a prática das maratonas, o profes-
sor Robert Thompson da Syracuse University, afirma que:

Eu acho que com esses novos seriados, de alta


qualidade, alto nível novelístico, o melhor jeito
de assistir é por binge watching. Eu acho que a
opção ideal para assistir BreakingBad, The Wire,
Homeland ou Dexter é da mesma forma que
você leria um romance – e você não leria um
único capítulo de Moby Dick por semana.5 6

Lançar todos os episódios de uma única vez foi a tática


utilizada pela Netflix para alimentar esse fenômeno que

5. Entrevista do professor Robert Thompson da Syracuse Univer-


sity. Disponível em: <http://www.syracuse.com/entertainment/
index.ssf/2013/05/arrested_development_binge_watching_ne-
tflix_cheating.html>. Acesso em: 07 jun. 2015.
6. Tradução feita pelo autor

586 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


ela mesma ajudou a criar. Apesar de já visto de forma pa-
recida antes através das maratonas das emissoras ou com
a locação ou compra de DVDs das séries. Com a Netflix
a configuração muda: nesse momento o binge whatching
é feito com episódios inéditos, eles são lançados todos no
mesmo instante, dando ao fã a possibilidade de assistir a
temporada completa no dia da estreia.

O Seriado fora do fluxo


Apesar de não depender mais da serialidade no fluxo,
o formato continua sendo chamado ficção seriada. A es-
trutura continua sendo dividida por episódios que por
sua vez são divididos em temporadas. Verifica-se, no
entanto, que esse novo modelo de transmissão e hábito
de consumo muda também a maneira de se roteirizar
e produzir esses conteúdos. Então o que mudou com a
Netflix? Sobre algumas possibilidades de mudanças na
produção desses conteúdos:

[...]o binge watching elimina a necessidade de al-


gumas ferramentas como a recapitulação, a uni-
formidade de duração dos episódios e oferece a
chance de uma mudança significativa na narrati-
va afastando ainda mais a barreira entre televisão
e cinema. (KULESKA e BIBBO, 2013, p. 47).

Comparando o seriado apresentado no fluxo com o


seriado “liberado” completo pela Netflix pode-se notar

587 Críticas e Processos Comunicacionais


algumas diferenças pensando em hábito de consumo e
produção de conteúdo. O binge whatching proporcio-
na ao telespectador a possibilidade de assistir tudo de
uma só vez, além da possibilidade de pausar e/ou voltar
a exibição quando quiser ou precisar. O espectador não
fica preso à espera semanal do próximo episódio. Ele é
quem decide quando vai continuar assistindo, além de
não perder qualquer diálogo ou informação, por poder
pausar quando precisar de um tempo.
Por não se estender ao longo de meses, a narrativa
não sofre com o esquecimento de informações, porque,
mesmo com a técnica da recapitulação no começo dos
episódios, nunca é possível fazer o telespectador relem-
brar todas as informações, ou ainda se atualizar a respei-
to de um episódio perdido. Esse último caso então, não
existe mais. Não existe episódio perdido. Com a exibição
on demand, o espectador na posição de “interator” não
está mais sujeito ao fluxo, não perde mais nenhum capi-
tulo dos programas que acompanha. Ele escolhe quando
assistir, e o desenrolar da narrativa depende da sua pró-
pria rotina e não da grade de programação da emissora.
Sobre essas novas práticas, Scholari aponta que:

A chegada de novas telas, a difusão lenta, mas


constante, de televisão em dispositivos móveis
ou a televisão peer-to-peer, que promovem sis-
temas colaborativos como YouTube, também
acabam gerando novas práticas de produção e
consumo. (SCHOLARI, 2014, p. 43)

588 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Todos esses novos recursos disponibilizados ao
espectador ampliam as possibilidades para os rotei-
ristas e produtores. O desenvolver das trajetórias dos
personagens pode acontecer de forma mais ágil e ao
mesmo tempo atingir novos horizontes. Os novos se-
riados podem desenvolver narrativas mais complexas,
e, por se estenderem por mais tempo que o cinema,
podem até mesmo criar histórias ainda mais detalha-
das e mais personagens complexos.
Para entender a nova configuração na produção de
sentido desses formatos, recorre-se a Scholari em seu
texto “This Is The End: As Intermináveis discussões so-
bre o fim da Televisão” (2014). Entende-se como a TV
avançou no desenvolvimento dos conteúdos, criando o
que ele chamou de “hipertelevisão”.
O conceito hipertelevisão refere-se ao momento atual
da televisão, inserida nesse contexto de novas mídias e
multitelas. No texto original do autor, as ideias e análises
desse conceito são feitas observando a TV em fluxo em
geral. Neste trabalho iremos no apropriar das caracterís-
ticas observadas por Scholari específicas para o formato
ficção seriada e que também equivalem para o conteúdo
sob demanda. Para entender melhor o que significa essa
mudança de fase da TV e o papel dos seriados nela, se-
gue uma lista das características dos seriados na fase da
“hipertelevisão”, de acordo com Scholari.
Primeiramente destaca-se a multiplicação de pro-
gramas narrativos. Atualmente, percebe-se que os se-
riados apresentam mais personagens principais e todos
eles com trajetórias complexas. O desenrolar das tramas

589 Críticas e Processos Comunicacionais


apresentam complexas redes de interação entre os per-
sonagens. Algumas vezes nota-se vários núcleos de per-
sonagens, chegando até a ter pouca relação entre eles.
Outra característica importante é o ritmo das histórias.
O desenvolver da trama acontece de maneira mais di-
nâmica, sem subestimar o telespectador. Acontecimen-
tos que levavam vários episódios ou até mesmo uma
temporada completa, agora revela-se em um único epi-
sódio - dessa forma, torna-se possível contar histórias
mais complexas e/ou mais extensas. Outra diferença na
“hipertelevisão” é o uso de montagens não sequenciais.
A narrativa começa a apostar em técnicas usadas an-
tes mais frequentemente no cinema, como flashbacks e
flashfowards. Muitas vezes o mistério da trama depende
dessa configuração de montagem audiovisual.
Essas três características já convencem que assistir a
essa nova televisão através do regime da olhadela não está
mais em cogitação. Esses conteúdos dependem de aten-
ção e serialidade, perder um ou mais episódios representa
agora se perder na trama. As adaptações literárias de sé-
ries de livros tornaram-se mais frequentes. A possibilida-
de de estender-se por anos e contar histórias de maneira
concisa e dinâmica atraiu produtores e roteiristas.
Pensado nessas novas práticas geradas pelo binge wha-
tching e pela TV on demand, precisa-se olhar para esse
novo modelo de televisão com olhos críticos, e investi-
gar como essa nova prática de assistir TV pode se tornar
a vilã da experiência compartilhada pelos fãs. “Eu sinto
falta de ver as pessoas na mesma página. Eu sinto mes-
mo falta de poder entrar na internet e discutir [sobre o

590 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


episódio passado] no dia seguinte”, falou de Jenji Kohan,
criadora de um dos primeiros sucessos a experimentar o
modelo Netflix, Orange Is the New Black, em entrevista7.
Mesmo os criadores das séries do Netflix, e mesmo com
o sucesso que elas têm feito nota-se que os próprios ide-
alizadores lamentam a perda desse universo criado pelos
fãs no mundo digital.
Para entender melhor essa realidade - a importân-
cia desse diálogo entre os telespectadores -, recorre-se
a Henry Jenkins, em seu livro Cultura da Convergência:

Por convergência refiro-me ao fluxo de conteú-


dos através de múltiplos suportes midiáticos, à
cooperação entre múltiplos mercados midiáticos
e ao comportamento migratório dos públicos dos
meios de comunicação, que vão a quase qualquer
parte em busca das experiências de entreteni-
mento que desejam. (JENKINS, 2009, p. 29)

Jenkins fala sobre convergência midiática, inteligên-


cia coletiva e cultura participativa. Inteligência coletiva
refere-se à nova forma de consumo, que se tornou um
processo conjunto e pode ser considerada uma nova fon-
te de poder. A expressão “cultura participativa”, por sua
vez, serve para caracterizar o comportamento do consu-
midor midiático contemporâneo, cada vez mais distante

7. Entrevista retirada do site adorocinema.com. Disponível


em: <http://www.adorocinema.com/noticias/series/noti-
cia-113605/> Acesso em: 7 de jun. 2015.

591 Críticas e Processos Comunicacionais


da condição receptor passivo. São pessoas que interagem
com um sistema complexo de regras, criado para ser do-
minado de forma coletiva. Sobre os novos modelos de
fruição de conteúdo televisivo, o autor aponta:

A TV do futuro, vista a partir do momento atual,


talvez seja irreconhecível [...] No nível mais sim-
ples, as audiências irão organizar e reorganizar o
conteúdo do jeito que quiserem. Irão acrescen-
tar comentários aos programas, votar neles e, de
maneira geral, mexer neles. Mas, em outro nível,
as próprias audiências irão querer criar os flu-
xos de vídeo do zero, com ou sem nossa ajuda.
(JENKINS, 2009, p.324 e 325)

De acordo com os tópicos tratados por Jenkins, é nítido


as alterações das condições da TV on demand. Observa-se
que agora os fãs esperam até acabar toda a temporada para
poderem buscar informações extras, ou discutir sobre de-
terminadas cenas, ou ainda para expor sua própria opinião
sobre os acontecimentos. Essa espera para acabar a tempo-
rada se deve à preocupação com acabar descobrindo ele-
mentos do enredo que ainda estão por acontecer enquanto
se busca falar ou ler sobre os episódios que já assistiu. Ou
seja, o fã se isola do mundo digital até finalizar a tempora-
da completa para não ser surpreendido por spoillers, como
explica Jenkins (2009) a seguir, usando como exemplo os
fãs do reality show “Survivor”, mas mostrando um com-
portamento que tem se tornado cada vez mais frequente
por fãs de diferentes gêneros televisivos:

592 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Os fãs mais exaltados, um contingente conheci-
do “spoillers”, não medem esforços para escara-
funchar as respostas. Usam fotografias de satélite
para localizar a base do acampamento. Assistem
aos episódios gravados, quadro a quadro, pro-
curando informações ocultas. Conhecem Survi-
vor de trás para a frente e estão determinados a
descobrir tudo – juntos – antes de os produtores
revelarem o que aconteceu. Chamam a esse pro-
cesso de “spoiling”. (p. 55)

Wolton (2007) disse que “não há televisão sem uma


concepção implícita ou explicita de seu papel na socieda-
de”. Segundo o autor, a TV une a sociedade, que mesmo
formada por pessoas com pontos de vista diferentes acom-
panham a mesma programação. E assim, mesmo que com
princípios ou filosofias diferentes, elas podem manter um
diálogo a respeito do que é transmitido pela televisão.
O comportamento dos telespectadores de seriados
se tornou importante para divulgação e para manter a
audiência. Há fóruns, blogs, portais e páginas em redes
sociais - são inúmeros locais digitais para se discutir o
conteúdo. Há muito assunto para se falar sobre as séries,
como o futuro dos personagens, romance entre eles, er-
ros de cenas, problemas técnicos nas gravações, furos
no roteiro, hipóteses de possíveis finais de temporada,
ou de acontecimentos para o próximo episódio. Desde
prever o futuro da narrativa até criticar problemas téc-
nicos ou de roteiro, os fãs vêm mantendo essas séries
como assunto importante nas mídias digitais. Existem
páginas com discussões de episódio por episódio, onde

593 Críticas e Processos Comunicacionais


é possível encontrar pessoas do mundo inteiro partici-
pando. Entra em jogo o papel caçador dos fãs, de bus-
car detalhes nos episódios já exibidos para tentar prever
acontecimentos futuros, e com isso várias hipóteses do
desenrolar da trama.
O vídeo on demand possibilita a mobilidade e torna
possível criar a própria programação dentro de um catá-
logo de opções, mas também divide o público, que nem
sempre está assistindo a mesma coisa ao mesmo tempo.
As séries que mesmo em período de “break” conseguiam
se manter em discussão através das redes sociais, no sis-
tema on demand (quando a temporada é disponibiliza-
da de uma só vez) acabam caindo em esquecimento por
seus 12 meses de intervalo entre temporadas. Caso não
possua um planejamento de comunicação por parte dos
produtores, não há assunto para se discutir por um ano,
mesmo sendo a temporada completa já divulgada - dife-
rente do seriado semanal que cada episódio fomenta as
discussões até a semana seguinte quando o novo capítu-
lo da narrativa é lançado.
Possivelmente, alguns gêneros são mais assertivos
para esse novo modelo de TV, enquanto outros depen-
dem mais do modelo de serialidade no fluxo, mas ainda
é cedo para prever ou determinar quais são esses gêne-
ros. Ou até mesmo se depende também do tipo de fã/
telespectador que cada um deles atrai. Está claro que o
modelo de TV sob demanda como a Netflix ainda está
em fase inicial, e como nota-se na própria plataforma
da empresa está em constante mudança, adaptando-se
e melhorando segundo as necessidades dos assinantes.

594 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Precisa-se pensar em como aliar a esses novos recursos
as vantagens das discussões geradas pelos fãs episódio
por episódio tão presente na transmissão em fluxo.Um
dos possíveis caminhos seria, no próprio site o público
poder exercer de maneira organizada, unificada e com-
partimentada o seu papel na cultura participativa.

Referências
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595 Críticas e Processos Comunicacionais


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596 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


4ª Parte
Dinâmica das Práticas Acadêmicas
Capítulo 20
O futebol como cultura no Brasil:
da paixão à profissionalização

Bárbara Bressan Belan1

A chegada do futebol no Brasil


Há relatos de diferentes esportes com a bola nos
pés desde a idade média. Um deles, muito pareci-
do com o futebol, é o Soule. Segundo Wisnik (2008,
p.77) “Trata-se de uma festa popular praticada em
regiões da França ao longo dos séculos desde pelo
menos meados da Idade média e caracteriza-se
como uma encarniçada disputa de bola”. O espor-
te tido como violento era disputado entre campos e
bosques e frequentemente terminava com mais de
uma pessoa ferida. Já neste esporte “mais primitivo”

1. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação,


da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, UNESP/
Bauru/SP. E-mail: barbara.belan@gmail.com

598
o objetivo era conduzir a bola para dentro do terri-
tório do outro e era praticado em dias festivos.
Porém, o futebol propriamente dito só surgiu na In-
glaterra por volta de 1800. Foi lá que ele ganhou regras e
foi sistematizado. No ano de 1848, numa conferência em
Cambridge, estabeleceu-se um código de regras para o
jogo. Mas somente em 1871 foi criada a figura do goleiro
que seria o único que poderia colocar as mãos na bola e
deveria defender o gol. Aos poucos o esporte foi criando
forma e mais regras, como a do pênalti, penalidade má-
xima do futebol, e a do impedimento, que só chegaram
mais tarde em 1891 e 1907 respectivamente.
No Brasil, considera-se que o pai do futebol foi
Charles Miller. Nascido no Brasil ele foi à Inglaterra
para estudar. Quando voltou, em 1894, teria trazido
duas bolas na bagagem e somente no ano seguinte
reuniu amigos para disputar o que seria a primeira
partida de futebol no país.
Porém antes de se popularizar e estar em todos os
lugares, o futebol, no Brasil e no mundo era praticado
apenas por uma elite branca, principalmente nas cida-
des de São Paulo e do Rio de Janeiro. E se já era difícil
ter pessoas das classes populares envolvidas com esse
esporte quem dirá negros que tinham acabado de se-
rem libertos da escravidão. Um dos exemplos mais uti-
lizados para ilustrar as dificuldades enfrentadas pelos
clubes que “teimavam” em inserir negros na equipe é o
do Bangu Atlético Clube. O clube foi o primeiro no es-
tado do Rio de Janeiro a escalar um atleta negro, Fran-
cisco Carregal, em 1905 para disputar o Campeonato

599 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Carioca. Em 1907 a Liga Metropolitana de Football
publicou uma nota proibindo o registro de “pessoas de
cor” como atletas amadores de futebol. O clube, então,
optou por não disputar o Campeonato Carioca. Por
conta do episódio, o Bangu ficou conhecido até hoje
como um clube símbolo na luta contra o racismo pre-
sente no futebol brasileiro.
Outros exemplos podem ser vistos nas Copas Mun-
do de 1930 e 1934. Conforme aponta Wisnik (2008,
p.183) “o Brasil foi representado por seleções inexpres-
sivas, resultantes de disputas regionais sem acordo en-
tre São Paulo e Rio de Janeiro”. Além disso, “Os times
não incluíam negros, pelo menos na medida de sua
representatividade, mesmo se considerarmos a pre-
sença ocasional do centromédio Fausto, que veio a ser
chamado “a maravilha negra”, na comitiva de 1930, e a
de Leônidas da Silva na de 1934”. Mas a ausência dos
negros, que desde a infância demonstram talento nato
com a bola nos pés, não ia durar muito.

Ao contrário dessas demonstrações incon-


sequentes e vexaminosas, a de 1938 foi uma
seleção assumidamente miscigenada, e pela
primeira vez representativa do que havia de
melhor no futebol já profissionalizado do país,
dando esperanças às multidões que acompa-
nhavam sofregamente, havia pelo menos vinte
anos, as disputas internacionais sul-america-
nas. (WISNIK, 2008, p.184)

600 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


O Futebol faz do Brasil nação
É a partir do enegrecimento dos times e da popula-
rização do futebol, que o esporte começa a ganhar im-
portância na cultura brasileira. Ele passa a fazer parte
da paisagem urbana e rural do país, conforme observa
DaMatta (1982, p. 77)

No gramado de um jardim público, no canto de


um terreno baldio ou no meio da rua, com dois
pedaços de pau e uma bola de meia surge um
campo, onde, tarde após tarde, bandos de ga-
rotos jogam ventura e desventura, em partidas
que parecem não querer terminar. Um amigo
me confessou, tímido, que não se interessava
por futebol, nem entendia grande coisa do as-
sunto. Era Flamengo porque, afinal, todo mun-
do precisava ter um time.

Como é possível ver no trecho destacado a própria


facilidade de se encontrar um “campo” e uma “bola” faz
com que o futebol apareça em todos os cantos. O cam-
po pode ser trocado por qualquer espaço: terrenos, ruas,
quintais, quadras, retangulares ou não são tomadas por
crianças que enxergam o próprio Maracanã por ali. A
bola pode ser de meia, de borracha, ou até mesmo de
outros esportes. Não é raro um brasileiro que se depara
com uma bola de tênis ensaiar embaixadinhas antes de
devolver o objeto cobiçado. Até as traves do gol podem
ser pedaços de madeira, chinelos ou latinhas. A rede en-
tão é completamente desnecessária. Quando o atacante

601 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


chuta e a bola e acerta o objetivo final já emenda a corre-
ria da comemoração ao desespero para recuperar a bola
antes que ela se perca de vista.
Outro ponto interessante que DaMatta chama a aten-
ção neste trecho é o fato de um amigo ter confessado
que não se interessava por futebol. Essa confissão quase
sempre é motivo de vergonha e vexação, principalmente
se o indivíduo for do sexo masculino. Para ser homem
no Brasil e compartilhar do mesmo sentimento de pai e
avô é necessário saber jogar bola, e acima disso ter um
time do coração. Time esse que é imposto desde cedo
pelos familiares mais próximos. Logo que nascem os be-
bês são bombardeados com camisa do Palmeiras pelo
pai, meia do Corinthians pelo avô, shorts do São Paulo
pelo tio. A escolha é quase sempre dramática, e depen-
de muito da fase em que o time está vivendo. Quando
acontece o caso descrito por DaMatta a decepção do pai
é quase certa. Ainda assim, para não causar mais des-
gosto, o menino, que nunca se deu bem nas peladas da
escola ou não consegue nem mesmo entender a regra do
impedimento, escolhe o mesmo que o pai. É isso. Vai ser
flamengo. Afinal todo mundo precisa de um time.
E a necessidade da escolha de um time vai muito além
do núcleo familiar. O esporte é capaz de criar núcleos e
unir pessoas distintas em tribos que os tornam semelhan-
tes. Um exemplo simples e visual é o que acontece dentro
de um estádio em uma partida de futebol. São duas torci-
das distintas separadas por grades e arquibancadas. Cada
uma fica no seu canto, com a sua tribo. Elas se distinguem
pelos cantos, gritos, vaias, e até pela forma de se vestir.

602 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


As cores do uniforme são fundamentais na construção da
identidade da torcida. Afinal, qual é o louco que entraria
com uma camisa verde no meio da torcida corintiana? Ou
com uma roupa preta e branca no espaço destinado a tor-
cida palmeirense?
O uniforme do time do coração torna-se assim um
símbolo. Conforme aponta Vicente (2011, p.11) “Os
símbolos, prossegue, afirmam-se como os instrumentos
por excelência de integração social, tornando-se possí-
vel a reprodução da ordem estabelecida”. Confirmam as-
sim a ideia de integração social entre a tribo, que a partir
de símbolos se reconhece e cria sua própria identidade.
A partir dessa ideia é possível compreender o verda-
deiro fervor que se cria nas épocas de Copa do Mundo.
Quando pessoas de diferentes classes sociais, regiões do
país e, portanto, com costumes completamente diferentes
se unem em forma de nação para cantar a vitória ou cho-
rar a derrota. De um lado, as roupas de grife são substi-
tuídas por camisas oficiais da seleção, enquanto do outro
qualquer pano verde e amarelo vira símbolo da identida-
de nacional. Conforme aponta DaMatta (1982, p. 50):

Quando uma seleção nacional atua há uma


superposição de símbolos do país; a bandeira
hasteada, os uniformes - que são das cores da
bandeira - e a própria seleção.Tudo isso mais
ressaltado pelo contraste com os símbolos da
“outra” seleção. Algumas das então conside-
radas “melhores qualidades do povo brasilei-
ro” são exigidas dos atletas: raça, garra, malí-
cia, sentimento, além da capacidade de jogo

603 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


­ ropriamente técnica e da sorte. A derrota em
p
tais competições é frequentemente atribuída ao
atraso do país, a seu subdesenvolvimento.

Dessa forma o futebol é frequentemente associado


ao desenvolvimento do país. Da mesma forma que em
1938 a seleção brasileira, apesar de não ganhar a Copa,
coloca o país entre as potências mundiais, quando perde
é rebaixada não somente em nível de futebol, mas tam-
bém em nível econômico. Um exemplo claro dessa as-
sociação e desse sentimento de derrota nacional é os 7 a
1 sofridos pela seleção brasileira na Copa do Mundo de
2014, a Copa do Brasil. No dia seguinte a vitória da Ale-
manha não só a população inteira estava de luto, como a
imprensa também se vestiu de preto. No jornal de circu-
lação nacional “O Globo” a manchete trazia os seguin-
tes dizeres: “Vergonha, Vexame, Humilhação”, seguida
de uma foto que tomava quase toda a capa do zagueiro
David Luis agachado, escondendo o rosto, humilhado.
Na “Folha de São Paulo” a representação do luto é ainda
mais evidente. A capa estampou metade da página preta
com o título: “Seleção sofre a pior derrota da história”,
seguido das linhas finas: “Alemanha faz 7 a 1, esmaga o
Brasil e vai à final da Copa, Anfitrião, país revive trau-
ma de 50; e Felipão diz ser responsável por vexame, que
pressiona o futebol nacional por reformas”.
Não foi raro encontrar comparações do desenvolvi-
mento da potência alemã, ao fracasso do subdesenvol-
vimento brasileiro. Na internet, principalmente nas re-
des sociais, choveram textos que diziam que enquanto o

604 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


futebol brasileiro perdeu de sete, os hospitais, escolas, a
segurança pública e o governo perdem de dez, cinquen-
ta, cem. Além disso, as qualidades de excelentes hóspe-
des dos alemães também foram destacadas. Apesar da
vitória com o placar elástico, há quem diga que os joga-
dores pouparam o Brasil de uma derrota ainda maior.
Os “cavalheiros” teriam combinado no vestiário duran-
te o intervalo não humilhar demais os anfitriões, e por
isso na volta para o segundo tempo marcaram apenas
mais dois gols.
Mas essa não foi a primeira, nem a mais importante,
derrota do Brasil futebol como nação.

Uma estranha catatonia em campo e nas ar-


quibancadas parece adivinhar que, se aconte-
ceu um gol do adversário, isto é, se este exis-
te, um segundo acontecerá então, fatalmente.
Só isso explica o “silêncio ensurdecedor” que
segundo tantos testemunhos, abateu sobre o
estádio, silêncio que a gravação de rádio não
registra, mas que parece estar localizado num
lugar mais abisal do que as camadas agitadas
de ar. (WISNIK, 2008, p.261)

No trecho acima Wisnik descreve o famoso silêncio


que tomou o Maracanã com a derrota do Brasil na final
pelo Uruguai. A falta de barulho, que ficou no incons-
ciente coletivo, e incomodou milhares de brasileiros é
o som do luto que permaneceu no país por dias. Quan-
do acabou o luto permaneceu o trauma que tenta ser
superado até hoje. Milhares de pessoas que não eram

605 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


nem nascidas em 1950 carregam esse trauma nacional
que insiste em não ser esquecido. Um exemplo está no
museu do futebol que fica no estádio municipal Paulo
Machado de Carvalho, mais conhecido como Pacaem-
bu, em São Paulo. Crianças que nunca ouviram falar
na derrota de 50 podem passar por uma sala do museu
chamada “Rito de Passagem”, e sentir como foi a ex-
periência assustadora do “silêncio” como se estivessem
no Maracanã no dia da derrota.
Pode-se dizer que esse aumento exagerado das der-
rotas, como se fosse a própria morte, é reflexo do “com-
plexo de vira-latas” típico do brasileiro. Nelson Rodri-
gues (1993, p.118) entende por “complexo de vira-latas”
“a inferioridade em que o brasileiro se coloca, volunta-
riamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os
setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos jul-
gamos “os maiores” é uma cínica inverdade”. Isso quer
dizer que por mais que o Brasil seja o único país penta-
campeão da Copa do Mundo, o primeiro a conquistar o
tricampeonato e o detentor da Taça Jules Rimet, a cada
derrota a nação se rebaixa de forma a esquecer toda a
tradição vitoriosa do país do futebol.
É como se a única coisa que o país soubesse fazer di-
reito fosse tirada da população com uma simples derro-
ta na Copa do Mundo. Isso fica mais evidente quando
o time vitorioso é uma grande potencia mundial, com
status de país desenvolvido, e não em desenvolvimento
como o Brasil. Se o país já perde em quesitos como a edu-
cação, a saúde e o transporte, não pode perder também,
nem que seja apenas por uma vez, no esporte nacional.

606 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Futebol: construção da identidade nacional
A construção da identidade de um país está quase
sempre ligada a tradição de uma sociedade. Opressão
colonial, lutas e revoltas pela independência ou pelo di-
reito de professar uma religião específica são elementos
que geralmente trazem essa unidade tão desejada pelos
políticos para enfim constituir um Estado-Nação. No li-
vro “Da Diáspora: identidades e nações culturais”, Stuart
Hall (2003, p. 29) define:

Possuir uma identidade cultural nesse sentido e


estar primordialmente em contato com um nú-
cleo imutável e atemporal, ligando ao passado
o futuro e o presente numa linha ininterrupta.
Esse cordão umbilical e o que chamamos de
“tradição”, cujo teste é o de sua fidelidade às ori-
gens, sua presença consciente diante de si mes-
ma, sua “autenticidade”. (HALL, pg. 29, 2003)

Porém, o Brasil é um país com uma extensão territo-


rial enorme, o quinto maior do mundo, e uma diversida-
de de povos maior ainda. São índios, negros, imigrantes
italianos, japoneses, espanhóis, portugueses, alemães. E
não para por aí. Mesmo nessas categorias apontadas a
diversidade já é enorme. Os índios que se encontravam
aqui antes da chegada dos portugueses, por exemplo,
eram divididos em diferentes tribos de acordo com o
tronco linguístico. Outro exemplo são os negros trazi-
dos na época do Brasil-Colônia para serem escravos.

607 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Eles lutavam para manterem a tradição africana, as reli-
giões africanas e não se sentiam parte de um país que os
maltratava e vendia como objetos para fazendeiros ricos.
Dessa forma o que se via era um amontoado de po-
vos que se destoavam entre si e não formavam um único
povo quando colocados juntos. Era necessário algo que
unisse essas pessoas que estavam em um mesmo terri-
tório, mas pareciam pertencer a tribos diferentes. Foi aí
que o futebol entrou em cena.

Tais formulações teriam como consequência


prática o irrestrito apoio que o jogo passava a
receber do governo de Getúlio Vargas durante
a Copa do Mundo – quando a delegação bra-
sileira tinha como madrinha a própria filha do
presidente, Alzira Vargas. Cristalizando os ide-
ais de harmonia social e furor nacionalista que
eram propagandeados pelo seu governo após a
implantação do Estado Novo, o futebol servia
como um grande aliado na propaganda do pro-
jeto político [...] (PEREIRA, 1998, p.325)

O Estado Novo foi o período de 1937 a 1945 e foi


marcado por uma série de repressões e censuras, por um
governo ditatorial, mas também pelo grande avanço tec-
nológico e fortalecimento da indústria nacional. Além
disso, os trabalhadores foram beneficiados com leis tra-
balhistas, que vigoram até os dias de hoje, que garanti-
ram uma série de direitos fundamentais como a jornada
de oito horas, o descanso semanal e o salário mínimo.
Getúlio Vargas convocava os trabalhadores em busca de

608 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


um Brasil melhor, forte e unificado. Mas para que esse
ideal de país fosse consolidado não era necessário ape-
nas fortalecer a indústria interna e garantir o direito dos
trabalhadores. Era necessário investir em propagandas
que fizessem que índios, negros, pardos, imigrantes eu-
ropeus e mulatos se sentissem um só povo.
Destaca-se aqui o ano dos acontecimentos. A pro-
paganda nacionalista do Estado Novo aparece já em
meados de 1938. Apenas cinquenta anos depois da li-
bertação dos escravos no Brasil. Se ainda nos dias de
hoje negros e mulatos compõem a classe mais baixa da
sociedade brasileira, no começo do século XX a situa-
ção era ainda pior. Mas como já foi tratado no presente
artigo os negros aos poucos conquistaram, muito mais
pela habilidade do que pelo bom senso, o direito de
jogar futebol e permanecer assim entre os craques acla-
mados do Brasil.
Em 1938, Getúlio Vargas percebeu com o furor cau-
sado pela Copa do Mundo o grande potencial unifica-
dor que tinha esse esporte. Como narra Pereira (1998),
Getúlio “Preferindo praticar esportes como o golf, ele
não demonstrava ter no jogo da bola uma de suas pai-
xões, intrigando-se com a destemperada reação da tor-
cida”. Mais do que depressa percebendo que o futebol
era capaz de “levantar paixões e ódios”, Getúlio iria uti-
lizá-lo como uma “força motriz da nacionalidade”. Um
exemplo é a utilização da própria filha como madrinha
da seleção. Ou ainda em 1938 a doação de 200 milhões
de réis para a equipe brasileira. “Muitos já identificavam
a vitória brasileira à sua pessoa”.

609 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Retomando o pensamento de Hall, de que a cultura
não é uma “arqueologia”, mas uma “produção”, pode-
-se dizer que nesse momento começa a ser constituída
a base da cultura futebolística brasileira. Com o Estado
Novo Getúlio deu apenas um pontapé para o que esta-
va por vir. Ano após ano, o destaque do país do futebol
nesse esporte era cada vez maior. Até que em 1958 con-
firmou esse favoritismo ao ser campeão do mundo pela
primeira vez. Na Copa seguinte, em 1962 o resultado
foi o mesmo. E na Copa de 1970 a seleção confirmou o
tricampeonato e conquistando a Taça Jules Rimet para
sempre. O tetra demorou a vir. Foram 24 anos de jejum,
e ainda assim o Brasil não perdeu o favoritismo. E em
2002 a seleção conquistou o Penta, mais uma vez inédito.
O fervor que toma conta das ruas durante a Copa do
Mundo, observado em 1938 por Getúlio Vargas, não di-
minuiu com o passar dos anos. Torcedores se reúnem em
bares, casas e até cinemas para assistir as partidas. Quando
o Brasil joga de manhã, o país começa a funcionar a tarde,
ou ao contrário, quando joga na parte da tarde, não se en-
contra comércio, padaria ou restaurante que esteja aberto
no período da manhã. Todos vidrados, com os olhos na
telinha, no mesmo instante. Como uma só nação.

Futebol: instrumento de mobilidade social


Como já foi tratado, a facilidade de se encontrar cam-
pos, traves e bolas, torna as cenas das famosas peladas

610 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


– nome dado no Brasil a uma partida de futebol com
regras livres – tornam-se comuns em bairros periféri-
cos e subúrbios. Nesses espaços o futebol é importante
instrumento de socialização. Para exemplificar pode-se
utilizar a pesquisa de DaMatta que estudou a trajetória
de oito operários de uma fábrica têxtil do subúrbio do
Rio de Janeiro e a relação de cada um com o futebol.

O jogo de “pelada” não aparece apenas nessas


ocasiões extraordinárias. E jogado semanal-
mente e são muitos os campeonatos nas praças
do bairro. Como componente importante de
padrão de sociabilidade da área estudada, con-
grega não só os operários da tecelagem, mas
também outros moradores, a maioria, contudo,
sendo de indivíduos situados na mesma faixa
do mercado de trabalho que o grupo investi-
gado: operários de outras fábricas, de constru-
ção civil, policiais, pequenos comerciantes, etc.
(DAMATTA, 1982, p.62)

Da mesma forma que a escolha de um time do co-


ração traz o indivíduo para uma tribo, a reunião para a
pelada com churrasco aos finais de semana cria identifi-
cações com a “turma do bairro”. Nesse momento as se-
parações criadas pelos times nacionais são esquecidas e
novos grupos são formados. O craque é uma espécie de
líder, que impõe respeito no lugar onde mora simples-
mente por jogar bem futebol. As crianças, principalmen-
te os meninos, são trazidas pelos pais desde cedo para o
ambiente do jogo, e como que em um rito de passagem, e

611 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


sentem orgulhosas quando na adolescência já podem ser
escolhidas para jogar em algum time.
Nos subúrbios, porém, o futebol não é visto apenas
como ferramenta de socialização. Ele também é fre-
quentemente usado como instrumento de mobilidade
social. Se em meados de 1900 os negros conseguiam
abandonar resquícios da recente abolição da escravidão,
e virar ídolos com a bola nos pés, os garotos de baixa
renda seguem o mesmo caminho ainda nos dias de hoje,
um século depois.
Ídolos nacionais, que fazem parte da camada de me-
ninos do subúrbio que “deu certo”, ajudam garotos da
periferia a continuarem sonhando. Um exemplo dessa
mudança de vida por meio do esporte é o Neymar. Para
FERRAZ (2012, p. 14) “A biografia de Neymar é muito
próxima a dos grandes jogadores do futebol nacional: é
mais um menino pobre que cresceu em um bairro peri-
férico”. Filho de um mecânico e de família humilde co-
meçou a jogar nas categorias de base do Santos quando
ainda tinha 11 anos de idade. Chegou a morar com o
pai, a mãe e a irmã em um cômodo na casa da avó, na
periferia de São Vicente. Já cedo conseguiu sustentar a
família e com 17 anos virou titular do time principal do
Santos. Nessa época já ganhava mais de trinta mil reais
por mês. Dinheiro que provavelmente não ganharia em
nenhuma outra profissão de forma tão rápida e fácil.
Fácil no sentido de que a medida que o futebol no
Brasil é lazer, frequentemente é visto como uma profis-
são nobre mas vagabunda. O paradoxo é visto em dife-
rentes ocasiões. Os ídolos são aclamados e colocados na

612 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


posição de reis, mas ao mesmo tempo a derrota não é
aceita como parte do jogo. É comum escutar torcedores
inflamados repetirem a frase: “ganha para jogar bola e
ainda faz corpo mole”. O brasileiro não aceita que alguns
escolhidos ganhem milhões para fazer algo que ele faz
de graça todos os finais de semana e ainda façam feio, ou
não consigam ganhar o jogo. Ainda que muitas vezes a
falta de técnica ou de posse de bola possa ser compensa-
da com o esforço do jogador, que ganha respeito da tor-
cida por “vestir a camisa”, correr até os instantes finais e
ser um verdadeiro representante do torcedor em campo.

Futebol: instrumento de alienação


A visão do futebol como “ópio do povo” não é gran-
de novidade. Apesar da expressão ser utilizada com
mais frequência para a crítica religiosa “A religião é o
ópio do povo”, ela é associada constantemente a obje-
tos de lazer. Neste trecho, também retirado do artigo
“Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira”,
DaMatta (1982, p. 62) aponta uma série de questões
que precisam ser discutidas:

Há uma nítida consciência de que temas tais como


esse são tabu dentro das sociologias oficiais que os
têm sistematicamente abordado seja como “ópios
do povo” seja como “casos de polícia”; seja, ainda,
como “casos de idiotice popular aguda”, quer dizer:
casos de mistificação e alienação social, tudo isso

613 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


para ser corrigido com a administração da ideolo-
gia correta pelo grupo apropriado. É que as nossas
elites, eu presumo, não estão acostumadas a jogar.
Ao contrário, elas odeiam o jogo. Por que? Porque
certamente o jogo significa basicamente ter de se
submeter a regras que valem para todos.

Já no império romano, a política do pão e circo, como


ficou conhecida, consistia na alienação política do povo
através de jogos violentos nas enormes arenas que qua-
se sempre custavam a vida dos competidores. As arenas
eram construídas em tempos de crise para entreter a po-
pulação e impedir revoltas.
Em paralelo, no Brasil a Copa do Mundo sempre
“coincide” com as eleições presidenciáveis, enquanto
que as Olimpíadas sempre “coincidem” com as eleições
municipais. Em ambos os casos, a atenção das pessoas,
que deveria estar voltada para as notícias políticas para
poder escolher os melhores candidatos, é dispersada
para esses jogos que comovem milhões de espectadores.
A própria mídia pode ser vista como culpada. Nas capas
dos jornais O Globo e da Folha de S.Paulo, por exemplo,
apenas um dia durante os jogos da Copa de 2014 as fo-
tos do mundial não estamparam a capa do jornal. Até
mesmo em dias que não tiveram jogos, fotos de treinos
eram utilizadas para ilustrar a matéria de capa que falava
sobre o esquema tático da seleção canarinho.
Além disso, da mesma forma que as arenas eram cons-
truídas para os espetáculos durante o império romano o
que se viu no Brasil no período anterior a Copa do Mundo

614 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


de 2014 foi uma invasão de arenas “padrão FIFA” feitas es-
pecialmente para os espetáculos nas normas internacionais.
O dinheiro gasto nas arenas foi alvo de críticas e manifesta-
ções. Segundo o relatório do Tribunal de Contas da União,
no início estava previsto que a verba destinada a reforma ou
construção de Arenas para Copa do Mundo 2014 somava
até R$ 5,463 bilhões. Ao final do evento um novo relatório
apontou que Os 12 estádios usados na Copa do Mundo cus-
taram 50% a mais do que o previsto. Foram cerca de R$ 8
bilhões só para as arenas.
Mas apesar dos gastos exorbitantes e da insistência
do governo em se utilizar do futebol para desviar a aten-
ção de brasileiros de assuntos políticos, DaMatta critica
o fato do esporte mais popular do país ser visto apenas
como forma de alienação. Ele defende que o futebol faz
parte das raízes culturais do Brasil junto com o carnaval,
o samba e a umbanda e deve ser tratado como tal.
Para ele grande parte da falta de incentivo e valoriza-
ção do esporte provém da falta de teorias e estudos aca-
dêmicos sobre ele. É curioso que apesar da importância
do futebol no Brasil são poucos os estudiosos brasilei-
ros que tratam do assunto. Até mesmo na classificação
editorial da maioria dos jornais é possível notar essa
discriminação. O esporte vem sempre separado das no-
tícias jornalísticas. Existe um grupo especializado para
cuidar do assunto e eles ainda são vistos a margem de
jornalistas econômicos, políticos e até culturais. DaMat-
ta justifica a discriminação e a falta de bibliografia sobre
o assunto dizendo que as elites econômicas, que teriam
estudo para debater o esporte na sociedade, não jogam.

615 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Simplesmente pelo fato de que no jogo todos são coloca-
dos em condições de igualdade.
Mas se de um lado as elites não jogam por serem
“rebaixadas” e colocadas em condições de igualdade,
pode-se dizer o contrário do outro lado. Milhões de
garotos de origem humilde quando colocados a prova
dentro de um campo de futebol conseguem se sentir
iguais ou até superiores aos garotos de classe média
alta que ali se encontram. Nesse momento a técnica, a
raça e o dom prevalecem e o pobre pode sair vencedor
pela primeira vez na vida.

A malandragem do brasileiro dentro de campo


O futebol brasileiro costuma ser aclamado por ser
diferente do jogado na Europa. Conforme assinala Cha-
madoira (2011, pg. 81) “O futebol brasileiro é associa-
do à criatividade e à improvisação, enquanto o europeu
mais à força física”. Ele ainda assinala uma comparação
feita pelo cineasta Pasolini na ocasião do tricampeo-
nato da seleção brasileira em cima da italiana em 1970
no México: “O futebol europeu está para a prosa assim
como o futebol brasileiro está para a poesia”. Enquanto
a prosa é vista como um discurso, a poesia é vista como
arte. A prosa serve aos objetivos finais de comunicação.
É a linguagem do dia a dia, direta. Enquanto a poesia se
utiliza de floreios e tem o objetivo em si, não apenas na
comunicação. Dessa forma, pode-se dizer que o futebol

616 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


brasileiro, diferente do europeu, tem seu objetivo em
si, e necessita da arte para ser aclamado. Diante dessa
afirmação não é difícil recordar de momentos em que
times brasileiros ou a própria seleção canarinho são
criticados por ter “ganhado, mas jogando mal”. Para o
brasileiro não basta apenas vencer, tem que convencer
a partir dos dribles, jogadas bem ensaiadas, craques e
floreios típicos do esporte.
É nesse momento que a malandragem do brasileiro
entra em jogo. Ela faz parte do espetáculo e é aclama-
da pelo público da mesma forma que a malandragem
do “jeitinho brasileiro” é bem vista no dia a dia. O “boa
praça” que costuma furar filas, entrar em ônibus sem pa-
gar ou ganhar alguma vantagem em jogos de azar, costu-
mam ser aplaudidos como “espertões” do grupo. E essa
malandragem proveniente das ruas também é aclamada
dentro de campo. Quando o time está contente com o
resultado e a partida está para terminar o jogador “faz
cera” ou se tem a oportunidade de fingir uma “falta” cai
e segura a bola. Essas expressões já fazem parte do voca-
bulário do torcedor brasileiro que incentiva tal compor-
tamento e aplaude quando ele se realiza.
Até a cantora Cássia Eller na música de nome “ma-
landragem” clama por esse atributo tão valorizado no
país, na primeira estrofe da letra: “Eu só peço a Deus, um
pouco de malandragem, pois sou criança e não conhe-
ço a verdade”. Na frase malandragem é utilizada como
antônimo de ingenuidade e é vista como algo positivo.
Esse mesmo significado é utilizado em campo, já que o
herói nacional não pode ser ingênuo com a bola nos pés.

617 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Ele precisa utilizar a “catimba” a seu favor para ganhar
tempo, faltas ou até mesmo irritar os adversários, e com
isso ganhar a partida da forma mais brasileira possível.
Por outro lado, na Europa a malandragem é malvista
e amplamente criticada principalmente pela imprensa.
Um exemplo foi o caso do zagueiro brasileiro David Luiz
que protagonizou uma cena incomum durante uma par-
tida do PSG contra o Chelsea. Ele apagou o spray utiliza-
do pelo árbitro para demarcar a área da bola na cobrança
da falta. O árbitro estava de costas e não viu a artimanha.
No dia seguinte o jornal espanhol “Mundo Desportivo”
classificou David Luiz como “patife e malandro”. O por-
tuguês “O Jogo”  manchetou o lance como o “A ‘batota’
de David Luiz”, que significa a “trapaça” de David Luiz, e
outros jornais europeus seguiram na mesma linha.

Futebol: instrumento de visibilidade

Aconteceu também no Brasil. Sem que ninguém


esperasse. Sem líderes. Sem partidos nem sin-
dicatos em sua organização. Sem apoio da mí-
dia. Espontaneamente. Um grito de indignação
contra o aumento do preço dos transportes que
se difundiu pelas redes sociais e foi se transfor-
mando no projeto de esperança de uma vida
melhor, por meio da ocupação das ruas em ma-
nifestações que reuniram multidões em mais de
350 cidades. (CASTELLS, 2013, p. 182)

618 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Em junho de 2013 aconteceram diversas manifes-
tações que ficaram conhecidas como Manifestações de
junho ou Manifestações dos 20 centavos. No início o
Movimento Passe Livre, MPL, convocou, por meio de
uma rede social, multidões para ir as ruas em todo o
país protestar contra o aumento do transporte público.
Porém como Castells aponta no trecho acima essa rei-
vindicação rapidamente se transformou em um protesto
amplo e sonhador, onde cada integrante tinha algo a di-
zer sobre um assunto diferente e devia ser ouvido.
Em São Paulo a Avenida Paulista ficou conhecida
como palco dos protestos. Em Brasília, manifestantes to-
maram o Congresso Nacional subindo pelas rampas até
o teto do prédio. No Rio de Janeiro houve chuva de papel
picado na Avenida Rio Branco e na frente da bibliote-
ca nacional foram distribuídas flores aos policiais. De
acordo com vários jornais brasileiros foram as maiores
mobilizações no país desde as manifestações pelo impe-
achment do então presidente Fernando Collor de Mello,
em 1992. Mas onde o futebol se encaixa nisso tudo?
Da mesma forma que ele foi alvo de crítica por par-
te dos manifestantes, foi graças a ele que os protestos
ganharam visibilidade internacional e se estenderam
por tanto tempo.

[...] a alegria de ver a Copa do Mundo de fute-


bol no Brasil e de que a seleção canarinho volte
a vencer converteu-se num negócio mafioso de
corrupção em grande escala, do qual participam
empresas de construção, federações esportivas

619 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


nacionais e internacionais, e administrações
públicas de diversos níveis, utilizando em boa
medida fundos públicos sem controle de contas.
“Trocamos dez estádios por um hospital decen-
te”, dizia um cartaz em Belo Horizonte. (CAS-
TELLS, 2013, p. 183)

Nesse trecho Castells deixa claro que de certa forma


o brasileiro foi colocado a prova a poucos meses antes
da Copa. Ninguém nega a grande alegria e o orgulho
nacional que o futebol brasileiro com toda a sua ginga e
classe traz aos torcedores e ao país como um todo. Po-
rém algo maior do que o prêmio de melhor seleção do
mundo estava em jogo. A população deixou o futebol de
lado para reivindicar melhorias de necessidades básicas.
Já na década de 50 Maslow (1954, p. 98) classificou
as necessidades humanas como baixas e altas, sendo que
as necessidades mais baixas estão relacionadas às neces-
sidades básicas fisiológicas e de segurança, enquanto as
mais altas são necessidades sociais, de estima e por úl-
timo a de autorrealização. O pensamento indica que as
necessidades humanas são distribuídas em forma de pi-
râmide, e que uma pessoa não passa de nível se não tem
o nível anterior completo. Por exemplo, uma pessoa não
vai pensar em comprar um carro ou uma casa se está com
fome, com sede ou com sono. Quando o manifestante er-
gue um cartaz que se lê “Trocamos dez estádios por um
hospital decente” pode-se aplicar a teoria de Maslow. Se o
brasileiro não tem saúde e educação de qualidade não vai
se preocupar com o futebol, que estaria um nível acima.

620 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Mas o alvo dos protestos virou também um instru-
mento de visibilidade a medida que a Copa das Confede-
rações de 2013 foi realizada no Brasil de 15 à 30 de junho,
exatamente no período das manifestações. Coincidência
ou não foi graças ao evento esportivo de caráter mundial
que os protestos brasileiros ganharam a mídia no exte-
rior. No jornal francês “Le Monde” a manchete “Heurts
à Fortaleza pendant le match Espagne-Italie” noticia um
dos episódios que ficou mais conhecido durante as ma-
nifestações principalmente porque aconteceu ao redor
do Estádio Governador Plácido de Castelo, mais conhe-
cido como Castelão, antes e durante o jogo da semifi-
nal do campeonato entre as seleções da Espanha e da
Itália. Manifestantes protestaram e foram recebidos com
resistência e spray de pimenta por parte da polícia, que
tinha o dever de manter a ordem no local para proteger
o espetáculo que ali acontecia de qualquer intervenção.
No “El País” da Espanha uma matéria com o título “Un
gigante se despierta” faz um resumo das manifestações
e explica os motivos que levaram os brasileiros às ruas.
Enquanto no principal jornal dos Estados Unidos “New
York Times” a matéria “Tear Gas Fired Outside Stadium
in Brazil, but Protest Still Spreads Inside” também narra
os protestos ocorridos ao redor do Castelão, e traz uma
foto de uma torcedora já dentro do estádio com os dize-
res “Queremos hospitais padrão FIFA”.
A frase acima foi vista constantemente durante os pro-
testos com suas variações: queremos escolas padrão FIFA,
transportes públicos padrão FIFA, saúde padrão FIFA,
entre outros. E faz referência a série de exigências feitas

621 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


pela Federação Internacional de Futebol Associado, FIFA,
para realizar os eventos esportivos em determinado lugar.
Além dos protestos que ocorreram ao redor dos está-
dios e durante a Copa das Confederações, um episódio
chamou a atenção do mundo todo: dessa vez ele correu
durante a festa de encerramento do evento, e dentro de
campo. Dois participantes da cerimônia exibiram uma
faixa pedindo a anulação da privatização do estádio do
Maracanã, que acabou se concretizando. Outro inte-
grante da coreografia levantou uma bandeira contra a
homofobia. Os dois cartazes e os manifestantes foram
retirados rapidamente por seguranças.
Nesses dois casos duas coisas chamam a atenção. A
primeira é a utilização do evento esportivo como palco
para a manifestação de caráter ideológico dos participan-
tes, como forma de promover a visibilidade não somente
nacional como internacional das reivindicações. De outro
lado está a ação dos seguranças que paralisa de forma ime-
diata o protesto e retira os rapazes que estavam perturban-
do a ordem e atrapalhando a coreografia da cerimônia de
encerramento da Copa das Confederações de 2013.
É importante destacar que a atitude dos seguranças,
que obviamente seguiam ordens de superiores, é incons-
titucional. Já que a liberdade de expressão é um direito
fundamental humano e está regulamentado no inciso
IV do artigo 5º “é livre a manifestação do pensamento,
sendo vedado o anonimato”. Além disso, no capítulo V
reservado para questões de Comunicação Social o Art.
220 garante que “A manifestação do pensamento, a cria-
ção, a expressão e a informação, sob qualquer forma,

622 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, ob-
servado o disposto nesta Constituição”.
O que se pode observar nesses protestos foi a gran-
de repressão policial sofrida pelos manifestantes. Mas
ao mesmo tempo a própria repressão serviu de com-
bustível para o movimento. Segundo Castells (2014,
p. 175) “Quanto mais se reprime um movimento, e
mais imagens se criam dessa repressão, mais capaci-
dade há de gerar um movimento mais amplo”. Essa
lógica pode ser aplicada nas manifestações ocorridas
no Brasil sem grandes questionamentos. O que se viu
foi uma comoção em massa aos agredidos e a tomada
das ruas de forma ainda mais contundente. E apesar
das manifestações não terem atrapalhado o anda-
mento dos jogos, toda essa violência policial foi vista
também no estrangeiro, que acompanhava através da
mídia, como foi mostrado, a repercussão do que acon-
tecia no Brasil, grande parte graças a visibilidade que
o país já dispunha simplesmente por sediar a Copa
das Confederações de 2013 nesse mesmo período.

Conclusão
Ao contrário do que muita gente pensa o futebol não
nasceu no Brasil. Ele veio da Inglaterra trazido por estudan-
tes, membros da elite do país, e era jogado apenas por mem-
bros da alta sociedade. Pessoas da classe mais baixa, prin-
cipalmente negros, não tinham acesso ao novo jogo. Mas

623 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


não demorou muito para que se percebesse a afinidade na-
tural de rapazes negros com o esporte. Há quem conte que
alguns rapazes jogavam o Football, como era chamado na
língua inglesa, e um rapaz de pele escura era gandula. Certa
vez, antes de fazer a reposição de bola, ensaiou algumas em-
baixadinhas. O talento do homem negro foi reconhecido de
imediato, e ele passou a jogar bola com os demais.
A história acima pode ter acontecido uma porção de
vezes em vários cantos do país, ou pode não ter aconte-
cido. Mas o fato é que os negros começaram a ser reco-
nhecidos no esporte e dominam até hoje o quadro dos
grandes times. O próprio rei do futebol, como é conheci-
do Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, é negro. Jogou
em grandes clubes do Brasil e até nos Estados Unidos, e
é tricampeão com a Seleção brasileira de futebol.
Histórias como essa povoam o imaginário de milhões
de garotos de classe social baixa no Brasil. O esporte vi-
rou instrumento de mobilidade social no país, e o sonho
de muitos garotos virou “vencer através do esporte”. Os
salários milionários dos jogadores incentivam ainda mais
o pensamento dos meninos. Em pouco tempo se conse-
guem ganhar mais de 10 mil por mês com o futebol no
Brasil, salário difícil de ser atingido em outras profissões.
Além disso, o futebolista ganha visibilidade e pode virar
ídolo de um time, ou na melhor das hipóteses, do Brasil
inteiro. O craque é o herói nacional que tem a oportu-
nidade de derrotar as seleções “inimigas” e trazer o tão
sonhado título da Copa do Mundo ao país do futebol.
Mas o futebol só é visto assim como instrumento tão
acessível de mobilidade, por ser de fácil acesso. Conforme foi

624 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


abordado qualquer lugar pode servir de campo e qualquer
objeto vira bola no pé de meninos jogadores. É só andar pe-
las ruas, principalmente dos subúrbios, que é fácil encontrar
garotos de todas as idades correndo atrás de uma bola.
Mais do que instrumento de mobilidade social o fu-
tebol pode ser visto como instrumento de socialização.
Nessas cenas imaginadas acima garotos constroem rela-
cionamentos para a vida inteira com os primeiros ami-
gos da bola. E as relações não são restritas às crianças. O
futebol com churrasco aos finais de semana é programa
certo para pais de família ou jovens solteiros. Depois de
sonhar com a profissionalização, os garotos desiludidos
percebem que precisam seguir com a vida e estudar ou
trabalhar. Nesse momento, o futebol se torna parte do
lazer semanal, que é quase sempre levado a sério por to-
dos os competidores dos times de bairro. Alguns têm até
uniforme e torcida organizada.
E não são apenas brancos e negros que o futebol con-
seguiu unir ao longo desses anos dentro do mesmo cam-
po de jogo. Com a imensa extensão territorial do Brasil
e a grande diversidade de povos, o futebol tornou-se
também instrumento de nacionalização. Getúlio Vargas
percebeu, na Copa de 1938, a grande comoção que o es-
porte causava em todo o país. Do Norte ao Sul, brancos,
negros, índios e imigrantes espanhóis. Todos vibraram
com as vitórias da seleção e amargaram o luto depois
da derrota na final. A partir de então, essa união que já
era vista de forma natural, passou a ganhar incentivos
do governo e se transformou em um importante instru-
mento de propaganda nacionalista de um estado ditador

625 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


que queria fortalecer a União e propagar a visão de um
país em crescimento.
Da mesma forma que o futebol já foi utilizado como
instrumento de nacionalização, muitas vezes ele é vis-
to também como instrumento de alienação. Não é a toa
que no Brasil, a Copa do Mundo sempre “coincide” com
as eleições presidenciáveis, enquanto que as Olimpíadas
sempre “coincidem” com as eleições municipais. A aten-
ção do povo, que deveria estar concentrada em notícias
políticas, volta-se para o noticiário esportivo. Conforme
foi discutido neste artigo, a própria mídia tem grande
influencia nisso. A hipótese pode ser justificada a par-
tir do agendamento. Segundo Ferreira (p. 111, 2010) “O
agenda setting constrói sua hipótese afirmando que a
influência não reside na maneira como os mass media
fazem o público pensar, mas no que eles fazem o público
pensar”. Dessa forma é possível dizer que os grandes jor-
nais de circulação nacional “fizeram o público pensar”
sobre a Copa em detrimento das eleições graças ao gran-
de destaque dado às notícias esportivas, que na maioria
das vezes ocupava a primeira página.
E se o futebol influencia diretamente o dia a dia do
brasileiro, seja como instrumento de nacionalização,
alienação ou mobilidade social, o jeito brasileiro de ser
também influencia na forma de se jogar bola. O futebol
brasileiro é visto no mundo todo como arte, muito gra-
ças a ginga do jogador. Enquanto o futebol europeu é
truncado, e ganha na força, o brasileiro ganha no drible.
A malandragem do brasileiro é valorizada dentro e fora
de campo. E é vista como parte do jogo.

626 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


O futebol no Brasil faz parte da cultura. Consegue
atingir homens e mulheres do país todo de diferentes et-
nias e diferentes classes sociais. E foi graças a esse alcance
que em junho de 2013 ele foi utilizado também como ins-
trumento de visibilidade. As manifestações pela redução
da tarifa e por melhores condições no transporte coletivo
aconteceram no mesmo período da Copa das Confede-
rações de 2013. O evento trouxe para o Brasil jornalistas
do mundo todo, que presenciaram o movimento histó-
rico que ocorria no país. Dessa forma as reivindicações
não ganharam apenas a mídia nacional, mas também a
internacional e trouxeram resultados positivos nunca an-
tes visto como a redução da tarifa em diversas cidades.

Referências
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mentos Sociais. Porto Alegre: Editorial, 2014.
CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança
– Movimentos sociais na era da internet. 1 ed.- Rio de
Janeiro: Zahar, 2013.
CHAMADOIRA, João, B, N. Linha de Passe: a gran-
de metáfora. (in) MARQUES, José Carlos; TURTELLI,
Sandra Regina. Futebol, Cinema & Cia: ensaios. São
Paulo: Cultura acadêmica, 2011.
DaMATTA, Roberto et al. Universo do Futebol: Esporte
e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982.

627 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


FERRAZ, Luís Henrique Mendonça. O craque, o sex
symbol e o homem de sucesso: a construção da ima-
gem de Neymar no mercado brasileiro de revistas
(2010/2011/2012). 2014. 129fs. Dissertação (Mestrado
em Comunicação). Faculdade de Artes, Arquitetura e
Comunicação, UNESP, Bauru, 2014.
FERREIRA. M. G. As origens recentes: os meios de
comunicação pelo viés do paradigma da sociedade de
massa. In HOHLFELDT, A; MARTINO, L; FRANÇA,
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HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações
Culturais. Liv Sovik (org); Trad. Adelaine La Guardia
Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Re-
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nia: uma história social do futebol no Rio de Janeiro
(1902 – 1938). 1998. 380f. Tese doutorado em história
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VICENTE, Maximiliano, Martin. Comunicação e fu-
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Carlos; TURTELLI, Sandra Regina. Futebol, Cinema &
Cia: ensaios. São Paulo: Cultura acadêmica, 2011.
MASLOW, Abraham, H. Motivation and personality.
New York: Harper & Row. 1954.

628 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

629 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Capítulo 21
A cultura de fãs e fandom como
perspectiva das práticas participativas
de consumo de mídia

Camila Fernandes de Oliveira1

Um dos desafios ao cursar a disciplina de Teorias


da Comunicação na pós-graduação é encontrar nos
textos estudados o aparato para lidar com seu objeto
de estudo, e esse desafio torna-se maior quanto mais
atual for esse objeto. Quando seu propósito é estudar a
cultura dos fãs nas comunidades virtuais, se aceita que
sua busca deverá ser ainda mais cuidadosa, num ritmo
quase insaciável para encontrar as melhores condições
de análise para o seu estudo e especialmente não hesi-
tar em buscar textos externos ao programa para com-
paração e aprofundamento.

1. Mestranda do programa de Pós-Graduação em Comunica-


ção Midiática da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comu-
nicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesqui-
ta Filho”. E-mail: oliveirafcamila@gmail.com.

630
Neste texto, não tenho intenção de realizar um re-
sumo completo do que vem sendo discutido nos estu-
dos de fãs, nem esgotar as perspectivas de olhares sobre
o tema, mas sim iniciar uma discussão sobre como os
aparatos teóricos a que temos acesso hoje servem para
explicar o contexto favorável às atividades de fãs atual-
mente, para delinear o ponto de vista sobre as práticas
das comunidades de fãs, além de pensar sobre os estu-
dos específicos do tema.
Cabe aqui destacar a relevância dos estudos de fãs
como uma maneira de compreender a interação do indi-
víduo com a sociedade em um mundo mediado, porque
permite “explorar alguns mecanismos chaves por meio
dos quais nós interagimos com o mundo mediado no co-
ração das nossas realidades e identidades sociais, políticas
e culturais” 2 (GRAY ET AL., 2007). No mesmo texto é
defendido que o futuro dos estudos de recepção e público
demandam estudos profundos e inovadores sobre fãs em
todas as suas formas, identidades, meios e espaços.

A origem e as fases dos estudos de fãs


É difícil delinear um marco específico para o começo
da história dos estudos da cultura de fãs, mas é ­natural

2. Tradução da autora para: “explore some of the key mechanisms


through which we interact with the mediated world at the heart
of our social, political, and cultural realities and identities.”

631 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


associá-la ao desenvolvimento dos estudos culturais
britânicos. Jenkins (1992, p.1) declara que foi inspira-
do pela tradição da Escola de Birmingham, “que ajudou
a reverter o desprezo público pelas subculturas da ju-
ventude, eu queria construir uma imagem alternativa
das culturas dos fãs, uma que visse os consumidores de
mídia como ativos, criticamente engajados e criativos.”3
Um dos aspectos mais importantes do estudo da cultura
de fãs é o foco na audiência, no receptor dos produtos
de mídias, e a concordância de que os consumidores de
um produto de mídia podem ser ativos e participantes.
Como apresenta Grossberg (1992):

Um texto só pode significar algo no contexto da


experiência e da situação da sua audiência em
particular. Igualmente importante, textos não
definem como eles serão usados no futuro ou
que funções eles poderão servir. Eles podem ter
diferentes usos por diferentes pessoas em dife-
rentes contextos. (p. 53)4

3. Tradução da autora para: “which helped reverse the public


scorn directed at youth subcultures, I wanted to construct an
alternative image of fan cultures, one that saw media consu-
mers as active, critically engaged, and creative.”
4. Tradução da autora para: “A text can only mean something in the
context of the experience and situation of its particular audience.
Equally important, texts do not define ahead of time how they
are to be used or what functions they can serve. They can have
different uses for different people in different contexts.”

632 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Jenkins (2006) delineia, em entrevista a Matt Hills,
três gerações – ou três ondas, para Gray et al. (2007) -,
de pesquisadores de fandom. Na primeira, em que ele
coloca John Tulloch, John Fiske e Janice Radway, destaca
o foco nos públicos ativos, o uso de métodos etnográfi-
cos, derivados em parte dos métodos sociológicos, e o
distanciamento dos objetos. “Era importante para esses
escritores estar do lado de fora do que eles estavam es-
crevendo, para serem livres de qualquer implicação di-
reta em seus temas em questão”5 (JENKINS, 2006, p.10).
Eles começaram a reconhecer o papel ativo do público,
mas sua escrita era despersonalizada, e não se tinha co-
nhecimento de qualquer afeição que eles tivessem em
relação aos seus objetos de estudo. “E às vezes havia uma
tentativa de se afastar da comunidade de fãs no final da
escrita e dizer, certo, agora nós chegamos à verdade que
os fãs não reconhecem sobre sua própria atividade polí-
tica.” (JENKINS, 2006, p.10) 6
A segunda geração, em que Jenkins se coloca junto
com Camille Bacon-Smith, tem em seu discurso a ga-
rantia dos conceitos de passivo/ativo, resistência/coop-
tação, enquanto tenta buscar a maneira ideal de escre-

5. Tradução da autora para: “It was important for these writers to


be outside what they were writing about, to be free of any direct
implication in their subject matter.”
6. Tradução da autora para: “And there’s sometimes an attempt to
pull back from the fan community at the end of such writing
and say, right, now we can arrive at the truth that the fans don’t
yet recognize about their own political activity.”

633 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


ver, o equilíbrio entre a maneira que gostariam de fazer
e a que é aceita pelos avaliadores, a primeira geração.

“Os editores decidem se eles [seus manuscritos]


serão publicados ou não, a faculdade decide se
nós seremos contratados. Então, você acaba lu-
tando para negociar entre o que quer escrever e
o que é possível dizer naquele momento em par-
ticular, na tentativa de levar seu trabalho a pú-
blico de algum modo.”7 (JENKINS, 2006, p.11)

Nesse ponto, Jenkins lembra que quando escreveu


Textual Poachers8 se viu em uma árdua tentativa de de-
fender os fandoms, e alterar a maneira que eles eram vis-
tos e retratados, como um participante dessa cultura, ele
via como uma necessidade naquele momento. Na intro-
dução de Fandom: Identities and Communities in a Me-
diated World, Gray et al. também destacam essas marcas
de gerações dos estudos de fãs, mas consideram como
primeira onda o que Jenkins aponta como segunda gera-
ção, destacando além dos trabalhos de Jenkins (1992) e
Bacon-Smith (1992), os trabalhos de Harrington e Bielby

7. Tradução da autora para: “The editors deciding whether they


get published or not, the faculty deciding whether we get hired.
So you end up struggling to negotiate between what you want
to say, and what it’s possible to say at a particular point in time,
in order to get your work out at all.”
8. JENKINS, H. Textual poachers: Television fans and participa-
tory culture. London, New York: Routledge, 1992

634 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


(1995) e Tulloch e Jenkins (1995), chamando essa gera-
ção de “Fandom Is Beautiful”, por causa da defesa e do
entusiasmo ao observar a cultura dos fãs.
Essa defesa não seria mais necessária para a tercei-
ra geração, que poderia ver o fandom de outra manei-
ra, por causa das bases criadas pelas gerações anterio-
res. Nessa geração, Jenkins destaca a presença do que
chama de aca-fen, os acadêmicos que também são fãs,
“para quem essas identidades não são problemáticas de
se misturar e combinar e que são capazes de escrever
de maneira mais aberta sobre suas experiências em fan-
doms sem a ‘obrigação da defesa’, sem precisar defender
a comunidade.”9 (JENKINS, 2006, p. 11). Essa condição
propiciada pelas gerações anteriores cria condições para
debates que eram evitados pela geração de Jenkins, per-
mite discussões sobre problemas centrais.
O que Jenkins (2006) apresenta como terceira gera-
ção, Gray et al. vê como duas ondas distintas. A segunda
onda seria menos otimista que a anterior e enxergaria
na estrutura dos fandoms uma reprodução das hierar-
quias culturais e sociais, considerando que as escolhas
dos objetos dos fãs e as práticas de consumo dos fãs se-
rem “estruturadas por meio do nosso habitus como uma
imagem e mais intensa manifestação do nosso capital

9. Tradução da autora para: “for whom those identities are not


problematic to mix and combine, and who are able then to
write in a more open way about their experience of fandom
without the “obligation of defensiveness,” without the need to
defend the community.”

635 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


social, cultural e econômico”10 (GRAY ET AL., 2007).
Nessa onda, assim como a anterior, os pesquisadores
também estariam preocupados com questões de poder,
desigualdade e discriminação, mas não viam as comu-
nidades de fãs como uma maneira de empoderamento,
mas sim uma estrutura inserida na sociedade com estru-
turas semelhantes de manutenção do status quo.
Uma das características destacadas em Fandom sobre a
terceira onda é o espaço conquistado pelos fãs na relação
com a mídia, os textos de mídia e os produtores de mídia.

“Quando Jenkins escreveu Textual Pochers


(1992), comunidades de fãs eram com frequ-
ência relegadas a convenções e fanzines. Hoje,
com tantas comunidades migrando para a in-
ternet, os milhares de grupos de discussão de
fãs, web sites, e as listas de e-mail que povoam
a web são somente eclipsados em presença pela
pornografia (que, é claro, tem sua própria base
de fãs próspera).”11 (GRAY ET AL., 2007)

10. Tradução da autora para: “a wide spectrum spanning from


regular, emotionally uninvolved audience members to pet-
ty producers.”
11. Tradução da autora para: “When Jenkins wrote Textual Poa-
chers (1992), fan communities were often relegated to conven-
tions and fanzines. Today, with many such communities’ mi-
gration to the Internet, the thousands of fan discussion groups,
web sites, and mailing lists populating the Web are only eclip-
sed in presence by pornography (which, of course, has its own
thriving fan base).”

636 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Outra diferenciação feita entre a terceira onda e as
anteriores é a expansão do conceito de fã, enquanto as
primeiras levam em consideração um subgrupo de fãs
mais apaixonado e dedicado, a terceira inclui uma defi-
nição mais ampla, “um espectro que alcança membros de
uma audiência assídua não envolvidos emocionalmente
até os pequenos produtores” (GRAY ET AL., 2007). Essa
mudança tornou o campo dos estudos de fãs mais di-
verso em termos conceituais, teóricos e metodológicos.
Nessa geração, fandoms não são mais um objeto de es-
tudo em si mesmo e por si mesmo, mas fazem parte de
um contexto maior da nossa vida cotidiana, o trabalho
dessa terceira onda de pesquisadores busca encontrar os
elementos fundamentais da vida moderna. Esse aspecto
é sintetizado em Fandom:

Estudos de audiência nos ajudam a entender


e enfrentar desafios muito além do reino da
cultura popular porque eles nos dizem algo
sobre a maneira com que nos relacionamos
com aqueles ao nosso redor como também a
maneira que nós lemos os textos mediados que
constituem uma parte ainda maior do nosso
horizonte de experiência.12

12. Tradução da autora para: “studies of audiences help us to


understand and meet challenges far beyond the realm of
popular culture because they tell us something about the
way in which we relate to those around us as well as the
way we read the mediated texts that constitute an ever
larger part of our horizon of experience.”

637 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


A relação com tempo e espaço
Além dos conceitos advindos dos Estudos Cul-
turais Britânicos, as práticas atuais dos fãs e de suas
comunidades são possibilitadas pela existência de as-
pectos da cultura contemporânea que são estudados
pelos pesquisadores da pós-modernidade, uma dessas
condições é a maneira com que se alterou a relação
que o indivíduo tem com o tempo e o espaço. Harvey
(2001) explica que a ideia de tempo e espaço não pode
ser definida de maneira concreta, não se pode atribuir
um significado objetivo sem considerar os processos
materiais, “cada modo distinto de produção ou for-
mação social incorpora um agregado particular de
práticas e conceitos do tempo e do espaço.” (p. 189).
Além disso, ele explica que as transformações so-
ciais afetam e são afetadas pela compreensão de espaço
e tempo, “bem como dos usos tecnológicos que podem
ser dados a essas concepções. Além disso, todo pro-
jeto de transformação da sociedade deve apreender a
complexa estrutura da transformação das concepções
e práticas espaciais e temporais.” (p. 201) Seguindo esse
pensamento, podemos afirmar que mesmo se fosse le-
vada toda a tecnologia necessária para a recepção de
videoclipes ou filmes para uma tribo indígena isolada
do convívio do resto do mundo, a experiência não se-
ria em nada parecida com a recepção desses mesmos
produtos de mídia por um estudante do ensino médio
morador de uma cidade como São Paulo, por exemplo,
porque a experiência que o público tem prescinde de

638 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


uma compreensão de mundo e de pertencimento espe-
cífica, além de uma percepção atual da velocidade de
transmissão da informação.

A sociedade de consumo favorece o fandom


Uma das perspectivas que servem para observar o fe-
nômeno dos fandoms é a sociedade de consumo como
analisada por Canclini (2008). O produto de mídia serve
para constituir a identidade do fã, e no espaço do fan-
dom que o indivíduo, especialmente o adolescente e o
jovem, tem o primeiro contato com as lógicas e práticas
da sociedade em que aquele fandom está inserido.

Para muitos homens e mulheres, sobretudo jo-


vens, as perguntas próprias dos cidadãos, sobre
como obtemos informação e quem representa
nossos interesses são respondidas antes pelo
consumo privado de bens e meios de comunica-
ção do que pelas regras abstratas da democracia
pela participação em organizações políticas de-
sacreditadas. (p. 14)

Essa experiência pode até gerar alguns choques de re-


alidade quando o indivíduo e o fandom do qual faz parte
se encontram em situações distintas, como um fã que
faz parte de uma sociedade autoritária e controladora ao
mesmo tempo que participa de um uma comunidade fãs
construída com base em práticas democráticas. Gray et

639 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


al. (2007) destaca esse desenvolvimento dos indivíduos
dentro da comunidade de fãs.

há um novo tipo de poder cultural emergindo


quando os fãs criam laços dentro de grandes
comunidades de conhecimento, investem sua
informação, dão forma às opiniões uns dos
outros, e desenvolvem uma auto-consciência
maior sobre suas agendas compartilhadas e
interesses comuns.

As trocas culturais no fandom


Featherstone (1995) também contribui para a com-
preensão do contexto favorável ao desenvolvimento
das comunidades de fãs online ao discutir as mudanças
ocorridas na cultura pós-moderna nos papéis dos inter-
mediários culturais. Isso é notável nas trocas culturais
realizadas dentro dos fandoms, em que os fãs acabam
sendo referência para indicações de novos produtos
culturais para consumo. Alguns fãs, pela sua expertise e
destaque na comunidade, atingem tamanha influência
que se tornam referência de gostos e estilos de vida.
Todo o aparato tecnológico necessário para as práti-
cas de fãs e para o consumo do produto cultural, desde
os primeiros filmes exibidos no cinema, e antes deles o
consumo de livros, músicas e peças de teatro, até os atu-
ais vídeos online, fansites, grupos virtuais, fazem parte

640 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


das ferramentas já conhecidas pelos fãs. Como explica
Thompson, a recepção é uma realização especializada.

Ela depende de habilidades e competências que


os indivíduos mostram no processo de recep-
ção. [...] Uma vez adquiridas, estas habilidades
e competências se tornam parte da maneira so-
cial de ser dos indivíduos e se revelam tão au-
tomaticamente que ninguém as percebe como
complexas, e muitas vezes sofisticadas, aquisi-
ções sociais. (p. 43)

Essa ideia explica as mudanças das comunidades de


fãs no mundo digital. A habilidade adquirida pelos fãs
para se relacionarem através da internet com seus obje-
tos de afeto e com outras pessoas é essencial para obser-
var os fandoms hoje. Com os perfis em sites de redes so-
ciais os produtores de mídia (escritores, músicos, atores,
cineastas, etc.) estabelecem um canal direto de comuni-
cação com os fãs, e através dos meus canais ou de vias
paralelas é estabelecida uma conversação entre os fãs.

A quase-interação mediada dos fãs


Essas interações dentro do fandom e entre fã-ídolo
estão relacionadas ao conceito de quase-interação me-
diada estudado por Thompson (1998), que apesar de
pressupor uma interação entre emissor e receptor se di-
ferencia da interação face a face. Enquanto a interação

641 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


face a face exige que receptor e emissor estejam no mes-
mo lugar ao mesmo tempo estabelecendo uma influên-
cia mútua e teoricamente simétrica, a quase-interação
mediada as partes podem estar em tempos e espaços di-
ferentes, e com níveis desiguais de envolvimento entre
receptor e consumidor. Nas duas relações estabelecidas,
se constrói uma “intimidade à distância”, os indivíduos
com que se trava essa relação

são companheiros regulares e confiáveis que


proporcionam diversão, conselhos, informa-
ções de acontecimentos importantes e remo-
tos, tópicos para conversação, etc. – tudo de
uma forma que evita exigências recíprocas e
complexidades que são características de rela-
cionamentos sustentados através de interações
face a face. [...] atores e atrizes, astros e estrelas e
outras celebridades da mídia se tornaram fami-
liares e íntimas figuras, muitas vezes assunto de
discussão e de conversa rotineira na vida diária
dos indivíduos (p. 191)

Vale destacar os quatro aspectos principais que dife-


renciam a quase-interação mediada da experiência vivi-
da (THOMPSON, 1998, p. 197) e se relacionam com as
práticas dos fãs individualmente ou dentro da comuni-
dade. O primeiro é que seus eventos podem ocorrer fora
do alcance espacial e/ou temporal da vida cotidiana, o
que está presente nos filmes estrangeiros que fazem su-
cesso em outros países, nos músicos que têm uma base
forte de fãs mesmo em locais que nunca se apresentaram,

642 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


além da divulgação de fotos e vídeos em plataformas de
redes sociais trazendo para o tempo e espaço do recep-
tor o que foi produzido no tempo e espaço do emissor.
O segundo aspecto é que a diferença de contexto
entre a quase-interação e o evento, o que, como afirma
Thompson, tem caráter ambíguo, por um lado atraente,
porque “espaços de experiências não estão delimitados
por contextos espaciais ou temporais, mas lhes são so-
brepostos, de tal maneira que o indivíduo pode se movi-
mentar entre eles sem alterar o contexto prático da vida
diárias” (THOMPSON, 1998, p. 198), o que é observado
na interação online, enquanto as pessoas estão envolvi-
das em suas atividades diárias e na suas experiências reais
vividas, elas podem manter uma influência mútua com
os ídolos e entre os fãs da comunidade, engajando-se em
discussões virtuais, comentando produções que o ídolo
divulgou, seja a produção fim de seu trabalho, como uma
música ou vídeo clipe de uma banda, seja as produções
de manutenção de influência, como fotos e vídeos sobre
bastidores ou relacionados ao cotidiano, numa atitude se-
melhante ao que é compartilhado entre amigos nas redes
sociais. Esse aspecto ainda é observado nos vídeos que
exibem causas sociais apoiadas por outros fãs ou pelo
ídolo, que acontecem longe do espaço e do tempo do re-
ceptor, em contexto diverso e desconcerta pelo choque de
realidade que causa pelo contraste “de mundos divergen-
tes que subitamente se unem numa experiência mediada,
que choca e desconcerta” (THOMPSON, 1998, p. 198).
A “relevância estrutural” é o terceiro aspecto, quando
selecionamos o que importa para a construção do self.

643 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Esse aspecto é relacionado às comunidades de fãs por
Grossberg (1992, p. 57)

No âmbito da sensibilidade afetiva, os textos


culturais servem como ‘outdoors’ de um in-
vestimento, mas não podemos saber o que o
investimento é além do contexto em que ele
é feito (este é o aparato). [...] Eles são o lo-
cal em que nós podemos construir nossa pró-
pria identidade como algo em que se investir,
como algo que importa.13

Esse aspecto se reflete nas variações de envolvimento


do público dentro de um mesmo contexto, como a prefe-
rência por um personagem e não por outro, pela preferên-
cia por uma música de um álbum e não por outra, porque
alguns fãs gostam mais de um episódio de um seriado en-
quanto outros gostam mais de outro. Essas diferenças se
relacionam ao que cada fã identifica como importante ou
relevante para si, o que o impressiona de alguma maneira.
O último aspecto é a “não espacialização comunal”,
os indivíduos não precisam compartilhar o mesmo local
para ter aspectos em comum. Dessa maneira, um fã de
uma banda britânica pode participar de um grupo online

13. Tradução da autora para: Within an affective sensibility, texts


serve as ‘billboards’ of an investment, but we cannot know what
the investment is apart from the context in which it is made
(that is apparatus). […] They are the places at which we can
construct our own identity as something to be invested in, as
something that matters.

644 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


de fãs predominantemente formado por fãs americanas,
sem que isso prejudique suas relações que são baseadas
em um interesse em comum, mais do que a localização.

A construção de um fandom
Nesse ponto, cabe observar a maneira que se cons-
troem e se identificam as comunidades de fãs. Podemos
encontrar tanto exemplos mais tradicionais, como os
­whovians, fãs do seriado Doctor Who, ou os Trekkers,
fãs de Star Trek, até a nerdfighteria, fãs dos irmãos John
e Hank Green, e as Directioners, fãs de One Direction,
passando pelos Potterheads, fãs de Harry Potter. Essa
participação em uma comunidade e a identificação
como um deles reflete a ideia de Thompson (1998) sobre
a importância da comunidade para os fãs: “a possibili-
dade de se tornar parte de um grupo ou comunidade,
de desenvolver uma rede de relações sociais com outros
que compartilham a mesma orientação.” (p. 194) A co-
munidade de fãs se distingue de outros tipos de comuni-
dades por não se definir a partir de um lugar particular,
mas inicialmente de interesses em comuns.

à medida que nossa compreensão do passado se


torna cada vez mais dependente da mediação
das formas simbólicas, e a nossa compreensão
do mundo e do lugar que ocupamos nele vai se
alimentando de produtos das mídias, do mes-
mo modo a nossa compreensão dos grupos e

645 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


comunidades com quem compartilhamos um
caminho comum através do tempo e do espaço,
uma origem e um destino comuns, também vai
sendo alterada: sentimo-nos pertencentes a gru-
pos e comunidades que se constituem em parte
através da mídia. (THOMPSON, 1998, p. 39)

Jenkins (2006, p. 23) destaca a diferenciação entre


as ideias de Bourdieu de experienciar a arte à distância
e a noção de alta cultura com as práticas dos fãs como
uma maneira de construção do eu: “é sobre ter o con-
trole e domínio sobre a arte, trazendo-a para perto e
integrando-a em seu sentido do eu.”14
Essa perspectiva reflete o embaçamento das fronteiras
entre alta cultura e cultura popular discutida por Fea-
therstone (1995), fazendo com que o conceito de cultura
inclua “um amplo espectro de culturas populares e coti-
dianas, nas quais praticamente todo objeto ou experiên-
cia pode ser considerado de interesse cultural.” (p. 135)
A constituição da comunidade de fãs também se re-
laciona com o conceito de que os indicadores de indi-
vidualidade, do gosto e do estilo pessoal sugerem que
todos podem ser alguém nessa sociedade sem grupos
com status fixos, e a produção simbólica envolve grupos
específicos. (FEATHERSTONE, 1995, p. 119)

14. Tradução da autora para: “it’s about having control and mastery
over art by pulling it close and integrating it into your sense of self.”

646 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


A visibilidade online
Um dos aspectos que facilita as relações entre o fã e o
ídolo no contexto atual é a questão da visibilidade, que
foi aumentada com o desenvolvimento da internet. A
visibilidade dos produtores de conteúdo possibilita a in-
teração, o compartilhamento de informações e produtos
de mídia, o mesmo pode-se pensar em relação aos fãs
dentro do. O conceito de visibilidade com que se relacio-
na o projeto é bem diferente do pensamento de visibili-
dade de dois séculos atrás pela influência das tecnologias
de produção, transmissão e recepção de conteúdo, que
não é mais limitada pelas características do aqui e agora.

Além do mais, essa nova forma de visibilidade


mediada não é mais tipicamente recíproca. O
campo de visão é unidirecional: aquele que vê
pode enxergar pessoas que estejam distantes e
que são filmadas ou fotografadas, mas estas úl-
timas não podem vê-lo, na maioria dos casos.
Pessoas podem ser vistas por muitos observa-
dores sem que elas próprias sejam capazes de
vê-los, enquanto os observadores são capazes
de ver à distância sem serem vistos por elas.
(THOMPSON, 2007, p. 21)

As condições atuais de visibilidade alteram algumas


dinâmicas que foram estabelecidas por anos, como a
mediação clara de instituições - como editoras, gravado-
ras, produtoras de vídeos e canais de televisão - da trans-
missão de conteúdo e informação do produtor - como

647 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


escritores, músicos, atores -, para o público. “Ganhou-
-se a capacidade de falar diretamente para um público,
de aparecer diante dele em carne e osso como um ser
humano com o qual seria possível criar empatia e até
simpatizar, dirigir-se a ele não como público, mas como
amigo.” (THOMPSON, 2007, p. 25) Essa visibilidade
pela mídia garante um tipo de “reconhecimento no âm-
bito público que pode servir para chamar a atenção para
a situação de uma pessoa ou para avançar a causa de al-
guém” (THOMPSON, 2007, p. 37).

O fã produtor
Um dos reflexos dessa mudança é o envolvimento
de um indivíduo em um fandom não só pelo interes-
se em comum com os outros fãs, mas pela possibilida-
de de utilizar os seus talentos e divulgar seus trabalhos
para o público formado por aqueles fãs, como lembra
Duffett (2013): “Muitos desses jovens são levados às co-
munidades de fãs – não por sua relação apaixonada e
afetuosa com o conteúdo de mídia, mas por que essas
comunidades oferecem a eles a melhor rede para levar
o que eles produziram para um público maior.”15 Esse

15. Tradução da autora para “Many of these young people are


being drawn towards fan communities – not because of their
passionate and affectionate relationship to media content but
because those communities offer them the best network to get
what they have made in front of a larger public.”

648 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


é o caso das populares fanarts e fanfics, mas também é
observado em outras produções como criação e edição
de vídeos, traduções, legendas e dublagens de vídeos, e
em diversas funções que os fãs desempenham dentro do
fandom como organização e administração de fansites,
webdesign e divulgação ativa e organizada dos produtos
de mídia. O desenvolvimento de um fã como produtor
de conteúdo a partir das atividades realizadas na comu-
nidade é celebrado por Coppa (2014):

É ótimo que nós estamos vendo tantos escritores


fãs na lista de mais vendidos do New York Ti-
mes, e que alguns fãs produtores de vídeo estão
ganhando dinheiro editando filmes ou criando
trailers de livros, e que fãs administradores de
sistemas codificadores estão entrando em traba-
lhos de tecnologia da informação. (p. 77)16

Essa associação entre o conceito de fã e a ideia de


produção de conteúdo já estava presente nos textos de
Fiske, como destaca Lewis (1992): “Fãs se concentram
em cultura popular, ele sugere, porque industrialmen-
te produziu textos que encorajaram a identificação e a

16. Tradução da autora para: “It’s great that we are seeing so many
fan writers on the New York Times best-sellers list, and that
some fan vidders are making money doing film editing or cre-
ating book trailers, and that fannish sysadmins and coders are
stepping forward to take information technology jobs”

649 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


participação dos membros do público.”17 (p. 3). No livro
organizado por Lewis, Fiske (1992, p. 37-39) apresen-
ta três categorias para a produção dos fãs. A primeira
é a produtividade semiótica, essencialmente interior e
subjetiva, constitui na atribuição de significados para os
produtos de mídia e na apropriação deles para a constru-
ção da identidade. Quando esses significados são com-
partilhados com uma comunidade, ocorre a chamada
produtividade enunciativa, que é a conversação entre fãs
sobre o objeto de afeição. Em seu texto Fiske limita essa
produtividade ao momento de fala e a circulação restri-
ta, mas pode-se aplicar esse conceito às discussões que
acontecem online, apesar de elas ficarem registradas em
suas plataformas e poderem ser recuperadas mais tarde,
porque, apesar disso, essas conversações online ainda se
diferem da terceira categoria. A chamada produtividade
textual é a produção dos fãs com algum valor cultural,
como as fanfics, as fanarts, os fanvideos e as resenhas.
Hoje essas práticas são ainda mais facilitadas pelo
contexto chamado por Jenkins (2009) de cultura da con-
vergência, que afeta não só as práticas dos fãs como a
dos produtores, que em outros tempos tinham ação es-
pecializada, no cinema, por exemplo, mas hoje também
assinam produtos para televisão, música, games, websi-
tes, brinquedos, parques de diversões. O consumidor,
por outro lado, entra em contato com esse produto ao

17. Tradução da autora para: “Fans concentrate on popular cultu-


re, he suggests, because industruially produced texts encourage
identification and participation by audience members.”

650 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


mesmo tempo em que se engaja entre outras atividades,
pode-se ouvir música enquanto trabalha, troca mensa-
gens com um amigo, e lê notícias online. Esse compor-
tamento convergente não fica de fora das produções dos
fãs, como exemplifica o autor:

E fãs de um popular seriado de televisão podem


capturar amostras de diálogos no vídeo, resumir
episódios, discutir sobre roteiros, criar fanfiction
(ficção de fã), gravar suas próprias trilhas sono-
ras, fazer seus próprios filmes – e distribuir tudo
isso ao mundo inteiro pela internet.” (p. 44)

O papel dos objetos de desejo e coleção


Um dos aspectos relacionado às práticas de fãs sem-
pre lembrado pela mídia é a coleção, seja de objetos di-
retamente ligados ao produto midiático, como DVDs,
CDs, livros, seja de itens indiretamente ligados, como
revistas e pôsteres sobre o tema, fotos dos ídolos, répli-
cas de objetos usados em filmes e seriados, objetos au-
tografados. A de valorização de objetos pelo seu signi-
ficado e simbolismo mais do que seu valor material e
objetivo é explicada por Harvey (2001),

Fotografias, objetos específicos (como piano,


um relógio, uma cadeira) e eventos particulares
(uma certa canção tocada ou cantada) se tor-

651 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


nam o foco de uma lembrança contemplativa e,
portanto, um gerador de um sentido do eu que
está além da sobrecarga sensorial da cultura e
da moda consumista. A casa se torna um museu
privado que protege do furor da compreensão
do tempo-espaço. (p. 264)

Uma aplicação desses valores está nos leilões des-


ses objetos ou na troca desses objetos por doações de
dinheiro para causas sociais, esse último caso é exem-
plificado no Project for Awesome, organizado pelos ir-
mãos Hank e John Green, que arrecadou mais de 500
mil dólares para a caridade pela plataforma Indiegogo,
aplicando essa lógica de associar a doação a um brin-
de que não tinha necessariamente um valor objetivo,
uma função prática. Entre as opções de lembranças,
estavam itens relacionados à comunidade de fãs ner-
dfighteria, incluindo moedas e meias com estampas do
logo da comunidade, e compilações digitais de músicas
feitas pelo fandom, ou de covers de músicas de Hank
Green feitos pelos fãs.Ao escolher um item combinan-
do com sua doação, o indivíduo traz para o seu meio
uma memória de um momento construído com base
na efemeridade. Esse tipo de item relaciona-se com a
ideia de valor simbólico explicada por Featherstone
(1995), e não se relaciona apenas como a posse de um
desses itens, mas com o engajamento da audiência com
o Project for Awesome, o valor não está apenas na utili-
dade, mas no que aquela ação comunica, no caso, fazer
parte do grupo de nerdfighters.

652 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Considerações
O consumo de textos mediado influencia e é influencia-
do pelas mudanças nas práticas sociais e os fãs, como parte
da audiência consumidora, servem de perspectiva para es-
tudar a sociedade em que a comunidade que formam está
inserida. Os estudos de fãs vêm se desenvolvendo desde o
fim da década de 80 nos Estados Unidos e no Reino Uni-
do, e pouco a pouco vêm conquistando seu lugar no Brasil.
Como parte das práticas sociais, as práticas dos fãs podem
ser observadas pela perspectivas de variados estudos em
comunicação e são compreendidas por meio de conceitos
como quase-interação mediada, construção do self e vi-
sibilidade de Thompson (1998, 2007), cultura da conver-
gência de Jenkins (2009), a dissolução das fronteiras en-
tre alta cultura e cultura popular de Featherstone (1995),
as mudanças na percepção de tempo e espaço de Harvey
(2001). Fica clara a importância desse campo de estudo
e da necessidade do desenvolvimento de mais estudos de
fãs, especialmente entre os pesquisadores brasileiros.

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655 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Capítulo 22
Distorções da modernidade: o não
lugar da imagem pictórica de fausto
em Murnau e Sokúrov

Fabrício Mesquita de Aro

A imagem sem território


A divisão do território espacial do homem contem-
porâneo está cada vez mais destacada de sua geografia
estática. O atlas enclausurado em estantes deu lugar a
mapas digitalizados e em alta resolução, obtidos através
de imagens de satélite e do uso de aplicativos em supor-
tes móveis. A delimitação de espaços hierarquizados que
delimitam culturas e hábitos já não é mais suficiente para
suprir a demanda informacional da atualidade. Ao longo
de seu percurso histórico, a imagem recortou-se de sua
origem e tornou-se particular a todos os espaços estran-
geiros. Numa dinâmica da virtualidade o objeto visual
destacou-se do lugar para pertencer a um não lugar.

“Contraste: são nas entradas das cidades, nos


espaços melancólicos dos grandes conjuntos,

656
das zonas industrializadas e dos supermerca-
dos que são plantados os painéis que nos convi-
dam a visitar os monumentos antigos: ao longo
das rodovias, que se multiplicam as referências
às curiosidades locais que deveriam reter-nos
enquanto só passamos, como se alusão ao tem-
po e aos lugares antigos, hoje, fosse apenas uma
maneira de dizer o espaço presente.” (AUGÉ,
2012, p.69)

Para Marc Augé a busca incessante pela velocidade e


imediatismo fez do homem contemporâneo um nôma-
de tecnológico desterritorializado de suas concepções
espaciais do passado. O caminhar do contemporâneo se
dá através de grandes deslocamentos que não têm mais
relação com o espaço-tempo analógico. Quanto mais
digitalizada for a transmissão informacional, menos
esta estará vinculada a uma ideia de repouso. A ima-
gem digital tem em sua natureza a transição, a interfa-
ce, a decodificação de algoritmos numa recombinação
constante – o não lugar da imagem é o habitar todos os
espaços ao mesmo tempo, sem criar afetos que possam
vincular sua existência a somente um ponto espacial.
No contemporâneo tudo está em todo lugar, ao mesmo
tempo, sem intervalos.
Ao criar novas codificações espaciais a um mesmo
objeto, sua natureza imagética começa a se desfigurar
de suas características originais estáticas – para cada
deslocamento há uma distorção que reconfigura sua
estética imediata. Os novos mapeamentos permitem
uma representação particular para cada espacialização

657 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


criada. Não há mais um mapeamento universal co-
mum a todos os que o habitam: Para cada indivíduo,
um continente, e nele, características íntimas de sua
representação.
Ao analisar a figura-mito de Fausto, permite-se ver
o processo de distorção da imagem em suas diferentes
adaptações e estabelecer articulações espaço-temporais
entre o objeto verbal de Johann Wolfgang von Goethe
publicado em 1808, o intraverbal de Murnau no Ex-
pressionismo Alemão em 1927 e a verbo-imagético de
Sokúrov de 2012.

(Novos Mapeamentos: Representação em escala cromática da cidade


de Santiago no Chile mapeada por usuários de celulares com sistemas
operacionais Android, IOS, BlackBerry e outros – Fonte: Google)

658 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


O verbal – Fausto em Goethe

“A obra, portanto, foi concebida e criada ao lon-


go de um dos períodos mais turbulentos e revolu-
cionários da história mundial. Muita de sua força
brota dessa história: o herói goethiano e as perso-
nagens a sua volta experimentam com grande in-
tensidade muitos dos dramas e traumas da história
mundial que o próprio Goethe e os seus contem-
porâneos viveram; o movimento integral da obra
reproduz todo o movimento mais amplo de toda a
sociedade ocidental.” (BERMAN, 1982, p..45)

A figura de Fausto representada por Goethe se distin-


gue de suas anteriores ao relacionar a sua relação com
Mefistófeles num pacto muito mais ambicioso do que
os bens universalmente desejados: dinheiro, sexo, poder
sobre os outros, fama e glória. Na expressão verbal de
Goethe o herói é aquele que transitou entre dois espaços:
O lugar do arcaico medieval com sua política de feudos
e o lugar da Modernidade pós-Revolução Industrial, em
uma era burguesa de poderes concentrados. Aqui, o de-
sejo de Fausto é o desenvolvimento, a velocidade, a con-
quista tecnológica desenfreada. Nesse contexto, a figura
do herói se distorce ao trazer contrastes históricos a uma
personagem fictícia.

“Entendamo-nos bem. Não ponho em mira


na posse do que o mundo alcunha gozos.
O que preciso e quero é atordoar-me.

659 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Quero a embriaguez de incomportáveis dores,
a volúpia do ódio, o arroubamento
das sumas aflições. Estou curado
das sedes do saber; de ora em diante
às dores todas escancaro est´alma
As sensações da espécie humana em peso,
Quero-as dentro de mim, seus bens, seus males
mais atrozes, mais íntimos se entranhem
aqui onde à vontade a mente minha
os abrace, os tacteie; assim me torno
eu próprio a humanidade; e se ela ao cabo
perdida fora, me perderei com ela”

(Litografia de Eugène Delacroix inspirado em Fausto de Goethe


(1808). Fonte: Editora 34)

660 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


A frase de Marx “Tudo o que é sólido se dissolve no
ar” sintetiza o conceito do homem diante da Moderni-
dade – nada dura para sempre, por mais forte e eter-
no que pareça. Para que um novo modelo se construa é
necessária a destruição do seu devir-antigo. O lugar de
Goethe é o cenário da grande evolução tecnológica do
homem ocidental, o homem-máquina, o homem-poder.
A distorção desloca o personagem medieval para os cen-
tros urbanos, dando origem à condição esquizofrênica
da metrópole contemporânea.

O intraverbal – Fausto em Murnau


República de Weimar, 1920. A Alemanha se encontrava
num processo da cura das feridas expostas pela Primeira
Guerra Mundial. Em um país destruído nasce uma esté-
tica que poderia refletir o imaginário daquela sociedade.
A primeira fase do Expressionismo se deu nas artes plás-
ticas para depois se desdobrar no cinema. Em ambos os
suportes a estética expressionista se mostrava num campo
onírico, com temas extraordinários e fantásticos - e o que
seria sua característica mais marcante - o alto contraste da
imagem na relação entre luz e sombra do fotograma.
Luzes e sombras da tela se mostravam distorcidos, tortu-
osos e imprevisíveis. A fotografia e os cenários contribuíam
para criar uma atmosfera de suspense e com distanciamento
plástico do mundo palpável. Trata-se de uma estética antimi-
mética da representação ilusória do espaço tridimensional.

661 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


“A pintura chinesa, do mesmo modo, ignora a
perspectiva e o realismo. Parte importante da arte
africana também cultivou o que Robert Farris
Thompson chamou de “mimese pela metade”, ou
seja um estilo que evita tanto o realismo ilusionista
quanto a hiperabstração. Tradições não-realistas
também existem no Ocidente, e não há nada de
intrinsicamente ruim no “realismo ocidental”. Mas
como produto de uma cultura específica e de um
momento histórico, o realismo é apenas uma va-
riação dentro de um repertório muito mais am-
plo.” (SHOHAT; STAM, 2006, p.411)

Os atores sempre imprimiam um caráter exagerado em


seus personagens, com uma maquiagem pesada que desfi-
gurasse suas formas naturais. Não demorou muito para que
esses filmes começassem a despertar a atenção do público
intelectual alemão, que raramente valorizava o cinema. O
mercado internacional que desde o início da guerra havia
se fechado para a Alemanha também começou a mostrar
um profundo interesse nessa nova cinematografia.
Quando Murnau decide adaptar a obra de Goethe
para o cinema, apresenta ao público um Fausto imerso
em luz e sombra, carregado de expressões e distorcido
plasticamente em seu cenário dominado pelo mal. Faus-
to aqui é um personagem que sofre a elasticidade dos
cenários que o oprimem, pela luz superexposta que con-
trasta com o pleno breu de suas sombras.
Um movimento artístico que nasceu de uma guerra
e foi extinto por outra. No momento em que a Alema-
nha fica dominada pelo nazismo e entra na Segunda

662 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Guerra, o Expressionismo se interrompe. O êxodo de
cineastas, atores e técnicos alemães espalhou influên-
cias “expressionistas” para o mundo todo, em especial
nos Estados Unidos. A estética americana do cinema
noir é considerada fruto dessa influência.
A imagem exportada não pertence mais à sua origem.
Ao se deslocar no espaço a imagem traduz sua distância
e seu isolamento em frente a uma nova cultura.
A estética do cinema mudo é de uma simbiose entre
o verbal dos diálogos introduzidos na imagem pictórica.
Quando o objeto intraverbal desloca-se para outro terri-
tório sua natureza se deforma; o verbal já não pode mais
retratar sua língua original. Há de se traduzir para um
novo território para qual essa imagem está se deslocando.

(Fausto de F.W.Murnau – 1927 – Fonte: Versátil Filmes)

663 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


O verbo imagético – Fausto em Sokúrov

O cinema é a última imagem.[...] Entre os se-


res e as coisas...O cinema é o último entre dois.
Real e imaginário, sujeito e objeto, o mesmo
e o outro existem ainda que como partes in-
discerníveis, na arte cinematográfica[...] ao se
discutir se o cinema é ou gera o real em muitos
sentidos, discute-se ao mesmo tempo se ele é
ou gera a ilusão em muitos sentidos. Ao man-
ter essa relação entre termos distintos, entre
dois, o cinema produz distâncias, ou, ainda, ele
se produz na distância.[...] As próximas ima-
gens, aquelas digitalizadas, concebidas através
de cálculos matemáticos de computadores, as
imagens de síntese, propõem a interação em
tempo real. A natureza das imagens mudou in-
teiramente. (MACIEL, 1993, p. 253-4)

A grande distorção tecnológica do cinema contem-


porâneo é a que deriva do suporte analógico para o
digital. O que antes era um procedimento químico do
fotograma, com sua irreversibilidade e grande demora
em sua composição final tornou-se um método do ime-
diatismo, da imagem deslocada em todo momento por
seus suportes digitalizados de alta fidelidade.
O paradoxo de Fausto filmado por Alexander
Sokúrov em 2012 reside na textura imagética pro-
posta pelo diretor – os das telas de pintura – a ima-
gem digitalizada de Sokúrov não escancara seus dotes

664 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


t­ ecnológicos na tela, pelo contrário, busca ecoar cenas
pintadas à mão com tinta a óleo numa tela branca. Co-
nhecido como o “cineasta pintor”, resolveu inserir seu
herói goethiano numa tetralogia fílmica que ficcionali-
za personagens históricos do século XX.

(Fausto de Alexandr Sokúrov – 2012 – Fonte: Imovision)

Assim foi chamada a “Tetralogia do Poder”: Moloch


(Rússia, 1999), Taurus (Rússia, 2001) e O Sol (Rússia,
2005) são cinebiografias livres de Hitler, Lênin e Hiro-
hito, com suas particularidades visuais distorcidas. Para
fechar o Tetro-Poder, Sokúrov filma Fausto (Rússia,
2012), elemento ficcional de Goethe em uma adaptação
de uma nova Modernidade da história humana.

665 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


A distorção sokuroviana vem da elasticidade da ima-
gem digital, de sua permeabilidade de edições e manipu-
lações e das quebras dos dogmas da perspectiva linear.
Um dos grandes tabus da evolução estética da Arte é a
total obediência à perspectiva linear euclidiana, com sua
profundidade de campo perfeitamente calculada desde
a Renascença. Fez-se acreditar que toda forma de re-
presentação a partir daquele momento deveria seguir as
linearidades da proporção áurea. O Fausto de Sokúrov
dobra e redobra sua imagem, deslocando seus pontos
de fuga para extremidades oblíquas, permitindo novos
ângulos e novas linearidades espaciais no campo da tela.

“Sokúrov recusa a ilusão da tridimensionalida-


de e o simulacro da realidade e encara a imagem
de cinema como algo plenamente horizontal e
plano, à maneira de uma tela de pintura. Em
vez de reproduzir de forma concreta a natureza,
ele a recria como pintor, mesmo que para isso
seja preciso lançar mão de acessórios como es-
pelhos, iluminação refletida e refratada, vidros
em várias angulações na frente das lentes, e até
pincel e finas camadas de tinta sobre esses vi-
dros, tal qual em antigas técnicas chinesas de
pintura.” (MACHADO, 2012, p.19)

Quando uma criança faz um desenho de uma casa,


ela não a representa segundo as leis da perspectiva renas-
centista. Na verdade a criança está destituída de regras e
dogmas que possam aprisionar seu desenho. Ao criar seu
próprio desenho-casa, ela cria sua “própria n
­ atureza”, en-

666 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


xerga o mundo com sua própria perspectiva. O problema
é que essa criança passará pelos mesmos ensinamentos
renascentistas e voltará a desenhar como o coletivo – sua
identidade estética se perderá nesse meio.
E se os pintores que viveram antes do Renascimento
já tivessem a noção espacial, mas simplesmente se recu-
saram a reproduzi-la? Optaram assim por construir suas
próprias naturezas com suas próprias leis e dinâmicas,
libertando a obra de arte para novas representações.

“Será verdade que a perspectiva expressa a natu-


reza das coisas, como pretendem seus adeptos,
e por isso deve sempre e em qualquer lugar ser
considerada a premissa incondicional da veraci-
dade artística? Ou se trata apenas de um esque-
ma, de um entre tantos possíveis esquemas de re-
presentação que corresponde não à percepção do
mundo como um todo, mas somente a uma entre
as possíveis interpretações do mundo, ligada a
um modo bastante determinado de sentir a vida
e entender a vida?” (FLORIÊNSKI, 2012, p.33)

A natureza verbo-imagética de Fausto em Sokúrov


permite que o suporte digital da ferramenta se encontre
com seu devir-objeto-pictórico: o pincel. Se pensarmos
que o cinema de Sokúrov é moldado pelo conceito de
pinceladas, a tela de cinema irá ecoar a estética das obras
emolduradas em museus. A obra de arte não se confor-
ma em se aprisionar no espaço enclausurado do tradi-
cionalismo – ambiciona a grande sala de cinema, busca
grandes escalas para sua representação.

667 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


“A origem não é apenas o que teve lugar uma vez
e nunca mais terá lugar. É também – e mesmo
mais exatamente – o que no presente nos volta
como de muito longe, nos toca no mais íntimo
e, como um trabalho insistente do retorno, mas
imprevisível, vem trazer seu sinal ou seu sinto-
ma.” (HUBERMAN, 2013, p.113)

(Santa Trindade, pintura sobre madeira, Andrei Rublev, 1427.


Fonte: Editora 34)

668 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Seja no “Eterno Retorno” de Nietzsche ou no concei-
to de sintoma descrito por Huberman, a arte é feita de
ciclos e elipses temporais. Recombina-se com novas tec-
nologias e desperta entre os não lugares da Modernidade.
Ao expandir os limites do mapeamento geográfico, uma
pintura icônica bizantina do século XIV dialoga livre-
mente com a imagem digitalizada. As molduras do con-
temporâneo são elásticas e seus frames são como uma
malha tecida sob forte tensão informacional. Mesmo dis-
torcida, essa imagem não há de se romper.

Referências
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gia da supermodernidade. Tradução de Maria Lúcia Pe-
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GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto: Uma tragédia.
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Rússia [S.I.]: Versátil Home Vídeo, 2002. 1 DVD (97
min), NTSC, color. Título original: Russkiy Kovcheg.
FAUSTO. Direção: Aleksander Sokúrov. Produção: Rús-
sia [S.I.]: Imovision, 2002. 1 DVD (139 min), NTSC, co-
lor. Título original: Faust.
MÃE E FILHO. Direção: Aleksander Sokúrov. Produ-

672 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


ção: Rússia [S.I.]: Silverscreen Vídeo, 1997. 1 DVD (73
min), NTSC, color. Título original: Mat I Syn.
MOLOCH. Direção: Aleksander Sokúrov. Produção:
Alemanha, Rússia, Itália, França e Japão. [S.I.]: Movie
Star Filmes, 1999. 1 DVD (104 min), NTSC, color. Títu-
lo original: Moloch.
PAI E FILHO. Direção: Aleksander Sokúrov. Produção:
Rússia [S.I.]: Silverscreen Vídeo, 2003. 1 DVD (81 min),
NTSC, color. Título original: Otets y Syn.
TAURUS. Direção: Aleksander Sokúrov. Produção:
Rússia [S.I.]: Livraria Cultura, 2001. 1 DVD (94 min),
NTSC, color. Título original: Telets.
SOL. Direção: Aleksander Sokúrov. Produção: Rússia
[S.I.]: Livraria Cultura, 2005. 1 DVD (110 min), NTSC,
color. Título original: Solntse.

673 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Capítulo 23
Representações Sociais da
Profissão de Relações Públicas
no Cinema: Análise sobre o Filme
Thank you for smoking

Lucas Sant’Ana Nunes1

O cinema é visto na sociedade como um meio de


comunicação capaz de gerar os mais intensos deba-
tes em ambiente acadêmico, despertando o fascínio
de espectadores, cinéfilos, críticos e analistas. É in-
discutível que a chamada sétima arte traz expressi-
vos desdobramentos culturais para a vida cotidiana,
fomentando o universo simbólico no qual se ba-
seiam as opiniões de indivíduos, comportamentos,
estereótipos e até mesmo relações sociais. O Cinema
ocupa uma posição privilegiada de agente no siste-
ma cultural. (ORTNER, 2007)

1. Mestrando em Comunicação Midiática e graduado em Rela-


ções Públicas pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (Unesp - Bauru), Brasil – E-mail: Lucasnu-
nes1991@gmail.com

674
Diversas teorias foram elaboradas com a proposta de
desvendar como se operam os processos de produção de
sentido no cinema, bem como as representações cinema-
tográficas afetam a forma como o espectador vê o mundo.
A significação ocupa um papel de destaque nas discus-
sões acadêmicas sobre cinema, do mesmo modo como o
público extrai e utiliza os quadros simbólicos de referên-
cia que são fornecidos através da imagem em movimento.
Destarte, os limites entre o encenado e o vivido na con-
cretude cotidiana tendem a se tornar mais fluidos, já que
os procedimentos cinematográficos resultam em uma ‘im-
pressão de realidade’ que deve ser assumida pelo público
(METZ, 2012). O cinema, visto como construção simbóli-
ca, passa a efetuar uma operação de caráter ideológico que
permite guiar o sistema cultural através de representações
sociais, que por sua vez fornecem as bases para estruturar
cognitivamente os comportamentos individuais e coletivos.
O cinema não representa somente o espetáculo que fas-
cina mundialmente cada vez mais apreciadores, mas uma
realização de ordem ético-moral que permite trazer às te-
las elementos dinamizadores da cultura, quanto reflexos da
própria cultura, de modo a construir o imaginário social que
permeia as relações entre os indivíduos. (MORIN, 1977)
Em vista disso, o cinema pode construir, desconstruir,
afirmar, legitimar ou até mesmo deslegitimar identida-
des através de seus processos de produção de sentido,
empreendimento que traz desdobramentos para a toda
a vida em sociedade, como será visto adiante.
Neste artigo, são discutidas a representação social e a
construção de identidades no cinema, além de seus impactos

675 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


socioculturais, traçando um panorama sobre como a profis-
são de relações públicas é representada por uma filmogra-
fia recente. Portanto, é essencial a utilização do conceito de
Representações Sociais de Moscovici para entender como se
constroem e são reproduzidas tais elaborações simbólicas,
contextualizando tais concepções sob a perspectiva de meios
de comunicação como o Cinema.
A presente pesquisa apresenta importante relevância
para a área de Relações Públicas e no estudo dos des-
dobramentos culturais através dos processos midiáticos,
uma vez que se compromete a identificar questões que
podem nortear a atuação e as percepções da sociedade e
dos próprios profissionais com relação à essa atividade.
A análise poderá contribuir tanto em âmbito científico,
descortinando a visão sobre a identidade das Relações Pú-
blicas através do cinema, como em âmbito social, permitin-
do ao relações-públicas ter um horizonte mais amplo em
relação à sua atividade e seu reconhecimento, fazendo com
que possa desempenhar uma atividade reflexiva sobre sua
profissão, elaborando estratégias identitárias e contribuin-
do para que sua atividade ganhe cada vez mais relevância
para as pessoas e organizações que compõem a sociedade.
Por conseguinte, é preciso saber como o profissional
de RP é retratado no cinema e visto no âmbito social,
bem como suas próprias atividades, já que esta é uma
profissão que vem assumindo cada vez mais importân-
cia, se afirmando no mercado e nas organizações, o que
torna ainda mais necessário o reconhecimento de tais
percepções sobre sua atividade profissional. A análise
deste estudo se compromete a estabelecer quais são as

676 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


representações sociais ligadas ao profissional de Rela-
ções Públicas em um filme recente e de grande sucesso
comercial, Thank you for smoking (2005), verificando
quais construções simbólicas são associadas à atividade
e descortinando como tais significados podem se tradu-
zir em desdobramentos para a profissão.
Traçando um panorama sobre a Teoria das Represen-
tações Sociais de Serge Moscovici, conceituando e deli-
mitando tais estudos e como a Comunicação Midiática
e o Cinema estão inseridos neste contexto, pretende-se
verificar como o imaginário social é influenciado pelos
meios de comunicação e, principalmente, como o Cine-
ma constrói e reproduz significados que trazem impactos
na forma como a sociedade explica a realidade aos su-
jeitos e grupos sociais. O intuito desta pesquisa é de for-
necer uma observação crítica sobre como o profissional
de Relações Públicas é representado, bem como os im-
pactos de tais significações para sua profissão, analisando
em quais contextos atua na narrativa, de quais práticas se
utiliza, como é sua relação com outros personagens, além
de verificar seu posicionamento social na trama.

Representações Sociais e a Comunicação Midiática


Como ponto de partida, é necessário compreender a
conceituação e a origem do termo ‘Representação Social’,
contextualizando-a. O conceito de Representação So-
cial, cunhado pelo psicólogo social romeno naturalizado

677 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


francês Serge Moscovici, se trata de uma atualização do
conceito de Émile Durkheim de Representação Coleti-
va. Moscovici, à vista disso, estudou como a psicanálise
era representada socialmente e percebida pela população
parisiense, trazendo importantes contribuições para algo
que se tornou mais tarde uma teoria das Representações
Sociais, possibilitando estender o estudo a outras áreas,
por diversos autores.
A origem etimológica da palavra representação remonta
ao termo latino ‘representare’, que significa ‘fazer presente’
ou ‘apresentar de novo’. Portanto, para fazer presente algo
ou alguém é necessário o intermédio de uma representação.
Dessa forma, as representações sociais podem ser
definidas como:

uma série de proposições que possibilita que


coisas ou pessoas sejam classificadas, que seus
caracteres sejam descritos, seus sentimentos
e ações sejam explicados e assim por diante.
(MOSCOVICI, 2007, p. 207)

Em outros termos, as Representações Sociais car-


regam em si a possibilidade de explicar a realidade aos
indivíduos, além de fazer com que as pessoas e grupos
possam se situar na sociedade, adquirindo assim um
nível identitário. As Representações Sociais possuem
um papel crucial na elaboração de mecanismos de au-
toimagem e visão social dos grupos ou sujeitos.
Os indivíduos, portanto, passam a obter quadros de re-
ferência para basear suas próprias vidas e comportamentos,

678 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


sabendo quais práticas são aceitas socialmente. A represen-
tação social é o que vai ditar aquilo que é aceitável e lícito
em um determinado contexto social. No entanto, como
face da mesma moeda, as representações sociais podem
alargar as diferenciações entre os grupos sociais, podendo
contribuir para causar estereotipias e discriminações, já
que são construções simbólicas negociadas culturalmente
entre o indivíduo, os grupos sociais e a própria sociedade
como um todo, que apresenta em seus interstícios relações
complexas de poder e de sociabilidade.
Neste sentido, Jodelet (2001, p. 27) afirma que há quatro
características fundamentais no ato da representação social:

- a representação social é sempre representação


de alguma coisa (objeto) e de alguém (sujeito);

- a representação social tem com seu objeto uma


relação de simbolização (substituindo-o) e de
interpretação (conferindo-lhe significações);

- a representação será apresentada como uma


forma de saber: de modelização do objeto dire-
tamente legível em diversos suportes linguísti-
cos, comportamentais ou materiais - ela é uma
forma de conhecimento;

- qualificar esse saber de prático se refere à expe-


riência a partir da qual ele é produzido, aos con-
textos e condições em que ele o é e, sobretudo,
ao fato de que a representação serve para agir
sobre o mundo e o outro.

679 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


A realidade social, através desta perspectiva, é vista
como um contexto no qual se situam pessoas e grupos,
formada a partir das relações existentes entre estes con-
juntos através de sua bagagem cultural, pelos códigos,
símbolos e valores ligados à estas vinculações sociais e
os processos comunicativos inseridos neste âmbito. Em
outros termos, a representação social é aquilo que dá
sentido aos eventos cotidianos e práticas sociais.
Os comportamentos na sociedade são ditados pelas
elaborações cognitivas e simbólicas. Sendo assim, existe
uma negociação constante entre o indivíduo e a socieda-
de, onde as representações sociais e os processos comu-
nicativos assumem uma importância crucial.
As representações sociais se configuram como um
importante conceito a ser utilizado pois todas as coisas
que nos tocam no mundo social são reflexos ou produ-
tos das representações sociais. Em outras palavras, para
Serge Moscovici, todas as representações sociais são ori-
ginadas a partir da realidade social.
As representações, portanto, seriam formas simbólicas
que mediam todo o sistema de classificações do ser hu-
mano, sejam elas ligadas ao âmbito científico ou ao senso
comum. Além disso, as representações sociais apresentam
um papel fundamental pois desempenham uma função
importante de contribuir para a formação de comporta-
mentos, sendo orientadas através de atos comunicativos e
processos negociados entre os indivíduos e a sociedade.

É precisamente a pluralidade objetiva da vida


social que constrói a rede intersubjetiva que

680 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


constitui a realidade de um tempo e lugar his-
tórico. É na relação triádica entre sujeito-objeto-
-sujeito que encontraremos tanto a possibilidade
da construção simbólica como os limites dessa
construção. Porque a cada sujeito que investe o
objeto com sentidos a partir do seu lugar parti-
cular no tempo e no espaço, compete reconhecer
as construções de outros sujeitos que também
ocupam posições particulares no tempo e no es-
paço. A significação, portanto, é um ato que tem
lugar (e só pode ocorrer) numa rede intersubje-
tiva, entendida como uma estrutura de relações
sociais e institucionais dentro de um processo
histórico. (JOVCHELOVITCH, 2002, p. 78).

Nota-se que as representações sociais não são impostas


pela sociedade ou por uma ideologia dominante, conside-
rando o receptor das mensagens nos processos comunica-
tivos como alguém que não possui criticidade. Ao contrá-
rio, as representações sociais são resultado de um processo
em que o indivíduo participa de maneira ativa e consciente:

Nas ruas, bares, escritórios, hospitais, laborató-


rios, etc. as pessoas analisam, comentam, for-
mulam “filosofias” espontâneas, não oficiais,
que têm um impacto decisivo em suas relações
sociais, em suas escolhas, na maneira como eles
educam seus filhos, como planejam seu futuro,
etc. Os acontecimentos, as ciências e as ideolo-
gias apenas lhes fornecem o “alimento para o
pensamento”. (MOSCOVICI, 2007, p. 45).

681 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Sob esse viés, pode-se entender que as representações
sociais são elementos construídos a partir da teia de sig-
nificações formada pela cultura, em um contexto onde
as relações sociais e os processos comunicativos entre
grupos e indivíduos são fenômenos que atuam na legiti-
mação de tais representações. Pode-se analisar, portanto,
que existe um diálogo constante entre as representações
sociais veiculadas através dos meios de comunicação de
massa e os indivíduos, uma vez que tais representações
se veem permeadas por determinados interesses e pon-
tos de vista. Neste contexto, a recepção dos indivíduos
de tais mensagens e conteúdos veiculados pela mídia
não pode ser vista de forma que o receptor seja encarado
como passivo, mas deve ser analisado como sujeito, ou
seja, como um elemento ativo no processo comunica-
cional, que forma sua opinião de acordo com tais conte-
údos mas também de acordo com suas próprias convic-
ções, visões de mundo e sua própria criticidade.
Neste sentido, os meios de comunicação de massa
possuem um papel de relevância central, uma vez que
são utilizados a favor da disseminação de certas repre-
sentações sociais que refletem a ideologia de seus rea-
lizadores. O cinema, neste ponto, assume o papel de
privilegiar certas construções simbólicas para retratar a
realidade, de forma a construir em seus interstícios pro-
cessos comunicativos que vão pautar cognitivamente as
opiniões e visões de seus espectadores sobre determina-
dos assuntos. Destarte, pode-se dizer que o cinema car-
rega em si a afirmação de uma forma de ver o mundo,
que é transmitida a seus espectadores de maneira que

682 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


estes assumem o exposto na tela como o reflexo da pró-
pria realidade.
Tal questão permite entender como o imaginário da
sociedade é construído, desconstruído e reconstruído ao
longo dos anos através da forma como o cinema influen-
cia o mundo cotidiano. A imagem em movimento exposta
nas telas é a base na qual se constroem opiniões, compor-
tamentos, visões de mundo e até mesmo sonhos. A reali-
dade social passa a estabelecer uma dinâmica de diálogo
com o cinema à medida que as representações sociais são
apresentadas e reproduzidas através de suas obras.
Partindo desses pressupostos, pode-se questionar:
quantos não são os objetivos e sonhos pessoais criados
todos os dias através da “magia” das imagens do cinema?
Os indivíduos passam a adotar trejeitos e falas de seus
personagens favoritos, maneiras de encarar as situações
de sua vida cotidiana e até mesmo escolhas pessoais como
suas preferências de estilo, moda, música e profissão. O
cinema é tema das mais variadas conversas cotidianas,
apresentando e pautando assuntos que refletem as maze-
las da própria sociedade como a vida, a morte, o amor, a
criminalidade, as drogas, dentre muitos outros temas dos
quais a encenação cinematográfica se ocupou ao longo
dos anos. Levando em conta tal aspecto, a relevância e o
impacto do cinema para a cultura e as relações sociais é
inegável, uma vez que fornece os quadros de referência
para explicar a realidade aos grupos sociais.
Faz-se necessário, através deste ponto de vista, ana-
lisar quais são os impactos do Cinema para a vida so-
cial levando em conta como as representações sociais

683 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


influenciam as construções simbólicas e cognitivas
formadas e reproduzidas através dos meios de comu-
nicação, dos processos comunicativos massivos e das
relações sociais e cotidianas.

Cinema, a Construção de Representações Sociais e a


Impressão de Realidade
O Cinema, enquanto construção simbólica huma-
na, pode ser traduzido em diversas formas e visto sob
muitas perspectivas. Pode-se analisar o Cinema como
meio de comunicação, como indústria cultural, como
mecanismo de reprodução, como técnica, como arte
e até mesmo como fábrica de sonhos e ilusões. Con-
tudo, neste artigo, adota-se a perspectiva que coloca
o Cinema como uma linguagem audiovisual capaz
de gerar uma impressão de realidade que deve ser
assumida pelo público, reproduzindo representações
sociais através de operações de caráter ideológico e
construindo elaborações cognitivas nos espectadores,
que podem influenciar na formação de sua visão de
mundo. O ponto central é como os processos de cons-
trução simbólica e produção de sentido são realizados,
haja visto os profundos impactos que o Cinema oca-
siona na vida cotidiana e social.
Edgar Morin (1977), em seus estudos sobre o Cine-
ma, elaborou uma perspectiva social e cultural de cons-
trução do imaginário coletivo, descrevendo a linguagem

684 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


cinematográfica de maneira poética e traçando um para-
lelo com a invenção da aviação, que foi contemporânea
à invenção do próprio Cinema, datando seu surgimento
no final do século XIX e início do século XX. Seu ponto
de vista sugere que, enquanto o avião deu asas ao cor-
po humano, fazendo com que o indivíduo possa cobrir
distâncias antes nunca imaginadas, o cinema deu asas à
imaginação e aos sonhos do homem, fazendo com que
a fantasia pudesse se materializar na realidade. Tal rela-
ção seria imprescindível para se entender como o homo
demens, ligado ao sonho, à fantasia e à imaginação se
materializou através do homo faber, ligado à produção
de artefatos e ferramentas, operação realizada pelo ci-
nema. A discussão traz à tona como o Cinema consegue
tornar concreto o imaginário e a cultura através de sua
linguagem, expondo nas telas as contradições que en-
contramos na própria sociedade.
As discussões teóricas sobre o Cinema, enquanto
meio de comunicação responsável por criar e reprodu-
zir universos simbólicos que refletem a realidade, são
debates muito extensos e bem desenvolvidos no cam-
po sociológico e estético. Ismail Xavier (2005) aponta
em suas obras como o cinema é capaz de reproduzir
imagens que criam uma “impressão de realidade” nos
indivíduos, gerada através de seus mecanismos de pro-
dução de sentido:

Se já é um fato tradicional a celebração do “re-


alismo” da imagem fotográfica, tal celebração
é muito mais intensa no caso do cinema, dado

685 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


o desenvolvimento temporal de sua imagem,
capaz de reproduzir, não só mais uma proprie-
dade do mundo visível, mas justamente uma
propriedade essencial à natureza – o movimen-
to. O aumento do coeficiente de fidelidade e a
multiplicação enorme do poder de ilusão es-
tabelecidas graças a esta reprodução do movi-
mento dos objetos sucitaram reações imediatas
e reflexões detidas. (XAVIER, 2005. p.18)

Dessa forma, pode-se entender o processo de pro-


dução de sentido no cinema como uma construção
simbólica através de uma sucessão de imagens que
estabelece um sintagma (METZ, 2012), o que pode
ser entendido como o “espírito manipulador” do Ci-
nema, pelo qual o espectador é induzido a assumir
uma determinada sequência lógica de acordo com
as imagens expostas na tela. O processo de monta-
gem, portanto, assume um papel central na constru-
ção simbólica do Cinema, uma vez que estabelece a
ordem dos planos e dos conjuntos de cenas de um
filme, que podem ser vistos como um encadeamento
de sintagmas. Os processos de produção de sentido,
portanto, seriam realizados através da filmagem e da
montagem, que conferem significado às cenas ex-
postas em tela.
No entanto, a linguagem cinematográfica também se
configura como uma operação de caráter ideológico pois
tem o papel de veicular e reproduzir uma visão de mun-
do, privilegiando as representações que mais se adequam
aos seus propósitos. Segundo Christian Metz (2012), “O

686 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


sentido não basta, precisa acrescentar a significação”.
Assim, o Cinema se encarrega de mostrar explícita ou
implicitamente uma determinada fundamentação ideo-
lógica de maneira a criar sentido a partir destas opera-
ções e fornecer quadros de referência para que os indi-
víduos possam estabelecer suas elaborações cognitivas,
traduzindo-se em opiniões, comportamentos e modos
de explicar a realidade.
O Cinema, portanto, pode ser visto como um meio
de expressão único, pois opera a partir da representação
da realidade de uma maneira nunca antes concebida por
outras formas de arte e comunicação:

Mas o que distingue o cinema de todos os ou-


tros meios de expressão culturais é o poder
excepcional que vem do fato de sua linguagem
funcionar a partir da reprodução fotográfica
da realidade. Com ele, de fato, são os seres e
as próprias coisas que aparecem e falam, diri-
gem-se aos sentidos e à imaginação: à primei-
ra vista, parece que toda representação (signi-
ficante) coincide de maneira exata e unívoca
com a informação conceitual que veicula (sig-
nificado). (MARTIN, 2013, p.18)

No entanto, é preciso recordar que o Cinema não


se caracteriza somente como uma reprodução foto-
gráfica da realidade, mas vai além disso, pois pode ser
entendido como uma sucessão de fotografias e ima-
gens, que conferem o movimento ao exposto em tela.
A imagem em movimento, a partir desta perspectiva, é

687 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


vista com mais naturalidade e impressão de realidade
do que a própria fotografia, pois o movimento dá a
ilusão de que os acontecimentos estão ocorrendo na-
quele momento, o que cria um laço de identificação e
participação afetiva com o público que assiste a narra-
tiva cinematográfica.
O fenômeno da impressão de realidade no Cine-
ma é sempre uma ocorrência de duas faces: pode-se
procurar a explicação no aspecto do objeto percebido
ou no aspecto da percepção. A linguagem cinemato-
gráfica, através desta perspectiva, pode ser entendida
como um meio de não só criar a impressão de reali-
dade no espectador, mas de fazer com que essa im-
pressão seja carregada de um mecanismo que garante
a sua participação, fazendo com que o exposto em
tela se traduza em catarse: “O caráter quase mágico
da imagem cinematográfica aparece então com toda
a clareza: a câmera cria algo mais que uma simples
duplicação da realidade.” (MARTIN, 2013, p. 15)
Mais do que em qualquer outra arte, como a lite-
ratura, o teatro, a pintura, a escultura e até mesmo a
fotografia, o cinema proporciona ao indivíduo uma
experiência que se assemelha diretamente ao real. Os
processos de participação do espectador assumem
um caráter perceptivo e afetivo à medida que a narra-
tiva se desenvolve.
É importante ressaltar que, no processo de disse-
minação ou reiteração das mensagens ideológicas, o
cinema (re)descobriu a existência de um território
do vazio entre o espectador e o mundo, cabendo aos

688 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


filmes instigar o público e vivenciar a trama como se
estivesse inserido nela, decifrando os enigmas mun-
diais para quem pouco sabe sobre eles. Os limites
entre o encenado e o vivido na concretude cotidia-
na tendem a tornar-se mais fluidos devido aos pro-
cedimentos de espetacularização e mitificação dos
personagens, dos valores de ordem ético-moral e dos
cenários expostos na tela.
As estratégias de encenação cinematográfica di-
tam a cadência de um discurso politizado, criando
com um vigor nunca antes experimentado pela cul-
tura a construção do bem e do mal, dos heróis e dos
vilões, dos vencidos e dos vencedores e também os
perfis profissionais, seus atributos e sua inserção na
sociedade abrangente.
De maneira geral, o Cinema atua em uma lógica
que o permite reproduzir e privelegiar certas repre-
sentações sociais que reiteram seu posicionamenteo
ideológico enquanto indústria e meio de comuni-
cação, fazendo com que a realidade seja explicada
através de um ponto de vista que particulariza de-
terminadas representações sociais, retratando ob-
jetos, sujeitos e grupos sociais de acordo com seus
interesses e visões de mundo. Sob esta perspectiva,
nenhuma imagem, plano ou cena pode ser entendi-
da como algo gratuito ou desprovido de propósito
na narrativa cinematográfica, uma vez que carrega
em si uma série de proposições ideológicas que apre-
sentam determinados interesses e representações so-
ciais que atuam em um contexto onde o espectador é

689 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


levado a creditá-los como reais e, mais do que isso, a
se identificar com tais construções simbólicas.
O processo de participação através da identifica-
ção com os personagens e cenários expostos na tela
se traduz em uma lógica afetiva, onde o espectador
passa a se sentir parte da própria narrativa, experi-
mentando sensações e emoções que vivencia em sua
própria vida cotidiana, mas que são amplificadas pela
experiência do cinema. Neste sentido, as Representa-
ções Sociais constituídas através da linguagem cine-
matográfica se mostram em um contexto polifônico,
ou seja, expõem diversas representações para o mes-
mo sujeito ou objeto, lhes proporcionando subjetivi-
dade e complexidade enquanto personagens.

Análise das Representações Sociais Associadas ao Pro-


fissional de Relações Públicas, Resultados e Discussões
Uma vez conceituadas as representações sociais,
pode-se adentrar à análise de conteúdo da película
Thank you for smoking (Obrigado por fumar, títu-
lo traduzido para a distribuição no Brasil), onde o
recorte privilegia os diálogos presentes nos filmes,
verificando quais construções simbólicas são recor-
rentes na representação do profissional de RP, além
de realizar uma análise fílmica que pretende descor-
tinar como os processos de produção de sentido se
constroem em tais filmes.

690 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Em Thank you for smoking, Nick Naylor, persona-
gem interpretado por Aaron Eckhart, é o principal
porta-voz de grandes empresas de cigarros. Desafia-
do pelos vigilantes da saúde e também por um sena-
dor, Ortolan Finistirre, personagem do ator William
H. Macy, que deseja colocar rótulos de veneno nos
maços de cigarros, Nick passa a manipular informa-
ções de forma a diminuir os riscos do cigarro em
programas de TV, além de fazer com que o fumo
seja promovido em filmes hollywoodianos através
de seus contatos com a indústria cinematográfica. A
película retrata o universo do lobbying na indústria
dos cigarros, bebidas e armas nos Estados Unidos
da América, mostrando como os profissionais de co-
municação realizam estratégias para conquistar uma
imagem positiva de suas empresas.
O próprio título da película, Obrigado por fumar,
na tradução para a distribuição no Brasil, já denota
o tom cômico e satírico que o filme transmite. Tal
característica demonstra a intenção da trama em
criar uma paródia do ambiente organizacional for-
mado pela indústria de tabaco nos Estados Unidos,
revelando o cotidiano dos profissionais que se pre-
ocupam em manter um público consumidor fiel às
suas marcas e uma imagem institucional positiva da
organização frente à sociedade.
A seguir, é possível analisar a Tabela 1 - Frequên-
cia de ocorrência de representações sociais ligadas
ao profissional de Relações Públicas no filme Thank
you for smoking (2005) e a Figura 1 - Frequência de

691 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


ocorrência de representações sociais ligadas ao pro-
fissional de Relações Públicas no filme Thank you
for smoking (2005), que ilustram os termos que apa-
recem em maior número na película:

Tabela 1 - Frequência de ocorrência de representa-


ções sociais ligadas ao profissional de Relações Pú-
blicas no filme Thank you for smoking (2005)

Frequência de ocorrências

Diabo, assassino, explorador, matador de


6
crianças, parasita

Enganador, Manipulador 5

Lobista 4

Porta-voz 3

Causador de dor e sofrimento 2


Charmoso 1

Leal 1

Mediador 1

“Advogado da marca” 1

692 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Figura 1 - Frequência de ocorrência de representa-
ções sociais ligadas ao profissional de Relações Pú-
blicas no filme Thank you for smoking (2005)

A princípio, as construções simbólicas mais recorrentes


que caracterizam as representações sociais ligadas ao pro-
fissional de RP se configuram em um viés nada otimista
sobre a atividade. Os termos “Diabo”, “assassino”, “explora-
dor”, “matador de crianças” e “parasita” revelam de manei-
ra ácida e cômica a visão que a película pretende transmi-
tir através de sua narrativa sobre o universo dos lobistas.
Representações como estas traduzem a maneira como os

693 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


profissionais de Relações Públicas podem ser analisados
no enredo, fazendo com que a profissão seja caracteriza-
da de maneira pitoresca mas contundente em sua crítica,
onde o relações públicas é visto como um personagem
desprovido de princípios éticos e escrúpulos.
Estas representações sociais mostram, de forma mor-
daz, como o profissional de Relações Públicas é visto no
contexto da narrativa, uma vez que trazem uma forte
crítica à maneira como a indústria e o sistema capitalista
atual se valem da profissão para criar uma imagem e re-
putação favoráveis às empresas e organizações, se utili-
zando de um conjunto de métodos reprováveis do ponto
de vista ético. O intuito de tais organizações fica claro
no contexto diegético, já que seus objetivos se situam no
âmbito de legitimar um estilo de vida ligado ao consu-
mo, em que o indivíduo é levado a deixar de refletir so-
bre suas próprias práticas cotidianas, acreditando que o
fumo é inofensivo à saúde e um hábito glamouroso. Tal
intuito revela uma regra imprescindível para o funcio-
namento do capitalismo que é o lucro, uma vez que as
organizações se valem de tais estratégias comunicacio-
nais visando justamente legitimar um modo de vida, ga-
rantir que seus clientes continuem fiéis à marca e que o
hábito de fumar permaneça atraente, conquistando cada
vez mais consumidores, a começar pelos jovens, público
essencial para a perpetuação do consumo de cigarros.
Neste sentido, o termo “causador de dor e sofrimen-
to” cristaliza uma crítica interessante à forma como a
indústria de cigarros opera, já que mostra que a respon-
sabilidade sobre os problemas de saúde causados pelo

694 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


fumo não decorre somente das escolhas individuais de
consumo, mas sim de todo um sistema que legitima o
ato de fumar como uma prática saudável e glamourosa.
Esta assertiva fica ainda mais explícita quando Nick sai
em sua missão para fazer calar o personagem de Marl-
boro Man, o cowboy e garoto-propaganda da marca de
cigarros, que após anos figurando como o símbolo má-
ximo do estilo de vida associado ao fumo se vê em um
estado terminal devido ao câncer de pulmão.
Já os termos “lobista”, “porta-voz” e “mediador”, mos-
tram de maneira neutra como o personagem de Nick
pode ser identificado, pois deixam claro somente a fun-
ção desempenhada por ele no contexto da organização
onde trabalha. Tais construções explicitam que o pro-
fissional de Relações Públicas pode ser visto como um
mediador entre os objetivos da empresa ou organização
e os grupos de interesse a quem devem prestar contas,
como seus clientes, fornecedores, o governo, a mídia,
os órgãos de regulação de saúde, organizações não go-
vernamentais e a sociedade, de uma maneira geral. O
relações públicas, portanto, pode ser visto como o “ad-
vogado da marca” – termo utilizado para caracterizá-lo
no contexto narrativo de Thank you for smoking – pois é
de sua responsabilidade defender os interesses, objetivos
e finalidades da organização à qual presta seus serviços.
Por ser o principal porta-voz das indústrias de cigarros
e do centro de pesquisas médicas sobre o fumo e seus da-
nos à saúde, o personagem de Nick Naylor é visto como
um homem cínico que usa de seu forte poder de argumen-
tação para convencer as pessoas de que não existem estu-

695 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


dos conclusivos que associem o consumo de tabaco aos
danos à saúde, como o câncer. Para Nick, o ato de fumar é
fruto da liberdade de escolha das pessoas e as empresas de
cigarros não podem ser responsabilizadas por isso.
O personagem principal da trama é visto como “en-
ganador” e “manipulador”, um lobista dotado de um
enorme talento para a persuasão e que não possui escrú-
pulos em defender a indústria de cigarros nos EUA. Nick
Naylor justifica essa característica de sua personalidade
como uma “flexibilidade moral” quando é questionado
por seu filho, que tem o pai como exemplo.
O elemento persuasivo em Nick parece ser seu prin-
cipal trunfo para projetar uma imagem positiva da in-
dústria do tabaco frente à sociedade, onde se vale de
uma argumentação poderosa no sentido de minimizar
os efeitos nocivos do consumo de cigarros, bem como
associar o fumo à um estilo de vida glamuroso e sau-
dável. Nick, em uma de suas frases emblemáticas no
decorrer da trama diz: “A beleza de um argumento é
que, se você argumentar corretamente, você nunca está
errado”. (Thank you for smoking 2005)
Como cena em evidência, pode-se destacar um dos pla-
nos em que ocorre a tradicional reunião dos “Mercadores
da Morte”, como é intitulado pelo próprio grupo, formado
por Nick, Polly e Bobby, os representantes das indústrias
de cigarros, bebidas alcoólicas e armas nos EUA, respecti-
vamente. Em tais reuniões, que acontecem semanalmen-
te em um restaurante, os lobistas discutem estratégias de
persuasão perante o público e competem de maneira cíni-
ca pelas taxas mais altas de mortalidade, vangloriando-se

696 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


quando as alcançam, tudo em meio a um jantar bastante
amistoso e cordial. Tais cenas mostram de maneira desca-
rada e jocosa o cotidiano de tais profissionais, sugerindo
o que eles devem fazer em suas horas vagas: pensar em
novas formas de manipular, ludibriar e contar as mortes
pelas quais são responsáveis, de maneira frívola e banal.
A forma como o filme retrata a mídia, de uma ma-
neira geral, também se destaca por sua crueza e pessi-
mismo. Os grandes meios de comunicação, que acom-
panham a guerra travada entre as indústrias de cigarros,
representadas pelo personagem principal e pelo senador
Finistirre, realizam uma cobertura midiática sensacio-
nalista, que explora diversos casos de pessoas debilita-
das fisicamente pelo fumo de maneira cínica. Os jornais
e emissoras de televisão que noticiam os acontecimentos
no contexto narrativo parecem estar mais interessados
em conseguir uma maior audiência através do sofrimen-
to alheio do que propriamente fazer com que seu pú-
blico adquira uma visão esclarecida sobre os malefícios
causados pelo consumo e vício do cigarro.
Uma visão que corrobora com tais questões é a pró-
pria forma como Heather, a personagem de uma jorna-
lista que deseja realizar uma entrevista com Nick, é re-
tratada. Inicialmente, Heather se aproxima de Nick com
o intuito de obter informações e a opinião do relações
públicas sobre toda a polêmica criada com o caso da tra-
ma judicial envolvendo os riscos e danos causados pelo
consumo de cigarros na narrativa.
Depois de algum tempo, Heather passa a se envolver
amorosamente com Nick, que por sua vez lhe concede

697 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


informações privilegiadas sobre a indústria de cigarros,
confiando em seu sigilo e tratando as questões de ma-
neira mais sincera e crua, comportamento que o leva a
lhe proporcionar detalhes que ficariam fora do alcance
da mídia e, consequentemente da opinião pública.
Após conseguir todas estas informações, que certa-
mente não conseguiria através dos meios tradicionais
do jornalismo investigativo sério e ético, Heather veicu-
la uma grande reportagem sobre a indústria de cigarros
e sobre como Nick busca somente a aceitação pública
das organizações que defende, não dando nenhuma im-
portância para os malefícios de que seus consumidores
estão expostos, o que termina por retratá-lo como um
profissional sem escrúpulos.
Em outras palavras, Heather - a personagem que re-
presenta a figura do jornalista na trama – desempenha
um papel tão cínico e imoral quanto Nick, já que se va-
leu das informações conseguidas através da intimidade
criada a partir de um relacionamento amoroso, que no
final pode ser visto apenas como um meio para que ela
atingisse seus objetivos. Tal estratagema de Heather aca-
ba por resultar na demissão de Nick das organizações
que defende, fazendo com que o personagem passe a se
voltar para trabalhos prestados à outras organizações.
O jornalista, portanto, também é representada de
maneira estereotipada e negativa, mostrando um pro-
fissional que justifica seus fins pelos meios, se valendo
de qualquer tipo de empreitada, seja ela antiética, imo-
ral ou não, para atingir uma determinada finalidade. O
que se pode entender através desta perspectiva é que a

698 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


maneira como a Comunicação Midiática, de uma forma
geral, é vista na sociedade é negativa, pois os termos e
construções simbólicas associados ao campo parecem
sempre reiterar a faceta da manipulação, da ausência de
ética e de escrúpulos e até mesmo das práticas desones-
tas utilizadas por profissionais da área. Não obstante, é
óbvio que essa visão se compõe de um ponto de vista re-
ducionista que não se propõe a analisar a complexidade
do campo comunicacional, mas fornece pistas de como
a sociedade vê os meios de comunicação e os profissio-
nais que trabalham neste contexto.

Considerações Finais
O Cinema pode ser visto não só como meio de co-
municação ou campo estético e artístico, mas deve ser
analisado também sob o viés sociológico e interpreta-
tivo, uma vez que se propõe a fornecer os quadros de
referência que servem como base de construção para
o universo simbólico dos indivíduos e grupos sociais.
As narrativas cinematográficas se constituem de pro-
cessos de produção de sentido que reproduzem e pri-
vilegiam certas representações sociais de acordo com
seus interesses e posicionamentos ideológicos, o que
se desenvolve na visão de mundo mostrada nas telas.
Estes desdobramentos permitem que a realidade seja
apresentada e explicada aos indivíduos, de forma que
suas construções simbólicas sejam pautadas através

699 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


de processos conscientes e ativos de diálogo cognitivo
com os indivíduos.
Neste contexto, o que se pode observar, na narrati-
va de Thank you for smoking, é um certo predomínio de
estereótipos ligados à atividade de Relações Públicas. O
profissional é retratado como manipulador, antiético e
enganador. A atividade é vista como um instrumento de
promoção de consumo, que por vezes pode trazer conse-
quências sérias e prejudiciais para a esfera individual, já
que no contexto da película o protagonista é porta-voz
da indústria de cigarros. A falta de escrúpulos, o cinismo
e a defesa de interesses escusos é um tema muito associa-
do ao profissional de Relações Públicas, o que privilegia
uma visão estreita e reducionista sobre a atividade.
No entanto, o filme traz uma polifonia de represen-
tações sociais, uma vez que também retrata o profissio-
nal como inteligente, articulado e mediador entre os in-
teresses dos públicos e das organizações, o que de fato
condiz com o cotidiano da profissão e se constitui como
uma competência estimulada tanto em cenário profis-
sional como acadêmico. Neste ponto, o profissional é
visto como um gestor da comunicação que se vale de um
forte poder de argumentação e persuasão para construir
uma imagem positiva da organização na sociedade, bem
como arquitetar uma opinião pública favorável às indús-
trias de tabaco nos EUA. O poder de articulação do pro-
fissional de Relações Públicas passa a ganhar destaque
neste contexto, onde o lobista desempenha funções que
produzem resultados expressivos para a organização
através de suas competências comunicacionais.

700 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


O fato da produção retratar o profissional de Re-
lações Públicas como “charmoso” parece indicar que
as características corporais e estéticas são fatores que
possuem grande relevância para a atividade, uma vez
que o profissional necessita portar os atributos que
o diferenciam e dialogam com a credibilidade pela
qual o RP deve construir através de suas estratégias
de comunicação. Destarte, o RP traz os caracteres fí-
sicos essenciais para que o profissional seja visto de
maneira positiva, já que sua responsabilidade é ser o
porta-voz da organização, representando seus inte-
resses no cenário político e social e portanto, cons-
truindo e mantendo a personificação dos valores da
corporação pela qual atua.
Tal filme, portanto, traz em seu interior alguns
estereótipos que privilegiam certas construções sim-
bólicas, podendo produzir desdobramentos para a
forma como a sociedade e os próprios profissionais
de Relações Públicas veem a profissão. O cinema,
visto como processo de construção simbólica, pode
dar preferência a certas visões sobre grupos sociais
e indivíduos, o que projeta em evidência uma faceta
da profissão, em detrimento das muitas que existem
ao se analisar a realidade da atividade, fato que tor-
na necessária a elaboração de estudos sistemáticos e
pormenorizados sobre o tema, que por sua vez se re-
vela como complexo e aberto à diversos debates, tan-
to no âmbito social, como acadêmico e profissional.
Surge a necessidade da realização de diversas pes-
quisas na área com o intuito de avaliar como essas

701 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


representações sociais sobre o relações públicas in-
fluenciam a maneira como a profissão é vista na so-
ciedade, bem como seu papel nas organizações e até
mesmo na escolha da profissão por jovens que to-
mam o cinema como seus quadros de referência. De
que maneira os jovens profissionais se veem influen-
ciados por tais representações? Como os profissio-
nais já estabelecidos no mercado sentem o impacto
de tais construções simbólicas para sua vida cotidia-
na e profissional? Tais questões permanecem ainda
em aberto e se traduzem em um desafio para futuros
estudos na área, que devem avaliar como a comu-
nicação midiática e mais especificamente o cinema
trazem questões que permeiam e influenciam a vida
social e profissional.
Estes discursos, portanto, transpassam o senso co-
mum e influenciam até mesmo o discurso acadêmico,
uma vez que a identidade profissional de Relações Pú-
blicas é constantemente pautada através das represen-
tações sociais produzidas e reproduzidas através dos
meios de comunicação e das interações sociais entre os
indivíduos. A identidade, vista como a teia de significa-
ções que os indivíduos e a sociedade tecem a respeito de
um sujeito, é influenciada pelos discursos veiculados na
mídia, pelos processos comunicativos massivos, pela re-
cepção das mensagens e pelas relações sociais. As repre-
sentações sociais discutidas e reproduzidas, portanto,
possuem um papel central na elaboração e emergência
destes discursos e de sua legitimação na sociedade.

702 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


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dos Unidos da América: 20th Century Fox. DVD.

703 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Capítulo 24
O desafio da publicidade na
pós-modernidade

Natália Azevedo Coquemala1

Introdução
O momento atual do mercado publicitário en-
contra-se em constante transformação. Satisfazer o
consumidor apenas com sacadas criativas na publi-
cidade tem se tornado um papel cada vez mais árduo
para os profissionais da área. Desde que o consumi-
dor conquistou o poder de questionar as mensagens
das marcas e interagir com elas, o ambiente e o mo-
delo de comunicação têm mudado. O que antes era

1. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação


da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Univer-
sidade Estadual Paulista (FAAC/Unesp), Campus de Bauru/SP,
sob orientação da Profª Drª. Ana Sílvia Lopes Davi Médola. E-
-mail: naty_coquemala@hotmail.com.

704
um monopólio, hoje se torna cada vez mais um diá-
logo direto entre consumidor e marca.
De acordo com Lemos (2015, p. 16), o propósito da
marca impacta o consumo, e hoje os aspectos funcionais
e aspiracionais já não bastam para nutrir a comunicação.
Ainda segundo o autor, “a era do engajamento impõe
uma nova dinâmica. E o nome do jogo agora é diálogo”.
A alteração de formatos e movimentos faz com que
os profissionais de comunicação necessitem adaptar-se
às mudanças culturais na sociedade. Tais modificações
têm acontecido com maior intensidade após o boom da
pós-modernidade, que fabrica uma transformação da
realidade em signos e intensifica o real, criando assim
necessidades de consumo antes não existentes.
Segundo Ribeiro (2015, p. 34), “as intensas transfor-
mações nos hábitos de consumo de conteúdo provocam
revisões constantes nos diversos sistemas de verificação
de audiência e deixam clientes e agências ansiosos sobre
qual o melhor método”.
As empresas e agências tendem a ter que adaptar-se rapi-
damente em suas estratégias para progredir e entrar no rit-
mo dos novos tempos. Considerando a dinâmica do ecos-
sistema da comunicação, tem-se a visão de que há tempos
não é mais possível depender de um único tipo de mídia. O
atual consumidor é multiplataforma e é importante trans-
mitir a mensagem em todos os canais que ele se encontra.

É preciso entender que tudo passa a levar o pre-


fixo “multi”: multiplataforma, multidisciplinar,
multifacetado. Nada é apenas uma única coisa.

705 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


O público não é mais visto somente como te-
lespectador, ou leitor, ou ouvinte, por exemplo.
Ele é consumidor de mídia, já que é impactado
por ações publicitárias e de marketing e até pela
opinião de outros consumidores (BRITO; LEN-
CASTRE, 2014).

Esse novo estilo de consumidor exige um modelo


atualizado de construção da marca, de modo que esta
continue cumprindo seu papel social no cenário con-
temporâneo. Tal convergência está associada à maneira
como esse “novo” consumidor recebe esse emaranhado
de informações que se dá em múltiplos canais de comu-
nicação e a partir da interatividade de ambas as partes.
Assim sendo, à luz dos estudos de Andrea Semprini
sobre a marca contemporânea e a necessidade de enca-
rá-la nesse novo contexto social pós-moderno, tal artigo
pretende refletir o ecossistema que rege a publicidade
atualmente. A intenção é apontar o panorama a respeito
da estrutura que envolve ações que são globalizadas.
A partir de tais estudos, se faz necessário averiguar
a atuação do mercado nessa nova forma do fazer pu-
blicitário, da imposição de tendências de consumo. A
partir da perspectiva de Semprini, que traz a questão da
construção da marca, traça-se o diálogo com a cultura
da convergência proposta por Jenkins, que mostra que
nessa cultura é necessária uma participação de forma
engajada. Também serão utilizados os estudos da semi-
ótica discursiva propostos por Greimas para entender a
construção do sentido na peça publicitária.

706 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


A visão pós-moderna da publicidade
Atualmente, após diversas mudanças no modelo de
negócios dentro também da publicidade, a compra pela
compra não mais satisfaz o consumidor. De acordo com
Semprini (2010, p. 11), “o discurso manipulador das marcas
aposta nos procedimentos por sedução com o propósito de
manter o consumidor no estado de sujeito desejante”.
O sujeito contemporâneo é convidado a fazer parte
da “vida” da marca de forma que são criados vínculos
diretos com a realidade apresentada. Shapiro (2015, p. 6)
afirma que o momento é de criação de experiências in-
tuitivas e de fazer coisas que possam apaixonar as pesso-
as, sejam experiências, serviços ou ações. Esse processo
se caracteriza pela ascensão do período pós-moderno.
De acordo com Santos (1987, p.7), “pós-modernismo
é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências,
nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950, quan-
do, por convenção, se encerra o modernismo (1900-
1950)”. Tal movimento invadiu o cotidiano das pessoas
com tecnologia eletrônica de massa e individual, com
informações, diversões e serviços. A essência da pós-
-modernidade se dá pela preferência da imagem em re-
lação ao objeto, a cópia ao original, o simulacro ao real.

Simular por imagens como na TV significa


apagar a diferença entre real e imaginário, o
que parece e o que é. Fica apenas o simulacro
passando por real. Mas o simulacro embeleza,
intensifica o real. Ele fabrica um hiper-real, es-

707 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


petacular, um real mais real e mais interessante
que a própria realidade (SANTOS, 1987, p.7).

Passa-se então a se desejar o objeto de acordo com o


código do seu simulacro. O bolo feito em casa deve ficar
igual ao da embalagem que o protege. Assim, acontece a
desreferencialização do real, ou seja, a realidade se degra-
da, por exemplo, na compra de um produto não pelas suas
características e qualidades, mas pelo que ele traz de estilo
e referência em seu segmento que compõe uma imagem.
Outra característica que se dá nesse momento da his-
tória é a dessubstancialização do sujeito (o indivíduo)
que perde a substância interior e assim sente-se vazio e
se preenchem com a moda, a aparência, por exemplo.

O choque entre a racionalidade produtiva e


os valores morais e sociais já se esboçava no
mundo moderno, o industrial. Na atualidade
pós-moderna, ele ficou agudo, bandeiríssimo,
porque a tecnociência invade o cotidiano com
mil artefatos e serviços, mas não oferece ne-
nhum valor moral além do hedonismo consu-
mista (SANTOS, 1987, p.7).

Nessa concepção, o indivíduo pós-moderno con-


some como um jogo personalizado bens e servi-
ços. Semprini, em seu livro “A Marca Pós Moderna”
(2010, p. 67), utiliza um esquema de Fabris (2003)
para ilustrar as mutações do consumo “moderno”
para o consumo “pós-moderno”.

708 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Consumo moderno consumo pós-moderno
Signo de status Signo de estilo
Necessidade Desejo
Futuro Presente
Funcionalidade Estética
Fidelidade Nomadismo
A Marca Uma série de marcas
Realidade Atmosfera
Funcional Lúdico
Estabilidade Mutação
Bulimia Seletividade
Interação Redes
Seriedade Ironia
Essência Aparência
Unidade Pluralidade
Ou/ou E/e
Visão Tato
Certeza Dúvida
Clareza Ambiguidade
Individualidade Estar junto

Tabela 1- Consumo moderno e consumo pós-moderno. Fonte:


FABRIS, 2003 apud SEMPRINI, 2010, p. 67.

Esta tabela mostra que o universo do consumo vem


evoluindo em direção ao pós-moderno no contexto so-
cial geral. As marcas não poderiam deixar de ser afeta-
das por estas transformações.

709 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


O problema que importa não é o problema da
marca, mas o problema que os seus consumido-
res enfrentam em suas vidas. Uma marca relevan-
te não é aquela que apenas fala dela mesma, mas
sim aquela que aponta soluções para problemas
que incomodam o dia a dia dos seus consumido-
res. A propaganda precisa evoluir no sentido de
colocar as pessoas no centro do seu desenvolvi-
mento. A começar pelos departamentos de ma-
rketing das empresas (MARTINEZ, 2015, p. 8).

Há uma pulverização de muitas marcas, são muitos


produtos que cumprem o mesmo papel. A quantidade
de shampoos, por exemplo, disponível nas prateleiras
dos supermercados que servem para lavar os cabelos é
enorme e dos mais variados segmentos, cabelo seco, ole-
oso, misto etc. O fator que faz com que o consumidor
escolha uma determinada marca e não a outra é o que
interessa para os profissionais do mercado hoje.
De acordo com Semprini (2010, p. 91), “o valor
de uma marca é fixado pela “taxa de desejo” ou pela
“força de sonho” que ela sabe introduzir em seu pú-
blico”. A fidelização que faz com que o indivíduo uti-
lize o mesmo produto em meio a grande diversidade
que lhe é apresentada e ainda assim opte sempre pelo
mesmo shampoo.
Essa questão da construção e do posicionamento da
marca no mercado dialoga com a cultura da convergên-
cia de Henry Jenkins. O autor traz a ideia de que nessa
cultura contemporânea é enraizada por uma participa-
ção que se da de forma engajada.

710 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


“Os produtores de mídias só encontrarão a solu-
ção de seus problemas atuais readequando o re-
lacionamento com seus consumidores. O públi-
co, que ganhou poder com as novas tecnologias
e vem ocupando um espaço na intersecção entre
velhos e os novos meios de comunicação, está
exigindo o direito de participar intimamente da
cultura” (JENKINS, 2009, p.53).

Nesse sentido, é preciso entrar em uma reflexão de que


criar a campanha para o rádio, para a televisão e assim as
demais peças é um elemento da criação publicitária que
ficou em um determinado momento da história e que
atualmente não se basta mais. Hoje, as marcas têm difi-
culdade de entrar e se posicionar no mercado quando es-
tão pensando apenas nessas ferramentas de publicização.
De acordo com Médola (2006), sabe-se que o pro-
cesso de convergência midiática ou a migração digital
dos meios configura uma fase de transição. É preciso en-
tender o que está acontecendo, o que está mudando. Do
mesmo jeito que alterou-se o mercado e o modo como
se consome livro, disco, fotografia, a televisão está mu-
dando também e com ela seus conteúdos, seus modelos
de negócios para as novas mídias e é preciso se repensar.
Assim sendo, Semprini (2010, p. 19) vem dizer que “o
que entrou em crise não é tanto a dimensão comercial das
marcas, que continuam a ser vendidas, mas a sua legitimi-
dade, a sua credibilidade ao se propor como uma parceira
de confiança na vida cotidiana dos indivíduos”. Ou seja, a
participação engajada e mútua é que está em jogo.

711 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


As polêmicas envolvendo as marcas Skol e Risqué
Atualmente as marcas aspiram e investem esforços
para que se façam apreciadas e desejadas pelo consumidor
e manter seu lugar na estima pública. Tal laço, muitas ve-
zes afetivo, com o consumidor implica algumas reflexões.

Talvez o objetivo original da comunicação pu-


blicitária – a criação de mensagens de impacto
para atrair visibilidade e encantamento – pre-
cise ser equilibrado, neste novo cenário, com a
perspectiva dos públicos e da gestão de reputa-
ção. O que implica estratégias e mensagens não
apenas criativas, mas alinhadas ao propósito
da marca; capazes de gerar sintonia com sen-
timentos e valores tanto de seus consumidores
quanto das comunidades com interesse em seu
segmento de atuação (CRUZ, 2015, p. 10).

Com isso, a partir dessa ascensão dos indivíduos na


participação direta da “vida” da marca, parece não fazer
mais sentido, afinal, focar apenas no consumidore. Este
pode ser um formador de opinião potencial, com capa-
cidade de afetar a reputação de uma marca.
Duas campanhas nacionais de empresas renomadas
no setor de cosméticos e alimentício se tornaram alvo
de discussões nas redes e tiveram seus nomes envolvidos
em polêmicas. São elas: “Viva Redondo”, da Skol e “Ho-
mens que amamos”, da Risqué.
A Skol, uma das maiores marcas de cerveja no mer-
cado  brasileiro e mundial, lançou uma campanha de

712 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


carnaval que trazia frases como: ‘Topo antes de saber a
pergunta’ e ‘esqueci o não em casa’ estampadas em peças
de mídia exterior.
A campanha foi julgada por internautas nas redes so-
ciais como irresponsável. Foi alegado que as peças pode-
riam incentivar negativamente, principalmente durante
o carnaval. Mulheres fizeram protesto em frente a uma
das peças da campanha (Figura 1), exposta em São Pau-
lo. Elas acrescentaram à frase “Esqueci o não em casa”,
uma outra, que diz: “E trouxe o nunca.”

Figura 1: Protesto de mulheres frente à peças da campanha de


carnaval “Viva Redondo”

Diante da situação, a marca Skol se comprometeu a


modificar a campanha e deu o seguinte posicionamento:

As peças em questão fazem parte da nossa


campanha ‘Viva RedONdo’, que tem como
mote aceitar os convites da vida e aproveitar

713 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


os bons momentos. No entanto, fomos aler-
tados nas redes sociais que parte de nossa
comunicação poderia resultar em um enten-
dimento dúbio. E, por respeito à diversidade
de opiniões, substituiremos as frases atuais
por mensagens mais claras e positivas, que
transmitam o mesmo conceito. Repudiamos
todo e qualquer ato de violência seja física
ou emocional e reiteramos o nosso compro-
misso com o consumo responsável. Agrade-
cemos a todos os comentários.2

Outra campanha que também trouxe uma reper-


cussão negativa para a sua marca foi a da coleção de
esmaltes, “Homens que amamos”, da Risqué (Figura
2). A marca é líder no segmento de esmaltes no país
e tem uma história de mais de meio século no merca-
do de produtos de beleza. “André fez o jantar”, “João
disse eu te amo”, “Zeca chamou para sair”, “Fê man-
dou mensagem”, “Guto fez o pedido” e “Leo mandou
flores”, são os nomes dos esmaltes da coleção.
De acordo com o site da marca 3, a coleção foi “ins-
pirada nos homens que fazem a diferença na vida
das consumidoras, um tributo aos  pequenos gestos
diários dos homens”.

2. Disponível em: http://g1.globo.com/economia/midia-e-marke-


ting/noticia/2015/02/acusada-de-apologia-ao-estupro-skol-
-ira-trocar-frases-de-campanha.html. Acessado em: 8/6/2015.
3. https://www.risque.com.br/index.php

714 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Figura 2: Anúncio da coleção “Homens que amamos” da Risqué

A campanha foi julgada machista e sexista pelos con-


sumidores. De modo que fazer o jantar, dizer eu te amo,
mandar flores, entre outras ações propostas pelos esmal-
tes, não deveriam ser consideradas como uma gentileza,
mas sim uma obrigação, ou pelo menos algo comum.
Nos dois casos e nos demais que vemos frequente-
mente tomando proporções negativas na mídia, vale no-
tar o alcance da viralização negativa, que muitas vezes,
acaba se tornando maior do que o da mensagem original.  

A comunicação que constitui a marca deve, por-


tanto, ser entendida não como uma modalidade
de funcionamento ou como técnica de difusão,
mas como motor semiótico, lógica de seleção, de
organização e de concretização de um projeto de
sentido que é proposto e trocado com seus pú-
blicos (SEMPRINI, 2010, p. 77).

715 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Neste contexto, cabe estabelecer uma breve leitura
semiótica para ver se o que está se pensado enquanto
estratégia de construção de marca no ambiente se con-
figura com o discurso, atinge o público e busca o foco.
O nível discursivo, segundo Barros (2011, p. 53), “é o
patamar mais superficial do percurso, o mais próximo
da manifestação textual”. Neste nível são construídos os
percursos figurativos e temáticos.
Em relação às duas campanhas, da Skol e da Risqué,
foram reunidas figuras que fizeram com que as mulheres
se sentissem ofendidas. O tom, as palavras utilizadas, a
ironia e o machismo foram alvos das duas campanhas
de tal modo que a marca Skol até escolheu desculpar-se
e sua agência a criar rapidamente um anúncio substitu-
to, desta vez brifado diretamente pelo público: “Quando
um não quer, o outro vai dançar”.
Em outros tempos, brincar com a ideia de “deixar o
não em casa”, em clima de folia, poderia parecer ino-
fensivo. Hoje, com essa voz adquirida pelos internau-
tas, basta uma mulher sentir-se ofendida para que se
materialize uma infinidade de outras mulheres que
compartilham da mesma opinião nas redes sociais e
elas trazem uma resposta pronta à afronta concedida
pela marca em questão: “e trouxe o nunca”.
Em se tratando de um caso positivo de relaciona-
mento da marca com o consumidor tem-se o exem-
plo do botão Dash, da Amazon, que, quando acio-
nado verifica o preço do produto e realiza o pedido
automaticamente, para que a pessoa não precise ir ao
mercado. A Amazon é uma empresa multinacional de

716 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


comércio eletrônico dos Estados Unidos e foi uma
das primeiras companhias com alguma relevância a
vender produtos na internet.

Figura 3: botão Dash, da Amazon

De acordo com Shapiro (2015, p. 6), “ essa noção


vai além da internet das coisas, é sobre como a inte-
ligência artificial pode ajudar a melhorar a vida dos
indivíduos”. As tecnologias cada vez mais oferecidas
pelas marcas são criadas por empresas também ca-
pazes de oferecer experiências e com o objetivo de
criar relacionamentos. Nesse cenário, o produto ad-
quirido torna-se apenas um detalhe do combo todo
que está baseado em estabelecer uma relação forte
com o consumidor.

717 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Considerações finais
Conclui-se, assim, que as marcas contemporâneas
estão amparadas por novas ideias e diferentes forma-
tos. A ideia deve ser forte o bastante para determinar
em que formato deve se propagar. O modelo antigo
de fazer publicidade não se sustenta mais. O cenário
das novas mídias está em constante mudança de cur-
so e exige hoje respostas mais rápidas das marcas.
O verbo que mais é utilizado atualmente quando se
trata de mercado publicitário é: transformar. A mudan-
ça se faz necessária para seguir e determinar as mutações
do mercado e continuar sendo relevante e eficiente. Tais
transformações devem ser proporcionais, assim como a
demanda por produção exige uma aceleração, a entrega
de conteúdo deve atender a esse processo.
Hoje não se faz mais possível que os departamentos
de uma agência de publicidades trabalhem individu-
almente, não se pode mais separar o departamento de
criação dos departamentos de planejamento e estraté-
gia e de tecnologia. Os clientes querem comprar não
só um grande trabalho criativo, mas algo mais amplo.
Muitas vezes, o diferencial não é só um anúncio, mas
uma ideia que mobilizará uma causa, ou uma infinida-
de de pessoas, que trabalhe com emoções, sentimentos,
ou mesmo algo promocional.
É importante que a marca se molde a esse momento
de convergência, para falar de novas formas a consumi-
dores e audiências diferentes. Com a força e a voz que
o público vem ganhando, bem como com a pluralidade

718 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


de marcas no mercado, estas precisarão mais dos consu-
midores que estes delas. A possibilidade de escolhas se
multiplicou e, assim, o papel das agências passa a ser não
mais apenas falar sobre os clientes, seus produtos, suas
marcas, seus serviços. A partir de agora e cada vez mais
a função da agência é agir em favor do cliente, ajudando-
-os a serem tocados pelas mensagens.
A expectativa é que os profissionais tornem-se
mais híbridos, que reúnam as funções mais tradi-
cionais do setor, amparados por um contato pessoal
com a marca, além de um maior conhecimento de
novas tecnologias e negócios.
O consumidor mudou, consome hoje de uma for-
ma diferente. Não é preciso mais que seja seguida
uma grade linear e, assim, ele vê o que quer, na hora
que quer, na plataforma que quer. Esse engajamento
se dá não só durante o programa, o anúncio assisti-
do, o consumidor termina de assistir e vai comentar,
compartilhar, ter uma posição proativa e deseja fa-
zer parte da história da marca, do seu contexto.
A nova ideia é que as marcas façam algo pelo consu-
midor ao invés de somente apresentar informações e, as-
sim, facilite, de alguma forma, a vida do usuário. Ouvir
os consumidores, entender suas necessidades devem ser
estratégias primordiais dentro das prioridades das mar-
cas, o que ajudará no momento da tomada de decisão e
da possível realização da compra, que é, muitas vezes, o
grande objetivo de uma campanha publicitária.
O mundo e a publicidade estão mudando. O gran-
de segredo para se chegar a uma comunicação mais

719 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


integrada entre marca e consumidor pode estar em
ter um repertório amplo, juntamente com os fun-
damentos e visão estratégica dentro dessa nova era
pós-moderna.

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SEMPRINI, A. A marca pós-moderna. São Paulo: Esta-
ção das Letras Editora, 2010.
SHAPIRO, A. Consumidores não, usuários. Meio e
Mensagem. Edição nº 1658. São Paulo, 2015.
SKOL irá trocar campanha após acusação de ‘apologia
ao estupro’. Economia. G1, 12/2/2015. Disponível em:
http://g1.globo.com/economia/midia-e-marketing/no-
ticia/2015/02/acusada-de-apologia-ao-estupro-skol-ira-
-trocar-frases-de-campanha.html. Acesso em: 8/6/2015.

722 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Capítulo 25
Futebol “arte” x futebol acadêmico:
uma análise foucaultiana a respeito
da ordem dos discursos1

Nathaly Barbieri Marcondes2

Introdução
Esta pesquisa pretende analisar as relações estabelecidas
entre a cultura brasileira e a prática do futebol no Brasil, a
partir do lugar-comum de que seria praticado entre nós o
chamado “futebol arte” (onde se valorizam a individualidade

1. Trabalho apresentado para a conclusão da disciplina Teorias da


Comunicação, ministrada pelo Prof. Dr. Osvando José de Mo-
rais no segundo semestre de 2014 do programa de Pós-Gra-
duação em Comunicação Midiática da Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, campus Bauru.
2. Bacharel em Publicidade e Propaganda pela Universidade do
Sagrado Coração (USC). Especialista em Marketing pela Fun-
dação Getúlio Vargas (FGV). Mestranda do Programa de Pós-
-Graduação em Comunicação da Universidade Estadual Pau-
lista (UNESP). E-mail: nathalymarcondes@gmail.com.

723
do craque, por meio dos dribles, da ginga e da habilidade),
e através das ideias de Foucault (1999), entender como este
discurso tornou-se, aparentemente, predominante, mesmo
que a academia esteja desmistificando esta ideia através de
estudos. Para tanto, serão estudadas as vinhetas de divulga-
ção da Copa do Mundo de 2014 produzidas pelas emissoras
de TV aberta (Band e TV Globo), responsáveis pela trans-
missão do evento no Brasil, já que ao que parece, a mídia é
uma das principais difusoras desta visão na sociedade.
A cultura de uma nação, como não poderia deixar
de ser, influencia diversas atividades praticadas por seus
habitantes. Uma dessas atividades, a prática dos espor-
tes, normalmente está carregada de simbolismos rela-
tivos à cultura, desde a definição da modalidade mais
popular no país até a forma como ela é praticada.
De acordo com o historiador holandês Johan Huizin-
ga (2000), o jogo é anterior à cultura e o responsável por
influenciá-la. Segundo ele, embora a cultura esteja dire-
tamente relacionada aos seres humanos, já que é institu-
ída por eles, o jogo nasce de forma primitiva, através dos
animais, sendo este o principal argumento que compro-
varia a ordem em que ambos surgiram. Huizinga (2000)
afirma ainda que as grandes atividades da sociedade hu-
mana, como, por exemplo, a linguagem e os mitos, são
definitivamente marcadas pelo jogo. E, para ele, o jogo
seria um elemento independente, que não desempenha
função moral alguma, o que impossibilitaria que fossem
aplicadas a ele noções de vício e virtude. No entanto, ele
estaria incluso no domínio da estética, mesmo que não
se possa afirmar que a beleza seja inerente ao jogo.

724 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Já o sociólogo francês Roger Caillois (1990), comple-
mentando a contribuição de Huizinga (2000), classifica o
jogo a partir de seis características. A primeira delas tem a
ver com o fato de que ele é uma atividade livre, ou seja, o
indivíduo não é obrigado a integrá-lo; se o fosse, o jogo per-
deria sua natureza de diversão. Caillois (1990) diz ser o jogo
também uma prática delimitada, sendo restrita no tempo e
no espaço. Ainda segundo ele, o jogo tem um caráter incer-
to, já que não se pode prever qual será seu resultado antes do
momento de sua conclusão. O jogo carrega também a ideia
de ser algo improdutivo, ou seja, não gera bens, riquezas ou
elementos novos de espécie alguma, sendo que o indivíduo
termina da mesma forma que começou. Outra qualidade
atribuída a ele é a da regulamentação, estando sujeito a con-
venções que suspendem as leis normais e instauram de for-
ma momentânea uma nova legislação, sendo esta a única
que conta. A última característica que Caillois (1990) atribui
ao jogo é o fato de este ser fictício, ou seja, a realidade que o
acompanha é outra, distinta da vida “normal”.
Para a presente pesquisa, entretanto, mais importante do
que saber em que sentido se dá a influência entre cultura e
esporte, é entender que há uma relação muito próxima en-
tre ambos, relação esta que merece ser estudada e analisada.
Neste sentido, cabem algumas reflexões sobre os con-
ceitos de esporte e cultura sobre os quais iremos traba-
lhar. Tubino (1999) e Helal (1990) têm definições muito
próximas sobre o que seria o esporte: trata-se de uma
atividade desempenhada com certa habilidade em de-
terminado movimento, mas que possui uma organiza-
ção através da qual seja regulamentada.

725 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Roland Barthes (2009), escritor e semiólogo francês,
em um insinuante texto sobre o esporte escrito em 1961
para o documentário “O esporte e os homens”, acrescen-
ta um novo olhar sobre algumas modalidades esportivas.
Baseado no estruturalismo francês, ele analisa o esporte
pelo próprio esporte, identificando porque algumas mo-
dalidades se tornam mais populares em certas regiões do
mundo. Influências como o clima ou a constituição cul-
tural da sociedade são um dos exemplos de motivos cita-
dos por ele. Mas o grande diferencial de Barthes foi con-
ceituar o esporte como uma forma encontrada pelo ser
humano de se provar no meio em que vive. O homem,
tão frágil perante as adversidades de um ambiente inós-
pito, ao qual teve que se adequar, encontrou no esporte
uma forma de se afirmar perante as forças da natureza.
Ainda de acordo com Barthes (2009), o esporte seria
portanto uma competição entre o homem e ele mesmo,
cuja função seria a de relatar o contrato humano.
Sobre o esporte, portanto, conclui-se que, além de ser
definido como atividade que requer habilidade na execu-
ção de um movimento, o qual exige esforço físico, e que
seja regimentada por uma organização mais ampla que
os praticantes, ele ainda é classificado como uma prática
que está em interação constante com a sociedade em que
é desenvolvido e com os indivíduos com ele envolvidos.
Laraia (2009), em estudo sobre as ideias de alguns
autores sobre o conceito de cultura, diz que o grande
diferencial do homem é sua possibilidade de comuni-
cação oral e de fabricar instrumentos que tornam mais
eficientes seu aparato biológico. Isso o faria ser o único

726 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


possuidor de cultura, em comparação aos demais ani-
mais. É fato que o homem necessita suprir suas funções
biológicas, as quais seriam iguais a todos, independen-
temente de raça ou nacionalidade. O que diferenciaria
os indivíduos, portanto, seria a forma como eles buscam
atender a essas necessidades, o que varia de acordo com
sua cultura. Ou seja, a herança genética de cada um não
determina ações e pensamentos, já que os atos humanos
dependem totalmente de um processo de aprendizagem
(LARAIA, 2009), sendo este o papel da cultura.
De acordo com estas definições, entende-se que a
cultura está em constante interação com a sociedade,
definindo hábitos e costumes dos indivíduos perten-
centes a ela e sendo construída através do desenvol-
vimento dos próprios indivíduos. O esporte, compre-
endido como uma atividade praticada e acompanhada
pela sociedade, também lhe concede traços caracterís-
ticos que o vão diferenciar em relação à forma como
é praticado em regiões diversas, e ele também, através
de suas regras e táticas, consegue moldá-la à sua ma-
neira, ocupando em muitos casos uma dimensão tão
importante quanto outros assuntos de interesse públi-
co, como a política ou a economia.

O Futebol Arte vs. O Futebol Acadêmico


Embora não tenha surgido em nosso país, o futebol
logo foi adotado pelos habitantes da terra. Ao longo do

727 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


tempo, tornou-se culturalmente característico de um
ethos brasileiro, tanto na visão da população nacional
como estrangeira, como reconhece o antropólogo Ro-
berto DaMatta (1994), um dos pioneiros na inclusão do
futebol como tema de debate na academia brasileira. A
sociedade brasileira emprestou os traços mais marcan-
tes de sua cultura para moldar o futebol da forma como
gostaria que ele fosse, enquanto o futebol auxiliou tal so-
ciedade a modernizar-se com a introdução de noções de
democracia e igualdade social.

[...] embora o futebol seja uma atividade moder-


na, um espetáculo pago, produzido e realizado
por profissionais da indústria cultural, dentro
dos mais extremados objetivos capitalistas ou
burgueses, ele, não obstante, também orquestra
componentes cívicos básicos, identidades so-
ciais importantes, valores culturais profundos e
gostos individuais singulares. No fundo, o fute-
bol prova que pode se acasalar [...] valores cul-
turais locais, nascidos de uma visão de mundo
tradicional e particularista, com uma lógica mo-
derna e universalista. (DAMATTA, 1994, p. 12).

No meio acadêmico, entretanto, parece não haver dú-


vida sobre o fato de que a gênese deste processo sobre o
“futebol arte” tem origem no sociólogo, antropólogo e
escritor Gilberto Freyre, que inauguraria a visão idílica
do futebol-arte brasileiro ao escrever o prefácio à obra O
negro no futebol brasileiro, de Mário Filho. Intitulado de
“Foot-ball Mulato” e datado de 1938, tal prefácio causará

728 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


enorme influência no imaginário nacional, influenciando
sobremaneira o olhar que será dedicado desde então ao
futebol pela imprensa esportiva brasileira e pelos aficio-
nados pelo futebol, de forma geral. No artigo “A produção
das diferenças na produção dos ‘estilos de jogo’ no futebol:
a propósito de um texto fundador”, a antropóloga Simoni
Lahud Guedes (2014), como o próprio título já indica, no-
meia o prefácio de Freyre como um “texto fundador” da
noção de que se praticaria no Brasil o tal do “futebol-arte”.
Em seu prefácio, Gilberto Freyre, diz que atividades tí-
picas dos escravos africanos no Brasil, como a capoeira e o
samba, estão nitidamente presentes no estilo brasileiro de se
praticar o futebol. Ainda segundo ele, “sublimando tanto do
que é mais primitivo, mais jovem, mais elementar, em nossa
cultura, era natural que o futebol, no Brasil, ao engrandecer-
-se em instituição nacional, engrandecesse também o ne-
gro, o descendente de negro, o mulato, o cafuzo, o mesti-
ço” (FREYRE in RODRIGUES FILHO, 1994, Introdução).
Freyre ainda diz que “no futebol, [...] a mulatice brasileira
caracteriza-se pelo prazer da elasticidade, da surpresa, da
retórica, que lembra passos de dança e fintas de capoeira”.
A propósito, o pensador alemão Anatol Rosenfeld
(1993) também discorre sobre essa influência advin-
da dos negros, dizendo que ela se deve ao fato de
que, embora o futebol tenha nascido no Brasil como
uma modalidade esportiva elitista, que priorizava
a prática pela parte caucasiana da população, ao se
tornar um esporte popular a toda a população, anos
após a abolição da escravatura, ele foi visto pelos ne-
gros como uma fuga à ascensão social.

729 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


O jogador de futebol lhes pertencia; compreen-
diam-no, seu chute era o deles. Na medida em que
começou a se comprovar o mesmo valor dos joga-
dores de raça negra – a princípio posto em dúvida
pelo próprio homem de cor – cresceu simultanea-
mente a autoconsciência das massas e elas come-
çaram a sentir o jogador negro ou mulato como
seu representante (ROSENFELD, 1993, p. 99).

Devido à singularidade do estilo brasileiro de jogar fute-


bol, este esporte se tornou um elemento de identidade nacio-
nal. Segundo Édison Gastaldo (2012), o futebol seria um dos
principais meios de construção da memória social e afetiva
relacionada ao sentimento de nação para a sociedade bra-
sileira, o que se confirma a cada participação da seleção do
país em uma Copa do Mundo. Maranhão (2006), em estudo
sobre como o futebol influenciou o pensamento do já citado
Gilberto Freyre a respeito do povo brasileiro, diz que o escri-
tor categorizou a maneira brasileira de se praticar o esporte
como “dionisíaca” em comparação com a europeia, que dizia
ser “apolínea”, fazendo referência ao futebol de dribles e jo-
gadas individuais contrastado com o mais regrado e técnico.
No entanto, a aceitação de que jogadores brasileiros
já nasceriam aptos a praticar o futebol-arte por meio
de técnicas e habilidades individuais presentes em seu
genoma começou a se posta em xeque igualmente na
academia brasileira ao longo dos últimos 15 anos, como
atestam as diversas contribuições de Soares, Helal, Lovi-
solo e Santoro (1994, 2001, 2003, 2004). Em alguns des-
tes trabalhos, tem-se a ideia de que a imprensa foi uma

730 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


das principais responsáveis pela disseminação da visão
do “futebol-arte” no Brasil. Sob esta ótica, o enquadra-
mento dado à Seleção Brasileira na Copa do Mundo de
1970 colaborou intensamente para o adensamento da
identidade nacional brasileira atrelada à noção do fute-
bol habilidoso, pleno de ginga, dribles, improvisação e
malandragem. Aspectos táticos e físicos que contribuí-
ram para o sucesso do Brasil naquela competição foram
paulatinamente esquecidos, em favor da suposta habili-
dade incontestável dos jogadores nacionais, perpetuan-
do-se assim a ideia do futebol genial e criativo dos brasi-
leiros (SANTORO; SOARES, 2009).
Franco Júnior (2013) também partilha da mesma
ideia de Soares, Helal e Santoro (2004) em relação à fa-
lácia do futebol arte no Brasil, fazendo referência ao que
tem sido visto do esporte na atualidade.

Parte essencial do clichê “Brasil, país do futebol”


é a crença de que aqui se joga com mais habi-
lidade, com mais qualidade. A rigor, porém, o
nível de nossas competições é mediano, quando
não baixo. O enquadramento institucional im-
pede que a potencialidade esportiva se torne re-
alidade (FRANCO JÚNIOR, 2013, p. 50).

Condizente com a realidade ou não, o fato é que o fu-


tebol valorizado pelos brasileiros é justamente o praticado
com ares teatrais, talvez porque ele seja entendido como
o “verdadeiro” futebol do Brasil. E essa identificação cau-
sada pelo formato singular do esporte praticado no país

731 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


tem sido muito visada pelas empresas como um apelo pu-
blicitário eficaz na divulgação de suas marcas e produtos.
A seguir, será discutida a relação entre a publicida-
de e o esporte, destacando o futebol, e qual seu papel
na disseminação da imagem do “futebol arte” brasileiro,
principalmente em tempos de Copa do Mundo.

A Publicidade “entra em campo”


Segundo Quessada (2003, apud RIBEIRO, 2013), o
papel da propaganda seria transformar qualquer coisa,
seja um objeto ou um fenômeno, em produto e mer-
cadoria que desperte um grande desejo do público. E
mais do que isso; Williams (1978, apud RIBEIRO, 2013)
aponta para o fato de que muitas vezes a imagem usa-
da para a publicidade não se relaciona com o produto
anunciado, ou seja, a verdadeira intenção nesses casos é
de que o produto seja relacionado a outro cenário, a algo
melhor, trabalhando sonhos e imagens.
Embora não se possa negar a relação entre publici-
dade e economia capitalista, ela não se resume a isso.
De acordo com Rocha (1990), além de sua função ma-
nifesta, de vender e aumentar o consumo, a publicida-
de retrata as representações sociais através de símbolos,
caracterizando o cotidiano e contrastando com o racio-
nalismo e o utilitarismo da sociedade. Dessa forma, as
características da cultura e dos costumes de uma socie-
dade estariam presentes em algumas propagandas.

732 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Em se tratando de anúncios que envolvem o futebol,
pode-se dizer que alguns dos símbolos mais evidencia-
dos no Brasil são a ginga, o drible, a “malandragem”, a
valorização das jogadas individuais e as transgressões às
autoridades, tanto em enredos que envolvem os jogado-
res em campo, quanto os que retratam o torcedor bra-
sileiro. Soares (1994, apud GASTALDO, 2002) diz que
a malandragem é um mito constituidor da identidade
brasileira, e a define como uma orientação de conduta,
que ao ser incorporada aos jogadores brasileiros, carac-
terizaria sua maneira de praticar o futebol numa moda-
lidade chamada por ele de “futebol malandro”.
Quando o objeto tratado nas propagandas que envol-
vem o futebol é a seleção brasileira, a característica deste
“futebol malandro” se torna mais evidente. Segundo Santa
Cruz (2003, apud RIBEIRO, 2013), eventos como a Copa do
Mundo de Futebol desempenham a função de articuladores
da identidade nacional, identidade essa voltada para o con-
sumo, neste caso, de símbolos nacionais. As expectativas do
mercado se fundem com o discurso nacionalista, buscando
motivar a participação de torcedores/consumidores.
Somando-se às formas de interação entre publicidade
e futebol citadas anteriormente, pode-se dizer que a pu-
blicidade busca, através do futebol, a identificação de seu
público, trazendo simbologias e elementos de sua cultu-
ra e enfatizando-os ao ponto de se tornarem facilmente
perceptíveis. Já o futebol consegue, através dos anúncios
publicitários, afirmar as características que absorve da
sociedade em que é praticado, livre dos julgamentos e
restrições existentes dentro do campo.

733 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


A seguir, serão abordadas as classificações de ex-
clusão dos discursos propostas por Michel Foucault
(1999), para que posteriormente seja possível identifi-
car em quais destes mecanismos o discurso do futebol
arte se apoiou para se sobrepor ao discurso acadêmico
sobre este esporte.

“O Apito do Árbitro” - A Ordem do Discurso de Foucault


Discutidas as relações entre o futebol que constitui
a identidade nacional brasileira e o futebol observado
pela academia, bem como entre o futebol e a publicida-
de, cabe neste momento, buscar uma metodologia que
explique porque determinado discurso acerca deste es-
porte foi escolhido pela mídia, e acolhido pela socieda-
de, para massiva divulgação.
A partir da aula inaugural no Collège de France, mi-
nistrada em 2 de dezembro de 1970 por Michel Foucault,
foi desenvolvido o livro “A Ordem do Discurso”, publica-
do originalmente em Paris, no ano de 1971. Neste livro,
Foucault (1999) faz uma análise a respeito dos discursos,
e propõe classificações metodológicas para eles, de forma
a entender porque algumas ideias são tão fortemente di-
fundidas na sociedade em detrimento de outras.
Foucault (1999) inicia sua obra atentando para a ne-
cessidade que se há em estudar a origem dos discursos
e as formas pelas quais eles se propagam na sociedade.

734 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


[...] inquietação diante do que é o discurso em
sua realidade material de coisa pronunciada ou
escrita; inquietação diante dessa existência tran-
sitória destinada a se apagar sem dúvida, mas
segundo uma duração que não nos pertence;
inquietação de sentir sob essa atividade, todavia
cotidiana e cinzenta, poderes e perigos que mal
se imagina; inquietação de supor lutas, vitórias,
ferimentos, dominações, servidões, através de
tantas palavras cujo o uso há tanto tempo redu-
ziu as asperidades. (FOUCAULT, 1999, p. 8).

Em um segundo momento, o autor começa de fato


sua análise sobre a produção dos discursos. Foucault
(1999) introduz sua ideia de que em toda sociedade tal
produção é, simultaneamente, controlada, selecionada,
organizada e redistribuída por um determinado número
de procedimentos, cuja função seria tramar seus pode-
res e perigos, dominar o acontecimento aleatório e es-
quivar sua materialidade.
Foucault separa as formas de construção do discurso
em fatores internos e externos. O primeiro processo exter-
no, relatado pelo autor, seria a interdição da palavra. Fou-
cault (1999) diz existir três formas de se interditar o que é
dito que se relacionam entre si, fortalecendo-se e comple-
mentando-se, que seriam: tabu do objeto, ritual da circuns-
tância e direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala.
A interdição da palavra revela a ligação do discurso com o
poder, algo que não é novidade segundo o autor, que classi-
fica a possibilidade de vetar certos discursos como uma das
principais causas das disputas por dominação.

735 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


O segundo fator externo seria o que Foucault (1999)
chama de segregação da loucura. Segundo ele, desde a
Idade Média, ao mesmo tempo em que se descredita o
discurso das pessoas ditas loucas, ele é valorizado como
uma forma diferente de se enxergar verdades ocultas. Ele
ainda diz que embora se acredite que hoje em dia não haja
mais essa exclusão, ela ainda voga, e pode ser percebida
na relação existente entre pacientes e médicos, psicana-
listas, onde há uma certa censura no discurso proferido.
Por fim, o último fator externo consiste na vontade da
verdade. Segundo Foucault (1999), a arbitrariedade não es-
taria em definir o que é verdadeiro e o que é falso dentro de
um discurso já formado, mas sim, na forma como tal verda-
de foi forjada ao longo do tempo. A vontade da verdade fun-
cionaria como um sistema de exclusão na medida em que é
apoiada por um suporte institucional, sendo reforçada e re-
conduzida por um conjunto de práticas. “Mas ela é também
reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo
como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valo-
rizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído.”
(FOUCAULT, 1999, p. 17). O autor diz que a vontade da
verdade exerce sobre os discursos certa pressão e coerção.
Foucault (1999) se aprofunda mais no conceito de
vontade de verdade pois, como ele próprio diz, os dois
primeiros processos se enfraquecem à medida em que
são atravessados pelo terceiro, que se fortalece cada vez
mais, tornando-se mais incontornável. E ele segue di-
zendo que a vontade da verdade é a forma de exclusão
de que menos se fala, justamente pela suposta verdade
estar tão incrustrada nos discursos.

736 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Assim, só aparece aos nossos olhos uma verda-
de que seria riqueza, fecundidade, força doce
e insidiosamente universal. E ignoramos, em
contrapartida, a vontade de verdade, como pro-
digiosa maquinaria destinada a excluir todos
aqueles que, ponto por ponto, em nossa história,
procuraram contornar essa vontade de verdade
e recolocá-la em questão contra a verdade [...].
(FOUCAULT, 1999, p. 20).

Foucault (1999) ainda fala sobre os processos inter-


nos de exclusão, visto que os próprios discursos exer-
cem controle sobre si. O primeiro processo interno se-
ria o comentário. O autor diz que existem dois tipos
de discursos que circulam pela sociedade: os discursos
que seriam origens e aqueles que se originam através
dos comentários sobre eles. Embora esse desnivela-
mento dos discursos não seja estável, seu encerramen-
to é uma utopia. No entanto, Foucault (1999) mostra
que através do comentário novos discursos podem ser
construídos indefinidamente, muito embora seu prin-
cipal papel seja dizer por fim o que se articula no tex-
to primeiro no qual ele se fundamenta. “O comentá-
rio conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua parte:
permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com
a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo
modo realizado.” (FOUCAULT, 1999, p. 25).
O segundo processo interno, que complementaria o
primeiro, seria o autor. Por autor, Foucault (1999) não
diz ser o indivíduo que produziu um texto, mas sim o
princípio de agrupamento do discurso. Enquanto o co-

737 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


mentário limita o discurso pela repetição, o princípio do
autor o limita pela individualidade.
O terceiro e último processo interno de limitação
seriam as disciplinas. Este princípio seria oposto aos
dois primeiros, já que funciona como um conjunto de
métodos e domínio de objetos que possibilitariam que
qualquer um servir-se deles sem que tivesse importância
quem, e também já que pressupõe que seja possível que
novas proposições sejam indefinidamente formuladas.
Embora possam possuir erros, que funcionam de forma
positiva à medida em que se associam com a verdade, as
disciplinas precisam responder a certas condições, para
que se enquadrem como tal. “Em resumo, uma proposi-
ção deve preencher exigências complexas e pesadas para
poder pertencer ao conjunto de uma disciplina.” (FOU-
CAULT, 1999, p. 34). Ainda segundo o autor, mais im-
portante do que ser verdadeiro ou falso, para que uma
proposição se enquadre em uma disciplina, é necessário
que ele esteja “no verdadeiro”, o que caracteriza o pro-
cesso de controle de produção do discurso.
Depois de classificar os fatores internos e externos
como forma de exclusão, Foucault (1999) parte para
uma terceira forma que diria respeito à determinação
das condições de funcionamento dos discursos, e quais
regras fariam com que nem todos tivessem acesso a eles.

[...] nem todas as regiões do discurso são igual-


mente abertas e penetráveis; algumas são alta-
mente proibidas (diferenciadas e diferencian-
tes), enquanto outras parecem quase abertas a

738 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


todos os ventos e postas, sem restrição prévia,
à disposição de cada sujeito que fala. (FOU-
CAULT, 1999, p. 37).

A primeira forma dos sistemas de restrição que Fou-


cault propõe é o ritual. Esta classificação definiria a qua-
lificação que os indivíduos que falam devem possuir,
define o conjunto de signos que devem acompanhar o
discurso, definindo qual é o efeito das palavras profe-
ridas àqueles aos quais elas se dirigem. Quase em con-
traposição a isso, surge a segunda forma, que seriam as
“sociedades de discurso”, que teriam como função con-
servar ou produzir discursos para que sejam veiculados
em espaço fechado e distribuídos de forma restrita, para
que isso não caracterize a perda de posse de seus de-
tentores. Foucault as exemplifica, nos dias atuais, como
os discursos pertencentes a classes profissionais que se
limitam aos indivíduos pertencentes a elas, o que fun-
cionaria como um tipo de exclusão.
A terceira forma de restrição é a doutrina, que por
sua vez, seria o inverso das “sociedades do discurso”. Ela
tende a se difundir, e somente pelo compartilhamento
de um único e mesmo discurso é que ela faz com que
os indivíduos sintam que a pertencem. “[...] a doutrina
questiona os enunciados a partir dos sujeitos que falam,
na medida em que a doutrina vale sempre como o sinal,
a manifestação e o instrumento de uma pertença pré-
via...” (FOUCAULT, 1999, p. 43).
Por fim, a forma que o autor considera muito mais
ampla, seria a apropriação social dos discursos. Foucault

739 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


considera todos os sistemas educacionais como uma ma-
neira política de manter ou modificar a apropriação do
discurso. Portanto, ele entende que a apropriação social
dos discursos funcionaria com a interação das três formas
anteriormente citadas por ele, como se através da educa-
ção tradicionalmente fornecida nos centros educacionais
fosse baseada em todas as formas de exclusão do discurso
que se ligam a suas condições de funcionamento.
Baseando-se nas classificações propostas por Fou-
cault (1999) em “A Ordem do Discurso”, a seguir, será
desenvolvida a tentativa de se entender como os dis-
cursos acerca do futebol brasileiro foram construídos, e
como a imagem divulgada e perpetuada em meio à so-
ciedade pela mídia tornou-se tão distinta daquela que é
tida como real pela academia.

“Bola em Jogo” - Analisando o Objeto


Para que fosse possível a análise do discurso do futebol
brasileiro construído como forma de identidade nacional
e perpetuado pela mídia, em contraposição ao discurso da
academia sobre este tema, foram escolhidos dois produtos
midiáticos que representam o emprego desta temática.
Durante a Copa do Mundo, as emissoras de TV res-
ponsáveis pela transmissão do evento em rede aberta,
Globo e Bandeirantes, produziram duas vinhetas, “So-
mos um Só” e “O Maior Espetáculo da Terra” respecti-
vamente, com o intuito de divulgar a exibição dos jogos

740 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


e estimular a audiência. Para tanto, o conteúdo destes
vídeos publicitários deveriam ser o mais próximo pos-
sível da ideia que a população brasileira tem do futebol,
para que se identificassem com eles.
Em breve análise baseada nos aspectos considerados
característicos do futebol no Brasil, e através do pro-
cesso de decupagem, alguns elementos encontram-se
presentes em diversos momentos de ambos os spots pu-
blicitários. Um aspecto importante de ser destacado é a
trilha sonora, que consiste na parte textual de ambas as
vinhetas. O fato de a propaganda veiculada pela emis-
sora Band utilizar o samba como estilo musical é exem-
plo da relação existente entre tal música com o futebol,
causando a identificação direta do público. No caso da
Globo, a emissora aposta em uma canção criada para a
Copa de 1994, “Coração Verde e Amarelo”, e que se tor-
nou característica do evento para fazer com que o públi-
co se identificasse com ela.
Já um dos elementos mais característicos do futebol
brasileiro, e pelo qual ele é mais valorizado, é eviden-
te em ambas as propagandas. A “molecagem” admirada
neste esporte, tanto por brasileiros quanto por outros po-
vos, é evidenciada pela quantidade de imagens de dribles
ou truques com a bola, tanto pelos jogadores da seleção
quanto pelas pessoas comuns que brincam de futebol, que
é muito superior à quantidade de imagens que mostram
passes entre jogadores (profissionais ou amadores).
A transgressão à autoridade, característica também
presente no futebol brasileiro e derivada da cultura do
país, pode ser vista em diversos momentos nas vinhetas.

741 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Na Globo, ela aparece representada por imagens de pes-
soas utilizando bens privados ou públicos para brincar
de futebol, como os balanços de um parque na praia fa-
zendo as vezes de trave ou os carrinhos de um supermer-
cado demarcando os limites de um campo. Já na Band,
ela pode ser percebida pela imagem em que um jogador
aparece discutindo com o outro em campo, apontando o
dedo para o mesmo como forma de provocação.
Por fim, nas duas propagandas, podem ser encontradas
diversas imagens que detalham as partes do corpo mais
utilizadas ao se praticar o futebol, e que são apreciadas pela
cultura brasileira, como as pernas e os quadris, garantindo
que o apelo à sensualidade exalada pelo enfoque de tais
partes durante a prática do esporte seja mais um elemento
para prender a atenção do público à vinheta.
Nota-se, através da análise do conteúdo das vinhe-
tas escolhidas, que ambas utilizam, majoritariamente,
o discurso construído para se caracterizar o futebol
brasileiro, carregado de simbologias nacionais, em de-
trimento ao discurso pregado pela academia, sobre a
verdade sobre a prática deste esporte no Brasil. Cabe
agora, através das diversas formas de exclusão, limita-
ção e apropriação do discurso lançadas por Foucault
(1999), classificar como, possivelmente, a fala midiáti-
ca se sobrepõe à acadêmica em meio à sociedade.
De acordo com as categorias referentes aos processos
externos citadas pelo autor, pode-se entender que o dis-
curso midiático acerca do futebol brasileiro enquadra-se
no que Foucault (1999) chama de “vontade da verdade”.
Como ele mesmo diz, pouco se discute sobre a vontade

742 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


da verdade, já que este processo de exclusão considera
que o próprio discurso proferido é a verdade. Talvez seja
por meio deste mecanismo que a ideia do futebol arte
foi tão propagada pela mídia que se tornou verdadeira
em meio à sociedade. Isso explicaria porque o discurso
da academia a respeito do esporte, como é praticado no
Brasil, não seja acolhido também por ela, por parecer
“falso” perante o que publicamente tido como “verda-
deiro”, limitando-se a um grupo restrito de indivíduos.
Pode-se perceber, no exemplo das vinhetas, que os
pontos chaves utilizados na construção de ambas ba-
seia-se nesta “verdade”, propagando um tipo de relacio-
namento utópico, porém aceito, entre a sociedade bra-
sileira e o futebol, como uma massa que abre mão de
deveres e obrigações para acompanhar a seleção brasi-
leira durante a Copa do Mundo.
Sobre os processos internos de exclusão, ao que pa-
rece, o discurso do futebol arte classifica-se no que Fou-
cault (1999) chama de “comentário”, visto que o ima-
ginário construído pela relação entre este esporte e a
cultura do Brasil tornou-se tão enraizado na sociedade,
que quando é abordado, o que se gera são apenas versões
que o repetem, mas não o negam. Isto pode ser percebi-
do também, não somente nas vinhetas, que levam quase
que à exaustão diversos elementos culturalmente carac-
terísticos da sociedade brasileira, mas também em noti-
ciários esportivos, que acabam gerando o que Umberto
Eco (1984) chamou de “esporte à enésima potência”, ou
seja, uma “falação” infinita sobre o esporte que, normal-
mente, gira em torno dos mesmos temas.

743 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Por fim, em relação às condições de funcionamento
dos discursos propostas por Foucault (1999), embora
o autor exemplifique tal modelo com o discurso polí-
tico e religioso, percebe-se que o discurso do futebol
arte se assemelha muito ao que ele chama de doutrina.
Tal discurso é divulgado de maneira única, já explica-
do segundo a classificação do “comentário”, e de forma
que os indivíduos impactados por ele desenvolvam um
sentimento de pertença, de identificação, de unidade
por meio dele. As vinhetas deixam clara essa percepção
quando mostram a sociedade como um conjunto, sem
diferenciação de idade, raça ou classe social, com uma
visão única sobre o futebol brasileiro, gerando um obje-
tivo em comum: torcer pela seleção brasileira.

“Final de Jogo” – Considerações Finais


A breve classificação feita do discurso midiático de
acordo com os conceitos propostos por Foucault (1999)
foi realizada de modo a entender através de quais meca-
nismos a ideia do futebol arte, aparentemente, se sobre-
põe à difundida pelos estudiosos do esporte em matéria
de alcance e aceitação. No entanto, se pensarmos no sen-
tido contrário, também encontraríamos classificações
possíveis de exclusão do discurso acadêmico.
O estudo da comunicação esportiva pela academia
é um campo relativamente novo, e isso pode ser um
dos fatores pelos quais seu posicionamento ainda não

744 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


foi completamente difundido. No entanto, através dos
processos de exclusão dos discursos em que a fala do
futebol arte, perpetuada pela mídia, está baseada, prova-
velmente será difícil que esta nova visão a respeito deste
esporte no Brasil seja inserida e aceita pela sociedade.
O brasileiro ainda se identifica muito com a ideia
inicialmente construída por Gilberto Freyre em 1938,
enxergando no esporte um dos principais elementos
de sua identidade nacional, e muito disso se deve à
constante veiculação desta imagem pelos diversos pro-
dutos midiáticos. Não se pode negar que alguns joga-
dores brasileiros possuem uma forma característica de
praticar futebol, mas também não se pode dizer que
tal estilo é unicamente deles. Hoje, outros jogadores,
de outras nacionalidades, possuem grande habilidade
com a bola, e se utilizam de firulas e transgressões para
“embelezar” o jogo.
Também não se pode deixar de lado o fato de que
algumas seleções brasileiras demonstraram extrema
destreza na prática do chamado futebol arte em al-
guns mundiais. No entanto, embora esta seja a visão
difundida pela mídia e aceita pelos brasileiros, como
alguns estudiosos do esporte afirmam, a partir do
momento em que a maior parte das Copas do Mun-
do foi marcada por uma atuação regular dos jogado-
res brasileiros, e não tão artística, esta característica
torna-se a exceção, e não a regra.

745 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


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748 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Capítulo 26
Fotografia, comunicação e linguagem:
O desafio da pesquisa imagética

Neide Maria Carlos

O desafio da pesquisa
O campo de estudo da comunicação se apresenta como
um espaço interdisciplinar onde são necessários aportes
de outros campos para um estudo que seja de caráter sig-
nificativo para a construção do conhecimento científico.
Da mesma forma, o campo de estudo da linguagem visu-
al se amplia para outras áreas de conhecimento em busca
de um entendimento sobre o seu papel como objeto da
comunicação e transformação da cultura.
O desafio epistemológico da fotografia em construir
um conhecimento acerca do papel da mensagem visual
para a comunicação, portanto, para a sociedade. A fo-
tografia é importante fonte de informação que pode e
deve ser interpretada à medida que retrata fatos sociais
e auxilia na construção de um conhecimento acerca do

749
mundo visível. Diante das imagens tem-se a percepção
de que há um uso consciente da linguagem visual como
meio de comunicação.
O processo de elaboração da pesquisa em fotografia deve
definir-se sobre as abordagens pertinentes ao problema de
pesquisa a ser verificado e discutido. O pesquisador se vê
diante de diferentes questões a que remete a imagem: a sua
relação com o real que lhe deu origem, o problema do senti-
do, o desafio da interpretação. Assim, o estudioso da imagem
se vê diante das qualidades que se atribui à fotografia, seu
poder de evocação, seu realismo e seus aspetos linguísticos.
Portanto, torna-se pertinente a discussão acerca da foto-
grafia como objeto da comunicação jornalística, a linguagem
do fotojornalismo e seu papel na composição da mensagem
comunicacional. Sob diferentes aspectos, tais mensagens
podem ser elaboradas com menor ou maior grau de cons-
ciência de seus efeitos. “Sempre gostei da máquina que fo-
tografa, desse pequeno olho de ciclope, único e redondo,
que nos ensina a ver quando perdemos de vista o bom uso
de nossos dois olhos. Magnífica máquina que nos permite
questionar, pensar, sonhar com o real.” Samain (2012, p. 155)
Romper a barreira entre o fazer fotográfico e passar
ao campo da teoria e da pesquisa torna-se um desafio a
quem produz imagem. Entender o seu papel na prática
comunicacional e chegar ao desafio de submeter a práti-
ca ao espírito crítico da ciência se torna um desafio com
muitas barreiras que deverão ser rompidas.
Ao mesmo tempo, Philipe Dubois (1993, p. 15) afir-
ma que “com a fotografia, não nos é mais possível pensar
a imagem fora do ato que a faz ser.” Ou seja, há um duplo

750 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


desafio em se entender a relevância do saber e da produ-
ção da imagem. Até onde e como se abordam os proble-
mas que remetem a um ou outro aspecto que compõem
o universo da imagem se configuram em um desafio da
pesquisa em imagem. Ainda assim, é possível se afirmar
que o ato de fotografar é um fazer seletivo, onde o en-
quadramento impõe a sua ênfase a determinados aspec-
tos em detrimento a um vasto campo de acontecimen-
tos. Revela alguns aspectos em detrimento de outros.
Aos aspectos formais e práticos da mensagem visual
podem ser atribuídas outras discussões que podem ser
reveladoras do papel cultural imposto pela presença da
imagem. Flusser (1985) aponta para uma valorização
das imagens e da visualidade:

“Imagens são mediações entre homem e mun-


do. O homem ‘existe’, isto é, o mundo não lhe
é acessível imediatamente. Imagens têm o pro-
pósito de representar o mundo. Mas, ao fazê-lo,
entrepõem-se entre mundo e homem. Seu pro-
pósito é serem mapas do mundo, mas passam a
ser biombos. O homem, ao invés de se servir das
imagens em função do mundo, passa a viver em
função de imagens. Não mais decifra as cenas
da imagem como significados do mundo, mas
o próprio mundo vai sendo vivenciado como
conjunto de cenas. Tal inversão da função das
imagens é idolatria.” (FLUSSER, 1985, p. 7)

No universo da imagem se reconhece a necessidade de


mobilização de outras disciplinas que irão contribuir para

751 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


a elaboração de um conhecimento sobre o potencial da
mensagem visual e suas implicações. Disciplinas como a
filosofia, a sociologia, a linguística, a semiologia e a his-
tória podem ser relevantes ao estudo do corpus do qual
emerge a fotografia. Assim, pode-se reafirmar o caráter
multidisciplinar dos estudos da linguagem visual a qual
contribui para o campo dos estudos da comunicação.
Aqui faço um “parênteses” para me referir a uns dos
caminhos que me conduziu ao universo da fotografia.
Lembrando uma imagem do passado, das primeiras que
me levaram a pensar e a me interessar pelo fotojorna-
lismo - e que aqui posso descrever sem precisar datas
e contexto - me chegou ao final da década de 80. Era
a fotografia de um veterano militar russo comendo um
lanche do McDonald’s, com os arcos amarelos às suas
costas. A imagem estava inserida em uma matéria de
um jornal que falava sobre a abertura da União Sovié-
tica. Hoje, leria essa imagem sob a perspectiva do co-
municador, pensando em vários níveis de leitura pos-
síveis. Diferentemente, quando entrei em contato com
essa imagem, há tantos anos, a perspectiva era de uma
curiosidade acerca do momento histórico que produziu
essa imagem. Ao mesmo tempo, tinha a imprensa como
fonte quase incontestável e confiável de testemunho dos
fatos históricos. Até mesmo como uma fonte de cons-
trução do conhecimento. Ainda assim, aquela imagem
me fazia duvidar de sua veracidade. Pensar nela me fez
questionar o seu testemunho de verdade: seria mesmo
aquele um militar russo? Teria sido mesmo um flagra
de um repórter fotográfico que registrou aquela imagem

752 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


simbólica? Naquele momento, no contexto político em
que ela foi inserida, teria uma força representativa para
os conflitos que figuravam naquele tempo histórico.
Questionar tal imagem me leva a refletir sobre o poder
simbólico da imagem, sobre o seu papel revelador e so-
bre o quanto devemos questioná-lo.

Legenda: “Veterano do Exército Vermelho come sanduíche oferecido


por loja do McDonald´s em São Petersburgo. Em homenagem ao ‘Dia
da Vitória’” (não foi possível precisar data e publicação)

Roland Barthes afirma em A Câmara Clara (1990)


que a fotografia representa algo que só ocorreu uma
vez. Para Henri Cartier-Bresson é o momento decisivo
que congela um momento recortado do real no instante

753 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


em que o fotógrafo reconhece os elementos compostos
diante da câmera, sob determinado ângulo e enquadra-
mento. Didi-Huberman (2006) ainda afirma que:

“A imagem, em especial a imagem fixa, é com-


plexa. Para se dar conta disso, basta prolongar
o tempo de um olhar posto sobre ela, sobre sua
face visível para, logo, descobrir que a imagem
nos leva em direção a outras profundidades, ou-
tras estratificações, ao encontro de outras ima-
gens. É necessário, pois, abrir a imagem, des-
dobrar a imagem, inquietar-se diante de cada
imagem.” (DIDI-HUBERMAN, 2006).

É possível, então, se interrogar sobre quais os tipos de tra-


tamento poderíamos dar a essa imagem e quais as revelações
que ela nos traria. Quais os tipos de pergunta ela nos remete
e quais áreas de conhecimento das ciências sociais ela evoca.
Ao mesmo tempo, ao profissional acostumado ao fazer foto-
gráfico, alguém mais envolvido com a prática do fotojorna-
lismo, faria quais indagações no sentido de incluir essa ima-
gem ao seu repertório imagético. Poderia também se reter
a questões técnicas e de linguagem. Na verdade, todas essas
questões fazem parte do universo da imagem fotográfica e aí
se encontra o desafio da pesquisa, o de construir o conheci-
mento sobre e através da imagem não verbal.
A mensagem não verbal em alguns campos de pesquisa
já foi negligenciada por diferentes razões. O presente traba-
lho busca salientar a sua relevância na constituição de um
saber sobre o papel das mensagens veiculadas pelos meios

754 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


de comunicação. Para tanto, é necessário reter o corpus,
visualizá-lo e buscar nele o necessário aporte para cons-
truir através dele um estudo de aproximação com o campo
da comunicação. Objetos de cultura, as mensagens passam
por um processo de elaboração e construção sistematizada
fundamentada sobre as escolhas da comunicação.
O próprio campo de estudo da comunicação se apre-
senta como um espaço interdisciplinar onde são neces-
sários aportes de vários campos para um estudo que
seja de caráter significativo para a construção do conhe-
cimento científico. Assim, a sociologia, a psicologia, a
história, a linguística são algumas das áreas que podem
contribuir para uma fundamentação do papel da comu-
nicação para a sociedade. Da mesma forma, o campo de
estudo da linguagem visual se amplia para esses demais
campos em busca de um entendimento sobre o seu pa-
pel como objeto da comunicação social.
Segundo Machado (1984), a câmera impõe um ar-
ranjo ao seu objeto:

“Longe de encarnar o verismo essencial que lhe


querem creditar os ‘realistas’, a câmera tem o po-
der transfigurador do mundo visível que chega
a ser devastador nas suas consequências. Diante
de uma câmera, não há realidade que permane-
ça intacta: tudo se altera, tudo se arranja, tudo
concorre para a ordem ideal do monumento.”
(MACHADO, p. 54, 1984)

Diante dessas proposições, a pesquisa tenta deli-


mitar até onde a câmera se faz imparcial ou a partir

755 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


de que momento ela interfere e modifica o objeto fo-
tografado. Constitui-se assim mais um dos desafios
epistemológicos da pesquisa científica estabelecer os
limites do pensamento investigativo sob um ou outro
aspecto a ser abordado e em que momento e de que
forma eles se entrecruzam.
Didi-Huberman em entrevista à Revista de Filosofia
e da Imagem em Movimento (n° 01, 2010) afirma que “a
cada novo objeto, se deve reformular os quadros concei-
tuais.” E completa, “desde que comecei a trabalhar, sem-
pre tive uma preocupação epistemológica.”
As imagens nos dão a ilusão de que tocam o real e
sua composição o modifica em algum sentido, orientado
sob determinada visão. A partir daí, algumas das inda-
gações do pesquisar se darão no sentido de questionar
quais os tipos de conhecimento ela deverá manifestar ou
quais modificações ela deve impor ao pensamento. Em
seu artigo “Quando as imagens tocam o real”, Georges
Didi-Huberman (2012) afirma:

“Nunca a imagem se impôs com tanta força


em nosso universo estético, técnico, cotidiano,
político, histórico. Nunca mostrou tantas ver-
dades tão cruas; nunca, sem dúvida, nos men-
tiu tanto solicitando nossa credulidade; nunca
proliferou tanto e nunca sofreu tanta censura e
destruição. Nunca, portanto, — esta impressão
se deve sem dúvida ao próprio caráter da situa-
ção atual, seu caráter ardente —, a imagem so-
freu tantos dilaceramentos, tantas reivindica-
ções contraditórias e tantas rejeições cruzadas,

756 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


manipulações imorais e execrações moralizan-
tes.” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 209)

A fotografia é sempre um objeto difícil de ser domina-


do, onde diferentes vertentes de estudo buscam delimitar
e sistematizar suas análises no sentido de traçar possíveis
caminhos metodológicos. Ao mesmo tempo, os objetos
relacionados ao universo da imagem se abrem a diferen-
tes possibilidades teóricas e metodológicas, diferentes
propostas de investigação da mensagem não verbal.
Sontag (1986) fala em gramática e uma ética da vi-
são, e fala também da ideia de reter o mundo através
da imagem fotográfica. “Ao ensinar-nos um novo código
visual, as fotografias transformam e ampliam nossas no-
ções do que vale a pena olhar e do que pode ser observa-
do.” (SONTAG, 1986, p.13) Nas palavras de Humberto
(2001, p.80), “liberada do óbvio e da visão primeira, ela
pode se tornar mais rica em possibilidades de mostrar
nuanças ou mesmo faces mais inteligentes e intrigantes
de realidades que às vezes poderiam parecer vulgares.”

Fotografia: documento ou expressão?


A crença na veracidade fotográfica nasce com o adven-
to das máquinas da Revolução Industrial. Com o capita-
lismo industrial surge a modernidade marcada por uma
racionalidade instrumental. Os dispositivos mecânicos
trabalham sob a credibilidade da sociedade moderna.

757 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Nesse sentido, a imagem da câmera fotográfica ganha o
status de retrato e documento da sociedade moderna e
industrial. Para Rouillé (2009, p. 31) “se a fotografia é mo-
derna, deve-o, sobretudo ao seu caráter de imagem-má-
quina, a partir que, sem precedentes, a tecnologia ocupa
em suas imagens.” É o surgimento de uma imagem tecno-
lógica, diferente daquelas praticadas pela mão do homem.
A ideia de semelhança sofre uma transformação e
modifica a relação do homem com as imagens. Passa-se
a ver através de um olho mecânico, assim, entre o olho
humano e a realidade se interpõe a máquina. “Captar,
apoderar-se, registrar, fixar, tal é o programa deste novo
tipo de imagem: imagem de captura funcionando como
uma máquina de ver, e renovando desse modo, o projeto
documental”, acrescenta Rouillé (2009, p. 36) O disposi-
tivo fotográfico e o processo de impressão criam a cópia
e a reprodução dos documentos.
A fotografia surge, assim, como uma apreensão da
realidade e se constitui como documento dessa realida-
de. Segundo Rouillé (2009, 63) as imagens fotográficas
“transformam-se em objetos mágicos, em cujas proprie-
dades pedem-nos que acreditemos.” Essas imagens irão
substituir simbolicamente o real através de um instru-
mento que não é mais o imaginário do homem e seus tra-
ços, mas um olho mecânico ao qual se atribui o poder de
apreensão de fatos da realidade. É a crença no dispositivo.
Essa convicção na veracidade fotográfica se perpetu-
aria por mais de um século e é certo que os documentos
produzidos pela técnica fotográfica se assemelham mui-
to mais à realidade do que aqueles fornecidos pela arte

758 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


da pintura, por exemplo. Como afirma Ciro Marcondes
(2006, p. 434), “Enquanto as imagens antigas apenas
imaginavam o mundo, as novas imagens – as imagens
técnicas – imaginam textos que concebem imagens que
imaginam o mundo.” Mas Rouillé (2009, p. 19) adverte
que “mesmo quando está em contato com as coisas, o
fotógrafo não está mais próximo do real do que o pintor
trabalhando diante de sua tela.”
Nesse contexto, a linguagem fotográfica sofre a in-
fluência de outras referências estéticas e linguagens
visuais, também da própria cultura onde ela se insere.
Nas palavras de Rouillé (2009, p. 19), “entre o real e a
imagem sempre se interpõe uma série infinita de outras
imagens, invisíveis porém operantes, que se constituem
em ordem visual, em prescrições icônicas, em esquemas
estéticos.” Se estabelece a noção entre o objeto que se vê
para se pensar em como se vê.

Fotografia e cultura
O ser humano cria e faz uso das imagens em seu pro-
cesso de conhecimento da cultura. Tais mensagens esta-
rão carregadas de sentido que serão evocados por uma
memória cultural. É o saber constituído através da cul-
tura que remete o espectador da imagem a determinados
significados. Ao mesmo tempo, pode também a mensa-
gem visual contribuir para esse saber cultural através da
visão de mundo que a linguagem fotográfica apresenta.

759 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


Nesse sentido, a linguagem fotográfica nos faz questio-
nar se é possível tornar visíveis questões sociais e humanas
que se tornaram invisíveis ao olhar cotidiano utilizando-se
de linguagens visuais contemporâneas a partir de uma foto-
grafia, sem incorrer em resultados meramente ilustrativos.

Algumas propostas metodológicas


Diante desse contexto e das questões aqui levantadas,
apresenta-se a seguir algumas possibilidades de abordagens
teóricas da imagem. Dessa forma, se apresentam possíveis
caminhos metodológicos que busquem construir conheci-
mento acerca da linguagem fotográfica e seu papel dentro do
campo da comunicação. Torna-se necessário reafirmar que
o corpus que se apresenta para a pesquisa pode revelar dife-
rentes possibilidades de discussão teórica. Portanto, é preciso
interrogar esse corpus e verificar que tipo de problema ele
apresenta e quais as perguntas a que ele nos remete. Assim, o
próprio objeto de estudo se apresenta questionador ao pes-
quisador e solicita determinados tipos de conhecimento.
Diante do documento fotográfico é preciso interrogar
a imagem em seus planos de expressão e conteúdo. O fato
expresso pela sua composição guarda representações que
falam além da realidade que lhe originou. Kossoy (2007,
p. 31) assinala que “é necessário que se compreenda o pa-
pel cultural da fotografia: o seu poderio de informação e
desinformação, sua capacidade de emocionar e transfor-
mar, de denunciar e manipular.”

760 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Reconhecendo a linguagem visual como uma articu-
lação textual, pode-se constituir um aporte teórico capaz
de analisar os processos envolvidos na produção de sig-
nificação, o processo de elaboração discursiva. Duarte
(2000, p.171) ressalta que “considerar a fotografia como
um texto implica nele reconhecer diferentes sistemas de
signos e considerar sua articulação em uma linguagem
que se proponha informar, comunicar, significar.”
Expressão e conteúdo seriam, portanto, o ponto de
partida para a análise da mensagem não verbal. Para
Flusser (1984):

“O fator decisivo no deciframento de imagens


é tratar-se de planos. O significado da imagem
encontra-se na superfície e pode ser captado por
um golpe de vista. No entanto, tal método de
deciframento produzirá apenas o significado su-
perficial da imagem. Quem quiser ‘aprofundar’
o significado e restituir as dimensões abstraídas,
deve permitir à sua vista vaguear pela superfície
da imagem. Tal vaguear pela superfície é chama-
do scanning.” (FLUSSER, 1985, p. 7)

O pensamento de Roland Barthes


Algumas propostas de abordagem das imagens são
descritas em duas obras de Roland Barthes (1915-1980).
Escritor, semiólogo, crítico e filósofo, influenciado pelo

761 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


pensamento do linguista Ferdinand Saussure, Barthes
relata em O óbvio e o obtuso (1990) e A Câmara Clara
(1984) propostas para uma possível leitura e compreen-
são da imagem que serviriam de aporte para as discussões
em torno dos planos de conteúdo e expressão da imagem.
Em A Câmara Clara (1984), Barthes aponta para uma
dualidade presente na imagem, uma de caráter mais for-
mal da imagem e a outra de caráter mais subjetivo. O
autor defende que a fotografia pode ser dotada de um
Studium e um Punctum, o primeiro mais objetivo e o
segundo subjetivo. Tais categorias buscam detectar em
que medida nos afetamos pelo discurso da linguagem
fotográfica. Para o autor, o Studium traz uma leitura
do contexto cultural e técnico da imagem, enquanto o
Punctum fala mais emocionalmente e fere o espectador
de maneira subjetiva. “[O studium], visivelmente, é uma
vastidão, ele tem a extensão de um campo, que percebo
com bastante familiaridade em função de meu saber, de
minha cultura.” (BARTHES, 1984, p. 44)
O Punctum, na definição de Barthes (1980) é aquilo
que vem me ferir e que me atravessa como uma flecha,
um apelo emocional além da perspectiva dos fatos. É um
apelo que atinge o espectador de maneira subjetiva, mas
que apela a um discurso caracteristicamente emocional.
É importante ressaltar que o retrato não é o fato.
Trata-se de uma abordagem do fato, uma recriação ex-
pressiva. Segundo Barthes (1984, p. 153), “a fotografia
dá um pouco de verdade com a condição de retalhar
o corpo. Mas essa verdade não é a do indivíduo, que
permanece irredutível; é a da linguagem.”

762 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Em O óbvio e o obtuso (1990), o autor aponta para
uma coexistência na imagem de uma mensagem cono-
tada e outra denotada, o paradoxo fotográfico. A conota-
ção ocorreria, então, não ao nível da própria mensagem,
mas pelo processo de produção e recepção. Comporta-
ria assim significantes e significados que, segundo Joly
(1996, p. 75), estariam vinculados ao “saber preexistente
e compartilhado do anunciante e do leitor.”
Sobre a pura representação analógica se desenvolve-
riam valores estéticos ou ideológicos. “O primeiro senti-
do não recorreria ao código pelo seu caráter analógico e
contínuo. Por outro lado, o código do sistema conotado
seria constituído por uma simbologia cultural ou uni-
versal, por uma retórica de época, por uma reserva de
estereótipos.” (DUARTE, 2000, p. 170)

Umberto eco e os cinco níveis de compreensão da imagem


Umberto Eco em A Estrutura Ausente (2003)
apresenta um modelo de articulação da mensagem
visual em cincos níveis distintos: icônico, iconográ-
fico, tropológico, tópico e entimemático. Seriam ní-
veis de codificação das mensagens:
1) O nível icônico seria a forma em que a imagem se
apresenta. O nível da mensagem literal e que é perce-
bida à primeira vista.
2) No nível iconográfico, o que a imagem vai deno-
tar. Nesse nível a mensagem passa por um processo

763 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


histórico e cultural de análise, um modo de interpre-
tação pessoal adquirida ao longo do tempo. Se veri-
fica, por exemplo, o contexto da imagem, as cores da
composição e outros aspectos.
3) No nível tropológico, as figuras de linguagem
identificáveis na imagem. Tais figuras de lingua-
gem são mecanismos argumentativos da mensa-
gem. Dentre as figuras mais recorrentes pode-se
apontar a metáfora, a metonímia, a antonomásia
e a hipérbole.
4) No nível tópico, engendra as premissas. Decorre
de um senso comum que representam valores comu-
mente aceitos. Estaria na esfera da ideologia.
5) No nível entimemático, as conclusões lógicas. Pre-
missas ocultas em uma linguagem verbal.

Tanto as propostas apresentadas por Roland Bar-


thes em O óbvio e obtuso (1990) quanto aquelas
enunciada na obra de Umberto Eco em A Estrutura
Ausente (2003), são aplicadas à propaganda publici-
tária pelos autores. Mas, considerando-se que a ima-
gem de imprensa não se apresenta como uma estru-
tura isolada e sim inserida em um conjunto para o
qual concorrem texto verbal e não verbal, tais abor-
dagens são altamente relevantes para a construção
do método de análise da fotografia e suas constru-
ções discursivas.

764 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas


Relação entre imagem e texto
A relação texto-imagem pode servir de ancora-
gem para a mensagem não verbal. Ao mesmo tempo,
a imagem pode duplicar as informações do texto por
um fenômeno de redundância da mesma forma que o
texto pode acrescentar informações inéditas à imagem.
A mensagem linguística pode orientar a interpretação
do espectador. Assim, a informação visual jornalística
dificilmente se apresenta como uma estrutura isolada,
visual e textual estabelecem relações na construção do
discurso da imprensa.
A imagem é polissêmica e nela poderá coexistir, sob
diferentes aspectos, uma cadeia de significados, sendo
que alguns poderão ser escolhidos em detrimento de
outros. Nesse sentido, o texto pode conduzir em dire-
ção a determinados sentidos. Para Barthes (1990) há um
processo de sintaxe entre texto e imagem que não pode
ser ignorado. A legenda, por exemplo, pode conformar
o olhar e induzir a intelecção.

Conclusões
O fotojornalismo está presente em nossa cultura
como uma janela que se abre ao enquadramento téc-
nico da realidade. Entre a prática de imprensa, o fazer
fotográfico e a preocupação com a formulação de um
conhecimento científico sobre a linguagem visual, o

765 Dinâmica das Práticas Acadêmicas


pesquisador é desafiado a compreender as fronteiras
que separam e unem o pensamento teórico. “O avanço
dos sistemas de criação e distribuição das imagens no
mundo, fez com que elas se desprendessem da relação
de similaridade com o visível e se aproximasse das rela-
ções sociais e culturais que dão significação às imagens.”
(CAMARGO, p. 112, 2007)
Analisar as construções e representações expressas
através das imagens deve contribuir ao campo de estudo
da comunicação e, portanto, ao campo das ciências sociais.
Identificar os processos de construção da informação ima-
gética, suas relações com o texto e a imagem podem ajudar
a compreender o papel cultural da fotografia como meio
revelador de novas formas de se “ver” o mundo.
Diante de um vasto campo teórico consagrado,
ainda é possível estabelecer novas possibilidades de
investigação. Criar, assim, formas próprias ao corpus
que compõe o objeto de pesquisa, o que ele solicita
de conhecimento ao pesquisador. Assim, seu trabalho
parte do princípio da observação de um seu recorte
de mundo e para empreender o trabalho de constru-
ção de um pensamento científico de uma linguagem
que foi por muito tempo negligenciada.

Referências
AUMONT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papirus Edi-
tora, 1993.

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768 Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

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