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HISTORIA DA CIENCIA: OBJETOS, METODOS E PROBLEMAS History of Science: purposes, methods and problems Lilian Al-Chueyr Pereira Martins ' Resumo: © objetivo deste artigo ¢ auxiliar o trabalho de pessoas que estio se iniciando na pesquisa de Histéria da Ciéncia, especialmente em relagio a um determinado tipo de trabalho a que nos dedicamos. Este tatard da escolha de um cema adequado de pesquisa, dos tipos de fontes encontradas em Histéria dda Cigncia e de alguns problemas encontradas em trabalhor de Histria da Cigncia, Este extudo levow A conclusio de que s6 se apreende a fazer pesquisa em Histéria da Cigncia a partir da pritica e que um bom historiador da ciéncia se constréi a longo prazo. Unitermos: mecodologia da pesquisa em Histétia da Ciéneia: fontes primétias; fontes secundstias. Abstract: The aim of this paper isto help people who are starting History of Science research, expecially con cerning a definite kind of work 10 which we dedicate ourselves. It deals with the choice ofa suitable research subject, the kinds of sources in History of Science, as well as some problems which may be found in the works com History of Science. This study leads tothe conclusion that beginners learm how to da History of Science research though the praxis and that a perton becomes a good historian of science in the long term. Keywords: History of Science research methodology: primary source: secondary rource. Introdusao Este trabalho se destina a todos aqueles que estio iniciando uma pesquisa em Historia da Cigncia ou que desejem fazer uma tese em Histéria da Ciéncia ou temas correla tos, particularmente Aqueles que optarem pelo tipo de trabalho em Histéria da Cigncia a que vamos nos referir Por outro lado, acreditamos que os aspectos discutidos neste artigo poderio também ser titeis para aqueles que se dedicam & drea de EducagSo ou a0 Ensino de Ciéncias e que fazem uso de trabalhos de Histéria da Ciéneia seja em sua propria pesquisa ou em suas aulas. Sabe- se que trabalhos de Histéria da Ciéncia muitas vezes contém crtos de varios tipos ¢ tomar conhecimento dos procedimentos necessérios em uma pesquisa de Histéria da Ciéncia pode auniliar na selegio de bons trabalhos “Muitos estudiosos vém tentando definir 0 que ¢ Histéria da Ciencia ou discutindo se seria preferivel a denominagio Histéria da Ciéncia ou Histérias das Ciéncias, Tratam-se de discusses complexas sobre as quais nio existe um consenso e no pretendemos nos concen- trar nelas. Em um nivel fundamental, os fildsofos da ciéncia vém debatendo hé muito tempo " Prafesene do Programa de Eudes Pli-Graduades om Hiitria da Ciéncia, PUCISP: Peigusadora do Grape de Hisiria¢Teora da Ciéncia (GHTC), Unicanp: Paguitadora do CNPg. E-mail acpmr@ual com-by 2 Cortamente id wrias metadalgis de pesquisa em Htnia da Ciencia ea pripria“metodoloia de perquta em Hira da Ciincia” tom uma bisa ver MARTINS, 2001, « referencia citadat naguele raha). Tai metadolgia podem ter extras dos divers erudeshizriegrdfce que vm re sucedendo ro tempo, Enoetant, no exter mites bras pecfcas bre metedologia de peaquiva em Histria da Ciénsia dsponiveis, Uma boa obra que tate tombim des saspecas do Iino de Helge Kragh (1989). Uma outra obra de referencia que pausbrlta wa visdo de diversas linhas Iistoriogrficas em Histinia da Cincia a de OLBY, CHRISTIE & HODGE (1990), 305 Choma & Bidussdo, 11, n.2, 9.3056 7, 2005 Lilian Al-Chueyr Pereira Martins acerca dos critérios que vio delimitar o que é ciéncia ¢ 0 que nio é ciéncia e ainda nio che- garam a um acordo. Podemos, entretanto, fazer algumas afirmagées a respeito da Histéria da Ciéncia, Em primeiro lugar, que se trata de um estudo metacientifico ou de segundo nivel, uma vez que se refere a um estudo de primeiro nivel que é a ciéncia. Ha outros estudos metacientifi- cos que nio si0 Histéria da Ciéncia, como, por exemplo, a Psicologia da Ciéncia, a Filosofia da Ciéncia, e a Sociologia da Ciéncia. A Histéria da Ciéncia, em um primeiro nivel, é descti tiva, porém deve utilizar a terminologia adequada que normalmente ela retira da Filosofia da Cigncia. Entretanto, nao deve permanecer somente na descrigéo, mas deve ir além, oferecen- do explicagies e discutindo cada contribuigo dentro de seu contexto cientifico. Além disso, consideramos também que a Histéria da Ciéncia apresenta uma metodologia prépria, que no é nem a metodologia da Histéria e nem a metodologia da Ciéncia, uma vez que ¢ um tipo de estudo de natureza diferente dos dois anteriores (ver a respeito MARTINS, 2001, p. 37-40). Ademais, deve-se levar em conta que pata fazer um trabalho de Histéria da Ci € preciso um treino que envolve virios estudos: em metodologia de pesquisa em Histéria da Ciéncia, em epistemologia, um conhecimento dos conceitos da ciéncia com a qual se esta lidando, além de um conhecimento histérico do periodo que esté sendo estudado. Assim, nao basta serum matemético ou um historiador pata fazer uma pesquisa em Histéria da Matematica, pois as técnicas empregadas de um trabalho em Historia da Ciéncia sio diferen- tes daquelas utilizadas em Matematica ou nas pesquisas histéricas de outros tipos. Qualquer que seja a formacio universitiria que o individuo tenha obtido, ele deverd ter uma prepara fo longa para que se tore um historiador da ciéncia competente. Um bom historiador da Giéncia se constr6i a longo prazo. Hi diversas subareas ¢ varios tipos de enfoques distintos em Histéria da Ciéncia, ‘Vamos nos referir aqui a duas posstveis abordagens. Uma abordagem conceitual (interna, inter nalista), discute os fatores cientificos (evidéncias, fatos de natureza cientifica) relacionados a determinado assunto ou problema. Procura responder a perguntas tais, como se determinada teoria estava bem fundamentada, considerando o contexto cientifico de sua época, Por exemplo: A teoria de evolugio" de Lamarck estava bem formulada e fundamentada para sua época? Uma abordagem nio-conceicual (externa, externalista), lida com os fatores extracient ficos (influéncias sociais, politicas, econémicas, uta pelo poder, propaganda, fatores psicologicos). Por exemplo: se uma teoriaestava bem fundamentada para sua época ¢ foi rejeitada, o porque da tejeigao da mesma diz respeito a fatores nio-conceituais. Por que a teoria de evolugio de Lamarck foi rejeitada em sua época jé que estava bem fundamentada? ‘Um estudo completo envolveria os dois tipos de abordagem. Entretanto, embora em termos praticos tudo ocorta a0 mesmo tempo, ou seja, 0s processos de proposta/fundamenta- Gio eo de aceitagio ou rejeigzo nfo sejam independentes um do outro, esta distingio pode proporcionar maior clareza & andlise de Histéria da Ciéncia. Assim é possivel, para efeivo de estudo, dividir 0 processo em duas partes ¢, normalmente, um estudo nao-conceitual deve ser precedido de um estudo conceitual bem-feito Os dois tipos de pergunta que estio colocados nos parigrafos anteriores, dio origem a dois tipos de pesquisa que vamos procurar exemplificar por meio da Teoria de Evolugio de Lamarck. Para responder & primeira pergunta, teremos que selecionar inicialmente alguns aspectos da teoria de Lamarck em sua obra original, j4 que cla lida com questdes que vio desde ° Ember Lamarck io wilco term evolu para re frre que le chamon de su tera poste erm tnha soma consta diferente data, poderes dizer gue props o que camsderarlaesatualent cote nde uma teria decvolugao E nee rrtide gue wisaems te ferme nee at 305 Gitta Becapio, m2 9, S05-317, 2005 Histéria da cigncia: objetos, mécodos ¢ problemas a origem da vida até 0 surgimento das faculdades superiores no homem, abrangendo vitias éreas de estudo como a Zoologia, a Botinica, a Gcologia, a Quimica etc. Se cle escreveu varias obras onde apresentou diversas versGes de sua teoria, teremos que examinar todas, inclusive a tlti- ma, onde aparecerd a versio final de sua teoria. Tendo, por exemplo, escolhido a parte que trata da Zoologia sem lidar com o limite superior da escala animal, que ¢ © homem, vamos procurar verificar, em relagio aos aspectos escolhidos (por exemplo, origem da vida/geragio espontinea; escala animal; espécies; as leis da transformagio dos animais), como Lamarck fundamentava suas idéias, em que cvidéncias ele se bascou ¢ se havia lacunas metodolégicas (coisas que ele poderia ter feito em sua época e nio fez). Um dos problemas das teorias de evolusio € a apresentagio de exemplos de formas intermedidtias entre espécies fsseis antigas e espécies atuais. Lamarck tinha & sua disposigio virias formas intermediérias entre conchas fsseis e atuais e no utilizou esses exemplos para fundamentar sua teoria. Sob o ponto de vista epistemolégico empirista (que era a concepgio de cigncia que ele defendia), esta pode ser considerada uma lacuna metodolégiea. Por outro lado, vamos analisar também as alternativas de teorias de evolugio concebidas um pouco antes ou na época de Lamarck e indicadas por seus coetineos ou historiadores da cigncia tais como as teorias de De Maillet e Robinet para verificar se elas eram mais ou menos coerentes que a de Lamarck. Ao fazer isso, verificamos que a proposta de Lamarck, embora apresentasse algu- ‘mas lacunas metodolégicas, era superior a todas as outras alternativas ~ se é que elas poderiam ser chamadas assim, pois algumas delas poderiam ser consideradas obras literdrias ou metafisi- «as que nao tinham como ponto de partida um estudo de Histéria Natural, como no caso de Lamarck. Assim, estudando as publicagdes cientificas primérias, pudemos responder & primei- za pergunta; ou seja, a teoria de Lamarck estava bem fundamentada para a época. Fsta respos- ‘a nos leva 4 segunda pergunta: se nZo foram fatores de natureza conceitual, quais fatores entio teriam contribufdo para que a teoria de Lamarck fosse rejeitada, na época? Para respondé-la, teremos que fazer um estudo de outro tipo, porque em geral esses fatores (politicos, religiosos, sociais, luta pela autoridade no campo, propaganda), que sio chamados nio-conceituais (ou extracientficos), nfo transparecem nos textos cientificos. Para detecté-los, seria preciso estudar a correspondéncia de Lamarck com outros estudiosos de sua época ou de outros estudiosos influences que comentassem sobre Lamarck ¢ sua teoria, ler textos que nunca foram publica~ dos, analisar 0 contexto social, politico ¢ religioso da época. Para ter acesso a todas essas infor- mages, seria necesséria uma viagem ao exterior, incluindo visitas a bibliotecas e arquivos, por ‘um periodo relativamente longo, pois esse tipo de material inédito nao esté disponivel aqui no Brasil. Além disso, seria preciso um treino do pesquisador para que ele pudesse trabalhar com esses documentos (ver MARTINS, 1993) A seguis, daremos algumas sugestdes que poderso auxiliar a encontrar um bom tema de pesquisa, comentaremos, depois, acerca dos tipos de fontes encontradas em Histéria da Cincia e, finalmente, rataremos de alguns problemas encontrados em trabalhos de Histéria da Ciéncia Como se aprende a fazer uma pesquisa em Histéria da Cigncia? existe uma formula mégica ou receita infalivel para fazer uma boa pesquisa em Histéria da Ciéncia. Em diversos momentos, o pesquisador vai refletir sobre 0 problema estuda- do € procurar novas fontes. Ele vai precisa fazer levantamentos, selecionar ¢ localizar documentos, buseéelos ou obter edpias deles e analisélos. Precisard também esctever, elaborar uma argumen- tagio, discutirtrabalhos historiogréficos anteriores sobre o mesmo assunto ¢ fundamentar bem. 307 Ghemia & Balas, 11, n. 2p, SOS-317, 2005 Lilian Al-Chueyr Pereira Martins suas conclusdes. Tudo isso exige um trabalho intenso, cansativo, e pressupde o conhecimento de técnicas de pesquisa que o iniciance precisa aprender. Por outro lado, também nio existe uum orientador que consiga transformar seu orientando em um bom pesquisador.E. preciso um. esforgo de ambas as partes Uma forma de melhorar nosso trabalho ¢ expé-lo as criticas construtivas de nossos pates, iniciando pelos préprios colegas, antes de apresentéclos para um piblico mais amplo e especializado como 0 que se encontra em congressos, por exemplo. Como tudo na vida, a Histéria da Cigncia tem modismos. A maioria deles, entre- tanto, como mostra a prépria Histéria da Historiografia da Ciéncia, tem duragio curta. Até 0 individuo se tornar apto a publicar trabalhos nessa nova tendéncia desenvolvida em ousros pat- ses, cla poderd jé estar sendo substicuida por outra. Assim, deve-se ter cuidado com isso. Por exemplo, nas décadas de 1960-1970, grande parte dos historiadores defendia que a Hist6ria deveria abandonar a neutralidade e defender uma ideologia (a marxista). J4 na década de 1980, © marxismo foi questionado c juntamente com cle a Histéria idcolégica, havendo um retorno A biogratia, 20 estudo da Histéria politica, administrativa, eligiosa e constitucional (ver a res- peito em MARTINS, 2001, p. 40-41) Como encontrar um bom tema de pesquisa? Normalmente, uma pesquisa investiga uma questo dentro de um assunto. Por exemplo: O que levou Dalton a supor que a molécula de agua é constituida por dois 4tomos de hidrogénio € um de oxigénio? Neste exemplo, 0 “assunto” é a Teoria Atomica de Dalton e a “questio” é a pergunta colocada acima. © assunto de pesquisa precisa ser delimitado. Nao se pode fazer uma pesquisa sobre a Histéria da Matematica como um todo, Quanto mais restrito for o assunto, mais fécil sera dominé-lo. Entretanto, se o restringirmos demasiadamente, poderemos correr 0 risco de desenvolver uma pesquisa pouco relevante ¢ que no provoque o interesse dos leitores. E aconselhavel que o pesquisador iniciante evite assuntos que jé foram excessivamen- te explorados por outros historiadores, reservando-os para quando tiver mais experiéncia, quando terd maiores possibilidades de acrescentar algo original a0 que ja fi feito. Assim, em ver de estudar a Teoria de Evolugao de Darwin ou a mecnica de Newton, por exemplo, assun- tos que jd foram bastante explorados, poderia estudar assuntos que foram menos abordados, ‘ais como as idéias evolutivas de Ernst Haeckel ou a mecdnica de Lagrange. No entanto, é pre ciso tomar cuidado para nio cair no extremo oposto: estudar um desconhecido, sobre 0 qual pode nem sequer existir uma documentagio que possiilite a pesquisa. ‘A “questio” a ser investigada depende, em grande parte, do tipo de enfoque adotado. Dentro de um assunto qualquer, pode-se formular uma infinidade de questées diferentes, que serio relevances ou nio dependendo da linha de trabalho adotada. Hi, no entanto, algumas regras gerais bastantes evidentes, Em uma pesquisa, nao faz sentido repetir coisas que jé foram feitas, ou chegar a conclusbes jé accitas por todos, sem acrescentar nada de novo, Uma pesqui- sa deve procurar trazer novos conhecimentos histéricos ou criticar e corrigir conhecimentos antigos. Em geral, a questio € guiada por uma hipétese de trabalho ou por uma conjecuaini- cial — por exemplo, a suposigio de que certas descrigbes histéricas anteriores esto crradas Galileo nunca fez. 0 famoso experimento da Torre de Pisa) ou de que hi uma conexio, que nunca foi sugerida antes, entre dois acontecimentos histéricos (a relagéo entre a fisica de Newton e seus estudos sobre religito ¢ alquimia). Antes de se conhecer um assunto ¢ estudar os trabalhos historiogrdficos a respeito dele, é praticamente impossivel escolher uma boa ques- ‘Go, O pesquisador deve fazer um levantamento dos trabalhos historiogrificos disponiveis, a 308 Gitta Bdecapo, Um. 2 9, $05-817, 2005 Histéria da cigncia: objetos, mécodos ¢ problemas respeito do assunto que deseja estudas, ¢ examinar os mais relevantes pata ter uma idéia a res- peito do que jé foi estudado ¢ para tentar localizar algum tema expressivo para sua pesquisa. E desejdvel também que se conhega o assunto cientéfico cuja Histéria se quer pes- quisar. No entanto, muitas pessoas se sentem atraidas por temas com os quais nao possum familiaridade, Por exemplo: uma pessoa que tem um bom conhecimento de botinica pode senti-se atralda momentaneamente por estudar a Histéria da astronomia, um assunto que des conhece totalmente. Isso pode levar a resultados desastrosos. E preciso também considerar que 6s perfodos histéricos mais recentes exigem mais pré-requisitos cientificos, enquanto os perfo- dos mais antigos exigem muitos pré-requisitos filos6ficos. Suponhamos que um pesquisador tenha interesse em estudar a lei da conservagio da energia. Como se trata de um assunto bastante vasto, ele poderia restringir sua investigagio aos estudos de Joule sobre a conservacio da energia. Este poderia ser um bom objeto de estudo; mas e a questio? Para ele encontrar uma pergunta relevante, teria que ler um bom mimero de trabalhos de Joule, assim como um bom nimero de estudos historiograficos sobre a conserva- io da energia. ‘Ao se escolher um determinado assunto, deve-se levar em conta alguns aspectos: +O iinteresse pessoal pelo assunto. Nao ¢ conveniente estudar um assunto que nao seja atraente ao pesquisador ou que ele deteste. E prefertvel escolher algo que esteja dentro de uma érea conhecida pelo investigador. Por exemplo, alguém que tenha um bom conhecimento de botanica poderd escolher algum aspecto dentro da Hist6ria da botinica que o interesse. +O dominio que 0 pesquisador tem ou pode vir a adquirir a curto prazo sobre aquele assunco. Deve-se evitar dedicar-se a alguma coisa totalmente desconhecida ‘ou muito distante de seu treino prévio, Por exemplo, se a pessoa nao tem um domi- rio téenico dos conceitos da meciniea quantica, nao deve pretender estudar 0 desenvolvimento dos conceitos da mecinica quantica * Deve-se evitar tanto assuntos muito vastos como assuntos muito restritos. Um assunto muito amplo é dificil de ser dominado por uma pessoa no decorrer de sua vida de pesquisador. Por exemplo, uma pesquisa sobre a Histéria de toda a botanica éexcessivamente ambiciosa e nao pode ser completada de forma adequada em pou- cos anos. Por outro lado, um assunto restrito demais, como os conhecimentos boti- nicos apresentados em Os Lusiadas, de Camées, pode nao proporcionar elementos suficientes para o desenvolvimento de uma longa pesquisa. Se 0 pesquisador tem um prazo definido (dissertagio, tesc, projeco financiado etc.), deve ser modesto ¢ esco: her um assunto resttito, sem cair no exagero. + E descjavel que o pesquisador iniciante escolha um assunto que também desperte © interesse de outros historiadores ou do pblico em geral. + Avexisténcia ¢ acesso aos recursos documentais. Se nao houver documentos no hé ‘como fazer uma pesquisa documental. Seria muito interessante, por exemplo, estudar © atlas anatémico feito por Aristételes. Infelizmente, trata-se de uma obra perdida, € ‘existe uma probabilidade minima de que se encontre, futuramente, algum fragmento desse trabalho. Nao é, portanto, um bom tema de pesquisa. Ou entio, 0 estudo de documentos escritos em um idioma que o pesquisador nao domine. Hi virios tipos de competéncias necessitias para se fazer pesquisa sobre determina- do assunto, Pode ser necessério conhecer muito bem um certo perfodo, um certo pais, ou um 305 Ghemia & Balas, 11, n. 2p, SOS-317, 2005 Lilian Al-Chueyr Pereira Martins determinado contexto cultural ¢ social. Pode ser necessitio ter o dominio sobre determinados idiomas para poder escudar documentos relevantes. Seo investigador nunca estudou Astronomia, néo deve escolher este assunto para sua pesquisa, Afinal, sio mais de rés mil anos de Histéria e pré-requisitos. Se nio domina o fran- cés, nao deve optar por estudar as concepsdes médicas de Claude Bernard. Até seria possive fazer isso a longo prazo, mas € preferivel se dedicar a fazer algo utilizando aquilo que jé se sabe Tipos de fontes de pesquisa em histéria da ciéncia ‘Normalmente, em uma pesquisa em Histéria da Cigncia, sio utilizados documentos de varios tipos. Costuma-se classficé-los em fontes primérias (material da época estudada escrito pelos pesquisadores estudados) ¢ fontes secundirias (estudos historiograticos ¢ obras de apoio“ a respeito do perfodo ¢ dos autores investigados). Em geral, é simples distinguir um tipo de outro. Por exemplo, se um historiador esté estudando os trabalhos Buffon onde aparecem, suas idéias da hereditariedade, entio as obras de Buffon e sua correspondéncia, assim como as obras cientificas' do periodo, serio consideradas como fontes primétias. Livros e artigos histo- riograficos recentes sobre Buffon e heredicariedade s As vers, podem surgir aguas divides. Uma biogral ras e se fosse uma autobiografia? Embora geralmente a distingZo entre fontes primarias ¢ secundarias scja simples, ha casos em que esta vai depender do objeto de estudo da pesquisa. Por exemplo, se 0 objeto de estudo for o sistema de comunicagio entre os membros da Royal Society, todas a correspon déncias entre seus membros serio fontes primérias. Mas, se 0 objeto de estudo for a obra de Francis Bacon, os comentirios biogrificos eventualmente encontrados nessa correspondéncia poderio ser considerados como fontes secundiias. “Tanto as fontes primérias quanto as secundirias podem ser “publicadas” ou “inéditas” Suponhamos um livro escrito por Cuvier. Fle certamente eserevet 0 original a mao e s6 depois fcorreu. sua impressio. Certamente ser bem mais simples o pesquisador ter acesso & forma impressa ou, em alguns casos, a uma edigio fac-similar feita posteriormente. Se 0 conteiido do ‘manuscrito e da versbes impressas for exatamente 0 mesmo, o pesquisador pode utilizar qualquer ‘uma delas. Entretanto, se houver diferengas entre o original e 0 trabalho publicado é convenien- te fazer uma consulta a ambos. Os “originais’ sio documentos dirctamente produzidos por um autor, geralmente Xinicos. Sio comumente chamados de “manuscritos”, mesmo quando sio datilografados ou digitados.* Algumas vezes, a partir do original pode ter sido feita uma “cépia’ manuscrita (por um secretdrio ou copista, por exemplo). Quanto mais pudermos nos aproximar dos “originais’ de um autor, mais fidis pode- zemos ser em relagdo a seu trabalho. Assim, o pesquisador deve tomar cuidado com cépias de manuseritos antigos, radugdes, citagdes e descrigoes indiretas. Em geral, em e6pias manuscri- tas de originais sio introduzidos ertos e omissbes. No caso de manuscritos antigos, como os de Platio, Arist6teles ou Epicuro, normalmente eram feitas virias cépias. Entretanto, os copistas ruitas vezes faziam anotagées suas ¢ incroduziam sua prépria interpretagio ou idéias nos ori- ginais. Hé muitos casos (como os dos pensadores da Antiguidade) em que o original se perdew considerados como fontes secundatias. de Buffon seria uma fonte secundiéria; “Bas obrar podem er trabalhos de ilar e bidgrafon ® Sab se que o terme ‘ienifio” fos proposto durante o rouls XIX. Extemes nor reerinds agai a ciemtifico mo rentide daquilo que poderia rer coniderado come cibncia de acord com o context da epoca. E claro que conformea iso pit temoligca que 1 ado, 0 ue foi propota por Buffon poderd ser coniderado coma tendo ciénca ou nda Acd hoje, mies revicas slictam gue o autores envier 0 manaserits dos trabalos em ts vias 310 Gitta Becapio, m2 9, S05-317, 2005 Histéria da cigncia: objetos, mécodos ¢ problemas € 56 restaram cépias. Caso o pesquisador vé utilizar um manuscrito desse tipo, deve comparar vias c6pias; e se s6 restou uma tinica cépia, € preciso utilizé-la com a devida cautela O historiador nunea deve confiar inceiramente em uma tradugio, pois muitas vezes nla so introduzidos erros. Por exemplo, trabalhar com uma tradugao para a lingua portugue- sa de um texto de Descartes no é 0 mesmo (nfo tem 0 mesmo valor) que trabalhar com 0 texto em seu idioma original. £ problematico basear-se apenas em uma citagio de um original encontrada em um trabalho de um historiador. Suponhamos, por exemplo, que o pesquisador procure descrever a concepgio de Darwin de selegao natural sem ter lide nenhuma obra do préprio Darwin (nem traducao), utilizando somente aquilo que foi escrito a respeito por outro historiador, sem consultar 0 Origin of species. Mesmo que este historiador apresente varias cita- ges desta obra, estas devem ser consideradas com cautela pois frases transcritas podem ter sido retiradas de seu contexto e utilizadas de forma distorcida. Por outzo lado, deserigées indiretas de um trabalho (ou seja, aquilo que nio aparece entre aspas ou em citages destacadas no texto ou com fonte diferente daqucla que aparece no texto) nao devem ser utilizadas como informa- 40 em um trabalho de pesquisa. E desejavel consultar o original. Mas, se 0 historiador nio conhece todos os idiomas e nem tem acesso a todos os otiginais, 0 que ele pode fazer? Ele deve procurar, na medida do posstvel, aproximar-se dos originais. Se no conhece o idioma em que esté escrito 0 texto, deve trabalhar com virias tra- dugées do texto relevante ¢ comparé-las. Por exemplo, a0 estudar Aristételes, deve comparar as cradugdes para o inglés de Peck, Ross ¢ Oggle. Quando possivel, deve escolher tradugées que tenham sido revisadas pelo proprio autor, como, por exemplo, as tradugées para o inglés dos trabalhos de Liebig. Se tiver que levar em conta descriges indiretas, deve comparar des- crigées de virios historiadores. Porém, 0 centro do trabalho deve ser desenvolvido a partir de fontes primérias inéditas ou publicadas. Em geral, quando se fala em fontes e documentos, pensa-se logo em textos escritos. Hi, no entanto, documentos de outros tipos. Para a histéria contemporinea da ciéncia, pode ser relevante produzir ¢ utilizar gravayées em fita (histéria contemporinea). Pode ser ttil, con- forme o trabalho, utilizar pincuras, desenhos ¢ fotos (material iconogréfico), instrumentos € materiais de laboratério, estudar prédios antigos (arqueologia cientifica) etc. Para esses mate- riais, aplica-se a mesma regra: quanto mais proximos do original, melhor. E til dispor da reprodugio de um desenho de Hooke publicado por um historiador; é melhor, no entanto, dispor da prépria obra de Hooke onde esse trabalho foi publicado, ¢ melhor ainda é ter aces- s0 a0 desenho original feito por ele. Embora geralmente uma pesquisa do tipo que estamos tratando requeira uma con- sulta tanto a fontes primarias como a fontes secunditias, ha outros tipos de estudos que nao requerem necessariamente uma consulta a fontes primdrias. Ea pergunta feita inicialmente que vai determinar as fontes que devem ser consultadas. Por exemplo, para responder 8 per- gunta: “Galileo foi o criador do mécodo experimental?” ser necessério consultar varias fon- tes primérias e ler 0s trabalhos de Galileo. Mas, se a pergunta inicial for: “Houve influéncia do puritanismo na revolusio cientifica do século XVID" nao é necessatio estudar os préprios trabalhos ciencificos do século XVII, pois basta fazer uma consulta a enciclopédias e obras que contenham as contribuigées dos estudiosos da época e verificar a qual teligiio ou corrente religiosa estavam vinculados Pesquisa bibliografica ‘Como ja dissemos anteriormente, uma pesquisa em Histéria da Ciencia do tipo a que nos dedicamos deve utilizar fontes primétias e secundétias, Uma boa pesquisa deve ter aI Ghemia & Balas, 11, n. 2p, SOS-317, 2005 Lilian Al-Chueyr Pereira Martins como ponto de partida um levantamento bibliogrifico 0 mais completo possivel. Mas como localizar essas fontes? Utilizando fontes tercidrias ~ os instrumentos bibliogréficos para busca de fontes primérias ¢ secundarias — como as que descreveremos a seguir. Podemos distinguir dois tipos de pesquisa quanto & busca de fontes. © primeiro deles é 0 que chamamos de Histéria da Ciéncia internacional, que inclui os paises da Europa, 0s Estados Unidos o Canadé. O segundo corresponde & Histéria da Ciéncia no Brasil e em Portugal, que ¢ geralmente chamada de Histéria da Ciéncia periférica No caso da Histéria da Ciéncia internacional, para as fontes secundérias, um bom instrumento de busca éa “Current bibliography” da revista Lis. Anualmente, esta revista publi- ca uma bibliografia contendo referéncias de artigos, livros, capitulos de livros ¢ teses recentes de Histéria da Ciéncia, Consultando-se, por exemplo, os iltimos dez anos da “Current biblio- graphy”, pode-se encontrar a maior parte dos artigos ¢ livros relevantes escritos pelos historia~ dores da ciéncia, na ttima década, sobre os mais diversos assuntos ¢, eventualmente, alguma reedigéo ou tradusio (de fontes primérias). Ha bibliotecas no Brasil que possuem colesbes, infelizmente nem sempre completas, desse periédico. Para publicagdes anteriores a esse perio do, pode ser consultada a “Cumulative bibliography” da Iris (WHITROW, 1976-1984; NEU, 1980-1985; NEU, 1989) que comegou a ser publicada na década de 1910. Atualmente, os sécios da History of Science Society podem também consultar uma base de dados que contém informagées desde 1975.’ Para alguns assuntos especificos, como a Histéria da tecnologia e a Histéria da medi- cina, existem a edigio anual da revista Tecnology and Culture e a publicagio anual especttica Bibliography of the History of Medicine. Ambas foram incorporadas & base de dados da History of Science Society. Dependendo do tipo de pesquisa, pode ser dtil consultar obras de referéncia biblio: grifica gerais sobre Histéria, como o Historical Abstracts, sobre Sociologia, como Sociological Abstracts, sobre Filosofia, como o Philosopher's Index, ou sobre humanidades, como o Humanities Index. Para um levantamento bibliogrifico de livros sobre Histéria da Cincia relativos a um determinado assunto, pode-se recorrer & busca de catélogos das melhores bibliotecas do mundo, dispontveis em rede, como os catilogos da Library of Congress, nos Estados Unidos, ou 0 catélogo da British Library, na Inglaterra." Hi também livros especialmente dedicados a bibliografia em Histéria da Ciencia geral ou especifica, como a Information sources in the history of science and medicine, de Corsi etal; a History of science and technology: a select bibliography for students, de Rider ow a Reference books for the historian of science: a handlist, de Jayardene, por exemplo.” Caso o pesquisador esteja estudando um cientista especifico (como, Charles Lyell, por exemplo), poderd consular o Dictionary of sciensific biography, editado por C. C. Gillispie. Deve também procurar biografias antigas ou obitustios Depois de cer obtido um certo ntimero de referéncias bibliogréficas, 0 pesquisador pode selecionar aquelas que julgar serem mais relevantes. Depois deverd localizar as que exis- tem no Brasil ¢ procurar obté-las por meio do Comut (Brasil), no caso de artigos. "0 enderego elewinice da Vlstory of Science Society & hupitiowwlsonlinearg! ¢ 0 do History of Science Technology, and Medicine Database & brp:leurcha rl o7 © 0 atualenderge elerinice do atdlgo om line da Library of Congress ¢huploaaleg ln gone @ ender eletrinice dd eatdogo da Brivsh Library & huprfiunu: bl abeaaloguebipe bem As refrtncias completes desta obras encontnam-se na biblingrafia final dete ata sz Gitta Becapio, m2 9, S05-317, 2005 Histéria da cigncia: objetos, mécodos ¢ problemas © que o pesquisador nio encontrar nas bibliotecas brasileiras ¢ for relevante, pode- 14 ser pedido pelo British Lending Service da British Library (BLLS) ou pelo Centre National de Recherche Scientifique (CNRS), mas isto deve ser feito com moderagao, pois trata-se de um ser vigo dispendioso. E como fazer um levantamento de fontes primérias? Um dos modos é pelas das fontes secundiétias. Por exemplo, um artigo ou livro sobre Lamarck iré, provavelmente, conter uma lista de obras escritas por Lamarck. Porém, podem hhaver obras primérias importantes de um autor que néo tenham sido mencionadas pelo historia dor em seu trabalho, Neste caso, pode-se fazer uma busca nos catélogos das grandes bibliotecas internacionais, tanto impressos (encontrados nas bibliotecas) como disponiveis na internet, quer pelo nome do autor, quer pelo assunto, Outro modo de localizar livros antigos sobre determinado assunto € por meio de bibliografias e obras de referéncia antigas, como, 0 Manuel de bibliographie, de Males, ow a Bibliographie astronomique, de Lalande, elaborada no in{cio do século XIX, sobre livros e artigos de astronomia publicados até sua época, ou a Bibliographia geologica, de Moution, por exemplo". Um terceiro modo é por de catdlogos impressos de grandes bibliotecas, que nao esto disponiveis na internet, como 0 National Union Catalog (NUC), que contém fichas catalogrsfi- «asa localizasio de livros publicados até 1952, existentes nas principais bibliotecas dos Estados Unidos (Library of Congress, 1968-1980; Library of Congress, 1980-1981). Além disso, existem 6 catdlogos impressos da Biblioshegue Nationale de Patis ¢ da British Library de Londres (er CD-ROM) disponiveis na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, © pesquisador pode também utilizar a biblioteca virtual Gallia, que fax parte da Biblioteca Nacional de Paris, e que apresenta uma série de obras digitalizadas das quais pode se fazer um download, embora a propria Biblioteca Nacional de Paris nao tenha um catélogo com- pleto on-line.” ‘Mas, © quanto & Histéria da Ciéncia no Brasil ¢ em Portugal, como fazer? Infelizmente nao existem instrumentos de busca similares a “Current bibliography” da bir para esse tipo de estudo, Devido & grande dificuldade em encontrar fontes para a Histéria da Cigncia no Brasil e em Portugal, vem sendo desenvolvido hé de mais de uma década, um conjunto de bases de dados sob a denominagio Lusodat. Este contém informagbes sobre a Histéria da Ciéncia e da'Técnica em Portugal e no Brasil, desde o Renascimento até 1900. Por meio dessas bases de dados € posstvel localizar fontes primérias (livros impressos,teses, folhetos, artigos, mapas ¢ manuscritos) ¢ fontes secundirias (bibliografias estudos). Tratam-se de obras esctitas por autores portugueses (ou das cofénias);ineluindo também tradugées portuguesas de obras estrangeiras, mas nao estao inclutdas obras estrangeiras sobre Brasil e Portugal. Os assun- tos nelas tratados sio: medicina, farmécia, quimica, mineralogia, engenhatia, psicologia, artes militares, fisica, astronomia, geografia, matemtica, arquitetura, técnicas, Hist6ria, Histéria natural, agricultura, veterindtia, navegasio, filosofia,filologia e viagens. Atualmente existe uma amostra na internet.” Para a base de dados completa, as consultas podem, por enquanto, serem feitas apenas no local ou solicitadas a distancia. Porém, espera-se que a curto prazo os livros até 1822. jf estejam disponiveis na internet. O professor Alfredo Tolmasquim, do Museu de Astronomia e Ciéncias Afins, vem desenvolvendo também uma base de dados especifica para fontes secundatias do Brasil" © As referencias compleas des obra encontranse na bibliografia final dese aia 2 O ender eericn da Gallica& hap tala bff 2 O endergo elerbico€hprunow unicamp br-ghcbiletrad im. 1 Sewendergoclernice€ bupdsou:mast br 3s Ghemia & Balas, 11, n. 2p, SOS-317, 2005 Lilian Al-Chueyr Pereira Martins Alguns problemas encontrados em trabalhos de histéria da ciéncia ‘A Historia da Cincia ¢ feita por seres humanos e se constitui em uma reconstrusio de fatos ¢ contribuigdes cientificas que ocorreram, muitas vezes, em épocas distantes da nossa, E comum encontrarmos alguns problemas nessas teconstrugées, que sero descritos na seqiién- cia, € que devemos procurar evitar a0 maximo. primeito deles consiste em uma Histéria da Ciéncia puramente descritiva, reple- ta de datas ¢ informagées que nao tém qualquer relevancia para aquilo que esté sendo estuda- do. Este tipo de Historia da Ciencia apresenta, muitas vezes, alguns individuos como génios que tiraram suas idéias e contribuigées do nada e outros como verdadeiros imbecis que faziam tudo errado, Passa 20 Ieitor uma visio completamente distorcida do processo de construsio do pensamento cientifico, Podemos encontrar, por exemplo, obras sobre Newton a teoria da gra- vitagio universal, que apresentam uma biografia longa, cheia de dados ¢ datas que aio tém qualquer relagio com o assunto estudado ~ ais como fatos pessoais irrelevantes. Também so encontradas descrigdes da contribuigéo de Newton como sendo o resultado de um insight, quando uma magi caiu em sua cabega — sem considerar 0 que ele havia estudado, 0 que exis- tia.em termos cientificos na época e os argumentos utilizados por ele. E comum, também, que as obras centralizadas em um determinado cientista — como Einstein, Darwin ou Lavoisier ~ apresentem todos os que nao accitavam suas idéias (ou scus antecessores) como tolos, o que é ‘uma visio distorcida da Hist6ria. E preciso estudar no apenas os vencedores, mas também os derrotados, verificando quais os argumentos que apresentavam conta as novas idéias. Muitas vezes, 08 argumentos eram excelentes. Um segundo tipo de vicio historiogréfico seria o que Herbert Butterfield (1900. 1979) chamou de interpretagio whig da Histéria, que seria sindnimo de Histéria da Ciéncia anactonica ¢ que consiste em “estudar 0 passado com os olhos do presente” (ver a respeito em BUTTERFIELD, The Whig interpretation of history, RUSSEL, 1984; MAYR, 1990). Neste caso, o historiador da ciéncia vai procurar no passado somente 0 que se aceita atualmente, ignorando completamente o contexto da época. Fo caso da busca de precursores, ou de pro- curar em pesquisadores mais antigos conceitos que foram desenvolvidos muito depois." Por exemplo, tentar associar 0 conceito de gene construfdo pela biologia molecular apés 1930, com 0 trabalho de Mendel. Ou entéo, valorizar no passado somente 0 que accitamos hoje. Por exemplo, enaltecer William Harvey por defender uma circulagio no sangue no século XVI, que € 0 que aceitamos hoje, e criticar Galeno por nao admitir a existencia da circulagio no século II. O ideal seria que o historiador da ciéncia procurasse se familiarizar com a atmosfera da época que esté estudando sem perder de vista 0 que veio depois (Histéria da Cincia dia. exénica). No caso de Lamarck, no se deve procurar precursores entte os pré-socriticos como Anaximandzo, por exemplo (que, de acordo com alguns historiadores, aceitava que o homem vinha de um tipo de peixe), ou De Maillet que escreveu uma obra de fieg0 onde defendia que as espécies existentes vinham de outras que haviam cxistido antes por meio de mudanga ime- diata (afirmava, por exemplo, que o peixe voador se transformava em um péssaro cujas cores cram semelhantes). Em cada época e em cada autor o estilo de pensamento é diferente, e é pre- ciso conhecer bem essas diferengas em ver de procurar encontrar a identidade entre autores € épocas distintos. Nao se pode também criticar autores antigos utilizando argumentos ¢ fatos muito posteriores. Nao se pode reprovar Galeno (inicio da Era Crista) por nao admitir a cir culagio do sangue (descoberta no século XVID), pois ele vivia em época e contexto diferentes: suas idéias cram plausiveis em relagio aos conhecimentos disponiveis em seu tempo. © Ua divcada tobre ee aipete aparece em MARTINS, 2001, p. 310-11 1 Gitta Bdecapo, Um. 2 9, $05-817, 2005 Histéria da cigncia: objetos, mécodos ¢ problemas Entretanto, conforme sua atitude, o historiador poders adotar uma interpretagio prig se radi- calizar sua posigfo contriria 4 historiografia whig e considerar apenas o contexto ea conttibui- 540 no passado que estuda, ignorando completamente a Histéria da Ciéncia moderna (ver a respeito HARRISON, 1987). Um outto problema que pode ser encontrado € a utilizagio ideolégica da Histéria da Ciéncia (de forma nacionalista, politica ou religiosa). De acordo com H. Kragh, ideologia “&a doutrina que legitima as idéias e interesses de um determinado grupo social, apresentan- do uma idéia distorcida da realidade” (KRAGH, 1989, p. 109). Por exemplo, a Histéria da Ciéncia Nacionalista, do fisico e matematico Emile Picard (1916), que considerava que tudo © que havia de bom encontrado no desenvolvimento da ciéncia devia-se aos cientistas france- ses, enquanto tudo de ruim se devia aos cientistas alemics. ‘Um outro vicio é 0 chamado “apudismo”, Consultando um diciondrio" veremos que apud é wma expressio latina, empregada geralmente em bibliografia, para indicar a fonte de a citagao direta. Quando uma pessoa nao leu nenhum trabalho de Linné e cita uma ideia ou frase dele indiretamente, a partir de uma outra fonte," est confiando no intermedidrio que aleu—o que é extremamente perigoso, como jé apontamos antes, O termo “apudismo” € apli- cado aos trabalhos historiograticos cujos autores utilizam freqiientemente o termo apud, por- que se basearam em informagées indiretas. Eles elaboram um trabalho de Histéria da Ciéncia bascando-se apenas em informagées obtidas em fontes secundirias, sem consultar as fontes pri- arias. Assim, em ver de consultar diretamente a obra original de Lamarck, por exemplo, vio utilizar citagbes de Lamarck que se encontram reproduzidas no trabalho de outros historiado- res, como, por exemplo, 0 de Jean Rostand. Desse modo, serio introduzidos intimeros ertos, pois um dos trabalhos do historiador da cigncia consiste em fazer uma revisio constante dos trabalhos de outros historiadores que muitas vezes apresentam interpretages equivocadas € que sio perpecuadas no decorrer do tempo — por exemplo, considerar a teoria de “evolu- 0” de Lamarck como sindnimo de heranga de caracteres adquiridos. Um estudo da teoria de Lamarck a partir se suas obras originais indica que, embora ele admitisse a heranga dos carac- teres adquitidos, este nZo € 0 ponto central de sua teoria. Hé outros aspectos tio ou mais importantes, Além disso, esta no eta uma idéia original de Lamarck pois existia desde a Antiguidade, era aceita na época de Lamarck e continuou sendo aceita posteriormente, pois aparece em Darwin (ver a respeito em MARTINS, 1993) ‘Toda narragio histérica € uma selegao ou “recorte” da histéria. Ao fazer este recorte, © historiador pode selecionar e descrever apenas os fatos que corroborem seu ponto de vista e ocultar os fatos que entrem em conflico, Neste caso, ele nao estar apresentando as idélas, daquele estudioso de forma fiel, pois estard omitindo aspectos importantes e sua narrativa sera tendenciosa. Ele também pode estar fazendo uma narragio falsa se as deserigées entrarem em. conflito com os fatos Estes sio alguns dos vicios que se deve procurar evitat Consideragies finais Infelizmente, devido as limicagées de espaco, no pudemos ir mais longe nem desen- volver melhor alguns dos aspectos tratados. De todo modo, esperamos que o que registramos aqui possa auxiliar todo aquele que estiver iniciando um trabalho em Histéria da Ciéncia do tipo que descrevemos. Gostarfamos de lembrar ainda que & preciso muita dedicagao e também souita prética,além de humildade para receber criticas construtivas, pois sem tudo isso nenbuma Ny eave uilizamer « Novo Dicionitio Aurélio A cage serd do sipe: LINE. spud FULANO, 2001, p. 34 aI Ghemia & Balas, 11, n. 2p, SOS-317, 2005 Lilian Al-Chueyr Pereira Martins recomendagio poderd ser til, Por outro lado, somos criaturas do presente ¢ produtos de nosso contexto que estio procurando estudar contribuigées feitas em um passado mais préximo ou mais distante. Nao podemos jogar nossos olhos fora. Poxém, é desejavel e deve ser considerada ‘uma meta a atingir (ou, pelo menos da qual procuremos nos aproximar ao méximo), que nossa seja feita da forma mais imparcial possivel e que nos familiatizemos com 0 con- texto histérico, cientifico, social etc. que estamos estudando € que procuremos deixar nossos preconceitos de lado. Agradecimentos ‘A autora agradece ao CNPq pelo apoio recebido ¢ ao Prof. Dr. R. Martins por suas criticas e sugestoes Referéncias BUTTERFIELD, H. The Whig interpretation of history. London: Bell, 1931 CORSI, Per al. Information sources in the history of science and medicine. London; Boston: Buttenworth Scientific, 1983, al SPIE, C. C. (ed). Dictionary of ciemtfic biography. New York, Charles Seribner's Sons, 1981.17 ¥ HARRISON, E. Whigs, Prigs, and historians of science. Nature, 329: 213-224, 1987, JAYAWARDENE, S. A. Refévence books for the historian of science: a handlist. London: Science ‘Museum, 1982. KRAGH, H. An introduction to the historiography of cience. Cambridge: New York, 1989, LALANDE, J.J. Bibliographic astronomigue. Pais: Imprimérie de la République, 1803. Amsterdan: C. Gieben, 1970. LIBRARY OF CONGRESS. National union catalog, pre-1956 imprints. A cormulative author list representing Library of Congress printed cards and titles reported by other American libraries.” London: Mansell, 1968-80. 685 v. LIBRARY OF CONGRESS. 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