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Em casa de enforcado nio se fala em corda: a construgao social da “Boa Apar€éncia” no mundo do trabalho carioca De todos os modos vulgares de fugir da consideracao do feito das influéncias sociais e morais sobre a mente humana, o mais vulgar é atribuir as diversidades de conduta e cardter a dife- rengas naturais inerentes. John Stuart Mill 32 No capitulo anterior, procurei localizar os fatores de sucesso e com- preender o seu respectivo sentido nas érajetérias e nos estilos narrati- vos de algumas mulheres que se autodeclararam “negras” (escolhidas a partir de um universo de cerca de 100 entrevistados/as). Inversamente, porém, busquei detectar os fatores de fracasso e o seu sentido nas car- reiras de mulheres autodeclaradas “brancas”. A indagac3o sobre onde, por meio de quem, ¢ como a “cor” operava como um principio seletivo foi parcialmente equacionada, mais do que respondida, considerando- se as carreiras em que a “doa aparéncia” parecia ter um papel radical. De fato, foram as longas narrativas das mulheres entrevistadas para esta pesquisa que me alertaram para a relevancia da ideia de “boa aparéncia” como principio seletivo de oportunidades profissionais e ocupacionais. E foi ai que o tema do “embranquecimento” — suposto corolario da mo- bilidade ascendente de pessoas “negras” e “mulatas” — entrou nova- mente e com forca em cena. 95 Segredos da Boa Aparéncia Minha primeira investida em busca de alguns dos sentidos da “boa aparéncia” foi recuar no tempo para tentar verificar como certas ideias disseminaram, circulando através de diferentes segmentos sociais (Ginzburg, 1993[1976]). Sobrados e Mucambos (1936) de Gilberto Freyre tinha, neste sentido, uma dupla import4ncia. Em primeiro lugar, parecia-me exemplar quanto a légica da conexdo do “branqueamento” com a “boa aparéncia” inscrita na histéria das ideias e da cultura brasi- leiras. A descrigio detalhada das “adaptacdes” (em termos de vestud- rio, penteado, corte de cabelo etc.), que teriam sido operadas pelos “mulatos” (homens principalmente) em “ascensio” em fins do século XIX, revelaria sobretudo os valores morais, altamente hierarquizados, embutidos nas qualidades estéticas — aparentemente naturais — tribu- tadas 4 aparéncia. Em segundo lugar, esse processo descritivo acabava por fazer emergir a afinidade entre essas ideias desenvolvidas por Freyre e 0 projeto politico das elites (aqueles segmentos das oligarquias agroexportadoras, de ha muito preocupados com os problemas énicos) que, justamente durante os anos 30, dedicava-se a inventar o Brasil co- mo nagao. Ora, com tal perspectiva histérica em mente, dei continuidade a uma espécie de arqueologia da “boa aparéncia’, recorrendo a outro estrata- gema: a reconstrugao de um dos principais contextos de veiculagao des- sa mensagem, investigada por meio de anuncios de oferta e de procura de emprego nos jornais do Rio de Janeiro, principalmente durante a década de 40. Além disso, como veremos mais adiante, recorri A litera- tura sociologica em busca de algum tipo de analise que levasse em con- ta a especificidade da expressdo ¢ sua intrincada relacdo com 0 precon- ceito racial e a ascensio social. Espero poder, entao, conduzir a minha narrativa no sentido de recu- perar parte do processo de substituicdo de categorias raciais mais ex- plicitas pela noc3o moral de “bea aparéncia” como metafora da cor (ja enunciada por interlocutores situados em diferentes lugares do apare- tho de Estado desde o final do século XIX). Desta perspectiva, a “boa aparéncia” nao é um sinénimo natural de “sé para brancos”, mas sim uma construgao social, negociada aos poucos e mais expressivamente 96 Segredos da Boa Aparéncia empregada nas situacdes de recrutamento de mio de obra ao longo dos anos 40,33 3:1 Uma “revolugdo” e uma “na¢io” Os anos 30 iniciam-se no Brasil com uma “revolugdo”. Com ela inaugu- ra-se a primeira fase da Era Vargas, que se estenderd até 1945, Esses quinze anos foram pontilhados de fatos marcantes na vida social e po- litica brasileira. O processo “revolucionario” cria um “Estado forte”, pri- meiramente por intermédio de um governo provisério. Com efeito, a Revolugio de 30 espelha a emergéncia de novas forcgas sociais oriundas do paradoxal processo de industrializacdo e urbaniza- cao do Brasil, bem como é o resultado da crise politica da Velha Republica entre os anos 20 ¢ 30.34 Na cena social e politica dos anos 20, encontramos os tradicionais atores sociais vinculados ao sctor agroexportador contracenando com representantes do incipiente em- presariado industrial, o proletariado urbano e os “tenentes”. O parado- xo reside no fato de que o movimento de 30 nio se produz pela sim- ples polarizacao entre a burguesia industrial e os setores tradicionais da economia. As contradicdes internas, caracteristicas das faccées oli- garquicas regionais, contribuiram para a formagao da Alianga Liberal (faccGes dissidentes das oligarquias agroexportadoras de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraiba, apoiadas pelo Partido Democrata de Sao Paulo - 1929) e foram coautoras da “Revolugao Burguesa” de 30, pon- do fim 4 hegemonia da oligarquia cafeeira e 4 “politica do café com lei- te”, que alternava o poder central entre Minas Gerais e $40 Paulo. O periodo que se segue é de intensa radicalizacdio politica, e tem co- mo pontos altos o movimento Constitucionalista de 1932, (que levaria Gevilio Vargas a marcar as eleicdes para a Assembleia Constituinte de 1934), o levante da Alianga Nacional Libertadora de 1935 e, em 1938, o levante da Acao Integralista, de cunho nazifascista. Resultado: no pro- cesso “revolucionario”, 0 governo vé-se obrigado a fazer concessées aos tradicionais grupos hegeménicos destituidos, ao mesmo tempo em que cria as condigées para fortalecer as novas forgas urbano-industriais. 97 Segredos da Boa Aparéncia E nesse momento que o governo parte para a criagio de mecanismos institucionais de defesa do café e cancelamento de dividas e cria, en- tao, os primeiros instrumentos de controle do trabalho em relacdo ao capital por intermédio da instituicio do Ministério do Trabalho, Indtstria ¢ Comércio e de toda uma legislacio trabalhista que se vai implantando aos poucos. Vale ressaltar, por outro lado, que entre 1935 e 1937 0 permanente estado de sitio facilita o emprego da violéncia politica por parte do Estado, preparando a instalagdo da ditadura do Estado Novo (1937). Essa fase encerra-se com o fim da Segunda Guerra Muridial e com o golpe de 29 de outubro de 1945, que depde Getilio Vargas. O saldo final dos anos de 1937 a 1945 foi, sobretudo, a reorientaco econdmi- ca, levando 4 expansao e A acumulacio industrial, ao crescimento dos ceniros urbanos, sem interferir, contudo, na estrutura agrdria. Essa “modernizaco conservadora” de que falam Boris Fausto, Edgar Carone, Robert Rowland, Otavio anni, entre outros autores, é aqui apontada de modo muito esquematico. O processo ¢ bem mais complexo e matizado, quando se consideram em profundidade os no- vos ¢ os velhos atores sociais e 0 campo das forg¢as politicas em cons- trugio. Nesse sentido, vale a pena consultar o trabalho de revisao ela- borado por Boris Fausto (1988) sobre as controvérsias centrais a proposito da participagdo da classe trabalhadora, e que relativiza igualmente outros atores sociais (a burguesia em suas fracdes indus- trial e de Estado etc.), considerando os mais importantes estudos que abrangem os anos que medeiam 1920-1945. Por fim, a propria “mo- dernizacg3o conservadora” é posta em questo, nao para ser negada, mas relativizada. Afinal, Passados os primeiros anos do Estado Novo, enquanto 0 arcabouco insti- tucional era completado, incluindo medidas tao importantes como a cria- a0 do imposto sindical em julho de 1940, delineou-se, como é sabido, a politica de efeito mais duradouro do regime Vargas. O apelo emocional & valorizacao do trabalho, a reconstrugao do passado, a metafora da gran- de familia nacional, a construgiio do conceito de dadiva foram elementos 98 Segredos da Boa Aparéncia Pee enorme importincia no estabelecimento dos lagos entre as massas tra- balhadoras e o getulismo (Fausto, 1988:36). *" Ha que lembrar ainda que essas “massas” trabalhadores nao se vi- ram repentinamente atraidas por um modelo radicalmente novo. Como bem observa Angela de Castro Gomes em 4 invengéo do trabalhismo (1988), ndo houve “a construcaio de um discurso A revelia da classe tra- balhadora” por parte do governo Vargas (Gomes, 1988:261). Antes, ele procura trabalhar com as proprias reivindicages (“a palavra” dos ope- rarios) das décadas anteriores 4 Revolugao de 30. A autora enfatiza, portanto, a necessidade de situar o discurso politico de Estado, rom- pendo “com a ideia de um Estado todo-poderoso que atua sobre uma tabula rasa’, ou seja, sobre uma massa amorfa e passiva (Idem). Finalmente, a partir de 1942 (em plena Segunda Guerra Mundial), enquanto a situacdo da agricultura tornava-se mais critica com o des- Povoamento progressivo do campo, a procura por produtos industriais brasileiros acelerava-se, ratificada pelos acordos de Washington (1942 e 1947), sendo esses produtos repassados pelos Estados Unidos as na- ges aliadas na Europa (Carone, 1991:18). 3.1.1 O Rio de Janeiro ea invencao da nacio A partir dos anos 30 ¢ durante todo o Estado Novo, governo Vargas teve que lidar, de um lado, com a tendéncia fascista, adepta explicita da supremacia “branca” e da “pureza de sangue” e, de outro, com o dile- ma de como “integrar” a populacao “negra” e “mestica” & “naciio”, Dian- te desse quadro contraditério, o esforco homogeneizador do Estado teve varias frentes. Ainda em dezembro de 1930, por exemplo, o recém-cria- do Ministério do Trabalho Industria e Comércio decretou a chamada “Lei dos 2/3”, exigindo que os empregadores tivessem 2/3 de traba- Ihadores “nacionais” em seus estabelecimentos. Esta lei visava entao controlar a imigracdo, 0 trabalhador estrangeiro e o desemprego. Segundo Rosa Maria B. de Aratjo (1981), se de um lado a protecao “aos nacionais” significava 0 enfraquecimento da participacao dos tra- 99 Segredos da Boa Aparéncia balhadores estrangeiros nas lutas operarias, de outro, redefinia-se o pa- pel politico do proprio operariado, na medida em que liderangas nacio- nais iam se constituindo numa nova dinamica nas relagdes com o Estado. O que esta andlise me parece deixar de fora é 0 papel que a “Lei dos 2/3” desempenhou no sentido de “integrar” os “nacionais”, ainda que no plano retérico, como trabalhadores urbanos “disciplina- dos”, enquanto se acirrava o controle policial sobre a populac3o urbana empobrecida, em boa parte “negra” e “mestica”, principalmente no Distrito Federal. Voltaremos a esta questo mais adiante para examinar algumas das imbricagdes da “Lei dos 2/3” com a “Lei Afonso Arinos”. Assim é que a politica de emprego do Governo Provisério para os “na- cionais” consubstanciou-se num conjunto de medidas visando & localiza- So dos “sem-trabalho”, ao seu recrutamento ¢ a sua posterior fixacio em nicleos de povoamento. Rosa Maria B. de Aratijo acentua entSo que essa politica sé produz algum efeito no Rio de Janeiro, onde o governo concentra esforcos para amenizar o problema social. Os Postos de Recrutamento no Distrito Federal permitem um levantamento estatis- tico dos quinze mil desempregados sem no entanto garantir trabalho a todos (Aratijo, 1981:114). Por outro lado, tal investida tem seu carter racialmente integrador en- capsulado na “metafora da grande familia nacional” (Fausto, 1988) e se completa, contraditoriamente, em outra frente, por meio de politicas assi- milacionistas impostas, inclusive pela forca, aos imigrantes e a seus des- cendentes — sobretudo alemies. Estes nfo haviam desempenhado o tio almejado papel “embranquecedor” do “povo brasileiro”, a ser aleangado em “etapas” através de lenta miscigenagao bioldgica e cultural. A “cam- panha de nacionalizagao’, levada a cabo de modo mais sistematico a par- tir de 1939 e conduzida pelo Exército, é neste sentido exemplar, pois A construgao da nacionalidade através do branqueamento estava es- treitamente ligada a uma politica imigratéria do Estado, voltada para a Europa [...] No entanto, o projeto colonizador do Estado acabou por 100 Segredos da Boa Aparéncia concentrar um contingente razoavel de europeus em algumas dreas do sul do Brasil — onde se transformaram num problema a mais —, com a constitui¢ao de etnicidades, em pleno florescimento no inicio da cam- panha de nacionalizacio. Trazidos para participar do caldeamento de ragas, numa grande democracia racial disfarcada de branqueamento, paradoxalmente ficaram muito tempo isolados do convivio com a so- ciedade brasileira por causa das regras da prépria politica de coloni- zacio. Cumpriram seu papel como povoadores de vazios “demografi- cos” num processo do qual foram excluidos os nacionais, considerados incapazes e inferiores (Seyferth, 1991:171). Devo acentuar, por fim, que sdo igualmente dos anos 30 as investi- das oficiais contra as “sociedades negras”. A proscricdio da Frente Negra Brasileira (fundada em Si0 Paulo em 1931) que, segundo Florestan Fernandes, foi “a principal organizacio aparecida nesse periodo” (Fernandes, 1972:93), aconteceu em 193835 Como se vé, o governo de Vargas estava enredado nas politicas de “nacionalizagao”, e é neste complexo contexto que a “integracio” pro- posta (¢ imposta) pelo Estado ganha um grande reforco ideolégico por parte de intelectuais situados fora do aparelho de Estado e ligados as elites locais (de Recife ou de Sio Paulo, por exemplo). Muitos desses intelectuais — destacando-se o antropdlogo pernambucano Gilberto Freyre — reapropriaram-se entiio da ideia de “brasilidade” e se volta- ram para os elementos étnicos que “formaram o Brasil”. O paradigma da mestigagem “cultural” e “biolégica” atualizou-se na ideia do “encon- tro das trés racas” formadoras do Brasil. Para as politicas de nacionali- zacao e homogeneizacio do Estado, a interpretacao de “integracio ra- cial” caia como uma luva. Esta questo serd retomada no préximo. capitulo. No entanto, por agora, creio ser importante enfatizar que a versio oficial atualizada da “fabula das trés ragas” surgiria apenas em 1943, quando Fernando Azevedo seria convidado a fazer um texto introdutério ao Censo Demografico de 1940. Ele escreve um monumental volume de 529 pa- ginas, encadernado, intitulado A cultura brasileira. Introdugéo ao estudo 101 Segredos da Boa Aparéncia da cultura brasileira. O autor faz frequentes referéncias aos trabalhos de Nina Rodrigues, Afranio Peixoto, Arthur Ramos, F. J. de Almeida Prado, Euclides de Cunha e, principalmente, Gilberto Freyre. Logo no inicio da obra, sob o titulo “O pais ¢ a raca”, ele evoca o “encontro” em termos de uma hierarquia em que os “brancos”, por fim, “assimilaram” “as ragas vermelha e negra” e dispuseram-se a contar a “fabula” desse modo: Se, como se vé, as origens brasileiras esto claramente determinadas na mistura das trés ragas ou na assimilacao progressiva, nos primeiros séculos, das racas vermelha e negra pela raga branca europeia, numa larga transfusao de sangue, ainda esto por se esclarecer completamen- te as quest6es relativas aos diversos tipos étnicos, portugueses e ne- gros, que se canalizaram para o Brasil, aos seus respectivos caracteres antropoldgicos, a distribuicio geografica dos negros e dos indios e As proporgGes em que se produziram os cruzamentos com os coloniza- dores brancos (Azevedo, 1944[1943]:29). bol Foi gracas a esse cruzamento — processo bioldégico de selecao natural, facilitado em parte pelos deslocamentos das populagées e pela ausén- cia de preconceitos raciais - que no Brasil se caldearam as racas, bran- ca, africana e amerindia, e se foi formando o povo brasileiro, resultan- te de varios elementos étnicos, indigenas e forasteiros, assimilados pelo branco. Que este povo é um amalgama de varias racas, elas mesmas cruzadas € recruzadas, como o portugués que se tornou, pela sua ati- vidade genésica, mobilidade e adaptabilidade ao clima tropical, o ni- cleo de formacio nacional; que, por esse caldeamento incessante, 0 pais se constituiu, na expressao de Mendes Correia, num dos maiores campos de assimilacio étnica e social que ja existiram, ndo ha sombra de divida (Azevedo, 1944[1943]:33). Reforgado por esta “fabula®, o processo unificador ¢ homogeneiza- dor em curso desde os anos 30 ganha aos poucos, e nao sem contradi- g0es internas, uma configuracao mais nitida, tendo a capital da Re- publica — a cidade do Rio de Janeiro — como o /ocus politico ¢ cultural 102, Segredos da Boa Aparéncia privilegiado onde essa “comunidade imaginada” chamada Brasil come- ava a se encarnar. O crescimento das camadas médias da Capital Federal acelerou-se “gracas 4 expansdo de novos postos de trabalho ligados direta e indire- tamente ao servico publico federal, além de uma gama de atividades voltadas para o setor terciario vinculado 3s atividades comerciais de grande e pequeno porte. A expansio de varios bairros da zona sul, que passam a ser considerados os mais nobres da cidade, é visivel. Com efei- to, ansiosas por um estilo de vida “moderno”, deslocam-se para esse es- pago pequenas parcelas emergentes da nova classe média, que vao resi- dir nos novos prédios de apartamentos, construidos muitas vezes ao lado das antigas residéncias das elites mais tradicionais.36 Por outro la- do, e complementarmente, nos morros vizinhos crescem as entio cha- madas favelas: areas sem infraestrutura basica (Agua, esgoto etc.) para onde acorrem, inicialmente, migrantes pobres, majoritariamente “ndo- brancos’, do interior do estado do Rio de Janeiro (Costa Pinto, 1953). Esses locais logo passarao a receber um nimero cada vez maior de pes- soas provenientes do que se chamava, a época, regido Norte (que se es- tendia do estado do Amazonas até os estados que hoje compéem a re- giao Nordeste). A respeito da composicao racial da populagao das favelas e dos bair- ros mais “abastados’, Costa Pinto esclarece, com base no primeiro censo de favelas de 1949, que: “[...| as favelas apresentam-se como niicleos se- gregados de populagao pobre e de cor exatamente nos bairros onde os brancos constituem a maioria [...]” (Costa Pinto, 1953:134). Mais adiante, o autor chega A conclusdo de que Mais da metade dos moradores das favelas do Distrito Federal é de nascidos noutras Unidades da Federaco, o que vem indiretamente re- forgar a hipotese de que, nessas correntes de migracdo interior que de- manda a Capital do Pais, bastantes expressivas sio as quotas dos gru- pos de cor. Atinge 61,86% da populacao das favelas a propor¢ao dos oriundos de outros pontos do territério nacional ([bid:136-137). 103 Segredos da Boa Aparéncia Além destas caracteristicas, 0 Rio de Janeiro vai se constituindo tam- bem como 0 espaco privilegiado por onde circulam e se comunicam po- bres “de cor” ¢ “brancos” de elite (mais precisamente, pelos bairros centrais, como a Lapa, que adquirem marcadas caracteristicas boémias). Eles constroem uma linguagem que foi traduzida por muitos intelec- tuais — em especial, por Gilberto Freyre — como o elogio da miscige- nacao e da auséncia de preconceito e de discriminacio “racial”. Estava aberto o caminho que viabilizava a invencdo de uma cultura nacional, Esta percepgio vai tomando conta de coracées e mentes, tor- nando-se hegemOnica porque capaz de inventar “raizes” homogeneiza- doras (Vianna, 1995, cap. 3). E 0 faz, inclusive, por intermédio de me- t4foras abrangentes, como a da “grande familia nacional” (Fausto, 1988) que, como insisti h4 pouco, terminou por oferecer um arsenal ideoldgico as politicas de “nacionalizagéo” da ditadura varguista. Neste contexto unificador, as “diferencas de raca” vio aos poucos sendo sim- bolicamente negociadas por meio de rituais de congragamento que co- megam a se fazer “brasileiros”, produzindo samba, carnaval e futebol (Leite Lopes, 1994; Vianna, 1995). Sem diivida, como assinalei em ou- tro trabalho (Damasceno, 1991), apesar de “raca” constituir um dos marcadores das relagdes sociais, as categorias de classificagao racial pas- saram a ser, entre outras, aquelas que garantiam uma construcdo de na- So unificada: “mulatas” e “trabalhadores do Brasil” Por outro lado, a politica varguista de “integraco nacional” concen- trou-se com mais forga em certos lugares da vida social, sem duvida vi- tais, porém menos visiveis: o mundo do trabalho, que de inicio — segu- ramente até fins dos anos 50 — quer excluir explicitamente, como veremos no detalhe, “a gente de cor” para se transformar no mundo “in- tegrado” de pessoas de “boa aparéncia”, esta a ser negociada dia a dia. 3.2 A sociologia da “fragmentacio0” A arqueologia da “boa aparéncia” implicou a abordagem parcial do de- bate sobre o “embranquecimento”, frequentemente percebido pela so- ciologia?? como um processo linear e continuo de negaco ou “frag- 104 Segredos da Boa Aparéncia mentagdo de identidade racial”, produzido gracas 4s caracteristicas to- talizadoras da “democracia racial”.37 Na literatura sociologica a “boa aparéncia” é ent&o um tema tratado de modo subsidiario, sempre “apreendido como exemplo do radicalismo do racismo & brasileira (Hasenbalg, 1979; Eccles, 1991, Telles, 1994). Ao examinar as desigual- dades raciais em dominios mais ou menos especificos — desde o espa- go educacional até o mercado de trabalho, passando pelo sistema juri- dico ¢ policial — estes autores fazem referéncias pontuais ao papel da “boa aparéncia’, tendo como pano de fundo a critica contundente a va- lores, como o da “democracia racial” e o do “branqueamento” E claro que a énfase nos resultados dessas praticas racialmente ordenadas va- ria em cada um dos autores, sendo mais ou menos relativizadas em fun- gao do modo como 0 objeto de estudo foi construido, da natureza dos dados abordados e das perspectivas tedricas escolhidas. Carlos Hasenbalg (1979), ao analisar as Noticias sobre discriminagéo racial na imprensa (de 1968 a 1977), além de constatar que a discrimi- nago ocupacional era “o segundo tipo mais frequente de ocorréncia’, chama a atengao para os casos (trés, em nove anos) em que os anuncian- tes exigiam pessoa branca ou clara numa época — lembra 0 autor — em que ja se empregava com muita frequéncia 0 “irreprochavel eufemismo exige-se boa aparéncia”. Ele argumenta ainda que tais “exigéncias de pes- soas brancas ou de cor clara nao sao fatos de um passado longinquo, quando a democracia racial possivel ainda mostrava imperfeicdes” (Hasenbalg, 1979:264). A conclusio final é que as acdes discriminaté- rias veiculadas pelos jornais, ao contrario do que se poderia esperar, con- tribuiam para reforgar o “mito da democracia racial”, gragas ao carater de excepcionalidade a elas atribuido e 4s manifestagdes de repidio pro- venientes especialmente das autoridades piblicas. O comentario acima grifado interessou-me porque o autor parece su- gerir que a frequente utilizagio do “irreprochavel eufemismo” nos anuncios contemporaneos é uma demonstragio do grau de aperfeicoa- mento da “democracia racial”. Sendo assim, cabe a pergunt : seria a “boa aparéncia” um ardil capaz de camuflar o carater racista das rela- des sociais brasileiras e, por isso mesmo, um reforco 4 crenga na “de- 105, Segredos da Boa Aparéncia mocracia racial”? Tudo indica que sim, se considerarmos, como o pré- prio Hasenbalg sugere em outro momento (1984), que o resultado per- tinaz desse projeto politico tem sido manter as desigualdades raciais fora do terreno da politica. Embora meus ‘dados tendam a confirmar essa percepcao de aperfeicoamento da “democracia racial”, este no é exatamente o objeti © central de minhas preocupacdes, quer tomemos a “democracia raciai” como mito — no sentido adotado peia antropolo- gia contemporinea — quer a entendamos como uma ideologia — no sen- tido da ciéncia politica. E a propria “raca” o objetivo do meu investi- mente enquanto relacdo entre a construcdo de uma etiqueta social baseada em critérios fenotipicos e 0 “preconceito racial”, ele mesmo concebido como fato social paradigmatico do sistema de classificagao cultural no Brasil. Ha, portanto, outra possibilidade de pensar a questo se discutirmos a “democracia racial” como um modo peculiar de classificar o mundo social cujo carter é menos totalizador do que se supée. Entdo, a “boa aparéncia’, antes de ser um aperfeicoamento da “democracia racial”, no sentido de uma camuflagem do racismo, talvez seja o modo de expres- sdo mais convencional desse racismo. Cedo se percebe que as caracte- risticas fenotipicas sao vitais na interpretacao das regras culturais e, com clas, aprende-se a interpretar a “boa aparéncia” e os modos possiveis de se haver com ela para conseguir ¢ manter um lugar de trabalho. Voltarei a estas questdes em breve, mas gostaria, para isso, de consi- derar agora alguns dos argumentos de Edward Telles (1994), que tam- bém faz uma breve alusio ao uso do artificio da “boa apar€ncia” no tex- to “Industrializacao ¢ desigualdade racial no emprego” (1994). Em primeiro lugar, ao rediscutir o papel da industrializagiio no exer- cicio da discriminagao racial, ele propde uma perspectiva alternativa aos modbos tradicionais de andlise, e demonstra — recorrendo a arranjos es- tatisticos refinados e a argumentos histéricos bem fundamentados — que a industrializac&o tanto pode aumentar como diminuir as barreiras raciais, dependendo dos postos de trabalho disputados por “brancos” e “nao-brancos” e do nivel de tal disputa. Desta perspectiva, a tese de- fendida por Carlos Hasenbalg (1979), de que a industrializacdo redu- 106 Segredos da Boa Aparéncia ziu a desigualdade racial “nas ocupacdes manuais especializadas”, foi confirmada gracas & auséncia de oposicio “sistematica” dos operarios industriais “brancos” a participacio de “nio-brancos”, expressa, inclusi- ve, nas formas racialmente unificadas de alinhamento sindical — embo- ra 0 movimento sindical fosse “dominado por brancos” No setor admi- nistrativo/profissional liberal, contudo, a desigualdade recrudesceu, fato que no pode ser creditado — diz Telles — “a desigualdade racial na educacio”. E neste ponto que a “doa aparéncia” é lembrada como um dos augues usados pelos empresarios que se negam a “contratar afro- brasileiros como funciondrios administrativos“, sob a alegagio de que a imagem de sua empresa seria comprometida (Telles, 1994:42 ¢ ss). Ao recorrer 4 consistente pesquisa histérica de George Andrews (1991) e apoiando-se em argumentos de natureza antropoldgica, ele avanc¢a, entao, para uma conclusio tao radical quanto surpreendente: As razSes para ndo empregar ou promover nio-brancos a altos cargos podem ter passado do preconceito de empregadores individuais ao ra- cismo institucionalizado, despersonalizado. As empresas afirmam que 0 fato de contratar ndo-brancos para cargos elevados fere a reputacao da empresa e que os empregados brancos nao querem ter superviso- res ndo-brancos. Por outro lado, a aversio pessoal que os empregados tém por trabalhar em contato estreito com no-brancos continua a ser uma raz4o para no contratar nao-brancos para cargos administrati- vos, mesmo em areas altamente industrializadas (Telles, 1994-43). Diante dessas andlises, poderiamos de fato considerar, como sugere Carlos Hasenbalg, que “as imperfeicdes” do projeto da “democracia ra- cial” teriam sido corrigidas com o passar do tempo, sendo disto um bom exemplo 0 recurso ao emprego do “eufemismo” da “boa aparén- cia”? Ou, contraditoriamente, haveria uma tendéncia ao recrudescimen- to da clivagem racial, produzida por essa mesma “democracia racial”? Como apreender a passagem “do preconceito de empregadores indivi- duais ao racismo institucionalizado, despersonalizado”? Ko longo do tem- po, a discriminacdo racial teria se transferido de alguns lugares da hie- 107 Segredos da Boa Aparéncia rarquia ocupacional para outros? Como as mulheres e os homens de cor foram alcangados por essa transferéncia, se 6 que o foram? Como a “boa aparéncia” entra em cena? Também estas indagacées ficardo de quaren- tena, por enquanto. Telles considera finalmente que, uma vez estando em curso 0 “for- talecimento das barreiras raciais ao emprego de classe média”, os va- lores que orientam o “lugar do negro”, enquanto construcio histérica negativa, poderao vir a ser remodelados. Ao mesmo tempo, e de for- ma complementar, os “afro-brasileiros” podem continuar a ter incul- cada a versio de que “o trabalho manual ¢ ‘o seu lugar, o que os le- varia a inibir suas expectativas de ascensao por meio da disputa de postos de trabalho nos setores administrativo e profissional liberal” (Telles, 1994:42). 3.3 Sé para “brancos”? Meu estranhamento em relagio 4 expressio “boa aparéncia” ampliou-se diante da leitura intrigada de um outro observador estrangciro, Robert Eccles (1991), que a desnaturalizou de modo to simples quanto sur- preendente: A expresso “boa aparéncia” é amplamente entendida no Brasil como significando “sé para brancos” e pode ser encontrada entre as qualifi- cacées para emprego nos antincios classificados de qualquer jornal. Quando a conexio se tomou explicita num aniincio classificado, houve uma grita a respeito. Mas, enquanto permanecer como um cédigo e ter 0 efcito de desencorajar candidatos negros que sabem que ndo serao considerados com isengao e nem terao seus direitos protegidos pela lei, a pratica de filtrar candidatos a emprego com a expressio “boa aparén- cia” continuard com a mesma forga (Eccles, 1991:144). Eccles revisa as Constituicdes brasileiras de 1934 e 1937 para anali- sar algumas de suas mensagens que traduziam versées oficiais do que chamou de “politicas do quanto mais branco melhor”, até que ocorres- 108 Segredos da Boa Aparéncia se a promulgagao da lei de 3 de julho de 1951, assinada pelo presiden- te Getilio Vargas, que tornava a discriminagao racial “contravengio pe- nal”, Esta lei foi alcunhada de Afonso Arinos por ter sido este deputa- do federal o autor do projeto, juntamente com o antropdlogo Gilberto Freyre (& época, igualmente deputado federal).39 Ao conceber a discriminagéo racial como contravengdo penal esta lei foi contraditoriamente inserida no mesmo universo da “vadiagem” e da “mendicancia”:*! instrumentos de acusagao reconfigurados justamente na “Lei das Contravengées Penais” de 3 de outubro de 1941 (também promulgada por Getilio Vargas). Com efeito, no “Capitulo VII", intitu- lado “Das Contravencdes Relativas & Policia de Costumes”, 1é-se no Art. 59, inserido na “Parte Especial”, que “vadiagem” significa “Entregar-se alguém habitualmente & ociosidade, sendo valido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsisténcia, ou prover a propria subsisténcia mediante ocupagio ilicita”. Por seu turno, a “men- dicancia” (Art. 60) significa “Mendigar, por ociosidade ou cupidez™ A complexidade da contradicao explicita-se na polissemia da categoria ociosidade, especialmente quando retomamos as imbricagdes da chama- da “Lei dos 2/3” (a qual me referi ha pouco) com a “Lei Afonso Arinos”. Ora, o objetivo da “Lei dos 2/3” era dar protegao “aos nacionais” co- mo trabalhadores urbanos “disciplinados”, combatendo o desemprego e controlando ao mesmo tempo a imigragao de trabalhadores estran- geiros e sua participac3o nas lutas operarias. Por outro lado, 4 medida que esta lei tendia a propiciar, através do Ministério do Trabalho, Industria e Comércio, uma politica publica que buscava “localizar os sem trabalho” e assenta-los em “nicleos de povoamento’, acirrava-se o controle policial sobre a populagao ociosa, enquadrando-a na “vadia- gem” e/ou na “mendicancia”, especialmente no Rio de Janeiro. Dito de outra forma, procurava-se “localizar” os “nacionais” para arranjar-lhes trabalho, enquanto negros pos-emancipados tendiam a ser objeto prefe- rencial de uma identificago moral como provaveis ociosos, vadios, men- digos pela “policia de costumes”. Vale arrematar esta argumentacdo lembrando que logo apés 1888 0 tema da “vadiagem” entrou na pauta dos debates entre diferentes in- 109 Segredos da Boa Aparéncia terlocutores (juristas, politicos, médicos legistas, policia), cujo olhar se voltava principalmente, mas no somente, para o chamado “problema racial brasileiro”. As leis de 1930 (Lei dos 2/3), de 1941 (Lei das Contravengdes Penais) ¢ de 1951 (Lei “Afonso Arinos”) atualizaram es- tes debates em diferentes instancias, produzindo variados “saberes” a respeito das caracteristicas morais ¢ fisicas de pessoas passiveis de se- rem enquadradas como ociosas e vadias. Neste ponto, foi possivel formular minha pergunta central: como a nogao de “sea aparéncia” foi se configurando como metafora ordina- riamente empregada e apreendida, especialmente no mundo do traba- tho, no sentido de “sé para brancos”? Em busca de mais alguma pista para reconstruir 0 percurso da nogéo de “hoa aparéncia” no contexto mais especifico das relacdes de trabalho, ou melhor, na hierarquia das ocupacées, visitei um texto pioneiro de Oracy Nogueira, “Atitude desfavoravel de alguns anunciantes de So Paulo em relacdo aos empregados de cor” (1985|1942]). Nele o autor examina ¢ classifica os antincios do jornal Didrio Popular, de Sao Paulo, durante o més de dezembro de 1941, para identificar, por meio de ques- tionario (aplicado posteriormente), a nacionalidade, a cor, a religiao, a profissao ¢ a razdo das preferéncias “raciais” dos empregadores. Ao lado dos resultados estatisticos, o autor acrescentou os discursos dos infor- mantes a respcito de suas preferéncias, forjando um quadro que bem poderiamos chamar de etnografico. Além disso, este estudo, apesar de incipiente quanto as conclusdes — como o proprio autor o considerou (43 anos depois de sua primeira publicagio) — tem grande relevancia porque, de um lado, atenta para a natureza altamente informativa e des- critiva dos antincios nos quais a condigao racial é explicitamente requi- sitada ¢, de outro, completa o quadro de referéncia ao reproduzir cartas ¢ outros documentos de protesto individuais e de “sociedades negras”, entre 1938 ¢ 1942, publicadas no mesmo periddico. Todas estas informacdes combinadas constitufram o mote que me permitiu indagar quando e como a cor deixou de ser enunciada, e até que ponto era cabivel suspeitar que em torno dos anos 50 — durante 0 periodo de debate e promulgacio da lei “Afonso Arinos” — a expressaio 110 Segredos da Boa Aparéncia

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